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PROFESSOR: JOÃO PAULO GONÇALVES DISCIPLINA: LITERATURA BRASILEIRA III: SIMBOLISMO A CONTEMPORANEIDADE. SIMBOLISMO Álvaro Cardoso Gomes Professor-associado de Literatura Portuguesa na Universidade de São Paulo 1 ORIGENS MARCO INICIAL O Simbolismo surge no fim do século XIX, mais precisamente em 1857, quando o poeta Charles Baudelaire publica sua obra As flores do mal. Essa obra provocou o maior escândalo na época, porque não só mexeu com temas-tabus em poesia, como também procurou criar um novo tipo de poesia. Devido ao escândalo, Baudelaire chegou, inclusive, a ser processado por obscenidade. Por que um título tão estranho para uma obra poética? Num dos prefácios desse livro, Baudelaire assim o explica: Poetas ilustres tinham dividido há muito tempo as províncias floridas do domínio poético. Pareceu-me prazeroso, e tanto mais agradável, porque a tarefa era mais difícil, extrair a beleza do mal. (Les fleurs du mal. Paris, Garnier, 1961. p. 248.) Com base nessa poesia, Baudelaire compõe um livro cheio de imagens alucinantes. Tendo como pano de fundo a Paris do século XIX, o poeta fala do tédio que os tempos modernos lhe inspiram, da solidão existencial do homem, de amores fracassados e, sobretudo, de coisas sórdidas, repugnantes, como acontece, por exemplo, no poema "Uma carcaça": As moscas zumbiam sob este ventre pútrido, De onde saíam negros batalhões De larvas, que escorriam como um líquido espesso Ao longo dos vivos rasgões. ("Une charogne", ibidem, p. 34) Por que essa atração pelo mal, por aquilo que convencionalmente não seria objeto de interesse para um poeta? Ainda: como extrair beleza do mal? Na realidade, Baudelaire estava criando uma nova concepção de poesia. No passado, durante as eras clássicas e românticas, a arte era ligada, de modo geral, ao bem, e a beleza era entendida como algo que fosse harmonioso, que provocasse sensações agradáveis nos leitores. Baudelaire evidentemente se insurge contra esse conceito de poesia e, por conseqüência, de belo; daí sua intenção de extrair beleza também do que é sórdido, do que é feio. Com isso, o poeta francês pretendia causar um choque no leitor passivo, acostumado com o convencional: Leitor pacífico e bucólico, Sóbrio e ingênuo homem de bem, Joga fora este livro saturniano, Orgíaco e melancólico. Se não aprendeste tua retórica Com Satã, o astucioso deão, Joga-o! tu não compreenderás nada, Ou acreditarás que sou histérico. Mas se, sem se deixar encantar, Teu olho souber mergulhar nos abismos, Leia-me, para aprender a me amar; Alma curiosa que sofres E vais procurando teu paraíso, Lastima-me!... senão, te maldigo! ("Epígrafe para um livro condenado", ibidem, p. 177.) Mas não é só com o sórdido, o feio, o repugnante, que Baudelaire se propõe a modificar a atitude do leitor diante do mundo. A linguagem também é trabalhada, para que se torne mais sugestiva, para que evite o derramamento emotivo. Baudelaire procurará fazer com que as palavras tenham um valor essencialmente musical e que sejam capazes de evocar as mais diversas sensações.

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PROFESSOR: JOÃO PAULO GONÇALVES DISCIPLINA: LITERATURA BRASILEIRA III: SIMBOLISMO A CONTEMPORANEIDADE.

SIMBOLISMO Álvaro Cardoso Gomes

Professor-associado de Literatura Portuguesa na Universidade de São Paulo

1 ORIGENS

MARCO INICIAL O Simbolismo surge no fim do século XIX, mais precisamente em 1857, quando o poeta

Charles Baudelaire publica sua obra As flores do mal. Essa obra provocou o maior escândalo na época, porque não só mexeu com temas-tabus em poesia, como também procurou criar um novo tipo de poesia. Devido ao escândalo, Baudelaire chegou, inclusive, a ser processado por obscenidade. Por que um título tão estranho para uma obra poética? Num dos prefácios desse livro, Baudelaire assim o explica: Poetas ilustres tinham dividido há muito tempo as províncias floridas do domínio poético. Pareceu-me prazeroso, e tanto mais agradável, porque a tarefa era mais difícil, extrair a beleza do mal. (Les fleurs du mal. Paris, Garnier, 1961. p. 248.) Com base nessa poesia, Baudelaire compõe um livro cheio de imagens alucinantes. Tendo como pano de fundo a Paris do século XIX, o poeta fala do tédio que os tempos modernos lhe inspiram, da solidão existencial do homem, de amores fracassados e, sobretudo, de coisas sórdidas, repugnantes, como acontece, por exemplo, no poema "Uma carcaça": As moscas zumbiam sob este ventre pútrido, De onde saíam negros batalhões De larvas, que escorriam como um líquido espesso Ao longo dos vivos rasgões. ("Une charogne", ibidem, p. 34)

Por que essa atração pelo mal, por aquilo que convencionalmente não seria objeto de interesse para um poeta? Ainda: como extrair beleza do mal? Na realidade, Baudelaire estava criando uma nova concepção de poesia. No passado, durante as eras clássicas e românticas, a arte era ligada, de modo geral, ao bem, e a beleza era entendida como algo que fosse harmonioso, que provocasse sensações agradáveis nos leitores. Baudelaire evidentemente se insurge contra esse conceito de poesia e, por conseqüência, de belo; daí sua intenção de extrair beleza também do que é sórdido, do que é feio. Com isso, o poeta francês pretendia causar um choque no leitor passivo, acostumado com o convencional: Leitor pacífico e bucólico, Sóbrio e ingênuo homem de bem, Joga fora este livro saturniano, Orgíaco e melancólico. Se não aprendeste tua retórica Com Satã, o astucioso deão, Joga-o! tu não compreenderás nada, Ou acreditarás que sou histérico. Mas se, sem se deixar encantar, Teu olho souber mergulhar nos abismos, Leia-me, para aprender a me amar; Alma curiosa que sofres E vais procurando teu paraíso, Lastima-me!... senão, te maldigo! ("Epígrafe para um livro condenado", ibidem, p. 177.)

Mas não é só com o sórdido, o feio, o repugnante, que Baudelaire se propõe a modificar a atitude do leitor diante do mundo. A linguagem também é trabalhada, para que se torne mais sugestiva, para que evite o derramamento emotivo. Baudelaire procurará fazer com que as palavras tenham um valor essencialmente musical e que sejam capazes de evocar as mais diversas sensações.

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Esse caráter revolucionário de As flores do mal, na realidade, reflete a tentativa de Baudelaire de registrar ao nível poético um descontentamento contra um modo de pensar o mundo e contra um modo de conceber a poesia e a arte em geral. Baudelaire será, portanto, o arauto desse desconforto com um estado de coisas e, com isso, dará início ao Simbolismo. Crise do fim do século

Tanto a obra de Baudelaire quanto o Simbolismo surgem dentro da crise social, existencial e cultural do fim do século XIX. Para que a entendamos, contudo, temos de regressar aos meados do século XIX, quando houve, economicamente, grande desenvolvimento industrial e, culturalmente, o homem buscou explicar os fenômenos através de uma postura científica.

A Revolução Industrial inicia-se nos fins do século XVIII, mas só atinge seu auge no século seguinte, com a produção em massa de mercadorias e com a crescente automatização das indústrias. As grandes cidades começam a crescer cada vez mais, e os camponeses abandonam o campo, em busca de melhores salários nos centros urbanos. A era moderna parece nascer aí: crescem a produção e o consumo dos bens manufaturados, e o homem cria a ilusão de que o mundo se tornou menor, graças à velocidade dos meios de locomoção. O resultado dessa obsessão com o progresso é a intensa euforia, somada à crença na onipotência do homem, que se deixa guiar quase que exclusivamente pela razão.

O intenso desenvolvimento industrial, por sua vez, está aliado ao científico. Aliás, jamais poderíamos pensar em Revolução Industrial, se não houvesse nesse período um desenvolvimento espetacular das ciências, pois elas serão responsáveis pelos inventos que terão imediata aplicação nas indústrias. Mas a relação entre a Revolução Industrial e as ciências não se restringe tão só à invenção por parte destas de um melhor maquinado para o desenvolvimento das indústrias. O progresso industrial, que trouxe inegáveis benefícios à humanidade, tem seu paralelo numa concepção científica e materialista das coisas, que procurava explicar o sentido do universo quase que exclusivamente através da razão.

Durante a vigência da Revolução Industrial surge, portanto, uma geração de intelectuais que despreza a metafísica, em nome do conhecimento experimental da realidade. O mais importante deles foi Auguste Comte, criador do Positivismo, teoria científica, baseada na sociologia, que defendia a aproximação positiva, objetiva da realidade. Seguindo os postulados de Comte, Taine, com o Determinismo, tenta explicar o universo à luz de determinantes fixos (a raça, o meio e o momento histórico). Cientistas como Darwin e Lamarck, por sua vez, buscam conhecer o homem a partir das teorias evolucionistas. Como se verifica, tanto Comte quanto Taine, Darwin e Lamarck se apoiam num conhecimento eminentemente racionalista do real.

A euforia provocada pela crença no progresso, pelas grandes descobertas científicas, paradoxalmente acabaria por levar a séria crise. A Revolução Industrial, ao criar a fantasia do paraíso material do consumismo, da produção em massa de objetos, em determinado instante, mostra o outro lado da moeda. Os centros urbanos tornam-se mais agitados, mais ricos, contudo, expõem, ao mesmo tempo, a miséria dos aglomerados humanos dos bairros de lata.

A automatização, que leva à produção de manufaturados em série, transforma o operário numa engrenagem da máquina. A obsessão pelo consumo, pela produção desenfreada de novidades, leva ao modismo, ao princípio de que tudo é transitório, inclusive os critérios de gosto e de arte. Os objetos artísticos, como as mercadorias, passam a ser consumidos vorazmente e, por causa disso, têm curta duração. Em consequência, o homem passa a ter a sensação de que vive num mundo fragmentário e de valores efêmeros. Quanto à geração da "Razão Triunfante", tem suas certezas abaladas por novas concepções de mundo, que desprezam os métodos de abordagem do real, fundados em pressupostos experimentalistas. Arthur Schopenhauer, em sua obra O mundo como vontade e representação (1819), concebe a realidade como mera "representação", ilusão de nossos sentidos, portanto inacessível à abordagem positiva e experimental. O ato de conhecer, ao contrário do que acreditavam os positivistas, é algo impossível, limitado e por isso mesmo acarretará sofrimento ao homem: À medida que o conhecimento se torna mais claro e que a consciência aumenta, o sofrimento cresce, chegando no homem ao grau supremo; e é neste ponto tanto mais violento quanto melhor é o homem dotado de lucidez do conhecimento, quanto mais excelsa a sua inteligência: aquele em que está o gênio, é sempre aquele que maiormente sofre. (3. ed. São Paulo, Brasil Ed., 1963. p. 77.).

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Isto se dá pelo fato de a vontade (e não a razão, como queriam os positivistas) impulsionar cegamente o homem à conquista do mundo. Mas como a realidade é mera ilusão, resulta daí que nada há que conquistar: Querer e aspirar, eis toda sua essência (do homem), estritamente igual a uma sede que nada pode mitigar. Mas a base de cada querer é uma falta, é uma indigência, é a dor. (Ibidem, p. 80).

Concebendo desse modo a realidade e o ser, Schopenhauer rejeita a crença eufórica no progresso, nos procedimentos racionais e sobrevaloriza a passividade, o abandono de qualquer ambição. O pessimismo schopenhauriano fará escola dentro do Simbolismo, principalmente no que diz respeito ao culto da dor e da atitude passiva diante da vida. Discípulo de Schopenhauer, Nicolau von Hartmann, em sua Filosofia do inconsciente (1869), cria a idéia do Inconsciente, entidade desconhecida que existe por detrás de tudo e que é totalmente inacessível. Espécie de divindade oculta e indiferente ao destino do ser, o Inconsciente, segundo Hartmann, daria explicação aos fenômenos, mas essa explicação não chegaria ao conhecimento do homem. Desse modo, o filósofo alemão contraria frontalmente a um Taine e a seus princípios deterministas. O sentimento de impotência diante do enigma do universo, de acordo com as teorias de Hartmann, será outro dos tópicos fundamentais da poesia do fim do século XIX. Um poeta como o português Antero de Quental, que começou sua carreira literária dentro do Realismo, assim expressará seu pessimismo frente à incógnita em que se transformou o universo, regido pela força desconhecida do "inconsciente": Junto do mar, que erguia gravemente A trágica voz rouca, enquanto o vento Passava como o vôo dum pensamento Que busca e hesita, inquieto e intermitente, Junto do mar sentei-me tristemente, Olhando o céu pesado e nevoento, E interroguei, cismando, esse lamento Que saía das cousas, vagamente... Que inquieto desejo vos tortura, Seres elementares, força obscura? Em volta de que idéia gravitais?... Mas na imensa extensão, onde se esconde O inconsciente imortal, só me responde Um bramido, um queixume, e nada mais... (Oceano nox. Apud MOISÉS, Massaud. A literatura portuguesa através dos textos. São Paulo, Cultrix, s.d. p. 320.). Espírito da decadência

Os malefícios advindos da Revolução Industrial (o inchamento das grandes cidades,os bairros de lata, a obsessão com as modas), somados à dúvida quanto à eficácia dos métodos científicos para compreender o real, instauraram de vez a crise que estava latente no ar. O homem que acreditava ter acesso aos segredos do universo, via razão e via progresso, vê de repente que tudo não passa de ilusão, que o universo é regido por forças incontroláveis que ele desconhece completamente. Esse sentimento leva-o à descrença, ao desalento e faz com que adote uma postura de desprezo em relação a tudo que lembra o mundo burguês da luta, da operosidade, da conquista.

Refletindo o pessimismo do período, surge nessa época um tipo de homem que volta às costas à sociedade materialista e que procura cultivar dentro de si as sensações mais refinadas. Esse homem, conhecido como decadente, fechasse em sua torre de marfim e só na orgulhosa solidão é que parece encontrar conforto para o sofrimento proveniente do desconforto com o mundo grosseiro e hostil. O simbolista Verlaine, num poema como "Langor", expõe um

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sentimento de decadência, um sentimento de prazer mórbido, doentio, como se desejasse que os valores da civilização ocidental caíssem por terra: Eu sou o Império no fim da decadência, Que olha passar os grandes Bárbaros brancos Compondo acrósticos indolentes Num estilo de ouro onde o langor do sol dança. A alma solitária sofre no coração de um denso tédio. Além se diz que é por causa de grandes combates sangrentos Oh não ser capaz disso, sendo tão frágil, de votos tão lentos, Oh não querer florir um pouco esta existência! Oh não querer, oh não poder morrer um pouco! Ah! tudo foi bebido! Bathylle, terminaste de rir? Ah! tudo foi bebido, tudo foi comido! Nada mais a dizer! Somente um poema um pouco simplório que se lança ao fogo, Somente um escravo um pouco libertino que vos negligencia, Somente um tédio por não se saber o que vos aflige! (O Euvres poétiques completes. Paris, Gallimard, 1965. p. 370-1.)

Dessa maneira, é possível dizer que o homem ativo, amante do progresso, dos meados do século XIX, cede lugar ao homem de sentidos refinados, um aristocrata, que cultiva prazeres extravagantes e que manifesta o maior desprezo pela vida social.

O melhor exemplo desse anti-herói do fim do século é Des Esseintes, a personagem principal de Às avessas (1884), estranho romance de Joris-Karl Huysmans. Essa obra, praticamente sem enredo, trata de um nobre que resolve abandonar a sociedade burguesa materialista e se refugia numa propriedade no campo. Lá, tranca-se, isola-se e passa o tempo cultuando as coisas que mais ama: a leitora de velhos livros do tempo da decadência latina, os poentas malditos modernos, as sensações extravagantes, como o odor de especiarias e perfumes, a visão de plantas exóticas, etc. Sua casa torna-se, desse modo, o espaço reservado para o gozo de tudo que é artificial, tudo que é contrário à opinião comum: Seu desprezo pela humanidade aumentou; compreendeu enfim que o mundo se compõe, na maior parte, de sacripantas e imbecis. Decididamente, não tinha nenhuma esperança de descobrir em outrem as mesmas aspirações e os mesmos rancores, nenhuma esperança de acasalar-se com uma inteligência que se comprazesse, como a sua, numa estudiosa decrepitude; nenhuma esperança de associar-se a um espírito penetrante e torneado como o seu, de um escritor ou de um letrado. [.-] A essa altura, já sonhava com uma refinada tebaida, num deserto confortável, com uma arcada imóvel e tépida onde ele se refugiaria, longe do incessante dilúvio da parvoíce humana. (São Paulo, Cia. das Letras, 1987. p. 36-7.).

O romance de Huysmans fez escola, de tal maneira que Des Esseintes transformouse no protótipo do homem do fim do século, aquele que recusa a luta e a ação para se dedicar a uma vida artificial, produto do delírio ou de uma imaginação exaltada.

Influências românticas

Esse homem típico do fim do século, o decadente, o dandy, na realidade, tinha sido inventado durante a vigência do Romantismo, em sua fase mais extremada. Como se sabe, a estética romântica teve um momento em que os escritores procuraram levar às últimas consequências o culto da noite, dos sentimentos, dos prazeres doentios. É o que se convencionou chamar de "mal do século". Entre o poeta transtornado do "mal do século", que ama a vida boêmia, que procura a morte para aliviar a dor de viver, e o decadente do Simbolismo há evidente parentesco. Mas há também diferenças flagrantes. O primeiro é todo emotivo e, por vezes, procura na mulher, no suicídio, um lenitivo para a existência. Já o segundo é frio, racional e mesmo cínico: despreza o amor e vive artificialmente.

As semelhanças que encontramos nos anti-heróis dos dois movimentos literários talvez expliquem as relações mais profundas entre Romantismo e Simbolismo. De fato, a estética simbolista tem íntima relação com a romântica, ou ainda a estética simbolista tem raízes dentro do movimento romântico, a começar que aquele movimento recupera o idealismo, o espiritualismo deste. Não é à toa que muitos simbolistas passam a criticar o Realismo, o Naturalismo e o Parnasianismo, porque esses movimentos negavam o sentido de mistério, muito caro aos românticos e aos simbolistas. Jean Moeras, um poeta grego radicado na França, numa entrevista dada a Geles Bret, assim se manifesta a respeito do assunto:

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Pode-se notar com alguma razão que os poetas que nos antecederam imediatamente, os parnasianos [...], num certo sentido, padeceram da falta de símbolo: consideraram as ideias, os sentimentos, a História, o mítico, o fato particular, como existente em si poeticamente. (Entrevista a Geles Bret, lixo de Paris, 1891. Apud Les premières armes du Symbolisme. Texte presente et annoté par Michael Pakenham. University of Exeter, 1973. p. 68.).

Mallarmé também criticará nos parnasianos a mania de falar diretamente das coisas, de desprezar o senso do mistério: Os jovens estão mais próximos do ideal poético do que os parnasianos, que ainda tratam seus temas à maneira dos velhos filósofos e dos velhos retóricos, apresentando os objetos diretamente. (OEuvres completes. Paris, Gallimard, 1945. p.868.) .

Fundamentalmente, portanto, o Simbolismo tenta recuperar o idealismo do movimento romântico. Durante o Romantismo, segundo Ana Balakian, autora de O move-mento simbolista, "a poesia se apropriou do terreno do místico como uma espécie de sucedâneo da religião: os românticos buscavam analogias ou imitações do infinito". Esse idealismo romântico, por sua vez, apoiava-se nos princípios esotéricos de Emmanuel Swedenborg. Esse escritor sueco, que viveu durante o século XVIII (1688-1772), escreveu um livro que acabaria por se tornar a Bíblia tanto dos ·românticos quanto dos simbolistas. De coelo et de inferno (Sobre o céu e o inferno) (1758) é uma obra de caráter místico que tenta explicar as complexas relações entre o mundo celeste e os terrenos. A essas relações Swedenborg denominava "correspondências". Apoiando-se no princípio das correspondências, o romântico sonhava em pautar a vida terrestre pela celeste, a vida material pela espiritual ou ainda tentava anular uma em detrimento da outra, ao espiritualizar o concreto, o natural, para alcançar a plenitude junto a Deus. Negando o cientificismo e procurando recuperar a essência do Cristianismo, o romântico privilegiou o sujeito, o espírito, enquanto recusava o mundo material. O simbolista, em princípio, seguiu por esse mesmo caminho — em conseqüência disso, Swedenborg será novamente retomado no fim do século XIX.

Também é preciso assinalar que o Simbolismo irá recuperar e intensificar a idéia romântica de que a essência misteriosa das coisas só é possível de ser captada pela palavra educadora, pela palavra que supera a limitação da linguagem comumente utilizada pelos homens. O mesmo se pode dizer do senso do mistério, tão caro aos simbolistas. O romântico Novalis dizia: A Noite tornou-se o portentoso âmago das revelações — para onde os deuses retornaram e adormecem. (Hinos à noite. Trad. bras. São Paulo, Esfinge Ed., 1987.).

Ao dizer isso, o poeta alemão acreditava que a prática poética tinha algo a ver com a prática mística, no sentido de que ajudaria a traduzir o desconhecido, o misterioso, o invisível. Mas o poeta romântico que exercerá influência fundamental nos simbolistas será sem dúvida nenhuma Edgar Allan Poe. Ao conceber complexas teorias sobre o verso, através da manipulação dos efeitos musicais e da criação de sugestivas atmosferas poéticas, capazes de conduzir ao mundo do mistério, o poeta norte-americano revolucionou a poesia romântica. Contudo, o que mais interessou os simbolistas na poética de Poe foram a busca da poesia pura, o culto da música e da beleza e a crença na construção do poema, no controle quase que absoluto dos meios de expressão. Essas características causaram tanto fascínio sobre Baudelaire e Mallarmé que ambos procuraram por todos os meios divulgá-lo na França. O primeiro traduziu-lhe a obra; o segundo dedicou-lhe um soneto "O túmulo de Edgar Allan Poe".

Mas por que tais características exercerão tanta influencia nos dois principais poetas do Simbolismo francês? Em primeiro lugar, vale a pena discutir a questão da poesia pura. Num tempo voltado para o progresso, para o utilitarismo, Poe difundirá a idéia de que a poesia tem um fim em si mesma, e que ela não visa a nenhum fim moral, como vem expresso no seguinte fragmento: Tem-se suposto tácita e manifestamente, direta e indireta-mente, que o objetivo último de toda a poesia é a Verdade. Todo poema, diz-se, deveria inculcar uma moral, e por esta moral é que deve ser julgado o mérito poético do trabalho. [...] Metemos em nossas cabeças que escrever simplesmente um poema pelo poema e confessar que tal foi o nosso desígnio seria confessar-nos radicalmente carentes de verdadeira dignidade e força poéticas: mas o simples fato é que,

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se nos permitíssemos olhar para dentro de nossas próprias almas, descobriríamos imediatamente ali que, sob o sol, nem existe nem pode existir qualquer trabalho mais inteiramente dignificado, mais supremamente nobre do que este mesmo poema, este poema de per se, este poema que é um poema e nada mais, este poema escrito por ele mesmo. (O princípio poético. In: Poemas e ensaios. 2. ed. Rio de Janeiro, Globo, 1987. p. 87.). Se a poesia, segundo Poe, não visa traduzir valor moral algum, qual seria mais propriamente seu fim? Segundo ele, seria atingir a suprema beleza: É na música, talvez, que mais de perto a alma atinge o grande fim pelo qual luta, quando inspirada pelo Sentimento Poético — a criação da suprema beleza. (Ibidem, p. 89.)

A conquista da beleza, por sua vez, só se dá através da música, ou seja, através da poesia liberta de tudo que seja matéria narrativa, de tudo que seja secundário. Essa atração pela arte musical será então retomada pelos simbolistas, que, como veremos adiante, buscarão fazer com que a linguagem poética se aproxime da linguagem vaga e imprecisa da música. Por fim, o último aspecto da teoria poética de Poe que interessará aos simbolistas dirá respeito à paradoxal intenção do poeta norte-americano de construir os poemas pelo controle da emoção. Paradoxal porque, como se sabe, os românticos defendiam a arte espontânea, natural, que jorrasse do coração, a ponto de Lamartine, um dos expoentes máximos do Romantismo francês, dizer que os melhores poemas eram "puros soluços". Poe acreditava firmemente que se deviam evitar as paixões do coração: A Aspiração Humana pela beleza suprema, a manifestação do Princípio é sempre encontrada em uma exalante emoção da alma, completamente Independente daquela paixão que é a embriaguez do Coração, ou daquela verdade que é a satisfação da Razão. Porque a respeito da paixão, ai. sua tendência é antes para degradar que para elevar a Alma. (Ibidem, p. 105.) .

O desprezo da paixão faz com que Poe leve às últimas conseqüências o sistemático planejamento do poema. No ensaio "Filosofia da composição", por exemplo, ele nos mostra rigorosamente como concebeu seu famoso poema "O corvo", desde a escolha do tema, do metro, do refrão, etc. Talvez por isso é que Poe tenha causado tanta admiração entre os simbolistas. Seu romantismo sui generis, além de conter certos característicos fundamentais do Simbolismo — como a sugestão do mistério, o culto da musicalidade e da poesia pura —, além disso, evitou o exagero sentimental, o passionalismo. Com base no que vimos até agora, verifica-se que o Simbolismo aproveita do Romantismo algumas características fundamentais, como o senso do mistério, o espiritualismo, mas rejeita o sentimentalismo, as manifestações subjetivas exageradas e, sobretudo, as manifestações poéticas grandiloqüentes. Devido a isso, o Simbolismo implicará uma revolução poética em relação ao movimento romântico, na medida em que aprofundará alguns aspectos desse movimento e, por conseqüência, não cairá nas armadilhas das emoções superficiais. Mas, para tanto, será necessário que reinvente a metáfora poética, através da prática do que se convencionou chamar de "símbolo".

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O símbolo

BAUDELAIRE

Da sugestão e da evocação chegamos finalmente ao símbolo que constitui o núcleo da

linguagem poética idealizada pelos simbolistas. O símbolo, na sua denominação mais simples, pode ser confundido com o signo, com uma coisa que representa a outra. Por exemplo: a palavra "mesa", que designa o objeto mesa; o sinal vermelho que significa "pare".

Mas neste caso a relação entre uma coisa e outra é sempre arbitrária; o objeto mesa, por exemplo, em outras línguas, é representado por um conjunto diferente de sinais (por exemplo, table, em inglês). Para evitar a confusão entre signo e símbolo, o linguista Saussure os distinguiu com base na arbitrariedade do primeiro e na motivação (ou não arbitrariedade) do segundo: O símbolo tem como característica não ser jamais completamente arbitrário; ele não está vazio, existe um rudimento de vínculo natural entre o significante e o significado. O símbolo da justiça, a balança, não poderia ser substituído por um objeto qualquer, um carro por exemplo. (Curso de linguística geral. São Paulo, Cultrix, 1969. p. 82.)

A base na distinção entre símbolo e signo reside, portanto, na motivação e, por consequência, na conotação. O signo, por não possuir motivação alguma, é essencialmente denotativo ("mesa" representa mesa e nada mais); o símbolo, sendo motivado, caracteriza-se pela conotação ("cruz", por exemplo, se refere ao objeto de madeira cruz e à religião que inspirou, com o sacrifício de Cristo). Contudo, ainda não é a esse tipo de símbolo que os simbolistas se referiam, na medida em que é unívoco, na medida em que permite uma decifração muito fácil, direta. Para o crítico Edmundo Wilson, o símbolo é muito mais do que isso: Os símbolos do Simbolismo têm de ser definidos de maneira algo diversa do sentido dos símbolos comuns — o sentido de que a Cruz é o símbolo da Cristandade ou as Estrelas e as Listras o símbolo dos Estados Unidos. Esse simbolismo difere inclusive de um simbolismo como o de Dante. Pois o tipo familiar do simbolismo é convencional e fixo; o simbolismo da Divina Comédia é convencional, lógico, preciso. Mas os símbolos da escola simbolista são, via de regra, arbitrariamente escolhidos pelo poeta para representar suas ideias; são uma espécie de disfarce de tais idéias. (O castelo de Axel, p. 21.)

Concebendo o símbolo como um "disfarce das idéias", os simbolistas pretendiam encontrar as perfeitas correspondências entre o mundo sensível e o mundo abstrato. Desse modo, o símbolo deixa de ser apenas uma palavra ou uma coisa significando outra; mais que isso, é uma palavra ou um conjunto de palavras que serve para evocar um estado de espírito indefinido e cuja tradução jamais é imediata.

Em muitos casos, o símbolo é elaborado com vistas a imitar a continuidade e a infinitude de movimentos que existem na alma de um ser. O poema não procura, através de palavras isoladas, representar indiretamente uma outra coisa; pelo contrário, as palavras nada

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valem quando vistas isoladamente — na realidade, elas se aglutinam, formando uma rede complexa de sons e significados, como acontece neste poema de Verlaine: Vossa alma é uma paisagem escolhida Que as máscaras e as bergamáscaras vão encantando Tocando o alaúde e dançando e quase Tristes sob seus mascaramentos fantásticos, Cantando tudo no modo menor O amor vencedor e a vida oportuna, Parecem não acreditar em sua felicidade E sua canção se mescla ao luar, Ao calmo luar triste e belo, Que faz sonhar os pássaros nas árvores E soluçar de êxtase os chafarizes, Os grandes chafarizes esbeltos no meio dos mármores. (Luar, OEuvres poétiques complètes, p. 107.)

O sentimento que o poeta quer expressar no poema é um sentimento agridoce, misto de ternura e sofrimento frente à hora difusa, banhada pelo clarão da lua. Mas o sentimento não é jamais dito diretamente. A expressão do estado de alma é sugerida pelo uso da comparação: "vossa alma é uma paisagem", ou seja, para falar dos sentimentos e sensações, o poeta descreve uma paisagem noturna. As danças, o alaúde, o luar, os pássaros, os chafarizes, objetos do mundo concreto, evocados no poema, não têm valor simbólico em si. Esses objetos somente são evocados para que a emoção do poeta (que não é explicita) se prolongue ao máximo. Por outro lado, eles têm às vezes o peso equivalente ao da sonoridade que também é muito importante — no original francês, o verso "qui fait rêver les oiseaux dans les arbres" chama a atenção pelo acúmulo de sibilantes.

Ao compor a paisagem simbolicamente, o poeta provoca no leitor um sentimento difuso, de triste nostalgia, sem que, em nenhum momento, diga o que lhe vai dentro da alma. A vantagem desse processo é que a sensação, tornada difusa, tem a capacidade de durar por mais tempo, no instante em que exige do leitor um envolvimento maior com o poema.

O Simbolismo e a música

RIMBAUD

A busca do impreciso, do vago, do indizível fez com que os simbolistas procurassem

renovar essencialmente a linguagem poética. Com o Simbolismo, a poesia torna-se mais fechada, às vezes até incomunicável. Nos casos mais extremos, ela se transforma num espaço em que o poeta trabalha com a sonoridade pura, como acontece nestes versos de Eugênio de Castro:

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Na messe, que enlourece, estremece a quermesse. O sol, celestial girassol, esmorece... E as cantilenas de serenos sons amenos Fogem fluidas, fluindo à fina flor dos fenos... As estrelas em seus halos Brilham com brilhos sinistros... Cornamusas e crotalos, Cítolas, cítaras, sistros, Soam suaves, sonolentos, Sonolentos e suaves, Em suaves, Suaves, lentos lamentos De acentos Graves,Suaves... (Oaristos, obras poéticas. Lisboa, Parceria A. M. Pereira, 1968. v. I, p. 58.) Ou mesmo nestes, de Cruz e Sousa: Vozes veladas, veludosas vozes, Volúpia dos violões, vozes veladas, Vagam nos velhos vórtices velozes Dos ventos, vivos, vãos, vulcanizadas. (Violões que choram, Poesia, p. 38.)

O acúmulo da vibrante "vê" junto à sibilante e a alternância das vogais "a" e "o" criam a ilusão de uma continuidade sonora, de maneira que ao leitor interessa mais o som que o sentido. O poeta imita o som de um violão ou de um conjunto de notas musicais, como se o poema devesse se dirigir mais aos ouvidos que à mente. Conseqüentemente, o poema atinge um grau máximo de subjetividade, não no sentido de que o poema precisa provocar, como na música, em cada ouvinte/leitor, sensações diferentes, a partir dos estímulos sonoros.

É possível dizer, portanto, que o Simbolismo foi um movimento literário em que os poetas sonharam em elevar a poesia à condição de música. Mas por que tal aproximação entre artes aparentemente tão distintas? A música, na realidade, é a mais subjetiva das artes, porque não visa jamais representar imitativamente os objetos; a música visa sempre atingir o espírito.

Daí sua universalidade. Explica-se assim a grande obsessão dos simbolistas com a música, tanto na referência explícita a instrumentos musicais — a flauta, o violino, o violoncelo, a viola — como também na apropriação de recursos tipicamente musicais.

Contudo, é preciso refletir sobre o seguinte: assim como o símbolo, em que houve variedade de interpretações quanto a seu conceito, de modo idêntico, as relações entre a poesia.e a música mereceram diferentes interpretações. Reduzindo o problema a seus denominadores mais comuns, distinguem-se duas linhas fundamentais dentro do movimento simbolista. A primeira delas, explorada por Verlaine e seguidores, é a que revela uma aproximação entre poesia e música de modo mais literal, como foi possível verificar tanto no poema de Eugênio de Castro quanto no de Cruz e Sousa. Os fonemas imitam sons musicais; a agrupação de fonemas, frases musicais; o poema todo, uma melodia. Para tanto, além de recorrerem ao uso da aliteração, do eco, da assonância, etc, os poetas dessa corrente simbolista fazem da repetição um recurso estilístico dos mais eficazes.

É o caso de Camilo Pessanha, que, em "Ao longe os barcos de flores", imita os movimentos de uma melodia, com a repetição de um mesmo tema e de suas variações:

Só, incessante, um som de flauta chora, Viúva, grácil, na escuridão tranqüila, — Perdida voz que de entre as mais se exila, — Festões de som dissimulando a hora. Na orgia, ao longe, que em clarões cintila E os lábios, branca, do carmim desflora... Só, incessante, um som de flauta chora, Viúva, grácil, na escuridão tranqüila. E a orquestra? E os beijos? Tudo a noite, fora, Cauta, detém. Só modulada trila A flauta flébil... Quem há-de remi-la? Quem sabe a dor que sem razão deplora? Só, incessante, um som de flauta chora... (Clepsidra e outros poemas, p. 239-40.)

Essa relação entre a poesia e a música, ou seja, a busca da pura sonoridade, tornou-se quase um lugar-comum entre os simbolistas, o que levou um poeta como Mallarmé a pensar numa relação mais complexa entre ambos. Desprezando a sonoridade pura, ele procurou

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organizar os fonemas como as notas numa pauta, dispondo as palavras de acordo com a lógica das sensações ou da idéia motriz de todo o poema. Com isso, conseguiu maior liberdade para os teremos que se libertam dos nexos lógicos e sintáticos. Em seu experimento mais radical, "Um lance de dados jamais eliminará o acaso", o poeta encontra similaridade entre a estrutura do poema e uma sinfonia. Dispondo o verso "Un coup de dés n'abolira jamais l'hasard" em fragmentos ao longo de todo o texto, o poeta o concebe como um núcleo, ou um tema musical, de onde surgirão as variações, palavras soltas, que se dispõem na folha de modo idêntico aos segmentos musicais, como no fragmento abaixo, em que a variação gráfica, a disposição das palavras e o espaço em branco adquirem também sentido[...]

CRUZ E SOUSA: SIMBOLISMO BRASILEIRO

João da Cruz e Sousa

(Nossa Senhora do Desterro (atual Florianópolis) 24 de novembro de 1861 — Estação

do Sítio, 19 de março de 1898) foi um poeta brasileiro, alcunhado Dante Negro e Cisne

Negro. Foi um dos precursores do simbolismo no Brasil.

Filho de negros alforriados, desde pequeno recebeu a tutela e uma educação

refinada de seu ex-senhor, o Marechal Guilherme Xavier de Sousa - de quem adotou o

nome de família. Aprendeu francês, latim e grego, além de ter sido discípulo do alemão

Fritz Müller, com quem aprendeu Matemática e Ciências Naturais.

Em 1881, dirigiu o jornal Tribuna Popular, no qual combateu a escravidão e o

preconceito racial. Em 1883, foi recusado como promotor de Laguna por ser negro. Em

1885 lançou o primeiro livro, Tropos e Fantasias em parceria com Virgílio Várzea.

Cinco anos depois foi para o Rio de Janeiro, onde trabalhou como arquivista na Estrada

de Ferro Central do Brasil, colaborando também com o jornal Folha Popular. Em

Fevereiro de 1893, publica Missal (prosa poética) e em agosto, Broquéis (poesia), dando

início ao Simbolismo no Brasil que se estende até 1922. Em novembro desse mesmo

ano casou-se com Gavita Gonçalves, também negra, com quem tem quatro filhos, todos

mortos prematuramente por tuberculose, levando-a à loucura.

Faleceu a 19 de Março de 1898 no município mineiro de Antônio Carlos, num

povoado chamado Estação do Sítio, para onde fôra transportado às pressas vencido pela

tuberculose. Teve o seu corpo transportado para o Rio de Janeiro em um vagão

destinado ao transporte de cavalos. Ao chegar, foi sepultado no Cemitério de São

Francisco Xavier por seus amigos, dentre eles José do Patrocínio.Onde permaneceu até

2007, quando seus restos mortais foram acolhidos no Museu Histórico de Santa

Catarina - Palácio Cruz e Sousa no centro de Florianópolis.

Foi integrante da Academia Catarinense de Letras, de cuja cadeira 15 é patrono.

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Análise da obra

Seus poemas são marcados pela musicalidade (uso constante de aliterações),

pelo individualismo, pelo sensualismo, às vezes pelo desespero, às vezes pelo

apaziguamento, além de uma obsessão pela cor branca. É certo que encontram-se

inúmeras referências à cor branca, assim como à transparência, à translucidez, à

nebulosidade e aos brilhos, e a muitas outras cores, todas sempre presentes em seus

versos.

No aspecto de influências do simbolismo, nota-se uma amálgama que conflui

águas do satanismo de Baudelaire ao espiritualismo (e dentro desse, idéias budistas e

espíritas) ligados tanto a tendências estéticas vigentes como a fases na vida do autor.

POEMA PARA ANÁLISE

Cristais

Mais claro e fino do que as finas pratas

O som da tua voz deliciava...

Na dolência velada das sonatas

Como perfume a tudo perfumava

Era um som feito luz, eram volatas

Em lânguida espiral que iluminava,

Brancas sonoridades de cascatas...

Tanta harmonia melancolizava.”

Filtros sutis de melodias, de ondas

De cantos voluptuosos como rondas

De silfos leves, sensuais, lascivos...

Como que anseios invisíveis, mudos,

Da brancura das sedas e veludos,

Das virgindades, dos pudores vivos

(Cruz e Sousa)

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO

PARÁ CAMPUS DE BREVES

DISCIPLINA: LITERATURA

BRASILEIRA CONTEMPORÂNEA

PROFESSOR: ESP. JOÃO PAULO

GONÇALVES

O SIMBOLISMO NO BRASIL

O DANTE NEGRO DA POESIA

SIMBOLISTA: CRUZ E SOUSA

A Linguagem poética de Cruz e

Sousa:

No plano temático: a morte, a

transcendência espiritual, a

integração cósmica, o mistério, o

sagrado, o conflito entre a matéria e

espírito, a angústia e a sublimação

sexual, a escravidão e uma

verdadeira obsessão por brilhos e

pela cor branca ("Ó Formas alvas,

brancas, Formas claras / De luares,

de neves, fluídas, cristalinas....").

1) CARNAL E MÍSTICO

Pelas regiões tenuíssimas da bruma

Vagam as Virgens e as Estrelas raras...

Como que o leve aroma das searas

Todo o horizonte em derredor perfuma.

Numa evaporação de branca espuma

Vão diluindo as perspectivas claras...

Com brilhos crus e fúlgidos1 de tiaras

2

As Estrelas apagam-se uma a uma.

E então, na treva, em místicas dormências,

Desfila, com sidéreas lactescências,

Das Virgens o sonâmbulo cortejo...

Ó Formas vagas, nebulosidades!3

Essência das eternas virgindades!

Ó intensas quimeras do Desejo...

2) LÉSBIA

Cróton selvagem, tinhorão lascivo,

Planta mortal, carnívora, sangrenta,

1 que fulge, que possui brilho, luminosidade; brilhante,

resplandecente, fúlgido. 2 diadema ou ornamento semelhante us. pelas mulheres na

parte frontal do penteado. 3 nuvem de matéria interestelar.

Da tua carne báquica rebenta

A vermelha explosão de um sangue vivo.

Nesse lábio mordente e convulsivo,

Ri, ri risadas de expressão violenta

O Amor, trágico e triste, e passa, lenta,

A morte, o espasmo gélido, aflitivo...

Lésbia nervosa, fascinante e doente,

Cruel e demoníaca serpente

Das flamejantes atrações do gozo.

Dos teus seios acídulos, amargos,

Fluem capros aromas e os letargos,

Os ópios de um luar tuberculoso...

3) SERPENTE DE CABELO

A tua trança negra e desmanchada

Por sobre o corpo nu, torso inteiriço,

Claro, radiante de esplendor e viço,

Ah! lembra a noite de astros apagada.

Luxúria deslumbrante e aveludada

Através desse mármore maciço

Da carne, o meu olhar nela espreguiço

Felinamente, nessa trança ondeada.

E fico absorto, num torpor de coma,

Na sensação narcótica do aroma,

Dentre a vertigem túrbida dos zelos.

És a origem do Mal, és a nervosa

Serpente tentadora e tenebrosa,

Tenebrosa serpente de cabelos!...

TEORIA MUSICAL

• A = órgão = negro = glória,

tumulto

• E = harpa = branco = serenidade

• I = violino = azul = paixão,

súplica aguda

• O = metais = vermelho =

soberania, glória, triunfo

• U = flauta = amarelo =

ingenuidade, sorriso

• Wagner – fusão das artes, “obra

única”

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4) MÚSICA MISTERIOSA...

Tenda de Estrelas níveas,

refulgentes,

Que abris a doce luz de lampadários,

As harmonias dos Estradivarius

(violino)

Erram da Lua nos clarões

dormentes...

Pelos raios fluídicos, diluentes

Dos Astros, pelos trêmulos velários,

Cantam Sonhos de místicos

templários,

De ermitões e de ascetas reverentes...

Cânticos vagos, infinitos, aéreos

(sinestésico)

Fluir parecem dos Azuis etéreos,

Dentre os nevoeiros do luar

fluindo...

E vai, de Estrela à Estrela, à luz da

Lua,

Na láctea claridade que flutua,

A surdina das lágrimas subindo...

5) ANTÍFONA

Ó Formas alvas, brancas, Formas

claras

De luares, de neves, de neblinas!...

Ó Formas vagas, fluidas,

cristalinas...

Incensos dos turíbulos das aras...

Formas do Amor, constelarmente

puras,

De Virgens e de Santas vaporosas...

Brilhos errantes, mádidas frescuras

E dolências de lírios e de rosas...

Indefiníveis músicas supremas,

Harmonias da Cor e do Perfume...

Horas do Ocaso, trêmulas, extremas,

Réquiem do Sol que a Dor da Luz

resume...

Visões, salmos e cânticos serenos,

Surdinas de órgãos flébeis,

soluçantes...

Dormências de volúpicos venenos

Sutis e suaves, mórbidos, radiantes...

6) SATÃ

Capro e revel, com os fabulosos

cornos

Na fronte real de rei dos reis

vetustos,

Com bizarros e lúbricos contornos,

Ei-lo Satã dentre os Satãs augustos.

Por verdes e por báquicos adornos

Vai c'roado de pâmpanos venustos

O deus pagão dos Vinhos acres,

mornos,

Deus triunfador dos triunfadores

justos.

Arcangélico e audaz, nos sóis

radiantes,

A púrpura das glórias flamejantes,

Alarga as asas de relevos bravos...

O Sonho agita-lhe a imortal cabeça...

E solta aos sóis e estranha e ondeada

e espessa

Canta-lhe a juba dos cabelos flavos!

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PROF. JOÃO PAULO GONÇALVES

Modernismo: Vanguardas Europeias

De origem francesa, a palavra

vanguarda (avant-garde) foi

inicialmente utilizada para designar o

destacamento que atua à frente da tropa,

que se adianta ao resto dos soldados

para reconhecer o terreno e informar

sobre as condições de avanço. Em

termos artísticos, essa palavra também é

utilizada para designar aqueles que

prevêem e anunciam o futuro, os novos

tempos.

Do início do século até a

Primeira Guerra Mundial, a Europa vive

a chamada Belle Époque, época de

grande euforia pelo progresso, pela

velocidade, pelas comodidades trazidas

pela Era da Máquina.

Nesses anos, as invenções

proporcionadas pelo avanço da ciência e

da técnica – o automóvel, o

cinematógrafo, as máquinas voadoras,

entre outras – deflagraram um progresso

material espantoso. Beneficiária desse

progresso, a burguesia criou um

verdadeiro culto do conforto e do bem

viver, da revolução dos costumes, da

aceleração do ritmo da vida,

valorizando o consumo, as diversões ao

ar livre etc.

A euforia burguesa, entretanto,

seria interrompida pela eclosão das duas

guerras mundiais (1914-1918 e 1939-

1945), cujas conseqüências fariam

germinar sentimentos completamente

opostos ao encantamento pela vida

característico da Belle Époque.

A desilusão, a perplexidade, a

falência de ideais decorrente do

sofrimento humano provocado pelas

guerras, com suas mutilações e perdas

irremediáveis, caracterizaram o período

histórico-cultural posterior à Belle

Époque, tornando extremamente

complexa a primeira metade do nosso

século.

No universo científico-

filosófico, grandes pensadores

aprofundam as indagações sobre o

homem e o mundo, o que desestabiliza

o cientificismo racionalista

predominante na Segunda metade do

século XIX.

Em 1900, Sigmund Freud, o

fundador da psicanálise, publica A

interpretação dos sonhos. Desvendando

o inconsciente humano em suas

motivações mais profundas, regidas por

forças poderosas como Eros e Tanathos

(o impulso para a vida e o amos e o

impulso para a morte, a destruição),

Freud explora dimensões da psique até

então desconhecidas.

Henry Berson, o filósofo francês

criador do intuicionismo, revoluciona o

conhecimento, nele destacando o poder

da intuição. O pensamento de Friedrich

Nietzsche ganha espaço. Esse filósofo,

nascido na Alemanha, no século XIX,

proclama a morte do Deus soberano e

absoluto, em cuja crença se assentava

um dos alicerces do universo mental de

toda a história da cultura do Ocidente.

Com esses e outros inspiradores,

a modernidade, a razão burguesa e todas

as certezas dela decorrentes entram em

colapso, transformam-se em impasses

que perduram até os nossos dias.

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Em termos artísticos, as

vanguardas européias são os

movimentos que procuram expressar as

contradições desencadeadas por tantas

mudanças, tantos ganhos e

simultaneamente tantas derrotas vividas

na Era da Máquina. Se, por um lado,

cultua-se a velocidade, o progresso, a

vertiginosa aceleração técnico-

científica, por outro, assimila-se

dolorosamente a ausência de valores

humanos, como os proporcionados pela

religião e pela própria ciência, que são

questionados em sua capacidade de

gerar a felicidade e a justiça sociais.

Assim, todas as convenções

culturais e artísticas burguesas passam a

representar o passado, transformam-se

em alvo de crítica demolidora, mordaz,

irreverente, niilista4, isto é, negadora

dos valores instituídos e defendidos até

o século XIX.

Os museus, as bibliotecas, as

academias, a postura academicista dos

artistas – de polainas, fraque e cartola –

são alvos constantes das vanguardas,

tanto quanto as formas fixas como o

soneto, a rima e a métrica regulares, a

linguagem dicionarizante e discursiva,

por exemplo, das tendências poéticas do

Parnasianismo e do Simbolismo.

Iniciados no território das artes

plásticas, os movimentos de vanguarda

rapidamente se ampliam em direção às

outras manifestações artísticas,

defendendo a interdependência de suas

4 Niilismo: redução a nada; aniquilamento;

descrença absoluta; doutrina segundo a qual nada existe de absoluto; doutrina segundo a qual não há verdade moral nem hierarquia de valores.

linguagens, a integração entre a música,

a escultura, a arquitetura, a literatura e o

cinema.

Entre as estéticas de vanguarda

que provocaram uma revolução única

no cenário artístico europeu e mundial,

fundando a Modernidade, destacam-se o

Futurismo, o Cubismo, o Dadaísmo, o

Expressionismo e o Surrealismo.

Cubismo

Cubismo surgiu em 1907,

quando o pintor espanhol Pablo Picasso

(1881-1973) expôs seu quadro Les

Demoiselles d’Avignon (le demoasell

davinhon), em Paris.

O quadro (vide reprodução)

apresenta cinco mulheres cujas formas

distorcidas foram quase inteiramente

aplanadas. Há pouco espaço atrás ou à

frente delas, de tal modo que se

projetam para a frente, sem deixar

espaço entre nós e elas. A figura da

esquerda tem a postura das antigas

figuras egípcias, enquanto as duas da

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direita têm traços que lembram as

máscaras da arte africana.

Mas o quadro não se esgota

nessa proposta de ruptura com o estilo

tradicional. Há uma ironia no próprio

tema, pois as “senhoritas” não passam

de prostitutas de uma de Barcelona, e as

frutas em primeiro plano sugerem,

simbolicamente, a passagem

irremediável do tempo: os homens,

como as frutas, apodrecem e morrem

com o tempo.

A partir daí, outras obras

semelhantes surgiram, tendo como

princípio a decomposição da realidade

em fragmentos geométricos que se

entrecortam. A arte cubista rompe com

a representação fiel da realidade criada

pelo Realismo e mostra que existem

outras maneiras de perceber e

interpretar o real.

O Cubismo é facilmente

reconhecível nas artes plásticas. O

artista fraciona o elemento da realidade

que está interessado em representar e,

em seguida, recria-o através de planos

geométricos superpostos. Os cubistas

pretendiam representar o objeto como

se ele fosse visto de diferentes ângulos

ao mesmo tempo. Observe que essa

maneira de pintar golpeava

radicalmente a perspectiva tradicional,

segundo a qual o artista deveria escolher

um plano para representar o objeto.

A transposição do Cubismo para

a literatura apresenta traços como:

predomínio da realidade pensada sobre

a realidade aparente; eliminação da

seqüência lógica do discurso e

desordem proposital de seus elementos;

enumeração aleatória de fragmentos da

realidade; mistura de passado, presente

e futuro; a valorização dos espaços

brancos no papel; negação da estrofe, da

rima, da pontuação etc.

Entre os cubistas mais

representativos na literatura temos os

franceses Guillaume Apollinaire

(guioume apolinérr) (1880-1918), poeta

que teve enorme influência em toda a

poesia posterior, e Jean Cocteau (jan

coctô) (1889-1963).

Futurismo

Contemporânea do Cubismo,

essa vanguarda surge através do

Manifesto Futurista, assinado pelo

italiano Felippo-Tommaso Marinetti,

publicado no jornal parisiense Le

Figaro, em 22 de fevereiro de 1909. Ele

vincula a arte à nova civilização técnica,

combatendo com veemência o

tradicional. Propõe uma literatura

baseada na exaltação da agressividade e

da audácia. Exalta também a guerra e o

militarismo, as fábricas e as máquinas, o

nacionalismo e a discriminação da

mulher. No plano da linguagem, prega,

entre outras coisas, a destruição da

sintaxe, a rejeição do adjetivo, a

abolição de todas as metáforas, a

ausência de limites da pontuação. Em

1912, Marinetti lança outro manifesto, o

Manifesto Técnico da Literatura

Futurista.

Apesar de tudo, o Futurismo foi

muito mais programa do que obra

realizada, o que não diminui sua

importância como tomada de posição. O

nacionalismo de Marinetti e sua

exaltação da violência e da guerra

aproximam-no, mais tarde, de

Mussolini, e, depois, de 1919, o

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movimento futurista passa a ser porta-

voz do fascismo italiano.

O texto abaixo é composto de

fragmentos extraídos dos manifestos

futuristas.

POEMA EM LINHA RETA

(Fernando Pessoa)

NUNCA CONHECI quem tivesse

levado porrada.

Todos os meus conhecidos têm sido

campeões em tudo.

E eu, tantas vezes reles, tantas vezes

porco, tantas vezes vil,

Eu tantas vezes irrespondivelmente

parasita,

Indesculpavelmente sujo,

Eu, que tantas vezes não tenho tido

paciência para tomar banho.

Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo,

absurdo,

Que tenho enrolado os pés

publicamente nos tapetes das etiquetas.

Que tenho sido grotesco, mesquinho,

submisso e arrogante.

Que tenho sofrido enxovalhos e calado,

Que quando não tenho calado, tenho

sido mais ridículo ainda;

Eu, que tenho sido cômico às criadas de

hotel,

Eu, que tenho sentido o piscar de olhos

dos moços de fretes.

Eu, que tenho feito vergonhas

financeiras, pedido emprestado sem

pagar,

Eu, que, quando a hora do soco surgiu,

me tenho agachado

Para fora da possibilidade do soco;

Eu, que tenho sofrido a angústia das

pequenas coisas ridículas,

Eu verifico que não tenho par nisto tudo

neste mundo.

Toda a gente que eu conheço e que fala

comigo

Nunca teve um ato ridículo, nunca

sofreu enxovalho,

Nunca foi senão príncipe — todos eles

príncipes na vida.

Quem me dera ouvir de alguém a voz

humana

Que confessasse não um pecado, mas

uma infâmia:

Que contasse, não uma violência, mas

uma cobardia!

Não, são todos o Ideal, se os oiço e me

falam.

Quem há neste largo mundo que me

confesse que uma vez foi vil?

Ó príncipes, meus irmãos,

Arre, estou farto de semideuses!

Onde é que há gente no mundo?

Então sou só eu que é vil e errôneo

nesta terra?

Poderão as mulheres não os terem

amado.

Podem ter sido traídos — mas ridículos

nunca!

E eu, que tenho sido ridículo sem ter

sido traído.

Como posso eu falar com os meus

superiores sem titubear?

Eu, que tenho sido vil, literalmente vil.

Vil no sentido mesquinho e infame da

vileza.

Expressionismo

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Trata-se de um movimento

cultural tipicamente alemão,

contemporâneo do Futurismo e do

Cubismo, que surge em 1910 como uma

reação ao Impressionismo e ao seu

caráter sensorial. Expressão, ao

contrário de impressão, indica um

movimento de dentro para fora. Assim,

o Expressionismo é a materialização de

imagens nascidas do interior do sujeito,

geradas sobretudo pela insatisfação,

pela recusa da sociedade industrial e

pela alienação do homem por ela criada

. A estética expressionista é uma

estética do feio e do agressivo, pois

esses são os traços mais fortes dessas

sociedade.

O Expressionismo é, portanto,

um movimento engajado, de

contestação, que tenta, por meio da arte,

denunciar e transformar a sociedade.

Desenvolveu-se mais na pintura,

inspirado em Van Gogh, Cézanne

(cezânn) e Gauguin (gogân), pós-

impressionistas. Os nomes mais

importantes dessa vanguarda são:

Vassili Kandinsky, James Ensor e Edvar

Munch (edvar mantch), autor de

quadros intensamente dramáticos, como

O grito, de 1893.

O quadro (vide reprodução)

expressa o desespero intenso. A dor da

figura humana em cima da ponte

contorce seu corpo, deformando-o. As

formas sinuosas do céu e da água, e a

forte diagonal da ponte, conduzem o

olhar do espectador diretamente para a

boca que se abre num grito. E o ser que

grita (homem? mulher?) parece querer

expressar uma terrível solidão

existencial. Duas figuras estão vindo em

sua direção. Serão elas o motivo do

grito? Serão elas a morte ou a salvação?

O cinema expressionista também

teve grande relevância, principalmente

o alemão, no qual se destaca Fritz Lang,

diretor do filme Metropolis (1926), uma

crítica à sociedade moderna.

Paul Celan

Fuga da morte (trad. Modesto Carone)

Leite negro da madrugada nós o bebemos de noite nós o bebemos ao meio-dia e de manhã nós o bebemos de noite nós o bebemos bebemos cavamos um túmulo nos ares lá não se jaz apertado Um homem mora na casa bole com cobras escreve escreve para a Alemanha quando escurece teu cabelo de ouro Margarete escreve e se planta diante da casa e as estrelas faíscam ele assobia para os seus mastins assobia para os seus judeus manda cavar um túmulo na terra ordena-nos agora toquem para dançar

Leite negro da madrugada nós te

bebemos de noite

nós te bebemos de manhã e ao meio-dia

nós te bebemos de noite

nós bebemos bebemos

Um homem mora na casa bole com

cobras escreve

escreve para a Alemanha quando

escurece teu cabelo de ouro Margarete

Teu cabelo de cinzas Sulamita cavamos

um túmulo nos ares lá não se jaz

apertado

Ele brada cravem mais fundo na terra

vocês aí cantem e toquem

agarra a arma na cinta brande-a seus

olhos são azuis

cravem mais fundo as enxadas vocês aí

continuem tocando para dançar

Leite negro da madrugada nós te

bebemos de noite

nós te bebemos ao meio-dia e de manhã

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nós te bebemos de noite

nós bebemos bebemos

um homem mora na casa teu cabelo de

ouro Margarete

teu cabelo de cinzas Sulamita ele bole

com cobras

Ele brada toquem a morte mais doce a

morte é um dos mestres da Alemanha

ele brada toquem mais fundo os violinos

aí vocês sobem como fumaça no ar

aí vocês têm um túmulo nas nuvens lá

não se jaz apertado

Leite negro da madrugada nós te

bebemos de noite

nós te bebemos ao meio-dia a morte é

um dos mestres da Alemanha

nós te bebemos de noite e de manhã nós

bebemos bebemos

a morte é um dos mestres da Alemanha

seu olho é azul

acerta-te com uma bala de chumbo

acerta-te em cheio

um homem mora na casa teu cabelo de

ouro Margarete

ele atiça seus mastins sobre nós e sonha

a morte é um dos mestres da Alemanha

teu cabelo de ouro Margarete

teu cabelo de cinzas Sulamita

Dadaísmo

O Dadaísmo nasceu em plena

guerra, sendo o mais radical movimento

de vanguarda europeu. Seu primeiro

manifesto foi lançado em Zurique, em

1916, assinado por Tristan Tzara. Teve

grande penetração na Europa e nos

EUA, entrando em declínio em 1921. O

movimento pretende ser uma resposta à

decadência da civilização ocidental,

que, para os dadaístas, a guerra

representa. Numa Europa dilacerada, a

arte é vista como hipocrisia; portanto, é

preciso desmistificá-la e ridicularizá-la

por meio da agressividade e da

irreverência, retornando ao caos, ao

ponto zero.

Assim, a arte dadaísta exalta a

liberdade total de criação, tenta inventar

uma linguagem nova e inusitada.

Admite que essa linguagem não precisa

ser compreensível: o importante é o

grito, o protesto contra os valores

burgueses e a guerra. A própria palavra

dada nada significa; foi escolhida ao

acaso, “inserindo uma espátula num

tomo fechado do Petit Larousse e lendo

imediatamente, ao abri-lo, a primeira

linha que (me) chamou a atenção:

DADA”, como afirmou Tristan Tzara.

Nas artes plásticas, o Dadaísmo

apresenta objetos extraídos do

cotidiano, como uma roda de bicicleta,

um mictório etc., objetos sem valor

artístico (de acordo com as regras

tradicionais), aos quais se atribui um

novo valor: o da contestação (são os

ready-mades = “prontos para usar”).

Essa transformação de objetos comuns

em arte denomina-se intervenção, a aí

também se incluem, por exemplo, atos

como colocar bigodes na Mona Lisa, de

Leonardo da Vinci. Um mestre das

intervenções foi o artista plástico

americano Marcel Duchamp.

Os nomes mais significativos

do movimento são os pintores e

escultores franceses Max Ernst e

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Francis Picabia, além do escritor Tristan

Tzara.

O Dadaísmo durou apenas

alguns anos e provocou muitas

polêmicas por sua atitude radical de

negação de todos os valores. Alguns

artistas que participaram do movimento

dadaísta se organizaram em 1924 e

lançaram o Surrealismo.

O ready-made, exemplo de

antiarte dadá: escolher um objeto

qualquer e retirá-lo de seu uso corrente,

de seu ambiente convencional, para

torná-lo não utilitário e portanto

artístico. “Não interessa se Mr. Mutt fez

ou não, com as próprias mãos, a sua

fonte. Ele a escolheu: pegou uma coisa

banal do cotidiano e, criando para essa

coisa uma idéia nova, colocou-a de tal

modo que o seu significado utilitário

sumiu, sob outro nome e outro ponto de

vista.”

Marcel Duchamp

RECEITA PARA FAZER UM

POEMA DADAÍSTA

Pegue um jornal.

Pegue a tesoura.

Escolha no jornal um artigo do

tamanho que você deseja dar a seu

poema.

Recorte o artigo.

Recorte em seguida com atenção

algumas palavras que formam esse

artigo e meta-as num saco.

Agite suavemente.

Tire em seguida cada pedaço um

após o outro.

Copie conscienciosamente na ordem

em que elas são tiradas do saco.

O poema se parecerá com você.

E ei-lo um escritor infinitamente

original e de uma sensibilidade

graciosa, ainda que incompreendido do

público.

Tristan Tzara

Poema de sete faces

Quando nasci, um anjo torto

desses que vivem na sombra

disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida.

As casas espiam os homens

que correm atrás de mulheres.

A tarde talvez fosse azul,

não houvesse tantos desejos.

O bonde passa cheio de pernas:

pernas brancas pretas amarelas.

Para que tanta perna, meu Deus,

pergunta meu coração.

Porém meus olhos

não perguntam nada.

O homem atrás do bigode

é sério, simples e forte.

Quase não conversa.

Tem poucos , raros amigos

o homem atrás dos óculos e do bigode.

Meu Deus, por que me abandonaste

se sabias que eu não era Deus

se sabias que eu era fraco.

Mundo mundo vasto mundo

se eu me chamasse Raimundo,

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seria uma rima, não seria uma solução.

Mundo mundo vasto mundo,

mais vasto é meu coração.

Eu não devia te dizer

mas essa lua

mas esse conhaque

botam a gente comovido como o diabo.

(Carlos Drummond de Andrade).

Surrealismo5

Também surgido através de

manifestos, em 1924, o Surrealismo

defende a presença do irracional e do

inconsciente na arte. Tem como

principal criador o psicanalista e

escritor francês André Breton (1896-

1970), que também foi dadaísta.

5 Surrealismo (segundo a definição de André

Breton): automatismo psíquico pelo qual alguém se propõe a exprimir, seja verbalmente, seja de qualquer outra maneira, o funcionamento real do pensamento.

Os fundamentos teóricos do movimento

estão baseados na tradição romântica da

subjetividade, nas teorias do

inconsciente de Freud, no esoterismo,

na revolta dadaísta contra a sociedade

burguesa e na recusa ao predomínio da

razão como explicação de todas as

coisas. Os surrealistas acreditam que a

arte pode ser criada por meio de um

mergulho no inconsciente, usando-se

para isso o sonho, linguagem irracional

e instintiva de inconsciente.

Assim, a arte é uma espécie de

automatismo que expressa na tela ou no

papel os impulsos criadores

inconscientes, sem preocupação com

significados, seqüência ou coerência.

Na literatura, esse princípio denominou-

se escrita automática. Daí derivam

temas como sonho, loucura, devaneio,

hipnose, violência, ilogismo, grotesco

etc.

Repercutindo em vários

domínios artísticos, os maiores

expoentes surrealistas são: André

Breton, Louis Aragon (lui arragon),

Antonin Artaud (antonan artô), na

literatura; nas artes plásticas, Joan Miró,

Salvador Dali; no cinema, Luis Bruñuel,

diretor de O cão andaluz (1928).

O Pastor Pianista

Soltaram os pianos na planície deserta

Onde as sombras dos pássaros vêm

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beber.

Eu sou o pastor pianista,

Vejo ao longe com alegria meus planos

Recortarem os vultos monumentais

Contra a lua.

MODERNISMO E AS VANGUARDAS

EUROPÉIAS6 DISCIPLINA: LITERATURA

COMTEMPO CONTEMPORANEIDADE

PROFº. JOÃO PAULO GONÇALVES

O MODERNISMO NO BRASIL

A Semana de Arte Moderna,

também chamada de Semana de 22,

ocorreu em São Paulo no ano de 1922, de

11 a 18 de fevereiro, no Teatro Municipal. Durante os sete dias de exposição, foram expostos quadros e

apresentadas poesias, músicas e

palestras sobre a modernidade,o que deixou indignados alguns escritores e artistas de renome.

6 GOMES, Álvaro Cardoso.

Simbolismo/Modernismo. In: A Literatura

Portuguesa em perspectiva. São Paulo: Atlas, 1994.

v. 4, p. 103-116.

A Semana de Arte Moderna representou uma verdadeira renovação de linguagem, na busca de experimentação, na liberdade criadora da ruptura com o passado e até corporal, pois a arte passou

então da vanguarda, para o

modernismo. O evento marcou época ao apresentar novas idéias e conceitos

artísticos, como a poesia através da declamação, que antes era só escrita; a música por meio de concertos, que antes só havia cantores sem acompanhamento de

orquestras sinfônicas; e a arte plástica exibida em telas, esculturas e

maquetes de arquitetura, com desenhos arrojados e modernos. O adjetivo "novo" passou a ser marcado em todas estas manifestações que propunha algo no mínimo curioso e de interesse.

Participaram da Semana nomes

consagrados do modernismo brasileiro,

como Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Víctor Brecheret, Anita Malfatti, Menotti Del Pichia, Sérgio Milliet, Heitor Villa-Lobos entre outros. Origens

A Semana de Arte Moderna ocorreu em uma época cheia de turbulências políticas, sociais, econômicas e

culturais. As novas vanguardas estéticas surgiam e o mundo se espantava com as novas linguagens desprovidas de regras. Alvo de críticas e em parte ignorada, a Semana não foi bem entendida em sua época. A Semana de Arte Moderna se encaixa no contexto da República Velha, controlada pelas oligarquias cafeeiras e pela política do café-com-leite. O capitalismo

crescia no Brasil, consolidando a República e a elite paulista, esta totalmente influenciada pelos padrões estéticos europeus mais tradicionalistas.

Seu objetivo era renovar o ambiente artístico e cultural da cidade com "a perfeita demonstração do que há em nosso meio em escultura, arquitetura, música e literatura sob o ponto de vista rigorosamente atual", como informava o Correio Paulistano a 29 de janeiro de 1922.

Antecedentes Alguns eventos que direta ou indiretamente motivaram a realização da Semana de 1922,

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mudando as atitudes dos jovens artistas modernistas, constitui uma informação importante para o reconhecimento da forma como foi se tornando realidade.

1912. Oswald de Andrade retorna da Europa, impregnado do

Futurismo de Marinetti, e afirmando que “estamos atrasados cinqüenta anos em cultura, chafurdados ainda em pleno

Parnasianismo”.

1913. Lasar Segall, pintor lituano, realiza “a primeira exposição de pintura não acadêmica em nosso

país”, nas palavras de Mário de Andrade.

1914. Primeira exposição de pintura de

Anita Malfatti, que retorna da Europa trazendo influências pós-impressionistas.

1917. – Mário de Andrade e Oswald de Andrade, os dois grandes líderes da

primeira geração de nosso Modernismo, se tornam amigos. Publicação de Há uma gota de sangue em

cada poema; livro de poemas de Mário de Andrade, que utilizou o pseudônimo Mário Sobral para assinar essa obra

pacifista, protestando contra a Primeira Guerra Mundial. Publicação de Moisés e Juca Mulato,

poemas regionalistas de Menotti Del Pichia, que conseguem sucesso junto ao público. Publicação de A cinza das horas, de

Manuel Bandeira.

O músico francês Darius Milhaud, que vive no Rio de Janeiro e entusiasma-se com

maxixe, samba e os chorinhos de Ernesto Nazareth, se encontra com Villa-Lobos. O então jovem compositor, já impressionado com a descoberta de

Stravinski, entra em contato com a moderna música francesa.

Segunda exposição de Anita Malfatti, exibindo quadros expressionistas, criticados

com dureza por Monteiro Lobato, no artigo “Paranóia ou mistificação?”, publicado no jornal O Estado de S. Paulo, Esse artigo é considerado o “estopim” de

nosso modernismo, já que provocou a união dos jovens artistas, levando-os a discutir a necessidade de divulgar coletivamente o movimento.

1919. Publicação de Carnaval, de Manuel Bandeira, já com versos livres.

1921. Banquete no palácio do Trianon, em homenagem ao lançamento de As

máscaras, de Menotti Del Picchia,

Oswald de Andrade faz um discurso, afirmando a chegada da revolução modernista em nosso país.

Exposições de quadros de Vicente do Rêgo Monteiro, em Recife e no Rio de Janeiro, explorando a temática indígena.

Mostra de desenhos e caricaturas de Di Cavalcanti, denominada “Fantoches da Meia-noite”, na cidade de São Paulo.

Oswald de Andrade, Menotti Del Picchia, Cândido Mota Filho e Mário de Andrade divulgam o Modernismo, em revistas e jornais.

Mário de Andrade escreve a série Os mestres do passado, analisando esteticamente a poesia parnasiana que estava no auge da reputação literária e mostrando a necessidade de superá-la, porque a sua missão já foi cumprida.

Oswald de Andrade publica um artigo sobre os poemas de

Mário de Andrade, intitulando-o “O meu poeta futurista”. A partir de então,

apesar da recusa de Mário de Andrade em aceitar a designação, a palavra “futurismo” passa a ser utilizada indiscriminadamente para toda e qualquer manifestação de comportamento modernista, em tom na maioria das vezes pejorativo. Em contrapartida, os modernistas chamam de “passadistas” os defensores da tradição em geral.

A Semana

A Semana, de uma certa maneira, nada mais foi do que uma ebulição de novas idéias totalmente libertadas, nacionalista em busca de uma identidade própria e de uma maneira mais livre de expressão. Não se tinha, porém, um programa definido: sentia-se muito mais um desejo de experimentar diferentes caminhos do que de definir um único ideal moderno. 13 de fevereiro (Segunda-feira) - Casa cheia, abertura oficial do evento. Espalhadas pelo saguão do Theatro Municipal de São Paulo, várias pinturas e esculturas provocam reações de espanto e repúdio por parte do público. O espetáculo tem início com a

confusa conferência de Graça Aranha,

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intitulada "A emoção estética da Arte Moderna". Tudo transcorreu em certa calma neste dia. 15 de fevereiro (Quarta-feira) -

Guiomar Novais era para ser a grande atração da noite. Contra a vontade dos demais artistas modernistas, aproveitou um intervalo do espetáculo para tocar alguns clássicos consagrados, iniciativa aplaudida pelo público. Mas a "atração" dessa noite foi

a palestra de Menotti del Picchia sobre a arte estética. Menotti apresenta os novos escritores dos novos tempos e surgem vaias e barulhos diversos (miados, latidos, grunhidos, relinchos...) que se alternam e

confundem com aplausos. Quando Ronald de Carvalho lê o poema intitulado Os

Sapos de Manuel Bandeira, (poema criticando abertamente o parnasianismo e seus adeptos) o público faz coro atrapalhando a leitura do texto. A noite acaba em algazarra. Ronald teve de declamar o poema pois Bandeira estava impedido de fazê-lo por causa de uma crise

de tuberculose. 17 de fevereiro (Sexta-feira) - O dia mais tranqüilo da semana, apresentações

músicais de Villa-Lobos, com participação de vários músicos. O público em número reduzido, portava-se com mais

respeito, até que Villa-Lobos entra de casaca, mas com um pé calçado com um sapato, e outro com chinelo; o público interpreta a atitude como futurista e desrespeitosa e vaia o artista impiedosamente. Mais tarde, o maestro explicaria que não se tratava de modismo e, sim, de um calo inflamado...

Desdobramentos

Vale ressaltar, que a Semana em si não teve grande importância em sua época, foi com o tempo que ganhou valor histórico ao projetar-se ideologicamente ao longo do século. Devido à falta de um ideário comum a todos os seus participantes, ela desdobrou-se em diversos movimentos diferentes, todos eles declarando levar adiante a sua herança. Ainda assim, nota-se até as últimas décadas do Século XX a influência da Semana de

1922, principalmente no Tropicalismo e na geração da Lira Paulistana nos anos 70

(Arrigo Barnabé, Itamar Assumpção, entre outros). O próprio nome Lira

Paulistana é tirado de uma obra de Mário de Andrade.

Mesmo a Bossa Nova deve muito à turma modernista, pela sua lição peculiar de "antropofagia", traduzindo a influência da música popular norte-americana à linguagem brasileira do samba e do baião.

Entre os movimentos que surgiram na

década de 1920, destacam-se:

Movimento Pau-Brasil (Oswald de Andrade, Mario de Andrade, Tarsila do Amaral)

Movimento Verde-Amarelo e Grupo da Anta(Plínio Salgado,

Cassiano Ricardo etc.)

Movimento antropofágico (Oswald de Andrade, com base no

quadro “Abaporu”) A principal forma de divulgação destas

novas idéias se dava através das revistas. Entre as que se destacam, encontram-se:

Revista Klaxon

Revista de Antropofagia.

OSWALD DE ANDRADE

José Oswald de Sousa Andrade

(São Paulo SP, 1890 - idem 1954)

Formou-se bacharel em Direito

em São Paulo, em 1919. Dois anos depois começou a articular a campanha modernista, com a publicação do artigo O Meu Poeta Futurista, que lançou o poeta Mário de Andrade, no Jornal do Comércio, e o contato com os artistas e intelectuais, como Anita Malfatti e Manuel Bandeira, que participariam na Semana de Arte Moderna, em 1922. Na década de 1920,

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colaborou em vários periódicos, principalmente nos modernistas, como a revista Klaxon, publicou os romances da Trilogia do Exílio e trabalhou na divulgação da estética modernista com os manifestos Pau-Brasil (1924) e Antropofágico (1928). Nos anos seguintes publicou romances, entre eles Serafim Ponte Grande e Marco Zero, além de peças teatrais, dentre as quais se destaca O Rei da Vela. Foi integrante do Partido Comunista, entre 1931 e 1945, e sofreu perseguições políticas pela sua militância. Em 1945 tornou-se livre-docente em Literatura Brasileira na USP, com a tese A Arcádia e a Inconfidência. Publicou, em 1954, o livro de memórias Um Homem Sem Profissão. Destacam-se, em sua obra poética, os livros Pau-Brasil (1925) e Primeiro Caderno do Aluno de Poesia Oswald de Andrade (1927). Oswald de Andrade é um dos nomes fundamentais do Modernismo. A respeito de sua poesia, Haroldo de Campos afirmou: "Oswald recorreu a uma sensibilidade primitiva (como fizeram os cubistas, inspirando-se nas geometrias elementares da arte negra) e a uma poética da concretude ('Somos concretistas', lê-se no 'Manifesto Antropófago') para comensurar a literatura brasileira às novas necessidades de comunicação engendradas pela civilização técnica.". Oswald foi também cronista inovador; criou, em 1912, a crônica da imigração na revista O Pirralho, escrevendo em estilo macarrônico. Ao longo da vida, "registrou e comentou, de modo crítico, praticamente todos os grandes e momentosos temas e problemas do seu e do nosso tempo", segundo Mário da Silva

Brito.7 ANIFESTO PAU-BRASIL

A poesia existe nos fatos. Os casebres de

açafrão e de ocre nos verdes da Favela, sob o azul

cabralino, são fatos estéticos. O Carnaval no Rio é o acontecimento religioso da raça. Pau-Brasil. Wagner

submerge ante os cordões de Botafogo. Bárbaro e nosso. A formação étnica rica. Riqueza vegetal. O

minério. A cozinha. O vatapá, o ouro e a dança.

7 Disponível em:

http://www.jayrus.art.br/Apostilas/LiteraturaBrasileir

a/Modernismo22/OSWALD_DE_ANDRADE_poesi

a.htm

Toda a história bandeirante e a história comercial do Brasil. O lado doutor, o lado

citações, o lado autores conhecidos. Comovente. Rui

Barbosa: uma cartola na Senegâmbia. Tudo revertendo em riqueza. A riqueza dos bailes

e das frases feitas. Negras de Jockey. Odaliscas

no Catumbi. Falar difícil. O lado doutor. Fatalidade do primeiro

branco aportado e dominando politicamente as selvas

selvagens. O bacharel. Não podemos deixar de ser doutos. Doutores. País de dores

anônimas, de doutores anônimos. O Império foi assim. Eruditamos tudo. Esquecemos o gavião de

penacho. A nunca exportação de poesia. A poesia

anda oculta nos cipós maliciosos da sabedoria. Nas

lianas da saudade universitária. Mas houve um estouro nos aprendimentos. Os homens que sabiam tudo se deformaram

como borrachas sopradas. Rebentaram.

A volta à especialização. Filósofos fazendo filosofia, críticos, critica, donas de casa

tratando de cozinha.

A Poesia para os poetas. Alegria dos que não sabem e descobrem.

Tinha havido a inversão de tudo, a invasão de tudo : o teatro de tese e a luta no palco

entre morais e imorais. A tese deve ser decidida em guerra de sociólogos, de homens de lei,

gordos e dourados como Corpus Juris.

Ágil o teatro, filho do saltimbanco. Agil e ilógico. Ágil o romance, nascido da

invenção. Ágil a poesia.

A poesia Pau-Brasil. Ágil e cândida. Como uma criança.

Uma sugestão de Blaise Cendrars : – Tendes as locomotivas cheias, ides partir.

Um negro gira a manivela do desvio rotativo em que estais. O menor descuido vos fará partir na direção

oposta ao vosso destino. Contra o gabinetismo, a prática culta da

vida. Engenheiros em vez de jurisconsultos, perdidos

como chineses na genealogia das idéias. A língua sem arcaísmos, sem erudição.

Natural e neológica. A contribuição milionária de todos

os erros. Como falamos. Como somos.

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Não há luta na terra de vocações acadêmicas. Há só fardas. Os futuristas e os

outros. Uma única luta – a luta pelo caminho. Dividamos: Poesia de importação. E a

Poesia Pau-Brasil, de exportação.

Houve um fenômeno de democratização estética nas cinco partes sábias do mundo.

Instituíra-se o naturalismo. Copiar. Quadros de

carneiros que não fosse lã mesmo, não prestava. A

interpretação no dicionário oral das Escolas de Belas Artes queria dizer reproduzir

igualzinho... Veio a pirogravura. As meninas de todos os lares ficaram artistas. Apareceu a máquina

fotográfica. E com todas as prerrogativas do cabelo grande, da caspa e da misteriosa genialidade de olho virado – o artista

fotógrafo. Na música, o piano invadiu as saletas nuas,

de folhinha na parede. Todas as meninas ficaram

pianistas. Surgiu o piano de manivela, o piano de patas. A pleyela. E a ironia eslava

compôs para a pleyela. Stravinski.

A estatuária andou atrás. As procissões saíram novinhas das fábricas.

Só não se inventou uma máquina de fazer versos – já havia o poeta parnasiano.

Ora, a revolução indicou apenas que a arte voltava para as elites. E as elites começaram

desmanchando. Duas fases: 10) a deformação através do impressionismo, a

fragmentação, o caos voluntário. De Cézanne e Malarmé,

Rodin e Debussy até agora. 20) o lirismo, a apresentação no templo, os materiais, a

inocência construtiva. O Brasil profiteur. O Brasil doutor. E a coincidência da primeira construção

brasileira no movimento de reconstrução geral. Poesia

Pau-Brasil. Como a época é miraculosa, as leis

nasceram do próprio rotamento dinâmico dos fatores destrutivos.

A síntese O equilíbrio

O acabamento de carrosserie A invenção A surpresa

Uma nova perspectiva Uma nova escala.

Qualquer esforço natural nesse sentido será bom. Poesia Pau-Brasil

O trabalho contra o detalhe naturalista – pela síntese; contra a morbidez romântica –

pelo equilíbrio geômetra e pelo acabamento

técnico; contra a cópia, pela invenção e pela surpresa.

Uma nova perspectiva. A outra, a de Paolo Ucello criou o

naturalismo de apogeu. Era uma ilusão ética. Os objetos

distantes não diminuíam. Era uma lei de aparência. Ora, o momento é de reação à

aparência. Reação à cópia. Substituir a perspectiva

visual e naturalista por uma perspectiva de outra

ordem: sentimental, intelectual, irônica, ingênua.

Uma nova escala: A outra, a de um mundo proporcionado e catalogado com letras nos livros, crianças

nos colos. O redame produzindo letras maiores que torres. E as novas formas da indústria, da

viação, da aviação. Postes. Gasômetros Rails.

Laboratórios e oficinas técnicas. Vozes e tics de fios e

ondas e fulgurações. Estrelas familiarizadas com negativos fotográficos. O

correspondente da surpresa física em arte.

A reação contra o assunto invasor, diverso da finalidade. A peça de tese era um arranjo

monstruoso. O romance de idéias, uma mistura. O quadro histórico, uma

aberração. A escultura eloquente, um pavor sem sentido.

Nossa época anuncia a volta ao sentido puro.

Um quadro são linhas e cores. A estatuária são volumes sob a luz.

A Poesia Pau-Brasil é uma sala de jantar domingueira, com passarinhos cantando na

mata resumida das gaiolas, um sujeito magro

compondo uma valsa para flauta e a Maricota lendo o

jornal. No jornal anda todo o presente. Nenhuma fórmula para a contemporânea

expressão do mundo. Ver com olhos livres. Temos a base dupla e presente – a floresta e

a escola. A raça crédula e dualista e a geometria,

a algebra e a química logo depois da mamadeira e do chá de erva-doce. Um

misto de "dorme nenê que o bicho vem pegá" e de equações.

Uma visão que bata nos cilindros dos moinhos, nas turbinas elétricas; nas usinas

produtoras,

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nas questões cambiais, sem perder de vista o Museu Nacional. Pau-Brasil.

Obuses de elevadores, cubos de arranha-céus e a sábia preguiça solar. A reza. O

Carnaval. A energia íntima. O sabiá. A hospitalidade um

pouco sensual, amorosa. A saudade dos pajés e

os campos de aviação militar. Pau-Brasil. O trabalho da geração futurista foi

ciclópico. Acertar o relógio império da literatura nacional.

Realizada essa etapa, o problema é outro. Ser regional e puro em sua época.

O estado de inocência substituindo o estada de graça que pode ser uma atitude do

espírito. O contrapeso da originalidade nativa para

inutilizar a adesão acadêmica. A reação contra todas as indigestões de sabedoria. O melhor de nossa tradição

lírica. O melhor de nossa demonstração moderna.

Apenas brasileiros de nossa época. O necessário de química, de mecânica, de

economia e de balística. Tudo digerido. Sem meeting

cultural. Práticos. Experimentais. Poetas. Sem

reminiscências livrescas. Sem comparações de apoio. Sem pesquisa etimológica. Sem

ontologia. Bárbaros, crédulos, pitorescos e meigos.

Leitores de jornais. Pau-Brasil. A floresta e a escola.

O Museu Nacional. A cozinha, o minério e a dança. A vegetação. Pau-Brasil.

OSWALD DE ANDRADE (Correio da

Manhã, 18 de março de 1924.)

MANIFESTO ANTROPÓFAGO

Só a Antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente.

Única lei do mundo. Expressão mascarada de todos os individualismos, de todos os

coletivismos. De todas as religiões. De todos os tratados de paz.

Tupi, or not tupi that is the question. Contra todas as catequeses. E contra a mãe

dos Gracos. Só me interessa o que não é meu. Lei do

homem. Lei do antropófago. Estamos fatigados de todos os maridos católicos suspeitosos postos em drama.

Freud acabou com o enigma mulher e com outros sustos da psicologia impressa.

O que atropelava a verdade era a roupa, o impermeável entre o mundo interior e o

mundo exterior. A reação contra o homem vestido. O cinema americano informará.

Filhos do sol, mãe dos viventes. Encontrados e amados ferozmente, com

toda a hipocrisia da saudade, pelos imigrados, pelos traficados e pelos touristes. No país da cobra grande.

Foi porque nunca tivemos gramáticas, nem coleções de velhos vegetais. E nunca

soubemos o que era urbano, suburbano, fronteiriço e continental. Preguiçosos no

mapa-múndi do Brasil. Uma consciência participante, uma rítmica

religiosa. Contra todos os importadores de

consciência enlatada. A existência palpável da vida. E a mentalidade pré-lógica para o

Sr. Lévy-Bruhl estudar. Queremos a Revolução Caraiba. Maior que

a Revolução Francesa. A unificação de todas as revoltas eficazes na direção do homem. Sem n6s a Europa não teria sequer a sua pobre declaração dos direitos do homem.

A idade de ouro anunciada pela América. A idade de ouro. E todas as girls.

Filiação. O contato com o Brasil Caraíba. Ori Villegaignon print terre. Montaig-ne. O

homem natural. Rousseau. Da Revolução Francesa ao Romantismo, à Revolução

Bolchevista, à Revolução Surrealista e ao bárbaro tecnizado de Keyserling.

Caminhamos.. Nunca fomos catequizados. Vivemos

através de um direito sonâmbulo. Fizemos Cristo nascer na Bahia. Ou em Belém do

Pará. Mas nunca admitimos o nascimento da

lógica entre nós. Contra o Padre Vieira. Autor do nosso

primeiro empréstimo, para ganhar comissão. O rei-analfabeto dissera-lhe :

ponha isso no papel mas sem muita lábia. Fez-se o empréstimo. Gravou-se o açúcar

brasileiro. Vieira deixou o dinheiro em Portugal e nos trouxe a lábia.

O espírito recusa-se a conceber o espírito sem o corpo. O antropomorfismo.

Necessidade da vacina antropofágica. Para o equilíbrio contra as religiões de

meridiano. E as inquisições exteriores. Só podemos atender ao mundo orecular.

Tínhamos a justiça codificação da vingança. A ciência codificação da Magia.

Antropofagia. A transformação permanente do Tabu em totem.

Contra o mundo reversível e as idéias objetivadas. Cadaverizadas. O stop do

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pensamento que é dinâmico. O indivíduo vitima do sistema. Fonte das injustiças

clássicas. Das injustiças românticas. E o esquecimento das conquistas interiores. Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros.

Roteiros. Roteiros. Roteiros. O instinto Caraíba.

Morte e vida das hipóteses. Da equação eu parte do Cosmos ao axioma Cosmos parte

do eu. Subsistência. Conhecimento. Antropofagia.

Contra as elites vegetais. Em comunicação com o solo.

Nunca fomos catequizados. Fizemos foi Carnaval. O índio vestido de senador do

Império. Fingindo de Pitt. Ou figurando nas óperas de Alencar cheio de bons

sentimentos portugueses. Já tínhamos o comunismo. Já tínhamos a

língua surrealista. A idade de ouro. Catiti Catiti Imara Notiá Notiá Imara

Ipeju* A magia e a vida. Tínhamos a relação e a

distribuição dos bens físicos, dos bens morais, dos bens dignários. E sabíamos

transpor o mistério e a morte com o auxílio de algumas formas gramaticais.

Perguntei a um homem o que era o Direito. Ele me respondeu que era a garantia do exercício da possibilidade. Esse homem

chamava-se Galli Mathias. Comia. Só não há determinismo onde há mistério.

Mas que temos nós com isso? Contra as histórias do homem que

começam no Cabo Finisterra. O mundo não datado. Não rubricado. Sem Napoleão. Sem

César. A fixação do progresso por meio de

catálogos e aparelhos de televisão. Só a maquinaria. E os transfusores de sangue.

Contra as sublimações antagônicas. Trazidas nas caravelas.

Contra a verdade dos povos missionários, definida pela sagacidade de um

antropófago, o Visconde de Cairu: – É mentira muitas vezes repetida.

Mas não foram cruzados que vieram. Foram fugitivos de uma civilização que estamos

comendo, porque somos fortes e vingativos como o Jabuti.

Se Deus é a consciênda do Universo Incriado, Guaraci é a mãe dos viventes. Jaci

é a mãe dos vegetais. Não tivemos especulação. Mas tínhamos adivinhação. Tínhamos Política que é a ciência da distribuição. E um sistema

social-planetário.

As migrações. A fuga dos estados tediosos. Contra as escleroses urbanas. Contra os Conservatórios e o tédio especulativo.

De William James e Voronoff. A transfiguração do Tabu em totem.

Antropofagia. O pater famílias e a criação da Moral da

Cegonha: Ignorância real das coisas+ fala de imaginação + sentimento de autoridade

ante a prole curiosa. É preciso partir de um profundo ateísmo

para se chegar à idéia de Deus. Mas a caraíba não precisava. Porque tinha

Guaraci. O objetivo criado reage com os Anjos da

Queda. Depois Moisés divaga. Que temos nós com isso?

Antes dos portugueses descobrirem o Brasil, o Brasil tinha descoberto a

felicidade. Contra o índio de tocheiro. O índio filho de

Maria, afilhado de Catarina de Médicis e genro de D. Antônio de Mariz. A alegria é a prova dos nove.

No matriarcado de Pindorama. Contra a Memória fonte do costume. A

experiência pessoal renovada. Somos concretistas. As idéias tomam conta,

reagem, queimam gente nas praças públicas. Suprimarnos as idéias e as outras

paralisias. Pelos roteiros. Acreditar nos sinais, acreditar nos instrumentos e nas

estrelas. Contra Goethe, a mãe dos Gracos, e a Corte

de D. João VI. A alegria é a prova dos nove.

A luta entre o que se chamaria Incriado e a Criatura – ilustrada pela contradição

permanente do homem e o seu Tabu. O amor cotidiano e o modusvivendi

capitalista. Antropofagia. Absorção do inimigo sacro. Para transformá-lo em totem. A humana aventura. A terrena finalidade. Porém, só as puras elites

conseguiram realizar a antropofagia carnal, que traz em si o mais alto sentido da vida e

evita todos os males identificados por Freud, males catequistas. O que se dá não é

uma sublimação do instinto sexual. É a escala termométrica do instinto

antropofágico. De carnal, ele se torna eletivo e cria a amizade. Afetivo, o amor.

Especulativo, a ciência. Desvia-se e transfere-se. Chegamos ao aviltamento. A

baixa antropofagia aglomerada nos pecados de catecismo – a inveja, a usura, a calúnia, o

assassinato. Peste dos chamados povos cultos e cristianizados, é contra ela que

estamos agindo. Antropófagos. Contra Anchieta cantando as onze mil

virgens do céu, na terra de Iracema, – o

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patriarca João Ramalho fundador de São Paulo.

A nossa independência ainda não foi proclamada. Frape típica de D. João VI: – Meu filho, põe essa coroa na tua cabeça,

antes que algum aventureiro o faça! Expulsamos a dinastia. É preciso expulsar o espírito bragantino, as ordenações e o rapé

de Maria da Fonte. Contra a realidade social, vestida e

opressora, cadastrada por Freud – a realidade sem complexos, sem loucura, sem

prostituições e sem penitenciárias do matriarcado de Pindorama.

OSWALD DE ANDRADE Em Piratininga Ano 374 da Deglutição do Bispo Sardinha." (Revista de Antropofagia, Ano 1, No. 1,

maio de 1928.)8 POEMAS DE OSWALD DE ANDRADE

Canto de Regresso à Patria Minha terra tem palmares Onde gorjeia o mar Os pássaros daqui Não cantam como os de lá Minha terra tem mais rosas E quase que mais amores Minha terra tem mais ouro Minha terra tem mais terra Ouro terra amor e rosas Eu quero tudo de lá Não permita Deus que eu morra Sem que volte para lá Não permita Deus que eu morra Sem que volte para São Paulo Sem que veja a Rua 15 E o progresso de São Paulo

Pero Vaz de Caminha

A descoberta Seguimos nosso caminho por este mar de longo Até a oitava da Páscoa Topamos aves E houvemos vista de terra

8 Disponível em:

http://www.lumiarte.com/luardeoutono/oswald/manif

antropof.html

Os selvagens Mostraram-lhes uma galinha Quase haviam medo dela E não queriam por a mão E depois a tomaram como espantados Primeiro chá Depois de dançarem Diogo Dias Fez o salto real As meninas da gare Eram três ou quatro moças bem moças e bem gentis Com cabelos mui pretos pelas espáduas E suas vergonhas tão altas e tão saradinhas Que de nós as muito bem olharmos Não tínhamos nenhuma vergonha

Pronominais Dê-me um cigarro Diz a gramática Do professor e do aluno E do mulato sabido Mas o bom negro e o bom branco Da Nação Brasileira Dizem todos os dias Deixa disso camarada Me dá um cigarro Vício na fala Para dizerem milho dizem mio Para melhor dizem mió Para pior pió Para telha dizem teia Para telhado dizem teiado E vão fazendo telhados O gramático Os negros discutiam Que o cavalo sipantou Mas o que mais sabia Disse que era Sipantarrou. O capoeira — Qué apanhá sordado? — O quê? — Qué apanhá? Pernas e cabeças na calçada. Erro de português Quando o português chegou Debaixo de uma bruta chuva Vestiu o índio Que pena! Fosse uma manhã de sol O índio tinha despido O português. Metalúrgica

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1300° à sombra dos telheiros retos 12000 cavalos invisíveis pensando 40 000 toneladas de níquel amarelo Para sair do nível das águas esponjosas E uma estrada de ferro nascendo do solo Os fornos entroncados Dão o gusa e a escória A refinação planta barras E lá embaixo os operários Forjam as primeiras lascas de aço Bonde O transatlântico mesclado Dlendlena e esguicha luz Postretutas e famias sacolejam a europa curvou-se ante o brasil 7 a 2 3 a 1 A injustiça de cette 4 a 0 2 a 1 3 a 1 E meia dúzia na cabeça dos portugueses meus oito anos Oh que saudades que eu tenho Da aurora de minha vida Das horas De minha infância Que os anos não trazem mais Naquele quintal de terra Da Rua de Santo Antônio Debaixo da bananeira Sem nenhum laranjais Eu tinha doces visões Da cocaína da infância Nos banhos de astro-rei Do quintal de minha ânsia A cidade progredia Em roda de minha casa Que os anos não trazem mais Debaixo da bananeira Sem nenhum laranjais Relógio As coisas são As coisas vêm As coisas vão As coisas O Hierofante Não há possibilidade de viver Com essa gente Nem com nenhuma gente A desconfiança te cercará como um escudo Pinta o escaravelho

De vermelho E tinge os rumos da madrugada Virão de longe as multidões suspirosas Escutar o bezerro plangente Jogo do Bicho Mário de Andrade 500 réis Alcântara Prudente Manuel Bandeira Ribeiro Couto Sérgio Hollanda Couto de Barros

CARLOS DRUMMOND DE

ANDRADE9

BIOGRAFIA

Carlos Drummond de Andrade nasceu em Itabira do Mato Dentro - MG, em 31 de outubro de 1902. De uma família de fazendeiros em decadência, estudou na cidade de Belo Horizonte e com os jesuítas no Colégio Anchieta de Nova Friburgo RJ, de onde foi expulso por "insubordinação mental". De novo em Belo Horizonte, começou a carreira de escritor como colaborador do Diário de Minas, que aglutinava os adeptos locais do incipiente movimento modernista mineiro.

Ante a insistência familiar para que obtivesse um diploma, formou-se em farmácia na cidade de Ouro Preto em 1925.

9 http://www.fabiorocha.com.br/drummond.htm (17

de 27)9/10/2005 20:23:14 A Magia da Poesia -

Carlos Drummond de Andrade

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Fundou com outros escritores A Revista, que, apesar da vida breve, foi importante veículo de afirmação do modernismo em Minas. Ingressou no serviço público e, em 1934, transferiu-se para o Rio de Janeiro, onde foi chefe de gabinete de Gustavo Capanema, ministro da Educação, até 1945. Passou depois a trabalhar no Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional e se aposentou em 1962. Desde 1954 colaborou como cronista no Correio da Manhã e, a partir do início de 1969, no Jornal do Brasil.

O modernismo não chega a ser dominante nem mesmo nos primeiros livros de Drummond, Alguma poesia (1930) e Brejo das almas (1934), em que o poema-piada e a descontração sintática pareceriam revelar o contrário. A dominante é a individualidade do autor, poeta da ordem e da consolidação, ainda que sempre, e fecundamente, contraditórias. Torturado pelo passado, assombrado com o futuro, ele se detém num presente dilacerado por este e por aquele, testemunha lúcida de si mesmo e do transcurso dos homens, de um ponto de vista melancólico e cético. Mas, enquanto ironiza os costumes e a sociedade, asperamente satírico em seu amargor e desencanto, entrega-se com empenho e requinte construtivo à comunicação estética desse modo de ser e estar. Vem daí o rigor, que beira a obsessão. O poeta trabalha sobretudo com o tempo, em sua cintilação cotidiana e subjetiva, no que destila do corrosivo. Em Sentimento do mundo (1940), em José (1942) e sobretudo em A rosa do povo (1945), Drummond lançou-se ao encontro da história contemporânea e da experiência coletiva, participando, solidarizando-se social e politicamente, descobrindo na luta a explicitação de sua mais íntima apreensão para com a vida como um todo. A surpreendente sucessão de obras-primas, nesses livros, indica a plena maturidade do poeta, mantida sempre.

Várias obras do poeta foram traduzidas para o espanhol, inglês, francês, italiano, alemão, sueco, tcheco e outras línguas. Drummond foi seguramente, por muitas décadas, o poeta mais influente da literatura brasileira em seu tempo, tendo também publicado diversos livros em prosa.

Em mão contrária traduziu os seguintes autores estrangeiros: Balzac (Les Paysans, 1845; Os camponeses), Choderlos de Laclos (Les Liaisons dangereuses, 1782; As relações perigosas), Marcel Proust (La Fugitive, 1925; A fugitiva), García Lorca (Doña Rosita, la soltera o el lenguaje de lãs

flores, 1935; Dona Rosita, a solteira), François Mauriac (Thérèse Desqueyroux, 1927; Uma gota de veneno) e Molière (Les Fourberies de Scapin, 1677; Artimanhas de Scapino).

Alvo de admiração irrestrita, tanto pela obra quanto pelo seu comportamento como escritor, Carlos Drummond de Andrade morreu no Rio de Janeiro RJ, no dia 17 de agosto de 1987, poucos dias após a morte de sua filha única, a cronista Maria Julieta Drummond de Andrade.

POESIAS PARA ANÁLISE NÃO SE MATE Carlos, sossegue, o amor é isso que você está vendo: hoje beija, amanhã não beija, depois de amanhã é domingo e segunda-feira ninguém sabe o que será. Inútil você resistir ou mesmo suicidar-se. Não se mate, oh não se mate, reserve-se todo para as bodas que ninguém sabe quando virão, se é que virão. O amor, Carlos, você telúrico, a noite passou em você, e os recalques se sublimando, lá dentro um barulho inefável, rezas, vitrolas, santos que se persignam, anúncios do melhor sabão, barulho que ninguém sabe de quê, praquê. Entretanto você caminha melancólico e vertical. Você é a palmeira, você é o grito que ninguém ouviu no teatro e as luzes todas se apagam. O amor no escuro, não, no claro, é sempre triste, meu filho, Carlos, mas não diga nada a ninguém, ninguém sabe nem saberá. Carlos Drummond de Andrade NO MEIO DO CAMINHO No meio do caminho tinha uma pedra tinha uma pedra no meio do caminho

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tinha uma pedra no meio do caminho tinha uma pedra Nunca me esquecerei desse acontecimento na vida de minhas retinas tão fatigadas. Nunca me esquecerei que no meio do caminho tinha uma pedra tinha uma pedra no meio do caminho no meio do caminho tinha uma pedra Carlos Drummond de Andrade MÃOS DADAS Não serei o poeta de um mundo caduco. Também não cantarei o mundo futuro. Estou preso à vida e olho meus companheiros. Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças. Entre eles, considero a enorme realidade. O presente é tão grande, não nos afastemos, Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas. Não serei o cantor de uma mulher, de uma história, não direi os suspiros ao anoitecer, a paisagem vista da janela, não distribuirei entorpecentes ou cartas de suicida, não fugirei para as ilhas nem serei raptado por serafins. O tempo é a minha matéria, o tempo presente, os homens presentes, a vida presente. Carlos Drummond de Andrade QUADRILHA João amava Teresa que amava Raimundo que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili que não amava ninguém. João foi para os Estados Unidos, Teresa para o convento, Raimundo morreu de desastre, Maria ficou para tia, Joaquim suicidou-se e Lili casou com J. Pinto Fernandes que não tinha entrado na história. Carlos Drummond de Andrade

OS OMBROS SUPORTAM O MUNDO Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus. Tempo de absoluta depuração. Tempo em que não se diz mais: meu amor.

Porque o amor resultou inútil. E os olhos não choram. E as mãos tecem apenas o rude trabalho. E o coração está seco. Em vão mulheres batem à porta, não abrirás. Ficaste sozinho, a luz apagou-se, mas na sombra teus olhos resplandecem enormes. És todo certeza, já não sabes sofrer. E nada esperas de teus amigos. Pouco importa venha a velhice, que é a velhice? Teu ombros suportam o mundo e ele não pesa mais que a mão de uma criança. As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios provam apenas que a vida prossegue e nem todos se libertaram ainda. Alguns, achando bárbaro o espetáculo, prefeririam (os delicados) morrer. Chegou um tempo em que não adianta morrer. Chegou um tempo em que a vida é uma ordem. A vida apenas, sem mistificação. Carlos Drummond de Andrade

MANUEL BANDEIRA

DADOS SOBRE O AUTOR

Manuel Carneiro de Souza Bandeira Filho nasceu no Recife (Pernambuco) em 1886 e morreu no Rio de Janeiro em 1968. Passou sua infância no Recife, tendo se mudado

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para o Rio de Janeiro com sua família quando adolescente. Veio para São Paulo cursar Escola Politécnica que abandonou em 1904, aos dezoito anos, por causa da tuberculose. Em 1912, estando na Suíça a tratamento, familiarizase com a poesia simbolista e pós-simbolista em língua francesa. Esse contato influenciou muito sua produção poética, notadamente seus primeiros livros: Carnaval e Cinza das Horas. Voltando definitivamente para o Rio de Janeiro, trava amizade com escritores como Ronald de Carvalho, Graça Aranha e outros que, junto com ele, participam das mudanças literárias que culminaram com o Modernismo. Empregando o verso livre (sem métrica) e branco (sem rima), além da ironia, foi escolhido pelos participantes da Semana de Arte Moderna como o “São João Batista” do grupo. Não participou pessoalmente da Semana por discordar do tom destruidor do grupo, porém seu poema Os Sapos, nítida crítica aos parnasianos, foi apresentado na primeira noite do evento por Ronald de Carvalho, sob vaias. Sua vida esteve sempre ligada à literatura, quer como autor de poesias, crônicas literárias, obras didáticas de nível superior e traduções, quer como professor do colégio Pedro II e da Universidade do Brasil. CARACTERÍSTICAS DE SUAS OBRAS Manuel Bandeira difere de seus parceiros da 1a fase do Modernismo brasileiro em virtude de ter-se voltado para sua realidade interior e tentar explicar-se. Sua vida foi marcada pela tuberculose mal-curada e pela perda de seu pais e irmãos, entre 1918 e 1922, que lhe parece ter dado um desejo de desertar da vida. Sua obra confunde-se com sua existência, levando-nos a identificar o “eu-lírico” de seus poemas com o próprio poeta. Libertinagem é composto por 38 poemas, sendo dois em francês. É nesta obra que Bandeira configura-se como um autor verdadeiramente modernista, quer nos temas, quer na forma. Os temas são os mais variados, tais como: — A infância, as pessoas ligadas a ela e sua cidade natal, que servem de refúgio ao “eu-lírico” (poeta descontente e infeliz); esses elementos aparecem como lenitivo de sua dor no presente. Poemas: O Anjo da Guarda, Porquinho-da-Índia, Evocação do Recife, Profundamente, Irene no Céu,

O Impossível Carinho, Poema de Finados. — Imagens brasileiras, que evocam lugares, tipos populares e a própria linguagem coloquial do Brasil, transformando o cotidiano em matéria poética. Poemas: Mangue, Evocação do Recife, Lenda Brasileira, Cunhantã, Camelôs, Belém do Pará, Poema tirado de uma notícia de jornal, Macumba de Pai Zusé e Pensão Familiar. — Anseio de liberdade vital, onde o “eu-lírico” (poeta melancólico, solitário e irônico) extravasa seus ideais libertários quer de sentimentos e desejos vitais, quer estéticos. Poemas: Não sei dançar, Na boca, Vou-me embora pra Pasárgada, Poética, Comentário Musical e O Último Poema. — Visão desiludida e irônica da vida, mostrando uma melancolia profunda que gera, às vezes, uma visão surrealista com final inesperado ou um desejo de mudança. Poemas: Não sei dançar, O Cacto, Pneumotórax, Comentário Musical, Chambre Vide, Banheur Lyrigue, Poema tirado de uma notícia de jornal, A Virgem Maria, O Major, Oração a Terezinha do Menino Jesus, Andorinha, Noturno da Parada Amorim, Noturno da Rua da Lapa, O Impossível Carinho, Poema de Finados e O Último Poema. — Amorosos, ora apresentando sentimentos puros e inocentes, ora apresentando imagens femininas eróticas. Poemas: Mulheres, Porquinho-da-Índia, Tereza, Madrigal tão engraçadinho, Na Boca e Palinódia. Em relação à forma, Bandeira não emprega nenhuma métrica padrão, variando da redondilha maior em Vou-me embora pra Pasárgada até versos de dezessete sílabas poéticas como em Namorados; dentro de um mesmo poema percebem-se inúmeras variações. Há em alguns textos a preocupação com a disposição gráfica, como em Evocação do Recife. Tal preocupação não é revelada em relação à rima, porém sua maior expressão está na força da palavra. Esta é coloquial, cotidiana, mas empregada com brilhantismo, não desprezando seu aspecto sonoro, o que acaba por fornecer ao poema um ritmo pessoal e harmonioso que, somado à emoção, assemelha-se a uma canção.

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POÉTICA Estou farto do lirismo comedido Do lirismo bem comportado Do lirismo funcionário público com livro de ponto expediente protocolo e manifestações de apreço ao Sr. director. Estou farto do lirismo que pára e vai averiguar no dicionário o cunho vernáculo de um vocábulo. Abaixo os puristas Todas as palavras sobretudo os barbarismos universais Todas as construções sobretudo as sintaxes de excepção Todos os ritmos sobretudo os inumeráveis Estou farto do lirismo namorador Político Raquítico Sifilítico De todo lirismo que capitula ao que quer que seja fora de si mesmo De resto não é lirismo Será contabilidade tabela de co-senos secretário do amante exemplar com cem modelos de cartas e as diferentes maneiras de agradar às mulheres, etc Quero antes o lirismo dos loucos O lirismo dos bêbedos O lirismo difícil e pungente dos bêbedos O lirismo dos clowns de Shakespeare - Não quero mais saber do lirismo que não é libertação. VOU-ME EMBORA PRA PASÁRGADA Vou-me embora pra Pasárgada Lá sou amigo do rei Lá tenho a mulher que eu quero Na cama que escolherei Vou-me embora pra Pasárgada Vou-me embora pra Pasárgada Aqui eu não sou feliz Lá a existência é uma aventura De tal modo inconsequente Que Joana a Louca de Espanha Rainha e falsa demente Vem a ser contraparente Da nora que eu nunca tive

E como farei ginástica Andarei de bicicleta Montarei em burro brabo Subirei no pau-de-sebo Tomarei banhos de mar! E quando estiver cansado Deito na beira do rio Mando chamar a mãe-d'água Pra me contar as histórias Que no tempo de eu menino Rosa vinha me contar Vou-me embora pra Pasárgada Em Pasárgada tem tudo É outra civilização Tem um processo seguro De impedir a concepção Tem telefone automático Tem alcalóide à vontade Tem prostitutas bonitas Para a gente namorar E quando eu estiver mais triste Mas triste de não ter jeito Quando de noite me der Vontade de me matar - Lá sou amigo do rei - Terei a mulher que eu quero Na cama que escolherei Vou-me embora pra Pasárgada