professoras alfabetizadoras: suas prÁticas ...aluno que não sabe, vai aprender com aquele que já...
TRANSCRIPT
PROFESSORAS ALFABETIZADORAS: SUAS PRÁTICAS DE ENSINO, O
RECONHECIMENTO DA IDENTIDADE DOCENTE E SUAS DIFICULDADES
DIDÁTICAS
As três pesquisas apresentadas neste painel trazem discussões que abordam aspectos
relacionados ao trabalho didático de professoras alfabetizadoras, o início de carreira e o
aprendizado da profissão como alfabetizador e o reconhecimento da identidade de
alfabetizadoras. Os estudos foram feitos numa perspectiva sociológica todos tem em comum o
desafio de decifrar aspectos ligados à prática do professor alfabetizador para aprimorar a
formação docente. O primeiro texto - Professoras alfabetizadoras e o ensino do uso do
caderno- por meio de entrevistas orientadas com questões baseadas em alguns referenciais
teórico-metodológicos, foi obtido manifestações de professoras alfabetizadoras transgressoras
que atuam em processos em que sabem o que precisam ensinar aos seus alunos e como fazem
isto no contexto da política educacional que vem buscando implantar o construtivismo
ampliando as possibilidades de compreensão da ação alfabetizadora que escapa ao controle
dessa hegemonia. No segundo trabalho – Dificuldades didáticas de professores
alfabetizadores no início da carreira – os dados foram coletados a partir de instrumentos como
observação, entrevista, questionário online e questionário com escala. Teve como objetivo
identificar as dificuldades didáticas de professores iniciantes, ou seja, dificuldades
encontradas no âmbito da sala de aula no processo de ensino. A terceira pesquisa –
Conhecimentos necessários para alfabetizar e o reconhecimento da identidade de professoras
alfabetizadoras- foi realizada por meio de entrevistas intensivas, semi-estruturadas, feitas com
seis alfabetizadoras. Foram obtidos resultados relativos aos conhecimentos considerados
necessários para alfabetizar e às referências para as aprendizagens sobre a profissão e dados a
respeito das impressões das professoras sobre suas próprias condições como alfabetizadoras.
Palavras-chave: Professores Alfabetizadores. Professores Iniciantes. Identidade Docente.
XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira
3773ISSN 2177-336X
CONHECIMENTOS NECESSÁRIOS PARA ALFABETIZAR E O
RECONHECIMENTO DA IDENTIDADE DE PROFESSORAS ALFABETIZADORAS
Milka Helena Carrilho Slavez
Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul-UEMS
RESUMO
O presente artigo expõe uma parte dos resultados apresentados na tese de doutorado,
defendida no ano de 2012, teve por objetivo investigar questões que envolvem os fatores que
levam os professores a escolherem e permanecerem nas classes de alfabetização, os saberes
que eles adquirem ao longo de suas trajetórias ao exercerem esse ofício e a identidade
profissional que desenvolvem. O tema foi abordado numa perspectiva sociológica e
constituem apoios teóricos os estudos sobre socialização primária e secundária de Berger e
Luckmann, sobre socialização profissional docente de Dubar e sobre o fator tempo na
constituição dos saberes e da identidade profissional de Tardif e Raymond. A pesquisa, de
abordagem qualitativa, efetivou-se por meio de questionários feitos com 54 professores que
atuavam em classes de alfabetização de escolas públicas e particulares do município de
Paranaíba-MS e por meio de entrevistas intensivas, semi-estruturadas, feitas com 06 desses
alfabetizadores. Neste artigo apresentados os resultados referentes a dados relativos aos
conhecimentos considerados necessários para alfabetizar e às referências para as
aprendizagens sobre a profissão e dados a respeito das impressões das professoras sobre suas
próprias condições como alfabetizadoras. Os resultados obtidos foram analisados à luz do
referencial teórico norteador da pesquisa. A percepção das especificidades do trabalho que as
alfabetizadoras realizam foi posta em destaque.
Palavras chave: Professores alfabetizadores, identidade profissional docente, trajetória
docente.
INTRODUÇÃO
O presente artigo é parte da tese de doutorado intitulada Percursos identitários de
professores alfabetizadores no município de Paranaíba –MS. Na referida pesquisa as questões
que envolvem os fatores que levam os professores a escolherem e permanecerem nas classes
de alfabetização, os saberes que eles adquirem ao longo de suas trajetórias ao exercerem esse
ofício e a identidade profissional que desenvolvem, pareciam reunir as condições para
propiciar uma compreensão sobre as necessidades formativas que se apresentam na prática e,
com isso, fornecer elementos, tanto para melhor direcionar a formação inicial no curso de
Pedagogia de Paranaíba-MS, quanto (e sobretudo) para investigar, especificamente, o
percurso de formação e construção de identidade profissional de professoras alfabetizadoras.
XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira
3774ISSN 2177-336X
Desse modo, esta pesquisa, realizada na perspectiva sociológica, buscou entender o
processo de construção da identidade do professor alfabetizador, tendo, como referencial
norteador, os conceitos de socialização e identidade profissional docente, segundo Berger
(1986), Berger e Luckmann (2003), Dubar (1997), Tardif (2001; 2002) e Tardif e Raymond
(2000).
Procedimentos adotados para a investigação
Os sujeitos selecionados foram professores dos 1º e 2º anos do ensino fundamental de
escolas estaduais, municipais e particulares. Para selecionar os sujeitos da pesquisa foram
utilizados, como instrumentos iniciais para coleta de dados, questionários, elaborados de
acordo com a perspectiva apontada por Januário (1996) e Ludke e André (1986). Eles foram
aplicados em 54 professores de escolas estaduais, municipais e particulares, existentes no
município. A partir das respostas apresentadas nos questionários, foi possível identificar
aqueles professores que vinham escolhendo salas de alfabetização e nelas permanecendo há
mais de 10 anos.
Uma vez identificados os professores que atuavam há mais de dez anos nas classes de
alfabetização – 25 professores, foi possível realizar contatos com eles e a partir daí, foram
selecionadas seis professoras que concordaram em participar da pesquisa, com nomes
fictícios.
Foram realizadas entrevistas semi-estruturadas, intensivas e em profundidade, que
possibilitaram o conhecimento da história de vida e percurso identitário profissional das seis
professoras, observando-se as orientações apontadas por Januário (1996), Ludke e André
(1986) e Zago (2003). Para o presente artigo serão apresentados apenas os
- Dados referentes aos conhecimentos considerados necessários para alfabetizar e às
referências para as aprendizagens sobre a profissão;
- Dados relativos às impressões das professoras sobre suas próprias condições como
alfabetizadoras.
Aprendizagem da profissão e conhecimentos considerados necessários para alfabetizar
A esse respeito, vale lembrar que a aprendizagem da profissão de professor começa
muito antes de ele assumir uma sala de aula. Nas palavras de Tardif e Raymond (2000, p.
216): “(...) uma boa parte do que os professores sabem sobre o ensino, sobre os papéis do
professor e sobre como ensinar provém de sua própria história de vida, principalmente de sua
socialização enquanto alunos”.
XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira
3775ISSN 2177-336X
Desse modo, com exceção de Luiza que apenas se lembrava da cartilha Caminho
Suave, quando foi alfabetizada, todas as alfabetizadoras reconheceram, em si, traços de suas
antigas professoras, a exemplo de Nanci, que se via muito semelhante à professora de quem
gostou, pois era carinhosa e atenciosa. Paloma também se identificava com “Tia” Neide, que
era muito boa, carinhosa e sorridente. Iara disse que herdou de sua professora o gosto por
artes, teatro, a organização do caderno e a valorização do trabalho do aluno. Jandira sempre
afirmou que inicia suas aulas como sua antiga professora alfabetizadora, que começava as
aulas com músicas, com brincadeiras... e acreditava que essa era uma forma de cativar os
alunos, e prender a atenção deles. Já a professora Rute afirmou colocar o alfabeto na parede e
fazer leituras coletivas, porque sua alfabetizadora fazia o mesmo. Ela acreditava que assim o
aluno que não sabe, vai aprender com aquele que já lê.
Há unanimidade entre as alfabetizadoras no que diz respeito à contribuição das trocas
com colegas para seu aprendizado da profissão. Até mesmo Luiza, que durante a entrevista,
por várias vezes, se queixou da dificuldade no relacionamento com as colegas, reconheceu
que aprendeu muito com “(...) Eliúcia, uma professora que alfabetizava crianças surdas e
mudas, utilizando o método fônico... a “dica” dada por ela para procurar aprender esse
método foi uma grande ajuda”. Paloma citou a irmã Flora que acrescentou muito para sua
vida, tanto como pessoa, quanto como profissional. Das trocas que teve com as colegas, as
mais marcantes, para Iara, foram com D. Vanda que lhe dava umas boas “dicas”. Entretanto,
concluiu que elas a ensinavam, mas ela acrescentava um pouco de seu próprio jeito. A
professora alfabetizadora que trabalhava de manhã e tinha 10 anos de experiência na escola
onde Jandira começou alfabetizar, contribuiu muito para seu aprendizado. Rute recordou-se
de uma situação de troca que ocorreu em um curso de formação continuada, o que a fez
perceber que subestimava seus alunos e, a partir daí, mudou sua prática.
A Habilitação Específica para o Magistério, em nível médio, teve uma grande
influência na formação de todas as alfabetizadoras. Ao mencionarem a contribuição que a
formação inicial teve para seu aprendizado da profissão, todas citaram essa primeira
formação. Das coisas que aprenderam na formação inicial e que ainda utilizam, em suas
práticas, Nanci, por exemplo, menciona as referências adquiridas com leituras sobre
alfabetização de Teresinha Carraher e Emília Ferreiro. Luiza ainda fazia o planejamento como
aprendeu em sua formação inicial. Paloma não se esquecia da professora de Didática que
aconselhava a ficar sempre atenta aos alunos. As lições de Didática também são lembradas
por Iara, como a atenção à postura; além do pedagógico a maneira de agir. Jandira procurava
fazer como foi ensinada: mantém a organização do ambiente de trabalho e do material.
Também aprendeu a valorizar a estética, de como fazer um cartaz, como organizar um
XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira
3776ISSN 2177-336X
caderno de tarefa, as atividades bem elaboradas, diversificadas. Rute aprendeu a teoria sobre a
hipótese da escrita da criança, no magistério, e isso permanece em sua prática.
Dos cursos de formação continuada, Rute e Paloma citaram o PROFA, a segunda
chegou a fazê-lo por duas vezes, para que não restassem dúvidas. O único curso que marcou a
carreira de Luiza e que ela ainda defendia era o curso do método fonético de Heloísa
Meireles, a escritora da cartilha Casinha Feliz, pois, quando teve que assumir a alfabetização,
após o fechamento das classes de pré-escola mantidas pelo Estado, se sentiu perdida e esse
curso foi a solução para suas dificuldades, por isso não abandona esse método. Nanci
aproveitava muita coisa dos cursos de formação continuada, deu como exemplo a contação de
história, que passou a fazer parte de sua prática. Iara gostou dos momentos de conversa,
porque assim surgia troca de novidade entre os professores, mas reconheceu também que é
um momento de estudo de discussão coletiva. Jandira mencionou as palestras a que assiste
todo ano em um evento chamado Pensar Educação. Como se pode constatar, ao trabalharem
com turmas de alfabetização, essas professoras foram buscando aprender mais sobre o
processo de alfabetização; por isso, procuraram estudar mais e fazer cursos.
Obviamente, os saberes específicos sobre a alfabetização são provenientes da
formação inicial e da continuada, da troca com colegas e ainda da prática, da experiência
adquirida por meio dos sucessos e insucessos e nas relações com os alunos. Sobre a
experiência no trabalho docente, Tardif e Lessard (2005, p.52-3), a partir de pesquisas
realizadas, concluíram que
(...) se a experiência de cada docente que encontramos é bem própria, ela não deixa
de ser também a de uma coletividade que partilha o mesmo universo de trabalho,
com todos os seus desafios e suas condições. Por isso, as vivências mais íntimas
excedem a intimidade do Eu psicológico, para inscreverem-se numa cultura
profissional partilhada por um grupo, graças à qual seus membros atribuem
sensivelmente significados análogos a situações comuns. Neste sentido, viver uma
situação profissional como um revés ou um sucesso não é apenas uma experiência
pessoal. Trata-se também de uma experiência social, na medida em que o revés e o
sucesso de uma ação são igualmente categorias sociais através das quais um grupo
define uma ordem de valores e méritos atribuídos à ação. Em síntese, o que nos
interessa com essa noção de experiência social do ator é precisamente as situações e
significações pelas quais a experiência de cada um é também, de certa maneira, a
experiência de todos.
Desse modo, as experiências vividas, no cotidiano da sala de aula, são anotadas pelas
alfabetizadoras no Caderno de Planos. A única que não anota é Iara. Esse é o modo que as
professoras encontraram para registrar e, consequentemente, refletir sobre o que deu certo e o
que não deu, a fim de nortear seu trabalho. Quando a atividade não dá certo, elas procuram
pensar sobre como refazê-la de modo diferente, porque o objetivo não foi atingido; aquelas
XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira
3777ISSN 2177-336X
que foram boas, registram como foi o desenvolvimento. Assim, no ano seguinte, elas
reaproveitam, acrescentam outras e, a cada ano, vão modificando.
Um traço comum a todas as alfabetizadoras é o sentimento de realização que têm ao
verem seus alunos lendo, produzindo um pequeno texto, realizando atividades mais avançadas
ou agindo com maior independência. Esse sentimento de realização é muito forte, pois,
conforme revelou Rute, mesmo depois de 25 anos trabalhando com alfabetização, ainda se
sente realizada ao ver seus alunos começando ler. Entretanto, o sentimento de desânimo
também faz parte do trabalho dessas professoras, mas, nesse aspecto, os motivos são variados.
Nanci sente-se desanimada quando chega ao meio do ano e metade da turma sabe e a outra
metade não sabe. Esse é também o motivo de desânimo de Luiza quando, mesmo após tentar
de tudo, não descobre porque seu aluno não aprende. Rute também desanima quando acha
que a turma não está rendendo. Para Paloma, a fonte do desânimo é falta de apoio da família,
quando insiste com uma criança, depois vê que a família não colabora, não continua, assim
fica frustrada, porque a criança tem um potencial, mas tem algo atrapalhando. Também, para
Iara, a família é a causa de seu desânimo, quando prepara a atividade, manda para casa e
não volta, não tem retorno. A única que disse que não há momentos em que desanima foi
Jandira.
Quanto aos conhecimentos necessários para alfabetizar, três professoras – Paloma,
Jandira e Rute – foram específicas quanto ao conhecimento que é próprio da alfabetização.
Elas apontaram que é necessário conhecer os níveis, ou fases, em que as crianças se
encontram para melhor direcionar as atividades, voltando-as às necessidades dos alunos. Por
isso, o professor tem que saber como as crianças aprendem e como é o processo de
alfabetização; tem que ter noção sobre o desenvolvimento da criança, o pensamento da
criança. Nanci, Luiza e Paloma fizeram referência também ao respeito à individualidade, ao
limite de cada um dos alunos, porém isso se aplica a qualquer nível de ensino, não é intrínseco
à alfabetização. Uma característica apontada por Nanci e também foi mencionada por Paloma
é que o professor alfabetizador precisa ser observador para ver a maneira que o aluno
aprende. Contudo, embora seja muito importante que o professor alfabetizador tenha essa
habilidade, os demais professores também devem ser observadores. Não se trata, portanto, de
um conhecimento inerente à alfabetização. O mesmo se percebe nos aspectos indicados por
Iara, que foram: o professor deve conhecer a alma infantil, o ser humano e gostar muito de
criança. Esta última característica foi também exposta por Luiza, que acrescentou que o
alfabetizador precisa ter paciência.
Com o mesmo intuito de identificar, no professor que atua em classes de alfabetização,
traços presentes nos seus conhecimentos específicos que fossem representativos para a
XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira
3778ISSN 2177-336X
constituição de sua identidade como alfabetizador, investigou-se, ainda, qual/is
conhecimento/s diferencia/am as alfabetizadoras dos demais professores.
No grupo investigado, as opiniões são variadas. A princípio, as alfabetizadoras
concordaram que têm conhecimentos que os outros professores das outras séries não têm.
Observou-se que estavam se comparando aos professores das séries mais avançadas do ensino
fundamental, como o professor de Geografia, de História, porque têm um conhecimento
específico, conforme mencionou Jandira. Mas, ao serem solicitadas a pensarem nos
professores do 3º ou 4º anos do ensino fundamental, suas respostas foram mais detalhadas e
apresentaram visões desse conhecimento um pouco mais precisas.
As declarações de Paloma e Rute ressaltam o conhecimento das fases da criança.
Entretanto, a segunda observa: é um conhecimento que todos os professores tiveram em sua
formação, mas aparentemente se esquecem quando passam a ensinar nas séries mais
avançadas do ensino fundamental. Ela também destaca o respeito que o professor precisa ter
pelo tempo que cada criança precisa para aprender. Nanci concorda que os outros
professores também tenham esse conhecimento, mas ela considera a dificuldade de lidar com
a maioria da classe já alfabetizada. Desse modo, mesmo conhecendo as especificidades da
alfabetização, esse professor precisa ter uma habilidade para lidar com os diferentes níveis
das crianças. Luiza ressalta características necessárias, como: ser detalhista e sequencial para
atender alunos que dependem mais do professor, mas conclui que as práticas dos professores
alfabetizadores são diferentes. Iara adverte que nem todas as alfabetizadoras têm o
conhecimento sobre como a criança pensa. Nota-se que as três primeiras – Paloma, Rute e
Nanci – apontaram, como conhecimentos que diferenciam o professor alfabetizador dos
outros das demais séries, atributos que, de fato, não se aplicariam às séries mais avançadas.
A dificuldade de os professores reconhecerem seu próprio conhecimento também foi
verificada por Shulman (2005) em seu artigo Conocimiento y enseñanza: fundamentos de la
nueva reforma. Nele, esse autor admite que “(...) os próprios professores têm dificuldades
para articular o que conhecem e como conhecem.” (idem, p.8) Aparentemente, esses
conhecimentos estão tão arraigados nas práticas dessas alfabetizadoras, que elas não
conseguem explicitá-los.
Há ritmos, contudo, diferentes de desenvolvimento e de aprendizado. Assim, com os
alunos mais lentos, as alfabetizadoras empregam meios para fazê-los avançar, como por
exemplo, colocá-los para sentar com outros alunos que os auxiliam; por isso, procuram
desenvolver atividades em grupos ou duplas – é o que fazem Luiza, Paloma, Jandira e Rute.
Na escola onde Nanci atua, não há aulas de reforço, por isso ela prepara atividades
XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira
3779ISSN 2177-336X
diferenciadas para os alunos estudarem em casa, elabora um material reforçando as bases da
alfabetização, chama o pai e o orienta. Quando o pai não ajuda, cobra do aluno mesmo e às
vezes fica com ele durante o recreio. O recurso que Iara utiliza é colocar uma atividade
diversa para os outros alunos e sentar com aquele que tem dificuldade.
Resultados e algumas considerações
A percepção das especificidades do trabalho que as alfabetizadoras realizam foi posta
em destaque, por meio da exposição do modo como aprenderam a profissão, considerando,
nas trajetórias, as influências de antigas professoras, das trocas com os colegas, da formação
inicial e continuada, das experiências adquiridas na prática. Também foram apreciados os
conhecimentos reconhecidos pelas professoras como específicos à alfabetização, suas rotinas
e suas relações com os alunos. Todas essas facetas estão entrelaçadas no processo de
constituição da identidade profissional das alfabetizadoras.
Por desempenharem, por tantos anos, a mesma tarefa de alfabetizar, as professoras
identificaram mudanças nas práticas, como Nanci e Luiza, que reconheceram que o que
mudou foi a segurança que adquiriram. Para Paloma, o que mudou foi que aumentou a
paciência de com o processo de aprendizagem de seus alunos. Iara tornou-se mais atenta e
reflexiva sobre o trabalho que realiza. Jandira se considerava menos autoritária e acredita
mais no trabalho em grupos, na interação. Rute ponderava que sua prática mudou e foi
melhorando, porque foi aprendendo, foi aplicando e o trabalho dos outros foi contribuindo.
Sua forma de alfabetizar mudou, porque tinha as cartilhas e foi se adequando, procurou se
adaptar.
A seguir, são examinados os depoimentos sintetizados que destacam como as
professoras se definem como alfabetizadoras. No momento em que foram convidadas a
responder se já haviam pensado em si mesmas, como alfabetizadoras, demonstraram
estranheza. Foi necessário estabelecer o contraste, a partir da apresentação da continuação da
pergunta que as incitou a verificar se percebem diferenças entre elas e os outros professores
por serem alfabetizadoras. Os depoimentos merecem ser lidos na íntegra:
Eu não digo diferente, mesmo porque eu falei pra você, eu já atuei em todas as
outras áreas. Mas eu me identifico mais com essa parte, eu gosto dessa parte. Eu
não vejo que eu sou diferente das outras não. De repente os outros podem até achar
(risos) Você nunca tinha pensado nisso? Não, eu não acho. Eu não sinto essa
diferença. Não penso assim não, porque eu alfabetizo, eu sou diferente. Eu me vejo
como professora. Só que eu prefiro alfabetização. (Nanci)
Ah eu dou uma certa importância pra mim sim, Milka, sabe. Porque é gratificante,
não é como você ter os alunos já vindo de outras professoras, vindo sei lá, tendo
uma certa experiência escolar... é diferente de você receber aquelas crianças assim,
que eles esperam tudo de você, sabe. Nossa! você precisa de ver: eles estão longe lá,
XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira
3780ISSN 2177-336X
e eu tô escutando tia, tia. Eles me chamam de tia... Eu acho, eu dou muita
importância pro meu trabalho. Você já tinha pensando nisso? Sim eu falo pra todo
mundo, eu sou professora alfabetizadora. Não sou assim uma simples professora,
você trabalha completando o que os outros já fizeram. Quer dizer, eu completo a
educação infantil é claro, mas eu sou a que inicia a alfabetização praticamente. Eu
inicio entendeu, é diferente Milka. (Luiza)
Será que eu vejo diferente? Em certas horas eu me vejo no compromisso. Que é um
compromisso muito grande ser alfabetizadora é uma responsabilidade muito
grande. Porque as séries menores, a criança passa, pode vir com dificuldade, parte
de psicomotricidade tudo. Ela vem, vem, vai passando. Tem toda uma importância,
mas não acentua tanto, quanto acentua na alfabetização. Aí você se depara né, com
todo aquele... os vários problemas aí é muito grande, o professor de alfabetização...
Porque se você deixou ir, sem estar preparado, foi você. Se você fez mal feito, ele
tinha capacidade e você não fez o que tinha que fazer, foi você. Então eu vejo dessa
forma, não que eu me veja diferente, eu vejo sim que o compromisso é maior. A
preocupação é maior. Já havia pensado nisso? Eu pensar não, eu já ouvi já, já li.
Mas acho que pensar dessa forma, eu ainda não pensei não. Eu acho que não caiu a
ficha assim, nem sei se vai cair também. Eu acho que a criança entrou na escola,
num processo todinho de alfabetização. E começa aí. O conhecimento que o
alfabetizador tem, faz alguma diferença? Ah sim. Se for pensar em relação as
outras sim, tem uma diferença. E eu acho que a gente acaba buscando mais também
do que elas, eu acho, né. (Paloma)
Não eu nunca pensei assim eu sou alfabetizadora. Eu sempre penso professora, eu
penso assim eu com os alunos. Eu penso eu e os alunos, os alunos e eu. Momento de
troca de conhecimento, assim eu vejo a questão do papel do professor, eu percebo
assim. Não me vejo. Eu penso assim, papéis diferentes, cada um tem um espaço a
ocupar aí, e precisa. Então ninguém é mais que ninguém, cada um tem a sua
importância no seu lugar. Não eu não me vejo diferente não. Igual eu te falei, assim
que eu penso que talvez seja mais difícil a questão de você ter que alfabetizar, você
tem que alfabetizar e você vê. Você vê quando a criança começa a ler, você percebe.
Enquanto os demais, eles pegam mais fragmentados né. Então a gente pra
alfabetização, a gente tem esse olhar de perceber quando começa a leitura, quando
ele vai criar, ele vai avançando. Então talvez a gente seja privilegiada por ter esse
momento, eu vejo assim. Mas daí ser mais ou menos, não. Eu vejo que cada um tem
mesmo a sua função e é isso. (Iara)
Eu vejo a minha profissão como única, eu vejo a minha profissão início da vida
escolar de uma criança. Por isso, que eu ou continuo com esse aluno na escola, ou
eu descarto ele de vez da escola. Do jeito que eu vou levar pra ele, o que é a leitura
e a escrita. Se eu for levar pra ele que a leitura e escrita é uma obrigação, que ele
tem que ler e escrever e sim corretamente, eu já tô falando pra ele, tchau. Escola
não serve pra você. Agora se eu levar a leitura e escrita pra ele, como um papel
fundamental pra vida dele, que ele vai realmente utilizar, e que ele vai conseguir.
Então eu acho, que o papel do alfabetizador é o pontapé numa escola. Ou ele
destrói, ou ele constrói. Você se vê diferente das outras professoras por ser uma
alfabetizadora? Ah não, nesse sentido de me sentir não. Nunca. Eu acho que eu
queria ser mais, tem muita coisa pela frente. Não é no sentido de fazer melhor ou
pior do que ninguém, mas é alguém que tem uma especialidade? Com certeza.
Aha. Nesse sentido? Segurança disso. Uma segurança daquilo que faz, com certeza.
(Jandira)
Não. eu acho assim, quando igual quando eu era criança, eu não tinha noção do
que era uma alfabetizadora, queria ser uma professora. Então eu sabia que
professor tinha que ensinar né, tinha que lidar com as crianças, tinha que ensinar
coisas assim. Mas diferente não, eu acho que os professores eles são assim,
professores. Independente de que nível que eles estejam atuando né, porque ele não
deixa de ser um professor. Nem melhor nem pior, só porque tá lá em cima. Eu até
vejo assim, ainda falo assim, eu acho que quem deveria ganhar mais, são os
professores alfabetizadores, eles sofrem mais que os outros né. Trabalham dobrado,
não que lógico, não tô desmerecendo, não. Porque quem trabalha com adultos, cada
um tem né, mas a preparação é maior, a exigência é maior. Então nesse sentido
XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira
3781ISSN 2177-336X
você não se vê diferente das outras, por essa exigência, por essa responsabilidade
que você tem? Ah não sei se é diferente, mas tem uma carga a mais né. Mas aí no
caso, o professor alfabetizador ele se especializa nisso, o que você me diz? Eu acho
que ele acaba se especializando, buscando isso né. Porque o professor só quer
saber disso, tudo que fala sobre alfabetização já dá um toque, já tá ligado. Você
acaba vivendo isso 24hrs, o que eu vou fazer, como eu vou fazer, como que eu vou
melhorar isso, tem que fazer isso diferente. Não deu certo, como que eu vou mudar.
E você já tinha se pensado assim: eu sou uma alfabetizadora? Não. Até não. Eu
sempre achei que eu era uma professora assim, mas não uma alfabetizadora Não
sei, eu acho que o professor alfabetizador, ele nasce né alfabetizador. E eu não sei,
é uma coisa assim que eu penso que tá dentro da gente, que você quer aquilo, você
quer trabalhar com as crianças e é gostoso. É gostoso ver eles desenvolver, chegar
no fim do ano depois quando eles estão produzindo por si só, que você vê que você
só encaminhou e vê aquelas produções... (Rute)
Observa-se, nas declarações das alfabetizadoras, primeiramente, a resistência a
diferenciar-se dos demais professores, pelo entendimento de que seria uma presunção sentir-
se diferente, mas acabam identificando aspectos variados que evidenciam as diferenças. A
esse respeito, vale lembrar aqui Dubar (2009, p. 13) quando defende que
(...) a identidade não é o que permanece necessariamente “idêntico”, mas o resultado
de uma “identificação” contingente. É o resultado de uma dupla operação
linguageira: diferenciação e generalização. A primeira é aquela que visa a definir a
diferença, o que constitui a singularidade de alguma coisa ou de alguém
relativamente a alguém ou a alguma coisa diferente: a identidade é a diferença. A
segunda é a que procura definir o ponto comum a uma classe de elementos todos
diferentes de um mesmo outro: a identidade é o pertencimento comum. Essas duas
operações estão na origem do paradoxo da identidade: o que há de único é o que é
partilhado. Esse paradoxo só pode ser solucionado enquanto não se leva em conta o
elemento comum às duas operações: a identificação de e pelo outro. Não há nessa
perspectiva, identidade sem alteridade. As identidades, como alteridades, variam
historicamente e dependem de seu contexto de definição.
A partir dessa definição apresentada por Dubar (idem), pretende-se salientar aqui, nas
declarações das alfabetizadoras, primeiramente, os aspectos que elas reconhecem como algo
que as diferencia dos demais professores. Assim, nessa direção, foram identificados os
seguintes aspectos mencionados nos depoimentos das professoras:
Habilidade para lidar com os diferentes níveis das crianças;
Responsabilidade pelo início da alfabetização formal;
Compromisso e responsabilidade maior para não permitir que a criança prossiga sem
aprender;
Atenção para perceber quando começa a leitura e os avanços nesse aprendizado;
Apresentação da leitura e da escrita para a criança, como um papel fundamental para sua
vida, que vai realmente utilizar e conseguir aprender;
Preparação maior e especialização no que se refere à alfabetização.
XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira
3782ISSN 2177-336X
Do mesmo modo, espera-se evidenciar o que há em comum a todas as professoras que
possa caracterizá-las, como possuidoras de uma identidade como alfabetizadoras. Assim, após
uma revisão em todo texto para “garimpar” traços comuns a todas, foram eles localizados:
Utilizam do conhecimento sobre as fases do desenvolvimento das crianças para melhor
direcionar as atividades;
Consideram as necessidades individuais e o tempo necessário para cada criança aprender;
Organizam a rotina, cuidadosamente, com atividades apropriadas ao início da
alfabetização;
Sentem-se realizadas, ao verem seus alunos lendo, produzindo um pequeno texto,
efetuando atividades mais avançadas, ou agindo com maior independência;
Reconhecem, em si, traços de suas antigas professoras;
Afirmam não usar de repressão e entender a dispersão dos alunos, assumindo seu papel
para intervir e assegurar o aprendizado;
Admitem que pode haver algum problema com a atividade ou o modo como está sendo
conduzida quando notam desinteresse geral;
Mantêm boa relação com os superiores, no caso os diretores ou coordenadores;
Admitem exercer liderança entre seus colegas;
Consideram a importância da contribuição da formação inicial para o aprendizado da
profissão;
Sentem que seus alunos gostam delas;
Têm muita experiência e conhecimentos adquiridos ao longo de suas trajetórias, mas
admitem que ainda precisam aprender mais;
Demonstram ter comprometimento com o aprendizado dos seus alunos;
Reconhecem que há necessidade de melhoria nas condições de trabalho.
A análise dos traços comuns a todas as alfabetizadoras revela que apenas os quatro
primeiros aspectos identificados são exclusivos à alfabetização. Nos dois primeiros itens, é
evidente a influência da psicogênese da língua escrita bastante difundida por Emília Ferrero, a
partir da década de 1980, período que coincide com a época em que as alfabetizadoras se
formaram no magistério – além, é claro, dos cursos de formação continuada como o PROFA,
mencionado por elas, que também segue essa mesma linha construtivista.
O elemento comum às duas operações, denominadas diferenciação e generalização,
conforme Dubar (2009), é a identificação do e pelo outro, ou seja, a alteridade. Esta
alteridade depende do modo como são valorizados na sociedade, de como são vistos pelos
outro.
XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira
3783ISSN 2177-336X
Desse modo, não é difícil entender o estranhamento apresentado pelas professoras
diante do desafio de definirem-se como alfabetizadoras e, portanto, assumirem uma
identidade como tal.
Diker & Terigi (2008, p. 142) contribuem para o debate dessa questão, quando
destacam as ideias de “generalidade” e de “trabalho com crianças” que cercam as referências
da sociedade, em geral, acerca da profissão do “professor do primário”:
A diferença do que sucede com os mestres do primário em que não existe uma
identificação com um campo disciplinar especializado, e os mestres dos ciclos
subsequentes só apresentam uma forte identificação com o saber especializado.
Assim, com os professores do primário se dá o caso de outorgar maior importância a
umas áreas que a outras, mas ele tem mais a ver com uma valoração social que com
uma identificação pessoal do professor com o saber especializado; neste caso o que
predomina como elemento de identidade forte é o trabalho genérico de ‘ser o que
ensina as crianças’.
O trabalho apresentado aqui defende que há, sim, uma especialidade entre os mestres
do primário, e ela está associada ao trabalho desenvolvido pelos professores que atuam nas
classes de alfabetização.
Referências
DIKER, G.; TERIGI, F. La formación de maestros y professores: hoja de ruta. Buenos Aires
– AR: Paidós. 2008. p. 91- 190.
DUBAR, C. A crise das Identidades: interpretação de uma mutação. Tradução de Mary
Amazonas Leite de Barros. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo. 2009
JANUÁRIO, C. Métodos de investigação no pensamento do professor. In: JANUÁRIO, C.
Do pensamento do professor à sala de aula. Coimbra – Pt: Livraria Almedina, p.51-65, 1996.
LÜDKE, M. e ANDRÉ, M. Pesquisa em educação: abordagens qualitativas. São Paulo: EPU,
1986.
SHULMAN, L.S. Conocimiento y enseñanza: fundamentos de la nueva reforma. Profesorado.
Revista de curriculum y formación del professorado. Granda-Es: Universidad de Granada,
v.9, n. 2, 2005, pp. 1-30 (online) www.ugr.es/local/recfpro/Rev9ART1
TARDIF, M. e RAYMOND, D. Saberes, tempo e aprendizagem do trabalho no magistério.
In: Educação e Sociedade. Campinas: Unicamp/Cortez/Associados, v. 21, n.73,
dezembro/2000.
TARDIF, M. e LESSARD, C. O trabalho docente: elementos para uma teoria da docência
como profissão e interações humanas. Petrópolis: Vozes, 2005, p. 15 54.
ZAGO, N. A entrevista e seu processo de construção: reflexões com base na experiência
prática de pesquisa. In: ZAGO, N; CARVALHO, M. P. e VILELA, R.A.T. (Org.) Itinerários
de Pesquisa: perspectivas qualitativas em Sociologia da Educação. Rio de Janeiro: D.P.&
.A., p. 287-309, 2003.
XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira
3784ISSN 2177-336X
PROFESSORAS ALFABETIZADORAS E O ENSINO DO USO DO CADERNO
Alda Junqueira Marin
Tamara Fresia Mantovani de Oliveira
PEPG Educação:História, Política, Sociedade
Resumo
Este relato é parte de pesquisa mais ampla que focaliza o trabalho didático de professoras
alfabetizadoras. Estão presentes informações obtidas especificamente sobre tal trabalho nas
primeiras semanas do ano letivo com crianças de 1º ano do ensino fundamental. Esta parte do
estudo é orientada pelo questionamento por professoras alfabetizadoras transgressoras que atuam
em processos em que sabem o que precisam ensinar aos seus alunos e como fazem isto no
contexto da política educacional que vem buscando implantar o construtivismo ampliando as
possibilidades de compreensão da ação alfabetizadora que escapa ao controle dessa
hegemonia. Este termo reflete o eixo das políticas educacionais desde os anos de 1990 para o
país e, por decorrência, para a rede pública municipal da cidade de São Paulo. Buscou-se,
nesta pesquisa, uma aproximação às reflexões e processos por meio dos quais operam a
reinvenção dos conteúdos do ensino para enfrentar os desafios da alfabetização dos seus
alunos. Esse objetivo foi obtido com as manifestações de professoras a partir de entrevistas
orientadas com questões baseadas em alguns referenciais teórico-metodológicos. Para as
condições de aquisição da língua escrita tomou-se a proposta de alfabetização da Secretaria de
Estado da Educação de Minas Gerais divulgada em 2007; foram utilizadas bases de estudos
que consideram os professores capazes de elaborar “teorias” sobre seu próprio trabalho, além
dos conceitos de senso prático e do núcleo didático do trabalho docente onde estão as
questões de materiais didáticos e procedimentos de ensino. Participaram dessa parte da
pesquisa cinco professoras da rede pública do município de São Paulo. Estão descritos os
resultados sobre a relevância atribuída por elas ao ensino do uso do caderno a crianças que
vêm da educação infantil sem tais domínios compondo parte de um currículo não previsto
oficialmente.
Palavras-chave: Didática; trabalho de professoras alfabetizadoras;
ensino do uso do caderno.
Introdução
No Brasil, a partir de 1980, ocorreram esforços declarados no campo educacional para
incorporar referenciais construtivistas às práticas pedagógicas buscando estratégias eficientes
para a construção da hegemonia do construtivismo, especialmente no âmbito da alfabetização
escolar. Nesse âmbito, observou-se uma tendência, que se expressou por meio de dois
processos simultâneos: a desmetodização da alfabetização escolar, com o deslocamento do
foco do ensino para a aprendizagem do aluno, processo que vem sendo acompanhado por sua
desinvenção, com a tendência para o descomprometimento da escola para com a aquisição dos
códigos de leitura e escrita, parte fundamental do processo de alfabetização (MORTATTI,
2000a, 2000b; SOARES,1998, 2003, 2004).
XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira
3785ISSN 2177-336X
Na década de 1990, como mostra Azanha (2006), os esforços de construção de
hegemonia do construtivismo no país levaram o Ministério da Educação a propor Parâmetros
Curriculares Nacionais (PCNs) com um claro compromisso com a concepção construtivista de
aprendizagem. Segundo o autor, utilizando-se como fundamento para esta proposição o artigo
210 da Constituição Federal de 1988, que estabelece que “serão fixados conteúdos mínimos
para o ensino fundamental, de maneira a assegurar a formação comum e respeito aos valores
culturais e artísticos, nacionais e regionais” (p. 119), o próprio Ministério teria ignorado o
artigo 206, inciso III desta Constituição, que fixa os princípios segundo os quais o ensino será
ministrado atendendo ao “pluralismo de ideias e concepções pedagógicas” (AZANHA, 2006,
p.120). De acordo com o mesmo texto, os autores da introdução dos PCNs, apresentaram-nos
como uma nova reforma do ensino fundamental brasileiro da qual decorreram amplas
consequências na formação e aperfeiçoamento dos professores, na revisão de livros didáticos,
entre outras ações. Desse modo, os PCNs terminaram por assumir um caráter definidor dos
conteúdos e concepções, embora tivessem sido indicados pelo Conselho Nacional de
Educação apenas como orientação curricular (BRASIL, 1997).
O amplamente divulgado Programa de Formação de Professores Alfabetizadores
(PROFA), desenvolvido pelo Ministério da Educação desde 2001, retomou os pressupostos da
proposta anterior da Secretaria do Ensino Fundamental do Ministério da Educação (MEC)
relativos ao “Programa de Desenvolvimento Profissional Continuado: Alfabetização”, sob as
mesmas bases do projeto “Parâmetros em Ação” criado em 1999, como resultado da tentativa
da implementação dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) para o 1.º 2.º Ciclos, de
1997 (MINAS GERAIS, 2003; BRASIL, 1997).
Apesar da gravidade dos problemas causados pelas tentativas, por parte de sucessivas
politicas educacionais, na direção de construir a hegemonia do construtivismo na
alfabetização escolar, no município de São Paulo, à exemplo do PROFA, outras propostas
voltadas à alfabetização continuaram utilizando a mesma perspectiva e os mesmos
referenciais, como o “Programa Ler e Escrever – prioridade na Escola Municipal”, os projetos
“Toda Força ao 1.º Ano” (TOF) e “Projeto Intensivo no Ciclo I” (PIC) vigentes na rede do
município de São Paulo até 2012. O documento “Orientações curriculares e proposição de
expectativas de aprendizagem para o Ensino Fundamental: Ciclo I” voltado a essa rede,
acompanhou as mesmas indicações presentes nos PCN (SÃO PAULO, 2006; 2007).
Com a presente pesquisa buscou-se dar continuidade a uma trajetória de estudos em
torno das relações entre fracasso escolar e desafios do ensino escolar público paulista,
buscando analisar os efeitos do discurso modernizador que vem impondo historicamente a
XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira
3786ISSN 2177-336X
desqualificação das práticas tradicionais de ensino como ultrapassadas e autoritárias
(MORTATTI, 2000a, 2000b; BRASLAVSKY, 1971; CARVALHO, 2000).
Estudo anterior (OLIVEIRA, 2008) havia indicado que esse contexto em que se dá o
esforço de construção da hegemonia do construtivismo, na rede de ensino municipal de São
Paulo, contribui para reproduzir a lógica que rege a organização do trabalho em educação,
reforçando a separação entre os agentes destinados à elaboração e ao planejamento e os
agentes destinados à execução das propostas educacionais. Porém, alguns resultados desse
estudo indicaram, também, que o trabalho que as professoras realizavam em sala de aula não
era inteiramente abarcado por essa lógica, pois, apesar dos rigorosos mecanismos de controle
por parte do poder público local para impor a hegemonia do construtivismo, a ação
alfabetizadora, nessas escolas, escapava a esse controle muito frequentemente.
Na direção de ampliar as possibilidades de compreensão da ação alfabetizadora que
escapa ao controle dessa hegemonia, buscou-se, nesta pesquisa, uma aproximação às reflexões
manifestas por professoras alfabetizadoras transgressoras que atuam em processos por meio
dos quais operam a reinvenção dos conteúdos do ensino para enfrentar os desafios da
alfabetização dos seus alunos. Neste artigo, porém, o relato é apenas parcial devido ao espaço.
Neste momento responde-se a uma parte das perguntas: o que as professoras sabem que
precisam providenciar aos seus alunos nas primeiras semanas de aula e como fazem isso no
contexto do esforço político de hegemonia construtivista?
São apresentadas as bases teóricas para respondê-las e o relato da pesquisa
focalizando os procedimentos e as respostas encontradas.
Bases teóricas
O presente relato tem como referência estudos mais amplos que possibilitam refletir
sobre os desafios da alfabetização como aquisição da língua escrita e refletir sobre a dimensão
cultural do conhecimento do professor alfabetizador.
No que se refere aos desafios da alfabetização, entende-se com Soares & Maciel
(2000, p.16) que, embora o processo de aprendizagem da língua escrita seja um processo
permanente, nunca interrompido, não é apropriado etimológica, nem pedagogicamente, que o
termo alfabetização designe tanto os processo de aquisição das habilidades de leitura e escrita
quanto o processo de desenvolvimento dessas habilidades.
Segundo as autoras, etimologicamente, o termo alfabetização não ultrapassa o
“significado do alfabeto”, ou seja, de aprendizagem da língua escrita, das habilidades de ler e
escrever; pedagogicamente, atribuir um significado mais amplo ao processo de alfabetização
seria negar-lhe a especificidade, com reflexos negativos na caracterização de sua natureza, na
configuração da habilidades básicas de leitura e escrita, na definição da competência em
XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira
3787ISSN 2177-336X
alfabetização. No entanto, como ressaltam as autoras, não podemos esquecer que o conceito
de alfabetização como processo de aquisição da língua escrita, não exclui os “usos e funções
sociais da língua escrita, em que estão inseridos os alfabetizadores e alfabetizadoras”
(SOARES e MACIEL, 2000, p. 16).
Desse modo, ainda que Soares, em outro trabalho (2001, p. 31-39) considere
necessário, do ponto de vista didático, distinguir os conceitos de alfabetização e letramento –
lembrando que alfabetizar é tornar um indivíduo capaz de ler e escrever e que letramento é o
estado ou condição que adquire um grupo social ou um indivíduo como consequência de ter-
se apropriado da escrita e de suas práticas sociais – enfatiza a necessidade de que os dois
processos ocorram concomitantes no contexto escolar .
Para a análise dos dados selecionados para este artigo sobre condições para a aquisição
da língua escrita, tomou-se como referência as orientações presentes no documento da
proposta para alfabetização da Secretaria do Estado da Educação de Minas Gerais elaborado
pelo Centro de Alfabetização, Leitura e Escrita (CEALE), da Faculdade de Educação da
Universidade Federal de Minas Gerais (BRASIL,2007) Essa opção se deve ao fato de que tais
orientações foram construídas em parceria com professores da rede pública e têm como
pressuposto a diversidade metodológica e a necessidade de dialogar com as práticas escolares
e pedagógicas construídas historicamente.
Sem cair na armadilha de atribuir maior valor aos conhecimentos das professoras que
possuem maior formação teórica, considerou-se, à luz da sociologia de Bourdieu, necessário
contextualizar a experiência do professor, para não perder de vista que as professoras são
oriundas de um grupo social e que as oportunidades que têm em razão desse pertencimento
influenciarão determinantemente o processo de construção das ferramentas que vão utilizar
para enfrentar os desafios do ensino.
Nessa direção buscou-se, particularmente no conceito de senso prático, a chave teórica
para compreender as manifestações sobre a importância do ensino do uso do caderno pelas
professoras no contexto dos gravíssimos problemas estruturais próprios ao campo
educacional.
Como mostra Bourdieu, promovendo o encontro entre o habitus e o campo, o senso
prático orienta as “escolhas” que mesmo não sendo deliberadas não são menos sistemáticas, e
que, mesmo não sendo ordenadas e organizadas em relação a um fim, não são menos
portadoras de uma espécie de finalidade retrospectiva ( 2011, p. 113).
Segundo este autor é o senso prático formado pela necessidade social já instaurada sob
a forma de esquemas e automatismos corporais sensatos que auxiliam os agentes a fazerem
atos plenos de sentido (BOURDIEU, 2011, p. 113). Trata-se, assim, de entender as
XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira
3788ISSN 2177-336X
disposições constitutivas do habitus que as professoras foram adquirindo ao longo de toda a
sua formação humana e como as utilizam no encontro com o seu campo de atuação, a
educação.
Nessa direção, foi necessário construir um caminho metodológico voltado à
compreensão e à construção do que Bourdieu (1997, p. 11) conceituou como espaços de ponto
de vista, para a qual ele propõe abandonar visões únicas, dominantes em benefício de
abranger a pluralidade de perspectivas.
A pesquisa foi também orientada pelo desafio de produzir, com e pelas professoras
alfabetizadoras, um conhecimento sobre suas reflexões, de modo que foi necessário buscar
procedimentos de pesquisa que possibilitassem sua participação efetiva na produção deste
conhecimento (MARIN, 1998, p.105).
Partiu-se do pressuposto de “não ignorar todo conhecimento que os professores
possuem a respeito de seu próprio trabalho”, buscando romper com o “binômio saber versus
poder”, e com a tradicional separação entre “’aqueles que sabem’, ou seja, os pesquisadores
da universidade, que ditam as regras para a tomada das decisões e ‘aqueles que não sabem’,
ou seja, os professores que executam”( MARIN, 2009, p.100)
Como se trata de estudo sobre os cadernos e seu uso, foi utilizado o conceito de núcleo
didático do trabalho docente elaborado por Marin (2005) especificamente o componente
material didático pelo fato de os cadernos comporem parte desse material em sala de aula, e o
elemento procedimentos pelo uso desse mesmo material por professores e alunos (p. 41).
A pesquisa, seus procedimentos de coleta e análise, alguns resultados
Neste item estão informações sobre o campo empírico, procedimentos e resultados
sobre o uso dos cadernos.
A pesquisa foi realizada numa escola de região periférica do município de São Paulo,
selecionada em razão de informações obtidas previamente com o diretor de que as professoras
alfabetizadoras transgrediam as orientações da política de alfabetização vigente até 2012,
utilizando-se, ao mesmo tempo, de práticas consideradas construtivistas e práticas
consideradas tradicionais para alfabetizar seus alunos. A escola também se mostrou propícia
para a pesquisa porque não haveria impedimento para que as professoras alfabetizadoras
manifestassem suas transgressões nas reuniões pedagógicas, o que sugeria que se sentiriam à
vontade para manifestá-las durante a pesquisa aqui relatada.
A gestão da escola colaborou muito no início da pesquisa, porém com a mudança da
gestão da escola e a mudança da gestão pública do município de São Paulo, ocorreram muitas
XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira
3789ISSN 2177-336X
alterações na rotina da escola, o que exigiu uma reorganização do calendário planejado para a
pesquisa, com vários ajustes tantos nos modos de dispor os procedimentos para a coleta dos
dados.
Em busca da pluralidade de perspectivas presentes nas reflexões de professores
alfabetizadores tanto para criar e praticar algumas alternativas, quanto para imaginar outras
possibilidades para o sucesso da alfabetização escolar, utilizou-se, de forma associada, duas
técnicas de pesquisa: a entrevista intensiva e o grupo focal.
Com a técnica de grupo focal buscou-se enfatizar a interação em torno de temas
específicos do grupo relacionados aos desafios do ensino na alfabetização e como a entrevista
intensiva buscou-se aprofundar, com cada professor, individualmente, as reflexões realizadas
durante os grupos focais sobre os desafios relacionados ao currículo para alfabetização
escolar.
Resultados
Participaram da pesquisa cinco professoras (uma só participou bem no inicio), sendo
que duas lecionavam na segunda série e três na primeira série. Todas as professoras
procediam de famílias com pouca escolaridade, profissões com pouca especialização e pouco
valorizadas, com baixos salários. Duas nasceram em municípios do Estado São Paulo. As
demais vieram de outros estados: Rio de Janeiro, Piauí e Pernambuco. Como se pôde verificar
nos relatos, embora tenham tido pouca ou nenhuma escolaridade, suas famílias empenharam-
se muito na escolarização de seus filhos. Com exceção de uma professora, elas são as únicas
que têm ensino superior, entre seus irmãos.
Todas as professoras eram casadas e tinham filhos. Os maridos eram professores ou
não possuíam formação acadêmica. Os filhos das professoras estudavam, na maioria, em
escolas particulares da região.
Os relatos das professoras, aqui identificadas ficticiamente, indicaram que a opção
pelo magistério estava mais relacionada à falta de alternativas do que a um sonho de infância.
Somente duas professoras fizeram Magistério e todas fizeram graduação em Pedagogia, em
faculdades particulares do município de São Paulo ou outros municípios do Estado de São
Paulo.
As professoras tinham grande experiência na docência e, com uma exceção, também
na alfabetização e, embora não tivessem sonhado, desde a infância ou adolescência, em serem
professoras adquiriram grande identificação com a profissão e, sempre que podiam, escolhiam
atuar na primeira ou na segunda série do primeiro ciclo, pois se sentiam, também,
profundamente identificadas com a alfabetização escolar. Portanto, tinham conhecimentos
sobre cadernos e seus usos tanto vivenciados por elas quanto os observados com seus filhos.
XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira
3790ISSN 2177-336X
Para este artigo analisou-se apenas um bloco de dados dada a vinculação com o
temário do evento. Assim, foram focalizadas manifestações das professoras sobre as
condições em que os alunos chegam das instituições de educação infantil para o inicio da
alfabetização escolar, a falta de orientação para esse período inicial por parte do poder público
e os conteúdos que ensinam aos alunos referentes aos usos do caderno fundamental e
tradicional material didático sobretudo para essa fase da escolarização. São acompanhados de
algumas informações sobre a formação que permitem compor um quadro de referência sobre
as condições pessoais de trabalho no período abordado.
Inicialmente estão os dados que respondem à pergunta básica que as professoras
tinham: como os alunos chegam vindos das instituições de educação infantil?
Como indicam os relatos abaixo, os alunos chegam das instituições de educação
infantil sem qualquer iniciação na cultura escrita e sem ideia do que é um escola:
Quando vem para cá é um choque, porque a aqui não tem parque. Aí eles ficam perguntando. “Nós
vamos no parque?” Não, aqui não tem parque”. Dormir também.. lá tem uma rotina de dormir.
E as EMEIs não dão caderno para a criança trabalhar. Eles vão ver caderno quando chegam
aqui.(Valquiria)
Pelo que conheço da Emei, pelos relatos de colegas é assim: o que vai ser feito no dia. É o parque. E
uma escovação de dente. Vai contar uma história. Vai assistir um vídeo. Bem lúdico.(Elena)
Uma criança que sai da Emei com o lúdico muito trabalhado. É uma coisa que tem sido muito
valorizada.
Mas quando ele entra em contato com esse material (cola, tesoura, etc), ele tem uma choque. Coisas
simples: cortar, mesmo a coordenação motora. Que é uma necessidade. Como a criança vai pegar um
lápis, fazer um traçado de um letra se ele não teve contato? Não é? Então ela vai se frustrar. .(Janaina)
Apesar do grande desafio que representa esse período inicial da alfabetização, as
professoras não encontraram subsídios por parte do poder público na proposta curricular
oficial para alfabetização.
Sempre vem assim, quando a gente vai começar o ano “período de adaptação”. O professor é que vai
construindo.. Vai adaptar a criança no que? De que forma?A gente vai construindo essa adaptação porque, na
verdade, para a alfabetização mesmo, não tem. (Valquiria)
O caderno de apoio que vem da prefeitura é bacana, mas eu acho que não está de acordo com a faixa etária dos
alunos. Primeiro, os textos são longos. A letra é de imprensa. Confunde a criança. Tinha que ser mais simples,
mais leve, para com o passar do tempo...Quando eles pensaram esse caderno, ele pensaram para criança de 7
anos. Esse material supõe que a criança esteja alfabetizada. (Carla)
Os relatos revelam a existência de um material para o professor, porém considerado
inadequado. Essas análises das professoras sugerem um certa resignação em relação ao fato de
não haver nenhuma orientação na proposta curricular oficial e um entendimento de que
realmente cabe somente às professoras construir essa adaptação. Embora o relato de
Valquiria enfatize claramente uma lacuna na proposta curricular no que se refere ao periodo
de adaptação e o relato de Carla contenha um questionamento aos textos longos e ao fato da
XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira
3791ISSN 2177-336X
proposta curricular pressupor um aluno alfabetizado, os relatos sugerem mais uma constatação
do que uma indignação, tanto que Carla considera a proposta “bacana”, apesar de pressupor
um aluno alfabetizado.
É importante ressaltar que ausência de subsídios para esse período inicial numa
proposta oficial de alfabetização não só representa uma lacuna, como também sugere para os
professores que estes conhecimentos são considerados irrelevantes ou mesmo indesejáveis.
No entanto, as professoras consultadas não concordam com esse ponto de vista, como se verá
em breve. Então, o que poderia explicar essa resignação das professoras diante do fato de uma
proposta curricular oficial para alfabetização não conter nenhuma orientação sobre a iniciação
dos alunos na língua escrita? Será o fato de se tratar de uma lacuna tão antiga e familiar, que
passou a ser aceita como natural? Será o fato de terem encontrado outra fonte para aprender a
construir essa iniciação?
Conteúdos raramente considerados como tais na vida escolar, e que estão inteiramente
ausentes da proposta curricular e parte essencial da adaptação construída pelas professoras,
são os conhecimentos sobre o caderno e os conhecimentos de procedimentos para seu uso. Os relatos
abaixo indicam o quanto estes são conteúdos relevantes na realidade escolar no ponto de vista de todas as
professoras participantes:
Acontece muito comigo: hoje pego crianças que não sabem abrir o caderno, onde começa, onde
termina e se perdem. Internalizar uma organização para a criança é muito importante. Ele tem que ter
uma rotina., ela tem que ter uma vivencia, se ela não tem essa vivencia ela não consegue fazer as
coisas.(Janaina)
Uma das coisas que eu acho importante é a organização. Inclusive eu fiquei perturbando a minha
colega (Elena), minha parceira, para ver como ela fazia para organizar, para o aluno aprender que
tinha que usar a folha da frente, começar lá em cima, seguir a linha, quando virasse a página, como eu
ia fazer isso.. então ela foi me orientando:“Olha Valquiria, você tem que ensinar logo no começo que é
para ela seguir aquela rotina. Se você ensinar no começo, ele vai aprender e fica independente, ele vai
só”. E é uma coisa que facilita o trabalho da gente. (Valquiria)
No começo o professor tem um grande trabalho, porque tem que estar o tempo todo circulando pela
sala. Geralmente no começo do ano para organizar o caderno, eu costumo marcar um X, para ele
[aluno] saber onde começar. Todo dia no comecinho da aula eu vou de carteira em carteira e marco
um X para eles saberem como organizar. O primeiro ano é muito trabalhoso, por quê?É uma rotina de
ficar todo o dia fazendo a mesma coisa, para que eles consigam depois ter autonomia. No início é muita
dependência do professor. Depois eles vão se tornando autônomos, fazendo tudo sozinhos”. (Sara)
Então veja o nosso trabalho: primeiro saber colocar o nosso aluno naquela direção de como usar o
caderno. Como usar uma linha, que ele tem que ir até o final. Depois tem que e virar a página...é
complicado. (Rosalia)
Devagar as professoras foram relatando o processo de ensino do uso do caderno pelas crianças:
Tudo isso você tem que ensinar para eles. Muitos alunos pulam, escrevem lá da metade para baixo.
Muito tempo depois, passou por ali e viu aquele espaço em branco, aí ele volta a fazer a tarefa de um
mês atrás naquele espaço que ficou ali. Então, isso aí é de matar. Eu digo “meu Deus, ele ainda não
aprendeu qual é a sequencia de um caderno. Por que isso é sequencia. (Valquiria)
XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira
3792ISSN 2177-336X
Tem que ter uma sequencia de atividades. Ele tem que ir aos pouquinhos entendendo isso. Que existe
um trabalho de sequencia de atividades. Se ele começar a entender isso, fica fácil para ele entender o
alfabeto, as outras coisas... que vão acontecendo no decorrer do ano”..(Elena)
Quando a gente começa, Tem que ter toda essa orientação. “Gente, a folha começa desse lado para
esse lado”Não adianta falar da direita para a esquerda, porque eles não têm essa noção de
lateralidade. Então, vc tem que estar passando de carteira em carteira e falando “aqui começa desse
lado. Dessa mãozinha para cá. Do meio do caderno para o final. Se chegar na sua linha, acabou essa
folha, essa linha, se chegar na sua linha e acabou, você tem que ir para linha debaixo. Vai seguindo os
risquinhos do caderno. Tudo isso a gente tem que observar.. se a criança está respeitando os limites da
folha. (Valquiria)
Observa-se que as professoras explicitam os conteúdos relativos ao ensino sobre o
caderno e aos procedimentos para seu uso, no início, desde aspectos muito simples tais como
o modo de posicionar o caderno, abrí-lo, manuseá-lo, aprender como usá-lo, seguir as linhas,
os limites das linhas. Com o relato vão explicitando os elementos desse conteúdo: organização
do caderno, vivência, internalização de rotina, sequência de um caderno, sequência de
atividades. Para que os alunos se apropriem destes conteúdos e os aprendam, as professoras
desenvolvem estratégias, também, tais como: circular pela sala e marcar um X, para que o
aluno saiba onde começar; orientar o aluno explicando onde começa e onde termina a folha,
usando imagens que facilitem a compreensão como “dessa mãozinha pra cá”, “seguindo os
risquinhos”. Observe-se que há o entendimento de que o aluno precisa internalizar uma rotina,
entender a sequência de um caderno, aprender a se organizar como condição básica para que
depois entenda o alfabeto e as outras coisas que vão acontecer durante o ano. Há, portanto, o
entendimento de que ele precisa aprender estes conteúdos para dar continuidade às
aprendizagens escolares. As professoras reconhecem a condição de dependência dos seus
alunos, mas buscam criar estratégias para lhes ensinar esses conteúdos relativos ao material
didático e os procedimentos de seu uso, necessários para que adquiram maior autonomia para
prosseguir sua trajetória escolar.
Na perspectiva apresentada pelo material mineiro já citado (BRASIL, 2007, p. 13)
esses conhecimentos dizem respeito ao início do processo de alfabetização, voltado à
apropriação do sistema alfabético e ortográfico que possibilita ao aluno ler e escrever com
autonomia. Estes conteúdos descritos especificamente pelas professoras, fazem parte do
domínio das convenções gráficas que determinam que nossa escrita se orienta de cima para
baixo e da esquerda para a direita, embora elas não tivessem a informação presente no
material acima citado.
Desse modo é necessário que o aluno compreenda que os símbolos são sempre
unidades estáveis e obedecem a certos princípios de organização, tais como a direção da
leitura da esquerda para a direita, de cima para baixo, que a sequência das letras nas palavras
e das palavras nas frases obedece a uma ordem de alinhamento e direcionamento que é
XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira
3793ISSN 2177-336X
respeitada como regra geral e que tem consequências nas formas de distribuição espacial do
texto no seu suporte. É também necessário que o aluno compreenda que a escrita ocupa, em
sequência, a frente e o verso da folha de papel: escreve-se dentro das margens, a partir da
margem esquerda. É indispensável a compreensão desse princípio básico, que abrange a
ordenação das letras e palavras, para que o aluno possa desvendar os segredos da escrita
alfabética (BRASIL. MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO/ UFMG, 2007). Nesse mesmo
documento também se enfatiza a necessidade de que os alunos conheçam, desde o inicio, a
direção convencional da escrita, para que aos poucos venha a compreender que é possível
outras disposições de escrita, em diferentes materiais.No entanto, esse conhecimento pode
parecer óbvio, mas não para muitas crianças que chegam à escola, sobretudo o alinhamento e
direção da escrita (p. 24)
Como se pode observar, embora com nomes diferentes, a equipe de professores e
pesquisadores que elaboraram a proposta de alfabetização tem a mesma perspectiva que as
professoras que participaram da pesquisa aqui apresentada, quanto ao fato de que estes
conhecimentos não poderão ser aprendidos pelos alunos se não forem ensinados pelas
professoras, que as regras de orientação e alinhamento da escrita da língua portuguesa não
são óbvias ou naturais aos alunos que não aprenderam com sua família ou na educação
infantil.
Algumas considerações
Foi possível identificar, nos seus relatos, pistas claras de que a educação escolar
opera poderoso papel nos processos de reprodução cultural e social. Apesar das possibilidades
de criação e reinvenção dos conteúdos da alfabetização pelas professoras em torno dos
conteúdos da alfabetização, as ferramentas oferecidas pela formação profissional própria ao
grupo social ao qual pertencem são indiscutivelmente muito reduzidas.
A condição de reflexão de início de ano e a familiaridade com as escassas
oportunidades oferecidas aos grupos desfavorecidos socialmente, possibilitava a compreensão
de que seus alunos, vindos em sua grande maioria, de famílias com pouca ou nenhuma
prática de leitura e escrita em casa, oriundos de pré-escolas que focalizavam o cuidado e as
brincadeiras, não teriam outra oportunidade para aprender esses conteúdos relatados e sem
esses conteúdos não poderiam aprender os demais. Desse modo, no senso prático adquirido ao
longo de suas trajetórias de vida encontravam a fonte dos conhecimentos necessários às
reflexões que faziam em torno dos desafios cotidianos da alfabetização.
Referências
XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira
3794ISSN 2177-336X
AZANHA, J.M.P. Proposta Pedagógica e Autonomia da Escola. In: AZANHA, J.M.P.
Formação do professor e outros escritos. São Paulo: SENAC, 2006.
BOURDIEU, P.O senso prático, Petrópolis: Vozes, 2011.
_____________.( Coord.). A miséria do mundo. Petrópolis: Vozes, 1997.
BRASIL. MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO. Secretaria de Educação Fundamental.
Parâmetros curriculares nacionais, Brasília, 1997.
BRASIL. MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO/ UFMG, 2007. Alfabetização: questões de
avaliação. Pró-letramento - Programa de formação continuada de professores anos/séries
iniciais do ensino fundamental. SEB/Departamento de Políticas Públicas de Educação Infantil
e Ensino Fundamental. Via Word Wide Web:
http//portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf;Proletr/fasículo_port.pdf, mai.2008.
BRASLAVSKY, B.P. Problemas e métodos no ensino de leitura. São Paulo:
EDUSP/Melhoramentos, 1971.
CARVALHO, D.C. A relação entre a Psicologia e a Alfabetização sob a ótica dos
professores. Tese (doutorado), Programa de Estudos Pós-Graduados em Educação: História,
Política, Sociedade. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2000.
MARIN, A. J. Com o olhar nos professores: desafios para o enfrentamento das realidades
escolares. Cadernos CEDES. Campinas, v. 19, n.44, 1998, p.8-18.
____________; GIOVANNI, L. M. ; GUARNIERI, M. R.(Orgs.). Pesquisa com
professores no início da escolarização. Araraquara: Junqueira&Marin, 2009.
___________O trabalho docente: núcleo de perspectiva globalizadora de estudos sobre
ensino. In: MARIN A. J. (Coord.) Didática e trabalho docente. Araraquara:
Junqueira&Marin, 2005, p. 30-56.
MORTATTI, M. do R. Os sentidos da alfabetização. São Paulo, 1876-1994.São Paulo:
UNESP/COMPED/INEP, 2000a.
MORTATTI, M. do R. Cartilha de alfabetização e cultura escolar: um pacto secular.
Cadernos Cedes, ano XX, n. 52, 2000b, p.41-44.
OLIVEIRA, T. F. M. Conhecimentos manifestos por professores para o ensino da
alfabetização escolar.Tese.(doutorado- Educação: História, Política, Sociedade) Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2008.
SÃO PAULO. Secretaria Municipal de Educação. Projeto Toda Força ao 1º ano: guia para o
planejamento do professor alfabetizador – orientações para o planejamento e avaliação do
trabalho com o 1º ano do Ensino Fundamental, São Paulo: SME/DOT,2006.
XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira
3795ISSN 2177-336X
SÃO PAULO. Secretaria Municipal de Educação.Orientações curriculares e proposição de
expectativas de aprendizagem para o ensino fundamental: ciclo I. São Paulo. SME/DOT,
2007.
SOARES, M.B & MACIEL, F. (Orgs). Alfabetização. Série Estado do Conhecimento, n. 1.
Brasília: MEC/Inep, 2000.
SOARES, M.B. Letramento e alfabetização: as muitas facetas. Revista Brasileira de
Educação, São Paulo, ANPED, n.25, jan/abr, 2004, p.5-17.
_______. Alfabetização: a ressignificação do conceito. Alfabetização e cidadania. São Paulo,
n.16, jul., 2003, p.9-17.
_______ Letramento: um tema em três gêneros. Belo Horizonte. Autêntica, 1998.
XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira
3796ISSN 2177-336X
DIFICULDADES DIDÁTICAS DE PROFESSORES ALFABETIZADORES NO
INÍCIO DA CARREIRA
Fernanda Oliveira Costa Gomes
Instituto de Ensino Superior Sumaré
Doutoranda do PEPG Educação: História, Política, Sociedade da PUC-SP RESUMO O presente artigo visa discutir a temática de como o desconhecimento de aspectos da Didática
influem na ação de professores alfabetizadores no início de carreira. Os dados que serão
apresentados aqui são parte de uma pesquisa realizada no ano de 2013 e defendida no ano de
2014, em nível de mestrado. Partiu-se de questionamento sobre tais dificuldades levando em
conta a experiência inicial com turmas de alunos maiores, mas manteve-se a indagação sobre
tal situação. Tal pesquisa teve como objetivo identificar as dificuldades didáticas de
professores iniciantes, ou seja, dificuldades encontradas no âmbito da sala de aula no processo
de ensinar focalizando as crianças que chegam ao 1º ano. Participaram da pesquisa quatro
professores atuantes no primeiro ciclo do ensino fundamental de escolas públicas da cidade de
São Paulo. Caracterizada como de caráter qualitativo, os dados foram coletados a partir de
instrumentos como observação, entrevista semi-estruturada, questionário online e questionário
com escala. Entretanto, serão explanados, neste trabalho, alguns dos dados referentes à
observação das ações da professora Andressa (nome fictício), atuante em uma escola estadual
na cidade de São Paulo, e ainda, serão apresentados alguns dos relatos dos professores
iniciantes coletados a partir das entrevistas e do questionário online. Os dados coletados foram
analisados com base nos conceitos de professor iniciante particularmente os de choque da
realidade e descoberta, de núcleo didático do trabalho docente, capital cultural e habitus.
Dentre os resultados podem ser citados: dificuldade de trabalhar com alunos em diferentes
estágios de aprendizagem; indisciplina do alunado; dificuldade de organização na sequência
nas aulas; tipo de linguagem utilizada. Palavras chave: Didática; Professores alfabetizadores iniciantes; Dificuldades na profissão docente.
Introdução
As pesquisas sobre a temática “professores iniciantes”, embora incipiente, tem crescido consideravelmente diante da percepção de sua relevância. Trata-se de uma temática
XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira
3797ISSN 2177-336X
que nos causa grande curiosidade, pois as questões referentes ao início de carreira apresentam
uma vasta área a ser investigada. O início de carreira na profissão docente pode ser permeado
por alguns aspectos comuns, aos diferentes profissionais em diferentes lugares. O início da
carreira docente pode ser permeado pelo choque da realidade, por momentos de idealização
profissional, por frustrações e também por realizações profissionais. Geralmente, o início na
profissão é considerado como um dos momentos mais difíceis da carreira do professor.
As dificuldades da profissão docente são objetos de estudo há muitos anos. Veeman
(1984) identificou que dentre as dificuldades citadas pelos professores estavam: a indisciplina
em sala de aula; a motivação dos estudantes; a avaliação dos trabalhos dos estudantes; a
relação com os pais; a organização do trabalho da aula; os materiais e suprimentos
insuficientes; a carga de trabalho pesada. Tais dificuldades resultavam em outras, tais como:
insuficiente tempo de preparo, planejamento de aulas e do dia escolar; uso efetivo de
diferentes procedimentos de ensino; determinação do nível de aprendizagem dos estudantes;
conhecimento da matéria; carga de trabalho clerical; equipamento escolar inadequado; lidar
com alunos lentos; lidar com estudantes diferentes; uso efetivo de livros de texto e guias
curriculares; falta de tempo vago; classes de tamanho grande, entre outras.
Diante de tais apontamentos, percebe-se um cenário bastante similar ao encontrado
atualmente nas escolas brasileiras. Obviamente, que as dificuldades de cada região do Brasil
têm suas características específicas, se formos pensar nas condições estruturais, culturais e
políticas. Entretanto, a ênfase desta discussão se remete as dificuldades enfrentadas no
processo de ensino.
Seja no nível da educação infantil, ensino fundamental, ensino médio ou superior, a
função e o objetivo do trabalho docente é fazer com que o aluno aprenda. Entretanto, os
resultados das pesquisas sobre educação vêm apontando uma série de fragilidades no sistema
educacional e a consequência de tais fragilidades é justamente o fato de que grande parte dos
alunos que passam pela escola não alcança o grau de proficiência adequada e suficiente
esperada seja para conseguirem uma boa colocação no mercado de trabalho, seja para outras
atividades sociais.
Serão apresentados os conceitos de base teórica e posteriormente a pesquisa com
seus objetivos, procedimentos e resultados.Os dados que serão apresentados a seguir
possibilitam a visualização de algumas destas dificuldades didáticas enfrentados por
professores iniciantes atuantes em salas de alfabetização de escolas da rede pública, na cidade
de São Paulo.
XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira
3798ISSN 2177-336X
Bases teóricas
A base teórica da pesquisa foi constituída por Michael Huberman, Pierre Bourdieu e
Alda Marin. Dos estudos de Huberman (1992) foram utilizados os conceitos de choque da
realidade e descoberta. De acordo com esse autor, ambos os conceitos permitem compreender
situações que podem se apresentar na fase inicial da carreira docente. O período inicial da
carreira é o momento de descoberta da profissão. Segundo esse autor, a fase de descoberta é o
momento em que o professor se sente parte de grupo profissional, é o momento em que o
professor se vê numa situação de responsabilidade. É essa fase da descoberta que faz com que
o professor suporte o choque da realidade. Como já fora dito anteriormente, o autor define o
choque da realidade como um distanciamento entre o ideal e o real, ou seja, as dificuldades
encontradas no exercício da docência podem ser tão frustrantes que o professor sofre um
choque ao perceber que a realidade da sua profissão é muito mais difícil do que era esperado,
podendo levar o professor a desistir da profissão.
Os conceitos de habitus e capital cultural escolar, forjados por Bourdieu (1983,
2001), foram utilizados para identificar quais eram as disposições que influenciariam a
conduta dos sujeitos participantes da pesquisa. Para o sociólogo francês os agentes
apresentam disposições que conformam o habitus revelador do percurso anterior da vida
social e escolar. Tais configurações atuam de modo a que cada agente tenha certos modos de
perceber, atuar e sentir na vida em diferentes situações. Portanto, todo indivíduo tem algumas
disposições que irão interferir em suas condutas profissionais ou pessoais. Portanto, foi
perceptível que seria pertinente neste estudo verificar se havia, na ação e nos depoimentos dos
professores, a presença de disposições que interferissem na tomada de decisões na vida
profissional, seja para desistência ou resistência diante das dificuldades, para saber como se
portariam na situação de sala de aula. Já o conceito de capital cultural escolar foi utilizado
para identificar parcelas de informações e conhecimentos dos professores para a situação de
ensino nas séries iniciais da escolarização, pois para ensinar seus alunos é necessário que os
professores tenham domínio sobre os conteúdos e aspectos didáticos para que o ensino e a
aprendizagem sejam efetivados.
Quanto à área de Didática optou-se por utilizar alguns conceitos de Marin (2005,
2011). Entre eles alguns foram mais relevantes para este estudo. O mais central para este
estudo foi o conceito de que os temas da Didática compõem o núcleo do trabalho docente
representado por procedimentos didáticos, unidades didáticas, livro didático, ciclo docente,
recursos didáticos e a aula que devem ser operados de modo articulado (2005).
XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira
3799ISSN 2177-336X
A pesquisa, o caminho investigativo e seus resultados
Inicialmente estão apresentados o tema, a questão básica, os objetivos e os
procedimentos.
A curiosidade sobre a temática “professores iniciantes” surgiu a partir das experiências
vivenciadas em meu início de carreira, pois tal início na profissão docente foi permeado por
momentos difíceis, frustrantes e desafiadores. O choque da realidade, termo utilizado por
Huberman (1992) foi um dos primeiros momentos de minha trajetória na carreira docente.
Segundo o autor, o Choque da realidade é característica da distância entre o ideal e a
realidade, o tatear constante, a preocupação consigo próprio, e o choque da realidade acontece
diante das dificuldades com alunos que causam problemas, com materiais didáticos
inadequados e também com a dificuldade com relação à prática pedagógica e transmissão de
conhecimentos.
O estudo desenvolvido por Huberman (1992) sobre o ciclo de vida dos professores,
foi base importante para o desenvolvimento da pesquisa, mas também foi importante para
perceber que os dilemas enfrentados por mim não consistiam em um caso isolado, já que
muitos professores passaram, passam e irão passar por tal ciclo na vida profissional. Nos dias
que antecederam o meu início carreira, imaginava quais as atividades que poderiam ser
desenvolvidas com as crianças. Minha primeira experiência na área educacional aconteceu em
uma Organização não-governamental (ONG). Minha função na instituição seria o
desenvolvimento de atividades extra-escolares para adolescentes de 12 a 15 anos de idade. A
diretora da ONG havia me orientado sobre a dinâmica, sobre a rotina e também sobre as
atividades que poderiam ser desenvolvidas, com os educandos. Partindo de tais orientações,
imaginei que diante de alguma dificuldade, conversaria com meus educandos e “tudo ficaria
bem”. Imaginava que desenvolveria atividades esportivas, de artesanato, atividades com
música, teatro e pintura, e idealizava que seria muito bom e prazeroso o trabalho naquele
local, mas a realidade foi muito diferente do idealizado, já que em grande parte das vezes as
atividades que eu propunha, eram rejeitadas pelos adolescentes. Eles brigavam
constantemente, e as conversas, muitas vezes, não surtiam efeito. Eu pensei em desistir,
pensei em procurar outra área de trabalho, pois para mim foi uma grande desilusão.
Diariamente ao sair da faculdade, meu destino era a ONG e, por muitas vezes, caminhava em
direção ao meu local de trabalho, sem ter a vontade de chegar lá. Considerava esse sentimento
muito triste e desmotivador. Tais aspectos caracterizavam o choque da realidade vivido por
mim e tão presente na história de diversos professores iniciantes.
XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira
3800ISSN 2177-336X
Partindo, de experiências como esta surgiu então a curiosidade sobre a temática, já
que uma pesquisa nasce de uma inquietação, de uma dúvida, de uma curiosidade sobre um
tema determinado. Para identificar se de fato seria pertinente e relevante a discussão sobre o
início de carreira iniciei um levantamento de dados sobre as pesquisas que de alguma forma
abordassem tal temática. No site da Coordenação de Aperfeiçoamento dos Profissionais do
Ensino Superior (CAPES), foi realizada uma busca com trabalhos a partir do descritor “professores iniciantes” obtendo um total de 32 trabalhos. Dos 32 trabalhos 19 foram
desenvolvidos no campo da Educação, 2 na área de Letras, 1 na área de Artes, 1 na área de
Biologia, 1 em Engenharia, 1 em ensino de Ciências, 1 em Psicologia experimental, 1 em
Sociologia, 1 em Sociais e humanidade, 1 em Ensino e 1 em Ensino aprendizagem.
Considerando o número de trabalhos desenvolvidos sobre professores em início de
carreira pode-se perceber que há uma relevância temática, pois muitos relatam problemas,
mas não havia estudos sobre professores alfabetizadores nessa temática.
A problemática que norteou a pesquisa foi a seguinte questão: quais são as
dificuldades enfrentadas pelos professores iniciantes das séries iniciais do ensino fundamental
no que se refere aos aspectos didáticos? Essa questão norteou a especificação do objetivo da
pesquisa: identificar essas dificuldades para o trabalho do ensino na sala de aula, como elas se
caracterizam e as reações dos professores diante das dificuldades.
Os instrumentos utilizados para a coleta de dados foram: observação, entrevista,
questionário com escala e questionário online. A justificativa para a utilização de quatro
instrumentos diferentes foi a dificuldade de obter sujeitos para a pesquisa. O questionário
online foi um instrumento pensado justamente para ampliar as possibilidades de coleta de
dados, pois houve grande resistência por parte dos professores e diretores de escola para a
coleta de dados nas escolas.
Para a análise dados foram desenvolvidas quatro chaves de análise sendo elas: o
desconhecimento sobre a profissão docente, a idealização do trabalho docente, a frustração, e
a realização profissional, todas elas emergindo dos dados obtidos e relacionados aos conceitos
adotados.
Participaram dessa pesquisa quatro professores atuantes no primeiro ciclo do ensino
fundamental, sendo uma professora da rede estadual de ensino e três professores da rede
municipal da cidade de São Paulo todos eles aqui com nomes fictícios. São eles: Andressa,
André, Regina e Sheila. Desses professores, dois são professores iniciantes e dois são
XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira
3801ISSN 2177-336X
professores experientes, mas que relataram as dificuldades que enfrentaram no início da
carreira.
Alguns resultados
Estão apresentados, a seguir, alguns dados obtidos na pesquisa. Os dados explanados
neste momento são os que se referem à abordagem das dificuldades dos professores iniciantes
em sala de alfabetização, resultantes da entrevista com os professores André, Sheila e
Andressa e, ainda, alguns dados resultantes da observação da sala de aula da professora
Andressa. Cada qual destes professores trabalham ou trabalharam com salas de alfabetização.
A análise dos dados realizada no estudo permite indicar que os professores iniciantes
desconhecem: o como manejar a sala; noções sobre o nível de aprendizagem de seus alunos;
conhecimentos sobre a Didática no que se refere à organização dos conteúdos; ao como fazer
o planejamento de tempo de aula; ao como realizar o re-planejamento das ações durante as
aulas; ao como utilizar a autonomia; ao como trabalhar com os métodos propostos pelas
escolas e também noções de psicologia infantil. Tais aspectos foram possíveis de perceber
somente por meio da análise das entrevistas e da observação, pois nos relatos da entrevista e
da escala os professores relatam problemas os quais demonstram não perceber os
desconhecimentos que têm sobre o trabalho realizado na sala de aula, portanto, é possível
perceber a dificuldade dos professores em analisar, e avaliar a sua própria práxis
reencaminhando o trabalho em sala de aula.
O manejo de sala e o “fantasma da indisciplina”
O fator indisciplina foi citado por três dos professores pesquisados como uma das
maiores dificuldades no processo de ensino, com crianças em fase de alfabetização.
Geralmente, as turmas do primeiro ano do ensino fundamental I são compostas por crianças
na faixa etária de 6 e 7 anos. Muitas delas passaram pela experiência de educação infantil,
mas nem todas e, neste caso, estar no ambiente escolar é algo totalmente novo. Essa fase
inicial da trajetória escolar é para muitas crianças um momento totalmente novo e para
algumas pode ser um momento de tensão e receio, já que estarão num ambiente desconhecido,
com pessoas desconhecidas, realizando tarefas que em diversos momentos não se tem total
clareza do porquê estão realizando.
XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira
3802ISSN 2177-336X
A indisciplina na sala de aula é um fator que pode alterar o desenvolvimento do
trabalho do professor prejudicando inclusive o desenvolvimento de todo o grupo de alunos.
Diante de situações de indisciplina é necessário que o professor desenvolva mecanismos de
manejo da turma, para que então, possa desempenhar sua função de ensinar.
Nos relatos da professora Andressa fica explícita a frustração que sentiu ao perceber
que suas idealizações com relação ao início de carreira não alcançou os resultados esperados.
Pois, a professora Andressa se considerava, preparada para iniciar seu trabalho como
professora, já que havia passado por um curso de especialização em alfabetização e
letramento.
“Eu pensei que eu estava preparada para aplicar tudo o que eu havia aprendido na
pós-graduação. O curso que eu fiz falava muito do letramento, da oralidade, desta
troca com o aluno, mas por conta da indisciplina você não consegue. A indisciplina
atrapalha muito, porque eles falam muito e toda hora eu preciso falar, chamar a
atenção. Então, tem que estar parando, para chamar a atenção.” (Professora
Andressa).
Os relatos da professora Sheila confirmam essa dificuldade do trabalho com crianças
em fase de alfabetização e afirma ser mais difícil trabalhar com o primeiro ano do que
desenvolver o trabalho com os alunos de quinto ano do ensino fundamental.
“E para as crianças do primeiro ano você fala: - Fulano agora é hora de fazer a
atividade. Mas ai você fala dez vezes, eles levam tudo na brincadeira. Eles são
totalmente sem limites. Eles estão chegando na escola totalmente sem limites. Então,
os dos quinto ano é menos. Eu fico mais tranqüila com os do quinto ano do que com
os do primeiro. Os do primeiro ano eles são muito agressivos. Tudo eles batem. E
esta turma é uma turminha que eu venho acompanhando eles desde o ano passado.
Que era uma turma terrível. Terrível. Terrível. Falei com os pais que o
comportamento deles estava terrível e não via a hora de acabar o ano. Eles
melhoraram, mas eu não via a hora de terminar. Eu estava acabada. Meu diretor
chegou em mim e me falou: - Sheila eu queria te pedir para você continuar com essa
turma o ano que vem. Como é o primeiro quinto ano?????? ele me disse que seria
bom, porque eles já haviam melhorado, eu fiquei apavorada, mas eu aceito desafio.
(Professora Sheila)
Já o professor André apresenta uma preocupação em tentar manter uma ordem para
ensino em sala de aula, sem recorrer a uma postura autoritária.
“Por mais que tenha entrado antes em sala de aula como estagiário, ao se tornar
professor existe algo novo, meio mítico, você se torna a referência, um centro de
XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira
3803ISSN 2177-336X
atenção. Me senti inseguro, não sabia como me portar em sala de aula (com 35
alunos), e naquele conflito de não querer ser um professor
“tradicional”, autoritário, mas perdendo o controle da sala por dar espaço demais
aos alunos, que testam o professor e suas regras a cada instante (outra coisa que
não aprendi na faculdade)” (Professor André)
Tais relatos são exemplificadores do choque de realidade seja pela detecção do
despreparo, seja pelo não cumprimento da expectativa de obediência por parte das crianças ao
comando da professora, ou, ainda, pela percepção da diferença entre ser estagiário e assumir a
turma como professor.
A aula, sua rotinas, conteúdos e desenvolvimento: o professor iniciante em ação
A partir deste momento serão apresentados alguns dados coletados por meio de
entrevista, questionário e observação. Tais dados possibilitam a percepção de algumas das
dificuldades dos professores pesquisados na ação em salas de aula, com alunos em fase de
alfabetização.
Questionadas sobre o desenvolvimento das aulas uma das professoras relata os
procedimentos e conteúdos utilizados para o trabalho em sala de aula em meio à situação
descrita anteriormente..
Com o primeiro ano é assim: uma leitura que eu faço para eles, depois a gente
conversa sobre a leitura, e às vezes eles querem e às vezes eles não querem fazer
a conversa. E depois, vamos fazer as atividades. Eu passo a rotina para eles. O
que vai ter naquele dia. Com a turma de primeiro ano, todos os dias têm que ter
uma atividade de leitura e de escrita. Todo dia para eles pensarem a escrita e
pensarem a leitura. Trabalho com jogos, e às vezes eu dou uma leitura livre. Eles
pegam os livrinhos. Basicamente é isso. (Sheila)
Eu tenho poucos alunos que não lêem. Eles aprendem a ler primeiro e depois
aprendem a escrever. A leitura é mais fácil. Tem criança que eu vou escrevendo
na lousa ele vai lendo, mas quando ele precisa registrar sozinho não consegue. É
que hoje em dia a gente utiliza uma outra maneira de alfabetizar. (Sheila)
Agora tem o pacto, e a gente está fazendo o curso, e eles falam para gente ir
aplicando as atividades com as crianças. Então respeitar pela fase que ele está.
Trabalhamos muito em dupla, um ajuda o outro. E muita atividade diferenciada.
Por exemplo, as crianças que conseguem fazer as atividades sozinha. Ai, as que
tem dificuldade, temos que trabalhar o alfabeto, porque ela não alcançou a base
XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira
3804ISSN 2177-336X
alfabética ainda. Usamos letras móveis. Jogos que eles completam as letras do
alfabeto, leitura. Até ele alcançar esta base alfabética. É bem diversificado. No
início não, é tudo da mesma forma, leitura diária do alfabeto é diária, mesmo
agora. Para que eles aprendam. Depois baseando-se na sondagem a gente vai
diferenciando as atividades. (Sheila)
Verifica-se, nesses depoimentos, a percepção da professora quanto à relevância dos
conteúdos nos seus conhecimentos e no de seus alunos. Ela percebe as necessidades e
dificuldades de trabalhar com alunos em diferentes estágios de desenvolvimento
Tanto os relatos das entrevistas quanto os dados dos questionários possibilitam a
visualização das dificuldades encontradas pelos professores além das relativas a manejar as
crianças na sala de aula. Trata-se de fator que causa o desconforto ao perceber que o objetivo
não será alcançado, pois a indisciplina em sala impede o desenvolvimento das atividades. O
depoimento do professor André retrata justamente o questionamento do como manter o grupo
de alunos atentos à aula, sem utilizar de autoritarismo. A professora Sheila confirma os
depoimentos dos professores André e Andressa com relação ao fato de que os alunos do
primeiro ano do ensino fundamental geralmente se apresentam de modo mais inquieto no
decorrer das aulas, dificultando o trabalho do professor.
A cena a seguir é a descrição de uma aula da professora Andressa que atuou com
uma turma do 1º ano do ensino fundamental I, sendo que, em muitos momentos, é possível
perceber uma similaridade com os relatos da professora Sheila.
Após o recreio a professora pede para as crianças sentarem-se. Explica que irá deixar a porta aberta, pois está muito calor e o ventilador está quebrado.
Professora reinicia a aula. “Agora vou fazer a leitura.”(Professora Andressa)
A professora pede para que os alunos abram a apostila na página 48 e em seguida pede silêncio. Mas, há crianças andando pela sala, trocando desenhos, falando e conversando. Mesmo assim a professora começa a leitura sobre o projeto das brincadeiras. Ela explica como é a
brincadeira coelhinho sai da toca. Uma das meninas está em pé. A professora reclama do barulho e diz: “Gente, eu não vou explicar de novo.” (Professora
Andressa) As crianças se acalmam, mas o silêncio não é total. A professora continua a explicação. Uma das meninas brinca com uma garrafa, outro aluno se dirige para a mesa de um colega, as crianças
começam a falar novamente e a professora disputa a fala com os alunos. Poucas crianças prestam atenção. Uma das meninas faz uma lição de matemática que não é da aula proposta.
Mas, a professora continua a explicação: “Pessoal, logo abaixo vocês vão colocar o título da brincadeira e quem não trouxe o livro copia no
caderno.” (Professora Andressa) Dois meninos brincam em partes diferentes da sala, e o restante da turma continua conversando. A professora repete: “Quem não trouxe o livro faz no caderno.” (Professora Andressa) Um dos alunos pergunta:
XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira
3805ISSN 2177-336X
“Que livro?”(aluno ) “O livro vermelho do Ler e Escrever gente!” (Professora Andressa) “Mas eu não trouxe o livro. Minha mãe jogou fora.” (aluno ) “Sua mãe jogou o livro?” (Professora Andressa) “Sim.” (aluno)
“Gente. Eu já disse, que quem não trouxe o livro é para copiar no caderno. Não vou falar de novo.” (Professora Andressa)
A professora escreve na lousa o conteúdo do livro para explicar como as crianças devem fazer a atividade.
No livro as crianças devem preencher uma FICHA DE BRINCADEIRA. No primeiro item da atividade as crianças devem escrever qual é o título da brincadeira e a professora explica o que é um título. No caso do projeto proposto o título é o nome da brincadeira: O coelhinho sai da toca.
As crianças preenchem a lacuna com o nome da brincadeira. A Professora se dirige a uma das meninas e diz: “Isabella esquece a rotina, a atividade é outra.” (Professora Andressa) Em seguida a professora pergunta para toda a turma: “Vocês já encontraram onde é para escrever? Já copiaram?” (Professora Andressa) Mas muitos alunos estão perdidos não sabem onde e o que é para fazer. “Mas que página que é professora?” (aluno)
“A página está na lousa.” (Professora
Andressa) As crianças recomeçam a falar.
A Professora chama a atenção de uma das meninas, mas há na sala várias crianças em pé e conversando. “Mariana senta no seu lugar.” (Professora Andressa) “Vamos lá pessoal! Fernando leia para nós, o que está escrito na linha de baixo. Gente o Fernando vai
ler.” (Professora Andressa) “Está escrito: objeto.”(aluno) “Objeto? Não, olha as letrinhas é objetivo. E qual é o objetivo da brincadeira?” (Professora Andressa) Uma menina interrompe a professora para pedir permissão para ir ao banheiro e a professora lembra-os
dos combinados da sala: “Gente qual é o combinado? Vocês acabaram de voltar do recreio, não dá para sair agora.” E orienta a
menina que se sente. (Professora Andressa) A professora retoma a aula: “Vamos lá pessoal! O objetivo da brincadeira é não ficar sem casa.” (Professora Andressa)
Neste momento tem crianças correndo na sala e em pé. A professora escreve o objetivo da brincadeira na lousa e se vira chamando a atenção de duas meninas. “Todo mundo terminou? E você entendeu Geovana?” (Professora Andressa)
Dirigindo-se para um dos meninos que estava atrasado a professora exclamou: “Ainda Rodney?” (Professora Andressa) A professora passou de carteira em carteira corrigindo os cadernos. Na metade do percurso ela desiste,
pois as crianças estavam muito inquietas.
Esta cena parece um tanto confusa, mas foi exatamente assim que aconteceram os
fatos. A maior parte das crianças não sabia ler nem escrever e apresentaram várias
dificuldades em localizar o livro, a página, e as atividades desenvolvidas pela professora.
Nesse dia, em especial, as crianças estavam bastante agitadas, talvez porque a dificuldade de
compreender as atividades era tão grande, que a aula se tornara desinteressante.
O desconhecimento da professora em relação às informações fundamentais também
sobre o domínio da leitura e da escrita dos alunos, só se acentuou nessa segunda parte do dia.
Igualmente, o problema de desconhecimento da professora com relação à Organização dos
XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira
3806ISSN 2177-336X
conteúdos é aparente nesta cena. Não há uma sequência na explanação, nem nas atividades
dessa professora, pois aconteceram várias interrupções na aula por parte dos alunos e, por
diversos momentos a professora tem que parar a explicação para chamar a atenção dos
mesmos sem retomar a sequência. Percebe-se o uso de uma linguagem pouco própria para
crianças em início de escolarização.
E assim, a atividade de leitura não aconteceu. Para a turma, aconteceu uma
“contação” de assuntos e a escrita se transformou numa cópia.
Nesta cena fica clara a submissão da professora em tentar cumprir a apostila que
representa o currículo a ser cumprido. Se as ações, em geral, demonstram o desconhecimento
dela em relação às condições das crianças – o nível de aprendizagem – nesta cena, de fato,
fica claro que ela utilizou autonomia. Na tentativa de não ser uma professora tradicional a
professora segue paulatinamente os passos da apostila. Mas, sem analisar se de fato esse seria
o melhor procedimento didático para trabalhar um projeto com crianças de seis anos, em fase
de alfabetização, ela mobilizou os conhecimentos que possuía de outras circunstâncias: o de “dar um texto para cópia”. Certamente operou com uma disposição instalada em seu habitus,
entranhada desde seus tempos de estudante, parte de seu capital cultural escolar que, nesse
momento, demonstrou sua incorporação.
Algumas considerações
A pesquisa indica a precariedade na formação dos professores, em especial os
dados coletados por meio da observação possibilitaram perceber as dificuldades que a
professora iniciante enfrentou em sua ação na sala de aula do primeiro ano do ensino
fundamental.
Embora a professora Andressa tenha obtido um capital cultural institucionalizado
representado pelos diplomas dos cursos de graduação em Pedagogia e no curso de
especialização em Alfabetização e Letramento, encontrou no trajeto do trabalho docente
grandes dificuldades no processo de ensino. A professora se considerava preparada para
iniciar o trabalho na carreira docente, entretanto, demonstrou em seus relatos a frustração
por não encontrar, na realidade da escola, o que havia sido previamente idealizado. Os
dados indicam que a Professora Andressa passou pelo choque da realidade, mas seu
habitus insiste em manter a esperança de que ela conseguirá superar suas dificuldades; mas
o fator que dificulta a superação desta professora, foi a questão de que não houve a
XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira
3807ISSN 2177-336X
identificação e autoavaliação de suas práticas e ainda, o desconhecimento sobre os
aspectos didáticos básicos no processo de ensino.
Os aspectos que envolvem a Aula são compostos não somente pelo planejamento
dos conteúdos e das atividades que serão desenvolvidas com os alunos, mas todo
movimento em sala de aula deve ser pensado, desde a organização das carteiras, passando
pela organização das atividades do dia, até o momento de avaliação dos objetivos
alcançados e dos não alcançados. Os aspectos das relações interpessoais de todos os que
estão na sala de aula, sejam eles psicológicos ou sociais, estão presente sendo importante
que o professor saiba perceber tais aspectos para que suas ações alcancem o objetivo de
fazer com que os alunos se apropriem dos conhecimentos que a escola deve oferecer.
Referências
BOURDIEU, P. Esboço de uma teoria da prática. In: ORTIZ, R. (Org.). Sociologia. Pierre
Bourdieu. São Paulo: Ática, 19893, pp. 46-81.
___________ Os três estados do capital cultural. In: NOGUEIRA, M. A. ; CATANI, A.
(Orgs.) Escritos de educação.Petrópolis: Vozes, 2001, p.71-79.
HUBERMAN, M. O ciclo de vida profissional dos professores. In: NÒVOA, António (Org).
Vidas de professores. Portugal: Porto Editora,1992, p. 31-61.
MARIN, A. J. Didática geral. In: UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA. Prograd.
Caderno de Formação: formação de professores- didática dos conteúdos. UNIVESP. São
Paulo: Cultura Acadêmica, 2011, v.2, p. 16-32.
____________ 2005. O trabalho docente: núcleo de perspectiva globalizada de estudos sobre
ensino. In: MARIN, A. J. (Coord) Didática e trabalho docente. Araraquara: Junqueira &
Marin,2005, p. 30-56.
VEEMAN, S. Perceived problems of begining teachers. Review of Educational Research, Catholic University of Nijmegen, vol. 54, n. 2, p. 154-155.
XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira
3808ISSN 2177-336X