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REVISTA REDAÇÃO PROFESSOR: Lucas Rocha DISCIPLINA: Redação DATA: 02/03/2014 ————————————————————————————————————————————— 1 08 Existe amor no Tinder? (CAMILA BRANDALISE e MARIANA BRUGGER) O que explica o sucesso no Brasil do aplicativo de paquera pelo smartphone, que já uniu vários casais em relacionamento sério O TINDER, aplicativo de paquera para smartphone, está revolucionando a arte de seduzir. A popularidade da ferramenta no País aumentou vertiginosamente desde seu lançamento aqui, em agosto do ano passado. ―O Brasil cresceu muito rápido em comparação a outros lugares e se tornou o terceiro maior mercado do Tinder, atrás dos Estados Unidos e do Reino Unido‖, afirma Justin Mateen, cofundador do aplicativo, à ISTOÉ. Hoje, já são dez milhões de brasileiros conectados. E, em uma época tão propícia para encontros casuais como o Carnaval, esse número deve aumentar ainda mais. PAQUERA- Da esq. para a dir.: os amigos Diogo Sampaio, Marcos Paulo, André Sampaio e Taíssa Macedo usam o Tinder juntos A lógica do aplicativo é simples. Uma série de fotos de pretendentes geograficamente próximos começam a ser apresentadas ao usuário. Gostou de alguém? Toque na tecla com o desenho de um coração. Se a pessoa também te achar interessante, dá ―match‖ (palavra em inglês que significa combinação e jogo). A partir daí, o aplicativo abre uma janela de bate-papo. Quando os dois veem que há futuro na conversa, migram para o WhatsApp ou o Facebook. No Tinder aparecem até seis fotos, três linhas de autodescrição, o primeiro nome e a idade. Simplicidade e superficialidade marcam uma mudança de comportamento quando se trata de paquera virtual. Para a pesquisadora em Antropologia e Cibercultura da Universidade Federal Fluminense (UFF), Márcia Mesquita, o trunfo do Tinder é justamente seu ar informal. ―O tom de brincadeira deixa tudo mais leve. Não há responsabilidade de conhecer o amor da sua vida. Além disso, mais pessoas estão buscando relacionamentos casuais. E ninguém tem vergonha de usar, porque o aplicativo não traz o estigma da solidão dos sites no início da internet‖, afirma. Na opinião de Fábio Steibel, professor de Inovações e Novas Tecnologias da Escola Superior de Propaganda e Marketing do Rio de Janeiro (ESPM/Rio), o usuário do app é de uma geração que se relaciona mais livremente com sua sexualidade e usa a tecnologia para se expressar e conhecer gente nova.

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Page 1: PROFESSOR: Lucas Rocha DISCIPLINA: Redação DATA: … · A lista é enorme e não para por aí. Os filhos querem, querem, querem, querem sempre mais. Nunca estão satisfeitos. E

REVISTA REDAÇÃO

PROFESSOR: Lucas Rocha

DISCIPLINA: Redação

DATA: 02/03/2014

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Existe amor no Tinder? (CAMILA BRANDALISE e MARIANA BRUGGER)

O que explica o sucesso no Brasil do aplicativo de paquera pelo smartphone, que já uniu vários casais em relacionamento sério

O TINDER, aplicativo de paquera para smartphone, está revolucionando a arte de seduzir. A popularidade da ferramenta no País aumentou vertiginosamente desde seu lançamento aqui, em agosto do ano passado. ―O Brasil cresceu muito rápido em comparação a outros lugares e se tornou o terceiro maior mercado do Tinder, atrás dos Estados Unidos e do Reino Unido‖, afirma Justin Mateen, cofundador do aplicativo, à ISTOÉ. Hoje, já são dez milhões de brasileiros conectados. E, em uma época tão propícia para encontros casuais como o Carnaval, esse número deve aumentar ainda mais.

PAQUERA- Da esq. para a dir.: os amigos Diogo Sampaio, Marcos Paulo, André Sampaio e Taíssa Macedo usam o Tinder juntos

A lógica do aplicativo é simples. Uma série de fotos de pretendentes geograficamente próximos começam a ser apresentadas ao usuário. Gostou de alguém? Toque na tecla com o desenho de um coração. Se a pessoa também te achar interessante, dá ―match‖ (palavra em inglês que significa combinação e jogo). A partir daí, o aplicativo abre uma janela de bate-papo. Quando os dois veem que há futuro na conversa, migram para o WhatsApp ou o Facebook. No Tinder aparecem até seis fotos, três linhas de autodescrição, o primeiro nome e a idade.

Simplicidade e superficialidade marcam uma mudança de comportamento quando se trata de paquera virtual. Para a pesquisadora em Antropologia e Cibercultura da Universidade Federal Fluminense (UFF), Márcia Mesquita, o trunfo do Tinder é justamente seu ar informal. ―O tom de brincadeira deixa tudo mais leve. Não há responsabilidade de conhecer o amor da sua vida. Além disso, mais pessoas estão buscando relacionamentos casuais. E ninguém tem vergonha de usar, porque o aplicativo não traz o estigma da solidão dos sites no início da internet‖, afirma. Na opinião de Fábio Steibel, professor de Inovações e Novas Tecnologias da Escola Superior de Propaganda e Marketing do Rio de Janeiro (ESPM/Rio), o usuário do app é de uma geração que se relaciona mais livremente com sua sexualidade e usa a tecnologia para se expressar e conhecer gente nova.

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PAIXÃO - Bruno Bernardo e Patrícia Oliveira (acima) começaram a namorar pelo Tinder. Abaixo, Rafael Freitas e

Renata Martins, que marcaram casamento para maio.

Em Brasília, o estudante de administração Marcos Paulo Puig, 23 anos, descobriu oaplicativo com amigos. ―Éramos um grupo de cinco pessoas e um dos rapazes estava todo animado com suas quatro novas combinações em apenas um dia de uso. Todos baixaram na mesma hora e começamos a checar as garotas que apareciam por lá‖, diz ele, que já saiu com algumas mulheres que conheceu pelo app. A reportagem testou o Tinder durante um mês de escolhas criteriosas. Chegou a 46 ―matches‖, mas só uma conversa fluiu. A troca de mensagens costuma começar com ―oi‖. Como na vida real, é difícil surgir afinidade, mas, quando acontece, o papo desenvolve. Para a paulistana Tati Paixão, 32 anos, as pessoas ainda estão aprendendo a usar o app. ―Muitos ficam sem jeito de chamar para sair‖, diz. Ela conta que conheceu três rapazes desde janeiro.

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Sua grande aposta é o Carnaval. ―Estou marcando encontros nos blocos de São Paulo‖, diz. No Rio, o Tinder fará uma ação durante a folia, distribuindo adesivos com os símbolos de coração, que significa ―Liked‖ (gostei, em português), e de ―x‖, que significa ―Nope‖ (não).

Apesar da falta de crédito que os relacionamentos que começam no ambiente virtual costumam sofrer, os vários casais que têm se formado provam que existe amor no Tinder. A gerente de recursos humanos Renata Martins, 32 anos, e o advogado Rafael Freitas, 30 anos, se encontraram no app em setembro e em dezembro já estavam morando juntos. O casamento está marcado para o dia 17 de maio. ―No início, as pessoas se assustaram com a rapidez com que tudo aconteceu. Mas depois viram que nascemos um para o outro‖, diz Renata. Após a experiência, Rafael virou um defensor do aplicativo. ―Fiz minha tia de 49 anos entrar para arrumar um namorado‖, brinca.

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A desenhista têxtil Patrícia de Araújo Oliveira, 27 anos, também conheceu o atual namorado no Tinder, mas confessa que no começo tinha receio. ―Não levava a sério nem achava que ia começar algo por ali. E tinha medo de encontrar pessoas. Mas com o Bruno foi dando certo‖, diz, referindo-se ao namorado, o webdesigner Bruno Nunes Bernardo, 25 anos. ―Acho que somos de uma geração que já cresceu com a internet. Conhecer alguém por um aplicativo não é mais estranho. Na verdade, ficou até mais fácil‖, afirma Bruno. Em tempo: 46 ―matches‖ depois, a reportagem marcou seu primeiro encontro ao vivo para o Carnaval.

CAMILA BRANDALISE e MARIANA BRUGGER são Jornalistas e escrevem periodicamente para esta publicação. Fotos: Adriano

Machado/Ag. Istoé; Gabriel Chiarastelli; João Castellano/Ag. Istoé. Revista ISTO É, Fevereiro de 2014.

Socialismo é barbárie (LUIZ FELIPE PONDÉ)

A esquerda está em pânico porque estava acostumada a dominar o debate público

SE EU pregar que todos que discordam de mim devem morrer ou ficarem trancados em casa com medo, eu sou um genocida que usa o nome da política como desculpa para genocídio. No século 20, a maioria dos assassinos em massa fez isso.

O Brasil, sim, precisa de política. Não se resolve o drama que estamos vivendo com polícia apenas. Mas me desespera ver que estamos na pré-história discutindo ideias do "século passado". Tem gente que ainda relaciona "socialismo e liberdade", como se a experiência histórica não provasse o contrário. Parece papo das assembleias da PUC do passado, manipuladoras e autoritárias, como sempre.

O ditador socialista Maduro está espancando gente contra o socialismo nas ruas da Venezuela. Ele pode? Alguns setores do pensamento político brasileiro são mesmo atrasados, e querem que pensemos que a esquerda representa a liberdade. Mentira. A maioria de nós, pelo menos quem é responsável pelo seu sustento e da sua família, não concorda com o socialismo autoritário que a "nova" esquerda atual quer impor ao país. A esquerda é totalitária. Quer nos convencer que não, mas mente. Basta ver como reage ao encontrar gente inteligente que não tem medo dela.

Ninguém precisa da esquerda para fazer uma sociedade ser menos terrível, basta que os políticos sejam menos corruptos (os da esquerda quase todos foram e são), que técnicos competentes cuidem da gestão pública e que a economia seja deixada em paz, porque nós somos a economia, cada vez que saímos de casa para gerar nosso sustento. Ela, a esquerda, constrói para si a imagem de "humanista", de superioridade moral, e de que quem discorda dela o faz porque é mau. Ela está em pânico porque estava acostumada a dominar o debate público tido como "inteligente" e agora está sendo obrigada a conviver com gente tão preparada quanto ela (ou mais), que leu tanto quanto ela, que escreve tanto quanto ela, que conhece seus cacoetes intelectuais, e sua história assassina e autoritária.

Professores pautados por esta mentira filosófica chamada socialismo mentem para os alunos sobre história e perseguem colegas, fechando o mercado de trabalho, se definindo como os arautos da justiça, do bem e do belo. A esquerda nunca entendeu de gente real, mas facilmente ganha os mais fragilizados com seu discurso mentiroso e sedutor, afirmando que, sim, a vida pode ser garantida e que, sim, a sobrevivência virá facilmente se você crer em seus ideólogos defensores da "violência criadora".

Ela sempre foi especialista em tornar as pessoas dependentes, ressentidas, iludidas e incapazes de cuidar da sua própria vida. Ela ama a preguiça, a inveja e a censura. Recomendo a leitura do best-seller mundial, recém publicado no Brasil pela editora Agir, "O Livro Politicamente Incorreto da Esquerda e do Socialismo", escrito pelo professor Kevin D. Williamson, do King's College, de Nova York. Esta pérola que desmente todas as "virtudes" que muita gente atrasada ou mal-intencionada no Brasil está tentando nos fazer acreditar mostra detalhes de como o socialismo impregnou sociedades como a americana, degradou o meio ambiente, é militarista (Fidel, Chávez, Maduro), e não deu certo nem na Suécia. O socialismo é um "truque" de gente mau-caráter.

As pessoas, sim, estão insatisfeitas com o modo como a vida pública no Brasil tem sido maltratada. Mas isso não faz delas seguidores de intelectuais e artistas chiques da zona oeste de São Paulo ou da zona sul do Rio de Janeiro. A tragédia política no Brasil está inclusive no fato de que inexistem opções partidárias que não sejam fisiológicas ou autoritárias do espectro socialista. Nas próximas eleições teremos poucas esperanças contra a desilusão geral do país.

E grande parte da intelligentsia que deveria dar essas opções está cooptada pela falácia socialista, levando o país à beira de uma virada para a pré-história política, fingindo que são vanguarda política. O socialismo é tão pré-histórico quanto a escravatura. Mas a esquerda não detém mais o monopólio do pensamento público no Brasil. Não temos mais medo dela.

LUIZ FELIPE PONDÉ é filósofo, escritor e ensaísta, doutor pela USP, pós-doutorado em epistemologia pela Universidade de Tel

Aviv, professor da PUC-SP e da Faap, discute temas como comportamento contemporâneo, religião, niilismo, ciência. Autor de vários títulos, entre eles, 'Contra um mundo melhor' (Ed. LeYa). [email protected]. Jornal FOLHA DE SÃO PAULO, Fevereiro de 2014.

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Ter e manter um filho (ROSELY SAYÃO)

Há tipos de sacrifício que os pais faziam pelos filhos e que foram substituídos pelo sacrifício financeiro

TER e manter um filho custa caro, segundo reportagens em revistas, jornais, etc. Nelas, há contas, inclusive, que apontam valores que a presença de um filho acrescenta ao orçamento da família. E isso se estende por uns 20 anos, mais ou menos. Ou mais, muitas vezes bem mais.

No mundo do consumo, o valor financeiro das coisas é que está em questão. Por isso, quando alguém planeja ter um filho, considera primeira e antecipadamente o custo financeiro dele para, então, se preparar, se planejar. Ou postergar ou até mesmo desistir. Quem não conhece mulheres e homens que fazem ou já fizeram um tremendo sacrifício financeiro em nome do filho?

Festas de aniversário com direito a recreacionistas, bufês, lembrancinhas etc.; viagens ao exterior; calçados ou roupas caras porque da moda; brinquedos e traquitanas tecnológicas de última geração; e mais: carro, escola, cursos extracurriculares, altas mesadas, aprendizado de língua estrangeira no exterior etc. Quase nada disso podemos considerar como absolutamente necessário, mas tudo é, certamente, altamente desejado pelo filho ou pelos anseios dos pais em relação ao filho.

A lista é enorme e não para por aí. Os filhos querem, querem, querem, querem sempre mais. Nunca estão satisfeitos. E os pais trabalham, trabalham, trabalham cada vez mais para ganhar mais e, assim, tentar satisfazer as necessidades e os caprichos do filho, que quase sempre custam bem caro. Conheço mães e pais que fizeram financiamentos, parcelaram uma grande quantia de dinheiro em inúmeras prestações, abdicaram de gastos pessoais, tudo para dar ao filho um "book" ou um belo "look".

Há também os que fazem esses gastos para garantir seu próprio sossego. Afinal, a criançada e a moçada aprenderam muito bem como lutar para conseguir o que querem, não é verdade? Mas, há outros tipos de sacrifício que os pais faziam pelos filhos e eles foram, quase todos, substituídos pelo sacrifício financeiro. Uma cena do filme "Billy Elliot" mostra um desses tipos de sacrifício. O filme se passa em uma pequena cidade da Inglaterra nos anos 80. O protagonista é um garoto de 11 anos que se apaixona pelo balé, mas seu pai, um trabalhador comprometido com o movimento grevista dos mineiros, não aceita a escolha do filho até o momento em que se dá conta da possibilidade de o garoto ter uma vida melhor que a sua, dedicando-se ao balé.

É nesse momento que ele sacrifica suas convicções - ideológicas e trabalhistas -, deixa de honrar a greve da qual participava ativamente para possibilitar ao filho a busca de seu sonho. Sim, ter e manter um filho custa caro, mas não vamos considerar agora o custo financeiro da questão. Vamos considerar o custo pessoal. Ter um filho custa horas de sono e muitas preocupações; custa mudanças de vida temporárias e renúncias; custa a necessidade de disponibilidade pessoal constante; custa abdicar de sonhos e projetos; custa paciência quando ela já se foi, custa perseverança mesmo quando cansados, e muito mais.

É: realmente, ter filho custa bem caro, mas para se ter uma ideia aproximada desse custo, precisamos deixar de priorizar o custo financeiro que o filho acarreta. O verdadeiro custo, este não pode ser colocado em números porque é pessoal. Mas é certo que esse custo sempre é alto, mesmo quando não reconhecemos isso.

ROSELY SAYÃO é psicóloga e consultora em educação, fala sobre as principais dificuldades vividas pela família e pela escola no

ato de educar e dialoga sobre o dia-a-dia dessa relação. Jornal FOLHA DE SÃO PAULO, Fevereiro de 2014.

Hip-hop na linha (CONTARDO CALLIGARIS)

Proliferação de regras inúteis serve para compensar o fracasso das leis fundamentais

FAÇO parte do conselho da organização social que administra a São Paulo Escola de Teatro, com sede na praça Roosevelt. A escola, uma iniciativa do Estado, oferece formação em atuação, cenografia, figurino, direção, dramaturgia, humor, iluminação, sonoplastia e técnicas de palco.

Muitos alunos recebem bolsa durante os estudos. O vestibular é concorrido. Os recém-formados são bem-vistos pelo mercado de trabalho. As reuniões do conselho são amistosas. Em suma, está tudo bem. Agora, imaginemos que, um dia, por decreto, a escola pare de "apenas" formar seus alunos e passe a capacitá-los oficialmente, ou seja, a dotá-los de um carimbo que os separe de seus concorrentes não carimbados. Naquele dia, eu me demitiria.

Acho ótimo que existam formações nas artes, mas nenhuma formação artística deveria se transformar em capacitação exigida para poder exercer a profissão. Você quer ser artista plástico? Curse uma faculdade de belas-artes, entre no sindicato e tire a carteira. Quer ser cineasta? Dançarino? Poeta? Escritor? Mesma coisa. Como surge uma ideia dessas? É ganância de dono de escolas particulares? É frustração de alguns, que talvez procurem migalhas de poder tornando-se quadros sindicais? É vontade de que o Estado controle a vida de artistas inquietantes, distribuindo fomentos aos patenteados?

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Para mim, dos males, o menor é a hipótese da ganância. Os outros são pesadelos da ex-União Soviética, em que os artistas de carteirinha (profissional, sindical e do partido) eram promovidos pelo Estado, enquanto os outros lambiam vitrines no frio, ou apodreciam em campos de concentração.

Mas a paixão por regras e regulamentos tem também outra origem. Um exemplo. Alguns andam pelo mundo carregados de regras: não podem colocar o pé em cima de uma junta, nem subir um degrau com o pé esquerdo. Esses indivíduos sofrem de um excesso ou de uma falta de regras? Curiosamente, eles sofrem de uma falta: a paixão pela proliferação de prescrições desnecessárias é quase sempre um efeito da fraqueza das leis que importam. É como se a proliferação das regras inúteis quisesse compensar o fracasso das leis fundamentais.

Em regra, a Constituição de um país é uma súmula de princípios essenciais. Durante a Constituinte, muitos lamentavam (com razão) que a carta brasileira fosse excessivamente extensa e detalhada; eles observavam que, no caso do Brasil, talvez a extensão do texto fosse uma tentativa (vã) de ocultar a fraqueza endêmica dos princípios.

Falo disso tudo por causa do projeto de lei 6756/2013, do deputado federal Romário (texto de Juliana Gragnani na Folha de 12/2), no qual é proposta a regulamentação do hip-hop. Pelo projeto, disc-jockeys, mestres de cerimônias, rappers, beatboxers (percussionistas vocais), dançarinos de break dance de rua e grafiteiros serão profissões regulamentadas, com aprendizes (a partir dos 14 anos) e estagiários (a partir dos 16), com inscrição de todos na Superintendência Regional do Trabalho e com "cursos técnicos de capacitação profissional, em instituições credenciadas e reconhecidas pelo Ministério da Educação".

O projeto promete que nenhum profissional do hip-hop colocará "em risco sua integridade física ou moral". Ora, é possível que se torne obrigatório o uso de capacete e cotoveleiras para o break dance, mas, quanto à integridade moral, mal é preciso dizer que o projeto é o fim da alma do hip-hop. Chega a ser engraçado que o projeto invoque a Constituição e os direitos humanos, pois ele restringe o básico: o livre exercício de uma prática cultural. Agora, apesar de meu temperamento anárquico, pensando bem, acho que sou a favor de ao menos um curso de capacitação obrigatória. Proponho que seja instituído um curso de capacitação para candidatos a todo cargo legislativo: só dois anos, uma das matérias sendo um apanhado básico de história das ideias sociais e políticas.

Um seminário de primeiro ano poderia ser sobre o surgimento, no século 18, da ideia de que é preciso legislar para proteger a liberdade e os direitos dos indivíduos, cuidando para que o Estado não se meta à toa na organização das vidas e que a extensão de sua intervenção seja sempre a mínima indispensável. Eu me ofereceria para dar esse seminário e preparar a apostila, traduzindo o essencial - tudo de graça, mas, infelizmente, não sei qual curso eu deveria fazer antes, para me capacitar.

CONTARDO CALLIGARIS, italiano, é psicanalista, doutor em psicologia clínica e escritor. Ensinou Estudos Culturais na New School de NY e foi professor de antropologia médica na Universidade da Califórnia em Berkeley. Reflete sobre cultura, modernidade

e as aventuras do espírito contemporâneo (patológicas e ordinárias). Jornal FOLHA DE SÃO PAULO, Fevereiro de 2014.

A defesa midiática das gerações futuras (CLÓVIS DE BARROS FILHO)

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NOS apontamentos morais da mídia sobre as políticas públicas de meio ambiente devemos considerar apenas as pessoas que já existem? Se, de acordo com essa lógica consequencialista dos julgamentos morais, devemos levar em conta as consequências possíveis de um ato junto a pessoas que circulam geográfica, social e economicamente distantes do seu agente, por que não ter de levar em consideração as consequências possíveis desse ato junto às gerações futuras?

Tratar-se-ia de uma forma de parcialidade, de uma discriminação em relação àqueles que só se discriminam de nós por terem nascido mais tarde. Dessa forma, o valor moral da fabricação de um produto que produziria danos às gerações futuras equivaleria à fabricação de um produto que produz o mesmo dano em seres humanos hoje.

Na óptica utilitarista dos meios de comunicação, a reflexão moral sobre questões envolvendo teste de medicamentos em animais, energia nuclear, estocagem de dejetos perigosos, preservação de lugares naturais, exploração de recursos não renováveis, déficits orçamentários dos governos resulta no dever moral de evitar certas pesquisas científicas.

A avaliação das consequências das ações sobre gerações futuras não é tarefa fácil. A diversidade de variáveis torna a reflexão complexa. Talvez incompatível com a necessidade imperativa de agir para existir. Não podemos saber exatamente quais serão as necessidades humanas daqui a mil anos. Ignoramos as epidemias que colocarão em risco o homem nos próximos séculos. Portanto, só podemos ignorar quais pesquisas são as adequadas para evitar mais eficazmente tais epidemias cujos atributos e alcance ignoramos.

De fato, os defensores do utilitarismo midiático são frequentemente questionados com reflexões do tipo: não temos tempo, antes de agir, para calcular e avaliar os efeitos de uma linha de conduta sobre a felicidade geral. A dificuldade de cálculo aumenta quando consideramos o bem-estar dos mais distantes, no espaço e também nos tempos vindouros. A resposta da mídia dominante para essa dificuldade de antecipação das consequências na deliberação moral pode ser encontrada na consagrada tese de John Stuart Mill: ―A esta objeção podemos responder que tivemos muito tempo, já que tivemos um tempo igual a todo o passado da espécie humana‖.¹

As regras da moral corrente, para Stuart Mill, nasceram das experiências seculares da humanidade em matéria de felicidade. Os homens aprenderam, durante esse tempo, a conhecer por meio da experiência os efeitos a alcançar (tendencies) de seus atos. É dessa experiência que dependem toda a prudência e toda a moralidade da vida.

Em outras palavras, temos a responsabilidade por um patrimônio que nos foi legado por gerações passadas e influenciará as futuras. Somos herdeiros de um saber prático que nos permite deliberar, não só em função do que estimamos, que causará a felicidade hoje, mas também a futura. Aliás, fazemos juízos morais sobre as gerações que nos precederam. Frequentemente esses juízos são desfavoráveis porque consideramos que nossos antepassados deliberaram agir de forma a não levar em consideração a felicidade dos que vivem hoje. A rigor, todo juízo moral da História é feito a partir do presente. Mesmo quando avaliamos que determinada conduta foi nefasta para os contemporâneos do agente, julgamos em função de um olhar que é o nosso, o da contemporaneidade.

Há uma demanda social por notícias relativas ao meio ambiente e seus impactos futuros. As pessoas preferem se solidarizar mais com árvores e sofrimento dos bichos do que com a miséria humana. A preocupação com a geração futura é, na minha opinião, uma mera justificativa psicológica. A produção dessas notícias é cada vez mais requisitada e obedece a rigorosos critérios de noticiabilidade e valoração por seu caráter lúdico e, ao mesmo tempo, moralizante. As demandas, por sua vez, são identificadas em sofisticadas sondagens sobre o que o leitor quer ler. Assim, a notícia é o relato de um mundo que se supõe deseja ser conhecido. Logo, se as notícias privilegiam condutas humanas ilícitas, escatológicas e canalhas, supomos que seja essa a tendência de demanda de seus consumidores. Essas notícias, portanto, atendem ao maior número.

Também devemos considerar que o uso do discurso utilitarista pelos meios de comunicação para tratar desse assunto revela um alinhamento ideológico reacionário. Luta-se para manter o mundo como ele é. Os avanços industriais e de consumo nos países de terceiro mundo são condenados por causa dos possíveis impactos que geram no planeta.

Afinal, o que devemos sustentar? O nosso planeta como ele é? Será que vale a pena deixar o mundo como ele está? Temos o direito de impedir que os países subdesenvolvidos se desenvolvam em nome do meio ambiente? Deveríamos impedir as expansões agrícolas e amenizar a fome no mundo para preservar as árvores? Ou impedir que as classes sociais menos favorecidas tenham acesso ao consumo para não aumentar a produção de lixo e a inflação? A pergunta que a mídia nunca faz é bem simples: Qual futuro querem defender? O das classes dominantes, certamente.

1 STUART MILL, J. , 1997, p. 77

CLÓVIS DE BARROS FILHO é professor de ética da ECA/USP e conferencista do espaço Ética: www.espacoetica.com.br. Revista FILOSOFIA, Fevereiro de 2014.

Efeito mensalão (ROBERTO DELMANTO JUNIOR)

A PUNIÇÃO criminal, com suas penas de privação de liberdade e multa, há de ser sempre individualizada. O juiz, quando as estabelece, deve considerar as circunstâncias específicas dos fatos e a culpabilidade da pessoa que é condenada. Embora soe óbvio, nem sempre foi assim. Na antiga Grécia, por exemplo, a punição estendia-se a toda família do criminoso. Atualmente, punições coletivas, vedadas por nossa Lei de Execução Penal, ainda são uma realidade.

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Quanto à pena criminal de multa, é fato que nossas leis, para a maioria dos crimes, a preveem conjuntamente com a pena de reclusão. E quando a pena privativa de liberdade é igual ou inferior a quatro anos e o crime é cometido sem violência, sendo o condenado primário, a prisão será substituída por penas alternativas, que variam desde a prestação de serviço à comunidade a até mesmo uma outra pena de multa --a chamada prestação pecuniária--, que se soma à outra pena de multa originariamente prevista.

É fato também que na atual redação de nosso Código Penal, toda punição pecuniária, que nada tem a ver com a reparação do dano, é considerada dívida de valor, sendo certo que a inadimplência não leva o condenado ao cárcere. Ele sofrerá penhora de bens, não podendo a execução alcançar terceiros, salvo se tiver havido fraude ou simulação para evitar que o Estado satisfaça o seu crédito. Estabelecidas essas premissas, gostaríamos de compartilhar com o leitor uma reflexão sobre as vaquinhas realizadas para o pagamento das penas pecuniárias impostas pelo Supremo Tribunal Federal aos condenados do caso mensalão.

Não se discute, por certo, que as doações foram realizadas por pessoas de bem, alguns com depósitos módicos, outros substanciosos, tendo todos ampla liberdade para doar a quem quiser o seu dinheiro. Se doaram por convicção ideológica-partidária, por entender que o julgamento foi injusto, por amizade ou por admiração, não cabe a ninguém questionar. E certamente os condenados beneficiários das doações pagarão os impostos devidos, como o de transmissão de valores entre vivos. Porém, como todo dinheiro precisa ter origem, os depósitos deverão estar todos identificados, para a própria segurança daqueles que deles se beneficiaram.

Por outro lado, embora insista-se no óbvio, como fez o senador Eduardo Suplicy (PT-SP), de que não há lei que proíba doações para tal fim, atacando o ministro Gilmar Mendes, que levantou dúvidas diante do volume milionário e da rapidez da arrecadação, o fenômeno da vaquinha literalmente esvaziou a punição pecuniária imposta pelo Supremo, deturpando o caráter personalíssimo da sanção criminal. Aqueles que doam estão, no fundo, solidarizando-se e, de certa forma, cumprindo a pena no lugar do outro, o que traz para o Poder Judiciário grande desconforto. Ao mesmo tempo, réus mais humildes e menos politicamente influentes que se envolveram nos mesmos fatos certamente sentirão no bolso, com o arresto de seus bens, a implacável punição criminal pecuniária. A desigualdade de situações e de efetivo cumprimento de suas penas também gera uma incômoda sensação.

Outro fato que nos chama a atenção é o de que esse episódio poderá gerar um efeito bumerangue em matéria de aumento do encarceramento. Isso porque o descrédito que o fenômeno da vaquinha trouxe à pena de multa poderá estimular que tribunais enalteçam ainda mais a pena de prisão como única resposta penal, certos de que, neste caso, a pena não poderá ser cumprida mediante vaquinha. Com isso, a situação das cadeias brasileiras - que hoje são a maior violação humanitária do continente americano - poderá piorar ainda mais. De tudo, uma coisa é certa: o Judiciário, como Poder, foi desafiado e de certa forma vencido.

ROBERTO DELMANTO JUNIOR, 45, doutor em direito pela USP, é advogado e conselheiro da OAB-SP (Ordem dos Advogados do Brasil em São Paulo). Jornal FOLHA DE SÃO PAULO, Fevereiro de 2014.

Em defesa de Nietzsche (FÁBIO ANTÔNIO GABRIEL, MARIA TERESA BIAGINI, ISABEL LOUREIRO)

Em entrevista exclusiva, o filósofo francês Yannick Souladié elucida diversas questões acerca do pensamento de

Nietzsche. Entre as temáticas abordadas, destaca-se a concepção de inversão dos valores nietzscheanos e as críticas do filósofo alemão a Sócrates e ao cristianismo

O QUE teria ocorrido com Nietzsche se não fosse o colapso mental em 1889? Nietzsche pretendia aniquilar os valores cristãos? O que significa a sua expressão "Umwertung aller Werte" traduzida entre os franceses como "inversão de todos os valores"?

A revista Filosofia Ciência & Vida entrevistou o francês Yannick Souladié, especialista em Nietzsche, que, para explicar a inversão dos valores no pensamento do filósofo alemão, afirma que é necessário entender inicialmente que "os valores não existem em si. Subjacente a tais

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valores sempre existe a vida, existem vidas. O homem é o único ser criador de valores". Nesta entrevista, podemos perceber a importância, o ângulo de visão que o pesquisador oferece, em se tratando do cristianismo como adversário do filósofo alemão no ano de 1888. Yannick Souladié é docente do Departamento de Filosofia da Universidade de Toulouse-Le-Mirail, Toulouse, França, também membro do Grupo Internacional de Investigações sobre Nietzsche - GIRN/GIIN, com artigos sobre Nietzsche em relevantes publicações científicas.

Nietzsche não foi, como muitos o entendem, obcecado pelo cristianismo. Antes de 1888, o cristianismo sequer se apresentava como tema central em suas preocupações

FILOSOFIA - Explique-nos como foi sua trajetória acadêmica e quais foram os temas que lhe foram relevantes na pesquisa internacional a respeito de Nietzsche?

Souladié - Inscrevi-me na Universidade de Toulouse-Le-Mirail em 1997, defendi no mestrado o tema: A feiura de Sócrates, em 2001; em meu master recherche (que consiste em um pré-requisito para quem aspira ao doutorado) discuti Übermensch, em 2002, e a tese de doutorado: Nietzsche, uma filosofia do anticristo, em janeiro de 2009. Dediquei-me ao magistério, em período integral, no Departamento de Filosofia da Universidade de Toulouse-Le-Mirail, de 2007 a 2011. Após outubro de 2002, tornei-me pesquisador associado ao laboratório EA 5031 Erraphis. Sou também membro da Nietzsche Gesellschaft Ev. e do Groupe de Recherches sur Nietzsche - Grupo Internacional de Investigações sobre Nietzsche (GIRN/GIIN). Publiquei mais ou menos quinze artigos sobre Nietzsche e Filosofia contemporânea, em vários idiomas, bem como três livros: uma obra coletiva, Nietzsche, a inversão dos valores, (Hildescheim, Olms), 2007, uma edição dos Escritos autobiográficos, de Nietzsche, ( Paris, Manucius), 2011, e uma tradução de suas Últimas cartas inéditas, (Paris, Manucius), 2011.

Meus trabalhos a respeito de O anticristo, A inversão dos valores, A vontade de poder e as Últimas cartas receberam certa repercussão, do mesmo modo que aqueles abordando a influência de Nietzsche sobre Pasolini e sobre Deleuze. Em um artigo, A feiura de Sócrates, (em Nietzsche-Studien), 2006, igualmente abordei o mesmo assunto. Assumi para mim mesmo o compromisso não apenas de pesquisar, mas, sobretudo, de dirimir as sérias dúvidas que pairam sobre os textos em que Nietzsche acusa Sócrates de ser feio, a fim de demonstrar que Nietzsche não tecia tais acusações sem o devido fundamento, gratuitamente. Em retrospectiva, aquele pequeno texto da juventude me parece emblemático na maneira como abordo Nietzsche. Sempre despertou minha atenção o que a maioria considerava "excentricidade" (maldades, ataques mediante injúrias e invectivas, conceitos inabituais), pressupondo que elementos fundamentais do pensamento do filósofo ali buscassem refúgio propício. Nietzsche inventou um novo estilo filosófico, não por fantasia, mas porque, sem dúvida, seu pensamento só tenha encontrado condições ideais para manifestar-se em plenitude recorrendo àquela peculiar forma de expressão. De início, quase sempre as leituras de Nietzsche não despertam muita atenção, parecem pobres; é que o compromisso com a expressividade, de que se vale o filósofo, constrói-se à medida que ele descobre o adequado modelo conceitual, estilístico, que, aos poucos, nos brinda com a eclosão de sua originalidade e de sua força.

FILOSOFIA - Sabe-se que Nietzsche alimentava o projeto de escrever uma obra intitulada Umwertung aller Werte, e suas últimas cartas parecem indicar que O anticristo constituiria a totalidade dessa obra. Qual é a sua interpretação?

Souladié - Comecemos por uma pequena revisão cronológica dos fatos: concluída a quarta parte de Assim falava Zaratustra, Nietzsche foi dominado pelo impulso, pela necessidade de escrever uma grande obra em que pudesse expor a sua filosofia. Durante três anos, trabalhou em um projeto que distribuiu em quatro livros. Intitulou: A vontade de poder. Tendo em vista o projeto em referência, ele acumulou uma expressiva quantidade de anotações em seus cadernos. Em agosto de 1888, no entanto, após várias tentativas infrutíferas de organizar tais anotações, decidiu abandonar definitivamente o referido projeto. Em setembro, formulou um novo projeto em quatro livros intitulado: A inversão de todos os valores. Redigiu o primeiro: O anticristo. Ele escreveu várias cartas em que afirmava considerar essa inversão como sua "obra principal"; mas, em meados de novembro, decidiu que O anticristo constituiria, por si só, A inversão de todos os valores, em sua totalidade. Comprovam essa derradeira decisão as suas últimas cartas e os seus últimos escritos. Ecce Homo surge com o objetivo de introduzir o anticristo - a inversão de todos os valores, que ele considerava concluído.

Meu trabalho consistiu em assumir o compromisso de explorar a alegada excentricidade do filósofo (fazer de O anticristo a sua grande obra filosófica) e determinar o que tal excentricidade poderia implicar. Nietzsche não foi, como

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muitos o entendem, obcecado pelo cristianismo. Antes de 1888, o cristianismo sequer se apresentava como tema central em suas preo cupações. O filósofo empenhava-se muito mais em estudos que privilegiavam a moral e a Metafísica. O cristianismo manifestou-se como seu grande adversário apenas em 1888. Nietzsche deu-se conta de que seus embates contra a Moral, contra a Metafísica, contra o Romantismo, contra a Política alemã subsumiam-se na luta feroz que o movia contra o cristianismo. O anticristo não representa, assim, a expressão do ressentimento do indivíduo Friedrich Nietzsche contra o cristianismo, destaca-se, na verdade, como uma obra filosófica; apresenta-se como o resultado de sua oposição à Metafísica, à Moral e à Filosofia ocidental. A filosofia de Nietzsche tornou-se uma "filosofia do anticristo".

FILOSOFIA - Um dos temas de sua pesquisa é a inversão dos valores nietzscheanos. Poderia precisar o significado da temática para o filósofo?

Souladié - Os valores não existem em si. Subjacente a tais valores sempre existe a vida, existem vidas. O homem é o único ser criador de valores. A inversão de todos os valores nietzscheanos não deve ser entendida como um processo puramente intelectual; pressupõe essencialmente o apelo do corpo. É alguma coisa assim que passa pela carne, como nos diz Ecce Homo. Isso significa, por um lado, que essa inversão é eminentemente política: ela deve atuar como um evento que separa drasticamente um período do outro da História, deve "quebrar a história da humanidade em duas", conforme as próprias palavras de Nietzsche, pôr fim ao reinado dos valores cristãos. Por outro lado, porém, essa inversão não poderia, concretamente, consistir em um movimento impulsionado pelo objetivo de colocar novos valores no lugar dos antigos. É todo o processo de avaliação em si mesmo que deve mudar. É o ato de avaliar que necessita ser radicalmente modificado. Impõe-se uma mudança de paradigmas. É preciso aprender a avaliar de um ponto de vista totalmente diverso, implica, também, não aceitar, sem protestar, que novos valores sejam impostos de cima para baixo, como se encontravam colocados os valores antigos; impõe-se predisposição, impõe-se um engajamento nesse processo de mudança. Para Nietzsche, os valores não caem do céu, eles se constituem como produtos de um corpo. É o corpo que avalia, que entende e se propõe a mudar, e mudar o modo de avaliar significa modificar os corpos. É o projeto do Übermensch, em Zaratustra, o do corpo dionisíaco dos últimos textos.

Os valores se constituem como produtos de um corpo que avalia, que entende e se propõe a mudar, e mudar o modo de avaliar significa modificar os corpos

FILOSOFIA - Nietzsche tece severas críticas ao cristianismo. Ele acreditava no fim dessa corrente religiosa?

Souladié - Considerando-se os precedentes, sim. Responder com um não significaria não levar Nietzsche a sério. De fato,

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em seus últimos textos, ele não cessa de pedir o fim do cristianismo. O anticristo é concluído com um novo calendário a anunciar uma nova era. A luta contra o cristianismo constitui o pivô de sua última luta filosófica. Afirmar que Nietzsche não desejava realmente o fim a que se propunha é o mesmo que negar as afirmações que sustentava; e, contrariamente ao entendimento de alguns leitores, não creio que a filosofia de Nietzsche se apoie em "contradições". Todavia, responder categoricamente sim, como eu o faço, não me exime de duvidar um pouco da lucidez do filósofo no final do ano de 1888. Relembremos, antes de tudo, que Nietzsche não estava louco quando escreveu O anticristo e Ecce Homo. A debilidade o atinge em janeiro de 1989; golpeou-o súbita, repentinamente. Ao se questionar a percepção que o filósofo manifestava em relação à importância histórica que o distinguia, esclareçamos que tal ostentação de falta de modéstia não se constata apenas em entendimento, no final do ano de 1888, restrito ao próprio Nietzsche; em época anterior, seu antigo amigo, o grande compositor alemão, Richard Wagner, acreditava convictamente que Nietzsche reconstruiria as bases para uma nova civilização, particularmente no domínio político, graças à sua "arte total", e, realmente, reconheça-se, Nietzsche se apresenta como um grande pensador, colocado entre os mais destacados filósofos da História.

Após observação que merecia digno registro, impõe-se, como sempre, em se tratando de Nietzsche, atentar para o aparente exagero do propósito em referência. Por que um Nietzsche perfeitamente lúcido escreveria que pessoalmente poria fim ao cristianismo? Tal proposição atinge o grotesco. Nietzsche colocava-se, na realidade, como o último bastião de uma luta. Ele concebe a si mesmo como o ponto para o qual convergem todas as forças acumuladas e nele, em Nietzsche, eclodem ("eu sou todos os nomes da história"). O "eu" utilizado pelo último Nietzsche, particularmente em Ecce Homo, afigura-se alguma coisa mais que pessoal. Nele há uma luta milenar entre o que é dionisíaco e o que é cristão que se exalta. Além disso, Nietzsche se movia imbuído da convicção de que o reconhecimento de seu trabalho levaria tempo. Ele aspirava ao reconhecimento de sua contribuição filosófica, alimentava a expectativa de que o futuro o glorificasse, que seu trabalho fosse compreendido em tempos a vir, como cem anos após.

FILOSOFIA - Na sua visão de filósofo, vive-se atual mente uma crise de valores?

Souladié - Não me agrada a expressão "crise de valores", entendo-a como expressão que colide com a concepção que Nietzsche defendia; coloca-se tal expressão como frontalmente contrária aos valores que o filósofo colocava. Não se instala verdadeiramente uma "crise de valores" se não existe uma ideologia dominante; e nenhuma religião, nenhuma moral, nenhuma ideologia política pode manifestar-se desse modo atualmente. Hoje a crise é bem mais política que axiológica. Por que se quer então uma crise de valores? O que se escamoteia com essa perspectiva? Em meu entendimento, o problema da "crise de valores" coloca-se como um pretexto destinado a drenar angústias, a suscitar neuroses, a tornar o homem um ser triste. Em vez de se formular um verdadeiro diagnóstico, procura-se persuadir o homem saudável a imaginar que esteja doente. Sugerem-se perdas, criase uma situação muito confusa. Esse ardil, esse estratagema que objetiva disseminar uma sensação de insegurança corresponde àquilo que Nietzsche denomina uma "metafísica de carrasco", que premedita e sugere condições predisponentes a necessidades que requeiram a interveniência de salvadores, de deuses e de líderes providenciais. Cria-se uma situação contrária a tudo o que a Filosofia sustenta. Impõe-se, assim, uma releitura dos primeiros filósofos gregos; eles nos lembram que a Filosofia é o fruto da felicidade.

Quanto a Nietzsche, entrevejo uma tendência em exagerar o caráter apocalíptico da morte de Deus. Nietzsche não é nem Kierkegaard nem Dostoiévski, menos ainda Heidegger. Associar a morte de Deus a uma angústia existencial é um tema heideggeriano, não nietzscheano. Por muito tempo, Nietzsche foi lido apenas de um prisma heideggeriano. A morte de Deus, segundo Nietzsche, não é uma catástrofe, é ein Glück, isto é, ao mesmo tempo diz-se que é uma sorte e uma felicidade. Nietzsche escreve que as consequências imediatas da morte de Deus não são "de modo nenhum aflitivas nem entristecedoras, ao contrário, representam uma luz, uma felicidade, um alívio, uma alegria, um reconforto, uma aurora de uma nova espécie".

Qualquer interpretação que pretenda estabelecer liames entre Nietzsche e uma ideologia, quer de "direita",

quer de "esquerda", soará ilegítima

FILOSOFIA - Qual é a visão do filósofo de Sils Maria sobre o apóstolo Paulo e sobre Lutero?

Souladié - A concepção que Nietzsche oferece de Paulo e de Lutero evoluiu significativamente entre O nascimento da tragédia eEcce Homo. Ao longo de todo o trabalho que Nietzsche apresenta a respeito do cristianismo, imperioso se faz separar os textos de 1888 daqueles que os precederam, ou exporemo- -nos ao risco de cometer danosos contrassensos. Sem dúvida, Aurora constitui uma expressiva reviravolta no entendimento que Nietzsche concebia a respeito do personagem de Paulo. Nietzsche, que acabava de ler A antropologia do apóstolo Paulo, de Hermann Lüdemann, apresenta, naquela obra, Aurora, pela primeira vez, Paulo, e não Jesus, como fundador do cristianismo. No entanto, será necessário esperar O anticristopara comprovar, para constatar a lógica da intuição que o impele a tal mudança. Em 1888, Nietzsche não considera mais o personagem Jesus segundo o histórico que se consagra; ele separa Jesus da figura mítica do Cristo, aquele entendido como um idiota apolítico. Tal desconstrução, que separa o ser Jesus do ser Cristo, Jesus-Cristo, destaca- se como essencial para se compreender, para se admitir a concepção do cristianismo como o último Nietzsche propõe: São Paulo e os primeiros apóstolos fundaram o cristianismo, não Jesus. Eu declaro com toda convicção: "... e os primeiros apóstolos", porque se consagra a tendência de se transformar Paulo no "diabo" de Nietzsche, seu grande e único adversário. Paulo

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realmente desempenha o papel principal na construção da figura do Cristo, mas ele não estava só, os primeiros apóstolos contribuíram na fundação do cristianismo. Paulo não é senão um grande adversário, um adversário nobre. O cristianismo não foi fundado por um homem forte, um criador nobre. Tampouco se pode afirmar que o cristianismo seja fruto da vontade de um gênio político ou de um artista. É, sim, "um agregado constituído de formas em decadência originadas de toda parte", como diz Nietzsche em O anticristo, nenhum grande fundador pertence à sua origem. Paulo soube canalizar essas forças valendo-se da figura do "Deus na cruz" que ele manipulou e dirigiu contra o Império Romano.

A ligação de Nietzsche com Lutero mereceria um estudo mais amplo. Os alemães poderiam alimentar uma ligação afetiva com Lutero, em razão não somente de ser este mesmo Lutero um reformador religioso, mas também um dos pais espirituais da nação e da língua alemã. Essa dimensão particular merece destaque, não pode jamais permanecer oculta. Assim, Nietzsche, que despreza, por natureza, o Novo Testamento e execra o fato de o ligarem ao Antigo Testamento para forjar a Bíblia, apesar de tudo, elogia a Bíblia de Lutero, reconhecendo este último como livre fundador da língua alemã. Esclarecido tal reconhecimento, Nietzsche se põe a tecer severas críticas contra Lutero e não considera a Reforma um avanço. Segundo o filósofo, o alvo de Lutero não foram os abusos do catolicismo, mas o Renascimento. Lutero encarna, no entendimento de Nietzsche, o "padre fracassado", corroído pelo ressentimento e mergulhado no ascetismo. Lutero não tolera o triunfo da arte e da vida que ocorria então até na hierarquia católica, ele não tolera a exuberância do Renascimento e dirige o seu ódio contra esse movimento. Para o último Nietzsche, Paulo e Lutero aparecem como os responsáveis pelos dois últimos grandes atentados contra uma cultura nobre e distinta; respectivamente, contra o Império Romano e contra o Renascimento.

FILOSOFIA - Em sua opinião, qual é a importância de Nietzsche na História da Filosofia?

Souladié - Nietzsche dialogava constantemente com eminentes filósofos do Ocidente. Ele próprio inscreveu-se na História da Filosofia, e nela ocupa posição de destaque. Nietzsche, assim, será, inescapavelmente e para sempre, reconhecido entre os filósofos como figura de destaque nos anais da Filosofia. Nietzsche integra essa plêiade de filósofos sobre cujas obras inevitavelmente se debruça o leitor amante da Filosofia. Ele marcou profundamente o pensamento do século XX e continuará a marcar também o do século XXI.

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FILOSOFIA - Nietzsche alimentaria tendências ideo lógicas diversas? Em sua opinião, quais as recuperações, quais as ideias resgatadas por Nietzsche que podem soar como mais ilegítimas em relação ao que ele pensava?

Souladié - Qualquer interpretação que pretenda estabelecer liames entre Nietzsche e uma ideologia, quer de "direita", quer de "esquerda", soará ilegítima. Seja como for, esses entendimentos ideológicos que Nietzsche resgata não são equivalentes em se tratando de traição ou de abjeção. Admitamos que as numerosas referências cristãs, resgatadas por Nietzsche, que se definia como "o anticristo", fossem entendidas como as mais ilegítimas; mas tais referências, no meu ponto de vista, são resgates fascistas, e, mais particularmente, nazistas, que vão mais ao encontro do pensamento de Nietzsche. A frase "o vigésimo século foi nietzscheano" é um disparate. Bataille, Foucault e Deleuze, entre outros, entenderam Nietzsche como uma força capaz de se opor ao totalitarismo, e se eu de vesse caracterizar o pensamento de Nietzsche, eu o definiria como fundamentalmente antifascista, uma vez que nenhuma ideologia antifascista poderia prevalecer em Nietzsche. O filósofo detestava qualquer forma de idealismo. O que ele nos legou foi uma filosofia de intransigência no modo de ser e de pensar, uma recusa vigilante, permanente, a todo comprometimento com forças vingativas, bárbaras e calcadas no ressentimento. Nietzsche opôs-se ferrenha, intransigentemente ao antissemitismo, desde o nascimento desse movimento. Foi um dos primeiros a tomar consciência da periculosidade do antissemitismo em uma época em que esse movimento ainda não era levado a sério. A vida e a obra de Nietzsche constituem um exemplo de recusa ao comprometimento com o dúbio, com a pusilanimidade. Nunca se deixou surpreender por fórmulas retumbantes, quer se tratasse de democracia, quer de guerra, que de guerra, ou de escravatura; pouco importando o contexto em que estivessem inseridas. A filosofia de Nietzsche é uma filosofia que privilegia a diferença, a independência, a liberdade do espírito. Uma das mais expressivas homenagens que puderam prestar-lhe vem do seu antigo colega, Jacob Burckhardt, que, embora não apreciasse os seus últimos livros, admirava Nietzsche e assim afirmou: "Ele tornou o mundo mais independente". Os sistemas totalitários querem transformar os homens em pequenos soldados, querem abolir as diferenças para conseguir um rebanho obediente, um rebanho dócil em que nenhuma cabeça ouse sobressair- se. Nietzsche nunca cessou de denunciar o gregarismo do homem, o rebanho, a submissão interesseira, a comodidade e a covardia das autoridades indignas e ilegítimas.

Nietzsche rejeita toda moral que ele entenda como hostil à vida; toda moral que se fundamente em

um referencial "não vida"

FILOSOFIA - Segundo seu entendimento, Nietzsche recusa todo e qualquer tipo de moral ou sua crítica é precisa em relação à moral socrático-platônica?

Souladié - Nietzsche integra o grupo daqueles que melhor souberam eleger e exaltar a importância, a profundidade e a complexidade do fenômeno moral. Seria um equívoco destacar em Nietzsche um posicionamento de recusa intransigente e sem discernimento contra todo tipo de moral. Impõe-se uma correção. É relativo o posicionamento do filósofo de Sils Maria em se tratando de moral. Nietzsche rejeita toda moral que ele entenda como hostil à vida; hostil à vida. Nenhuma moral pode pretender a universalidade, todas devem ser avaliadas de um parâmetro que privilegie a vida. Nietzsche não se apresenta como o imoralista, senão para senão para opor-se à moral entendida como valor universal dominante no Ocidente há milênios. Ele não exclui. Ele não exclui o recurso das formas mais nobres nem daquelas formas menos pretensiosas da moral.

Se Nietzsche, em sua juventude, se debruça sobre a moral socrática, ao aproximar-se da maturidade, pouco a pouco muda seu entendimento e concentra suas certezas na moral judaico-cristã. Segundo o último Nietzsche, Sócrates e Platão se destacam como os principais responsáveis pela decadência da moral. A genealogia da moral preocupa- se, também, em esclarecer que a primeira inversão dos valores em moral registrou-se na fase final do judaísmo (3º período), e essa inversão foi concluída pelo cristianismo. O último Nietzsche vai assim concentrar-se na moral cristã, como nos indica a última parte de Ecce Homo.

FILOSOFIA - Quais são os seus futuros projetos de pesquisa e de publicação?

Souladié - Ainda não terminei minha pesquisa sobre Nietzsche. Atualmente estou aguardando a publicação da minha nova tradução e edição de O anticristo. Meu primeiro objetivo é, antes de tudo, publicar a minha tese, Nietzsche - uma filosofia do anticristo. Estou preparando muitas outras pesquisas sobre Nietzsche, bem como sobre Dostoiévski e sobre os primeiros filósofos gregos.

FÁBIO ANTÔNIO GABRIEL é bolsista Capes/Pibid Filosofia UENP, www.mundofilosofico.com.br, MARIA TERESA BIAGINI colaborou na entrevista e na tradução, ISABEL LOUREIRO colaborou na revisão da tradução (revisandoseutexto.com).

Agradecimento especial ao Prof. Dr. RENATO NUNES BITTENCOURT pela revisão técnica.

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Na escola, Josés já podem ser chamados de Marias (MALU FONTES)

ESTUDANTES travestis ou transexuais das escolas do estado da Bahia poderão escolher, já a partir de agora (a resolução já está em vigor), o nome civil como preferem ser chamados na escola e nos documentos escolares. Em outras palavras, um estudante que tenha nascido com a genitália masculina e tenha sido registrado pelos pais como José, mas que, ao descobrir-se identitariamente no mundo, ao longo da infância e puberdade, nunca tenha se sentido confortável no corpo masculino e muito menos sendo chamado de José, nem tampouco tenha se sentido atraído por pessoas do sexo feminino, poderá agora, por força da lei, ser tratado como Maria, Alice, Luana ou seja lá que nome que o faça sentir-se melhor quanto à sua identidade sexual.

O mesmo, claro, vai acontecer com estudantes que nasceram meninas, mas cresceram sentindo-se e comportando-se como meninos. Diretores, professores, funcionários e coleguinhas conservadores e que acham que o mundo deve ser como determina seus mandamentos de umbigo, respirem fundo, corticalizem que o mundo mudou e, sim, Alices e Fernandas estão empoderadas pelo Estado, munidas do pleno direito legal de serem chamadas oficialmente na escola de Jorge, Manuel ou Torquato. É só querer. O resto a lei garante e passa ao largo dos humores e da polícia moral da escola. Sim, pois não faltarão nas escolas polêmicas e ofensas originadas de alguns educadores, de colegas de turma e, principalmente, de papais e mamães que acham beijo gay em novela um sinal de que o mundo está perdido ou que todos os dias dedicam uma oração ao pastor Marcos Feliciano.

A resolução que garante a meninos e meninas, na escola, a troca de nomes masculinos para femininos e vice-versa, num mundo e num país que avançam em direitos e políticas públicas de respeito à diversidade, parece uma conquista e tanto. E é. Mas não custa lembrar que, em qualquer época histórica, toda conquista que incomoda a consciência dos conservadores - e há dúvidas de que eles sempre foram maioria, mesmo quando e se silenciosos? - houve reações de fúria, resistência e ofensas. Fala-se aqui majoritariamente de meninos e meninas ainda no ensino fundamental e médio. Na universidade, as liberdades individuais tendem a ser mais protegidas e a banda tende a tocar de modo mais simétrico, com alunos já sabendo se defender e contando com grupos de apoio mais consistentes. Já quando se trata da escola, a falta de poder de reação e defesa às ofensas verbais, ao bullying e à violência física sofridos por quem adotar novos nomes civis diante de uma medida dessa natureza jamais deve ser desconsiderada, sobretudo nos primeiros meses e anos.

Ou alguém acredita que num país tão machista, onde mulheres são assassinadas às dezenas por dia, mesmo com leis que as protegem, e homossexuais são agredidos na rua gratuitamente somente porque se relacionam com pessoas do mesmo sexo, garotos e garotas imberbes não vão pagar um preço alto por usufruir o direito conquistado de mudar formalmente o gênero dos seus nomes na escola porque tiveram um nome escolhido em função de uma genitália que nunca foi uma sentença para seu desejo sexual? Para quem não sabe o que é isso nem quer considerar o que seja, talvez seja mesmo impossível mensurar a importância de ter o direito de escolher um nome e um corpo que se adequem melhor à identidade sexual na qual se reconhecem e que caibam mais em seu desejo. Mas, enquanto a maioria continuar sem entender mesmo, aconselha-se à Secretaria de Educação e ao Ministério Público que protejam esses estudantes, não com afeto, mas com leis e políticas públicas. Eles vão precisar.

MALU FONTES é Doutora em Cultura pela UFBA, jornalista e professora de Jornalismo da mesma Universidade. Jornal

CORREIO, Fevereiro de 2014.

A prioridade é a segurança (CARLOS EBNER)

A SEGURANÇA de voo é o principal pilar da aviação comercial. Não por outro motivo, a indústria investe pesado para manter índices nos patamares mais elevados. Todo o trabalho de prevenção das companhias leva em conta três fatores: a máquina, que envolve qualquer defeito técnico das aeronaves, o ambiente, que diz respeito às condições meteorológicas e pista, e o homem, aqui representado pelos tripulantes e passageiros.

Recentemente, o Brasil foi palco de um episódio que acendeu o alerta do setor. Sete passageiros da Gol Linhas Aéreas, contrariados com a prolongada espera na pista causada pelo mau tempo, ativaram a porta de emergência e subiram nas asas da aeronave. Atos impensados como esse mostram total intolerância e falta de conhecimento sobre os riscos que envolvem a atividade aérea.

A Associação Internacional de Transporte Aéreo (Iata) coleta dados como esse desde 2007 e já registrou mais de 15 mil em todo o mundo até o final de 2011. Houve um aumento de pouco mais de 500 registros em 2007 para mais de 6.000 em 2011. E esses são apenas os incidentes relatados oficialmente. Esse quadro é extremamente grave e ameaça a segurança e o conforto a bordo. O custo de uma aterrissagem não programada para desembarcar ou entregar passageiros indisciplinados é arcado pelas companhias aéreas. No caso da Gol, a ativação da porta de emergência poderia ter deixado a aeronave fora de serviço até que o dispositivo pudesse ser devidamente reinstalado. O incidente também poderia levar a cancelamentos de voos, causando ainda mais transtornos.

As companhias têm oferecido treinamento especial à tripulação e algumas até têm introduzido novos métodos, tais como o cartão amarelo para tentar advertir o passageiro. Mas é preciso muito mais. É importante que as autoridades responsabilizem esses passageiros por seus atos. Infelizmente, muitos episódios não são tratados com a seriedade que

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merecem, mesmo havendo leis e regulamentos em vigor para prevenir que tais atos ocorram. Para viagens internacionais, esses incidentes são regidos por um tratado conhecido como Convenção de Tóquio, um documento de 1960 que precisa de atualização. A Organização da Aviação Civil Internacional (Icao), órgão especial das Nações Unidas, realizará uma conferência diplomática no final de março para discutir a modernização da Convenção de Tóquio. E o Brasil deve participar ativamente das discussões. É um bom começo para lidar com o quadro internacional que rege tais incidentes, particularmente garantindo que o país em que a companhia aérea está registrada tenha autonomia, bem como o país em que a aeronave aterrisse.

Esta também será uma excelente oportunidade para o governo brasileiro rever suas leis e regulamentos para assegurar que estejam alinhados com as melhores práticas e padrões globais. No entanto, é importante que o caso da Gol seja tratado de forma apropriada. Isso significa um compromisso com a segurança e uma resposta imediata das autoridades. Os passageiros precisam saber que, ao colocar a segurança e o conforto dos outros em risco, serão punidos.

CARLOS EBNER é diretor da Associação Internacional de Transporte Aéreo (Iata) para o Brasil. Jornal FOLHA DE SÃO PAULO, Fevereiro de 2014.

“O Brasil não está para Carnaval nem para Copa” (CRISTIANE SEGATTO)

O obstetra Thomaz Gollop e o bloco dos descontentes

O BLOCO dos descontentes com os rumos das políticas de saúde no Brasil ganhou mais um integrante declarado. É o obstetra Thomaz Gollop, professor de genética médica da Universidade de São Paulo. Ele critica a recente portaria do Ministério da Saúde que mudou as regras sobre aconselhamento genético. Ela é parte da política nacional para atendimento de pacientes com doenças raras no SUS. Cerca de 80% dessas doenças têm caráter genético. Estima-se que 15 milhões de brasileiros tenham algum tipo de doença rara. Pelas novas regras, biólogos e outros profissionais sem formação médica não poderão aconselhar as famílias sobre os riscos de males genéticos. Gollop é mais conhecido por seu empenho de décadas pela descriminalização do aborto. Ele coordena o Grupo de Estudos sobre o Aborto (GEA), entidade que reúne médicos, juristas, antropólogos, biólogos e outros profissionais. O objetivo do grupo é retirar o tema da esfera do crime e abordá-lo sob o prisma da saúde pública. Nesta entrevista, ele fala sobre os dois assuntos:

ÉPOCA: Por que o sr. diz que o Brasil não está para Carnaval nem para Copa?

Gollop: Devemos nos manter longe da antiga política romana do pão e circo. Não defendo a violência ou a agressão a instituições e pessoas, mas o desejo da população está claro desde junho de 2013. Queremos o fim da corrupção e a preocupação efetiva dos governos com saúde, educação de qualidade e segurança. Os indicadores da educação estão progressivamente piores. A promessa em relação à Copa era de que as cidades-sede tivessem benefícios em relação à infraestrutura. Não é o que estamos vendo e certamente não há tempo hábil para que os benefícios se materializem até junho de 2014. É uma enorme decepção. Mais uma vez fomos enganados pelo poder público.

ÉPOCA: A mais recente polêmica na sua área de atuação é a portaria do Ministério da Saúde sobre aconselhamento genético. Ela determina que só os médicos geneticistas, como o sr., podem oferecer esse serviço. Essa nova regra é benéfica?

Gollop: Essa é uma portaria que me parece ter sido gerada em gabinetes burocráticos por gente que não percebe quais são as demandas da população carente. Enfrentamos enormes dificuldades para atender os portadores de doenças genéticas, especialmente quando elas exigem atendimento de maior complexidade. Genética clínica e médica é uma área multidisciplinar em todos os países desenvolvidos do mundo. Quando estagiei na Universidade de Wisconsin no longínquo ano de 1982, aquele serviço dispunha de enfermeiras, psicólogos, biólogos, assistentes sociais e médicos. Todos juntos eram responsáveis pelo atendimento integrado do consulente.

ÉPOCA: Muitos dos benefícios que o conhecimento sobre biologia molecular trouxe à medicina são resultado do esforço de profissionais sem formação em medicina. É possível afirmar que os biólogos sabem mais sobre genética do que os médicos?

Gollop: Os biólogos têm em seu curso de graduação uma formação em genética humana muito mais profunda do que aquela oferecida na maioria das escolas médicas do Brasil. Nos anos 80, a biologia molecular, a genética do câncer e muitas áreas afins eram um sonho. Hoje elas são uma realidade graças aos esforços de muitos especialistas. Eu mesmo, que sou médico e fiz mestrado, doutorado e livre-docência no Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo, aprendi muito daquilo que sei com meus professores biólogos. O Centro de Estudos do Genoma Humano da USP é uma prova viva de que não podemos prescindir do conhecimento dos biólogos que lá trabalham. Há muitos exemplos iguais no Brasil: UNICAMP, UFGRS, UFPR etc.

ÉPOCA: O sr. acredita na revogação dessa portaria?

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Gollop: É um absurdo que notáveis especialistas sejam proibidos, por meio de uma ―canetada‖, de exercer, cada um em seu campo de especialidade, suas respectivas atividades. Espero que um mínimo de bom senso prevaleça e essa portaria seja revogada.

ÉPOCA: Os médicos geneticistas disponíveis no Brasil serão suficientes para atender os portadores dessas doenças?

Gollop: Os 160 médicos que pertencem à Sociedade Brasileira de Genética Clínica (eu, entre eles) obviamente não darão jamais conta da demanda. É uma falácia dizer que o SUS vai fornecer remoção de eventuais pacientes que necessitem de aconselhamento genético para centros de referência. Imaginar algo nesse sentido é simplesmente desconhecer as dimensões continentais do Brasil.

ÉPOCA: O Ministério da Saúde informa que existem no país mais de 240 serviços que podem promover ações de diagnóstico de doenças genéticas e assistência completa, como a oferta de tratamento adequado e internação nos casos recomendados. É suficiente?

Gollop: Gostaria de conhecer o elenco desses serviços. Saber quantos pacientes cada um atende por mês e qual é a demanda estimada em um país de 200 milhões de habitantes. Não sou sanitarista nem biólogo geneticista de populações, mas conheço alguns que podem fazer esse cálculo em minutos. Nos países desenvolvidos, o ônus do cuidado para pessoas especiais de qualquer natureza recai primordialmente sobre o Estado. Em países como o Brasil, ele recai principalmente sobre as famílias e instituições privadas. Exemplos são as APAEs, a AACD, a Fundação do Cego do Brasil, as Casas André Luiz etc. Nosso Estado é um grande omisso.

ÉPOCA: Outra norma recente, da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), determina que médicos sem especialidade em genética não poderão mais assinar pedidos de exame de DNA. Qual será o efeito disso?

Gollop: Quase diariamente alguém me pede para transcrever pedidos e justificativas para a realização de exames de DNA. Isso só dificulta a vida dos pacientes. Para quê? Será que os planos de saúde têm interesse em dificultar o acesso a esses exames dispendiosos? A ANS tornou obrigatória a cobertura desses exames pelos planos de saúde. Esse direito será respeitado?

ÉPOCA: Para os pacientes do SUS ficou ainda mais complicado?

Gollop: As pessoas que dependem do SUS precisam gastar com transporte, perder dia de trabalho e sofrer mais do que o aceitável só para encontrar um especialista raro. Não faz sentido. Imagine que eu recebesse no consultório uma idosa com tosse e febre com duração de uma semana. Já pensou se eu tivesse que encaminhá-la a um pneumologista só para pegar um pedido de radiografia de tórax? Seria ilógico, assim como é essa história dos pedidos de exame de DNA.

ÉPOCA: O sr. é conhecido, há décadas, pelo envolvimento em outro importante tema de saúde pública: a discussão sobre a descriminalização do aborto. Há dois anos, o Ministério da Saúde estudava a adoção de uma política de redução de danos e riscos para o aborto ilegal. A ideia era orientar o sistema de saúde para acolher a mulher que estivesse decidida a se submeter a um aborto clandestino. A polêmica girava em torno da indicação de métodos abortivos mais seguros. O que aconteceu com essa proposta?

Gollop: Não estou autorizado a falar em nome do Ministério da Saúde. A única coisa que posso afirmar -- e que pode ser confirmada pela literatura especializada -- é que no Uruguai, apenas para citar um exemplo, a mortalidade de mulheres por abortamento inseguro caiu drasticamente graças a uma política de redução de danos. A queda da mortalidade foi ainda mais acentuada entre as mulheres mais pobres. Por abortamento inseguro, entende-se aquele realizado em más condições de higiene e péssima assistência.

ÉPOCA: O sr. costuma dizer que a criminalização do aborto é hipócrita e mentirosa. Por quê?

Gollop: O Código Penal vigente, de 1940, é anacrônico. Não atende às demandas da sociedade moderna. Isso é publicamente reconhecido. Tanto é verdade que já houve inúmeras comissões de reforma do Código Penal. Criminalizar o aborto é ineficaz. É uma lei que não é seguida. As mulheres não mantêm a gravidez por força de lei. Ter filhos e filhas é um projeto afetivo e de vida de homens e mulheres. Em um Estado Democrático de Direito não se pode obrigar ninguém a ter filhos ou deixar de tê-los.

ÉPOCA: Na quarta-feira (26), o deputado federal Assis do Couto (PT-PR) foi eleito presidente da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados. Couto é integrante da "Frente Mista Em Defesa da Vida – Contra o Aborto". Ela é composta principalmente por católicos e evangélicos que são contrários ao aborto. O que pensa sobre essa escolha?

Gollop: Tenho o maior respeito por todas as religiões e seus dogmas. Fé é uma questão de direito individual. As leis são uma questão de direito público. Devem ser efetivas para todos, incluindo as minorias. O Brasil é constitucionalmente um

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Estado laico. A laicidade do Estado significa que todas as religiões são respeitadas e que há uma nítida separação entre Estado e Igreja (no seu sentido mais amplo). Nos últimos anos temos visto nossos governantes afastarem-se cada vez mais do princípio do Estado laico. Isso tem profundos reflexos em outro conceito caríssimo: o da liberdade.

CRISTIANE SEGATTO é Repórter especial, faz parte da equipe de ÉPOCA desde o lançamento da revista, em 1998. Escreve

sobre medicina há 17 anos e ganhou mais de 10 prêmios nacionais e internacionais de jornalismo. Revista ÉPOCA, Fevereiro de 2014.

Por que o Uruguai legalizou a maconha (JOHANN HARI)

No dia 23 de dezembro de 2013, o presidente uruguaio José Mujica aprovou um projeto de leipara criar um

mercado regulamentado e legal da maconha. Com a medida, ele tornou-se o primeiro chefe de Estado a legalizar a produção e a venda – em uma rede de farmácias – de uma droga proibida em toda parte.

NO MÉXICO, fotos de desaparecidos revestem os muros tal qual uma campanha publicitária colossal de um traficante de humanos. Segundo a organização Human Rights Watch, mais de 60 mil mexicanos perderam a vida na ―guerra às drogas‖, deflagrada em 2006 pelo então presidente Felipe Calderón. O banho de sangue se alimenta de duas fontes cruzadas: de um lado, os Estados Unidos fornecendo dinheiro e armas na outra margem do Rio Grande para reprimir o tráfico de entorpecentes; de outro, os cartéis lutando pelo controle das rotas de distribuição.1 No dizer de Charles Bowden, a guerra às drogas se iguala à guerra pela droga. Ambas são igualmente letais.

Até recentemente, dominava certo fatalismo inspirado pela constatação de que a selvageria não poderia ser detida, apenas deslocada. Entretanto, há dois anos, dirigentes latino-americanos, entre os quais o presidente da Colômbia, Juan Manuel Santos, têm procurado romper publicamente com o dogma repressivo e colocar em prática uma política diferente – a única, eles asseguram, capaz de erradicar o mercado da droga. É essa a postura que o Uruguai está tentando adotar. Seu presidente, José Mujica, é um dirigente atípico. Ex-guerrilheiro tupamaro da década de 1980, ele ficou preso no fundo de um poço por 2,5 anos. Depois de eleito, em novembro de 2009, desprezou a pompa do palácio presidencial, preferindo permanecer em sua pequena casa com teto de zinco, num bairro popular de Montevidéu. Destina 87% de seu salário de chefe de Estado a instituições de apoio a projetos sociais de habitação e, de bom grado, vai de ônibus a muitos de seus compromissos.

Origens da violência

Em julho de 2013, ele baixou uma lei autorizando adultos a cultivar e vender Cannabis em todo o território nacional. Os usuários passaram a poder obter sua erva favorita nas farmácias, limitados a 40 gramas por mês, ou a cultivar, por conta

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própria, até seis pés por residência. É a primeira vez que um país transgride frontalmente os tratados da ONU que proíbem o uso da maconha.

―Já faz mais de cem anos que, de um modo ou de outro, adotamos políticas repressivas em relação às drogas‖, explica-nos Mujica. ―E, passado um século, concluímos que essas práticas resultaram num fracasso incontestável.‖ O ministro da Defesa uruguaio, Eleutorio Huidobro – outro ex-tupamaro que ficou preso no fundo de um poço por vários anos –, nos faz uma síntese da tomada de consciência que levou o governo de seu país a dar esse passo histórico: ―Se não fizéssemos isso agora, o que aconteceu com o México acabaria acontecendo em nosso país. E estaríamos em maus lençóis‖. Na verdade, o Uruguai se situa numa das principais rotas continentais da droga, seguida pela cocaína boliviana e pela maconha paraguaia antes de tomar o rumo da Europa. Segundo o deputado Sebastián Sabini, um homicídio em três no país está associado ao narcotráfico.

É a política de proibição, insiste Huidobro, que criou o narcotráfico e a violência dela decorrentes: ―Ao reprimir a legalização da marijuana, o que se faz é colocar os benefícios desse mercado nas mãos dos criminosos e transformar os traficantes em uma instituição superpoderosa‖. Numa economia ilegal, os litígios não são resolvidos por um tribunal, mas pelo terror. Da mesma forma como a proibição da bebida concebeu Al Capone e o massacre do Dia de São Valentim,2 a gangue dos Zetas e a carnificina sem fim que enluta o norte do México são frutos naturais da proibição dos entorpecentes. ―A guerra dos Estados Unidos à droga causa mais dano do que a própria erva‖, enfatiza Huidobro. ―Ela provoca infinitamente mais vítimas, infinitamente mais instabilidade. Ela coloca para o planeta um problema bem mais grave do que qualquer droga. O remédio é pior do que a doença.‖

O governo de Mujica considera a erradicação do comércio de drogas uma utopia fantasiosa. O slogan da ONU – ―Um mundo sem drogas. É possível alcançá-lo‖ – parece-lhe um grande absurdo. O chefe de gabinete da presidência, Diego Cánepa, defende que a alteração química da consciência é resposta a um desejo básico da espécie humana, manifestado em todas as sociedades conhecidas.

A mobilização de tropas tem como único efeito o deslocamento do tráfico em algumas centenas de quilômetros. Os especialistas o definem como ―efeito balão‖: quando se aperta o dedo no balão cheio de ar, a circunferência dele aumenta sob o efeito da pressão. Os locais de produção atacados na Colômbia reapareceram na Bolívia, as redes desmanteladas no

Caribe se reconstituíram no México etc. No máximo, conseguimos afastar o problema em vez de extingui-lo. A partir dessa constatação, Mujica concluiu que, ―uma vez que o mercado já existe, é preciso regulamentá-lo, fazê-lo sair das sombras para tirá-lo dos traficantes‖. Nos Estados Unidos, a legalização do álcool em 1933 pôs fim ao tráfico de destilados de má qualidade e aos assassinatos entre concorrentes. A Budweiser não é chegada à filantropia, mas pelo menos não defende sua fatia de mercado acabando com funcionários da Guinness. Da mesma forma, a legalização da maconha – e sua comercialização em farmácias estabelecidas legalmente – tira o pão da boca do crime organizado. Por outro lado, os impostos cobrados podem servir para financiar centros de tratamento para dependentes e programas de prevenção contra o consumo de tóxicos. Os adeptos sul-americanos da legalização não estão pretendendo enaltecer os benefícios da maconha nem estimular o consumo – o presidente Mujica não hesitou em qualificar os usuários de drogas leves de nabos, termo pejorativo que significa literalmente ―nabos‖. Eles estimaram, em contrapartida, que um ―baseado‖ não é mais nocivo do que um copo de bebida alcoólica e que, portanto, era preciso ajustar-se à situação.

Doces com psicotrópicos

Os reformistas uruguaios não ignoravam que iam bater de frente com a indignação dos adeptos da proibição. Por décadas, estes últimos acenaram com o espectro de que a legalização seria sinônimo de caos e depravação, que convidaria crianças a correr até a confeitaria da esquina para se abastecer de psicotrópicos − ao que os uruguaios retrucam que caos é o que o continente deles vive no presente momento. A reforma que defendem visa exatamente ao oposto: retomar o controle do mercado para poder dominá-lo. Segundo eles, os adolescentes serão os principais beneficiários. Sabe-se que o consumo regular de maconha pelos mais jovens pode alterar-lhes as faculdades mentais e que é vital dissuadi-los do consumo. Hoje, os jovens norte-americanos preferem a maconha ao álcool,3 pela simples razão de que um traficante raramente pede um documento de identidade ao cliente. Em contrapartida, o farmacêutico está mais inclinado a respeitar a lei, caso contrário pode perder sua licença.

Pelos quatro cantos do mundo, são numerosos os legisladores e representantes do aparato policial a reconhecer, em caráter privado, as vantagens da legalização. No Uruguai, eles o fazem abertamente e agem de acordo. Por que eles, por que aqui? Por que razões os obstáculos intransponíveis lá fora – a inércia, o medo de desagradar aos Estados Unidos, o temor da opinião pública – são mais fáceis de ser vencidos no Uruguai do que em outra parte?

São diversos os fatores que se combinam. O primeiro diz respeito ao vigor excepcional do movimento antiproibicionista, atiçado por uma série de injustiças ostensivas. Em abril de 2011, por exemplo, uma professora da academia militar, Alicia Garcia, de 66 anos, foi presa por cultivar alguns pés de Cannabis em sua residência. Ela encarou vinte meses de prisão por produção ilegal para uso comercial. Formou-se então, em torno dela, uma rede de apoio à qual se associaram os jovens parlamentares do Movimento de Participação Popular (MPP), o partido de Mujica, em defesa da legalização.

Ao mesmo tempo, a autoridade dos Estados Unidos em relação ao assunto começou a vacilar. Em 2013, os estados do Colorado e de Washington adotaram uma lei, aprovada por meio de referendo, que legaliza o uso, a produção e a venda da

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marijuana. As autoridades norte-americanas estariam, a partir de então, em situação menos vantajosa para coibir ou punir países desejosos de fazer o mesmo.

Enfim, a popularidade e a determinação do presidente uruguaio exerceram um papel fundamental. Sem dúvida, depois de sobreviver anos no fundo de um poço, fica-se mais bem equipado para resistir a pressões, tanto internas como externas.

Até hoje, entretanto, Mujica e seus aliados ainda não obtiveram êxito em persuadir a maioria de seus compatriotas, atraindo-os para a causa. Mesmo considerando que, ao longo do tempo, a legalização conta com uma adesão crescente, há ainda 60% de opiniões contrárias, segundo as pesquisas. Os oponentes alegam três objeções. Em primeiro lugar, o efeito de um ganho inesperado: ―A partir do momento em que se legaliza uma droga, as pessoas passam a consumi-la em maior quantidade‖, afirma a deputada Verónica Alonzo. O argumento parece sensato; no entanto, os fatos o contradizem. Na Holanda, onde a venda da maconha nos coffee shops foi autorizada em 1976 (as autoridades renunciaram a uma legalização formal para não transgredir abertamente os tratados da ONU), os usuários representam apenas 5% da população, contra 6,3% nos Estados Unidos e 7% no conjunto da União Europeia.4 A imagem de uma corrida às farmácias uruguaias parece assim algo fantasioso.

A legalização da cocaína?

O segundo medo é que a legalização da Cannabisincite os usuários a recorrer a drogas pesadas, especialmente a pasta-base, um derivado da cocaína comparável ao crack que faz estragos nas camadas menos favorecidas da população uruguaia. É a teoria chamada da ―porta aberta‖: um vício menor leva necessariamente a um mais grave. Raquel Peyraube, especialista no tratamento de toxicômanos, não acredita nisso, nem por um segundo. Segundo ela, é justamente o contrário: a proibição é que, por meio do monopólio que confere aos traficantes, orienta os usuários de maconha na direção de produtos mais perigosos. ―No supermercado, compramos coisas de que não precisamos porque nos mostram ou porque as tornam atraentes para nós‖, explica. ―Da mesma forma, os traficantes vão tentar empurrar cocaína e outras substâncias para seus clientes. A proibição faz a cama das drogas pesadas.‖ A análise foi confirmada por um estudo recente realizado pela Open Society Foundations, a rede de fundações criada pelo milionário George Soros: ela verificou que a Holanda apresenta os índices mais baixos de toxicômanos da Europa, precisamente por ter mantido as drogas pesadas afastadas da maconha.5

Raquel também rechaça a ideia segundo a qual a legalização provocaria uma elevação dos casos de esquizofrenia. Se houvesse uma ligação entre a maconha e a aparição da doença, afirma, as taxas de esquizofrênicos teriam explodido ao longo das últimas décadas, já que é incontestável que o consumo de maconha não parou de crescer em numerosos países ou permaneceu estável. Segundo a médica, é possível, em contrapartida, que os esquizofrênicos consumam essa droga com mais frequência do que a média em função de seu efeito relaxante, o que explicaria a correlação.

A essas críticas junta-se outra, mais séria, que não deixa de sensibilizar certos membros da administração uruguaia. A maconha não passa de uma mercadoria entre outras no mercado de drogas ilícitas. Certamente a legalização vai reduzir o mercado, mas conserva intacto o comércio dos produtos mais rentáveis. Para abalar de fato o poder dos cartéis, o coerente seria ir mais além e regulamentar o circuito de todas as drogas cuja demanda é elevada. Com certas drogas, como o ecstasy e a cocaína, seria o caso de regular a venda; com outras, como a heroína, seria, sem dúvida, mais recomendável uma distribuição sob prescrição médica, conforme sugerem as experiências-piloto realizadas na Suíça.

―Vai levar algum tempo‖, reconhece Sebastián Sabini, o representante do MPP mais envolvido com a reforma. ―Mas quando chegar o dia, quando for a hora das outras drogas, estaremos prontos para defender nossa causa perante a população.‖ Aquele que os observadores consideram como o futuro sucessor do chefe de Estado já se pronunciou como favorável à legalização da cocaína.

Existe ainda uma alternativa? Qual é a vantagem em teimar em perseguir aquilo que Huidobro chama de uma guerra ―já perdida‖? Esperando que os políticos de seu país decidam reagir, a mexicana Emma Veleta chora o desaparecimento de oito familiares, sequestrados por traficantes com a provável cumplicidade das autoridades locais.6Conforme observado por David Simon, o criador da série televisiva The Wire, os Estados Unidos poderiam muito bem ser tentados a conduzir sua luta contra a droga ―até o último mexicano‖.7

1 Ler Jean-François Boyer, “Mexico recule devant les cartels” [México recua diante dos cartéis], Le Monde Diplomatique, jul. 2012. 2 No dia 14 de fevereiro de 1929, a máfia de South Side, comandada por Al Capone, armou uma emboscada contra a de North Side, sob o controle de Bugs Moran, e assassinou sete de seus membros. 3 Tom Fielding, The candy machine: how cocaine took over the world [A máquina de doces: como a cocaína dominou o mundo],

Penguin, Londres, 2009. 4 “Dutch fear threat to liberalism in „soft drugs‟ curbs” [Holandeses temem ameaça ao liberalismo em freios às “drogas leves”], Reuters, 10 out. 2011.

5 “Coffee shops and compromise: separated illicit drug markets in the Netherlands” [Coffee shops e compromisso: mercados de drogas ilícitas separados na Holanda], Open Society Foundations, Nova York, jul. 2013. 6 “La pesadilla de perder a toda su familia en Chihuahua” [O pesadelo de perder toda a família em Chihuahua], 28 maio 2012. 7 David Simon, “A fight to the last Mexican” [Uma luta até o último mexicano], 10 jul. 2012.

JOHANN HARI é Jornalista e escreve esporadicamente para esta publicação. Ilustração: Lorenzo Gritti. Revista LE MONDE DIPLOMATIQUE BRASIL, Fevereiro de 2014.

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A festa dos torcedores (JÉRÔME VALCKE)

ATAQUES à Fifa com base em informações equivocadas e incompletas e até mesmo a propagação de mitos têm sido frequentes na preparação da Copa no Brasil. Encaramos isso de maneira profissional, analisando as críticas e dialogando de forma franca.

Lamentamos que alguns formadores de opinião não estão interessados em mostrar os aspectos positivos da realização da Copa ou usam o torneio em benefício de suas próprias agendas. Há ainda os que criticam por criticar, sem entender a complexidade da organização do maior evento esportivo do planeta. Apesar de tudo, esperamos a mesma abertura que nós damos às críticas da parte de quem as profere e se preocupa em informar de maneira equilibrada e justa. Lamentavelmente, não foi isso que vimos na carta aberta que foi endereçada a mim pelo colunista da Folha Xico Sá ("Carta a messiê Jérôme", "Esporte", 22/2).

A Copa do Mundo é uma parceria entre a Fifa e o país-sede, e o governo federal sempre foi enfático --e nós concordamos plenamente - quanto à importância de incluir os brasileiros no megaevento. Isso vale não apenas para ingressos acessíveis e com desconto, mas especialmente para aqueles que não têm ingressos e querem viver de perto a Copa do Mundo da Fifa. É essa a oportunidade que proporciona o Fan Fest (evento com telões e shows musicais para acompanhar os jogos). No mundo real, contratos são importantes. Eu tenho certeza de que você, Xico, não apreciaria se um cliente ou empregador se comportasse de maneira diferente ao que foi combinado e assinado.

Gostaria de lembrá-lo que ninguém forçou o Brasil a sediar a Copa do Mundo da Fifa de 2014. O Brasil se candidatou e, ao se informar sobre os requisitos, as autoridades prontamente concordaram e assinaram compromissos. No entanto, e ao contrário do que o senhor escreveu, a Fifa tem agido de forma bastante flexível. No que diz respeito aos Fan Fests especificamente, a Fifa tem trabalhado em estreita cooperação com as sedes para garantir que os custos sejam reduzidos ao mínimo. Os custos de organização de um Fan Fest com 32 dias são, em muitos casos, menores do que o que é gasto em uma festa de Réveillon ou com o Carnaval e festas regionais, sem, é claro, questionar o mérito de tais eventos.

A Fifa está fornecendo um apoio financeiro significativo ao contribuir com todos os equipamentos de infraestrutura dos Fan Fests, incluindo telão de alta qualidade, palco,som e iluminação, além de promover as sedes internacionalmente, resultando no equivalente a milhões de dólares em exposição da imagem do Brasil e das respectivas cidades. O melhor de tudo, ainda que pareça não interessar à imprensa, é que as sedes podem cobrir todos os custos por meio da geração de renda, por exemplo, com os lucros dos restaurantes, sem necessidade de limitar os produtos à venda aos dos patrocinadores da Fifa. Isso proporcionou um enorme retorno financeiro nos Fifa Fan Fests anteriores.

A Fifa vem trabalhando em conjunto com o país-sede, as cidades e os Estados nos últimos cinco anos e nunca tivemos qualquer dúvida de que todos estão comprometidos com a realização de uma Copa de sucesso, com Fan Fests inesquecíveis, porque entendem o retorno de imagem e o ambiente de festa que eles proporcionam à população.

Estamos empenhados na realização de eventos à altura das expectativas dos torcedores, que são quem realmente merece essa festa. E estamos confiantes de que brasileiros têm a capacidade e o desejo de organizar uma das Copas mais incríveis de todos os tempos.

JÉRÔME VALCKE, 53, é secretário-geral da Fifa, organizadora da Copa do Mundo de futebol. Jornal FOLHA DE SÃO PAULO, Fevereiro de 2014.

“Sancti Sebastiani Fluminis Ianuarii” (PASQUALE CIPRO NETO)

FIQUEI emocionado ao ouvir, no sábado passado, o papa Francisco a chamar, em latim, os novos cardeais. A liturgia comandada por Sua Santidade não restringiu o latim aos nomes dos cardeais. Os nomes das cidades em que eles atuam também foram ditos em latim, por isso a cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, da qual Dom Orani João Tempesta era arcebispo, passou a "Sancti Sebastiani Fluminis Ianuarii".

Onde foi que ouvi isso? Numa TV aberta, com a fala da jornalista sobreposta à do papa. Para certificar-me do que disse Francisco, mais tarde entrei no site da emissora (para ouvir mais uma vez a matéria), no site do Vaticano e no Google italiano. O que adorei mesmo foi ouvir "Fluminis Ianuarii". Logo me pus a pensar nos telespectadores. Quantos terão percebido isso e ido atrás da forma, do sentido dessa expressão? Quantos terão feito a conexão entre o nome latino da ex-capital do Brasil e o seu nome em português?

Não me pergunte se o latim deveria voltar à escola. Talvez isso fosse o ideal, mas o real é que não temos como pôr isso em prática. Acho que, para começar, bastaria ao professor, sempre que possível e necessário, relacionar o português com o latim (com o grego, o tupi etc.). Isso decerto não faria mal a ninguém e, sem dúvida, abriria portas e portas. No caso em tela, o mínimo que se poderia fazer é lembrar que "fluminis" é da mesma raiz de "fluvial", "fluir", "fluido", "fluído", "fluência", "fluxo", "fluidez" etc., etc., etc.

Se o caro leitor incluiu no "etc., etc., etc." a palavra "fluminense", acertou. A razão pela qual o natural do Estado do Rio de Janeiro é "fluminense" é a mesma de o nome latino da cidade maravilhosa incluir a palavra "Fluminis"... Afinal, quem é

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do Rio de Janeiro é de um rio (na verdade, um rio que não é rio, mas foi essa a primeira impressão que se teve da Baía de Guanabara há mais de 400 anos...). E quem é de um rio é de um flúmen ou de um flume, palavras que -pode procurar num bom dicionário- são sinônimos de "rio".

Qual é o sentido essencial da família de palavras que acabei de citar? É a ideia de "escorrer", o que ocorre com tudo que flui, como as águas de um rio ou as palavras que saem da boca de quem tem fluência. Antes que alguém me pergunte, "rio" também é palavra latina, mas de outra raiz, a mesma de "rival", mas essa história fica para outro dia. Nossa escola vai mal, obrigado, e isso não é nenhuma novidade. Uma das tantas razões disso é o ensino mecanizado, que não leva o aluno a refletir, a estabelecer nexos. E um dos tantos nexos que se podem estabelecer é justamente o que há entre as palavras, que muitas vezes formam um verdadeiro dominó. Já vi,, mais de uma vez, num dos tubos que ficam à mostra nas garagens subterrâneas, a seguinte inscrição: "Águas fluviais". Deus meu! Passa um rio embaixo do edifício!

A água fluvial é de rio; a água pluvial é de chuva. Não é por acaso que, quando se fala do índice de chuva, ouve-se "índice pluviométrico". O adjetivo "pluviométrico", por sinal, resulta de um processo de formação de palavras chamado "hibridismo" (junção de elementos de línguas diferentes). "Pluvio-" vem do latim; "-metro", do grego. A palavra totalmente grega correspondente" é "hietométrico". Que tal? Já pensou nisso num telejornal? Aliás, a palavra "telejornal" é outro exemplo de hibridismo. Por quê? Descubra você mesmo, caro leitor. Mãos à obra. É isso.

PASQUALE CIPRO NETO é Professor de português desde 1975 e também colunista semanal desta publicação. É o idealizador e

apresentador do programa Nossa Língua Portuguesa, transmitido pela Rádio Cultura (São Paulo) AM e pela TV Cultura, e do programa Letra e Música, transmitido pela Rádio Cultura AM. E-mail: [email protected]. Jornal FOLHA DE SÃO PAULO, Fevereiro de 2014.

Fim à pena de morte (PAULO TEIXEIRA)

A DITADURA que sobreveio ao golpe de 1964 produziu 426 mortos e desaparecidos. A maioria das mortes "oficiais" foi justificada por um artifício do regime militar: uma medida administrativa designada auto de resistência, ou resistência seguida de morte. Era o salvo-conduto para que policiais matassem opositores: o simples registro de um auto de resistência relegava a investigação às gavetas. Cinquenta anos depois, o ato administrativo continua intocado e é considerado legítimo por autoridades policiais e judiciárias. Hoje, na mira da arma policial está, em maioria, uma população civil jovem, negra e sem antecedentes criminais.

O auto de resistência é um entulho da ditadura cuja motivação, antes política, passou a ter viés social. Em abril de 2008, ao justificar o assassinato de nove pessoas pela Polícia Militar na favela de Vila Cruzeiro (Rio), o coronel Marcus Jardim assim expressou a filosofia que norteia esses assassinatos: "A PM é o melhor inseticida social". A ideia que legitima a ação de maus policiais é a de que pobreza, cor da pele e criminalidade são sinônimos. A sociedade incorporou esses preconceitos -ou os preconceitos da sociedade contaminaram as polícias?

O relatório "Segurança: Tráfico e Milícia no Rio de Janeiro" examinou 12.560 autos de resistência na década de 1990 e concluiu: todas as mortes em ações policiais ocorreram nas favelas; 65% dos assassinados levaram pelo menos um tiro nas costas ou na cabeça, o que permite concluir que foram sumariamente executados. Os mortos foram sentenciados num julgamento em que o policial é o juiz e o carrasco. Entre janeiro de 2010 e junho de 2012, 2.882 pessoas foram mortas pela polícia no Rio, Mato Grosso do Sul, Santa Catarina e São Paulo, numa média de três por dia --no ano passado, chegou a cinco.

Os Estados Unidos, no mesmo período, tiveram 410 desses casos. Em Nova York, a polícia atirou em 24 pessoas e matou nove em 2011. Naquele ano, o Rio teve 283 mortos por policiais; em São Paulo, 242. Em 2012, eu e os deputados Fabio Trad (PMDB-MS), Protógenes Queiroz (PCdoB-SP) e Miro Teixeira (Pros-RJ) apresentamos à Câmara o projeto de lei nº 4.471. Ele acaba com o auto de resistência, obriga a preservação da cena do crime, a perícia imediata e a coleta de provas e define a abertura de inquérito. Fica vetado o transporte das vítimas em "confronto" com os agentes, que devem chamar socorro especializado.

O Estado de São Paulo, no ano passado, tomou medidas para coibir a violência policial, em resposta à elevação constante das mortes em autos de resistência. Em 2012, o Estado registrou 546 mortos, contra 439 em 2011. Relatório da ONG "Human Right Watch" registrou que, em 2012, 95% das pessoas feridas em confronto e transportadas por policiais morreram no trajeto ou no hospital. No início de 2013, o governo proibiu o registro dos autos de resistência e impediu que os policiais socorressem as suas vítimas. Em um ano, foi registrada queda de 39% dessas mortes no Estado e 47% na capital.

A aprovação do projeto de lei estenderá as medidas tomadas por São Paulo ao país. Será um tiro de morte em um dos mais perversos entulhos que o país carrega da ditadura, a licença para matar.

PAULO TEIXEIRA, 52, advogado, é deputado federal pelo PT de São Paulo. Jornal FOLHA DE SÃO PAULO, Fevereiro de

2014.

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Os 6 principais mitos sobre ser (ou se tornar) milionário (JÚLIA WITTGEN)

Coach que entrevistou mais de 100 milionários para escrever um livro sobre a busca pelo primeiro milhão revela em artigo o que aprendeu com eles

Homem sobe escada: frugalidade e trabalho duro são os atributos nada glamurosos da maior parte das pessoas que se tornaram milionárias

A COACH executiva norte-americana Jaime Tardy fez a proeza de entrevistar mais de 100 milionários e reunir suas ideias em um livro, ―The Eventual Millionaire‖ (ou ―O Milionário Eventual‖, numa tradução livre).

A partir de seu contato e do que aprendeu com essas pessoas, a jovem autora escreveu um artigo, para o site de finanças e empreendedorismo voltado para mulheres Daily Worth, sobre o que ela acredita serem os seis maiores mitos sobre milionários. Os milionários que Jaime conheceu acumularam seu primeiro milhão de inúmeras maneiras diferentes – investindo em negócios próprios, no mercado de ações ou em imóveis, ou simplesmente a partir da poupança mensal paulatina. Segundo Jaime, o mais importante é notar que muitos milionários não são pessoas dotadas de talentos ou inteligência especial ou mesmo nascidas ricas, mas pessoas comuns e que não vivem da maneira estereotipada que se esperaria para um milionário. Veja a seguir os 6 mitos listados por Jaime Tardy, que podem ensinar valiosas lições sobre como se tornar um milionário:

1. Milionários são mais inteligentes

Segundo Jaime, milionários não são necessariamente mais inteligentes ou espertos que a média, mas sim pessoas comuns, que cometem erros, mas que atingiram objetivos extraordinários. Ela diz que alguns podem ter dificuldade de aprendizado, outros já tiveram dívidas atrasadas, e outros ainda fracassaram em algumas empreitadas. A característica que os diferencia da multidão é uma aptidão para estabelecer metas e trabalhar em cima delas, sem deixar que desculpas atrapalhem, diz Jaime. ―Eles continuam em frente, apesar dos inevitáveis obstáculos que tenham que superar‖, completa.

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2. Milionários são mais sortudos

Jaime defende que é o trabalho duro, não unicamente a sorte, que ajuda as pessoas a se tornarem milionárias. Elas podem ser milionárias mesmo que não tenham ganhado na loteria, acertado de primeira em uma ideia de negócio ou investimento, ou mesmo que tenham demorado a encontrar um trabalho que pague bem, diz a autora. Ela conta a história de um dos milionários que ela entrevistou, Bobby Casey, fundador da empresa Global Wealth Protection. Ao fundar sua primeira empresa – um negócio de construção de bicicletas – Casey teve de bater à porta de nada menos que 60 lojas até ser aceito para prestar serviços para a rede Wal-Mart.

Segundo Jaime, na época Casey não tinha dinheiro em caixa e estava endividado. Ao ser aceito, passou a trabalhar 12 horas por dia e dormia pouco. Mas o contrato com o Wal-Mart lhe abriu portas para que ele passasse a fornecer outros produtos para outras redes de varejo, até que ele vendeu sua firma em 2008. ―Eu perguntei a ele o que ele acha que teria acontecido se tivesse parado antes da 60ª loja. A resposta dele? ‗Eu não teria parado nem que eu tivesse tido que ir a 300 lojas‘‖, conta Jaime.

3. Milionários são gastadores

Segundo Jaime, 57% dos milionários que ela entrevistou se descrevem como pessoas frugais. Ela diz que normalmente, milionários não esbanjam em imóveis luxuosos e carrões, como é de se esperar, mas dirigem Hondas e Volvos, gastam seu dinheiro com suas necessidades e algumas coisas que consideram importantes. Ela cita, por exemplo, o conhecido fato de que o megainvestidor e bilionário Warren Buffett ainda mora na casa que ele comprou em 1958 por apenas 31.500 dólares. ―Na maior parte dos casos, milionários chegaram onde estão precisamente porque tiveram excelentes hábitos de poupança e vivem frugalmente. Eles aprendem a fazer escolhas inteligentes e não param só porque atingiram a marca do primeiro milhão‖, escreve Jaime.

4. Milionários nasceram ricos

Jaime cita uma pesquisa da Fidelity Investimentos que mostrou que 86% dos milionários chegaram lá por conta própria, sem terem nascidos em famílias ricas ou herdado fortunas. Todos os milionários que ela mesma entrevistou alcançaram seu primeiro milhão sozinhos, e apenas 26% disseram ter tido conexões com pessoas importantes de antemão. Jaime conta o caso da empresária e palestrante Dani Johnson, autora do livro ―First Steps to Wealth‖ (―Primeiros passos para a riqueza‖, numa tradução livre). Com a venda de remédios para emagrecer, Dani Johnson tornou-se milionária aos 23 anos. Antes disso, ela havia passado por uma infância de abusos sexuais, foi mãe aos 17 anos e se tornou sem-teto aos 21. Dani Johnson partiu realmente do zero, montando seu primeiro negócio no porta-malas de seu carro e usando um telefone público. Como estava em uma situação péssima, Dani decidiu que mesmo que ela conseguisse muito menos do que pessoas teoricamente mais inteligentes e capazes, ainda seria mais do que ela tinha à época em que começou. ―Para Johnson, a chave para o sucesso não foi nascer com dinheiro, mas ser capaz de se dar uma chance‖, diz Jaime.

5. Milionários precisam ser destemidos

É senso comum a ideia de que para enriquecer é preciso ser destemido e assumir grandes riscos. Mas Jaime tenta desmistificá-la, afirmando que 57% dos milionários que ela entrevistou disseram que estavam com medo antes de começar seu próprio negócio – medo do fracasso, de desapontar seus cônjuges e famílias ou de perder tudo. Ela não nega que o sucesso requer algum risco, mas afirma que milionários aprenderam a examinar as oportunidades, analisar riscos e não tomar decisões impensadas. Eles são realistas, fazem pequenos testes para saber se suas ideias vão funcionar e procuram se informar bastante antes de tomar uma decisão de investimento, diz Jaime.

6. Milionários tem contracheques milionários

Muitos milionários chegaram lá por serem empreendedores, terem vendido seu negócio ou mesmo por terem alcançado posições que pagam muito bem dentro de alguma empresa, admite Jaime. Mas segundo ela, essa não é a única forma de enriquecer. A coach conta a história de Andrew Hallam, um professor que ficou milionário antes de se aposentar, levando uma vida frugal, poupando regularmente e investindo em fundos de ações de baixo custo. Jaime diz ainda que outros milionários aumentaram seus rendimentos buscando uma segunda fonte de renda, como um segundo emprego ou rendas alternativas eventuais, ou ainda obtendo aluguéis com um segundo imóvel.

Sobre Jaime Tardy

A coach executiva norte-americana Jaime Tardy tinha, desde muito jovem, o sonho de ser milionária. Embora tenha começado a trabalhar cedo, ao terminar a faculdade, com 24 anos, ela tinha uma dívida de 70 mil dólares e detestava seu emprego, que, entretanto, pagava muito bem. Foi então que ela decidiu que ter qualidade de vida deveria preceder a chegada ao primeiro milhão. Ela se livrou da dívida em 16 meses e pediu demissão, determinada a encontrar um trabalho ainda capaz de lhe render o tão sonhado milhão, porém que também lhe desse prazer. Hoje Jaime se sente mais feliz com seu trabalho de consultoria a empreendedores e ainda está acumulando recursos para chegar ao primeiro milhão. Na

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empreitada, ela decidiu ouvir os milionários para saber como eles viviam e como acumularam seus milhões. A partir de entrevistas com mais de 100 milionários, Jaime escreveu o livro ―The Eventual Millionaire‖ (ou ―O Milionário Eventual‖, numa tradução livre). ―Milionário Eventual‖, para ela, é aquela pessoa que sabe que vai se tornar milionária, eventualmente, mas que se dedica a se tornar milionária do seu próprio jeito. Jaime define como uma pessoa que quer um negócio prazeroso e uma vida prazerosa.

JÚLIA WITTGEN é Jornalista e escreve para esta revista. Revista EXAME, Fevereiro de 2014.

O Brasil deveria descriminalizar a maconha? SIM

O novo status da maconha (ELISALDO CARLINI)

NO SÉCULO 19, medicamentos à base da maconha (Cannabis sativa L) eram disponíveis aos pacientes. Assim dizia o doutor J. R. Reynolds, médico da rainha Vitória da Inglaterra: "Em quase todas as moléstias dolorosas, eu achei a maconha ("indian hemp") a mais útil das drogas". Está escrito em famoso livro da terapêutica americana: "Cannabis é muito valiosa para o alívio da dor, particularmente aquela dependente de distúrbios nervosos..."

E a maconha usada como medicamento naqueles tempos não causava "graves" intoxicações. D. S. Snyder, ao examinar a literatura médica do século 19, diz: "É marcante que muitos relatórios médicos não mencionam qualquer propriedade intoxicante da droga". Raramente existia (se é que houve alguma) indicação de que pacientes --e centenas de milhares devem ter recebido Cannabis na Europa no século 19 - estivessem "chapados" ou mudassem sua atitude em relação ao trabalho, seus semelhantes, ou sua pátria.

Mas, na metade do século 20, a situação muda totalmente. "A maconha é uma droga totalmente viciante, merecendo o ódio dos povos civilizados", declarou o governo egípcio, em 1944. Na convenção de 1961, a ONU coloca a maconha, junto com a heroína, na classe das drogas com "propriedades particularmente perigosas". E a maconha passou a ser considerada "erva do diabo", satanizada que foi. Não importa discutir quais as razões, certamente pouco científicas, que levaram a tão esdrúxula situação.

Mas, a partir da segunda metade do século 20, o quadro começa a modificar-se, e a maconha renasce como poderoso medicamento para certas patologias médicas. A identificação dos princípios químicos ativos da maconha, a descrição segundo a qual o cérebro humano tem "receptores" para esses princípios, a surpreendente descoberta de que o nosso cérebro sintetiza uma substância capaz de atuar naqueles receptores (como se tivéssemos uma maconha produzida pelo nosso próprio cérebro, a anandamida) e a descrição de um sistema de neurotransmissão nervosa chamado de sistema canabinoide endógeno trouxeram um novo status científico para a maconha.

E mais: muitos trabalhos científicos clínicos foram feitos no mundo demonstrando claramente que a maconha tem boas propriedades terapêuticas (dores neuro e miopáticas; esclerose múltipla; náusea e vômito resultantes da quimioterapia do câncer; e mais recentemente epilepsia e dores terminais do câncer). E, ainda, recentes pesquisas epidemiológicas, seguindo milhares de usuários crônicos e até pesados da maconha, feitas em importantes universidades dos Estados Unidos e do Reino Unido, cabalmente mostram que a maconha não afeta o desempenho cognitivo, não produz ganho de peso e não está associada a efeitos adversos da função pulmonar. Como consequência final desses conhecimentos novos, Canadá, Estados Unidos, Reino Unido e Holanda já têm medicamentos fabricados à base de maconha ou seus derivados. O medicamento fabricado no Reino Unido já foi aprovado pelos Ministérios da Saúde de 13 outros países (o último a aprovar foi a França) e é utilizado clinicamente, sob receitas, em mais de duas dezenas de outros países.

E todos esses fatos estão à disposição do leitor em cerca de um milhar de trabalhos científicos, sendo apoiados pelo "American College of Physician", "American Medical Association", Ministério da Saúde de Israel, Espanha, Itália etc. (para maiores detalhes, ver o trabalho de revisão "Cannabis sativa L (maconha): Medicamento que renasce?"). Até poderia ser dito que, para o opositor brasileiro do uso médico da maconha, à semelhança de uma pessoa ao ser confrontada com um documento que contradiz frontalmente sua superada convicção, declara: não li e não gostei!

ELISALDO LUIZ DE ARAÚJO CARLINI, 83, é professor titular de psicofarmacologia na Universidade Federal de São Paulo e

pesquisador emérito da Secretaria Nacional de Políticas sobre Droga do Ministério da Justiça. Jornal FOLHA DE SÃO PAULO, Fevereiro de 2014.

O Brasil deveria descriminalizar a maconha? NÃO

Cara ou coroa? (ANA CECÍLIA ROSELLI MARQUES)

MUITO se tem falado por aí sobre o uso terapêutico da maconha e sua possível legalização no Brasil, após as mudanças de legislação ocorridas no vizinho Uruguai. Mas pouco se tem discutido, profundamente, a questão. O fato que parece estar esquecido é que a maconha é uma droga psicotrópica que causa dependência, uma grave doença do cérebro, e que cursa com muitas complicações.

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É verdade que algumas pesquisas vêm sendo feitas, inclusive no Brasil, para entender a ação dos diferentes componentes da Cannabis sp e sua utilização como medicamento. Mas também é verdade que os resultados ainda não são replicáveis (aplicáveis). Isto é, para o controle da dor ou do apetite, por exemplo, substâncias já testadas devem ser aplicadas. Experiências com a maconha sem consentimento assistido (informações sobre todos os benefícios e malefícios) são a solução?

Estudos mostram que, além da dependência, o uso crônico produz bronquite crônica, insuficiência respiratória, aumento do risco de doenças cardiovasculares, câncer no sistema respiratório, diminuição da memória, ansiedade e depressão, episódios psicóticos e de pânico e, também, um comprometimento do rendimento acadêmico e/ou profissional. Por que optar por um caminho que oferece tantos riscos? A Associação Brasileira de Estudos do Álcool e outras Drogas, a Abead, pesquisou sobre algumas experiências de descriminalização no mundo e elaborou uma síntese de evidências sobre os resultados.

Foram eles: o aumento do consumo, a redução da idade de experimentação, a diminuição do preço de comercialização e, portanto, um aumento da disponibilidade e do acesso à droga e, pior, um mercado para turistas que pode trazer outros riscos sociais e de saúde. Por esses e outros motivos, é preciso debater muito mais antes de se alterar a lei ou mesmo propor medidas mais liberalizantes. No Brasil, a percepção de risco relacionado à substância é muito baixa: a maconha é vista como uma droga leve, natural e que não faz tão mal, a despeito das respeitadas pesquisas já há muito publicadas que mostram um aumento significativo da taxa de doenças mentais entre os usuários quando comparados à população de não usuários da substância. Onde fica o direito humano, principalmente o do adolescente, à vida saudável, à saúde mental?

Então, vale ainda mais uma pergunta. Se, em países desenvolvidos, a legalização trouxe consequências desastrosas, por que no Brasil, que enfrenta tantas outras dificuldades, como a falta de tratamento especializado, a falta de prevenção, uma política de drogas que precisa ser revista, tal impacto seria diferente? Para além dos usuários e defensores de direitos individuais de usar drogas, e não daqueles que lutam pelos direitos coletivos, é preciso entender que existem "clássicos" interesses econômicos em um novo negócio. Foi assim com o cigarro, tem sido assim com a bebida alcoólica, e o método utilizado para conseguir tal empreitada tão perversa é o uso da ambivalência.

Vale a pena lembrar que a maconha não é um produto qualquer. É uma droga psicotrópica, mais uma entre tantas cujo consumo é preciso controlar, de impacto nas células humanas, na família e na sociedade. Não é possível fechar os olhos diante do jogo mercantilista. É preciso olhar firmemente para a situação da população brasileira, e não submetê-la a mais um fenômeno que não possui recursos para ser manejado. De que lado cairá a moeda?

ANA CECÍLIA PETTA ROSELLI MARQUES, 59, é psiquiatra e presidente da Abead (Associação Brasileira de Estudos do Álcool e outras Drogas). Jornal FOLHA DE SÃO PAULO, Fevereiro de 2014.