professora, sim; tia, não: cartas a quem ousa...

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PauloFreirePatronodaEducaçãoBrasileira

PROFESSORA,SIM;TIA,NÃO

CARTASAQUEMOUSAENSINAR

24ªedição

Revistaeatualizada

2015

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Copyright©1993byEditoraVilladasLetras

Direitos de edição da obra em língua portuguesa no Brasil adquiridos pela Editora PAZ E TERRA. Todos osdireitosreservados.Nenhumapartedestaobrapodeserapropriadaeestocadaemsistemadebancodedadosouprocessosimilar,emqualquerformaoumeio,sejaeletrônico,defotocópia,gravaçãoetc.,semapermissãododetentordocopirraite.

EDITORAPAZETERRALTDA.RuaArgentina171–SãoCristóvãoRiodeJaneiro,RJ–20921-380http://www.pazeterra.com.br

TextorevistopelonovoAcordoOrtográficodaLínguaPortuguesa.

SejaumleitorpreferencialRecord.Cadastre-seerecebainformaçõessobrenossoslançamentosenossaspromoções.

Atendimentoevendadiretaaoleitor:[email protected](21)2585-2002.

CIP-BRASIL.CATALOGAÇÃONAPUBLICAÇÃO

SINDICATONACIONALDOSEDITORESDELIVROS,RJ

F934p24.ed.

Freire,Paulo,1921-1997Professorasim,tianão[recursoeletrônico]cartasaquemousaensinar/PauloFreire.-24.ed.rev.e

atual.-RiodeJaneiro:PazeTerra,2015.recursodigital

Formato:epubRequisitosdosistema:adobedigitaleditionsMododeacesso:worldwidewebÍndiceISBN9788577532780(recursoeletrônico)

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15-19602

1.Professoresealunos.2.Sociologiaeducacional.3.Comunicaçãonaeducação.4.Livroseletrônicos.I.Título.

CDD:371.1023CDU:37.064.2

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Índice

DEVODIZER

PREFÁCIO

Aprofissãodoensinante,umatarefaprazerosaeigualmenteexigente

Introdução

PRIMEIRASPALAVRAS

PRIMEIRACARTA

Ensinar—aprender.Leituradomundo—leituradapalavra

SEGUNDACARTA

Nãodeixequeseumedododifícilparalisevocê

TERCEIRACARTA

Defalaraoeducandoafalaraeleecomele;deouviroeducandoaserouvidaporele

QUARTACARTA

Identidadeculturaleeducação

QUINTACARTA

Contextoconcreto—Contextoteórico

SEXTACARTA

Dasvirtudesouqualidadesindispensáveisaomelhordesempenhodeprofessoraseprofessoresprogressistas

SÉTIMACARTA

Dasrelaçõesentreaseducadoraseoseducandos

OITAVACARTA

“Vimfazerocursodomagistérioporquenãotiveoutrapossibilidade”

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NONACARTA

Primeirodiadeaula

DÉCIMACARTA

Maisumavezaquestãodadisciplina

ÚLTIMOTEXTO

Saberecrescer:tudoaver

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AALBINOFERNANDESVITAL,COMQUEMEXPERIMENTEI,NAINFÂNCIALONGÍNQUA,NOGRUPO

ESCOLARMATHIASDEALBUQUERQUE,NORECIFE,ALGUNSDOSMOMENTOSDAPRÁTICA

EDUCATIVANESTELIVRODISCUTIDA.

AALBINO,COMAMIZADEGRANDE,JAMAISPORNADAFERIDAOUMACHUCADA.

AJANDIRAVITAL,AOMUNDODEMEUQUERERBEMPORALBINOTRAZIDA.

PAULOFREIRE

SÃOPAULO

FEVEREIRO/1993

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DEVODIZER

EstanovaediçãodolivrodePauloFreire,Professora,sim;tia,não,comaqualaPazeTerranosbrinda,sofreuumacuidadosa,minuciosaeradicalrevisãoapartirdosmanuscritos de próprio punho de meu marido, como ele costumava fazer — eassimofezemtodososescritosdesuaextensa,profundaefascinanteobra—,comaajudainestimáveldeBeckyHenrietteGonçalvesMilano.

FizintroduzirabaixodonomedoAutoroseumaisrecenteeimportantetítulo:odePatronodaEducaçãoBrasileira,nomeadoatravésdaLeinº12.612, assinadapela presidenteDilmaRousseff e peloministro daEducaçãoAloísioMercadante,em13deabrilde2012.

Espero que este título com o qual o Estado Brasileiro consagra Paulo Freirecomoomaioreducadordenossopaís,emtodaanossahistória,nãosejaapenasumato simbólico de reconhecimento por sua obra e práxis. Que ele anuncie, naverdade,queonossogovernotemvontadepolíticademudaracaradaescolaedaeducaçãoemnossopaís.

Foiconversando,em2011,comminhaqueridaamiga,adeputadafederalLuizaErundina — que tem, indiscutivelmente, uma enorme, sensível e profundacapacidadede“escutar”—,sobrequalseriaumagrandeemerecidahomenagemaPaulo no ano em que ele completaria 90 anos de nascimento, que ressurgiu umprojeto idealizado desde 2005 por nós duas. Na época, omesmo fora arquivadopela Câmara dos Deputados sem discussões. Nessa conversa, com a aceitação evalorização das ideias e práxis de Paulo visivelmentemaiores, além de inúmerascomemorações pelos seus 90 anos estarem acontecendo em várias partes domundo, o projeto tomou maiores proporções: fazer de Paulo o Patrono daEducação Brasileira. Este, inegavelmente, um sonho tanto meu — e da grandemaioria de militantes sociais e educadores e educadoras progressistas do Brasil,acredito —, quanto de Erundina, a quem Paulo serviu como secretário de

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educação, na sua gestão democrática, na cidade de São Paulo. Tarefa que elecumpriucomseriedade,criatividadeeespíritopúblico,oquelherendeuaimensaadmiraçãodaprefeita(admiraçãoestamantidaatéosdiasdehoje),demilharesdeeducadores de todo o mundo e dos educandos e educandas que, ensinando,aprenderameusufruíramdesuacompreensãopolítico-libertadoradeeducação.

Erundina,nestemesmodiadeabrilde2011,engajou-se,comentusiasmoesemreservas,nessaideia.ApresentouumprojetodeLeinaCâmaradosDeputados,quefoiaprovadonaComissãodeEducaçãoeJustiçadaCâmaraFederal.Encaminhou-o, então, ao Senado Federal, que teve como parecerista o senador CristovãoBuarque, amigopessoal dePaulo, educadorpor vocaçãomesmoque engenheiroporformação.EmambasasCasasapropostafoiaprovadaporunanimidade.

Devo dizer primeiramente que, dentro das mudanças feitas pela revisãomencionada, incluí um excelente prefácio especialmente para esta publicação, eparaasoutrasquecertamentevirão,escritocomesmero,inteligênciaecriticidadepelonossoamigo,meuantigomestre,quemeintroduziunogostodafilosofianosidosanosde1970,JeffersonIldefonsodaSilva.Emsegundolugar,quefielaoquêeaocomoPauloescreveuestasCartasàsprofessoras,aordemdelasnãoéamesmadas edições anteriores. Alterei esta ordem “obedecendo” a vontade do Autor.Coloquei-as na sequência original, a mesma em que as tinha posto o político-educador; bem como completei alguns parágrafos omitidos nos exemplaressocializadosdesde1995.

Devodizer ainda: comrelaçãoàquestãodousodasvírgulas,Pauloutilizava-ascom parcimônia, não as usava com o rigor das regras gramaticais porqueconsiderava que as mesmas, muitas vezes, “emperram” a fluidez do texto. Porexemplo, Paulo jamais admitiu colocar vírgula na frase “Mudar é difícil mas épossível”. Com relação ao uso de pronome reflexivo no início das frases: Paulotinhadecidido,conscientemente,queentrearegracultaeabelezaestética,ficavacom esta. Por exemplo, escrevia sempre “Me aproximo...” e nunca “Aproximo-me...”. Também não deixei que as editoras do livro atualizassem para a novaortografia, a agora tida como correta, algumas palavras que são a marca daideologiacríticaepolíticadePauloaoexporoseupensamentoteórico.

NodecorrerdaleituradoProfessora,sim;tia,nãooleitorconstataráestasminhasafirmações,muitasvezesencaradaspelosfiéiseobedientescumpridoresdasregrascomoumerro,masquefizquestãodemantersegundoogostoestéticoeadecisãointeligentementelúcidaesemmedosdeassimescreverdomeumarido.

Pedi às editoras da Paz e Terra que atualizassem, e, em alguns momentos,

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corrigissem as referências bibliográficas das notas de rodapé, de acordo com asregras da ABNT, porque o Autor não tinha, habitualmente, a preocupação emajustá-lasàsnormasvigentes.

Assim, Professora, sim; tia, não adquiriu a autenticidade necessária, estou certadisso.Comcaranova,estelivrocelebraos90anosdenascimentodePauloFreire,em 19 de setembro de 2011, e o seu honroso título de PATRONO DAEDUCAÇÃOBRASILEIRA.

NitaAnaMariaAraújoFreire

SãoPaulo,19deagostode2012

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Prefácio

APROFISSÃODOENSINANTE,UMATAREFAPRAZEROSAE

IGUALMENTEEXIGENTE

Aleiturado livrodePauloFreireProfessora,sim;tia,nãodespertaemmimaquiloque Merleau-Ponty asseverava ser próprio do filósofo que “se reconhece comoaquelequeteminseparavelmenteogostodaevidênciaesensodaambiguidade”1.Depronto,arelaçãodaprofessoracomatiaaparececarregadadeambiguidades.Duasposiçõesmevêmàmemória:

AprofessoraJaquelineC.,aocomentaremseublogoresumodolivroProfessora,sim; tia, não,2 considera que ser “professora, é o que escolhi ser na vida paracolaborarcomummundomelhor...nãomeimportodesertambém‘tia’”.Paraela,ser tia tem caráter afetuoso de aproximação da infantilidade da criança e de suavisão de mundo. Desperta a saudade dos tempos em que as professoras “erammuitomaisvalorizadasetinhamcertostatussocial”.Julgaqueabuscadaqualidadedotrabalhodasprofessorasnãoseriaafetadapelofatodeseremchamadasde“tia”ouprofessora.

OprofessorRubemAlves,emseulivroConversascomquemgostadeensinar3nãocontrapõe o professor à “tia”,mas o professor ao educador.Ao professor cabe aprofissão vista como uma atividade atrelada e limitada pela busca funcional daadministração, na qual o que importa é a atividade exercida em favor do bomandamentodosistemaedaeficiênciados resultados.Oeducador,aocontrário,édefinidopelavocação,“comoaquelaquenascedeumgrandeamor,deumagrandeesperança”. A educação é algo que acontece nesse espaço invisível e denso donascimento do amor que se estabelece a dois (professor e alunos); habita ummundo onde o que vale é a relação que liga o professor aos alunos, sendo cada

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aluno uma “entidade” inconfundível; acontece no espaço artesanal das relaçõespessoais. Professores e educadores são habitantes de mundos diferentes. Apassagemdeeducadorparaprofessorserealizapelosaltodepessoaparafunção.Oeducador é uma categoria do conceito irreal e utópico e, assim, não pode seraprisionadopelodiscursocientíficosobreaeducaçãoqueconsolidaanegaçãodasrelações pessoais do mundo humano. Por desconhecer as pessoas, em favor dasinstituições e dos procedimentos técnicos, tal discurso estabelece o verdadeiro“anti-humanismo”metodológico.

RubemAlvesconclui:“Nãoseicomoprepararoeducador.Talvezqueistonãoseja nem necessário, nem possível... É necessário acordá-lo. (...) Basta que oschamemos do seu sono, por um ato de amor e coragem. E talvez, acordados,repetirãoomilagredainstauraçãodenovosmundos.”

Ambososautorestransitamentreaevidênciaeasambiguidades,semabuscadesuasconvergênciaseinclusõesquePauloFreiresepreocupaemdeslindaremseutexto.Recordo-medePaulonosmeadosdosanos1980quando,emumdosbaresdoSumaré,dizia aoprofessorAlípioCasali e amimqueoprofessor sópode serenxergadona relaçãoda “mundanidadeeda transcendentalidade”.Essaspalavrascalaramfundoemmeuinterioreserviriamcomonortenabuscadecompreensãodas diversas falas de Paulo sobre o professor. Elas trazem a afirmação de que oprofessor se encontra inserido na densa realidade da vida dos homens em seucontextosocial,econômicoepolítico,eestá inseparavelmentetomadopelabuscadasuperaçãoemdireçãoaomais-homempelajustiçaeesperança.

Eramesses seus vislumbres deumaPedagogia da esperançaque acontecia noreencontro da Pedagogia do oprimido, onde o texto Professora, sim; tia, nãorepresentaodesafiodeclareamentodasambiguidadeseaevidênciadaconstruçãoda solidariedade que descarta toda possibilidade de separá-las, de dicotomizá-las.Dessa forma, Paulo vai além do círculo fechado do romantismo e do intimismoindividualizantedeumconceitoetéreodeeducador,muitodistantedaprofessoraedo professor que aparecem tomados pela “reles” tarefa de ensinar. Pôde, assim,dizer abertamente que “minha intenção neste texto é mostrar que a tarefa doensinante,queétambémaprendiz,sendoprazerosaéigualmenteexigente”.

Oprazerdeser,desecomportaredesertratadocomo“tia”nãopodetisnarouesmaeceraexigênciacientíficaearigorosidadedosaberaprendido.Oromantismoanestesianteserásuplantadopelapaixãodautopiaqueconstróicomsolidezavidareal dos oprimidos e pela militância corajosa que não compactua com acomplacência diante da dominação. O mundo do educador é o mundo dos

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oprimidos,daconstruçãonaesperançada justiçaeda solidariedade.Nelenãoháespaçoparaavalorizaçãodesimesmopelaoutorgapremiadoradosdominadores,assimcomoparaomundoabstratodiferentedomundodaexistênciadasmulheresehomensconcretosquefincamseusaradosnochãoparanãoseperderemnabuscadasestrelasedosseussonhos.PauloFreirenãotemreceiosdeafirmaremostrarque “ensinar é profissão que envolve certa tarefa, certa militância, certaespecificidade no seu cumprimento, enquanto ser tia é viver uma relação deparentesco.Serprofessoraimplicaassumirumaprofissão,enquantonãoseétiaporprofissão”.

Essa posição de Paulo Freire mostra que a profissão de professor implicaenvolver-se com a totalidade do mundo dos homens, o universo dosconhecimentos,dasciênciasedacultura,ouniversodotrabalhoedastecnologias,ouniversodaslutasdemulheresehomensparaconstruirsuasvidasemsociedadecom seus aspectos de solidariedade e com suas relações políticas. Fora disso, sóhaverá espaços “reservados”, onde se movimentam os que buscam o poder e odomínio. Semelhante comportamento fica escancarado pela organizaçãodenominada Escola Sem Partido — Educação Sem Doutrinação(www.escolasempartido.org), que se autodefine como uma associação informal,independente e sem qualquer espécie de vinculação política, ideológica oupartidária,quepretendelutarpelaausênciadapolíticanaeducaçãodaescola.Apelaparaovelhoesurradopretextodaneutralidadeesearvoraemguardiãdaliberdadeeemvigilantecontraadoutrinaçãonaescola.Faz,assim,umdiscurso ideológicoparaencobrirasanhapolíticaparaconservarahegemoniadadominação.

AsreflexõesdePauloFreiresobreatotalidadedaabrangênciadafunçãodeserprofessora,desenvolvidasnoconfrontodosdoisprimeirosblocos,“Professora,sim”;“tia, não”, abrem espaços para o desdobramento e o aprofundamento de temasbasilareseatuaisquepedemnovosesclarecimentosdasmuitasambiguidadesqueaindapersistemnasanálisessobreopapeldoeducadoresuaformação.

No terceiro bloco, “Cartas a quem ousa ensinar”, Paulo mostra o quanto aprática pedagógica está carregada de ousadia, derivada do compromisso e da“esperança”, que vai além da “espera” dolente e leniente, para se embeber dacoragem nascida da certeza de poder contribuir para a construção de um novomundodemulheresehomensquesesolidarizameseafirmampelaproduçãodaprópriaexistência.

O ensinar se faz partilha pela comparticipação dos conhecimentos como bensproduzidospelascompanheirasecompanheirosdejornadaepelaleituradomundo

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que vão construindo. A assunção da relação pensamento-realidade constitui osignificadoplenodoestudar, do aprender, doensinardos sujeitosqueensinameaprendem. A professora e o professor se assumem como um dos sujeitos dessafunção que é profundamente humana, inserida no âmago do fazer-se homem.Consequentemente,ficadominadopelaalegriaprazerosadocompromissoousadodocoexistir.

Odiálogofundamentalentreprofessorealunonãoéumdiálogosimplesmentefuncional,mas passa pelo diálogo existencial com omundo. Em nada diminui aindividualidadeconcretaeexistencialdeamboscomosujeitosdaconstruçãodesuaprópriaexistência.Entretanto,ouniversohumanonãoseesgotanaintimidadedossujeitos.Suamundanidade lhesdáo insubstituívelchãodoseucaminhoedasuahistória;emumapalavra,doseuexistir.

Omundoéogrande livroquepedeabuscade ser compreendidoe lidopeloconfrontocríticoecoerentecomouniversodoleitor,comossaberesanterioresecomacotidianidadedavida.Aexpressãopelapalavraepelaescritafazamediaçãoparaessa integraçãonaaprendizagem,ondea ciência e a culturaatuampara seucrescimento e para a ampliação da transformação da realidade concreta.O ler erelerdomundocriaoestudarquedáodinamismodarecriaçãodenovastessiturasdavida.Aescrita expressa asdiversas leituras e releiturasdomundo, feitaspelossucessivosconvivasdamundanidadenodesenrolardahistória.

O grande obstáculo da ousadia é o medo que gera desconfiança e se tornaempecilho para a esperança. Assim, a leitura e o estudo aplainam o caminho dacapacitação que favorece a compreensão e dá a segurança necessária paraestabelecerodiálogocomoescritoreomundo,levandoàaproximaçãoeafastandoomedo.Oestudoéumaempreitadadifícilqueexigedisciplinaintelectual,buscade“instrumentosauxiliares”etrocascomoscolegase,especialmente,damediaçãodoprofessorcomointegrador,apoioeparceiro.NodizerdePaulo:“Nistoseencontraodifícileoapaixonantedoatodeler.”

Avalorizaçãosocialdafunçãodeprofessorestáfundadanoreconhecimentodesua importância para a formação de indivíduos participantes da construção dasociedade e dos seus bens e valores. A respeitabilidade ao professor exige destequalificaçãoeresponsabilidadenoexercíciodasuaprofissão.Nãoémaissuficienteo discurso romântico da vocação ou as considerações abstratas dos valores dopassado,dostemposemqueaprofessoraeoprofessoreramsimplesinstrumentosdóceisdopoderdospoderosos.Oengajamentodaatualprofessoraouprofessornoprojetopolíticoeeconômicodesociedade—quesetornaambivalentediantedas

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divisõesdosseusespaços—requerdelesclarezadeopçãoecoerênciadeatitudesparasustentarosentidosimultaneamenteeducativoetransformadordesuafunção.NaspalavrasdePauloFreire:“Maspodemos,também,comnossaresponsabilidade,preparo científico e gosto do ensino, com nossa seriedade e testemunho de lutacontra as injustiças, contribuir para que os educandos vão se tornando presençasmarcantesnomundo.”

Naeducação,assimcomonoensinoemtodososseuspassos,éindispensávelodiálogo entre todos os participantes do processo educativo-docente. Entretanto,todos são pessoas e indivíduos existencialmente e historicamente vinculados aoconjunto de suas relações na sociedade e nomundo.Os diferentesmodos de sevincularemosfazemdiferenteseospossibilitamassimacontribuirem,aseumodo,nacomplexaconstruçãodotodosocialedesuaprópriaexistência.

O testemunho da professora e do professor é a forma mais consistente deensinarosvaloresdavidaedasrelaçõeshumanas.Aatitudedecoerênciaentreofazer e o falar lhes confere a firmeza em seu papel de orientadores daaprendizagem. O senso de justiça nas relações é determinante para afastar aleniência do “laissez-faire” e a arbitrariedade do autoritarismo, fazendo nascer aresponsabilidadecompartilhada,geradoradadisciplina responsável.Aconsciênciada essencialidade da participação e responsabilidade de educandos e educadorespermite que a educação os conduza pelos caminhos da construção de suaexistência,marcadapordeterminaçõesdaherançabiológicahumanizadapelomeiocultural.PauloFreirelucidamenteexplicaque“umdadoimportante,comopontode partida para a compreensão crítica do crescer entre nós, existentes, é que,‘programados para aprender’, vivemos ou experimentamos ou nos achamosabertosaexperimentararelaçãoentreoqueherdamoseoqueadquirimos”.

A mutualidade da relação dá ao encontro e à partilha a característica deenvolvimento integrado de sujeitos e coisas, na prática da ação que transforma,assimcomonosaberdaprópriaprática.Pelaação,ascoisassefazemmundoeossujeitossefazemconsciênciaeexpressãodessaprática,gerandooconhecimento,aciênciaeateoria.

ApreciosidadedestescolóquiosdePauloFreireemtodoolivroeespecialmentenassuascartasseevidenciapelovalorqueatribuiàcotidianidadedaprofessoraedoprofessorqueousamensinarnoplenosentidodaexpressão.

Assim, fechominhasconsideraçõessobreograndesignificadodeste textoparatodos os verdadeiros e ousados professores, relembrando as palavras deMauriceLagueux que, em suas análises sobre a tarefa filosófica nos dias atuais, assim as

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sintetiza: “Comoprimeira aproximação, realizar umaobra filosófica é esforçar-separamanter integrados,comtodaacoerência intelectual,osdiversosaspectosdaexperiênciahumana.(...)Acoerênciabuscadanãoéjamaisatingida,émuitomaisum difícil equilíbrio que será preciso ser constantemente reajustado, sempre seconfrontando aos novos dados que invadem insistentemente o que já seapresentavaadquirido. (...)Parece-mequeoque realmente importa é a tentativaexigente em manter coabitando em nós, sem emasculá-los, os dados brutais daexperiênciahumana”4

JeffersonIldefonsodaSilvaDoutoremHistóriaeFilosofiadaEducação

pelaPontifíciaUniversidadeCatólicadeSãoPauloProfessoraposentadodaUniversidadeFederaldeUberlândia

Fevereiro,2012

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Notas

1 MauriceMerleau-Ponty,Élogedelaphilosophie:leçoninauguralefaiteauCollègedeFrance.Paris,Galimmard,1953.

2 abcdejac.blogspot.com/2007/06/professora-sim-tia-nao.html,acessadoemjulhode2013.

3 RubemAlves,Conversascomquemgostadeensinar.SãoPaulo:Cortez/AutoresAssociados,1980.

4 MauriceLaguoux,“Pourquoienseignerlaphilosophie?”,inPaulRicoeur,Pourquoi laphilosophie?Approchesdelatâchephilosophiqueaujourd’hui,Québec,LesPressesdel’UniversitéduQuébec,1970.

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INTRODUÇÃO

Termino de ler a primeira cópia, como geralmente chamamos o exemplarimpresso,pronto,mornoouaindaquente,do livroque findamosdeescrever.Esseexemplar que nos chega àsmãos antesmesmoque a edição vá para as livrarias.Refiro-meàPedagogiadaesperança:umreencontrocomaPedagogiadooprimidoqueaeditoraPazeTerraacabadelançar.

O próprio título deste livro, Pedagogia da esperança, não foi uma escolhaantecipada, como às vezes ocorre com livros que escrevemos. Nasceu nasconversas com amigos, entre eles Werner Linz, seu editor norte-americano, emtornodoprópriomovimentoquearedaçãodotextogeralmentevaiimprimindoaopensamentodequemescreve.Nestecaso,quearedaçãodotextoveioinsinuandoameupensamentonotratocomaPedagogiadooprimido.Éque,naverdade,escrevernãoéumpuroatomecânico,precedidodeumoutro,queseriaumatomaior,maisimportante, o ato de pensar ordenadamente, organizadamente, sobre um certoobjeto, em cujo exercício o sujeito pensante, apropriando-se da significaçãomaisprofunda do objeto sendo pensado, termina por apreender a sua razão de ser.Termina por saber o objeto. A partir daí, então, o sujeito pensante, numdesempenhopuramentemecânico,escreveoquesabeesobreoquepensouantes.Não!Nãoébemassimquesedãoascoisas.Agoramesmo,nomomentoexatoemque escrevo sobre isto, quer dizer, sobre as relações pensar, fazer, escrever, ler,pensamento, linguagem, realidade, experimento a solidariedade entre esses diversosmomentos,atotalimpossibilidadedesepará-los,dedicotomizá-los.

Se isto não significa que após pensar ou enquanto penso eu devaautomaticamente escrever, isto significa, porém, que guardo em meu corpoconscienteefalante,aopensar,apossibilidadedeescreverdamesmaformaque,aoescrever,continuarapensarearepensaropensando-secomoojápensado.

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Esta é uma das violências que o analfabetismo realiza— a de castrar o corpoconscientee falantedemulheresedehomens,proibindo-osde ler edeescrever,comoqueselimitamnacapacidadede,lendoomundo,escreversobresualeituradelee,aofazê-lo,repensarapróprialeitura.

Mesmo que não zere as milenares e socialmente criadas relações entrelinguagem,pensamentoerealidade,oanalfabetismoasmutilaeseconstituinumobstáculoàassunçãoplenadacidadania.Easmutilaporque,nasculturasletradas,interdita analfabetos e analfabetas de completar o ciclo das relações entrelinguagem, pensamento e realidade, ao fechar a porta, nestas relações, ao ladonecessárioda linguagemescrita.Éprecisonãoesquecerdequeháummovimentodinâmico entre pensamento, linguagem e realidade do qual, se bem-assumido,resultaumacrescentecapacidadecriadoradetalmodoque,quantomaisvivemosintegralmente esse movimento tanto mais nos tornamos sujeitos críticos doprocessodeconhecer,deensinar,deaprender,deler,deescrever,deestudar.

No fundo, estudar, na sua significação mais profunda, envolve todas estasoperações solidárias entre elas. O importante agora é deixar claro e, em certosentido,repetindo-meumpouco,queoprocessodeescreverquemetrazàmesa,comminhacanetaespecial, comminhas folhasdepapelembrancoe sem linhas,condiçãofundamentalparaqueeuescreva,começaantesmesmodequeeuchegueàmesa,nosmomentosemqueatuooupraticoouemquesoupurareflexãoemtorno de objetos, continua quando, pondo no papel da melhor maneira que mepareceosresultadosprovisórios,sempreprovisórios,deminhasreflexões,continuoa refletir, ao escrever, aprofundando um ponto ou outro que me passaradespercebidoquandoantesrefletiasobreoobjeto,nofundo,sobreaprática.

Éporissoquenãoépossívelreduziroatodeescreveraumexercíciomecânico.O ato de escrever émais complexo emais demandante doqueo de pensar semescrever.

De fato, minha intenção inicial era escrever um novo prefácio ou uma novaintroduçãoemque,retomandoaPedagogiadooprimido,revisse-aemalgunsdeseusaspectoscentrais,revendoigualmentealgumasdascríticasqueolivronãoapenassofreu,mas,emcertoscasos,continuaasofrer.Efoientregando-meaesteesforçopormesesqueoqueseriaumanovaintroduçãosetornaumnovolivro,comaresumpoucodememóriasdaPedagogiadooprimido—cujaprimeira cópiaacabodereler.

Éassim,aindamergulhadonaPedagogiadaesperança,molhadodaesperançacomqueoescrevi,instigadopormuitosdeseustemasabertosanovasreflexõesqueme

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entregoagoraaumanovaexperiência,sempredesafiadora,semprefascinante,adelidarcomumatemática,oqueimplicadesnudá-la,clareá-la,semqueistosignifiquejamaisqueosujeitodesnudantepossuaaúltimapalavrasobreaverdadedostemasquediscute.

Professora, sim; tia, não: cartas a quem ousa ensinar, eis o enunciado geral quetemos diante de nós a exigir um primeiro empenho de compreensão. O deentender, tãobemquantopossível,nãopropriamenteosignificadoemsidecadaumadaspalavrasquecompõemoenunciadogeral,mascompreenderoqueelasganhamouperdem,individualmente,enquantoinseridasnumatramaderelações.

Oenunciadoquefaladotematemtrêsblocos:a)Professora,sim;b) tia,não; c)cartasaquemousaensinar.

No fundo, o discurso sintético ou simplificado, mas bastante comunicante,poderia,deformaampliada,serassimfeito:minhaintençãonestetextoémostrarquea tarefadaensinante,queé tambémaprendiz, sendoprazerosaé igualmenteexigente.Exigentedeseriedade,depreparocientífico,depreparofísico,emocional,afetivo. É uma tarefa que requer de quem com ela se compromete um gostoespecialdequererbemnãosóaosoutros,masaopróprioprocessoqueelaimplica.É impossível ensinar sem essa coragem de querer bem, sem a valentia dos queinsistemmilvezesantesdeumadesistência.Éimpossívelensinarsemacapacidadeforjada, inventada, bem-cuidada de amar. Daí que se diga no terceiro bloco doenunciado: cartas a quem ousa ensinar. É preciso ousar, no sentido pleno destapalavra, para falar em amor sem temer ser chamado de piegas, de meloso, de a-científico,senãodeanticientífico.Éprecisoousarparadizer,cientificamenteenão“blá-blá-blantemente”,queestudamos,aprendemos,ensinamos,conhecemoscomonossocorpointeiro.Comossentimentos,comasemoções,comosdesejos,comosmedos,comasdúvidas,comapaixãoetambémcomarazãocrítica.Jamaiscomestaapenas.Éprecisoousarparaficaroupermanecerensinandoporlongotemponascondiçõesqueconhecemos,malpagos,desrespeitadose resistindoao riscodecair vencidos pelo cinismo. É preciso ousar, aprender a ousar, para dizer não àburocratização da mente a que nos expomos diariamente. É preciso ousar paracontinuarquandoàsvezessepodedeixardefazê-lo,comvantagensmateriais.

Nadadisso,porém,converteatarefadeensinarnumquefazerdeserespacientes,dóceis,acomodados,porque,portadoresdemissãotãoexemplarquenãopodeseconciliarcomatosderebeldia,deprotesto,comogreves,porexemplo.Atarefadeensinar é uma tarefa profissional que, porém, exige amorosidade, criatividade,

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competênciacientífica,masrecusaaestreitezacientificista,queexigeacapacidadedebrigarpelaliberdadesemaqualaprópriatarefafenece.

Oquemeparecenecessárionatentativadecompreensãocríticadoenunciado“professora,sim;tia,não”,senãoéoporaprofessoraàtia,nãoétambémidentificá-lasoureduziraprofessoraàcondiçãodetia.Aprofessorapodetersobrinhose,porisso,étiadamesmaformaquequalquertiapodeensinar,podeserprofessora,porisso, trabalhar com alunos. Isto não significa, porém, que a tarefa de ensinartransforme a professora em tia de seus alunos da mesma forma como uma tiaqualquer não se converte em professora de seus sobrinhos só por ser tia deles.Ensinaréprofissãoqueenvolvecertatarefa,certamilitância,certaespecificidadenoseu cumprimento enquanto ser tia é viver uma relação de parentesco. Serprofessora implica assumirumaprofissãoenquantonão se é tia porprofissão. Sepode ser tio ou tia geograficamente ou afetivamente distante dos sobrinhos,masnãosepodeserautenticamenteprofessora,mesmonumtrabalhoalongadistância,“longe”dosalunos.

Oprocessodeensinar,queimplicaodeeducarevice-versa,envolvea“paixãodeconhecer”quenosinserenumabuscaprazerosa,aindaquenadafácil.Porissoéque uma das razões da necessidade da ousadia de quem se quer fazer professora,educadora,éadisposiçãopelabrigajusta,lúcida,emdefesadeseusdireitoscomono sentido da criação das condições para a alegria na escola, um dos sonhos deSnyders.5

Recusar a identificação da figura da professora com a da tia não significa, demodo algum, diminuir ou menosprezar a figura da tia, da mesma forma comoaceitaraidentificaçãonãotraduznenhumavaloraçãoàtia.Significa,pelocontrário,retirar algo fundamental à professora: sua responsabilidade profissional de que aexigênciapolíticaporsuaformaçãopermanentefazparte.

Arecusa,ameuver,sedeve,sobretudo,aduasrazõesprincipais.Deumlado,evitar uma compreensão distorcida da tarefa profissional da professora, de outro,desocultar a sombra ideológica repousandomanhosamente na intimidade da falsaidentificação.Identificarprofessoracomtia,oquefoievemsendoaindaenfatizadosobretudonaredeprivadaemtodoopaís,équasecomoproclamarqueprofessoras,comoboastias,nãodevembrigar,nãodevemrebelar-se,nãodevemfazergreve.Quemjáviudezmil“tias”fazendogreve,sacrificandoseussobrinhos,prejudicando-os no seu aprendizado? E essa ideologia que torna o protesto necessário daprofessoracomomanifestaçãodeseudesamoraosalunos,desuairresponsabilidadedetias,seconstituicomopontocentralemqueseapoiagrandepartedasfamílias

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com filhos emescolas privadas.Mas tambémocorre com famílias de crianças deescolaspúblicas.

MelembroagoradecomooentãopresidentedaAssociaçãodeProfessoresdoEstado de SãoPaulo—APEOESP—, professorGumercindoMilhomem, algunsanos passados, respondeu à acusação de famílias de alunos das escolas da redeestadual, em greve, num programa de televisão. As famílias acusavam osprofessoresdeprejudicarseusfilhos,descumprindooseudeverdeensinar,aoqueGumercindo respondeu que “havia um equívoco na acusação. Professoras eprofessores, em greve”, dizia ele, “estavam ensinando, estavam dando a seusalunos, pelo seu testemunho de luta, lições de democracia” de que tantoprecisamosnestepaís,acrescentoeuagora.

Ébomdeixarclaroque,aofalarnaquelasombraideológica,nãoqueriadizer,demodo algum, que sua presença oculta na inaceitável identificação, tivesse sidodecididaemalgumareuniãosecretaderepresentantesdasclassesdominantesquetivessemdeliberadominararesistênciadeumacategoriadaclassetrabalhadora.Damesma forma como o que há de ideológico no conceito de evasão escolar ou noadvérbio fora na afirmação: “háoitomilhõesde criançasbrasileiras fora da escola”nãosignificaumatodecididodospoderososparacamuflarassituaçõesconcretas,deumlado,daexpulsãodascriançasdasescolas;deoutro,daproibiçãodequenelasentremascrianças.Naverdade,nãohácriançasseevadindodasescolascomonãohá crianças fora das escolas como se não estivessem dentro só porque nãoquisessem, mas crianças ora proibidas pelo sistema de entrar nas escolas, ora denelaspermanecer.

Assimtambémprofessoranãoétia.Mas, se nem sempre as sombras ideológicas são deliberadamente forjadas,

programadas pelo poder de classe, a sua força opacizante da realidade serveindiscutivelmente aos interesses dominantes. A ideologia do poder não apenasopacizaarealidademastambémnostornamíopesparaverclaramentearealidade.O seu poder é domesticante e nos deixa, quando tocados e deformados por ele,ambíguos e indecisos. Daí ser fácil entender a observação que uma jovemprofessora6daredemunicipaldeSãoPaulomefez,emconversarecentecomigo:“Emquemedidacertasprofessorasqueremmesmodeixardesertiasparaassumir-secomoprofessoras?Seumedoàliberdadeasconduzàfalsapazquelhespareceexistirnasituaçãodetias,oquenãoexistenaaceitaçãoplenadesuaresponsabilidadedeprofessoras.”

O ideal será quando, não importa qual seja a política da administração,

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progressista ou reacionária, as professoras se definam sempre como professoras. Olamentáveléqueoscilementreserbem-comportadamentetiasemadministraçõesautoritárias e rebeldemente professoras em administrações democráticas. Minhaesperança é que, experimentando-se livremente em administrações abertas,terminemporguardarogostodaliberdade,doriscodecriar,esevãopreparandoparaassumir-seplenamentecomoprofessoras,comoprofissionaisentrecujosdeveresse acha o de testemunhar a seus alunos e às famílias de seus alunos o de, semarrogância,mascomdignidadeeenergia,recusaroarbítrioeotodo-poderosismode certos administradores chamados modernos. Mas, o de recusar esse todo-poderosismoeesseautoritarismo,qualquerquesejaaformaqueelestomem,nãoisoladamente,naqualidadedeMaria,deAna,deRosália,deAntôniooudeJosé.

Esta posição de luta democrática em que as professoras testemunham a seusalunososvaloresdademocracialhescoloca,entreoutras,trêsexigênciasbasilares:

1] a de jamais transformaremouentenderemesta comouma luta singular,individual, por mais que possa haver, em muitos casos, perseguiçõesmesquinhascontraestaouaquelaprofessorapormotivospessoais;

2] a de, por isso mesmo, estar sempre ao lado de suas companheirasdesafiandotambémosórgãosdesuacategoriaparaquedeemobomcombate;

3]ade,tãoimportantequantoasoutrasequejáencerraemsioexercíciodeumdireito,exigirem,brigandoporsuaefetivação,suaformaçãopermanenteautêntica— a que se funda na experiência de viver a tensão dialética entreteoriaeprática.Pensarapráticaenquantoamelhormaneiradeaperfeiçoaraprática. Pensar a prática através de que se vai reconhecendo a teoria nelaembutida. A avaliação da prática como caminho de formação teórica e nãocomoinstrumentodemerarecriminaçãodaprofessora.

A avaliação da prática da professora se impõe por uma série de razões. Aprimeiraestáligadaoufazpartedapróprianaturezadaprática,dequalquerprática.Quero dizer o seguinte: simplesmente toda prática coloca a seus sujeitos, de umlado,suaprogramação,deoutro,suaavaliaçãopermanente.

Programar e avaliar não são, contudo,momentos separados, um à espera dooutro.Sãomomentosempermanentesrelações.

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A programação inicial de uma prática, às vezes, é refeita à luz das primeirasavaliaçõesqueapráticasofre.Avaliarimplica,quasesempre,reprogramar,retificar.Aavaliação,porissomesmo,nãosedáapenasnomomentoquenospareceserofinaldecertaprática.

Asegundarazãoporqueaavaliaçãose impõeestáexatamentenanecessidadequetêmosseussujeitosde,acompanhandopassoapassoaaçãodando-se,observarse seusobjetivos estãopor ser alcançados.Afinal, se a práticanos está levando àconcretizaçãodosonhoporcausadoqualestamospraticando.

Neste sentido, a avaliação da prática é fator importante e indispensável àformação da educadora.Quase sempre, lamentavelmente, avaliamos a pessoa daprofessoraenãosuaprática.Avaliamosparapunirenãoparamelhoraraaçãodossujeitosenãoparaformar.

Um outro equívoco que cometemos por causa, possivelmente, dessedeslocamentodefoco—emlugardeavaliarparamelhorformar,avaliamosparapunir—estáemqueumpoucoouquasenadanospreocupaocontextoemqueapráticasedarádeumacertamaneiracomvistasaosobjetivosquetemos.Poroutrolado, em como mecanicamente pomos a avaliação para o fim do processo.Acontecequeobomcomeçoparaumaboaprática seriaaavaliaçãodocontextoemqueelasedará.Aavaliaçãodocontextosignificaumreconhecimentodoquevemnele ocorrendo, como e por quê.Neste sentido, esse pensar crítico sobre ocontextoque implica avaliá-lo, precede aprópriaprogramaçãoda intervençãoquepretendemos exercer sobre ele, ao lado daqueles e daquelas com quemtrabalharemos.

Osgruposde formação, emdefesadequeaprofessoraMadalenaFreireWeffortvem sendo infatigável — o de professoras, o de diretoras, o de coordenadoraspedagógicas, o de merendeiras, o de vigias, o de zeladores, o de pais e mães, àmaneiradoquerealizamosnarecenteadministraçãodaprefeitaLuizaErundinaenão apenas os chamados cursos de férias em que, não importa a competênciacientífica dos convidados a dar aulas ou conferências, as professoras expõem seucorpo, curiosamente ou não, ao discurso dos competentes. Discurso que quasesempreseperdepor“n”razõesquejáconhecemos.

É preciso gritar alto que, ao lado de sua atuação no sindicato, a formaçãocientífica das professoras, iluminada por sua clareza política, sua capacidade, seugosto de saber mais, sua curiosidade sempre desperta são dos melhoresinstrumentospolíticosnadefesadeseusinteressesedeseusdireitos.Entreeles,porexemplo,oderecusaropapeldepurasseguidorasdóceisdospacotesquesabichõese

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sabichonasproduzememseusgabinetesnumademonstraçãoinequívoca,primeiro,de seu autoritarismo, segundo, como alongamento do autoritarismo, de suaabsolutadescrençanapossibilidadequetêmasprofessorasdesaberedecriar.

E o curioso nisso tudo é que, às vezes, os “sabichões” e as “sabichonas” queelaboram com pormenores seus pacotes chegam a explicitar, mas quase sempredeixamimplícitoemseudiscursoqueumdosobjetivosprecípuosdospacotes,quenão chamam assim, é possibilitar uma prática docente que forjementes críticas,audazesecriadoras.Eaextravagânciadeumatalexpectativaestáexatamentenacontradiçãochocanteentreocomportamentoapassivadodaprofessora,escravadopacote, domesticada a seus guias, limitada na aventura de criar, contida em suaautonomiaenaautonomiadesuaescolaeoqueseesperadapráticadospacotes:criançaslivres,críticas,criadoras.

Creioqueumdoscaminhostáticosparaprofessorascompetentes,politicamenteclaras, críticas, que, recusando ser tias, se afirmam profissionalmente comoprofessoras,édesmitificaroautoritarismodospacotesedasadministraçõespacoteiras,naintimidadedeseumundo,queétambémodeseusalunos.Nasuasaladeaula,fechadaaporta,dificilmenteseumundoédesvelado.

Éporissoqueasadministraçõesautoritárias,algumasatédizendo-seavançadas,procuram, por diferentes caminhos, introjetar no corpo das gentes o medo àliberdade.Quandoseconsegueissoaprofessoraguardadentrodesi,hospedada emseucorpo,asombradodominador,a ideologiaautoritáriadaadministração.Nãoestá apenas com seus alunos porque entre ela e eles, vivo e forte, punitivo eameaçador,oarbítrioquenelahabita.7

Estaéaformamenoscaradecontrolare,emcertosentido,amaisperversa.Masháoutra,aqueseservedatecnologia.Deseugabinete,adiretorapodecontrolarouvindo ou vendo e ouvindo o que dizem e o que fazem as professoras naintimidadedeseumundo.

As professoras sabem que o diretor não pode controlar vinte, cinquenta,duzentosprofessoresaomesmotempo,masnãosabemquandolhescabeavezdesê-lo.Daí a necessária inibição. As professoras, em tal situação, viram, para usarexpressão ao gosto da professora Ana Maria Freire,8 “corpos interditados”,proibidosdeser.

Umadasmanhasde certos autoritários cujodiscursobemquepodiadefenderqueprofessoraétiae,quantomaisbemcomportadamelhorparaaformaçãodeseussobrinhos,éaque falaclaramentedequeaescolaéumespaçoexclusivodopuroensinar e do puro aprender.De um ensinar e de um aprender tão tecnicamente

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tratados,tãobem-cuidadoseseriamentedefendidosdanaturezapolíticadoensinare do aprender que torna a escola os sonhos de quempretende a preservação do“statusquo”.

Nãosendoneutrooespaçodaescola,nãosignificaporémquedevatransformar-se numa espécie de terreiro de um partido no governo. O que, contudo, não épossível é negar ao partido no governo a coerência altamente pedagógica,indispensável, entre suas opções políticas, suas linhas ideológicas e sua práticagovernamental. Preferências políticas reconhecíveis ou ficando desnudas atravésdasopçõesdegoverno,explicitadasdesdea fasedacampanhaeleitoral, reveladasnosplanosdegoverno,napropostaorçamentária,queéumapeçapolíticaenãosótécnica, nas linhas fundamentais de educação, de saúde, de cultura, de bem-estarsocial;napolíticadetributação,nodesejoounãodereorientarapolíticadosgastospúblicos; no gozo comque a administração prioriza a boniteza das áreas já bem-tratadasdacidadeemdetrimentodasáreasenfeiadas[sic]daperiferia.

Como,porexemplo,esperardeumaadministraçãodemanifestaopçãoelitista,autoritária,queconsidere,nasuapolíticaeducacional,aautonomiadasescolas?Emnomedachamadapós-modernidadeliberal?Queconsidereaparticipaçãorealdosedas que fazem a escola, dos zeladores e cozinheiras às diretoras, passando pelosalunos,pelas famíliaseatépelosvizinhosdaescola,namedidaemqueestavásetornando uma casa da comunidade? Como esperar de uma administraçãoautoritária, numa Secretaria qualquer, que governe através de colegiados,experimentandoossaboreseosdissaboresdaaventurademocrática?

Comoesperardeautoritárioseautoritáriasaaceitaçãododesafiodeaprendercom os outros, de tolerar os diferentes, de viver a tensão permanente entre apaciência e a impaciência; como esperar do autoritário ou autoritária que nãoestejam demasiado certos de suas certezas? O autoritário, que se alonga emsectário,vivenociclofechadodesuaverdadeemquenãoadmitenemdúvidasemtornodela,quantomaisrecusas.

Pode-se dizer, semmedode errar, queuma administração autoritária foge dademocraciacomoodiabodacruz.

Acontinuidadeadministrativadecujanecessidadesevemfalandoentrenóssópoderia existir plenamente se, na verdade, a administração da coisa pública nãoestivesseenvolvidacomsonhosecomalutaparamaterializá-los.Seaadministraçãoda cidade,doestado,dopaís fosseumacoisaneutra; se a administraçãoda coisapública pudesse ser reduzida, em toda a sua extensão, a um puro fazer técnico,fazerque,porsuavez,enquantotécnico,pudesseserneutro.Eistonãoexiste.

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Vejonestadiscussãodois aspectos centrais.Deum lado, a carência entrenós,ainda,deumacompreensãomaiscríticadogoverno,dospartidos,dapolítica,daideologia.Pensa-se,porexemplo,emgrandemedida,queaadministraçãodependetotalmentedafiguraqueseelegeparaachefiadoexecutivo.Delaoudeletudoseespera para a primeira semana de governo. Não se tem uma compreensão dogovernocomototalidade.

Recentemente me disse amiga minha ter ouvido de seu cabeleireiro, assíduofrequentador do Teatro Municipal, há anos, estar absolutamente convencido dequedificilmentepoderiaalguémàfrentedaSecretariaMunicipaldeCultura,desdequeelaexiste, se teraelaentreguede formamaiscompetente,maiscrítica,maissériadoqueMarilenaChauíaelasedeu.“Nãovotei,porém,emSuplicy”,disseocabeleireiro de minha amiga, “porque Erundina, tão petista quanto ele, não fezgrandesobras”.

Para esse homem, amorosodas artes, da dança, damúsica, da cultura, enfim,nadadoquefoirealizadopelaSecretariadaCulturatinhaquever,primeiro,comErundina,segundo,nadadissopodiasearrolarentregrandesobras.

“Encontramos a Secretaria Municipal de Educação”, disse recentemente osecretárioMárioSergioCortella, fatodeque sou testemunha, “com63%de suasescolas deterioradas— algumas tiveram de ser interditadas. Entregamos agora aadministraçãocom67%desuasescolasemótimoestado”.

Grandesobrassãoapenasviadutos,túneis,praçasarborizadasnaszonasfelizesdacidade.

Osegundoaspectoaquegostariadereferir-menadiscussãodestetemaéodaresponsabilidadedacidadania.Seráaconsciênciacríticadenossaresponsabilidadesocialepolítica,enquantosociedadecivil,nãoparasubstituirastarefasdoEstado,deixando-odormirempaz,masaprendendoamobilizar-noseaorganizar-nosparamelhorfiscalizarocumprimentoouonãocumprimento,porpartedoEstado,dosseus deveres constitucionais, que poderemos caminhar no sentido de um amplodiálogo, no seio da sociedade civil, juntando legítimas representações suas e ospartidos,progressistaseconservadores,nosentidodeestabelecer-sequaisoslimitesmínimos que poderiam se conciliar com contraditórios interesses dos diferentessegmentosdasociedade.Querdizer,estabelecer-seoslimitesdentrodosquaisessasdiferentes forças político-ideológicas se sentiriam em paz para a continuidade daadministraçãopública.

Oquemeparece lamentáveléqueobrasmateriaisouprogramasdenaturezasocial sejam abandonados exclusiva ou preponderantemente porque o novo

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administrador tem raivas pessoais de seu antecessor. Por isso, então, paralisa oandamentodealgoquetinhasignificaçãosocial.

Por outro lado, não vejo por que nem como administração que assume ogoverno com discurso e propostas progressistas deva manter, em nome dacontinuidadeadministrativa,programasindiscutivelmenteelitistaseautoritários.

Às vezes certo discurso neoliberal critica candidatos e partidos de corteprogressistaacusando-osdeestaremsuperadosporideológicos;queopovojánãoaceitataisdiscursos,masosdiscursostécnicosecompetentes.Emprimeirolugar,não há discurso técnico e competente que não seja naturalmente ideológicotambém.

Paramimoqueopovorecusa,cadavezmais,sobretudotratando-sedepartidosprogressistas, é a insistência anti-histórica de se comportarem “stalinistamente”.Partidos progressistas que, perdendo o endereço da História, se comportam decerta forma que mais parecem velhas escolas tradicionais do começo do século,ameaçandoesuspendendomilitantescujocomportamentonão lhesagrada.Essaslideranças não percebem que nem sequer podem sobreviver se se conservammodernas quantomais tradicionalmente arbitrárias.O que aHistória lhes exige équesetornempós-modernamenteprogressistas.É istoqueopovoespera;écomistoqueseuseleitoressensíveisecríticos,sincronizadoscomaHistória,sonham.

Paramimoqueopovorecusaéadiscurseirasectária,osslogansenvelhecidoseo que nem sempre nos vem sendo fácil é perceber que não se pode, em termoscríticos,esperardecandidatodepartidoautoritárioeelitistaumgovernopopular.Não creio possível superar as razões das distorções a que somos levados nacompreensãodoqueéboapolíticaoumápolíticadegastospúblicosaqueseachaassociada a questão do que são grandes obras ou não, trabalhando apenas osobstáculosnoprocessodeconhecermaiscriticamentedadosobjetivosdarealidade.Temos que trabalhar os obstáculos ideológicos sem o que não preparamos ocaminhoparalucidamenteperceber,porexemplo,queentremimeocandidatoemquemvotohámuitomaisdoqueumarelaçãoafetivaoudegratidão.Sesougratoaumapessoareacionáriapossoedevomanifestarminhagratidãoaela.Masminhagratidãonãopodeestarenvolvidacomointeressepúblico.Seminhautopia,meusonho,peloquallutoaoladodetantosoutros,sãoocontrárioantagônicodosonhodocandidatoreacionário,nãopossoneleounelavotar.Minhagratidãonãopodemelevaratrabalharcontrameusonhoquenãoésómeu.Nãotenhoodireitodeexpô-loparapagarumadívidaqueésóminha.

VotaremAouBnãoéumaquestãodeajudarAouBaseelegermasdelegara

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alguém,emcertoníveldepoderpolítico,nademocracia,apossibilidadedebrigarporumsonhopossível.Emnenhumahipótese,pois,devoepossovotaremalguémque,eleitooueleita,vaibrigarcontrameusonho.

Éincrívelquecontinuemosavotarparaoexecutivonumcandidatoprogressistamas,parao legislativonumreacionário simplesmenteporquenosajudouumdiausandoseupoder.

Voltemos umpouco à compreensão do que se considera como sendo grandesobras. Em primeiro lugar, esta compreensão se acha fortemente marcada pelaideologiadominante.Assimcomosóosquetêmpoderdefinemouperfilamosquenãootêm,definemtambémoqueébomgosto,oqueéético,oqueébonito,oqueébom.Asclassespopulares,subordinadas,aointrojetaraideologiadominante,introjetam, semdúvida, obviamente,muitos de seus critérios de valor.É precisoporémreconhecer-sequeesteéumprocessodialéticoenãomecânico.Istosignificaque as classes populares recusam, às vezes, sobretudo quando se achamexperimentando-senalutapolíticaemfavordeseusdireitosedeseusinteresses,aforma em que as dominantes pretendem pô-las. Às vezes refazem a ideologiadominante com elementos próprios. De qualquer maneira, porém, para muitagentepopulardeverdade,grandesobras sãooquesãoparaasclassesdominantes.Avenidas,jardins,embelezamentodoquejáestábonitonacidade,túneis,viadutos,obras que, indiscutivelmente podendo significar algum interesse para as classespopulares, pois que a cidade é uma totalidade, não atendem contudo àsnecessidadesprioritáriasdasclassespopularesmasàsdasclassesabastadas.

Não quero sequer sugerir que uma administração progressista, democrática,radical,masjamaissectária,deixederesponderaosdesafioscomquesedebatenasáreas ricas da cidade somente porque são problemas de ricos. Rigorosamente osproblemasdacidadesãoproblemasdacidade.Atingem,deformadiferente,écerto,masatingemaricoseapobres.Mas,oquenãoéaceitáveléqueumaadministraçãoprogressista não se sintanodever indeclinável dehierarquizar os gastos públicosem função das reais e gritantes necessidades, muitas delas dramáticas, daspopulaçõesexpoliadas.

Entrepavimentarquilômetrosderuas,nasáreasrenegadas,cuidardecórregos,construirescolascomquesediminuemosdéficitsquantitativosdenossaeducaçãoeessesdéficitsnãoseregistramnasáreasfelizesdopaís,tornaraassistênciamédico-hospitalar suficiente quantitativamente e crescentemente melhor, multiplicar onúmerodecreches,cuidardaexpressãoculturaldopovoouembelezarojábonito,

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permitindo ainda que os ricos não paguem impostos, uma administração séria,democrática,progressista,nãopodeterdúvida.

Osr.PauloMaluf,antesmesmodetomarpossedaadministraçãodacidadedeSãoPaulo, fez exatamenteo que dele se poderia esperar: em face da questão doImpostoPredialeTerritorial secolocoucontraos interessesdasmaioriasdevidaprecária. Pronunciou-se,mais do que isso, alinhou-se na defesa de uma alíquotaúnicade0,6%paraotributocomoquepossibilitaqueosricospaguemmenos.9

Oquetenhopretendidodeixarclaro,comotesequedefendo,équeospartidosprogressistasoudeesquerda,poisqueadireitacontinuaaexistir,nãopodemcairnesseconto,odequeasideologiasseacabarame,apartirdaí,passaraentenderaluta política como uma disputa sem cor e sem cheiro. Disputa em que só acompetência técnica e a competência para melhor comunicar os objetivos e asmetasdegovernovalem.

É interessanteobservarcomo,nosdebatespelatelevisãocomseuoponente,ocandidato vitorioso à Prefeitura de São Paulo insistia, recentemente, em que sópropunhaquestõesdenaturezaadministrativaenãopolíticaouideológica.Eofaziarevelando um enorme esforço para convencer-se a si mesmo de que as questõesadministrativas, castas e puras, intocadas do ideológico e do político, são realmenteneutras.

Ograndeadministradorparaessetipodeastúciaéoquenuncaexistiu.Éoquetocanomundo,interferenele,comajustezadeseusabertécnicotãograndeetãopuroquecomove.Éoquetementreoutrospoderesodeabolirasclassessociais,ode desconhecer que as diferenças entre a existência enquanto ricos e a existênciaenquantopobrescriam,geram,necessariamente,nunsenoutros,formasdiferentesdeestarsendo,gostosesonhosdiferentes,formasdepensar,deatuar,devalorar,de falar, diferentes, culturas diferentes e que tudo isso tem que ver com opçõespolíticas,comcaminhosideológicos.

Quanto mais a esquerda se deixe ninar por essa cantiga tanto menospedagogicamenteatuaemenoscontribuiparaaformaçãodeumacidadaniacrítica.Daíainsistênciacomquemerepito—oerrodosprogressistasnãoestáemfazercampanhasdeconteúdo ideológico.Estasdeveriamsercadavezmaisbemfeitas,deixandoclaroàsclassespopularesqueasdiferençasdeclasse,dequeelastêmumconhecimentonomínimosensível,quelheschegapelapele,pelocorpo,pelaalmanão podem ser negadas e que elas, as diferenças, têm que ver com os projetospolíticos,comasmetasdegoverno,comacomposiçãodeste.Queumacoisaéodiscursoeleitoreiro,demagógicodeumcandidato,outraéasuapráticaseequando

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eleito. Collor se dizia candidato dos descamisados e nunca, entre nós, osdescamisadosficarammaisdesnudosetragicamenteperdidosdoquenoperíododedescalabrosededespudordeseugoverno.

Oerrodasesquerdasestevequasesemprenaabsolutacertezaemsuascertezasque as fazia sectárias, autoritárias, religiosas. Na sua convicção de que nada foradelas tinha sentido, na sua arrogância, na sua inimizade com a democracia, paraelasamelhormaneiraquetinhamasclassesdominantesdeimplantaremantersua“ditaduradeclasse”.

O erro dehoje, ouo risco de corrê-lo, está emque, atônitas comoque vemocorrendo a partir das mudanças na ex-União Soviética, ora reativem o medo àliberdade,araivadademocracia,oraseentreguemapáticasaomitodaexcelênciado capitalismo, aceitando, assim, contraditoriamente, que as campanhas políticasnãosãoideológicas.Háaindaoutroerroouoriscodecorrê-lo,odeacreditaremnapós-modernidade reacionária segundo a qual, com a morte das ideologias, odesaparecimentodasclassessociais,dosonho,dautopia,aadministraçãodacoisapúblicaéquestãodepuratécnica,desvinculadadapolíticaedaideologia.

Neste sentido, por exemplo, é que se explica que militantes de esquerda atéoutrodiaaceitemhojeassessoriasdegovernosantagônicosasuasvelhasopções.Sejánãoháclassessociais,setudoémaisoumenosamesmacoisa,seomundoéalgoopacizado,osinstrumentoscomqueoperamessemundoopacosãoosnãomenoscinzentosinstrumentostécnicos.

Que as classes dominantes, acreditando nisto ou descrendo disto, difundam aideologia damorte das ideologiasme parece comportamento ideológico própriodelas.

Que uma pessoa progressista ontem se torne reacionária hoje me parecepossível,aindaquelamentável.Oquenãopossoaceitaréqueessedeslocamentodeum polo a outro seja visto ou dele se fale como quem simplesmente andou, selocomoveunomesmoplano,poisquejánãohápolos,nemdireitanemesquerda.Acaminhadaétécnica,semcheiro,semcor,semsabor.Isso,não!

Eporquemepermitoesseaparentedesviodotemabásico:Professora, sim; tia,não?

Exatamenteporqueodesvioépuramentefictício.Atentativadereduziraprofessoraàcondiçãodetiaéuma“inocente”armadilha

ideológicaemque,tentando-sedarailusãodeadocicaravidadaprofessora,oquese tenta é amaciar a sua capacidade de luta ou entretê-la no exercício de tarefasfundamentais.Entreelas,porexemplo,adedesafiarseusalunos,desdeamaistenra

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e adequada idade, através de jogos, de estórias, de leituras para compreender anecessidade da coerência entre discurso e prática. O discurso sobre a defesa dosfracos,dospobres,dosdescamisadoseapráticaemfavordoscamisadosecontraosdescamisados.Odiscursoquenegaaexistênciadasclassesociais,seusconflitos,eapráticapolíticaemfavorexatamentedospoderosos.

Adefesaouapuraaceitaçãodequeénormalaprofundadiferençaquehá,àsvezes,entreodiscursodocandidatoenquantotaleseudiscursodepoisdeeleito.Nãomeparece éticoviver essa contradiçãooudefendê-la comocomportamentocorreto. Não é com práticas assim que ajudamos a formação de uma cidadaniavigilanteeindispensávelaodesenvolvimentodademocracia.

Finalmente,atesedeProfessora,sim;tia,não,éque,enquantotioseoutiaseouprofessores,todosnóstemosodireitoouodeverdelutarporele,odireitodesernósmesmos,deoptar,dedecidir,dedesocultarverdades.

Professora,porém,éprofessora.Tiaétia.Épossívelsertiasemamarossobrinhos,semgostarsequerdesertia,masnãoé

possível serprofessora semamarosalunos,mesmoqueamar, só,nãobaste—esemgostardoquesefaz.Émaisfácil,porém,sendoprofessora,dizerquenãogostadeensinar,doque,sendotia,dizerquenãogostadesertia.Reduziraprofessoraatiajogaumpoucocomessetemorembutido—odetiarecusarsertia.

Nãoépossíveltambémserprofessorasemlutarporseusdireitosparaqueseusdeverespossamsermelhorcumpridos.Masvocêqueestámelendoagoratemtodoodireitode, sendooupretendendo ser professora, querer ser chamadade tiaoucontinuaraser.

Nãopode,porém,édesconhecerasimplicaçõesescondidasnamanhaideológicaqueenvolveareduçãodacondiçãodeprofessoraàdetia.

PauloFreire12-12-1992

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Notas

5 GeorgesSnyders,LaJoieàl’école.Paris:PUF,1986.

6 AnoréaPellegriniMarques.

7 Interessante,apropósitodesteassunto,aleituraentreoutrasdeFranzFanon,OscondenadosdaTerra.Riodejaneiro;CivilizaçãoBrasileira,1979[JuizdeFora:UFSF,2002].AlbertMemmi,Retratodocolonizado,precedidodoretratodocolonizador.SãoPaulo:PazeTerra,1989[RiodeJaneiro:CivilizaçãoBrasileira,2007];ePauloFreire,Pedagogia do oprimido ePedagogia da esperança. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977, 4ª edição [48ª edição, SãoPaulo:PazeTerra,2011],SãoPaulo:PazeTerra,1992[17ªedição,SãoPaulo:PazeTerra,2011].

8 AnaMariaFreire,AnalfabetismonoBrasil:Da ideologiada interdiçãodocorpoà ideologianacionalistaoudecomodeixarsemlereescreverdesdeasCatarinas(Paraguaçu),Filipas,Madalenas,Anas,Genebras,ApolônioseGráciasatéosSeverinos.SãoPaulo:CortezEditora,1989.

9 Ver“OIPTUdeMaluf”,Editorial,FolhadeS.Paulo,27dedezembrode1992.

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PRIMEIRASPALAVRAS

Não sei se quem leia [sic] este livro perceberá facilmente o prazer com que oescrevi. Foramquase doismeses emque à sua redação entreguei parte demeusdias, o maior tempo em meu escritório, em nossa casa minha e de Nita mastambémemaviõesequartosdehotéis.Masnãofoiapenascomprazerqueescreviestetrabalho.Escrevi-otocadoporumfortesentidodecompromissoético-políticoe com decidida preocupação em torno da comunicação que busco estabelecer atodoinstantecomassuaseosseusprováveisleitores.

Precisamenteporqueestouconvencidodequeaproduçãodacompreensãodotexto não é tarefa exclusiva do seu autor, mas também do leitor do texto, meexperimentei durante todoo tempoemqueo escrevi no exercíciodedesafiar asleitorase leitoresaentregar-seàocupaçãodeproduzir tambémsuacompreensãodemeutexto.Daíasobservaçõeseassugestõesquefiz,commedoquasedecansaros leitores, para, usando instrumentos como dicionários, enciclopédias etc., nãoabandonaraleituradenenhumtextopornãoconhecerasignificaçãotécnicadestaoudaquelapalavra.

Esperoconfiantequenenhumaleitoraouleitordeixarádelerestelivroemsuatotalidadesimplesmenteporquelhetenhafaltadoadecisãodetrabalharumpoucomais.Que abandone a leitura porqueo livronão lhe agrade, porqueo livronãocoincidacomsuasaspiraçõespolítico-pedagógicas,issoéumdireitoquelheassiste.De qualquer maneira, porém, é sempre bom ler textos que defendem posiçõespolíticasdiametralmenteopostas àsnossas.Emprimeiro lugar, ao fazê-lo,vamosaprendendoasermenossectários,maisradicais,maisabertos;emsegundolugar,terminamospordescobrirqueaprendemostambémnãoapenascomodiferentedenósmasatécomonossoantagônico.

Recentemente tive experiência profundamente significativa neste sentido.Coincidentementeconheciumempresárioque,segundomedisserindonofimda

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conversa,metinhacomoumaespéciedemalfeitordoBrasil.Reminiscênciadoquedemimdiziamalgunsjornaisnosanos1960.

“Foiumprazer conhecê-lodeperto.Nãodiria queme converti às suas ideiasmas mudei radicalmente a minha apreciação em torno do senhor”, disseconvincente.

Voltei para casa contente. De vez em quando o Brasil melhora, apesar das“recaídas”queoabalam...

Como já salientei antes, uma preocupação que não podia deixar de me teracompanhado durante todo o tempo em que me dediquei à escrita e à leiturasimultâneadeste texto foiaquemeengaja,desde fazmuito,na lutaemfavordeumaescolademocrática.Deumaescolaque,continuandoaserumtempo-espaçode produção de conhecimento, emque se ensina e emque se aprende, entende,contudo, ensinar e aprender de formadiferente.Emque ensinar já nãopode seresteesforçode transmissãodochamadosaberacumuladoque fazumageraçãoàoutra e aprender a pura recepção do objeto ou do conteúdo transferido. Pelocontrário,girandoemtornodacompreensãodomundo,dosobjetos,dacriação,daboniteza,daexatidãocientífica,dosensocomum,ensinareaprendergiramtambémem torno da produção daquela compreensão, tão social quanto a produção dalinguagem,queétambémconhecimento.

Exatamentecomonocasodaproduçãodacompreensãodotextoqueselê,queétambémtarefadoleitor,étarefaigualmentedoeducandoparticipardaproduçãodacompreensãodoconhecimentoquesupostamenteapenasrecebedoprofessor.Daí,anecessidadedaradicalidadedodiálogo,comoselodarelaçãognosiológicaenãocomopuracortesia.

Nãopoderiaencerrarestaspalavrasprimeirassemalgunsagradecimentos.Emprimeirolugar,aJorgeClaudio,amigoeeditor,quemepediu(efacilmente

meconvenceu)queeuescrevesseestelivrojátrazendoànossacasaoprópriotítulodo trabalho. A Jorge Claudio penso que devo não só agradecer a sugestão e opedido que me fez mas elogiar, de um lado, o seu empenho para que o textotomasse corpo, de outro, a fraterna posição que sempre assumiu sem jamaismetelefonar a pretexto de nada para, no fundo, saber se eu me achava ou nãotrabalhandonolivro.DevoagradecertambémàsprofessorasSuraiaJamalBatistaeZaquieJamaleàsalunasdoCursodeMagistériodoColégioSagradoCoraçãodeJesuseCEFAMdaEEPGEdmundodeCarvalhoquepartilharamcomigosuaslutasedescobertas,naetapapreliminardeproduçãodestelivro.

MeumuitoobrigadoaNita,pelapaciênciacomquemeaturouduranteosdias

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mais intensosde redaçãodo textomas, sobretudo, pelas sugestões temáticas quemefez,apontandoumaspectoaquioutroali,àluzdesuaprópriaexperiênciacomoex-professoradeHistóriadaEducaçãodealgunscursosdeformaçãodomagistérioemSãoPaulo.

Finalmente, devo ainda agradecer aMadalena FreireWeffort, a FátimaFreireDowboreaAnaMariaSaulpelaaberturaepelointeressecomquemeouviramecomigofalaramsobrealgumasdeminhasinquietaçõesenquantosimultaneamenteescreviaeliaestetexto.

PauloFreireSãoPaulo

Fevereiro/1993

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Primeiracarta

ENSINAR—APRENDER.LEITURADOMUNDO—LEITURADA

PALAVRA

Nenhumtemamaisadequadoparaconstituir-seemobjetodestaprimeiracartaaquem ousa ensinar do que o da sua significação crítica, assim como o dasignificaçãoigualmentecríticadeaprender.Équenãoexisteensinarsemaprenderecomistoeuquerodizermaisdoquediriasedissessequeoatodeensinarexigeaexistênciadequemensinaedequemaprende.Querodizerqueensinareaprenderse vão dando de tal maneira que quem ensina aprende, de um lado, porquereconhece um conhecimento antes aprendido e, de outro, porque, observando amaneira como a curiosidade do aluno aprendiz trabalha para apreender oensinando-se,semoquenãooaprende,oensinanteseajudaadescobririncertezas,acertos,equívocos.

O aprendizado do ensinante ao ensinar não se dá necessariamente através daretificaçãoqueoaprendizlhefaçadeerroscometidos.Oaprendizadodoensinanteao ensinar se verifica na medida em que o ensinante, humilde, aberto, se achepermanentementedisponívelarepensaropensado,arever-seemsuasposições;emqueprocureenvolver-secomacuriosidadedosalunoseosdiferentescaminhoseveredasqueelaosfazpercorrer.Algunsdessescaminhosealgumasdessasveredasque a curiosidade às vezes quase virgem dos alunos percorre estão grávidos desugestões,deperguntas,quenãoforampercebidasantespeloensinante.Masagora,aoensinar,nãocomoumburocratadamente,masreconstruindooscaminhosdesuacuriosidade,razãoporqueseucorpoconsciente,sensível,emocionado,seabreàsadivinhaçõesdosalunos,àsuaingenuidadeeàsuacriticidade,oensinantequeassimatuatem,noseuensinar,ummomentoricodeseuaprender.Oensinanteaprende

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primeiro a ensinarmas aprende a ensinar ao ensinar algo que é reaprendido porestarsendoensinado.

Ofato,porém,dequeensinarensinaoensinanteaensinarumcertoconteúdonão deve significar, demodo algum, que o ensinante se aventure a ensinar semcompetência para fazê-lo; não o autoriza a ensinar o que não sabe. Aresponsabilidadeética,políticaeprofissionaldoensinantelhecolocaodeverdesepreparar, de se capacitar, de se formar antes mesmo de iniciar sua atividadedocente.Estaatividadeexigequesuapreparação,suacapacitação,suaformaçãosetornemprocessospermanentes.Suaexperiênciadocente,sebempercebidaebemvivida, vai deixando claro que ela, a experiência docente, requer uma formaçãopermanentedoensinante.Formaçãoquesefundanaanálisecríticadesuaprática.

Partamos da experiência de aprender, de conhecer, por parte de quem sepreparaparaa tarefadocente,queenvolvenecessariamente estudar.Obviamente,minhaintençãonãoéescreverprescriçõesquedevamserrigorosamenteseguidas,oquesignificariaumachocantecontradiçãocomtudoodequejáfaleiatéagora.Pelo contrário, o queme interessa aqui, de acordo com o espíritomesmo destelivro, é desafiar seus leitores e leitoras, em torno de certos pontos ou aspectos,insistindo em que há sempre algo diferente a fazer na nossa cotidianidadeeducativa,querdelaparticipemoscomoaprendizes,eportantoensinantesoucomoensinantese,porisso,aprendizestambém.

Nãogostaria,assim,sequer,dedaraimpressãodeestardeixandoabsolutamenteclara a questão do estudar, do ler, do observar, do reconhecer as relações entre osobjetosparaconhecê-los.Estareitentandoclarearalgunsdospontosquemerecematençãonossanacompreensãocríticadessesprocessos.

Comecemos por estudar, que envolvendo o ensinar da ensinante, envolvetambém,deumlado,aaprendizagemanterioreconcomitantedequemensinaeaaprendizagemdoaprendizquesepreparaparaensinaramanhãourefazseusaberpara melhor ensinar hoje, ou, de outro lado, a aprendizagem de quem, criançaainda,seachanoscomeçosdesuaescolarização.

Enquanto preparação do sujeito para aprender, estudar é, em primeiro lugar,umquefazercrítico,criador,recriador,nãoimportaqueeunelemeengajeatravésdaleituradeumtextoquetrataoudiscuteumcertoconteúdoquemefoipropostopela escola ou se o realizo partindo de uma reflexão crítica sobre um certoacontecimentosocialounaturaleque,comonecessidadedaprópriareflexão,meconduzà leiturade textosqueminhacuriosidadeeminhaexperiência intelectualmesugeremouquemesãosugeridosporoutros.

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Assim,aoníveldeumaposiçãocrítica,aquenãodicotomizaosaberdosensocomumdooutrosaber,maissistemático,demaiorexatidão,masbuscaumasíntesedoscontrários,oatodeestudar implica sempreode ler,mesmoquenestenãoseesgote. De ler o mundo, de ler a palavra e assim ler a leitura do mundoanteriormente feita. Mas ler não é puro entretenimento nem tampouco umexercíciodememorizaçãomecânicadecertostrechosdotexto.

Se,naverdade,estouestudando,estoulendoseriamente,nãopossoultrapassarumapágina senão consegui comrelativa clareza, ganhar sua significação.Minhasaídanãoestáemmemorizarporçõesdeperíodoslendomecanicamenteduas,três,quatrovezespedaçosdotextofechandoosolhosetentandorepeti-loscomosesuafixaçãopuramentemaquinalmedesseoconhecimentodequepreciso.

Ler éumaoperação inteligente, difícil, exigente,mas gratificante.Ninguém lêou estuda autenticamente se não assume, diante do texto ou do objeto dacuriosidadeaformacríticadeseroudeestarsendosujeitodacuriosidade,sujeitoda leitura, sujeito do processo de conhecer em que se acha. Ler é procurar oubuscar criar a compreensão do lido, daí, entre outros pontos fundamentais, aimportânciadoensinocorretodaleituraedaescrita.Équeensinaraleréengajar-se numa experiência criativa em torno da compreensão. Da compreensão e dacomunicação. E a experiência da compreensão será tão mais profunda quantosejamosnelacapazesdeassociar, jamaisdicotomizar,osconceitosemergentesnaexperiência escolar aos que resultam do mundo da cotidianidade. Um exercíciocríticosempreexigidopelaleituraenecessariamentepelaescritaéodecomonosdarmos facilmente à passagem da experiência sensorial que caracteriza acotidianidadeàgeneralizaçãoqueseoperanalinguagemescolaredestaaoconcretotangível.Umadasformasderealizarmosesteexercícioconsistenapráticaaquemevenhoreferindocomo“leituradaleituraanteriordomundo”,entendendo-seaquicomo “leitura do mundo” a “leitura” que precede a leitura da palavra e queperseguindo igualmente a compreensão do objeto se faz no domínio dacotidianidade. A leitura da palavra, igualmente fazendo-se em busca dacompreensãodotextoe,portanto,dosobjetosnelereferidos,nosremete,agora,àleitura anterior do mundo. O que me parece fundamental deixar claro é que aleituradomundoqueé feitaapartirdaexperiênciasensorialnãobasta.Mas,poroutro lado, não pode ser desprezada como inferior pela leitura feita a partir domundoabstratodosconceitosquevaidageneralizaçãoaotangível.

Certa vez, uma alfabetizanda nordestina discutia, em seu Círculo de Cultura,umacodificação10 que representavaumhomemque, trabalhandoobarro, criava

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com as mãos, um jarro. Discutia-se, através da “leitura” de uma série decodificações que, no fundo, são representações da realidade concreta, o que écultura. O conceito de cultura já havia sido apreendido pelo grupo através doesforçodacompreensãoquecaracterizaaleitura,domundoeoudapalavra.Nasuaexperiênciaanterior,cujamemóriaelaguardavanoseucorpo,suacompreensãodoprocesso em que o homem, trabalhando o barro, criava o jarro, compreensãogestadasensorialmente,lhediziaquefazerojarroeraumaformadetrabalhocomque, concretamente, se sustentava. Assim como o jarro era apenas o objeto,produtodotrabalhoque,vendido,viabilizavasuavidaeadesuafamília.

Agora, ultrapassando a experiência sensorial, indo mais além dela, dava umpasso fundamental: alcançava a capacidade de generalizar que caracteriza a“experiência escolar”.Agora, criar o jarro como trabalho transformador sobre obarronãoeraapenasaformadesobreviver,mastambémdefazercultura,defazerarte. Foi por isso que, relendo sua leitura anterior domundo e dos quefazeres nomundo, aquela alfabetizanda nordestina disse segura e orgulhosa: “Faço cultura.Façoisto.”

Noutra ocasião presenciei experiência semelhante do ponto de vista dainteligência do comportamento das pessoas. Já me referi a este fato em outrotrabalhomasnãofazmalqueoretomeagora.

Me achava na Ilha de São Tomé, na África Ocidental, no Golfo da Guiné.Participava com educadores e educadoras nacionais, do primeiro curso deformaçãoparaalfabetizadores.

Havia sidoescolhidopelaequipenacionalumpequenopovoado,PortoMont,regiãodepesca,paraserocentrodasatividadesdeformação.Haviasugeridoaosnacionais que a formação dos educadores e educadoras se fizesse não seguindocertosmétodostradicionaisqueseparampráticadeteoria.Nemtampoucoatravésdenenhumaformadetrabalhoessencialmentedicotomizantedeteoriaepráticaeque ou menospreza a teoria, negando-lhe qualquer importância, enfatizandoexclusivamente a prática, a única a valer, ou negando a prática fixando-se só nateoria. Pelo contrário, minha intenção era que, desde o começo do curso,vivêssemosarelaçãocontraditóriaentrepráticaeteoria,queseráobjetodeanálisedeumademinhascartas.

Recusava,porissomesmo,umaformadetrabalhoemquefossemreservadososprimeiros momentos do curso para exposições ditas teóricas sobre matériafundamental da formação dos futuros educadores e educadoras. Momento para

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discursosdealgumaspessoas,asconsideradascomoasmaiscapazesparafalaraosoutros.

Minha convicção era outra. Pensava numa forma de trabalho em que, numaúnicamanhã, se falasse de alguns conceitos-chave— codificação, descodificação,porexemplo—comoseestivéssemosnumtempodeapresentações,sem,contudo,nemdelongeimaginarqueasapresentaçõesdecertosconceitosfossemjásuficientesparaodomíniodacompreensãoemtornodeles.Adiscussãocríticasobreapráticaemqueseengajariaméqueofaria.

Assim, a ideia básica, aceita e posta em prática, é que os jovens que sepreparariam para a tarefa de educadoras e educadores populares deveriamcoordenaradiscussãoemtornodecodificaçõesnumCírculodeCulturacomvintee cinco participantes. Os participantes do Círculo de Cultura estavam cientes deque se tratava de um trabalho de formação de educadores.Discutiu-se com elesantes sua tarefapolítica—adenosajudarnoesforçode formação, sabendoqueiam trabalhar com jovens em pleno processo de sua formação. Sabiam que elesassimcomoosjovensaserformadosjamaistinhamfeitooqueiamfazer.Aúnicadiferençaqueosmarcavaéqueosparticipantesliamapenasomundoenquantoosjovensaserformadosparaatarefadeeducadoresliamjáapalavratambém.Jamais,contudo,haviamdiscutidoumacodificaçãoassimcomojamaishaviamtidoamaismínimaexperiênciaalfabetizandoalguém.

Em cada tarde do curso, com duas horas de trabalho com os vinte e cincoparticipantes,quatrocandidatosassumiamadireçãodosdebates.Osresponsáveispelo curso assistiam em silêncio, sem interferir, fazendo suas notas. No diaseguinte,no semináriodeavaliaçãoe formação,dequatrohoras, sediscutiamosequívocos, os erros, os acertos dos candidatos, na presença do grupo inteiro,desocultando-secomeles,ateoriaqueseachavanasuaprática.

Dificilmenteserepetiamoserroseosequívocosquehaviamsidocometidoseanalisados.Ateoriaemergiamolhadadapráticavivida.

Foiexatamentenumadastardesdeformaçãoque,duranteadiscussãodeumacodificaçãoque retratavaPortoMont, com suas casinhas alinhadas àmargemdapraia,emfrenteaomar,comumpescadorquedeixavaseubarcocomumpeixenamão, que dois dos participantes, como se houvessem combinado, se levantaram,andaramatéajaneladaescolaemqueestávamose,olhandoPortoMontlálonge,disseram,defrentenovamenteparaacodificaçãoquerepresentavaopovoado:“É.PortoMontéassimenãosabíamos.”

Atéentão,sua“leitura”dolugarejo,deseumundoparticular,uma“leitura”feita

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demasiado próxima do “texto”, que era o contexto do povoado, não lhes haviapermitidoverPortoMontcomoeleera.Haviaumacerta“opacidade”quecobriaeencobriaPortoMont.Aexperiênciaqueestavamfazendode“tomardistância”doobjeto,nocaso,dacodificação dePortoMont, lhespossibilitavaumanova leituramaisfielao“texto”,querdizer,aocontextodePortoMont.A“tomadadedistância”quea“leitura”dacodificaçãolhespossibilitouos“aproximou”maisdePortoMontcomo“texto”sendo lido.Estanova leiturarefeza leituraanterior,daíquehajamdito:“É.PortoMontéassimenãosabíamos.”Imersosnarealidadedeseupequenomundo,nãoeramcapazesdevê-la.“Tomandodistância”dela,emergirame,assim,aviramcomoatéentãojamaisatinhamvisto.

Estudar édesocultar, é ganhar a compreensãomais exata doobjeto, é percebersuas relações com outros objetos. Implica que o estudioso, sujeito do estudo, searrisque,seaventure,semoquenãocrianemrecria.

Por isso também é que ensinar não pode ser um puro processo, como tantotenho dito, de transferência de conhecimento da ensinante ao aprendiz.Transferênciamecânica de que resulte amemorizaçãomaquinal que já critiquei.Ao estudo crítico corresponde um ensino igualmente crítico que demandanecessariamente uma forma crítica de compreender e de realizar a leitura dapalavraealeituradomundo;leituradotextoeleituradocontexto.

Aformacríticadecompreenderederealizaraleituradapalavraealeituradomundo está, de um lado, na não negação da linguagem simples, “desarmada”,ingênua, na sua não desvalorização por constituir-se de conceitos criados nacotidianidade, no mundo da experiência sensorial; de outro, na recusa ao que sechama de “linguagem difícil”, impossível, porque desenvolvendo-se em torno deconceitosabstratos.Pelocontrário,aformacríticadecompreenderederealizaraleituradotextoeadocontextonãoexcluinenhumadasduasformasdelinguagemoude sintaxe.Reconhece, todavia, queo escritorqueusa a linguagemcientífica,acadêmica, ao dever procurar tornar-se acessível, menos fechado, mais claro,menosdifícil,maissimples,nãopodesersimplista.

Ninguémquelê,queestuda,temodireito,porexemplo,deabandonaraleiturade um texto como difícil porque não entendeu o que significa a palavraepistemologia.

Assimcomoumpedreironãopodeprescindirdeumconjuntodeinstrumentosdetrabalhosemosquaisnãolevantaasparedesdacasaqueestásendoconstruída,assim também o leitor estudioso precisa de instrumentos fundamentais sem osquaisnãopodelerouescrevercomeficácia.Dicionários,11entreelesoetimológico,

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oderegimesdeverbos,oderegimesdesubstantivoseadjetivos,ofilosófico;odesinônimosedeantônimos,enciclopédias.Aleituracomparativadetexto,deoutroautorquetrateomesmotemacujalinguagemsejamenoscomplexa.

Usaressesinstrumentosdetrabalhonãoé,comoàsvezessepensa,umaperdade tempo. O tempo que eu uso, quando leio ou escrevo ou escrevo e leio, naconsultadedicionárioseenciclopédias,naleituradecapítulosoutrechosdelivrosquepodemmeajudarnaanálisemaiscríticadeumtemaétempofundamentaldemeutrabalho,demeuofíciogostosodeleroudeescrever.

Enquantoleitores,nãotemosodireitodeesperar,muitomenosdeexigir,queosescritoresfaçamsuatarefa,adeescrever,equaseanossa,adecompreenderoescrito, explicando a cada passo, no texto ou numanota ao pé da página, o quequiseramdizercomistoouaquilo.Seudever,comoescritores,éescreversimples,escreverleve,éfacilitarenãodificultaracompreensãodoleitor,masnãodaraeleascoisasfeitaseprontas.

Acompreensãodoqueseestá lendo,estudando,nãoestalaassim,derepente,comosefosseummilagre.Acompreensãoétrabalhada,éforjadaporquemlê,porquemestudaque,sendosujeitodela,sedeveinstrumentarparamelhorfazê-la.Porissomesmo,ler,estudaréumtrabalhopaciente,desafiador,persistente.Nãoétarefaparagentedemasiadoapressadaoupoucohumildeque,emlugardeassumirsuasdeficiências, as transfere para o autor ou autora do livro considerado comoimpossíveldeserestudado.

Éprecisodeixarclaro,também,queháumarelaçãonecessáriaentreoníveldoconteúdodo livroeonívelda atual formaçãodo leitor.Estesníveis envolvemaexperiência intelectualdoautoredo leitor.Acompreensãodoquese lê temquevercomessarelação.Quandoadistânciaentreaquelesníveisédemasiadogrande,quando um não tem nada que ver com o outro, todo esforço em busca dacompreensão é inútil. Não está havendo, neste caso, uma consonância entre oindispensáveltratamentodostemaspeloautorouautoradolivroeacapacidadedeapreensãoporpartedoleitorouleitoradalinguagemnecessáriaàqueletratamento.Por issomesmo é que estudar é uma preparação para conhecer, é um exercíciopacienteeimpacientedequem,nãopretendendotudodeumavez,lutaparafazeravezdeconhecer.

Aquestãodousonecessáriodeinstrumentosindispensáveisànossaleituraeanossotrabalhodeescreverlevantaoproblemadopoderaquisitivodoestudanteedas professoras e professores em face dos custos elevados para obter dicionáriosbásicosda língua,dicionários filosóficos etc.Poder consultar todoessematerial é

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umdireitoquetêmalunoseprofessorasaquecorrespondeodeverdasescolasdefazer-lhespossívelaconsulta,equipandooucriandosuasbibliotecas,comhoráriosrealistas de estudo. Reivindicar esse material é um direito e um dever deprofessoreseestudantes.

Gostariadevoltaraalgoaquefizreferênciaanteriormente:arelaçãoentrelereescrevercomoprocessosquenãopodemseparar-se.Comoprocessosquesedevemorganizar de talmodo que ler e escrever sejam percebidos como necessários paraalgo, como sendo alguma coisa de que a criança, como salientou Vygotsky,12necessitaenóstambém.

Em primeiro lugar, a oralidade precede a grafia mas a traz em si desde oprimeiromomentoemqueossereshumanossetornaramsocialmentecapazesdeir exprimindo-se através de símbolos que diziam algo de seus sonhos, de seusmedos,desuaexperiênciasocial,desuasesperanças,desuaspráticas.

Quando aprendemos a ler o fazemos sobre a escrita de alguém que antesaprendeualereaescrever.Aoaprenderalernospreparamosparaimediatamenteescreverafalaquesocialmenteconstruímos.

Nas culturas letradas, não se pode estudar, buscar conhecer, apreender asubstantividadedoobjeto, reconhecercriticamentea razãode serdoobjeto, semleresemescrever.

Umdosequívocosquecometemosestáemdicotomizarlerdeescrevere,desdeocomeçomesmodaexperiênciaemqueascriançasensaiamseusprimeirospassosnaprática da leitura e da escrita tomarmos esses processos como algo desligado doprocesso geral de conhecer. Essa dicotomia entre ler e escrever nos acompanhasempre,comoestudanteseprofessores.“Tenhoumadificuldadeenormedefazerminhadissertação.Nãoseiescrever”,éaafirmaçãocomumqueseouvenoscursosdepós-graduaçãodequetenhoparticipado.Nofundo,issolamentavelmenterevelaoquantonosachamoslongedeumacompreensãocríticadoqueéestudaredoqueéensinar.

É preciso que o nosso corpo, que socialmente vai se tornando atuante,consciente,falante,leitore“escritor”seapropriecriticamentedesuaformadevirsendoquefazpartedesuanatureza,históricaesocialmenteconstituindo-se.Querdizer,énecessárioquenãoapenasnosdemoscontadecomoestamossendomasnosassumamosplenamentecomoestes“seresprogramadosparaaprender”,dequenos fala François Jacob.13 É necessário então que aprendamos a aprender, valedizer, que entre outras coisas, demos à linguagem oral e escrita, a seu uso, aimportânciaquelhevemsendocientificamentereconhecida.

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Aosqueestudamos,aosqueensinamose,porisso,estudamostambém,senosimpõe, ao lado da necessária leitura de textos, a redação de notas, de fichas deleitura, a redação de pequenos textos sobre as leituras que fazemos.A leitura debons escritores, debons romancistas, debonspoetas, dos cientistas, dos filósofosquenãotememtrabalharsua linguagemàprocuradaboniteza,dasimplicidadeedaclareza.14

Se nossas escolas, desde amais tenra idade de seus alunos se entregassem aotrabalhodeestimularnelesogostodaleituraeodaescrita,gostoquecontinuasseaser estimulado durante todo o tempo de sua escolaridade haveria possivelmenteumnúmerobastantemenordepós-graduandos falandodesua insegurançaoudesuaincapacidadedeescrever.

Se estudar para nós não fosse quase sempre um fardo, se ler não fosse umaobrigação amarga a cumprir, se, pelo contrário, estudar e ler fossem fontes dealegriaedeprazer,dequeresultatambémoindispensávelconhecimentocomquenosmovemosmelhornomundo,teríamosíndicesmelhorreveladoresdaqualidadedenossaeducação.

Esteéumesforçoquedevecomeçarnapré-escola,intensificar-senoperíododaalfabetizaçãoecontinuarsemjamaisparar.

A leituradePiaget,deVygotsky,deEmiliaFerreiro,deMadalenaF.Weffort,entreoutros,assimcomoaleituradeespecialistasquetratamnãopropriamentedaalfabetizaçãomasdoprocessodeleituracomoMarisaLajoloeEzequielTheodorodaSilvaédeindiscutívelimportância.

Pensandonarelaçãodeintimidadeentrepensar,lereescreverenanecessidadeque temos de viver intensamente essa relação, sugeriria a quem pretendarigorosamente experimentá-la que, pelo menos, três vezes por semana, seentregasseàtarefadeescreveralgo.Umanotasobreumaleitura,umcomentárioemtornodeumacontecimentodequetomouconhecimentopela imprensa,pelatelevisão,nãoimporta.Umacartaparadestinatárioinexistente.Éinteressantedatarospequenostextoseguardá-losparadoisoutrêsmesesdepoissubmetê-losaumaavaliaçãocrítica.

Ninguémescrevesenãoescrevercomoninguémnadasenãonadar.Nãogostariadeconcluiressacartasemsublinharalgocomque,deixandoclaro

que o uso da linguagem escrita, portanto o da leitura, está em relação com odesenvolvimento das condições materiais da sociedade, não pareça que venhodiscutindoesteproblemadeumpontodevistaidealista.

Recusando qualquer interpretaçãomecanicista da história, recuso igualmente a

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idealista. A primeira reduz a consciência à pura cópia das estruturasmateriais dasociedade; a segunda submete tudo ao todo-poderosismo da consciência. Minhaposição é outra. Entendo que estas relações entre consciência e mundo sãodialéticas.15

O que não é correto, porém, é esperar que as transformações materiais seprocessem para que depois comecemos a encarar corretamente o problema daleituraedaescrita.

A leitura crítica dos textos e domundo temque ver com a suamudança emprocesso.

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Notas

10 Sobrecodificação,leituradomundo—leituradapalavra—sensocomum,conhecimentoexato,aprender,ensinar,ver:PauloFreire,Educaçãocomopráticadaliberdade;Educaçãoemudança;Açãoculturalparaaliberdadeeoutrosescritos;Pedagogiadooprimido;Pedagogiadaesperança,PazeTerra,1975[33ªedição,2011];1979[34ªedição,2011];1976[13ªedição,2011];1977[48ªedição,2011];1992[17ªedição,2011].PauloFreireeSérgioGuimarães,Sobreeducação.Riode Janeiro:Paz eTerra, 1982.Para as edições de 2011,optou-sepor trabalhar cada livrode forma independente.Dessamaneira,Sobre educação: diálogos I tornou-sePartirdainfância:diálogossobreeducação.[NE.]PauloFreireeIraShor,Medoeousadia,ocotidianodoprofessor.RiodeJaneiro:PazeTerra,1986. [13ªedição,2011]PauloFreireeDonaldoMacedo,Alfabetização,leituradomundoeleituradapalavra.[2ªedição,2011],3ªed.,RiodeJaneiro.PazeTerra,1990.PauloFreire,Aimportânciadoatodeler,SãoPaulo,CortezEditora,1982.Paulo Freire e Márcio Campos, “Leitura do mundo — leitura da palavra”, Le Courrier de L’UNESCO, Paris,fevereirode1991.

11 VerPauloFreire,Pedagogiadaesperança.

12 Luis C. Moll (org.), Vygotsky and Education. Instructional Implications and Applications of SociohistoricalPsychology,Cambridge,CambridgeUniversityPress,1992.

13 FrançoisJacob,“Noussommesprogrammés,maispourapprendre”,LeCourrierdeL’UNESCO,Paris,fevereirode1991.

14 VerPauloFreire,Pedagogiadaesperança.

15 VeraestepropósitoPauloFreire,Pedagogiadaesperança.

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Segundacarta

NÃODEIXEQUESEUMEDODODIFÍCILPARALISEVOCÊ

Nestacarta,necessariamente, retomareialgunsaspectos já tocados, sobretudo,naanterior.

Creioqueomelhorpontoparacomeçaradiscutironúcleocentraldacartaéconsideraraquestãodadificuldade,aquestãododifícil,emfacedequeomedosesitua.

Diz-sedealgumacoisaqueédifícilquandoenfrentá-laou lidarcomela se fazalgopenoso,querdizer,quandoapresentaobstáculodealgumnível.Medoporsuavez, é um “sentimento de inquietação ante a noção de um perigo real ouimaginário”.16 Medo de enfrentar a tempestade. Medo da solidão. Medo de nãopodercontornarasdificuldadespara,finalmente,entenderumtexto.

Há sempre uma relação entre medo e dificuldade, medo e difícil. Mas, nestarelação,obviamente,seachatambémafiguradosujeitoquetemmedododifíciloudadificuldade.Osujeitoquetemeatempestade,quetemeasolidãoouquetemenãopoder contornar as dificuldades para finalmente entender o texto ou criar ainteligênciadotextoouproduzi-la.

Nestarelaçãoentreosujeitoquetemeasituaçãoouoobjetodomedoháaindaoutro elemento componente que é o sentimento de insegurança do sujeitotemeroso. Insegurança para enfrentar o obstáculo. Falta de força física, falta deequilíbrioemocional,faltadecompetênciacientífica,realouimaginária,dosujeito.

Aquestãoquesecolocaanósnãoé,deumlado,negaromedo,mesmoquandooperigoqueogeraéfictício.Omedo,porém,emsiéconcreto.Aquestãoquesenosapresentaénãopermitirqueomedofacilmentenosparaliseounospersuadadedesistirdeenfrentarasituaçãodesafiantesemlutaesemesforço.

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Diante domedo, seja do que for, é preciso que, primeiro, nos certifiquemos,comobjetividade,daexistênciadasrazõesquenosprovocamomedo.Segundo,seexistentes realmente, compará-las com as possibilidades de que dispomos paraenfrentá-lascomprobabilidadedeêxito.Terceiro,quepodemosfazerpara,seforocaso,adiandooenfrentamentodoobstáculo,nostornemosmaiscapazesparafazê-loamanhã.

Comestasreflexõesestouquerendosublinharqueodifícilouadificuldadeestásempreemrelaçãocomacapacidadederespostadosujeitoque,emfacedodifícileda avaliação de simesmo quanto à capacidade de resposta, terámais oumenosmedo ou nenhum medo ou medo infundado ou, reconhecendo que o desafioultrapassaoslimitesdomedoseafundanopânico.Opânicoéoestadodeespíritoqueparalisaosujeitoemfacedeumdesafioreconhecidosemnenhumadificuldadecomo absolutamente superior a qualquer tentativa de resposta. Tenho medo dasolidãoemesintoempâniconumacidadeaçoitadapelaviolênciadeumterremoto.

Gostaria, aqui, de me fixar apenas nas reflexões em torno do medo de nãoentenderumtextodecujainteligêncianecessitamosnoprocessodeconhecimentoemqueestamosenvolvidosemnossaformação.Omedoparalisantequenosvenceantesmesmodetentar,maisenergicamente,acompreensãodotexto.

Setomoumtexto,cujacompreensãodevotrabalhar,necessitosaber:

1]seminhacapacidadederespostaestáàalturadodesafio,queéotextoasercompreendido;

2]seminhacapacidadederespostaestáaquém;e

3]seminhacapacidadederespostaestáalém.

Seminhacapacidadederespostaestáaquém,nãodevonempossopermitirquemeumedodenãoentendermeimobilizee,considerandominhatarefa impossíveldeserrealizadasimplesmenteaabandone.Seminhacapacidadederespostaseachaaquémdasdificuldadesdecompreensãodotexto,devo,comaajudadealguémenão só do professor ou professora que indicou a leitura, procurar superar pelomenos algumas das limitações queme dificultam a tarefa. Às vezes, a leitura dealgumtextoexigealgumaconvivênciaanteriorcomoutroquenospreparaparaumpassomaisacima.

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Umdoserrosmaisfunestosquepodemoscometer,enquantoestudamos,comoalunosouprofessores,éoderecuaremfacedoprimeiroobstáculocomquenosdefrontamos.Éodenãoassumirmosaresponsabilidadequeatarefadeestudarnosimpõe,como,deresto,qualquertarefaofazaquemadevecumprir.

Estudaréumquefazerexigenteemcujoprocessosedáumasucessãodedor,deprazer,de sensaçãodevitórias,dederrotas,dedúvidasedealegria.Masestudar,por issomesmo, implicaa formaçãodeumadisciplina rigorosaque forjamosemnós mesmos em nosso corpo consciente. Não pode esta disciplina ser doada ouimpostaanósporninguém,semqueistosignifiquedesconheceraimportânciadopapeldoeducadoremsuacriação.Dequalquermaneiraousomossujeitosdelaouelavirapurajustaposiçãoanós.Ouaderimosaoestudocomo,inclusive,deleite,ouoassumimoscomonecessidadeeprazerouoestudoépuro fardoe,comotal,oabandonamosnaprimeiraesquina.

Quanto mais assumimos esta disciplina tanto mais nos fortalecemos parasuperaralgumasameaçasaelae,portanto,àcapacidadedeestudareficazmente.

Umadessasameaçasé,porexemplo,aconcessãoquefazemosanósprópriosejá referida na carta anterior, de não consultar nenhum instrumento auxiliar detrabalho como dicionários, enciclopédias etc. Deveríamos incorporar à nossadisciplinaintelectualohábitodeconsultarestesinstrumentosatalpontoque,semeles,tivéssemosdificuldadeparaestudar.

Fugiraoprimeiroembateépermitirqueomedo,nocaso,omedodenãochegara bom termo no processo de inteligência do texto, nos imobilize. E assim, nãochegamosmesmoabomtermo.Daíaacusaroautorouautoradeincompreensíveléumpasso.

Outraameaçaaoestudosério,queéumadasformasmaisnegativasdefugiràsuperação das dificuldades que temos e não o texto em si próprio é proclamar ailusãodequeestamosentendendo,sem,contudo,pôràprovanossaafirmação.

Nãotenhoporquemeenvergonharpelofatodenãoestarentendendoalgoqueestou lendo.Se,porém,o textoquenãoestoucompreendendo fazpartedeumarelaçãobibliográficatidacomofundamental,atéparaqueeupercebaeconcordeounãocomqueémesmofundamental,eutenhodesuperarasdificuldadeseentenderotexto.

Nãoéexagerado repetirque ler, comoestudo,nãoépasseardisponivelmentesobreasfrases,assentençaseaspalavrasdotextosemnenhumapreocupaçãocomsaberaondeelasnospodemlevar.

Outra ameaça ao cumprimento da tarefa difícil e prazerosa de estudar que

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resultadafaltadadisciplinadequefaleiéatentaçãoquenosperseguede,durantealeitura,largarmosapáginaimpressaevoarmoscomaimaginaçãoparabemlonge.De repente, estamos fisicamente com o livro em frente a nós e o lemosmaquinalmenteapenas.Nossocorpoestáaquimasonossogostoestánumapraiatropicaldistante.Assim,realmente,nãoépossívelestudar.

Temosdeestarprevenidosparao fatodeque raramenteum texto seentregafacilmenteàcuriosidadedoleitor.Poroutrolado,nãoéqualquercuriosidadeaquepenetra ou se adentra na intimidade do texto para desnudar suas verdades, seusmistérios,suasinseguranças.Mas,acuriosidadeepistemológica—aque,tomandodistânciadoobjeto,deleseaproximacomoímpetoeogostodedesvelá-lo.Eessacuriosidadefundamentalaindanãobasta.Éprecisoque,servindo-nosdela,quenos“aproxima” do texto para seu exame, a ele nos demos também ou a ele nosentreguemos.Paraisso,énecessárioqueevitemosigualmenteoutrosmedosqueocientificismonosinoculou.Omedo,porexemplo,denossossentimentos,denossasemoções,denossosdesejos,omedodequeponhamaperdernossacientificidade.Oque eu sei sei commeu corpo inteiro: comminhamente críticamas tambémcommeus sentimentos, comminhas intuições, comminhas emoções.O que eunãopossoépararsatisfeitoaoníveldossentimentos,dasemoções,das intuições.Devo submeter os objetos de minhas intuições a um tratamento sério, rigorosomasnuncadesprezá-los.

Emúltimaanálise,aleituradeumtextoéumatransaçãoentreosujeitoleitoreo texto, como mediador do encontro do leitor com o autor do texto. É umacomposiçãoentreoleitoreoautoremqueoleitor,esforçando-secomlealdadenosentidodenãotrairoespíritodoautor,“re-escreve”otexto.Enãoépossívelfazerisso sem a compreensão crítica do texto que, por sua vez, exige a superação domedodeleresevaidandonoprocessodecriaçãodaqueladisciplinaintelectualdequefalei.Insistamosnadisciplinareferida.Elatemquevercomaleiturae,porissomesmo,comaescrita.Nãoépossívellersemescrevereescreversemler.

Outro aspecto importante e que desafia mais ainda o leitor enquanto “re-criador” do texto que lê é que a compreensão do texto não se acha depositada,estática,imobilizadanassuaspáginasàesperadequeoleitoradesoculte.Sefossetotalmenteassim,nãopoderíamosdizerquelercriticamenteé“re-escrever”olido.Por isso, falei antesna leituracomo composição entreo leitoreoautoremqueasignificaçãomaisprofundadotextoétambémcriaçãodoleitor.

Estepontonostrazànecessidadedaleituratambémcomoexperiênciadialógica,emqueadiscussãodotextorealizadaporsujeitosleitoresesclarece,iluminaecriaa

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compreensãogrupaldo lido.Nofundo,a leituraemgrupofazemergirdiferentespontos de vista que, expondo-se uns aos outros, enriquecem a produção dainteligênciadotexto.

DasmelhorespráticasquetenhotidonoBrasileforadoBrasil,comaleitura,eucitariaasquerealizeicoordenandoogrupodeleituraemtornodotexto.

Oquetenhoobservadoéqueatimidezemfaceda leituraouoprópriomedotendemasersuperadoseastentativasdeinvençãodosentidodotextoenãosódesuadescobertasãoliberadas.

Antes da leitura em grupo, obviamente, como preparação para ela, cadaparticipantefazsualeituraindividual.Consultaesteouaqueleinstrumentoauxiliar.Estabelece esta ou aquela interpretação de um ou de outro trecho da leitura.Oprocessodecriaçãodacompreensãodoquesevai lendovaisendoconstruídonodiálogo entre os diferentes pontos de vista em torno do desafio, que é o núcleosignificativodoautor.

Comoautor,maisdoquesatisfeito,euexultariaseviesseasaberqueestetextoprovocaraemleitoraseleitoresseusalgumtipodeleituracomprometidacomoassobreoquevenhoinsistindonocorpointeirodestelivro.Nofundo,estedeveserosonho legítimo de todo autor — ser lido, discutido, criticado, melhorado,reinventado,porseusleitores.

Voltemosumpoucoaesteaspectodaleituracríticasegundooqualoleitorsetornaouvaisetornandoigualmenteprodutordainteligênciadotexto.Oleitorserátãomaisprodutordacompreensãodotextoquantosefaçarealmenteapreensordacompreensãodoautor.Eleproduzainteligênciadotextonamedidaemqueelasetornaconhecimento que o leitor criou e não conhecimento que lhe foi justapostopelaleituradolivro.

Quandoeuapreendoacompreensãodoobjetoemlugardememorizaroperfildoconceitodoobjeto,euconheçooobjeto,euproduzooconhecimentodoobjeto.Quandooleitoralcançacriticamenteainteligênciadoobjetodequeoautorfalaoleitorconheceainteligênciadotextoesetornacoautordestainteligência.Nãofaladela como quem apenas dela ouviu falar. O leitor trabalhou e retrabalhou ainteligênciadotextoporissoelanãoestavalá, imobilizada,àsuaespera.Nistoseencontraodifícileoapaixonantedoatodeler.

Infelizmente,demodogeral,oquesevemfazendonasescolasélevarosalunosaapassivar-seaotexto.Osexercíciosdeinterpretaçãodaleituratendemaserquasesuacópiaoral.Acriançacedopercebequesuaimaginaçãonãojoga:équasealgoproibido, uma espécie de pecado. Por outro lado, sua capacidade cognitiva é

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desafiada de maneira distorcida. Ela não é convidada, de um lado, a reviverimaginativamente,aestóriacontadanolivro;deoutro,aapropriar-seaospoucos,dasignificaçãodoconteúdodotexto.

Seria certamente através da experiência de recontar a estória, deixando suaimaginação, seus sentimentos, seus sonhos e seus desejos livres para criar que acriança terminaria por arriscar-se a produzir a inteligência mais complexa dostextos.

Nadaouquasenadasefaznosentidodedespertaremanteracesa,viva,curiosa,a reflexão conscientemente crítica, indispensável à leitura criadora, quer dizer, aleituracapazdedesdobrar-senareescritadotextolido.

Essa curiosidade necessária a ser estimulada pela professora ou professor noaluno leitor contribui decisivamente para a produção do conhecimento doconteúdo do texto que, por sua vez, se torna fundamental para a criação da suasignificação.

É bem verdade que, se o conteúdo da leitura tem que ver com um dadoconcreto da realidade social ou histórica ou da biologia, por exemplo, ainterpretaçãodaleituranãopodetrairodadoconcreto.Masistonãosignificadevero estudante leitor memorizar textualmente o lido e repetir o discurso do autormecanicamente. Esta seria uma “leitura bancária”17 em que o leitor “comeria” oconteúdodotextodoautorcomaajudado“professornutricionista”.

Insisto na indiscutível importância da educadora no aprendizado da leituraindicotomizáveldodaescritaaqueoseducandosdevementregar-se.Adisciplinademapeartematicamenteotexto18quenãodeveserexclusivamenterealizadapelaeducadora mas também pelos educandos, desvelando interações dos temas unscomosoutrosnacontinuidadedodiscursodoautor,ochamamentodaatençãodosleitoresparaascitaçõesfeitasnotextoeparaopapeldasmesmas,anecessidadedesublinhar o momento estético da linguagem do autor, de seu domínio sobre alinguagem,sobreovocabulárioequeimplicasuperaradesnecessáriarepetiçãodeumamesmapalavratrês,quatrovezesnumamesmapáginadotexto.

Exercíciodemuitariquezadequetenhotidonotícia,vezououtra,mesmoquenãorealizadoemescolas,épossibilitaradoisoutrêsescritores,deficçãoounão,falaraalunosleitoresseus,sobrecomoproduziramseustextos.Comolidaramcoma temática ou com as tramas que envolvem seus temas, como trabalharam sualinguagem,comoperseguiramabonitezanodizer,nodescrever,nodeixaralgoemsuspensoparaqueoleitorexercitesuaimaginação.Comojogamcomapassagem

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de um tempo a outro nas suas estórias. Afinal, como os escritores se leem a simesmosecomoleemaoutrosescritores.

É preciso, finalmente, que os educandos, experimentando-se cada vez maiscriticamentena tarefade ler ede escreverpercebamas tramas sociais emque seconstitui e se reconstitui a linguagem, a comunicação e a produção doconhecimento.

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Notas

16 NovoDicionárioAurélio.

17 VerPauloFreire,Pedagogiadooprimido.

18 VerPauloFreire,Açãoculturalparaaliberdadeeoutrosescritos.

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Terceiracarta

DEFALARAOEDUCANDOAFALARAELEECOMELE;DEOUVIRO

EDUCANDOASEROUVIDAPORELE

Partamos da tentativa de inteligência do próprio enunciado, em cujo primeirocorposediz:Defalaraoeducandoafalaraeleecomele.Poderíamosorganizaresteprimeirocorpo,semprejudicar-lheosentido,assim:Domomentoemquefalamosao educandoaomomentoemque falamoscom ele;oudanecessidadede falaraoeducando à necessidade de falar com ele ou ainda: é importante vivermos aexperiênciaequilibrada,harmoniosa,entrefalaraoeducandoefalarcom ele.Querdizer,hámomentosemqueaprofessora,enquantoautoridade, falaao educando,diz o que deve ser feito, estabelece limites sem os quais a própria liberdade doeducandoseperdenalicenciosidade,masestesmomentos,deacordocomaopçãopolítica da educadora, se alternam com outros em que a educadora fala com oeducando.

Não é demais repetir aqui essa afirmação, ainda recusada por muita gente,apesardesuaobviedade,aeducaçãoéumatopolítico.Asuanãoneutralidadeexigeda educadora que se assuma como política e viva coerentemente sua opçãoprogressista, democrática ou autoritária, reacionária, passadista ou se,espontaneísta, que se defina por ser democrática ou autoritária. É que oespontaneísmo, que às vezes dá a impressão de que se inclina pela liberdadetermina por trabalhar contra ela.O clima de licenciosidade que ele cria, de valetudo,reforçaasposiçõesautoritárias.Poroutrolado,certamente,oespontaneísmonegaaformaçãododemocrata,dohomemedamulherlibertando-senaepelalutaem favor do ideal democrático assim como nega a “formação” do obediente, doadaptado,comquesonhaoautoritário.Oespontaneístaéanfíbio—vivenaáguae

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naterra—nãoteminteireza,nãosedefineconsistentementepela liberdadenempelaautoridade.

Seuclimaéodalicenciosidadeemquecurteseumedoàliberdade.Daíqueeutenha faladonanecessidadedeo espontaneísta, superando sua indecisãopolítica,finalmente se definir em favor da liberdade, vivendo-a autenticamente ou contraela.

Esteé,comoestamosvendonaanálisequerealizamos,umproblemaemqueseinsere a questão da liberdade e da autoridade em suas relações contraditórias.Questãomuitomaismalcompreendidaentrenósdoquelucidamenteentendida.

O fato mesmo de estarmos sendo uma sociedade marcadamente autoritária,com forte tradição mandonista, com inequívoca inexperiência democráticaenraizadananossahistória,podeexplicarnossaambiguidadeemfacedaliberdadeedaautoridade.

Éimportantenotar,também,queessaideologiaautoritária,mandonista,dequenossa cultura se acha empapada, corta as classes sociais. O autoritarismo doministro,dopresidente,dogeneral,dodiretordaescola,doprofessoruniversitárioéomesmoautoritarismodopeão,docabooudosargento,doporteirodoedifício.Quaisquer dez centímetros de poder entre nós viram facilmente mil metros depoderedearbítrio.

Mas, precisamente porque não fomos ainda capazes, na prática social, deresolveresseproblema,de tê-loclarodiantedenós, tendemosa confundirousocertodaautoridadecomautoritarismoe,assim,porquenegamoseste,caimosnalicenciosidade ou no espontaneísmo pensando que, pelo contrário, estamosrespeitando as liberdades, fazendo, então, democracia. Outras vezes, somosautoritáriosmesmo,masnospensamosedenósdizemosquesomosprogressistas.

Defato,porém,porquerecusooautoritarismonãopossocairnalicenciosidadeda mesma forma como, rejeitando a licenciosidade, não posso me entregar aoautoritarismo. Certa vez afirmei: um não é o contrário positivo do outro. Ocontrário positivo quer do autoritarismo manipulador quer do espontaneísmolicenciosoéaradicalidadedemocrática.

Creioqueestasconsideraçõesvemaclarandootemadestacarta.Possoafirmaragoraque,seaprofessoraécoerentementeautoritáriaelaésempreosujeitodafalaenquantoosalunossãocontinuamenteaincidênciadeseudiscurso.Elafalaa,paraesobreoseducandos.Faladecimaparabaixo,certadesuacertezaedesuaverdade.E até quando fala com o educando é como se estivesse fazendo favor a ele,sublinhando a importância e o poder de sua voz. Esta não é a forma como a

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educadora democrática fala com o educando, nem sequer quando fala a ele. Suapreocupaçãoéavaliar o aluno, é constatar se ele a segueounão.A formaçãodoeducando,enquantosujeitocríticoquedeve lutarconstantementepela liberdade,jamaismoveaeducadoraautoritária.Seaeducadoraéespontaneísta,naposiçãodo“deixa como está para ver como fica”, abandona os educandos a si mesmos eterminapornemfalaranemfalarcomoseducandos.

Se,porém,aopçãodaeducadoraédemocráticaeadistânciaentreseudiscursoesua prática vem sendo cada vez menor, vive, em sua cotidianidade escolar, quesubmetesempreàsuaanálisecrítica,adifícilmaspossíveleprazerosaexperiênciadefalaraoseducandosecomeles.Elasabequeodiálogonãoapenasemtornodosconteúdosaserensinadosmassobreavidamesma,severdadeiro,nãosomenteéválido do ponto de vista do ato de ensinar,mas formador tambémdeum climaabertoelivrenoambientedesuaclasse.

Falaraecomoseducandoséumaformadespretensiosamasaltamentepositivaque temaprofessorademocráticadedar, em suaescola, sua contribuiçãopara aformação de cidadãos e cidadãs responsáveis e críticos. Algo de que tantoprecisamos, indispensável ao desenvolvimento de nossa democracia. A escolademocrática, progressistamente pós-moderna e não a pós-modernamentetradicionalereacionária,temumgrandepapelacumprirnoBrasilatual.

Longe de mim, contudo, ao insistir nesta temática, a da escola pós-modernamente progressista, pensar que a “salvação” do Brasil está nela.Naturalmente, a viabilização do país não está apenas na escola democrática,formadoradecidadãoscríticosecapazesmaspassaporela,necessitadela,nãosefaz sem ela. E é nela que a professora que fala ao e com o educando ouve oeducando, não importa a tenra idade dele ou não e, assim, é ouvida por ele. Éouvindooeducando,tarefainaceitávelpelaeducadoraautoritária,queaprofessorademocrática se prepara cada vez mais para ser ouvida pelo educando. Mas, aoaprender como educando a falar com ele porque o ouviu, ensina o educando aouvi-latambém.

As considerações anteriores em torno da posição autoritária, da posiçãoespontaneístaedaquechamosubstantivamentedemocráticapodemseraplicadas,obviamente, ao problema de ouvir o educando e ser ouvido por ele. Esta é aquestãocrucialdodireitoàvozque têmeducadoraseeducandos.Ninguémviveplenamente a democracia nem tampouco a ajuda a crescer, primeiro, se éinterditado no seu direito de falar, de ter voz, de fazer o seu discurso crítico;

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segundo, se não se engaja, de umaou de outra forma, na briga emdefesa destedireito,que,nofundo,éodireitotambémaatuar.

Assim,porém,comoaliberdadedoeducando,naclasse,precisadelimitesparaquenãosepercanalicenciosidade,avozdaeducadoraedoseducandoscarecedelimites éticos para que não resvale para o absurdo. É tão imoral ter nossa vozsilenciada,nosso “corpo interditado”quanto imoral éousodavozpara falsear averdade,paramentir,paraenganar,paradeformar.

Omeudireitoàvoznãopodeserumdireitoilimitado,odireitodedizeroquebementendadomundoedosoutros.Odeumavozirresponsávelquementesemnenhum mal estar desde que da mentira se espere um resultado favorável aosdesejoseaosplanosdomentiroso.

É preciso e até urgente que a escola vá se tornando um espaço acolhedor emultiplicadorde certos gostosdemocráticos comoodeouvirosoutros,nãoporpuro favormas por dever, o de respeitá-los, o da tolerância, o do acatamento àsdecisõestomadaspelamaioriaaquenãofaltecontudoodireitoaquemdivergedeexprimirsuacontrariedade.Ogostodapergunta,dacrítica,dodebate.Ogostodorespeitoàcoisapúblicaqueentrenósvemsendotratadacomocoisaprivada,mascomocoisaprivadaquesedespreza.

Éincrívelamaneiracomosedesperdiçamascoisasentrenóseemqueextensãoeprofundidade.Basta lera imprensadiáriaeacompanharnoticiáriosde televisãopara nos dar conta dos milhões que se jogam fora pelo desuso de aparelhoscaríssimos de hospitais, pelas obras que, por desonestidade na sua construção, sedeterioram antes do tempo. Obras milionárias que quase misteriosamente seevaporamdeixandoapenasvestígiosdesi.Seosadministradoresresponsáveisportais descalabros fossem punidos, pagassem à nação e ou fossem para a cadeia,obviamentecomdireitodedefesa,asituaçãomelhoraria.

Uma atividade a ser incluída na vida normal político-pedagógica da escolapoderiaseradiscussão,dequandoemvez,decasoscomoosdequefaleiagora.Adiscussão com alunos sobre o que representa para nós, a curto e a longo prazo,semelhantesem-vergonhice.Dopontodevistadodesfalquematerialnaeconomiada nação como do dano ético que esses descalabros nos causam a todos nós. Épreciso mostrar as cifras às crianças, aos adolescentes e dizer-lhes com clareza ecomfirmezaqueofatodeosresponsáveisagiremassim,despudoradamente,nãonosautoriza,naintimidadedenossaescola,aarrebentarasmesas,aestragarogiz,adesperdiçaramerenda,asujarasparedes.

Nãovaledizer:Ospoderososfazemporquenãofaçoeu?Ospoderososroubam

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por que não roubo eu?Os poderososmentempor que nãominto eu?Não vale.Decididamente,nãovale.

Nãoseconstróinenhumademocraciaséria,queimplicamudarradicalmenteasestruturas da sociedade, reorientar a política da produção e do desenvolvimento,reinventar o poder, fazer justiça aos expoliados, abolir os ganhos indevidos eimorais dos todo-poderosos semprévia e simultaneamente trabalhar esses gostosdemocráticoseessasexigênciaséticas.

Umdosequívocosdosmarxistasmecanicistasfoiviverenãoapenaspensarnemtampouco afirmar que, por ser supraestrutura, a educação não tem o que fazerantes que a sociedade seja radicalmente transformada na sua infraestrutura, nassuascondiçõesmateriais.Antes,oquesepodefazeréapropagandaideológicaparaamobilização e a organização das massas populares. Nisto, como em tudo, osmecanicistasfalharam.Piorainda,atrasaramalutaemfavordosocialismoqueelesantagonizaramcomademocracia.19

Um outro gosto democrático, de que o seu contrário antagônico se achaentranhado em nossas tradições culturais autoritárias, é o já referido gosto dorespeitoaosdiferentes.Ogostodatolerânciadequeoracismoemachismofogemcomoodiabodacruz.

O exercício desse gosto democrático, numa escola realmente aberta ou seabrindo teria que cercar o gosto autoritário, racista oumachista, primeiro, em simesmo,comonegaçãodademocracia,dasliberdadesedosdireitosdosdiferentes,comonegação de umnecessário humanismo. Segundo, como expressão de tudoissoe,ainda,comocontradiçãoincompreensívelquandoogostoantidemocrático,não importa qual seja, se expressa na prática de homens ou de mulheresreconhecidoscomoprogressistas.

Que dizer, por exemplo, de um homem considerado como progressista que,apesardodiscursoemfavordasclassespopulares,secomportacomoproprietáriodesuafamília?Homemcujomandonismoasfixiamulher,filhosefilhas?

Quedizerdamulherquelutanadefesadosinteressesdesuacategoriamasque,emcasa,raramenteagradeceàcozinheirapelocopodeáguaqueelalhetrazeque,emconversascomamigas,chamaacozinheirade“essagente”?

É difícil, realmente, fazer democracia. É que a democracia, como qualquersonho,nãosefazcompalavrasdesencarnadas,mascomreflexãoeprática.Nãoéoquedigooquedizqueeusoudemocrata,quenãosouracistaoumachista,masoquefaço.Éprecisoqueoqueeudiganãosejacontraditadopeloquefaço.Éoquefaçoquedizdeminhalealdadeounãoaoquedigo.

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Na luta entre o dizer e o fazer em que nos devemos engajar para diminuir adistânciaentreeles,tantoépossívelrefazerodizerparaadequá-loaofazerquantomudarofazerparaajustá-loaodizer.Porissoacoerênciaterminaporforçarumanovaopção.Nomomentoemquedescubroaincoerênciaentreoquedigoeoquefaço — discurso progressista, prática autoritária, se, refletindo, às vezessofridamente,apreendoaambiguidadeemquemeacho,sintonãopodercontinuarassimebuscoumasaída.Destaforma,umanovaopçãoseimpõeamim.Oumudoodiscursoprogressistaporumdiscursocoerentecomaminhapráticareacionáriaoumudo minha prática por uma democrática, adequando-a ao discursoprogressista.Há finalmente uma terceira opção: a opção pelo cinismo assumido,queconsisteemencarnarlucrativamenteaincoerência.

Achoqueumadas formasde ajudar a democracia entrenós é combater comclareza e segurança os argumentos ingênuos mas fundados no real ou em partedele, segundo os quais não vale a pena votar. Que política é sempre assim, essedescaramento geral, vergonhoso. Que todos são iguais: “Por isso, já ouvi muitoestaafirmação,vouvotaragoraemquemfaz,mesmoqueroube.”

Naverdade,ascoisassãodiferentes.Estaéaformaquenosestásendopossíveldefazerpolítica,masnãoénecessariamenteestaa formaquesempreteremosdefazerpolítica.Nãoéapolíticaquenosfazassim.Nóséquefazemosestapolíticaeindiscutivelmente apolíticaque fazemos, agora, édemelhorqualidadedoque aque se fez na minha infância. E, por fim, não são todos os políticos que fazempolíticaassimnosdiferentesníveisdegovernoeemdiferentespartidospolíticos.

Comoeducadoras e educadores,nãopodemosnos eximirde responsabilidadenaquestãofundamentaldademocraciabrasileiraedecomoparticiparnabuscadeseuaperfeiçoamento.

Como educadoras e educadores somos políticos, fazemos política ao fazereducação. E se sonhamos com a democracia que lutemos, dia e noite, por umaescolaemquefalemosaosecomoseducandosparaque,ouvindo-ospossamosserporelesouvidostambém.

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Nota

19 VerPauloFreire,Pedagogiadaesperança.

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Quartacarta

IDENTIDADECULTURALEEDUCAÇÃO

Refletir, preocupar-nos, perguntar-nos em torno das relações entre a identidadecultural que tem sempre um corte de classe social, dos sujeitos da educação e apráticaeducativaéalgoquesenosimpõe.Équeaidentidadedossujeitostemquevercomasquestõesfundamentaisdecurrículo,tantooocultoquantooexplícitoe,obviamente,comquestõesdeensinoeaprendizagem.

Discutir,porém,aquestãodaidentidadedossujeitosdaeducação,educadoreseeducandos,mepareceque implicadesdeocomeçodetalexercício,salientarque,no fundo,a identidadecultural,expressãocomumenteecadavezmaisusadapornós, não pode pretender exaurir a totalidade da significação do fenômeno cujoconceito é identidade. O atributo cultural, acrescido do restritivo de classe, nãoesgota a compreensão do termo identidade. No fundo, mulheres e homens nostornamos seres especiais e singulares. Conseguimos, ao longo de uma longahistória,deslocardaespécie opontodedecisãodemuitodoque somosedoquefazemosparanósmesmosindividualmentemas,naengrenagemsocialsemaqualnão seríamos também o que estamos sendo. No fundo, nem somos só o queherdamos nem apenas o que adquirimos,mas a relação dinâmica, processual doque herdamos e do que adquirimos. E há algo entre o que herdamos, e queFrançois Jacob enfatiza em entrevista recente aoCourrier de L’UNESCO, que é damaisaltaimportânciaparaacompreensãodenossotema.“Nós”,dizJacob,“somosprogramados,mas,paraaprender”.Eéexatamenteporquenosfoipossível,comainvenção da existência, algo mais que a vida mesma e que nós criamos com osmateriaisqueavidanosofereceu,deslocardaespécieparanósopontodedecisãodemuitodoqueestamoseestaremossendoemais,porque,comainvençãosocial

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da linguagem, lado a lado comaoperação sobreomundo, alongamosomundonaturalquenãofizemosemmundoculturalehistórico,produtosnossos,quenostornamosanimaispermanentemente inscritosnumprocessodeaprenderebuscar.Processoquesósefazpossívelnamedidaemque“nãopodemosviveranãoseremfunçãodoamanhã”.20

Aprenderebuscar,aquenecessariamentesejuntamensinareconhecerque,porsuavez,nãopodemprescindirde liberdade,nãoenquantodoaçãomasenquantoalgo indispensável e necessário, enquanto um “sine qua non” por que temos debrigarincessantemente,fazempartedenossaformadeestarsendonomundo.Eéexatamente porque somos programados mas não determinados, somoscondicionadosmas,aomesmotempo,conscientesdocondicionamento,équenostornamos aptos a lutar pela liberdade como processo e não como ponto dechegada.Épor isso tambémqueo fatode“cadaserconter”,diz Jacob,“emseuscromossomos todoo seu próprio futuro”21 não significa, demodo algum, que anossa liberdade se afogue, se submerja nas estruturas hereditárias como se elasfossemolugarcertoparaosumiçodenossapossibilidadedevivê-la.

Condicionados, programados mas não determinados, movemo-nos com ummínimode liberdadedequedispomosnamoldura cultural para ampliá-la.Destaforma,atravésdaeducaçãocomoexpressãotambémcultural,podemos“explorar”,como adverte François Jacob, “mais ou menos, as possibilidades inscritas noscromossomos”.22

Fica clara a importância da identidade de cada um de nós como sujeito,educador ou educando, da prática educativa. E da identidade entendida nestarelação contraditória, que somos nós mesmos, entre o que herdamos e o queadquirimos.Relaçãocontraditóriaemque,àsvezes,oqueadquirimosemnossasexperiências sociais, culturais, de classe, ideológicas interfere de forma vigorosa,atravésdopoderdosinteresses,dasemoções,dossentimentos,dosdesejos,doquese vem costumando chamar “a força do coração” na estrutura hereditária. Nãosomos, por isso, sóuma coisanem só aoutra.Nem só, repitamos,o inato, nemtampoucooadquirido,apenas.

Achamada“forçadosangue”,parausarumaexpressãopopular,existe,masnãoédeterminante.Comoapresençadoculturalsozinhanãoexplicatudo.

No fundo, a liberdade como façanha criadora dos seres humanos, comoaventura,comoexperiênciaderiscoedecriação, temmuitoavercomarelaçãoentreoqueherdamoseoqueadquirimos.

Asinterdiçõesànossaliberdadesãomuitomaisprodutosdasestruturassociais,

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políticas, econômicas, culturais, históricas, ideológicas do que das estruturashereditárias.Nãopodemosterdúvidasemtornodopoderdaherança cultural,decomo nos conforma e nos obstaculiza de ser. Mas, o fato de sermos seresprogramados, condicionados e conscientes do condicionamento e nãodeterminados é que se faz possível superar a força das heranças culturais. Atransformação do mundo material, das estruturas materiais a que se juntesimultaneamente um esforço crítico-educativo é o caminho para a superação,jamaismecânica,destaherança.

O que não é possível, porém, neste esforço de superação de certas herançasculturaisque,repetindo-sedegeraçãoageraçãodãoàsvezesaimpressãodequesepetrificam,édeixardelevaremconsideraçãoasuaexistência.Ébemverdadequeas mudanças infraestruturais alteram às vezes rapidamente formas de ser e depensar que há muito perduravam. Por outro lado, reconhecer a existência deheranças culturais deve implicar o respeito a elas. Respeito que não significa, demodonenhum,anossaadequaçãoaelas.Onossoreconhecimentodelaseonossorespeitoporelassãocondiçõesfundamentaisparaoesforçodemudança.Poroutrolado,éprecisoestarmosclaroscomrelaçãoaalgoóbvio:essasherançasculturaistêmum inegável cortede classe social.Énelasquevai se constituindomuitodenossa identidade que, por isso mesmo, está marcada pela classe social de queparticipamos.

Pensemos um pouco na identidade cultural dos educandos e do necessáriorespeitoquedevemosaelaemnossapráticaeducativa.

Creio que o primeiro passo na direção deste respeito é o reconhecimento denossaidentidade,oreconhecimentodoqueestamossendonaatividadepráticaemquenosexperimentamos.Énapráticadefazerascoisasdeumacertamaneira,depensar,defalarumacerta linguagem,comoporexemplo:ascançõesdequemaisgostoenão:ascançõesquemaisgosto, semapreposiçãode, regendoopronomeque; énapráticade fazer,de falar,depensar,de tercertosgostos, certoshábitos,que termino por me reconhecer de uma certa forma, coincidente com outrasgentes comoeu.Essasoutras gentes têmcortede classe idênticooupróximodomeu.

Énapráticadeexperimentarmosasdiferençasquenosdescobrimoscomoeusetus.Arigor,ésempreooutroenquantotuquemeconstituicomoeunamedidaemqueeu,comotudooutro,oconstituocomoeu.

Forte tendência nossa é a que nos empurra no sentido de fazer claro que odiferente de nós é inferior. Partimos de que a nossa forma de estar sendo não é

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apenasboamasémelhordoqueadosoutros,diferentesdenós.Aintolerânciaéisso.Éogostoirresistíveldeseoporàsdiferenças.

A classe dominante, porém, devido a seu próprio poder de perfilar a classedominada,primeiro, recusaadiferençamas, segundo,nãopretende ficar igualaodiferente;terceiro,nãotemaintençãodequeodiferentefiqueigualaela.Oqueelapretendeé,mantendoadiferençaeguardandoadistância,admitireenfatizarnaprática,ainferioridadedosdominados.

Um dos desafios aos educadores e às educadoras progressistas, em coerênciacomsuaopçãoé,emsuaprática,nãosesentiremnemprocederemcomosefossemseres inferiores a educandos das classes dominantes da rede privada que,arrogantes,destratamemenosprezamoprofessorde classemédia.Mas também,em oposição, não se sentirem superiores, na rede pública, aos educandos dasfavelas,aosmeninoseàsmeninaspopulares.Aosmeninossemconforto,quenãocomem bem, que não “vestem bonito”, que não “falam certo”, que falam comoutrasintaxe,comoutrasemânticaeoutraprosódia.

O que se coloca à educadora progressista, coerente, nos dois casos não é, noprimeiro,assumirumaposiçãoagressivadequempuramenterevidae,nosegundo,deixar-setentarpelahipótesedequeascrianças,“pobrezinhas”,sãonaturalmenteincapazes.Nemumaposiçãoderevanchenemdesubmissãonoprimeirocaso,masa de quem assume sua responsável autoridade de educadora, nem, no segundocaso,umaatitudepaternalistaoudepreciadoradascriançaspopulares.

Opontodepartidaparaestapráticacompreensivaésaber,éestarconvencidadequeaeducaçãoéumapráticapolítica.Daí, repitamos,aeducadoraépolítica.Emconsequência, é imperioso que a educadora seja coerente com sua opção, que épolítica. Em continuação, que a educadora seja cada vez mais competentecientificamente o que a faz saber o quanto é importante conhecer o mundoconcreto em que seus alunos vivem. A cultura em que se acha em ação sualinguagem, sua sintaxe, sua semântica, sua prosódia, em que se vêm formandocertos hábitos, certos gostos, certas crenças, certos medos, certos desejos nãonecessariamentefacilmenteaceitosnomundoconcretodaprofessora.

A rigor, é inviávelo trabalho formador,docente,que se realizenumcontextoquesepenseteórico,mas,aomesmotempo,façaquestãodepermanecertãolongedoeindiferenteaocontextoconcreto,aomundoimediatodaaçãoedasensibilidadedoseducandos.

Pensarqueépossívelarealizaçãodeumtaltrabalhoemqueocontextoteóricosesepara de tal modo da experiência dos educandos no seu contexto concreto só é

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concebívelaquemjulgaqueoensinodosconteúdossefazindiferentementedoeindependentemente do que os educandos já sabem a partir de suas experiênciasanteriores à escola. E não para quem, com razão, recusa essa dicotomiainsustentávelentrecontextoconcretoecontextoteórico.

O ensino dos conteúdos não pode ser feito, a não ser autoritariamente,vanguardistamente, como se fossem coisas, saberes, que se podem superpor oujustaporaocorpoconscientedoseducandos.Ensinar,aprender,conhecernãotêmnadaquevercomessapráticamecanicista.

Aseducadorasprecisamsaberoquesepassanomundodascriançascomquemtrabalham. O universo de seus sonhos, a linguagem com que se defendem,manhosamente, da agressividade de seu mundo. O que sabem e como sabemindependentementedaescola.

Doisoutrêsanosatrás,doisprofessoresdaUNICAMP,ofísicoCarlosArgueloeo matemático Eduardo Sebastiani Ferreira, participaram de um encontrouniversitárionoParaná,emquesediscutiuoensinodamatemáticaedaciênciaemgeral. Ao voltar para o hotel após a primeira manhã de atividades encontraramnum campo abandonado um grupo de crianças empinando papagaio.Aproximaram-sedosmeninosecomelescomeçaramaconversar.

“Quantos metros de linha você costuma soltar para empinar o papagaio?”,perguntouSebastiani.

“Maisoumenoscinquentametros”,disseomenino.“Comovocêcalculapara saberque soltamaisoumenoscinquentametrosde

linha?”,indagaSebastiani.“Acadatanto,dedoismetrosmaisoumenos”,disseogaroto,“façoumnóna

linha.Quandoa linhavemcorrendonaminhamão,voucontandoosnóseaíseiquantosmetrostenhodelinhasolta”.

“E em que altura você acha que está o papagaio agora?”, perguntou omatemático.

“Quarentametros”,disseogaroto.“Comovocêcalculou?”“Noquantoeudeidelinhaenabarrigaquealinhafez.”“Poderíamoscalcularesseproblema”,dizSebastiani,notextoinéditodeleede

CarlosArguelo,“fundadosnatrigonometriaouporsemelhançadetriângulos”.Ogaroto,noentanto,medisse:“Se o papagaio estivesse alto, bem em cima deminha cabeça, ele estaria, em

altura,osmesmosmetrosquesolteidelinha,mas,comoopapagaioestálongede

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minhacabeça,inclinado,eleestámenosdoqueosmetrossoltosdelinha.”“Houveaí”,dizSebastiani,“umraciocíniodegraus”.Em seguida, indaga Arguelo ao menino sobre a construção do molinete e

Gelsonrespondefazendousodasquatrooperaçõesfundamentais,afirmaArguelo.Ironicamente,arrematao físico,Gelson, tãogentequantoGerson,digoeu,haviasidoreprovadonaescolaemmatemática.Nadadoqueelesabiatinhavalorparaaescolaporqueoqueelesabiahaviaaprendidonasuaexperiêncianaconcretudedeseucontexto.Elenãofalavadeseusabernalinguagemformalebem-comportada,mecanicamentememorizada,queaescolareconhececomoaúnicalegítima.

Coisa pior se dá no domínio da linguagem em que quase sempre sedesrespeitam totalmente a sintaxe, a ortografia, a semântica, a prosódia de classedascriançaspopulares.

Jamaisdisseousequersugeriqueascriançasdasclassespopularesnãodevessemaprenderochamado“padrãoculto”dalínguaportuguesadoBrasil,comoàsvezesseafirma.Oque sempre tenhoditoéqueosproblemasda linguagemenvolvemsemprequestõesideológicase,comelas,questõesdepoder.Porexemplo,seháum“padrão culto” é porque há outro considerado inculto. Quem perfilou o incultocomo tal?Na verdade, o que tenho dito e por queme bato é que se ensine aosmeninosemeninaspopularesopadrãoculto,mas,aofazê-lo,queseressalte:

1]quesualinguagemétãoricaetãobonitaquantoadosquefalamopadrãoculto,razãoporquenãotêmqueseenvergonhardecomofalam;

2] que mesmo assim, porém, é fundamental que aprendam a sintaxe e aprosódiadominantesparaque:

a)diminuamasdesvantagensnalutapelavida;

b) ganhem um instrumento fundamental para a briga necessária contra asinjustiçaseasdiscriminaçõesdequesãoalvo.

É pensando e agindo assim que me sinto coerente com minha opçãoprogressista,antielitista.NãosoudosquecontraindicaramLulaparaaPresidênciadaRepúblicaporquediz“menasverdade”evotaramemCollorcomtantaverdadedemenos.

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Em conclusão, a escola democrática não apenas deve estar permanentementeaberta à realidade contextual de seus alunos, para melhor compreendê-los, paramelhor exercer sua atividade docente, mas também disposta a aprender de suasrelações com o contexto concreto. Daí, a necessidade de, professando-sedemocrática, serrealmentehumildeparapoderreconhecer-seaprendendomuitasvezescomquemsequerseescolarizou.

A escola democrática de que precisamos não é aquela em que só o professorensina,emquesóoalunoaprendeeodiretoréomandantetodo-poderoso.

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Notas

20 FrançoisJacob,“Noussommesprogrammés,maispourapprendre”,LeCourrierdeL’UNESCO.

21 Ibidem.

22 Ibidem.

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Quintacarta

CONTEXTOCONCRETO—CONTEXTOTEÓRICO

Nestacartavoutomarcomoobjetodeminhareflexãonãosóasrelaçõesqueestesdoiscontextos,concretoeoteórico,estabelecementresi,mastambémamaneiracomo,emcadaumdeles,noscomportamos.Épossíveltambém,jáque,emoutrascartas, fizreferênciaaessescontextosque,devezemquando,merepita.Espero,contudo,queasprováveisrepetiçõesajudemmaisaosleitoreseleitorasdoqueosouasaborreçam.

O sentido ou um dos sentidos principais quememotiva a tratar este tema ésublinharaimportânciadarelaçãoemtudooquefazemosenaprópriaexperiênciaexistencialnossaenquantoexperiênciasocialehistórica.Aimportânciadarelaçãodascoisasentreelas,dosobjetosentreeles,daspalavrasentreelasnacomposiçãodasfrasesedestasentresi,naestruturadotexto.Daimportânciadasrelaçõesentreas pessoas, da maneira como se ligam — a agressividade, a amorosidade, aindiferença, a recusa ou a discriminação subreptícia ou aberta. As relações entreeducadoras e educandos, entre sujeitos cognoscentes e objetos cognoscíveis.Deixemosclaro,desdelogo,nãoserobjetodestacartatratartodoesteconjuntoderelaçõesqueensaiamosecomquenosenvolvemosdiariamente,masalgumasdelasqueseachamenglobadasnasquesedãoentreocontextoconcretoeoteórico,emrelaçãoumcomooutro.

Creio que uma das afirmações a ser feitas é que a relação em si, no mundoanimadoenoinanimado,écondiçãofundamentaldavidamesmaedavidacomoseucontrário.

Somos, porém, os únicos seres capazes de poder ser objetos e sujeitos dasrelações que travamos comos outros e com aHistória que fazemos e nos faz e

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refaz. Entre nós e o mundo as relações podem ser criticamente percebidas ouingenuamente percebidas ou magicamente percebidas, mas, entre nós há umaconsciênciadestasrelaçõesaumnívelcomonãoháentrenenhumoutroservivocomomundo.

Entrenósapráticanomundo,namedidaemquecomeçamosnãosóasaberquevivíamosmasasaberquesabíamoseque,portanto,podíamossabermais, iniciouoprocesso de gerar o saber da própria prática. É nesse sentido, de um lado, que omundofoideixandodeserparanós,purosuporte23sobrequeestávamos,deoutro,se tornououveiose tornandoomundocomoqualestamosemrelaçãoedequefinalmenteopuromexernele seconverteuempráticanele.Éassimqueapráticaveio se tornando uma ação sobre omundo desenvolvida por sujeitos a pouco epouco ganhando consciência do próprio fazer sobre o mundo. Foi a prática quefundouafalasobreelaeaconsciênciadela,prática.Nãohaveriaprática,maspuromexernomundosequem,mexendonomundo,nãose tivesse tornadocapazde irsabendooquefaziaaomexernomundoeparaquemexia.Foiaconsciênciadomexerque promoveu o mexer à categoria de prática e fez com que a prática gerassenecessariamenteosaberdela.Nestesentido,aconsciênciadapráticaimplicaaciênciadapráticaembutida,anunciadanela.Destaforma,fazerciênciaédescobrir,desvelarverdadesemtornodomundo,dosseresvivos,dascoisas,querepousavamàesperadodesnudamento,édarsentidoobjetivoaalgoquenovasnecessidadesemergentesdapráticasocialcolocamàsmulhereseaoshomens.

Aciência,quefazerhumanoquesedánaHistóriaquemulheresehomensfazemcomsuapráticanãoé,porissomesmo,um“apriori”daHistória.

Apráticadequetemosconsciênciaexigeegestaaciênciadela.Daí que não possamos esquecer as relações entre a produção, a técnica

indispensávelaelaeaciência.“Umadasciênciasquemaissebeneficioudaprodução”,dizAdolfoVasquez,éa

física. Seu nascimento como tal é tardio: não a conheceram em seu estadocaracterístico nem a Antiguidade grega nem a Idade Média. O fracodesenvolvimento das forças produtivas na sociedade escravista grega e sob ofeudalismodeterminavaquenãosesentissenaépocaanecessidadedecriarafísica.

A ciência física surge na idade moderna com Galileu, correspondendo anecessidadespráticasdaindústrianascente.”24

Mepareceimportante,naalturadestetexto,voltarasalientaranecessidadeque,docontextoteórico,tomemosdistânciadoconcreto,nosentidodepercebercomo,

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na prática nele exercida, se acha embutida a sua teoria, de que, às vezes, nãosuspeitamosouquemalsabemos.

Quando, por exemplo, um jovem índio do interior da Amazônia,me disse oprofessorAdãoCardoso,biólogodaUNICAMP,queforaconvidadopeloíndioparaaprender a usar arpão na pescaria, respondendo à indagação provocadora docientistaquelheperguntaraporqueatiravaoarpãonãonopeixe,masentreopeixeealateraldobarco,respondeu:“Não.Atireinopeixe.Vocênãoviucertoporqueàsvezesosolhosmentem”,oíndioexplicavaàsuamaneira,aonívelda“ciência”quesuapráticapermitia,ofenômenodarefração.

Àcustadesuapráticaedapráticadesuaaldeia,ojovemíndiotinhaintimidadecomofenômenoeooperavacomacerto.Nãotinha,porém,a“raisond’être”dofenômeno.

Há ainda algo que gostaria de comentar com relação a esses dois contextos ecomonelesnoscomportamos.

Comecemospelocontextoconcreto.Pensemosemmomentos importantesdeum dia nosso no contexto de nossa cotidianidade.25 Despertamos, tomamos obanho matinal, saímos de casa para o trabalho. Cruzamos gentes conhecidas ounão. Obedecemos aos semáforos. Se estão verdes, atravessamos as ruas, severmelhos,paramosàespera.Fazemostudoissosemcontudonosperguntarumavezsequerporquefizemos.Nosdamoscontadequefazemosmasnãoindagamosdasrazõesporquefazemos.Éissooquecaracterizaonossomover-nosnomundoconcretodacotidianidade.Agimosnelecomumasériedesaberesqueaoteremsidoaprendidos ao longo de nossa sociabilidade viraram hábitos automatizados. Eporque agimos assim nossa mente não funciona epistemologicamente.26 Nossacuriosidade não se “arma” em busca da razão de ser dos fatos. Simplesmente seacha capaz de perceber que algo não ocorreu como era de esperar ou que seprocessoudiferentemente.Écapazdecedo,quase instantaneamente,nosadvertirdequeháalgoerrado.

Andemosumpoucomaisevejamoscomonosmovemosnocontextoconcretodenosso trabalho, em que as relações entre a prática e o saber da prática sãoindicotomizáveis. Mas, mesmo que indicotomizáveis, no contexto prático,concreto, não atuamoso tempo todo epistemologicamente curiosos. Fazemos ascoisas,porquetemoscertoshábitosdefazê-las.Aindaque,assumindoacuriosidadetípica de quembusca a razão de ser das coisas,mais amiude do que na situaçãodescrita da experiência na cotidianidade, preponderantemente não o fazemos. O

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ideal na nossa formação permanente está em que nos convençamos de e nospreparemosparaousomaissistemáticodenossacuriosidadeepistemológica.

Aquestãocentralquesecolocaanós,educadoraseeducadores,nocapítulodenossaformaçãopermanenteécomo,docontextoteórico,tomandodistânciadenossaprática,desembutimosdelaosaberdela.Aciênciaqueafunda.

Em outras palavras, é como do contexto teórico “tomamos distância” de nossaprática e nos tornamos epistemologicamente curiosos para então apreendê-la nasuarazãodeser.

Édesvelandooquefazemosdestaoudaquelaforma,àluzdeconhecimentoqueaciênciaeafilosofiaoferecemhoje,quenoscorrigimosenosaperfeiçoamos.Éaissoquechamopensarapráticaeépensandoapráticaqueaprendoapensareapraticar melhor. E quanto mais penso e atuo assim, mais me convenço, porexemplo, deque é impossível ensinarmos conteúdos sem saber comopensamosalunos no seu contexto real, na sua cotidianidade. Sem saber o que eles sabemindependentementedaescolaparaqueosajudemosasabermelhoroquejásabem,deumladoe,deoutro,para,apartirdaí,ensinar-lhesoqueaindanãosabem.

Não podemos deixar de levar em consideração as condições desfavoráveis,materiais, que muitos alunos de escolas da periferia da cidade experimentam. Aprecariedadede suashabitações, adeficiênciade suaalimentação, a falta, em seucotidiano,deatividadesdeleituradapalavra,deestudoescolar,aconvivênciacomaviolência,comamortedequesetornamquasesempreíntimos.Tudoisso,édemodo geral, pouco levado em consideração não apenas pela escola básica, deprimeiro grau, em que essas crianças estudam, mas também nas escolas deformação para o magistério. Tudo isso, porém, tem enorme papel na vida dosCarlos, das Marias, das Carmens. Tudo isso marca, inegavelmente, a maneiraculturaldeestarsendodessascrianças.

Certavez,fuiprocurado—oquedevezemquandoacontece—porumgrupodejovensconcluintesdocursodemagistériodeumaescoladeSãoPaulo.

Eram jovens de classe média, com boas condições de vida. Se declaravamassustadas, quase como se estivessem sendo ameaçadas, em face da possibilidadede,cedooutarde,assumiremalgumaclassenumaescoladaperiferia.

“Atravessamos o nosso curso todo”, diziam elas, “sem que jamais se tivessefalado a nós do que é uma favela. Dos meninos e meninas faveladas. O quesabemosdessasáreasdacidade,pelatelevisãoepelosjornais,équeelassãopalcodeabsolutaviolênciaequeascrianças,cedo,setornammarginais”.

Asjovensmefalavamdafavelacomoseelasegerasseasimesmaenãocomo

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resultadodalutapelasobrevivênciaaqueasestruturasinjustasdeumasociedadeperversaempurramos“demitidosdavida”.Mefalavamdafavelacomoorecantodo desvio ético e como o sítio dos perdidos. E me falavam das meninas e dosmeninosfaveladosquasesemesperança.

Emfacede tudo isso,eu,pelomenos,nãovejooutrocaminhoparacaminharcomminharaivalegítima,comminhajustaira,comminhaindignaçãonecessáriasenãoodalutapolítico-democráticadequepossamvirresultandoasindispensáveistransformaçõesnasociedadebrasileirasemasquaisesseestadodecoisasseagravaemlugardedesaparecer.

Grandes obras para mim, por isso, não são os grandes túneis atravessando acidadedeumbairroaoutroouosparquescheiosdeverdepostosnasáreasfelizesdacidade.Sãotudoissotambém,desde,porém,que,prioritariamente,setrabalhepelahumanizaçãodavidadequemvemsendoproibidodeserdesdea“invenção”doBrasil:asclassespopulares.

Nocontextoteórico,odaformaçãopermanentedaeducadora,éindispensávelareflexãocríticasobreoscondicionamentosqueocontextoculturaltemsobrenós,sobre nossa maneira de agir, sobre nossos valores. A influência que as nossasdificuldades econômicas exercem sobre nós, como podem obstaculizar nossacapacidade de aprender, ainda que careçam de poder para nos “emburrecer”. Ocontexto teórico, formador, não pode jamais, como às vezes se pensa,ingenuamente, transformar-se numcontexto de puro fazer. Ele é, pelo contrário,contextodequefazer,depráxis,querdizer,deprática—deteoria.

Adialeticidadeentrepráticaeteoriadeveserplenamentevividanoscontextosteóricos da formação de quadros. Essa ideia de que é possível formar umaeducadorapraticamente,ensinando-lheacomodizerbom-diaaseusalunos,acomomoldar amãodoeducandono traçadodeuma linha, semnenhumaconvivênciaséria com a teoria é tão cientificamente errada quanto a de fazer discursos,preleções teóricas, sem levar em consideração a realidade concreta, ora dasprofessoras ora das professoras e de seus alunos. Quer dizer, desrespeitar ocontextodapráticaqueexplicaamaneiracomosepratica,dequeresultaosaberdaprópriaprática;desconhecerqueodiscursoteórico,pormaiscorretoqueseja,nãopodesuperpor-seaosabergeradonapráticadeoutrocontexto.

Tudoissoimplicaumacompreensãodistorcidadapráticamesma,dateoria.Ospacotes, a que me referi em carta anterior, são um exemplo excelente destacompreensãodistorcidadapráticaedateoria.Umexemploexcelenteatédecomo,entrenós,progressistasatuamreacionariamente.

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Háquarentaanos,quandodiretordeEducaçãodoServiçoSocialdaIndústriadePernambuco, SESI,27 uma das lutas em que me empenhei foi a de enfrentar ainsistência com que mães e pais proletários exigiam de nós que seus filhosaprendessemalereaescreverapartirdoABC.Apartirdoalfabeto,dasletrasenãodasfrasesqueimplicampalavrasemrelação,naestruturadopensamento.

“Foiassim,comacartadoABCnamão,decorandoasletras,quetodomundoque eu conheço e que sabe ler, aprendeu. Meu avô aprendeu assim. Meu paiaprendeuassim.Eu,também.Porquenãomeufilho?”,diziamquaseemcoronoschamadoscírculosdepaiseprofessoresqueeucoordenava.Foiparticipandodaquelesencontros, daqueles debates, que fui tomando conhecimento, de um lado, que apráticasocialdequefazemospartevaigerandoumsaberdelamesmaaqueaelacorresponde,deoutro,o“saberdeexperiênciafeito”temdeserrespeitado,emais,suasuperaçãopassaporele.

Me lembro, hoje ainda, de como fui aprendendo a ser coerente e de que acoerência não é conivência.Deum lado, já naquela época, defendia o direito departicipaçãodasfamíliasnodebatedaprópriapolíticaeducacionaldaescola,mas,deoutro,reconheciaomuitodedesacertodospais,como,porexemplo,aexigênciadequealfabetizássemosascriançasapartirdasletrasouassolicitaçõesconstantesnosentidodesermosduroscomascrianças.

“Pancada”, diziam muitos dos pais, “é que faz home macho”. “Castigo é queensinaomeninoaaprender.”

Estas ideias ou algumas delas às vezes eram compartidas por professoras que“hospedavam”na intimidadede seu corpoa ideologia autoritáriadominante.Nofundo,tantoquantoouquase,ospais,algumasprofessorastinhammedoeraivadaliberdade, medo dos educandos e se fechavam para perceber o quanto há, noprocesso de conhecer, de demandante, mas, também, de apaixonante, degratificante,deprovocadordealegria.

Minha passagem pelo SESI foi um tempo de profundo aprendizado. Aprendi,porexemplo,queaminhacoerêncianãoestariaematenderaospaiseàsmãesquenosexigiamosdesacertosreferidosnemasilen-ciá-loscom,nomínimo,opoderdenosso discurso. Não poderíamos, de um lado, rechaçá-los dizendo um nãocontundente a tudo, afirmando que não era científico nem aceitar tudo para darexemploderespeitodemocrático.Nãopodíamosser“mornos”.Precisávamosdarsuporteàs iniciativasdeles, jáqueosconvidáramose lhesdisséramosquetinhamdireitoaopinar,acriticar,asugerir.Mas,poroutrolado,nãopoderíamosdizersim

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a tudo.A saídaerapolítico-pedagógica.Eraodebate, a conversa franca comqueprocurássemosesclareceranossaposiçãoemfacedeseuspleitos.

Tenho na memória, agora, as caras de espanto, de surpresa, de interesse, decuriosidade de enorme maioria de mães e de pais de todas as escolas quemantínhamosquando,durantesessõesdenossoscírculosdepaiseprofessoraslhespediquemedissessemseconheciamalgumacriançaquetivessecomeçadoafalardizendoF,L,M.

Depoisdealgumsilêncio, cortadoporuns sorrisos indecisos,depoisdealgunsmovimentos de cotovelos golpeando de leve o braço do vizinho como quemdissesse:“saidessa!”,umdeles,comaanuênciadosdemais,falou:“Não!Eu,pelomenos, jávimuitomeninocomeçarafalar,masnuncavinenhumdelescomeçardizendoletras.Sempredizendomamãe,pão,não,quero.”

Gostaria então que pensássemos no seguinte: se mulheres e homens, comocriancinhas,começaramafalarnãodizendoletras,masdizendopalavrasquevalemfrases — quando o neném chora e diz mamã, o neném estará querendo dizer:Mamãe, tenho fome ou Mamãe, estou molhado. Estas palavras com que os bebêscomeçamafalarsechamam“frasesmonopalábricas”,istoé,frasesdeoucomumasópalavra.Poisbem,seéassimquetodosnóscomeçamosafalar,como,então,nomomento de aprender a escrever e a ler, devemos fazer através dedecoração dasletras?

Ninguém,rigorosamente,ensinaninguémafalar.Agenteaprendenomundo,nacasadagente,nasociedade.Narua,nobairro,naescola.Afala,alinguagemdagenteéumaaquisição.Agenteadquireafalasocialmente.Afalavemmuitoantesdaescritaassimcomoumacerta“escrita”ouoanúnciodelavemmuitoantesdoque a gente chama escrita. E assim como é preciso falar para falar, é precisoescreverparaescrever.Ninguémescrevesenãoescrevecomoninguémaprendeaandarsenãoandar.

Por issomesmo, devemos estimular aomáximo as crianças para que falem eparaqueescrevam.Édasgaratujas,umaformaindiscutíveldeescrita,quedevemoselogiar,queelaspartemparaaescritaaserestimulada.Queescrevam,quecontemsuasestórias,queasinventemereinventemoscontospopularesdeseucontexto.

Foicomconversas,senãototalmenteassim,maisoumenosassim,quefomostransformando os círculos de pais e professoras num contexto teórico em queprocurávamosarazãodeserdascoisas.

Me lembro, neste instante, deuma conversaque tive emparticular comumaangustiada mãe, a seu pedido. Me falou de seu menino de dez anos, como

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“impossível”, como “brabo”, desobediente, “diabólico”, insuportável. “A únicasaídaquetenho”,dizia,“éamarrarelenumtroncodeárvorenoquintaldecasa”,concluiu com um certo gosto na cara de quem estivesse naquele instanteamarrandoomenino.

“Porquevocênãomudaumpoucoaformadecastigar?Veja,nãolhedigoqueacabe de uma vez com o castigo. Pedrinho até que estranharia se, a partir deamanhã,vocênadamaisfizesseparapuni-lo.Digosóquemudeocastigo.Escolhaalguma forma de fazê-lo sentir que você recusa um certo comportamento dele.Mas, através de uma forma menos violenta. Por outro lado, você precisa irdemonstrandoaPedrinho,primeiro,quevocêoama,segundo,queeletemdireitosedeveres.Direito,porexemplo,abrincar,mastemodeverderespeitarosoutros.Direito de achar o estudo aborrecido, cansativo, mas também tem o dever decumprir com suas obrigações. Pedrinho, como todos nós, precisa de limites.Ninguémpodefazeroquequer.Semlimitesavidasocialseriaimpossível.

Naverdade,porém,nãoéamarrandoPedrinhooufazendoumaladainhadiáriaaelesobreseus‘erros’“quevocêvaiajudarPedrinhoasermelhorelemesmo.Paraisso,éprecisomudaraospoucosaformadeseroudeestarsendodaprópriacasa.Épreciso irmudandoas relações comPedrinhoparaqueavidade Pedrinhomudetambém.Éprecisovenceradificuldadedeconversarcomele.”

O pai de Pedrinho havia deixado a casa havia um ano. A mãe de Pedrinhotrabalhava duramente como lavadeira de duas ou três famílias e era ajudada porumairmãmaismoçaquemoravacomela.

Quando nos despedimos, me apertou a mão de forma que me pareceuesperançosa.

Um mês depois, ela estava na primeira fila da sala, na reunião de pais eprofessoras. No meio da reunião, se pôs de pé para defender a moderação doscastigos,amaiortolerânciadospais,aconversamaisamiudeentreeleseosfilhos,mesmoque reconhecesseo quanto isto era difícil,muitas vezes, considerando asdificuldadesconcretasdesuasvidas.

Na saída, veio a mim. Apertou minha mão e disse: “Obrigada. Já não uso otronco.”Sorriuseguradesiesefoientreoutrasmãesquedeixavamigualmenteaescola.

Comocontextoprático-teóricoaescolanãopodeprescindirdeconhecimentosemtornodoquesepassanocontextoconcretodeseusalunosedasfamíliasdeseusalunos. Como, por exemplo, entender as dificuldades durante o processo dealfabetizaçãodealunossemsaberoquesepassaemsuaexperiênciaemcasabem

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comoemqueextensãoéouvemsendoescassaaconvivênciacompalavrasescritasemseucontextosociocultural?

Umacoisaéacriançafilhadeintelectuais,quevêseuspaislidandocomaleituraeescrita,outraéacriançadepaisquenão leemapalavra eque,maisainda,nãoveem mais de cinco ou seis faixas de propaganda eleitoral e uma ou outrapropagandacomercial.

Quando fui secretário municipal de educação no governo de Luiza Erundinachegueiacogitar,numadasmuitasentrevistasquedei,aodiscutirestaquestão,apossibilidade de,motivando particulares, que alguma empresa, com a orientaçãopedagógica da Secretaria, aceitasse o projeto de “plantar frases” em lugaressignificativos de áreas assim iletradas. A intenção era provocar a curiosidade dascriançasedosadultostambém.Frasesquetivessemquevercomapráticasocialdaáreaenãoaelaestranhas.Frasesqueseriamtambémaproveitadaspelasescolasemvoltadaregiãodaexperiência.

Muitosanosantes,quandovivie trabalheinoChilecomoexilado,haviavistosurpresoefeliznumazonadereformaagráriaemquesedesenvolviaotrabalhodealfabetização de adultos frases e palavras gravadas em troncos de árvores pelosalfabetizandos. A socióloga Maria Edy Ferreira disse daqueles camponeses queeramtambém“semeadoresdepalavras”.28

Não quero que se pense que uma comunidade iletrada hoje se torne letradaamanhãsóporque“plantemospalavrasefrases”nela.Não!Umacomunidadevaisetornando letrada na medida em que novas necessidades sociais, de naturezamaterialetambémespiritual,oexigem.Épossível,porém,antesqueasmudançasocorram,quepossamosajudarascriançasalereaescreverusandoartifícioscomoodequefalei.

A formaçãopermanentedaseducadoras,que implicaa reflexãocrítica sobreaprática, se funda exatamente nesta dialeticidade de que venho falando, entre aprática e a teoria.Os grupos de formação, em que essa prática demergulhar napráticapara,nela,iluminaroquenelasedáeoprocessoemquesedáoquesedá,são, se bem realizados a melhor maneira de viver a formação permanente.29 Oprimeiropontoaserafirmadocomrelaçãoaosgruposdeformaçãonaperspectivaprogressistaemquemesituoéodequenãoproduzemsemanecessáriaexistênciade uma liderança democrática, alerta, curiosa, humilde e cientificamentecompetente. Sem essas qualidades assumidas os grupos de formação não serealizamcomoverdadeiroscontextos teóricos.Semessa liderançacujacompetênciacientíficadeveestaracimadadosgruposnãosefazodesvelamentodaintimidade

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daprática.Nãosepodemergulharnelae,iluminando-a,perceberosequívocoseoserros cometidos, as “traições” da ideologia ou os obstáculos que dificultam oprocessodeconhecer.

Um segundo aspecto, agora, que tem que ver com a operação mesma dosgrupos,éoqueseprendeaoconhecimentoqueosgruposdevemterdesimesmos.Éoproblemadesuaidentidadesemoquedificilmenteseconstituemsolidamente.E, se não o conseguem ao longo de sua experiência, não lhes é possível, comclareza, saber que querem, como caminhar para tratar o que querem, que implicasaberparaque,contraque, a favordeque edequem seengajamnamelhoradeseuprópriosaber.

A prática de pensar a prática, de estudar a prática, nos leva à percepção dapercepçãoanteriorouaoconhecimentodoconhecimentoanteriorque,demodogeral,envolveumnovoconhecimento.

Namedidaemquemarchamosnocontextoteóricodosgruposdeformação,nailuminação da prática e na descoberta dos equívocos e erros, vamos também,necessariamente, ampliando o horizonte do conhecimento científico sem o qualnão nos “armamos” para superar os equívocos cometidos e percebidos. Estenecessário alargamento de horizontes que nasce da tentativa de resposta ànecessidade primeira que nos fez refletir sobre a prática tende a aumentar seuespectro. O esclarecimento de um ponto aqui desnuda outro ali que precisa de,igualmente,serdesvelado.Estaéadinâmicadoprocessodepensaraprática.Éporissoquepensarapráticaensinaapensarmelhordamesmaformacomoensinaapraticarmelhor.

Neste sentido, o trabalho intelectual em um contexto teórico exige pôr emprática,emsuaplenitude,oatodeestudardequenãopodedeixardefazerpartealeituracríticadomundo,envolvendoaleituraeaescritadapalavra.Lereescrevertextosdetalmaneirasecompletam,maisdoqueisso,seidentificamnoscontextosteóricos,quenelesnãocabedizer,sesãoeficazes:“Nãoseiescrever,nãoseiler.”

Gostaria de sublinhar ainda a leitura de jornais, de revistas, estabelecendoconexõesentre fatoscomentados,ocorrências,desgovernos,eavidadaescola.Aimportância da audiência de certos programas deTV, devidamente gravados emvídeo,da feituradeliberadadevídeos fixando retalhosdepráticas, atémesmodeumadassessõesdetrabalhodogrupo.Nenhumrecursoquepossaajudarareflexãosobre a prática, de que possa resultar sua melhora pela produção de maisconhecimento,podeoudeveserpostodelado.

Algo importante também para evitar o risco de um negativo especialismo dos

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gruposdeestudocomocontextosteóricos,porexemplo,é,dequandoemquando,fazer reuniões interdisciplinares juntando diferentes grupos para o debate de ummesmotema,vistosobprismasdiferentes,masconcernentes.

Prática interessante a ser realizada seria a permuta de vídeos entre diferentesgruposdeformação,incluindovídeossobreostrabalhosdeformaçãodosprópriosgrupos.OgrupoA encaminhava aoBumvídeo emque sehavia fixadoumadesuassessõesdeestudoerecebiadoBumoutrocommaterial idêntico.Ambososgrupos se comprometiam de gravar suas reações às atividades um do outro. Asexperiênciasdereflexãoseampliariamdemaneiraextraordinária.

Conheci na Tanzânia, África Equatorial, uma experiência de eficácia enorme.Umcineastacanadensefilmavaadiscussãoentreumacomunidadecamponesaeoagrônomo sobre a produção da próxima temporada agrícola. Em seguida,mostrandoofilmeaoutracomunidade,a100quilômetros,filmavaodebatesobreodebatedacomunidadeanterior.Voltava,depois,àprimeiracomunidade,aquemmostravaareaçãodoscompanheirosqueelessequerconheciam.

Desta forma, diminuía as distâncias entre as comunidades, aumentava oconhecimento em torno do país, estabelecia laços necessários entre elas epossibilitavaumnívelmaiscríticodecompreensãodarealidadenacional.

Dentro de pouco tempo, me disse o cineasta, ele cobria grande parte daTanzânia, o que lhe criou, obviamente, certos problemas junto a áreas maisretrógradasdopaís.

Desafiar o povo a ler criticamente omundo é sempre uma prática incômodaparaosquefundamoseupoderna“inocência”dosexplorados.

Quem ajuíza o que faço é minha prática mas minha prática iluminadateoricamente.

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Notas

23 VeraesserespeitoPauloFreire,Pedagogiadooprimido.

24 AntonioSanchezVasquez,Filosofiadapráxis,2.ed.,RiodeJaneiro,PazeTerra,1977.

25 VeraessepropósitoKarelKosik,Dialéticadoconcreto.RiodeJaneiro,PazeTerra,1976.

26 VerPauloFreire,Pedagogiadooprimido.

27 Veraessepropósito,anota5deAnaMariaFreire,emPedagogiadaesperança.

28 VerPauloFreire,Pedagogiadooprimido.

29 ASecretariaMunicipaldeEducaçãotrabalhoudurantetodaagestãodaprefeitaLuizaErundinaaformaçãopermanentedeseusquadrosdeeducadoreseeducadoras,emcooperaçãocomaUniversidadedeSãoPaulo,comaUniversidadedeCampinasecomaPontifíciaUniversidadeCatólicadeSãoPaulo,atravésdegruposdeformaçãoaqueaprofessoraMadalenaF.Weffortjuntousuacontribuiçãooriginal.

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Sextacarta

DASVIRTUDESOUQUALIDADESINDISPENSÁVEISAOMELHOR

DESEMPENHODEPROFESSORASEPROFESSORESPROGRESSISTAS

Gostaria,logonocomeçodessacarta,dedeixarclaroqueasvirtudesouqualidadesdequevoufalarequemeparecemindispensáveisàseducadoraseaoseducadoresprogressistas são predicados que vão se gerando na sua prática. Mais ainda, sãogerados na prática em coerência com a opção política, de natureza crítica, daeducadoraoudoeducadorprogressista.Asvirtudesdequefalareinãosãoporissomesmoalgocomquenascemosouqueencarnamospordecretoourecebemosdepresente. Por outro lado, ao serem alinhadas neste texto, não quero atribuir àordememque apareçamnenhum juízodevalor.Todas sãonecessárias àpráticaeducativaprogressista.

Começarei pelahumildade que, demodo algum, significa falta de acato a nósmesmos, acomodação, covardia. Pelo contrário, a humildade exige coragem,confiançaemnósmesmos,respeitoanósmesmos,eaosoutros.

A humildade nos ajuda a reconhecer esta coisa óbvia: ninguém sabe tudo;ninguémignoratudo.Todossabemosalgo;todosignoramosalgo.Semhumildadedificilmenteouviremoscomrespeitoaquemconsideramosdemasiadamentelongedenossoníveldecompetência.Mas,ahumildadequenosfazouviroconsideradomenoscompetentedoquenósnãoéumatodecondescendênciadenossaparteoucomportamentoquetemoscomoquempagapromessafeitacomfervor:“PrometoaSantaLuziaque,seoproblemademeusolhosnãoforalgosério,vououvircomatençãoos rudese ignorantespaisdemeusalunos.”Não.Nãoé isso.Ouvircomatençãoquemnos procura, não importa seunível intelectual, é dever humano egostodemocrático,nadaelitista.

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De fato, não vejo como conciliarmos a adesão ao sonho democrático, asuperação dos preconceitos, com a postura inumilde, arrogante, na qual nossentimoscheiosdenósmesmos.Comoouvirooutro,comodialogar,sesóouçoamimmesmo, se sóvejo amimmesmo, seninguémquenão seja eumesmomemoveoumecomove.Se,humilde,nãomeminimizonemaceitohumilhação,poroutro lado,estousempreabertoaaprendereaensinar.Ahumildademeajudaajamais deixar-me cair preso no circuito de minha verdade. Um dos auxiliaresfundamentaisdahumildadeéobomsensoquenosadverteestarmospróximos,comcertasatitudes,deirmaisalémdolimiteapartirdoqualelaseperde.

Aarrogânciado“sabecomquemestáfalando?”,aempáfiadosabichãoincontidonogostodefazerconhecidoereconhecidooseusaber,nadadissotemquevercoma mansidão não com a apatia, do humilde. É que a humildade não floresce nainsegurançadaspessoas,masnasegurançainseguradoscautos.Porissoéqueumadas expressões da humildade é a segurança insegura, a certeza incerta e não acertezademasiado certa de simesma.Aposturado autoritário, pelo contrário, ésectária.Asuaéaúnicaverdadequenecessariamentedeveserimpostaaosdemais.Énasuaverdadequeresidea salvaçãodosdemais.O seu saberé “iluminador”da“obscuridade” ou da ignorância dos outros, que por isso mesmo devem estarsubmetidosaosabereàarrogânciadoautoritáriooudaautoritária.

Não faz mal que, agora, retome uma análise anteriormente feita — a doautoritarismo,não importasedospaisemães,não importasedasprofessorasouprofessores.Autoritarismodequepodemosesperarnosfilhosealunosoraposiçõesrebeldes, refratárias a qualquer presença de limites ou de disciplina, negação àautoridade, mas também apatia, obediência exagerada, anuência sem crítica ouresistênciaaodiscursodoautoritário,renúnciaasimesmo,medoàliberdade.

Quandodisseantesquedoautoritarismopaternoe/oumaternooudocentesepodeesperarumououtrodostiposdereaçãoacimadescritoéporque,felizmente,nodomíniodohumanoascoisasnãosedãomecanicamente.Destaforma,épossívela certas crianças passar quase ilesas à rigorosidade do arbítrio, o que não nosautoriza a jogar com esta possibilidade e não nos esforçar por ser menosautoritáriossenãoporcausadosonhodemocrático,emnomedorespeitodoseremformaçãodenossosfilhosefilhas,denossosalunosealunas.

Mas,poroutrolado,éprecisojuntaràhumildadecomqueaprofessoraatuaeserelaciona com seus alunos, uma outra qualidade, a amorosidade, sem a qual seutrabalhoperdeosignificado.Eamorosidadenãoapenasaosalunos,masaopróprioprocesso de ensinar. Devo confessar que, sem nenhuma cavilação, não acredito

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que, sem uma espécie de “amor armado”, como diria o poeta Thiago de Melo,educadora e educador possam sobreviver às negatividades de seu quefazer. Àsinjustiças,aodescasodopoderpúblico,expressonasem-vergonhicedossalários,noarbítrio com que professoras e não “tias” que se rebelam e participam demanifestações de protesto através de seu sindicato, são punidas mas continuam,apesardetudo,entreguesaotrabalhocomseusalunos.

Éprecisocontudoqueesseamorseja,naverdadeum“amorarmado”,umamorbrigão de quem se afirma no direito ou no dever de ter o direito de lutar, dedenunciar, de anunciar. É essa a forma de amar indispensável ao educador oueducadoraprogressistaequeprecisadeseraprendidaevividapornós.

Acontece,porém,queaamorosidadedequefalo,osonhopeloqualbrigoeparacujarealizaçãomepreparopermanentemente,exigem,portudoodequejáfalei,queeuinventeemmim,naminhaexperiênciasocial,outraqualidade:acoragemdelutaraoladodacoragemdeamar.

A coragem, como virtude, não é algo que se ache fora de mim. Enquantosuperaçãodomeumedoelaoimplica.

Emprimeirolugar,quandofalamossobreomedodevemosestarabsolutamentesegurosdequeestamos falandosobrealgomuitoconcreto. Istoé,omedonãoéumaabstração.Emsegundo lugar,creioquedevemossaberqueestamos falandosobre uma coisa muito normal. Outro ponto que me vem à mente ao tentarabordaraquestãoéquequandopensamosnomedosomoslevadosarefletirsobreanecessidadequetemosdesermuitoclarosarespeitodenossasopçõesoque,porsua vez, exige certos procedimentos e práticas concretas que são as própriasexperiênciasqueprovocamomedo.

Namedida em que tenhomais emais clareza a respeito deminha opção, demeussonhos,quesãosubstantivamentepolíticoseadjetivamentepedagógicos,namedida em que reconheço que, enquanto educador, sou um político, tambémentendomelhorasrazõespelasquaistenhomedoepercebooquantotemosaindade caminharparamelhorarnossademocracia.Éque, pôr empráticaum tipodeeducação que provoca criticamente a consciência do educando necessariamentetrabalha contra alguns mitos que nos deformam. Ao contestar esses mitoscontestamostambémopoderdominantepoisqueessesmitossãoexpressõesdessepoder,desuaideologia.

Quando começamos a ser envolvidos por medos concretos, tais como o deperderoemprego,odenãoserpromovidos,sentimosanecessidadedeestabelecercertos limites a nosso medo. Antes de mais nada, reconhecemos que é normal

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sentir medo. Sentir medo é manifestação de que estamos vivos. Não tenho queesconder meus temores. Mas, o que não posso permitir é que meu medo meimobilize. Se estou seguro do meu sonho político, com táticas, que talvezdiminuam os riscos que corro, devo prosseguir na luta. Daí, a necessidade decomandar meu medo, de educar meu medo, de que nasce finalmente minhacoragem.30 Por isso é que não posso, de um lado, negar meu medo, de outro,abandonar-meaele,mascontrolá-lo.Eénoexercíciodeseucontrolequeminhacoragemnecessáriavaisendopartejada.

Éporissoquehámedosemcoragem,queéomedoquenosavassala,quenosparalisa,masnãohácoragemsemmedo,queéomedoque,“falando”denóscomogente,vemsendopornóslimitado,submetido,controlado.

Outravirtudearespeitodeque,umaououtravezfizreferêncianocorpodestelivroéatolerância.Semelaé impossívelumtrabalhopedagógicosério, semelaéinviável uma experiência democrática autêntica, sem ela a prática educativaprogressistasedesdiz.Atolerâncianãoé,porém,aposiçãoirresponsáveldequemfazojogodofazdeconta.

Sertolerantenãoéserconiventecomointolerável,nãoéacobertarodesrespeito,não é amaciar o agressor, disfarçá-lo. A tolerância é a virtude que nos ensina aconvivercomodiferente.Aaprendercomodiferente,arespeitarodiferente.

Num primeiro momento, falar em tolerância é quase como se estivéssemosfalando em favor. É como se ser tolerante fosse uma forma cortês, delicada, deaceitar,detolerar apresençanãomuitodesejadademeucontrário.Umamaneiracivilizadadeconsentirnumaconvivênciaquedefatomerepugna.Issoéhipocrisia,não tolerância. Hipocrisia é defeito, é desvalor. Tolerância é virtude. Por issomesmo se a vivo devo vivê-la como algo que assumo. Como algo que me fazcoerente,primeiro,comoserhistórico,inconclusoqueestousendo,segundo,comminhaopçãopolítico-democrática.Nãovejocomopossamosserdemocráticossemexperimentar, como princípio fundamental, a tolerância, a convivência com odiferente.

Ninguémaprendetolerâncianumclimadeirresponsabilidade,comonelenãosefazdemocracia.Oatodetolerarimplicaoclimadeestabelecimentodelimites,deprincípiosaserrespeitados.Porissoafirmeiantesqueatolerâncianãoéconivênciacomointolerável.Sobregimeautoritário,emqueaautoridadeseexacerbaousobregime licencioso, em que a liberdade não se limita, dificilmente aprendemos atolerância.Atolerânciarequerrespeito,disciplina,ética.Oautoritário,empapadodepreconceitos de sexo, de classe, de raça, jamais pode, antes de vencer seus

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preconceitos,sertolerante.Éporissoqueodiscursoprogressistadopreconceituoso,emcontrastecomsuaprática,éumdiscursofalsoevazio.Éporissotambémqueocientificistaque tomaouentendea ciência comoverdadeúltima, daíque foradelanada valha pois é ela a que nos dá a certeza de que não se pode duvidar, éigualmenteintolerante.Nãohácomosermostolerantesimersosnocientificismo,oquenãonosdevelevarànegaçãodaciência.

Gostaria agora de agrupar a decisão, a segurança, a disciplina intelectual, comovirtudesaseremcultivadaspornós,seeducadoresoueducadorasprogressistas.

A capacidade de decisão da educadora ou do educador é absolutamentenecessáriaaseutrabalhoformador.Étestemunhandosuahabilitaçãoparadecidirqueaeducadoraensinaadifícilvirtudedadecisão.Difícilnamedidaemquedecidiréromperparaoptar.Ninguémdecideanãoserporumacoisacontraaoutra,porumpontocontraoutro,porumapessoacontraoutra.Por issoéque todaopçãoquesesegueàdecisãoexigeumacriteriosaavaliaçãonoatodecompararparaoptarpor um dos possíveis polos ou pessoas ou posições. É a avaliação, com todas asimplicaçõesqueelaengendra,quemeajuda,finalmente,aoptar.

Decisãoérupturanemsemprefácildeservivida.Masnãoépossívelexistirsemromperpormaisdifícilquenossejaromper.

Uma das deficiências de uma educadora é a sua incapacidade de decidir. Suaindecisão, que os educandos entendem como fraqueza moral ou comoincompetênciaprofissional.Aeducadorademocrática,sóporserdemocrática,nãopode anular-se, pelo contrário, senãopode assumir sozinha a vidade sua classe,nãopode,emnomedademocracia,fugiràsuaresponsabilidadedetomardecisões.Oquenãopodeé serarbitrárianasdecisõesque toma.Otestemunho,enquantoautoridade de não assumir o seu dever, deixando-se tombar na licenciosidade écertamentemaisfunestodoqueodeextrapolaroslimitesdesuaautoridade.

Há muitas ocasiões em que o bom exemplo pedagógico, na direção dademocracia,étomaradecisãocomosalunos,depoisdaanálisedoproblemaqueexigeestaouaqueladecisão.Emoutras,emqueadecisãoasertomadadeveserdaalçadadaeducadora,nãoháporquenãoassumi-la,nãoháporqueomitir-se.

Aindecisãorevelafaltadesegurança,umaqualidadeindispensávelaquemquerque tenha responsabilidade no governo, não importa se de uma classe, de umafamília,deumainstituição,deumaempresaoudoEstado.

A segurança, por sua vez, demanda competência científica, clareza política eintegridadeética.

Não posso estar seguro do que faço se não sei como fundamentar

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cientificamente,aminhaação,senãotenhopelomenosalgumas ideiasemtornodoquefaço,deporquefaço,paraquefaço.Desepoucoounadaseisobreafavordequeedequem,decontraqueecontraquemfaçooqueestoufazendooufarei.Senãomemovoemnada,seoque faço fereadignidadedaspessoascomquemtrabalho, se as exponho a situações vexatórias que posso e devo evitar, minhainsensibilidade ética, meu cinismo me contraindicam a encarnar a tarefa doeducador.Tarefaqueexigeumaformacriticamentedisciplinadadeatuarcomqueaeducadoradesafia seuseducandos.Formadisciplinadaque temquever,deumlado,comacompetênciaqueaprofessoravairevelandoaoseducandos,discretaehumildemente,semestardalhaçosarrogantes,deoutro,comoequilíbriocomqueaeducadoraexercesuaautoridade—segura,lúcida,determinada.

Nada disso, porém, pode ser concretizado se falta à educadora o gosto daprocura permanente da justiça. Ninguém pode proibi-la de gostar mais de umaluno,por“n”razões,doquedosoutros.Éumdireitoseu.Oqueelanãopodeépreterirodireitodosoutrosparaaquinhoaroseupreferido.

Háoutraqualidadefundamentalquenãopodefaltaràeducadoraprogressistaequeexigedelaa sabedoriacomque sedêàexperiênciadevivera tensãoentreapaciência e a impaciência. Nem a paciência sozinha nem a impaciência solitária. Apaciência sozinha pode levar a educadora a posições de acomodação, deespontaneísmo, com que nega seu sonho democrático. A paciênciadesacompanhadapodeconduzirao imobilismo,à inação.A impaciência, sozinha,poroutrolado,podelevaraeducadoraaoativismocego,àaçãoporelamesma,àpráticaemquenãoserespeitamasnecessáriasrelaçõesentretáticaeestratégia.Apaciência isolada tende a obstaculizar a consecução dos objetivos da prática,tornando-a “tenra”, “macia” e inoperante.Na impaciência insulada ameaçamosoêxitodapráticaque seperdenaarrogânciadequemse julgadonodahistória.Apaciência só, se exaure no puro blá-blá-blá. A impaciência a sós, no ativismoirresponsável.

A virtude não está, pois, em nenhuma delas sem a outra, mas em viver apermanentetensãoentreelas.Vivereatuarimpacientementepaciente,semjamaissedaraumaouaoutra,isoladamente.

Aoladodestaformadeseredeatuar,equilibrada,harmoniosa,seimpõeoutravirtudequevenhochamandoparcimôniaverbal.Aparcimôniaverbalestáimplicadana assunção da tensão paciência impaciência. Quem vive a impaciente paciênciadificilmente, a não ser em casos excepcionais, perde o controle sobre sua fala,dificilmente extrapola os limites do discurso ponderado mas enérgico. Quem

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preponderantementeviveapaciênciaapenasabafasualegítimaraivaqueexpressanumdiscurso frouxoeacomodado.Quem,pelo contrário,descontroladamenteésóimpaciênciatendeaodestemperonodiscurso.Odiscursodopaciente é semprebemcomportadoenquantoodiscursodoimpaciente,demodogeral,vaimaisalémdoquearealidademesmasuportaria.

Ambos estes discursos, o muito controlado como o em nada disciplinadocontribuem para a preservação do status quo. O primeiro por estar demasiadoaquémdarealidade;osegundo,porirmaisalémdolimitesuportável.

Odiscursoeapráticabenevolentedosópacientenaclassesugereaoseducandosque tudo ou quase tudo é possível. Há, no ar, uma paciência às portas doinesgotável.Odiscursonervoso,arrogante, incontrolado, irrealista, semlimite, seachaempapadodeinconsequência,deirresponsabilidade.

Emnadaessesdiscursosajudamnaformaçãodoseducandos.Háaindaosque sãoexcessivamente temperadosemseudiscursomas,devez

em quando se destemperam. Dá só paciência passam inesperadamente para aincontidaimpaciência,criandoumclimadeinsegurançanosdemaisderesultadosindiscutivelmentepéssimos.

Há um sem número de mães e pais que se comportam assim. De umalicenciosidadeemqueafalaeaaçãosãocoerentes,“batem”umanaoutra,numaterça-feira,mas transformama quarta numuniverso de desatinos, de discursos eordens autoritárias que deixam as filhas e os filhos estupefatos, mas, sobretudoinstáveis.Aondulaçãonocomportamentodospaislimitanosfilhoseounasfilhasoequilíbrioemocionaldequeprecisamparacrescer.Amarnãobasta,precisamosdesaberamar.

Me parece importante, reconhecendo a incompletude das reflexões em tornodas virtudes, discutir um pouco a alegria de viver como virtude fundamental dapráticaeducativademocrática.

Émedandoplenamenteàvidaenãoàmorte,oquenãosignifica,deumlado,negar a morte, de outro, mitificar a vida, que me entrego, disponivelmente, àalegriadeviver.Eéaminhaentregaàalegriadeviver,semqueescondaaexistênciaderazõesparatristezanavida,quemepreparaparaestimularelutarpelaalegrianaescola.

É vivendo, não importa se com deslizes, com incoerências, mas disposto asuperá-los,ahumildade,aamorosidade,acoragem,atolerância,acompetência,acapacidadededecidir,asegurança,aeticidade,ajustiça,atensãoentrepaciênciaeimpaciência,aparcimôniaverbal,quecontribuoparacriar,paraforjaraescolafeliz,a

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escolaalegre.Aescolaqueseaventura,quemarcha,quenãotemmedodorisco,porquerecusaoimobilismo.Aescolaemquesepensa,emqueseatua,emquesecria,emquesefala,emqueseama,seadivinha,aescolaque,apaixonadamentedizsimàvida.Enãoaescolaqueemudeceemeemudece.

A solução realmente mais fácil para encarar os obstáculos, o desrespeito dopoder público, o arbítrio da autoridade antidemocrática é a acomodação fatalistaemquemuitosdenósseinstalam.

Queposso fazer seé sempreassim.Mechamemprofessoraou tia eu continuomal paga, desconsiderada, desatendida. Pois que assim seja. Esta é na verdade aposiçãomais fácil,maiscômoda,masé tambémaposiçãodequemsedemitedaluta,dahistória.Éaposiçãodequemrenunciaàbriga, aoconflito, semosquaisnegamos a própria dignidadeda vida.Nãohávida, nemhumana existência, sembriga e sem conflito. O conflito31 parteja a nossa consciência. Negá-lo édesconhecerosmaismínimospormenoresdaexperiência,primeiro,vital,segundo,social.Fugiraeleéajudarapreservaçãodostatusquo.

Porisso,nãovejooutrasaídaalémdaunidadenadiversidadedeinteressesnãoantagônicosdoseducadoresedaseducadorasnadefesadeseusdireitos.Odireitoàsua liberdade docente, o direito à sua fala, o direito a melhores condições detrabalho pedagógico, o direito a tempo livre e remunerado para dedicar à suaformaçãopermanente,odireitodesercoerente,odireitoacriticarasautoridadessem medo de punição a que corresponde o dever de responsabilizar-se pelaveracidadedesuacrítica,odireitode terodeverdeser sérios,coerentes,denãomentirparasobreviver.

Para que esses direitos sejam mais do que reconhecidos, respeitados eencarnadoséprecisoquelutemos.Àsvezes,quelutemosaoladodosindicatoeatécontra ele, se sua liderança é sectária de direita ou de esquerda.Mas tambémàsvezeséprecisoque lutemosenquantoadministraçãoprogressistacontraas raivasendemoniadasdosretrógrados,dostradicionalistasentreosquaisalgunssejulgamprogressistasedosneoliberaisparaquemaHistóriaparouneles.

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Notas

30 Veraestepropósito,PauloFreireeIraShor,Medoeousadia,ocotidianodoprofessor.

31 VeraestepropósitoMoacirGadotti,PauloFreireeSérgioGuimarães,Pedagogia:diálogoeconflito,SãoPaulo,CortezEditora,1985.

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Sétimacarta

DASRELAÇÕESENTREASEDUCADORASEOSEDUCANDOS

Creioqueseriaquase impossívelescrevercartassobreosváriostemasquevenhodebatendo neste livro sem, vez ou outra, voltar a este ou àquele aspectoanteriormentediscutido.

Namedidaemquemecentro,agora,naanálisedasrelaçõesentreeducadoraeeducandos não posso deixar de lado a questão do ensino, da aprendizagem, doprocessodeconhecer-ensinar-aprender—aquestãodaautoridade,daliberdade,aquestãodaleitura,daescrita,dasvirtudesdaeducadora,daidentidadeculturaldoseducandos e do respeito devido a ela. Posso até não falar delas, mas não possodesconhecerqueelasseachamenvolvidasnaquelasrelações.

Nesta carta, tentarei me prender ao testemunho da educadora como um“discurso” coerente permanente. Da educadora, talvez nem devesse acrescentar,progressista. Tentarei pensar o testemunho como a melhor maneira de chamar aatenção do educandopara a validade do que se propõe, para o acerto do que sevalora, para a firmeza na luta, na busca da superação das dificuldades. A práticaeducativaemqueinexistaarelaçãocoerenteentreoqueaeducadoradizeoqueelafazé,enquantopráticaeducativa,umdesastre.

Que se pode esperar para a formação dos educandos de uma professora queprotestacontraasrestriçõesàsualiberdadeporpartedadireçãodaescolamasaomesmotempo,cerceiaaliberdadedoseducandos,afrontosamente?Felizmente,noplanohumano,nenhumaexplicaçãomecanicistaelucidanada.Nãosepodeafirmarque os educandos de uma tal educadora se tornem necessariamente apáticos ouvivamempermanenterebelião.Mas,muitomelhorseriaparaelessesemelhantedescompaçoentreoquesedizeoquesefaznãolhestivessesidoimposto.Eentre

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otestemunhodedizereodefazer,omaisforteéodofazerporqueestetemoupodeterefeitosimediatos.Opior,porém,paraaformaçãodoeducando,éque,diantedacontradição entre fazer e dizer o educando tende a não acreditar no que aeducadoradiz.Se,agora,elaafirmaalgo,eleesperaapróximaaçãoparadetectarapróximacontradição.Eissocorróioperfildaeducadoraqueelamesmavaifazendodesierevelandoaoseducandos.

As crianças têmuma sensibilidade enormepara perceber que a professora fazexatamenteocontráriodoquediz.O“façaoqueeudigoenãooqueeufaço”éumatentativaquasevãderemediaracontradiçãoeaincoerência.Dissequasevãporque nem sempre o que se diz e está sendo contraditado pelo que se faz écompletamenteesmagado.Oquesediztem,àsvezes,umatalforçaemsimesmo,que o defende da hipocrisia de quem, dizendo-o, faz o contrário seu. Mas,exatamenteporqueestáapenassendoditoenãovivido,perdemuitodesuaforça.Quemvê a incoerência em processo bemque pode dizer-se a simesmo: se estacoisaqueestásendoproclamadamas,aomesmotempo,tãofortementenegadanaprática,fosserealmenteboa,elanãoseriaapenasditamasvivida.

Uma das coisasmais negativas nisto tudo é a deterioração das relações entreeducadora(or)eeducandos.

Equedizerdaprofessoraquetestemunhaconstantementefraqueza,dubiedade,insegurança,nassuasrelaçõescomoseducandos?Quenãoseassumejamaiscomoautoridadenaclasse?

Melembrodemimmesmo,adolescente,edoquantomefaziamalpresenciarodesrespeitoqueumdenossosprofessores revelavade sipróprioao serobjetodechocotas de grande parte dos alunos sem nenhuma condição para pôr ordem àscoisas. Suaaulaeraa segundadamanhãeele já entravana salavencido,ondeamalvadez de alguns adolescentes o esperava para fustigá-lo, paramaltratá-lo. Aoterminaroseuarremedodeaula,elenãopodiadarascostasaosalunosemarcharparaaporta.Avaiaestrondosacairiasobreele,pesadaearestosa,eistodeviagelá-lo.Nocantodasalaondemesentavavia-opálido,diminuído,pequeno,diminuto,recuando até a porta. Abrindo-a rápido, sumia envolto na sua insustentávelfraqueza.

Nas minhas memórias de adolescente guardo a figura daquele homem fraco,indefeso, de cor pálida, que carregava consigo o medo daqueles meninos quefaziamdesuafraquezaumbrinquedoseueomedodeperderoemprego,nomedodosmeninosgerado.

Enquanto assistia à ruína de sua autoridade eu, que sonhava com tornar-me

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professor, prometia amimmesmoque jamaisme entregaria assimànegaçãodemim próprio.Nem o todo-poderosismo do professor autoritário, arrogante, cujapalavraésempreaúltimanema insegurançaea faltacompletadepresençaedepoderqueaqueleprofessorexibia.

Outrotestemunhoquenãonosdevefaltaremnossasrelaçõescomosalunoséodenossapermanentedisposiçãoemfavordajustiça,daliberdade,dodireitodeser.Anossaentregaàdefesadosmaisfracos,submetidosàexploraçãodosmaisfortes.Éimportante,também,nesteempenhodetodososdias,mostraraosalunoscomohábonitezanalutaética.Éticaeestéticasedãoasmãos.Nãosediga,porém,queem áreas de pobreza imensa, de carência profunda, essas coisas não podem serfeitas.As experiências que a professoraMadalena F.Weffort viveu pessoalmentedurantetrêsanosnumafaveladeSãoPaulo,emqueela,mearriscoadizer,maisdoque em qualquer outro contexto, se tornou plenamente educadora e pedagoga,foram experiências em que isto foi possível. Em torno de suas experiências emcontexto faltosode tudoquenossaapreciaçãodeclasseeonosso saberdeclasseconsideramindispensáveis,masfartodemuitosoutroselementosquenossosaberdeclassemenospreza,elapreparaumlivro.Nele,certamente,contaráeanalisaráahistóriadeCarlinhadeque,tendofaladoemumtextomeu,32areproduzoagora.

Rondandoaescola,perambulandopelasruasdavila,seminua,sujonacara,queescondia suabeleza, alvodezombariadasoutras criançasedosadultos também,vagava perdida, e, o pior, perdida de si mesma, uma espécie de menina deninguém.

Umdia,disse-meMadalena,aavódameninaaprocuroupedindoquerecebesseanetanaescola,dizendotambémquenãopoderiapagaraquotaquasesimbólicaestabelecidapeladireçãopopulardaescola.

“Não creio quehaja problema”, disseMadalena, “com relação ao pagamento.Tenho, porém, uma exigência para poder aceitar Carlinha: que me chegue aquilimpa,banhotomado,comummínimoderoupa.Equevenhaassimtodososdiase não só amanhã”. A avó aceitou e prometeu que cumpriria. No dia seguinteCarlinha chegou à sala completamente mudada. Limpa, cara bonita, feiçõesdescobertas,confiante.

A limpeza, a cara livredasmarcas do sujo, sublinhavam suapresençana sala.Carlinhacomeçouaconfiarnelamesma.AavócomeçouaacreditartambémnãosóemCarlinhamasnelaigualmente.Carlinhasedescobriu;aavósere-descobriu.

Uma apreciação ingênua diria que a intervenção de Madalena teria sidopequeno-burguesa, elitista, alienadaou, comoexigirdeumacriança faveladaque

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venhaàescoladebanhotomado?Madalena, na verdade, cumpriu o seu dever de educadora progressista. Sua

intervençãopossibilitouàcriançaeasuaavóaconquistadeumespaço—odesuadignidade,norespeitodosoutros.AmanhãserámaisfácilaCarlinhasereconhecertambém,comomembrodeumaclassetoda,atrabalhadora,embuscademelhoresdias.

Sem intervençãodoeducadorouda educadora, intervençãodemocrática,nãoháeducaçãoprogressista.

Assimcomo foipossívelaMadalena intervirnasquestões ligadasàhigienedocorpoque,porsuavez,seestendemàbonitezadocorpoeàbonitezadomundo,dequeresultouadescobertadeCarlinhaearedescobertadaavónãoháporquenãosepossaintervirnosproblemasaqueantesmereferia.

Creio que a questão fundamental diante de que devemos estar, educadoras eeducadores, bastante lúcidos e cada vezmais competentes é que nossas relaçõescom os educandos são um dos caminhos de que dispomos para exercer nossaintervençãonarealidadeacurtoealongoprazo.Nestesentidoenãosóneste,masemoutros também,nossas relaçõescomoseducandos,exigindonossorespeitoaeleseaelas,demandamigualmenteonossoconhecimentodascondiçõesconcretasdeseucontexto,contextoqueoscondiciona.Procurarconhecerarealidadeemquevivemnossosalunoséumdeverentreoutrosqueapráticaeducativanos impõe.Sem conhecer a realidade de nossos alunos não temos acesso à maneira comopensam,dificilmentepodemossaberoquesabemecomosabem.

Aconvicçãoquetenhoéadequenãohátemasouvaloresdequenãosepossafalar nesta ou naquela área. De tudo podemos falar e sobre tudo podemostestemunhar.Alinguagemqueusamosparafalardistooudaquiloeaformacomotestemunhamosseachamporémcondicionadaspelascondiçõessociais,culturaisehistóricas, do contexto onde falamos e testemunhamos. Vale dizer, estãocondicionadospela culturade classe,pela concretudedaqueles aquem falamosecomquemfalamoseaquemtestemunhamos.

Enfatizemos uma vezmais a importância do testemunho.Do testemunho deseriedade,dedisciplinanofazerascoisas,dedisciplinanoestudo.Testemunhonocuidadocomocorpo,comasaúde.Testemunhonahonradezcomquerealizasuatarefa.Naesperançacomquelutaporseusdireitos,napersistênciacomquebrigacontra o arbítrio. As educadoras e os educadores deste país têm muito o queensinar,aoladodosconteúdos,aosmeninosemeninas,nãoimportaaqueclassepertençam. Têm muito o que ensinar pelo exemplo de combate em favor das

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mudanças fundamentaisdequeprecisamos,decombatecontraoautoritarismoeemfavordademocracia.

Nadadisso é fácil de ser feitomas isso tudo constitui umadas frentes da lutamaior de transformação profunda da sociedade brasileira. Os educadores eeducadorasprogressistasprecisamdeconvencer-sedequenãosãopurosensinantes—issonãoexiste—,purosespecialistasdadocência.Nóssomosmilitantespolíticosporque somosprofessores eprofessoras.Nossa tarefanão se esgotanoensinodamatemática, da geografia, da sintaxe, da história. Implicando a seriedade e acompetênciacomqueensinemosamatemática,ageografia,a sintaxeeahistórianossatarefaexigedenósonossocompromisso,onossoengajamentoemfavordasuperaçãodasinjustiçassociais.

Énecessáriodesmascararaideologiadeumcertodiscursoneoliberal,chamadoàsvezesdemodernizante,que,falandodotempohistóricoatualtentaconvencer-nosdequeavidaéassimmesmo.Osmaiscapazesorganizamomundo,produzem;osmenos,sobrevivem.33Eque“essaconversa”desonho,deutopia,demudançaradicalsófazatrapalharalabutaincansáveldosquerealmenteproduzem.Deixemo-los trabalhar empaz semos transtornosquenossosdiscursos sonhadorespodemcausar-lhes,eumdiaseteráumagrandesobraaser,então,distribuída.

Esseinaceitáveldiscursocontraaesperança,autopiaeosonhoéoquedefendea preservação de uma sociedade, a nossa, que funciona para um terço de suapopulação, como se fosse possível aguentar por muito tempo um tamanhodescompasso. O que me parece que o novo tempo nos coloca é a morte dosectarismo mas a vida da radicalidade.34 As posturas sectárias nas quais nospretendemos senhores e proprietários da verdade, que não pode ser contestada,estas sim — que ainda são tomadas em nome da democracia —, têm cada vezmenosavercomestetemponovo.Nestesentido,ospartidosprogressistasnãotêmmuitoaescolher.Ouserecriamousereinventamnaradicalidadeemtornodeseussonhosou,entreguesaossectarismoscastradores,fenecemcomseucorposufocadono figurino stalinista. Voltam a ser ou não deixam de ser velhos partidos deesquerda,semalmasemcalor,fadadosa“morrerdefrio”.Eéumalástimaqueesseriscoexista.

Voltemos, porém, às relações entre educadoras e educandos. À força e àimportânciadotestemunhodaeducadoracomofatordeformaçãodoseducandos.Da radicalidade comque atua, comquedecide,mas, o testemunhoquedá, semdificuldade, de que pode e deve rever a posição que assumiu em face de novos

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elementosquea fizerammudar.Eserá tãomaiseficazo seu testemunhoquantomaislucidamente,deformaobjetiva,eladeixarclaroaoseducandos:

1]quemudardeposiçãoélegítimo.2]asrazõesqueafizerammudar.

Devosalientaraquinãoestarpensandodeeducadoreseeducadorasquedevamser santos, perfeitos. É exatamente como seres humanos, como gente, com seusvalores e suas falhas, que devem testemunhar sua luta pela coerência, pelaseriedade,pelaliberdade,contraaopressão,pelacriaçãodaindispensáveldisciplinadeestudodecujoprocessodevemfazerpartecomoauxiliarespoisqueétarefadoseducandosgerá-laemsimesmos.

É fundamental, por outro lado, salientar que, é inaugurado o processotestemunhal pelo educador a pouco e pouco os educandos o vão assumindotambém.Estaparticipaçãoefetivadoseducandosé sinaldequeo testemunhodaeducadora está operando. É possível, porém, que alguns educandos pretendamtestaraeducadoraparacertificar-sedeseelaéounãocoerente.Seriaumdesastrese,nestecaso,aeducadorareagissemalaodesafio.No fundo,nasuamaioria,oseducandosquea testamo fazemansiososparaqueelanãoosdecepcione.Oqueelesquereméqueelaconfirmequeéverdadeira.Aotestá-la,nãoestãoquerendoseu fracasso. Mas há também os que provocam porque querem, o fracasso doeducador.

Um dos equívocos da educadora, gerado no seu sentimento de autoestimaexorbitante que a faz demasiado orgulhosa, por isso pouco humilde, seria o desentir-se ferida pela conduta dos educandos, por não admitir que ninguémpossaduvidardela.

Humildemente,pelocontrário,ébomadmitirquesomostodossereshumanos,porisso,inacabados.Nãosomosperfeitoseinfalíveis.

Me lembro de experiência que tive, recém-chegadodo exílio, numa turmadeestudantesdepós-graduaçãodaPUCdeSãoPaulo.

Noprimeirodiadeaula, falandodecomoviaoprocessodenossosencontros,mereferiacomogostariadeque fossemabertos,democráticos, livres.Encontrosem que exercêssemos o direito à nossa curiosidade, o direito de perguntar, dediscordar,decriticar.

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Uma estudante, em tom agressivo, foi a primeira que falou dizendo mais oumenos que “gostaria de seguir o curso atentamente, que não faltaria a nenhumencontroparaverseodiálogodequeoprofessorfalavaseriamesmovivido”.

Quando ela terminou fiz um breve comentário em torno do direito que lheassistiadeduvidardemimbemcomoodeexpressarpublicamenteasuadúvida.Amim,mecabiaodeverdeprovar,aolongodosemestre,queeracoerentecomomeudiscurso.

Na verdade, a jovem senhora jamais faltou a nenhum encontro. Participouseriamente de todos, revelou suas posições autoritárias que deviam embasar suarepulsa a meu passado e a meu presente antigoverno militar. Nunca nosaproximamosmasmantivemosumclimademútuorespeitoatéofim.

Nocasodela,oquerealmente lhemoviaoânimoéqueeumedesdissessenoprimeirodia.Eeunãomedesdisse.Équenãomeofendosemepõemàprova.Nãome sinto infalível.Me sei inconcluso.Oqueme irrita é adeslealdade.Éa críticainfundada.Éafaltadeéticanasacusações.

Em suma, as relações entre educadores e educandos são complexas,fundamentais,difíceis,sobrequedevemospensarconstantemente.

Que bom, aliás, seria, se tentássemos criar o hábito de avaliá-las ou de nosavaliarnelasenquantoeducadoreseeducandostambém.

Que bom seria, na verdade, se trabalhássemos, metodicamente, com oseducandos, a cada par de dias, durante algum tempo que dedicaríamos à análisecríticadenossalinguagem,denossaprática.Aprenderíamoseensinaríamosjuntosuminstrumentoindispensávelaoatodeestudar:oregistrodosfatoseoqueaelesse prende. A prática de registrar nos leva a observar, a comparar, a selecionar, aestabelecer relações entre fatos e coisas. Educadora e educandos se obrigariam,diariamente, a anotar os momentos que mais os haviam, por diferentes razões,tambémregristrados,desafiadopositivaounegativamenteduranteo intervalodeumencontroaooutro.

Estouconvencido,aliás,dequeumatalexperiênciaformadorapoderiaserfeita,comníveldeexigênciaadequadoàidadedascrianças,entreaquelasqueaindanãoescrevem. Pedir-lhes que falassem de como estão sentindo o andamento de seusdiasnaescolalhespossibilitariaengajar-senumapráticadeeducaçãodossentidos.Exigiria delas a atenção, a observação, a seleção de fatos. Por outro lado,desenvolveríamoscomistotambémasuaoralidadeque,guardandoemsiaetapaseguinte,adaescrita,jamaisdelasedevedicotomizar.Acriançaque,emcondições

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pessoais normais, fala é a criança que escreve. Se não escreve, torna-se criançaproibidadefazê-loe,sóemcasosexcepcionais,impossibilitada.

Quando Secretário Municipal de Educação vivi uma experiência que jamaispoderia esquecer. A de dois encontros com alunos da 5ª série de duas escolasmunicipais.Emmomentosdiferentes,duranteduashoras,converseicom50alunosnuma tarde e 40 noutra.A temática central de ambosos encontros era comoosadolescentes viam sua escola e que escola eles e elas gostariam de ter.Como seviamecomoviamasprofessorasnasrelaçõesquemantinham.

Assimquecomeçamosostrabalhos,noprimeiroencontro,umdosadolescentesme indagou: “Paulo,quevocêachadeumaprofessoraquepõeumalunodepé,‘cheirando’ a parede, mesmo que o aluno tivesse feito uma coisa errada, comoreconheçoquefez?”

“Achoqueaprofessoraerrou”,dissecomoresposta.“Queéquevocêfariaseencontrasseumaprofessorafazendoisso?”“Espero”,disseeu,“quevocêeseuscolegasnãosuponhamqueeudevessefazer

o mesmo com a professora. Isto seria um absurdo que jamais cometeria.Convidaria a professora para comparecer no dia seguinte a meu gabinete,juntamente com a diretora da escola, com a coordenadora pedagógica e comalguém mais responsável pela formação permanente das professoras. Em minhaconversacomelalhepediriaquemeprovassequeseucomportamentoeracorreto,pedagogicamente, cientificamente, humanamente e politicamente. Caso ela nãoconseguisseprovar—oqueseriaoóbvio—fariaentãoumapelo,ouvindoantesadiretoradaescolasobresuaopiniãoemtornodaprofessorafaltosa,nosentidodequenãorepetisseseuerro.”

“Muitobem”,disseogaroto.“Mas,eseelarepetisseomesmoprocedimento?”“Nestecaso”,respondi,“pediriaàassessoriajurídicadaSecretariaqueestudasse

ocaminholegalparapuniraprofessora.Aplicariarigorosamentealei.”Ogrupotodoentendeueeupercebiqueaquelesadolescentesnãopretendiam

umclimalicenciosomasrecusavamradicalmenteoarbítrio,ooutroautoritarismo.Queriam relações democráticas, de respeito mútuo. Se recusavam a obediênciacega,impostapelopodersemlimitesdoautoritário,rejeitavamairresponsabilidadedovaletudodoespontaneísmo.

Possivelmente alguns deles vieram às ruas, recentemente, com suas caraspintadasgritandoquevaleapenasonhar.

Nodiaseguinte,comooutrogrupo,ouviumcomentáriodeumaadolescenteinquieta enuma linguagembem-articulada: “Euqueriaumaescola,Paulo”, disse

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ela,“quenãofosseparecidacomminhamãe.Umaescolaqueacreditassemaisnosmoçosequenãopensassequeumaporçãodegenteandaàesperadagentesóparafazermal.”

Foramquatrohoras,nasduastardescomnoventaadolescentesque,sobretudo,reforçaramemmimaalegriadevivereodireitodesonhar.

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Notas

32 “Alfabetizaçãocomoelementodeformaçãodacidadania”,conferênciapronunciadaemBrasília,emreuniãopatrocinadapelaUNESCOepeloMinistériodaEducação,Brasília,1987.

33 Aestepropósito,verPauloFreire,Pedagogiadaesperança.

34 Aestepropósito,verPauloFreire,Pedagogiadooprimido.

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Oitavacarta

“VIMFAZEROCURSODOMAGISTÉRIOPORQUENÃOTIVEOUTRA

POSSIBILIDADE”

Algunsanosatrás,convidadoporumdoscursosdeformaçãodomagistériodeSãoPauloparaumaconversacomasalunasouvideváriasaafirmaçãoquedátítuloaestacarta.Masouvitambémdemuitasoutrasteroptadopelocursodeformaçãodomagistériopara,enquantoofaziam,esperarcomodamenteporumcasamento.

Estou absolutamente convencido de que a prática educativa, de que tenhofalado tanto ao longo destas páginas e a cuja boniteza e importância tenho mereferido tanto também não pode ter para sua preparação as razões de ser ou asmotivaçõesreferidas.Épossívelatéquemuitosoualgunsdoscursosdeformaçãodo magistério venham sendo irresponsavelmente puros “caça-níqueis”. Isto épossível,mas não significa dever ser a prática educativauma espécie demarquisesobqueagentepassaumachuva.Eparapassarumachuvanumamarquisenãonecessitamosdeformação.Apráticaeducativa,pelocontrário,éalgomuitosério.Lidamos com gente, com crianças, adolescentes ou adultos. Participamos de suaformação.Ajudamo-losouosprejudicamosnestabusca.Estamosintrinsecamenteaeles ligados no seu processo de conhecimento. Podemos concorrer com nossaincompetência,comnossamápreparação,comnossairresponsabilidadeparaoseufracasso.Maspodemos,também,comnossaresponsabilidade,comnossopreparocientíficoeonossogostodoensino,comnossaseriedadeeonossotestemunhodelutacontraasinjustiçascontribuirparaquevãosetornandopresençasmarcantesnomundo. Em suma, ainda que não possamos afirmar que aluno de professorincompetente e irresponsável é necessariamente incapaz e faltoso deresponsabilidadeouquealunodeprofessorcompetenteesérioéautomaticamente

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sérioecapaz,devemosassumircomhonradeznossatarefadocente,paraoqueanossaformaçãotemqueserlevadaemcontarigorosamente.

Asegundarazãoalegadaparaexplicaraopçãoemfavordocursodeformaçãodomagistério coincide com e aomesmo tempo reforça a ideologia que reduz aprofessoracomoprofissionalàcondiçãodetia.Ideologiaqueanaliseiecritiqueinaintroduçãodestelivroeaque,devezemquando,nelefizreferência.

Tenho certeza de que um dos saberes indispensáveis à luta das professoras eprofessoreséo saberquedevem forjarnelesenelas,quedevemos forjaremnóspróprios,dadignidadeeda importânciadenossatarefa.Semestesaber,semestaconvicção, entramosna lutapornosso salário, contraodesrespeito comquenostratam,quasevencidos.Obviamente,reconheceraimportânciadenossatarefanãosignificapensarqueelaéamais importanteentre todas.Significareconhecerqueela é fundamental. Algomais: indispensável à vida social. Eu não posso, porém,formar-me para a docência somente porque não houve outra chance para mim,menos ainda, somente porque, enquanto me “preparo”, espero um casamento.Comestasmotivações, que sugeremmais oumenos o perfil que faço da práticaeducativa, ficonelacomoquempassaumachuva.Daíque,namaioriadoscasos,possivelmente, não veja por que deva lutar. Daí que não me sinta mal com oesvaziamento de minha profissionalidade e aceite ser avô, como muitascompanheirasecompanheirosaceitamsertiasetios.

Anecessidadequetemosparapoderlutarcadavezmaiseficazmenteemdefesadenossosdireitos,desercompetentesedeestarconvencidosdaimportânciasocialepolíticadenossatarefa,residenofatodeque,porexemplo,aindigênciadenossossaláriosnãodependeapenasdascondiçõeseconômico-financeirasdoEstadooudasempresas particulares. Tudo isso está muito ligado a uma certa compreensãocolonialdeadministração,aumacertacompreensãocolonialdecomolidarcomosgastospúblicos,decomohierarquizarasdespesas,decomopriorizarosgastos.

Éurgenteque superemosargumentoscomoeste: “podemosdarumaumentorazoável aos procuradores, pensemos agora ao acaso, porque eles são apenassetenta. Já não podemos fazer omesmo com as professoras. Elas são vintemil”,suponhamos. Não. Isso não é argumento. O que quero saber primeiro é se asprofessoras são importantes ou não são. Se seus salários são ou não sãoinsuficientes.Se sua tarefaéounãoé indispensável.Eéem tornodissoqueestaluta,queédifícileprolongadaequeimplicaaimpacientepaciênciadoseducadoreseeducadorasea sabedoriapolíticade suas lideranças,deve insistir.É importantebrigarmos contra as tradições coloniais que nos acompanham. É indispensável

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pelejarmosemdefesadarelevânciadenossatarefa,relevânciaquedeveaospoucos,mas tão rapidamente quanto possível, fazer parte do conhecimento geral dasociedade,fazerpartedoroldeseusconhecimentosóbvios.

Quanto mais aceitamos ser tias e tios tanto mais a sociedade estranha quefaçamosgreveeexigequesejamosbemcomportados.

Tantomais,pelocontrário,asociedadereconhecearelevânciadenossoquefazerquantomaisnosdaráapoio.

É urgente que engrossemos as fileiras da luta pela escola pública neste país.Escola pública e popular, eficaz, democrática e alegre com suas professoras eprofessores bem pagos, bem formados e permanentemente formando-se. Comsalários em distância nunca mais astronáutica, como hoje, em face de quepercebempresidentesegerentesdeestatais.

Éprecisoquefaçamosdestetemaumtematãonacionaletãofundamentalparaa presença histórica doBrasil nomundo no próximomilênio que inquietemos abem-comportada e insensível consciência dos burocratas ensopados, dos pés àcabeça,deideiascoloniais,atéquandosedizemmodernizantes.

Nãoépossívelquecontinuemosnasvésperasdachegadadonovomilênio,comdéficits tãoalarmantesemnossaeducação—oquantitativoeoqualitativo.Commilharesdeprofessoreschamadosleigos,atéemáreasdoSuldopaís,ganhandoàsvezesmenosdametadedeumsalário-mínimo.Genteheroica,dadivosa,amorosa,inteligente,masdesprezadapelasoligarquiasnacionais.

NãoépossívelcontinuarmosaseteanosdopróximomilêniocomoitomilhõesdeCarlinhosedeJosefasproibidosdeterescolaecomoutrosmilhõessendoexpulsosdelaedelesaindasedizendoqueseevadem.

Nãonosespanta,porexemplo,quandosabemosque“atéa independêncianãohavia um sistema de instrução” no país. “Não só não havia sistema de instruçãopopularcomoasmanifestaçõesculturaiseramproibidas.AtéachegadadaFamíliaReal era proibido o estabelecimento de tipografias no país, sob as mais severaspenas.”

“Ao ser feita a independência, a nascente nação via-se mergulhada na maisprofundaignorância;oensinopopularentãoexistentenãopassavadeumastantasescolas salpicadas pelas capitanias. O ensino secundário público era dado naschamadas “aulas régias”onde semisturavaumensinoestéril epedantede latim,grego, retórica, filosofia racionalemorale coisas semelhantes.O livroera raroemesmoaspessoasmaisqualificadasnãopossuíamhábitodeler.”35

É preciso acompanharmos a atuação daquele ou daquela em quem votamos,

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não importa se para que, se para vereador, deputado estadual, federal, prefeito,senador, governadoroupresidente; vigiar seuspassos, seus gestos, suas decisões,suas declarações, seus votos, sua omissão, sua conivência com a desvergonha.Cobrar suas promessas, avaliá-los com rigor para nele ou nela de novo votar ounegar-lhesonossovoto.Negar-lhesonossovotoecomunicar-lhesarazãodenossaposição.Maisainda,tornar,tantoquantopossívelpública,nossaposição.

Se não fôssemoso país do desperdício que estamos sendo e de que tomamosciência quase diariamente pela imprensa e pela TV, desperdício pelodesaproveitamento do lixo, desperdício pelo desrespeito acintoso à coisa pública,instrumentos de milhões de dólares ao relento ou desusados, desperdício pelasobrasiniciadas,hospitais,creches,viadutos,passarelas,edifíciosenormeseumdiaparalisadas para, pouco tempo depois, darem a impressão de descobertasarqueológicas de velhas civilizações até então sepultadas; desperdício milionáriocomverdurase frutasnosgrandescentrosdedistribuiçãodopaís.Valeriaapenacalcularessedesperdíciotodoeveroquecomele,seelenãoexistisse,sefarianocampodaeducação.

Sei que são coisas como estas, e este passado colonial tão presente no ar querespiramos, no arbítrio dos poderosos, na empáfia de administradores arrogantesque, às vezes, até inconscientemente, explica o sentimento de impotência, ofatalismo com que reagem muitas e muitos de nós. É possível que tudo issoamoleça o ânimo de muita professora que, assim, “aceite” ser tia em lugar deassumir-se profissionalmente como professora. Pode ser isso também que, emparte, pelo menos, explique a posição de professorandas que fazem o curso depreparaçãoparaomagistérioenquanto“esperamumcasamento”.

Naverdade,oquevalecontraesseestadodecoisaséalutapolíticaorganizada,éasuperaçãodeumacompreensãocorporativistaporpartedossindicatos,éavitóriasobreasposiçõessectárias,éapressãojuntoaospartidosprogressistas,delinhapós-modernaenãode tradicionalismoesquerdista.Enãodeixar-noscairnumfatalismoque,piordoqueobstaculizarasolução,reforçaoproblema.

Chegoquaseaexitar,peloóbvioqueé,emdizerque,naverdade,estescomoquaisquer outros problemas ligados à educação, não são problemas pedagógicos.Sãoproblemaspolíticoseéticostantoquantoosproblemasfinanceirososão.

Os recentes desfalques descobertos nos bens dos trabalhadores — Fundo deGarantiaporTempodeServiço—davam, segundo informaçãodecompetenteesério comentarista de uma estação de TV, para construir seiscentas mil casaspopularesemtodoopaís.

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Quandofaltadinheiroparaumsetormasnãofaltaparaumoutroarazãoestána política dos gastos. Falta dinheiro, por exemplo, para tornar a vida da favelamenos insuportável mas não falta para ligar um bairro rico a outro através demajestoso túnel, por exemplo. Isso não é problema tecnológico. É questão dedecisãopolítica.Éopçãopolítica.EissonosacompanhaaolongodaHistória.Em1852, protestando contra o salário do professor primário, quando assumiu pelaprimeiravezaprovínciadoParaná,oconselheiroZacariasdeVasconcelos falavadoabsurdodaquelesalário:menosde800réisdiários.

“Aconsequênciadadeficiênciadasdotaçõeseraqueomagistérionãoseduzia”,dizBerlinck. Só iria ser professor quemnãodavaparamais nada, era a sentençarepetidapormuitospresidentesdeprovíncias.“Seeraurgentevalorizar”,continuaBerlinck, “a instrução entre os habitantes do Brasil, dificilmente se poderiadescobrir processo menos condizente com essa finalidade do que a parcaremuneraçãodosprofessores”.36

Creioqueossindicatosdacategoriadetrabalhadoresdoensinodeveriamjuntaràsualutaimediatadereivindicaçãosalarialedemelhoriadascondiçõesmateriaisparaobomexercíciodadocênciaumaoutra,alongoprazo.Aque,esmiuçandoapolítica dos gastos públicos, que inclui os descompassos entre o salário dosprofessores primários e outros profissionais, inclui também as chamadas“vantagens”,ascomissõesegratificaçõesque,apósalgumtempo,sãoincorporadasaosalário.

Em última análise, um sério estudo de política salarial substantivamentedemocrática, não colonial, com que, de um lado, se fizesse justiça aomagistérionestepaís,deoutro,sesanassemdesigualdadesaviltantes.

Nos anos 50, visitando oRecife, disse, em entrevista, o padre Lebret, famosocriador de Economia e Humanismo, que entre as coisas que mais o haviamescandalizadoentrenóseraadistânciaalarmanteentreosaláriodosaquinhoadoseosaláriodosrenegados.Hoje,adisparidadecontinua.NãosepodecompreenderadesproporçãoentreoquepercebeumPresidentedeEstatal,independentementedaimportância de seu trabalho e o que recebe uma professora de primeiro grau.ProfessoradecujatarefaoPresidentedaEstataldehojenecessitouontem.

Éurgentequeomagistériobrasileirosejatratadocomdignidadeparaquepossaasociedadenãosóesperarmasdeleexigirqueatuecomeficácia.

Seríamos,porém, ingênuos sedescartássemosanecessidadeda lutapolítica.Anecessidade, nesta luta, de esclarecer a opinião pública sobre a situação do

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magistério em todoo país.Anecessidade, nesta luta, de comparar os salários dediferentesprofissionaiseadisparidadeentreelesaquejámereferi.

Ébemverdadeque a educaçãonão é a alavancada transformação socialmassemelaatransformaçãosocialtambémnãosedá.

Nenhumanaçãoseafirmaforadessaloucapaixãopeloconhecimento,semqueseaventure,plenadeemoção,na reinvençãoconstantede simesma, semque searrisquecriadoramente.

Nenhumasociedadeseafirmasemoaprimoramentodesuacultura,daciência,dapesquisa,datecnologia,doensino.Etudoissocomeçacomapré-escolaque,porsuavez,precisadauniversidade.

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Notas

35 B.L.Berlinck,Fatoresadversosna formaçãobrasileira, 2.ed.,SãoPaulo:Oficinasgráficasda Impressora IPSISS/A,1954,p.233-234.

36 Ibidem.

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Nonacarta

PRIMEIRODIADEAULA

Nesta última carta, gostaria de entregar-me, sem espontaneísmo mas comespontaneidade, a uma série de problemas com que não apenas a inexperienteprofessora mas também a que já vem lidando com sua tarefa, vez ou outra sedefronta e a que temdedar resposta.Nãoque, ao escrever esta carta, passeporminhacabeçatereuarespostaaserdadaaosproblemasouàsdificuldadesqueireiapontando.Não,também,poroutrolado,quenãocreiateralgumasugestãoútiladar,produtodeminhaexperiência edemeuconhecimento sistematizado. Se, aoescrever,nãosóestacarta,masolivromesmo,meachasseassaltadopelaideiadequepossuoaverdadeinteirasobreosdiferentestópicosdiscutidos,estariatraindominha compreensão do processo de conhecimento como processo social einconcluso, como devir. Por outro lado, se julgasse não ter nada com quecontribuirparaaformaçãodequemsepreparaparaassumir-secomoprofessoraedequemjáseachainseridanapráticadocentenãodeveriaterescritoolivro,porinútil.Nestesentido,nãotendoaverdade,o livrotemverdades emeusonhoéqueelas,provocandooudesafiandoasposiçõesassumidasousendoassumidasporsuasleitoras e leitores, os engajem num diálogo crítico, que tenha como camporeferencial sua prática, sua compreensão da teoria que a funda e as análises quefaço. Jamais escrevi até hoje nenhum livro com a intenção de que fosse o seuconteúdodeglutidoporseuspossíveis leitoresou leitoras.Daíquetenha insistidotanto,numadascartas,noindeclinávelpapeldoleitornaproduçãodainteligênciadotexto.

Algomais que gostaria de aclarar: na “andarilhagem” que farei em torno dostemas que tratarei, nas idas e voltas em que os vou pinçando, deverei voltar a

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alguns antes referidos. Me esforçarei, porém, para, em lugar de redundante, seresclarecedor.

Começarei por comentar a situação de quem, pela primeira vez, numacircunstâncianãoobservada,seexpõeinteiraaosalunosaoinaugurarsuadocência.

Dificilmenteesteprimeirodiaseráumdiaseminseguranças,semtimidez,seminibições,sobretudoseaprofessoraouoprofessormaisdoquepuramentesepensainseguro está realmente inseguro, se sente tocadopelomedo denão ser capazdeconduzir os trabalhos, de contornar as dificuldades. No fundo, de repente, asituaçãoconcretaqueelaoueleenfrentaalinasalanãotemnadaouquasenadaquevercomaspreleçõeschamadasteóricasqueseacostumaramaouvirnasaulasdeseucurso.Àsvezes,atéqueháalgumarelaçãoentreoqueouvirameestudarammasaincertezademasiadograndequeosassaltaosdeixaaturdidoseconfusos.Nãosabemcomodecidir.

Me lembro agora da carta emque falei domedo comoumdireito.Comoumdireitoquetenhomasaquecorrespondeodeverdeeducá-lo,odeverdeassumi-lopara superá-lo. Assumir omedo é não fugir dele, é analisar a sua razão de ser, émedir a relaçãoentreoqueo causae anossa capacidadede resposta.Assumiromedoénãoescondê-losomentecomopodemosvencê-lo.

Ao longo de minha vida nunca perdi nada por me expor, expondo meussentimentos, dentro, obviamente, de certos limites.Emuma situação comoesta,creio que, em lugar da expressão falsa de uma falsa segurança, em lugar de umdiscurso que, de tão dissimulado, desvela nossa fraqueza, o melhor é enfrentarnosso sentimento.Omelhor é dizer aos educandos, numa demonstração de quesomoshumanos, limitados,oqueexperimentamosnahora.Éfalaraelessobreopróprio direito ao medo, que não pode ser negado à figura da educadora ou doeducador. Tanto quanto o educando, a educadora tem direito a ter medo. Aeducadoranãoéumserdiferente, invulnerável.É tãogentequantooeducando,tãosentimentoetãoemoçãoquantooeducando.Oqueacontraindica,emfaceaomedo,a sereducadora,éa incapacidadede lutarpara sobrepujaromedo enãoofatode tê-looude senti-lo.Omedo de como se sair no seu primeiro dia de auladiante,muitasvezes,dealunos jáexperimentadosequeadivinhama insegurançadoprofessorneófitoéalgomaisdoquenatural.

Falandodeseumedo,deseureceio,desuainsegurança,oeducadorvaifazendo,deumlado,umaespéciedecatarseindispensávelaocontroledomedo,deoutro,vai, possivelmente, ganhando a confiança dos educandos. É que, em lugar deprocurar esconder omedo comapelosautoritários facilmente reconhecíveis pelos

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educandos, o professor o manifestou com humildade. Falando de seu medo sereveloueseassumiucomogente.Testemunhouoseudesejodeaprendertambémcomoseducandos.Éóbvio,eagoraretomotemaantestratado,queestaposturanecessáriadaeducadoraem facedoseducandose em funçãode seumedo requerdelaapazqueahumildadelhedá,bemcomoacertezadequenãoatrairá.Mas,requer também profunda confiança — não ingênua, mas crítica — nos outros euma opção, coerentemente vivida, pela democracia. Uma educadora elitista,autoritária, dessas para quem a democracia dá sintomas de se estar deteriorandoquando as classes populares começam a encher as ruas e as praças com seusprotestos,jamaisentendeahumildadedeassumiromedoanãosercomocovardia.Naverdade,pelocontrário,aassunçãodomedoéocomeçodesuatransformaçãoemcoragem.

Outroaspectofundamentalligadoàsprimeirasexperiênciasdocentesdasjovensprofessoraseaqueasescolasdeformaçãosenãodãodeviamdarimensaatençãoéoda instrumentaçãodasprofessorandasouodesua formaçãoparaa“leitura”daclasse de alunos como se fosse a classe um texto a ser decifrado, a ser lido, a sercompreendido.

A jovemprofessora deve estar atenta a tudo, aosmais inocentesmovimentosdosalunos,àinquietaçãodeseuscorpos,aoolharsurpreso,àreaçãomaisagressivaoumaistímidadesteoudaquelealunooualuna.

Osgostosdeclasse,osvalores,alinguagem,aprosódia,asintaxe,aortografia,asemântica, quando a professora de classe média assume seu trabalho em áreasperiféricasdacidade,tudoistoéquasesempretãocontraditórioquechocaeassustaainexperimentadaprofessora.Épreciso,porém,queelasaibaqueasintaxedeseusalunos,suaprosódia,seusgostos,suaformadedirigir-seaelaeaseuscolegas,asregrascomquebrincamoubrigamentresi,tudoistofazpartedoquechamamossuaidentidadeculturalaquejamaisfaltaumcortedeclasse.Etudoissotemdeseracatado para que o próprio educando, reconhecendo-se democraticamenterespeitado no direito de dizer menas gente, possa aprender a razão gramaticaldominanteporquedevedizermenosgente.

Boadisciplinaintelectualparaesseexercíciode“leitura”daclassecomosefosseum texto seria a de criar a professora o hábito, que virasse gosto e não puraobrigação,defazerfichasdiáriascomoregistrodereaçõescomportamentais,comanotações de frases e seu significado ao lado, com gestos não claramentereveladoresdecarinhoouderecusa.Eporquenãosugerirtambémaoseducandoscomo uma espécie de jogo em que fizessem, em função do domínio de sua

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linguagem, suas observações também em torno dos gestos da professora, de suafala, de seu humor, em torno do comportamento de seus colegas, etc. A cadaquinzediassefariaumaespéciedeseminárioavaliativo,comcertasconclusõesquedeviamser,deumlado,aprofundadas,deoutro,postasemprática.

Sequatroprofessorasconseguissemfazer,numamesmaescola,trabalhocomoestecomsuasclasses,podemosimaginaroqueseconseguiriadecrescimentoemtodosossentidosentrealunoseprofessoras.

Umaobservaçãoimportanteafazer.Se,paraaleituradetextos,necessitamosdeinstrumentos auxiliares de trabalho como dicionários, desde os básicos da línguaaos filosófico, etimológico, de regimes de verbos, de substantivos e adjetivos, desinônimoseantônimosàsenciclopédias,paraa“leitura”dasclassescomosefossemtextos,precisamos igualmentede instrumentosmenos fáceisdeusar.Precisamos,porexemplo,debemobservar,debemcomparar,debemintuir,debemimaginar,debem liberar nossa sensibilidade, de crer nos outros mas não demasiado no quepensamos dos outros. Precisamos exercitar ou educar a capacidade de observar,registrandooqueobservamos.Masregistrarnãoseesgotanopuroatodefixarcompormenoresoobservadotalqualparanóssedeu.Significatambém,eaoladodesteregistro, arriscar-nos a fazer algumas observações críticas e avaliativas a que nãodevemoscontudo,emprestararesdecerteza.Todoessematerialdevesempreestarsendoestudadoereestudadopelaprofessoraqueoproduze,porelaeaclassedealunoscomquemtrabalha.Acadaestudoeacadareestudoquesefaça,emdiálogocomoseducandos,ratificaçõeseretificaçõessevãofazendo.Cadavezmaisaclassecomo “texto” vai tendo sua “compreensão” produzida por si mesma e pelaeducadora. E a produção da compreensão atual implica a re-produção dacompreensão anterior que pode levar a classe, através do conhecimento doconhecimentoanteriordesimesma,aumnovoconhecimento.

Não temer os sentimentos, as emoções, os desejos e lidar com eles com omesmo respeito com que nos damos à prática cognitiva da qual não osdicotomizamos. Estar advertidos e abertos à compreensão das relações entre osfatos, os dados, os objetos na compreensão do real. Nada disso pode escapar àtarefadocentedaeducadoranoprocessode“leitura”desuaclasseecomqueelatestemunhaaseusalunosquesuapráticadocentenãoseadstringeapenasaoensinomecânicodosconteúdos.Maisainda,queonecessárioensinodessesconteúdosnãopode prescindir do crítico conhecimento das condições sociais, culturais,econômicasdocontextodoseducandos.

Eéesseconhecimentocríticodocontextodoseducandosqueexplicamaisdo

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que a dramaticidade, tragicidade com que vive um sem número deles e delas.Tragicidadenaqualconvivemcomamortemuitomaisdoquecomavidaeemqueavidapassaaserquasepuropretextoparamorrer.

“Vocêcostumasonhar?”,perguntoucertavezumrepórterdeumaemissoradeTVdeSãoPauloaumacriançadeunsdezanos,“boia-fria”,nointeriordoestado.“Não”,disseacriançaespantadacomapergunta.“Eusótenhopesadelo.”

O mundo afetivo deste sem número de crianças é um mundo roto, quaseesfarelado, vidraça estilhaçada. Por isso mesmo essas crianças, por suas razões;outras,pordiferentes,precisamdeprofessorasedeprofessoresprofissionalmentecompetenteseamorososenãodepurostiosedetias.

Devorefletir:éprecisonãotermedodocarinho,nãofechar-seàcarênciaafetivadosseresinterditadosdeestarsendo.Sóosmalamadoseasmalamadasentendema atividade docente como um quefazer de insensíveis, de tal maneira cheios deracionalismoqueseesvaziamdevida,deemoção,desentimentos.

Creio, pelo contrário, que a sensibilidade em face da dor imposta às classespopulares brasileiras pelo descaso malvado com que são destratados quandoassumidacoerentementenosmove,nosempurra;nosestimulaàlutapolíticapelamudançaradicaldomundo.

Nadadissoéfácildeserfeitoenãogostariadetransmitiraideiadeligeirezademinhapartedandoaimpressãoaosleitoreseleitorasprováveisdestelivrodequebastaquererparamudaromundo.Quereréfundamentalmasnãoésuficiente.Épreciso também saber querer, aprender a saber querer, que implica aprender asaberlutarpoliticamentecomtáticasadequadasecoerentescomosnossossonhosestratégicos.Oquenãomeparecepossívelénadaoumuitopoucofazerdiantedosdescompassos terríveisquenosmarcam.Eemmatériadecontribuirpara fazeromundo,onossomundo,menosruim,nãotemosporquepensaremmodestasouretumbantes ações. Tudo o que se puder fazer com competência, com lealdade,com clareza, com persistência, somando forças para enfraquecer as forças dodesamor, do egoísmo, da malvadez é válido e importante. Neste sentido, é tãoválidaenecessáriaapresençaatuantedeumlídersindicalnumafábrica,explicandonamadrugadadeumaquarta-feira,emfrenteaosportõesdaempresa,asrazõesdagreve em processo, quanto indispensável é a prática docente de uma jovem oumadura professora que, numa escola da periferia, falam a seus alunos sobre odireitodedefenderasuaidentidadecultural.Olíderoperário,noportãodafábrica;aprofessora,nasuaescola,têmambosmuitooquefazer.

Sinto imperiosanecessidadededizer, pormais redundantequepossaparecer,

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nãoapenascomrelaçãoaestelivromascomtudooquetenhoescrito,que,longedemim,pretenderreduzirapráticaeducativaprogressistaaumesforçopuramentepolítico-partidário.Oquedigoéquenãopodehaverensinoneutrodeconteúdoscomoseestes,emsimesmos,fossemtudo.

Nestaounoutracartadestelivro,faleinanecessidadequetemaprofessoraouoprofessor de deixar voar criadoramente sua imaginação, obviamente de formadisciplinada. E isto desde o primeiro dia de aula, demonstrando aos alunos aimportânciadaimaginaçãoemnossavida.Comoaimaginaçãoajudaacuriosidade,a inventividade, como aguça a aventura, sem o que não criamos. A imaginaçãonaturalmentelivre,voandoouandandooucorrendolivre.Nousodosmovimentosdocorpo,nadança,noritmo,nodesenho,naescrita,desdeomomentomesmoemqueaescritaépré-escrita—égaratuja.Naoralidade,narepetiçãodoscontosquesereproduzemdentrodesuacultura.A imaginaçãoquenos levaasonhospossíveiscomoa impossíveis,necessária sempre,porém.Épreciso estimular a imaginaçãodoseducandos,usá-lanopróprio“desenho”deescolacomqueeles sonham.Porquenãopôremprática,naprópriasalaouclassedosalunos,parte,porexemplo,daescolacomquesonham?Porque,aofalar,aodiscutiraimaginação,osprojetos,ossonhos, não sublinhar aos educandos os obstáculos concretos às vezesintransponíveis no momento para a realização da imaginação. Por que,aproveitandoensaiosdeimaginação,nãointroduzirconhecimentoscientíficosaosquais direta ou indiretamente se acham ligados retalhos da imaginação? Por quenão enfatizar o direito a imaginar, a sonhar e a brigar pelo sonho? Porque aimaginaçãoque seentregaao sonhopossívelenecessárioda liberdade temde seenfrentar com as forças reacionárias para quem a liberdade lhes pertence comodireitoexclusivo.Afinal,éprecisodeixarclaroqueaimaginaçãonãoéexercíciodegente desligada do real, que vive no ar. Pelo contrário, ao imaginarmos algo ofazemos condicionados precisamente pela carência de nosso concreto.Quando acriança imagina uma escola alegre e livre é porque a sua lhe nega liberdade ealegria.

AtéantesdedeixaroRecifeliváriosvolumesdaliteraturadecordelemqueospoetasexploravamexatamenteascarênciasdeseucontexto.

Nuncaesqueçodeumdaqueleslivrosquedescreviaum“cuscuz”commaisdemilmetrosdealturacomqueapopulaçãodeumdistritosebanqueteava.Essanãoera assim uma imaginação louca mas a loucura de uma população faminta. Osonhoquetomavaformanapoesia,demaneiraabundante,eraaexpressãodeumaconcretafalta.

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Imaginemos agora uma classe que, com a presença coordenadora, sensível einteligente da professora, imaginasse, em diálogo, um sistema de princípiosdisciplinares, de regras abrangentes e que regulassem a vida em grupo da classe.Possivelmente, até, comalgunsdosprincípios rígidos alémda conta.Aposta emprática desta “meia constituição” se fundaria num princípio básico — o dapossibilidade de, por maioria, se poder alterar o sistema de regras. Haveria,naturalmente, mecanismos reguladores do funcionamento das regras mas tudocomumdecisivogostodemocrático.Emsociedadecomoanossa,permita-se-meareiteiração — de tradição tão robustamente autoritária, encontrar caminhosdemocráticosparaoestabelecimentodelimitesàliberdadeeàautoridadecomqueevitemos,deumlado,alicenciosidadequenoslevaao“deixacomoestáparavercomo fica” e, de outro, ao autoritarismo todo-poderoso é algo de relevanteimportância.

A questão da sociabilidade, da imaginação, dos sentimentos, dos desejos, domedo, da coragem, do amor, do ódio, da pura raiva, da sexualidade, dacognoscitividadenos levaànecessidadede fazeruma“leitura”docorpocomosefosseumtexto,nasinter-relaçõesquecompõemoseutodo.

Leitura do corpo com os educandos, interdisciplinarmente, rompendodicotomias,rupturasinviáveisedeformantes.

Minha presença no mundo, com o mundo e com os outros implica o meuconhecimento inteiro de mim mesmo. E quanto melhor me conheça nestainteirezatantomaispossibilidadetereide,fazendoHistória,mesabersendoporelarefeito.E,porquefazendoHistóriaeporelasendofeito,comosernomundoecomomundo,a“leitura”demeucorpocomoadequalqueroutrohumano implicaaleitura do espaço.37 Neste sentido, o espaço da classe que acolhe os medos, osreceios, as ilusões, os desejos, os sonhos de professoras e de educandos deve seconstituir em objeto de “leitura” de professora e de educandos, como enfatizaMadalenaFreireWeffort.38Oespaçodaclassequesealongaaodorecreio,aodasredondezasdaescola,aodaescolatoda.

Percebe-seoabsurdodoautoritarismoquandoconcebeedeterminaqueessesespaços todos pertencem por direito, às autoridades escolares, aos educadores eeducadoras, não porque simplesmente sejam gente adulta pois gente adulta sãotambémascozinheiras,oszeladores,osvigiasesãopurosservidoresdestesespaços.Espaçosquenãolhespertencemcomonãopertencemaoseducandos.Écomoseoseducandosestivessemapenasneles,masnãocomeles.

Éprecisoqueaescolaprogressista,democrática,alegre,capazrepensetodaessa

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questão das relações entre corpo consciente e mundo. Que reveja a questão dacompreensãodomundo, enquanto, deum lado, produzindo-sehistoricamentenomundo mesmo, de outro, sendo produzida pelos corpos conscientes em suasinterações comele.Creioquedesta compreensãoda compreensão resultaráumanovamaneiradeentenderoqueéensinar,oqueéaprender,oqueéconhecerdequeVygotskynãopodeestarausente.

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Notas

37 Aestepropósito,verMauriceMerleau-Ponty,Fenomenologiadelapercepción,Barcelona,EditoraAltaya,1993.

38 Emconversacomoautor.

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Décimacarta

MAISUMAVEZAQUESTÃODADISCIPLINA

Em uma de minhas cartas me referi à necessidade da disciplina intelectual a serconstruídapeloseducandosemsimesmos,eemsimesmas,comacolaboraçãodaeducadora.Disciplinasemaqualotrabalhointelectual,a leiturasériadetextos,aescritacuidadaqueagentevaiaprendendoametodizar,aproduzir,aobservaçãodosfatos,suaanálise,oestabelecimentoderelaçõesentreeles,nadadissosecria.Etudo isso a que não falte o gosto da aventura, da ousadia, mas a que não falteigualmenteanoçãodolimite,paraqueaaventuraeaousadiadecriarnãoviremirresponsabilidadelicenciosa.Épreciso,poroutrolado,afastaraideiaemtornodaexistênciadedisciplinasdiferenteseseparadas.Uma,aintelectual,dequefalamosagora,aoutra,porexemplo,adisciplinadocorpo,aquetemquevercomhoráriosparaexercícios,adisciplinadoatleta.Umaoutra,adisciplinaético-religiosa,etc.Oque pode haver é que determinados objetivos exijam caminhos disciplinaresdiferentes. O fundamental porém é que, se sadia a disciplina exigida, se sadia acompreensãodadisciplina,sedemocráticaaformadecriá-laedevivê-la,sesadiosos sujeitos forjadores da indispensável disciplina ela é sempre algo que implica aexperiência dos limites, o jogo contraditório entre a autoridade e a liberdade ejamaisprescindedesólidabaseética.Nestesentidojamaispudecompreenderque,em nome de nenhuma ética, possa a autoridade impor uma disciplina absurdasimplesmenteparaexercitarnaliberdadeacomodando-seasuacapacidadedeserleal,aexperiênciadeumaobediênciacastradora.

Não há disciplina no imobilismo, quer dizer, na autoridade indiferente, fria,distante, que entrega à liberdade os destinos de simesma.Na autoridade que sedemite em nome do respeito à liberdade. Mas não há também disciplina no

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imobilismo da liberdade, à qual a autoridade impõe sua vontade, suas preferênciascomosendoasmelhoresparaaliberdade.Imobilismoaquesesubmetealiberdadeintimidadaoumovimento da pura sublevação. Só há disciplina, pelo contrário, nomovimentocontraditórioentreacoercibilidadenecessáriadaautoridadeeogostoeabusca desperta da liberdade para assumir-se. Por isso é que a autoridade que sehipertrofiaemautoritarismoouseatrofiaemlicenciosidade,perdendoosentidodomovimento,seperdeasimesmaeameaçaaliberdade.Nahipertrofiadaautoridadeseu movimento se robustece a tal ponto que imobiliza ou distorce totalmente omovimentodaliberdade.Aliberdadeimobilizadaporumaautoridadeatrabiliáriaouchantagista é a liberdade que não se tendo assumido se perde na falsidade demovimentosinautênticos.

Paraquehajadisciplinaéprecisoquealiberdadenãoapenastenhaodireitomasoexerçadedizernãoaoqueselhepropõecomoaverdadeeocerto.Aliberdadeprecisa aprender a afirmar negando, não por puro negar, mas como critério decerteza.Énestemovimentodeidaevoltaquealiberdadeterminaporinternalizaraautoridade e se torna uma liberdade com autoridade somente como, enquantoautoridade,respeitaaliberdade.

Aresponsabilidadequetemostodosetodas,enquantoseressociaisehistóricos,portadoresdeumasubjetividadequejogapapelimportantenahistória,noprocessodeste movimento contraditório entre autoridade e liberdade é de indiscutívelimportância.Responsabilidadepolítica,social,pedagógica,ética,estética,científica.Mas, ao reconhecer a responsabilidade política, superemos a politiquice, aosublinhar a responsabilidade social, digamos não aos interesses puramenteindividualistas, ao reconhecermos os deveres pedagógicos, deixemos de lado asilusõespedagogistas, aodemandar a eticidade, fujamosda feiura dopuritanismo enos entreguemos à invenção da boniteza da pureza. Finalmente ao aceitarmos aresponsabilidadecientífica,recusemosadistorçãocientificista.

Talvez algum leitor ou leitora mais “existencialmente cansado” e“historicamenteanestesiado”39digaqueeuestousonhandodemasiado.Sonhando,sim,poisque,comoserhistóricosenãosonhonãopossoestarsendo.Demasiado,não. Acho até que sonhamos pouco com esses sonhos, tão fundamentalmenteindispensáveisàvidaouàsolidificaçãodenossademocracia.Adisciplinanoatodeler, de escrever, de escrever e de ler, no de ensinar e aprender, no processoprazeroso mas difícil de conhecer; a disciplina no respeito e no trato da coisapública;norespeitomútuo.

Nãovaledizerque,enquantoprofessorouprofessora,não importaograuem

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quetrabalhe,poucaimportânciateráoqueeufaçaounãofaça.Poucaimportânciaterá em vista do que os poderosos fazem em favor de si mesmos e contra osinteressesnacionais.Estanãoéumaafirmaçãoética.Ésimplesmenteinteresseiraeacomodada.Pioréque,seacomodado,imobilizadosminhaimobilidadeseconverteemmotordemaisdesvergonha.Minhaimobilidadeproduzidaounãopormotivosfatalistas,funcionacomoeficazaçãoemfavordasinjustiçasqueseperpetuam,dosdescalabrosquenosafligem,doretardamentodesoluçõesurgentes.

Não se recebe democracia de presente. Luta-se pela democracia. Não serompem as amarras que nos proíbem de ser com paciência bem-comportada, mascom Povo mobilizando-se, organizando-se, conscientemente crítico. Com asmaiorias populares não apenas sentindo que vêm sendo exploradas desde que seinventou o Brasil mas também juntando ao sentir o saber que estão sendoexploradas o saber que lhes dá a raison d’être do fenômeno que alcançampreponderantementeaoníveldasensibilidadedele.

Gostaria aqui de deixar claro que, ao falar em sensibilidade do fenômeno e emapreensão crítica do fenômeno não estou, de modo nenhum, sugerindo sequer,nenhuma ruptura entre sensibilidade, emoções e atividade cognoscitiva. Já disse queconheçocommeucorpointeiro:sentimentos,emoções,mentecrítica.

Deixemosclaro,tambémquePovomobilizando-se,Povoorganizando-se,Povoconhecendoemtermoscríticos,Povoaprofundandoe solidificandoademocraciacontra qualquer aventura autoritária é Povo igualmente forjando a necessáriadisciplina sem a qual a democracia não funciona. No Brasil, quase sempre,oscilamosentreaausênciadadisciplinapelanegaçãodaliberdadeouaausênciadedisciplinapelaausênciadaautoridade.

Falta-nosdisciplinaemcasa,naescola,nasruas,notráfego.Onúmerodosqueedasquemorrem,nosfinsdesemana,porpuraindisciplina,oqueopaísgastanessesacidentes,nosdesastresecológicos,éalgoassombroso.

Outrafaltaderespeitoostensivoaosoutros,tãonefastaquantoamaneiracomovimos sendo indisciplinados, é a licenciosidade, a irresponsabilidade com que semataimpunementenestepaís.

Enquanto classes dominadas e exploradas no sistema capitalista, as classespopularesprecisam,aomesmotempoqueseengajamnoprocessodeformaçãodeuma disciplina intelectual, de ir criando uma disciplina social, cívica, política,absolutamente indispensávelàdemocraciaquevámaisalémdapurademocracia,burguesae liberal.Umademocraciaque,afinal,persigaasuperaçãodosníveisdeinjustiçaedeirresponsabilidadedocapitalismo.

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Estaéumadastarefasaquedevemosnosentregarseeducadorasoueducadoresprogressistas entre nós e não à mera tarefa de ensinar, no sentido errôneo detransmitirosaberaoseducandos.

O professor deve ensinar. É preciso fazê-lo. Só, porém, que ensinar não étransmitirconhecimento.Paraqueoatodeensinarseconstituacomotaléprecisoque o ato de aprender seja precedido do ou concomitante ao ato de apreender oconteúdoouoobjetocognoscível,comqueoeducandosetornaprodutortambémdoconhecimentoquelhefoiensinado.

Só na medida em que o educando se torne sujeito cognoscente e se assumacomo tal, tanto quanto sujeito cognoscente é tambémo professor, é possível aoeducandotornar-sesujeitoprodutordasignificaçãooudoconhecimentodoobjeto.Énestemovimento dialéticoque ensinar eaprender se tornamou vão se tornandoconhecer e reconhecer. O educando vai conhecendo o ainda não conhecido e oeducador,re-conhecendooantessabido.

Esta forma de não apenas compreender o processo de en-sinar e de aprendermas de vivê-la exige a disciplina de que tenho falado e de que venho falando.Disciplina que não pode dicotomizar-se da outra, a política, indispensável àinvençãodacidadania.Sim,acidadania,sobretudonumasociedadecomoanossa,detradiçõestãorobustamenteautoritáriaseelitistas,discriminatóriasdopontodevistadosexo,daraçaedaclasse,acidadaniaémesmoumainvenção,umaproduçãopolítica. Neste sentido, o exercício pleno da cidadania por aqueles e aquelas quesofrem qualquer das discriminações ou todas a um só tempo não é algo de queusufruamcomodireitopacíficoe reconhecido.Pelo contrário, éumdireito a seralcançado e cuja conquista faz aumentar ou crescer substantivamente ademocracia.Acidadaniaqueimplicaousodeliberdades—liberdadedetrabalhar,de comer,devestir, de calçar,dedormir emumacasa,demanter-se e à família,liberdadedeamar,deterraiva,dechorar,deprotestar,deapoiar,delocomover-se,departicipardestaoudaquelareligião,desteoudaquelepartido,deeducar-seeàfamília,liberdadedebanhar-senãoimportaemquemardeseupaís—acidadanianãochegaporacaso.Éumaconstruçãoque,jamaisterminada,demandabrigaporela.Demandaengajamento,clarezapolítica,coerência,decisão.Porissomesmoéqueumaeducaçãodemocráticanãosepoderealizaràpartedeumaeducaçãodaeparaacidadania.

Quantomaisrespeitarmososalunosealunasindependentementedesuacor,deseu sexo, de sua classe social, quanto mais testemunho dermos de respeito emnossavidadiária,naescola,emnossasrelaçõescomnossoscolegas,comzeladores,

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cozinheiras, vigias, pais e mães de alunos; quanto mais diminuirmos a distânciaentreoquedizemoseoque fazemos, tantomaisestaremoscontribuindoparaofortalecimento de experiências democráticas. Estaremos desafiando-nos a nósprópriosamaislutaremfavordacidadaniaedesuaampliação.Estaremosforjandoem nós a indispensável disciplina intelectual sem a qual obstaculizamos nossaformaçãobemcomoanãomenosnecessáriadisciplinapolítica,indispensávelàlutaparaainvençãodacidadania.

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Nota

39 Apropósitode“cansaçoexistencial”e“anestesiahistórica”,verPauloFreire,Pedagogiadaesperança.

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Últimotexto

SABERECRESCER:TUDOAVER

Resolvi fechareste livrocomestetexto,apresentadonumcongressorealizadonoRecife,noanopassado,eemque,repetindoalgumasanálisesemtornodocontextoconcreto,odacotidianidade,maisclarificaoconceitodoquepodeentediaroleitorouleitora.

Refletir sobre o tema implícito na frase é a tarefa que me foi proposta pelosorganizadoresdesteencontro.

O ponto de partida de minha reflexão deve incidir na frase mesma, tomadacomoobjetodeminhacuriosidadeepistemológica. Isto significa,então,procurar,num primeiro momento, apreender a inteligência da frase que, por sua vez,demandaacompreensãoqueaspalavrastêmnela,emsuasrelaçõesumascomasoutras.

Emprimeiro lugar,nosdefrontamosna frasecomdoisblocosdepensamento:saber e crescer e tudo a ver. Os dois verbos do primeiro bloco que poderiam sersubstituídos por dois substantivos, sabedoria e crescimento, se acham ligados pelapartícula aproximativa de natureza coordenativa e. No fundo, estes dois blocosguardam em si a possibilidade de um desdobramento de que resultaria: osprocessosdesaberedecrescer,ouoprocessodesabereoprocessodecrescertêmtudoaverumcomooutro.Ouainda,oprocessode saber implicaodecrescer.Nãoépossívelsabersemumacertaformadecrescimento.Nãoépossívelcrescersemumacertaformadesabedoria.

Saberéumverbotransitivo.Umverboqueexpressaumaaçãoque,exercidaporum sujeito, incide ou recai diretamente num objeto sem regência preposicional.Daí que o complemento deste verbo se chame objeto direto. Quem sabe sabe

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algumacoisa.Sóeuseiadorquemefere.Doréoobjetodiretodesei,aincidênciademinhaaçãodesaber.

Crescer,aocontrário,éumverbointransitivo.Nãonecessitadecomplementaçãoqueselesuasignificação.Oquesepodefazerequasesempresefaz,emfunçãodasexigênciasdopensardosujeito,comasignificaçãodeverbosassim,é juntaraelaelementos ou significações circunstanciais, adverbiais. Cresci sofridamente. Crescimantendo viva minha curiosidade em que sofridamente e mantendo viva minhacuriosidadeadverbializammodalmentemeuprocessodecrescer.

Fixemo-nosagora,umpouco,noprocessodosaber.Uma afirmação inicial que poderemos fazer ao nos indagar em torno do

processodesaber, tomadoagoracomofenômenovitaléque,emprimeiro lugar,elesedánavidaenãoapenasnaexistênciaquenós,mulheresehomens,criamosaolongodahistória,comosmateriaisqueavidanosofereceu.Mas,éosaberdequenostornamoscapazesdegestarquenosinteressaaquienãodecertotipodereaçãoqueseverificanasrelaçõesquesedãonavidanãohumana.

Noníveldaexistência,aprimeiraafirmaçãoaserfeitaéadequeoprocessodesaber é social, de que, porém, a dimensão individual não pode ser esquecida ousequersubestimada.

O processo de saber, que envolve o corpo consciente todo, sentimentos,emoções,memória,afetividade,mentecuriosadeformaepistemológica,voltadaaoobjeto, envolve igualmente outros sujeitos cognoscentes, quer dizer, capazes deconhecer e curiosos também. Isto significa simplesmente que a relação chamadacognoscitiva não se encerra na relação sujeito cognoscente-objeto cognoscívelporqueseestendeaoutrossujeitoscognoscentes.

Outroaspectoquemepareceinteressantesublinharaquiéoquedizrespeitoàmaneiraespontâneacomquenosmovemosnomundo,40dequeresultaumcertotipo de saber, de perceber, de ser sensibilizado pelomundo, pelos objetos, pelaspresenças,pela faladosoutros.Nesta formaespontâneadenosmovernomundopercebemos as coisas, os fatos, sentimo-nos advertidos, temos este, aquelecomportamentoemfunçãodossinais,cujosignificado internalizamos.Ganhamosdeles um saber imediato mas não apreendemos a razão de ser fundamental dosmesmos. Nossa mente, neste caso, na orientação espontânea que fazemos nomundo, não opera epistemologicamente. Não se direciona criticamente,indagadoramente,metodicamente,rigorosamenteaomundoouaosobjetosaqueseinclina.Esteéosaberchamadodeexperiênciafeito,aquefalta,porém,ocrivoda criticidade. É a sabedoria ingênua, do senso comum, desarmada de métodos

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rigorososdeaproximaçãoaoobjeto,masque,nemporisso,podeoudeveserpornósdesconsiderada.Suanecessáriasuperaçãopassapelorespeitoaelaetemnelaoseupontodepartida.

Talvez seja interessante tomar uma manhã nossa como objeto de nossacuriosidade e perceber a diferença entre estas duas maneiras de nos mover nomundo:aespontâneaeasistemática.

Amanhecemos. Despertamos. Escovamos os dentes. Tomamos o primeirobanhododiaaque se segueocafédamanhã.Conversamoscomamulherouamulher com o marido. Informamo-nos das primeiras notícias. Saímos de casa.Andamos na rua. Cruzamos com pessoas que vão, que voltam. Paramos nosemáforo. Esperamos a luz verde cuja significação aprendemos na infância e emmomento nenhum nos perguntamos ou nos indagamos em torno de nada dascoisas que fizemos.Dos dentes que escovamos, da ducha que tomamos, do caféquebebemos(anãoserquetenhamosreclamadoalgoquesaiudarotina),dacorvermelhadosemáforoporcausadaqualparamossemtambémnosperguntar.Emoutras palavras: imersos na cotidianidade, marchamos nela, nas suas “ruas”, nassuas “calçadas”. Sem maiores necessidades de nos indagar sobre nada. Nacotidianidadenossamentenãooperaepistemologicamente.

Seprosseguirmosumpoucomaisnaanálisedacotidianidadedestamanhãqueestamosanalisandoouemquenosanalisamos,observaremosque,parahavermostomado uma manhã qualquer nossa, como objeto de nossa curiosidade foinecessárioqueo fizéssemos foradaexperiênciada cotidianidade.Foiprecisoquedelaemergíssemosparaentão“tomarmosdistância”delaoudamaneiracomonosmovemosnomundoemnossasmanhãs.Éinteressanteobservar,também,queé,na operação de “tomar distância” do objeto, que dele nos “aproximamos”. A“tomada de distância” do objeto é a “aproximação” epistemológica que a elafazemos.Sóassimpodemos“admirar”oobjeto,nonossocaso,amanhã,emcujotempoanalisamoscomonosmovemosnomundo.

Nosdoiscasosaquireferidosmeparecefácilperceberadiferençasubstantivadeposiçãoqueocupamos,enquanto“corposconscientes”,movendo-nosnomundo.Noprimeirocaso,aqueleemquemevejodeacordocomorelatoqueeumesmofaçoemtornodecomomemovonamanhãe,nosegundo,oemquemepercebocomoo sujeitoquedescreve seuprópriomover-se.Noprimeiromomento,odaexperiência da e na cotidianidade, como quase deixei explícito antes,meu corpoconscientesevaiexpondoaosfatos,aosfeitos,semcontudo,interrogando-sesobreeles,alcançarasua“razãodeser”.Repitoqueosaber—porquetambémohá—

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queresultadestas tramaséodepuraexperiência feito.Nosegundomomento,oemquenossamenteoperaepistemologicamente,arigorosidademetodológicacomque nos aproximamos do objeto, tendo dele “tomado distância”, isto é, tendo-oobjetivado, nos oferece um outro tipo de saber. Um saber cuja exatidãoproporcionaaoinvestigadorouaosujeitocognoscenteumamargemdesegurançaqueinexistenoprimeirotipodesaber,odosensocomum.

Isto não significa, de modo nenhum, que devamos menosprezar este saberingênuocujasuperaçãonecessáriapassapelorespeitoaele.

Nofundo,adiscussãosobreestesdoissaberesimplicaodebatesobrepráticaeteoriaquesópodemsercompreendidassepercebidasecaptadasemsuasrelaçõescontraditórias.Nuncaisoladas,cadaumaemsimesma.Nemteoriasónempráticasó. Por isso é que estão erradas as posições de natureza político-ideológica,sectárias,que, em lugardeentendê-lasemsua relaçãocontraditóriaexclusivizamumaououtra.Obasismo,negandovalidadeàteoria;oelitismoteoricista,negandovalidadeàprática.Arigorosidadecomquemeaproximodosobjetosmeproíbedeinclinar-meanenhumadestasposições:nem“basismo”nemelitismo,maspráticaeteoriailuminando-semutuamente.

Pensemos agora um pouco sobre crescer. Tomemos crescer como objeto denossainquietação,denossacuriosidadeepistemológica.Maisdoquesentirousertocado pela experiência pessoal e social de crescer, procuremos a inteligênciaradical do conceito. Seus ingredientes. Emerjamos da cotidianidade em que“cruzamos”comevivemosaexperiênciadecrescer,talqualesperamosaluzverdepara atravessar a rua, quer dizer, sem nada nos perguntar. Emerjamos dacotidianidadeecomamentecuriosa,indaguemo-nossobreocrescer.

Em primeiro lugar, ao tomar o conceito como objeto de nosso saber,percebemos, num primeiro acercamento, que ele se revela a nós como umfenômenovital,cujaexperiênciainsereseussujeitosnummovimentodinâmico.Aimobilidadenocrescimentoéenfermidadeemorte.

Crescerfazparteassimdaexperiênciavital.Masexatamenteporquemulheresehomens, ao longodeuma longahistória, terminamospornos tornar capazesde,aproveitando os materiais que a vida nos ofereceu, criar com eles a existênciahumana—alinguagem,omundosimbólicodacultura—ahistória—,cresceremnós, ou entre nós ganha uma significação que ultrapassa crescer na pura vida.Crescerentrenóséalgomaisquecrescerentreasárvoresouentreosanimais,que,diferentementedenós,nãopodemtomarseuprópriocrescimentocomoobjetodesua “pre-ocupação”. Crescer entre nós é um processo sobre o qual podemos

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intervir.Opontodedecisãodocrescimentohumanonãoseachanaespécie.Nóssomosseresindiscutivelmenteprogramadosmas,demodonenhum,determinados.Esomosprogramadossobretudoparaaprender,comosalientaFrançoisJacob.41

Éocrescerentrenósaqueserefereapropostaquemefoifeitaparafalarhojeavocês.Enãoocrescerdasárvoresoudosfilhosrecém-nascidosdeAndraedeJim,nossocasaldepastoresalemães.

Eprecisamenteporque, comoafirmeimomentosantes,nos tornamoscapazesdeinventarnossaexistência,algomaisdoqueavidaqueelaimplicamassuplanta,crescer entre nós se torna ou vem se tornando muito mais complexo eproblemático,nosentidorigorosodesteadjetivo,doquecrescerentreasárvoreseosoutrosanimais.

Um dado importante, como ponto de partida para a compreensão crítica docrescer entre nós, existentes, é que, “programados para aprender”, vivemos ouexperimentamos ou nos achamos abertos a experimentar a relação entre o queherdamos e o que adquirimos. Tornamo-nos seres gene-culturais. Não somosapenasnaturezanemtampoucosomosapenascultura,educação,cognoscitividade.Por isso, crescer entre nós, é uma experiência atravessada pela biologia, pelapsicologia,pelacultura,pelahistória,pelaeducação,pelapolítica,pelaestética,pelaética.

Éaocrescercomototalidadequecadaumadenósecadaumdenósé,quesechamaàsvezes,emdiscursosadocicados,“crescimentoharmoniosodoser”,sem,porém,adisposiçãodalutapelo“crescimentoharmoniosodoser”,aquedevemosaspirar.

Crescer fisicamente, normalmente, com o desenvolvimento orgânicoindispensável; crescer emocionalmente equilibrado; crescer intelectualmenteatravés da participação em práticas educativas quantitativa e qualitativamenteasseguradas pelo Estado; crescer no bom gosto diante do mundo; crescer norespeito mútuo, na superação de todos os obstáculos que proíbem hoje ocrescimento integral de milhões de seres humanos espalhados pelos diferentesmundosemqueomundosedivide,mas,sobretudo,noTerceiro.

SãoimpressionantesasestatísticasdeórgãosinsuspeitoscomooBancoMundialeoUNICEFque,emseusrelatóriosde1990e1991,respectivamente,nosfalamdamiséria, damortalidade infantil, da ausênciade educação sistemática; donúmeroalarmante — 160 milhões de crianças — que morrerão no Terceiro Mundo desarampo,decoqueluche,desubnutrição.OrelatóriodoUNICEFchegaareferir-sea estudos já feitos no sentido de evitar uma total calamidade na década em que

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estamos. Dois bilhões e meio de dólares seriam suficientes. A mesma quantia,conclui o relatório de forma um tanto pasma, que empresas norte-americanasgastamporanoparavendermaiscigarros.

Queosabertemtudoavercomocrescer,tem.Masépreciso,absolutamentepreciso,queosaberdeminoriasdominantesnãoproíba,nãoasfixie,nãocastreocrescerdasimensasmaioriasdominadas.

PauloFreireSãoPaulo26-4-1992

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Notas

40 KarelKosik,Dialéticadoconcreto,RiodeJaneiro,PazeTerra,1976.

41 FrançoisJacob,“Noussommesprogrammés,maispourapprendre”,LeCourrierdeL’UNESCO.

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Estee-bookfoidesenvolvidoemformatoePubpelaDistribuidoraRecorddeServiçosdeImprensaS.A.

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Professorasim,tianão

Vídeosobreolivrohttps://www.youtube.com/watch?v=NrSURDPQcCU

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