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  • Organizador

    Sabrina Sedlmayer

    A produo literria de Raduan Nassar

    Belo Horizonte

    FALE/UFMG

    2008

    Diretor da Faculdade de Letras

    Jacyntho Jos Lins Brando

    Vice-Diretor

    Wander Emediato de Souza

    Comisso editorial Eliana Loureno de Lima Reis Elisa Amorim Vieira Lucia Castello Branco Maria Cndida Trindade Costa de Seabra Maria Ins de Almeida Snia Queiroz

    Capa e projeto grfico Glria Campos Mang Ilustrao e Design Grfico

    Reviso e normalizao

    Emanoela Cristina Lima

    Formatao Emanoela Cristina Lima Anderson Freitas

    Reviso de provas Anderson Borges Emanoela Cristina Lima Matheus Batista dos Reis

    Endereo para correspondncia FALE/UFMG Setor de Publicaes Av. Antnio Carlos, 6627 sala 2031 31270-901 Belo Horizonte/MG Telefax: (31) 3409-6072 e-mail: [email protected]

  • Sumrio

    Apresentao . 5

    Sabrina Sedlmayer

    A razo amante ou a escrava das paixes? Reflexes sobre Raduan Nassar e David Hume . 6

    Matheus Batista dos Reis

    A colheita impossvel: breve estudo sobre a memria em Raduan Nassar e Herberto Helder . 17

    Anderson Borges

    O germe do outro . 30

    Luiza Strambi

    Entre experincia e tradio: um descompasso em Lavoura Arcaica . 35

    Lara Spagnol

    O amor como dispositivo do universo . 44

    Assis Benevenuto Vidigal

    Entrevista com Aluzio Abranches, diretor do filme Um copo de clera . 52

    Assis Benevenuto Vidigal

  • 5

    Apresentao

    Sabrina Sedlmayer

    Esta publicao constituda por cinco ensaios resultantes de estudos sobre a obra literria de Raduan Nassar. Se inicialmente o objetivo da disciplina A produo literria de Raduan Nassar, ofertada na Graduao do Curso de Letras, no segundo semestre de 2007, era disponibilizar uma viso crtica e comparativista dos contos, novela e romance desse singular escritor paulista, logo no primeiro ms foi necessrio uma reavaliao e remanejamento dos planos e esboos iniciais. Primeiro porque a pequena turma impulsionou e potencializou as discusses. Em segundo, o ambiente da sala de aula mais se assemelhava a uma oficina (no sentido de labor, de lavoura, poderamos acrescentar), e demandava, silenciosamente, a passagem da potncia ao ato.

    As reflexes semanais no cabiam mais nas engessadas avaliaes e nos burocrticos trabalhos monogrficos de final de curso. Tratava-se, ento, de um encontro. E cabia a mim, leitora de Nassar h mais de quinze anos (foi aqui na FALE que iniciei minha pesquisa em 1992), escutar, ponderar, avaliar, provocar pontos de vistas diferentes e, sobretudo, oferecer leituras crticas advindas da teoria literria, filosofia, esttica, literatura portuguesa, adaptaes cinematogrficas, enfim, intercessores capazes de agudizar as reflexes.

    O resultado desses meses no se resume, sabemos, a esta edio. Mas, sinedoquicamente, apresenta lampejos e uma slida crena de que o ambiente acadmico possibilita arremessos, como este.

    6

    A razo amante ou a escrava das paixes? Reflexes sobre Raduan Nassar e David Hume

    Matheus Batista dos Reis

    Introduo

    A vastido da obra de Raduan Nassar inversamente proporcional sua densidade e complexidade. Os contos, a novela Um copo de Clera e o romance Lavoura Arcaica so trabalhos sem precedentes na literatura brasileira, tanto em termos estticos quanto em termos temticos. Ao ler a produo nassariana at o momento, possvel encontrar reverberaes das primeiras obras nas posteriores. como se no processo de escritura, Raduan Nassar utilizasse os primeiros contos como laboratrio para Lavoura Arcaica e Um copo de clera. Essa experimentao vai alm do campo de linguagem, sendo possvel identificar consonncias relativas ao assunto.

    Um dos temas que perpassa toda produo nassariana o abalroamento entre razo e paixo. A semente desse conflito est no conto Ventre Seco cuja primeira verso data de 1970. Este conto aparentemente uma carta, endereada Paula. Uma carta despedida, em que o remetente enumera uma srie de conflitos e/ou justificativas para o rompimento. Um dos pontos que o remetente aborda o pretenso lugar de onde Paula proferia seus discursos, a saber, um lugar privilegiado de quem fala com o aval da razo. O remetente critica a inabilidade de Paula em perceber que a razo mais humilde do que pensam ela e os racionalistas. Essa crtica vem carregada de um tom pedaggico, fazendo com que a relao remetente/Paula seja similar relao chacareiro/jornalista em Um copo de Clera.

    Em Lavoura Arcaica, a pedagogia se d num sentido inverso. No sermo paterno sobre o tempo1 existe a 1 Cf. cap. 9.

  • 7

    preocupao em suprimir as paixes atravs de um manejo racional do tempo. No h, portanto, lugar para as paixes. Diz o pai: [...] o mundo das paixes o mundo do desequilbrio, contra ele que devemos esticar o arame de nossas cerca. (NASSAR, 2002b, p. 56).

    Contra esse suposto desequilibro, Andr desfere seu discurso passional, mas que guarda uma conscincia reflexiva que o descola do mbito meramente passional. O discurso de Andr a um s tempo passional e racional fazendo com que a razo trabalhe a favor da paixo. Andr evoca uma racionalidade distinta da racionalidade paterna, uma racionalidade pulsante que no se ope s paixes, sendo-lhe antes, favorvel.

    O propsito do presente trabalho pensar um embate racional na novela Um copo de clera. Em minha hiptese, o que estaria em jogo em Um copo de clera no seria uma tenso entre razo e paixo simplesmente; mas uma tenso entre dois tipos distintos de razo: uma razo que incorpora as paixes e outra que no as incorpora.

    E justamente essa razo pulsante que estaria presente no discurso do chacareiro na obra em questo. O chacareiro domina e utiliza o discurso racional-passional. E s na medida em que seu discurso guarda uma parcela de racionalidade que ele pode se opor ao discurso pretensamente racional da jornalista. A desconstruo do discurso da jornalista o pice daquilo que proponho como pedagogia passional, uma pedagogia que ponha no discurso pretensamente racional um pouco desta matria ardente2 que so as paixes.

    A oposio entre razo e paixo comum tanto na literatura quanto na filosofia. Filsofos como Descartes3, Pascal4 e David Hume debruaram-se sobre o embate entre

    2 NASSAR, 2001, p. 74.

    3 Cf. DESCARTES. As paixes da alma, 1999.

    4 Cf. PASCAL. Pensamentos, 2001.

    8

    razo e paixo. Para esse artigo, escolhi o filsofo escocs David Hume (1711-1776) cuja anlise do tema encontra-se no livro II do Tratado da Natureza Humana5. A anlise humeana apresenta caractersticas interessantes oferecendo elementos pertinentes para a leitura de Um copo de clera.

    Entretanto, h um diferena crucial entre a relao que a razo estabelece com as paixes nos dois autores. De um lado, Hume defende uma razo escrava das paixes que permanece num estado passivo frente s paixes. Por outro lado, em Raduan Nassar existe uma razo que incorpora as paixes sendo mais viva e, sobretudo, guardando um aspecto ativo em suas atividades. Reitero que o propsito deste ensaio ir alm da tradicional dicotomia razo/paixo, identificando um novo conceito de razo. Alm disso, pretendo identificar semelhanas e diferenas entre a literatura nassariana e o pensamento humeano.6

    A razo escrava das paixes

    David Hume foi um filsofo escocs defensor do empirismo, uma doutrina que acredita que todo conhecimento se fundamenta na experincia. Na teoria humeana, as idias presentes na mente humana so meras cpias das impresses sensveis. A diferena das idias para as prprias impresses sensveis que essas possuem maior vivacidade que aquelas.

    A anlise humeana sobre a relao razo versus paixo est presente numa seo do Tratado denominada Dos motivos que influenciam a vontade7. De fato, Hume defende que no h contrariedade entre razo e paixo, pois elas no se opem. Razo e paixo afetam a mente humana de

    5 Doravante referido como Tratado.

    6 Raduan Nassar concluiu o curso de Filosofia na Universidade de So Paulo. Portanto, certamente ele leu autores como Descartes, Pascal e Hume. Entretanto, no pretendo especular sobre as leituras filosficas de Raduan Nassar. A escolha de David Hume se deu unicamente pelo fato de apresentar um bom caminho para a reflexo pretendida.

    7 Tratado, livro II, parte III, seo III.

  • 9

    maneiras diferentes. Enquanto mbil da ao, a razo nunca poder ser solicitada, pois opera em campos que so incapazes de afetar a mente humana produzindo qualquer volio. So duas as maneiras que a razo trabalha.

    Por um lado, a razo pode operar em raciocnios demonstrativos como nas equaes matemticas, por exemplo. Nesses casos, est em jogo uma mera relao entre idias, inaptas a produzir volio.

    Por outro lado, a razo pode operar descobrindo relaes causais entre objetos. Atravs da razo e da experincia descobre-se, por exemplo, que o fogo pode causar dor quando em contato direto com a pele, ou prazer se estiver em uma lareira num dia frio. Entretanto, no a descoberta dessa relao causal fogo/queimadura ou fogo/aquecimento que gera a averso ou propenso ao fogo. Se os objetos fossem completamente indiferentes ao homem, pouco importaria a descoberta da relao causal entre eles. So os objetos que afetam a mente humana e a perspectiva de dor ou prazer apresentada por esses objetos que movem o sujeito em direo a eles ou no.

    Nota-se que a ao, na viso humeana, fruto da imediatidade da afetao dos sentidos. Dessa forma, Hume diz que as paixes so existncias originais, ou seja, imediatas. Uma paixo no cpia de alguma outra coisa, mas a prpria atualidade da coisa. Quando tenho raiva, estou realmente tomado por essa paixo (HUME, 2001, p.451). Nesse sentido, no pode haver oposio entre razo e paixo, uma vez que operam em diferentes campos da mente humana; a primeira encontrando relaes causais entre objetos e a segunda mobilizando a ao.

    A relao entre razo e paixo se d enquanto complementaridade, sempre com primazia total das paixes. A mxima humeana que define esse liame a seguinte: A razo , e deve ser, apenas a escrava das paixes, e no pode aspirar outra funo alm de servir e obedecer a ela. (grifo meu). (Tratado, Livro II, Parte III, Seo III, 4).

    10

    Ao estabelecer a razo apenas como escrava das paixes, Hume restringe a autonomia da razo, uma vez que ela s solicitada quando uma paixo clama. E ainda assim, deve obedecer irrestritamente a essa paixo. A razo cega, ou antes, s enxerga aquilo que determinada paixo lhe permite enxergar.

    A razo amante das paixes

    do lugar de quem conhece a impossibilidade da oposio entre razo e paixo que o chacareiro de Um copo de clera utiliza a razo de forma integral e at mesmo mais legtima. O que se v em Um copo de clera uma disputa entre a razo passional8 e a razo (ir)racional. A primeira, utilizada pelo narrador-personagem, uma razo ardente, viva e auto-reflexiva. A segunda, utilizada pela jornalista, uma razo ingnua, fria e pretensiosa. A seguir, mostrarei em que medida esses dois tipos de razo se manifestam. A partir da, ser possvel perceber que no h propriamente um embate entre razo e paixo simplesmente, mas sim como dito acima entre uma razo que incorpora as paixes e uma razo que no as incorpora.

    Nesse processo, quatro momentos so percebidos: a razo passional operando no jogo gestual da seduo, a razo passional num movimento auto-reflexivo desvelando a identidade contraditria do chacareiro, a razo passional desmistificando a razo (ir)racional e por fim, uma espcie de pedagogia passional educando a razo (ir)racional. Tais etapas no se encerram em si mesmas, trabalhando de forma conjunta a todo o instante.

    Do incio de Um copo de clera at o captulo Caf da manh predomina uma atmosfera lasciva onde o narrador apresenta os primeiros traos de sua razo passional. O jogo gestual da seduo se d desde a mordida calculada no

    8 SEDLMAYER, 2001.

  • 11

    tomate at o posicionamento estratgico dos ps sob o lenol. a geometria passional9 operando em vista da concretizao do impulso sexual. Percebe-se que esse impulso que mobiliza a ao e chama a razo para jogar, seja medindo a fora da mordida no tomate ou a posio do p sob o lenol. Assim como observou Hume, a volio produzida unicamente pela paixo, pelo desejo sexual. No jogo gestual da seduo, a razo arde:

    [...] e foi ento s o tempo de eu abrir os olhos para inspecionar a postura correta dos meus ps despontando fora do lenol [...] e sabendo como comeariam as coisas, quero dizer: que ela de mansinho, muito de mansinho, se achegaria primeiro dos meus ps, que ela um dia comparou com dois lrios brancos. (NASSAR, 2001, p. 17).

    no captulo Esporro que esta atmosfera lasciva d lugar a uma atmosfera beligerante. A constatao do buraco produzido na cerca viva por formigas sava o ponto de partida para o que vem a seguir. como se o rombo aberto ultrapassasse os limites da cerca viva e penetrasse o prprio chacareiro. A cerca, a sua cerca era a manifestao viva daquilo em que ele (des)acreditava. No era uma cerca feita de arame e paus de madeira, mas uma cerca viva, orgnica. As formigas sava apresentam uma ameaa vitalidade da cerca e, por extenso, vitalidade do chacareiro.

    Porm, a guerra s declarada a partir do momento em que a jornalista faz uma observao da qual ela talvez no tivesse conscincia do peso e condena a energia com a qual o chacareiro reage s formigas: [...] no para tanto, mocinho que usa a razo. (NASSAR, 2001, p. 33).

    A ironia se torna pattica na medida em que o chacareiro mostra que, de fato, ele quem usa a razo de forma integral. Nesse momento h uma constatao feita pelo prprio chacareiro de seu estado consciente de que sua razo naquele momento, trabalhava a todo vapor10. 9 NASSAR, 2001 p. 16.

    10 Ibidem, p. 35.

    12

    Se no h ainda uma preocupao pedaggica com a jornalista, essa pedagogia passional construda entre narrador e leitor. O leitor pode acompanhar os meandros da mente do chacareiro e perceber como seu discurso se forma. A narrativa assume um carter confessional introduzindo aquele que l na doutrinao do chacareiro. atravs dessa relao estabelecida com o leitor que o narrador-personagem potencializa o uso da razo auto-reflexiva, desvelando todas as contradies intencionais11 de seu carter. O leitor acompanha essa auto-reflexo em que a razo identifica as particularidades da identidade do chacareiro. O filsofo Plato dizia que o pensamento a conversa de si consigo mesmo. Em Um copo de clera, alm da conversa consigo mesmo, os pensamentos do chacareiro estabelecem um dilogo com o leitor que se converte numa espcie de cmplice e aluno.

    A partir do momento que a relao com o leitor se constri, a primeira mxima da filosofia do chacareiro apresentada: a razo jamais fria e sem paixo, s pensando o contrrio quem no alcana na reflexo o miolo propulsor (NASSAR, 2001, p.35).

    O movimento auto-reflexivo da razo passional deixa o chacareiro a par dessas escrotas contradies12 colocando-o numa posio privilegiada. Na medida em que se percebe um inslito amlgama, que mistura razo e emoo, que o chacareiro pode destruir a razo (ir)racional da jornalista. Importante notar que s atravs de um discurso racional que o chacareiro poderia desmistificar a fala da jornalista. Assim como em Hume, a razo no pode se opor paixo, sendo preciso um discurso que guarde algum resqucio de racionalidade para descaracterizar outro discurso pretensamente racional. De outra forma, a jornalista poderia

    11 NASSAR, 2001, p. 17.

    12 Ibidem, p. 40.

  • 13

    argumentar como de fato tenta que o discurso do chacareiro estivesse vinculado s paixes cegas.

    [...] fui pro terreno confinado dela, fui pruma rea em que ela se gabava como femeazinha livre, ali que eu a pegaria, s ali que lhe abriria um rombo [...] ali que haveria de exasperar sua arrogante racionalidade (NASSAR, 2001, p. 42-43).

    O discurso da jornalista carrega uma pretenso ingnua de autoridade por estar supostamente de mos dadas com a Razo com erre maisculo. desse lugar que ela interpela o chacareiro dizendo que a zorra do mundo s exige solues racionais13, pouco importa que sejam sempre solues limitadas (NASSAR, 2001, p. 58)

    Criticando estas solues racionais o chacareiro caminha para o desfecho de seu ensino. Com um golpe certeiro deixa a jornalista desconcertada, levando-a a assumir seu lado passional, abandonando a razo (ir)racional. Diz o chacareiro:

    [...] confesso que em certos momentos viro um fascista, viro e sei que virei, mas voc tambm vira fascista, exatamente como eu, s que voc vira e no sabe que virou; essa a nica diferena, apenas essa; e voc s no sabe que virou por que sem ser propriamente uma novidade no h nada que esteja mais em moda hoje em dia do que ser fascista em nome da razo. (NASSAR, 2001, p. 67).

    A destruio da razo (ir)racional da jornalista coincide com a concretizao da pedagogia passional14 executada pelo chacareiro. S ento que a jornalista sucumbe e xinga o chacareiro de bicha. Tapas, literais ou no, so proferidos na face da jornalista abrindo-lhe rombos por onde jorraro todas as paixes negligenciadas. A jornalista fica ento aos ps do chacareiro. o triunfo da razo passional.

    13 Meu itlico.

    14 A pedagogia sexual, anunciada anteriormente na novela, apenas uma das facetas da pedagogia passional. Como no seguinte trecho: [...] nunca te passou pela cabea [...] que voc s trepava como donzela, que sem minha alavanca voc no porra nenhuma [...] (NASSAR, 2001, p. 48).

    14

    Todavia, pode-se pensar que a pedagogia no se concretiza, uma vez que as ltimas falas do chacareiro aparecem no futuro do pretrito, o que deixaria em suspenso se a jornalista concordaria com tudo que poderia ser dito e no foi. Creio, porm, que existem dois pontos importantes a serem levados em conta.

    Em primeiro lugar, a relao entre chacareiro e jornalista fortemente ertica. Tudo que dito no se diz apenas pelas palavras. O corpo tambm fala por vezes grita. Sendo assim, a entrega da jornalista no final do captulo um indcio forte de que ela aceita a educao passional imposta pelo chacareiro.

    Em segundo lugar, no captulo final A chegada, a voz presente a da jornalista. Independentemente de se pensar esse captulo como anterior ou posterior ao fato ocorrido no captulo Esporro, o que importa para a presente reflexo a assuno por parte da jornalista de que no seria a primeira vez que me [ela] prestaria aos seus caprichos (NASSAR, 2001, p. 85).

    O captulo final pode, portanto, ser lido como uma vitria da pedagogia passional empreendida pelo chacareiro. Essa pedagogia atinge o pice na recomendao: s usa a razo quem nela incorpora suas paixes (NASSAR, 2001, p. 75). A razo passional guarda um potencial ativo e uma independncia limitada. Na medida em que uma paixo lhe solicita participao, a razo age. E na medida em que a razo percebe esse vnculo inseparvel com as paixes, ela adquire conscincia libertadora. Parafraseando a obra em questo, pode-se dizer que se o reconhecimento da supremacia das paixes redime as aes, por outro lado liberta: quem assume essa condio pode agir passionalmente.15

    15 Em minha leitura, o chacareiro assume claramente um papel central e ativo no que chamo de pedagogia passional. Entretanto, a relao entre chacareiro e jornalista vista de maneira diversa em outros estudos. Sedlmayer (2006) aponta para uma reversibilidade de lugares, de forma que no

  • 15

    Consideraes finais

    A relao entre razo e paixo freqentemente encarada como uma relao de oposio. As aes intempestivas so atribudas aos indivduos passionais, enquanto que as aes frias so atribudas aos indivduos racionais.

    Raduan Nassar e David Hume mostram que razo e paixo operam juntas e estabelecem antes uma unio que uma oposio. Em Hume, percebe-se que razo no pode se opor paixo, porque opera em instncias distintas na mente humana. De acordo com essa posio, tem-se em Nassar, a razo passional destituindo o lugar da razo (ir)racional.

    Ambos parecem concordar em todos os pontos, exceto em um: qual a posio da razo frente paixo?

    Hume diz que a razo escrava das paixes. Como dito acima, ao pensar a razo como escrava, toda sua autonomia retirada. A razo torna-se extremamente dependente das paixes.

    J em Nassar, h uma cooperao mtua entre razo e paixo. A partir do momento que o indivduo incorpora as paixes em sua razo, ele a utilizar de forma integral. E nesse sentido que a razo torna-se amante das paixes. A razo reconhece a presena das paixes e sucumbe voluntariamente aos seus caprichos. A voluntariedade vestgio da conscincia libertadora adquirida pelo movimento auto-reflexivo da razo, conforme foi dito acima.

    A relao torna-se amorosa na medida em que razo guarda liberdade, ainda que limitada, pois aquele que est apaixonado no deve abrir mo de toda sua liberdade frente ao ser amado. Algum que atenda a todos caprichos do ser amado, abre mo de sua liberdade. Nesse sentido, a razo s se torna escrava das paixes, quando perde esse carter

    possvel assinalar quem o sujeito, quem o objeto, quem o dominador e quem o dominado. (p. 241).

    16

    auto-reflexivo e, conseqentemente, a conscincia libertadora.

    Referncias DESCARTES, Ren. As paixes da alma. Traduo de Enrico Corvisieri. So Paulo: Nova Cultural, 1999. (Os Pensadores).

    HUME, David. Tratado da natureza humana: uma tentativa de introduzir o mtodo experimental de raciocnio nos assuntos morais. Traduo de Dborah Danowski. So Paulo: Ed. UNESP/ Imprensa Oficial do Estado, 2001.

    NASSAR, Raduan. Um copo de clera. 5. ed. e 9. reimpr. So Paulo: Companhia das Letras, 2001.

    ______. Lavoura arcaica. 3. ed. e 16. reimpr. So Paulo: Companhia das Letras, 2002b.

    ______. Menina a caminho e outros textos. 2. ed. e 3. reimpr. So Paulo: Companhia das Letras, 2002a.

    PASCAL, Blaise. Pensamentos. Traduo de Mrio Laranjeira. So Paulo: Martins Fontes, 2001.

    SEDLMAYER-PINTO, Sabrina. A fico mediterrnea de Raduan Nassar. In: CASTRO, Marclio (org.). Fices do Brasil: conferncias sobre literatura e identidade nacional. Belo Horizonte: Assemblia Legislativa do Estado de Minas Gerais, 2006. p.231-257.

    ______. Por uma razo passional: uma leitura da obra de Raduan Nassar. Jornal Oficina, Coronel Fabriciano, 2001. p. 9.

  • 17

    A colheita impossvel1: breve estudo sobre a memria em Raduan Nassar e Herberto Helder

    Anderson Borges

    O tempo o maior tesouro de que um homem pode dispor (palavras de Iohna, pai de Andr.) At quando pode a memria, e quanto pode, sou o ator e o espectador / cmplice de uma vida perturbada, dramtica e irnica. (Herberto Helder)

    O presente texto prope um breve estudo comparativo entre a abordagem da memria em Raduan Nassar e Herberto Helder. Ambos os autores so considerados pela crtica inovadores em termos estticos. O primeiro, prosador brasileiro, descendente de rabes, publicou at ento poucos livros que exerceram, no entanto, grande impacto na recepo literria brasileira. O segundo, poeta lusitano, atualmente aclamado por muitos crticos como o maior poeta vivo em lngua portuguesa; dono de uma poesia hermtica e que se debrua sobre si mesma, Helder realiza uma espcie de teoria acerca de sua ars potica. Obviamente, nos delimitamos a um corpus condizente com a proporo de um trabalho como este. Assim, aproximaremos compara-tivamente o romance Lavoura arcaica, de Raduan Nassar, ao poema Minha cabea estremece com todo o esquecimento e ao conto Trezentos e sessenta graus de Herberto Helder, com o objetivo de afirmar haver similaridades entre esses autores, mormente em relao ao tratamento dado memria.

    Cabe ressaltar que de modo algum propondo uma comparao entre Helder e Nassar, enxergamos neles alguma repetio. Ao contrrio, a obra dos dois autores suscita, cada qual, utilizando a metfora blanchotiana para referir-se a um texto de qualidade, o exerccio de abrir e fechar uma porta.

    1 O ttulo deste trabalho foi retirado de uma conferncia feita pela professora e ensasta Sabrina Sedlmayer-Pinto: A fico mediterrnea de Raduan Nassar, 2006.

    18

    So tantas as semelhanas entre Helder e Nassar que dificilmente poderamos enumer-las. Afinal, os dois conferem uma grande importncia ao corpo, relao me-filho (na potica helderiana encontramos o termo mtria, a despeito de ptria); no caso de Andr, protagonista do romance nassariano, o vemos sentado ao lado esquerdo do pai, figurando como herdeiro e fruto do tronco materno. Em ambos os casos, nos deparamos com uma fora do verbo caracterizada por uma estrema violncia e pelo demonaco, termo freqentemente empregado pelos prprios autores em suas obras, e que provavelmente assinala uma fora motriz que impulsiona a vida e o gesto da escrita. H semelhanas entre Nassar e Helder at mesmo em se tratando de dados biogrficos. A sisudez, o recolhimento, a ausncia em noites de autgrafos ou recebimentos de prmios, que eles insistem em manifestar, fundam uma espcie de mito pessoal em torno da figura de escritor.

    Dentre outros signos comuns, muito caros obra de ambos, encontramos tambm a infncia ou termos filiados ao seu campo semntico tratada como uma espcie de fonte. Na escrita do poeta lusitano encontramos a chamada casinfncia ou casa absoluta, ou simplesmente de onde vem o amor mais terrvel que a vida, conforme escreve Helder no poema O amor em visita.

    Tanto o eu-lrico helderiano quanto o protagonista Andr reconhecem a impossibilidade de se encontrar com a origem, que, embora remota, erguida pela memria arcaica e perpassa o presente com seu hlito vivo. A tentativa de reconstituio desse passado no discurso do narrador e na voz do eu-lrico re-elabora e, de certa maneira, at mesmo, re-interpreta o que j aconteceu. Parafraseando as palavras de Herberto Helder, contar o passado ser sempre olhar outra coisa, uma s coisa coberta de nomes. Esse anseio em buscar a origem dialoga com uma tradio romntica, centrada na figura de Novalis.

  • 19

    Se em Helder, nos deparamos com uma leitura e uma escrita capazes de transformar a tradio processo que, podemos dizer, retoma o romantismo de Jena, elaborado, sobretudo, por Novalis e Schlegel, os quais refletiram sobre a esttica e a filosofia de sua poca em Nassar, encontramos duas vezes no romance analisado o mote estamos indo sempre para casa, o que nos remete, outra vez, a Novalis, equiparando-se novamente ao considerado poeta obscuro2. Os dois casos ainda nos possibilitam dizer que h um processo de onirizao, junto possibilidade de se desvincular da origem, tal qual acontece na escrita do poeta da flor azul, representante do primeiro romantismo alemo.3

    A respeito da elaborao onrica, Freud em seu famoso texto A interpretao dos sonhos4 destaca o deslocamento e a condensao como elementos caractersticos desse processo. Ora, em Helder e Nassar, encontramos esses elementos constituindo a lembrana do passado vivido. No poema de Herberto Helder que nos propomos analisar, lemos: H no esquecimento, ou na lembrana / total das coisas, / uma rosa como uma alta cabea, / um peixe como um movimento / rpido e severo. / Uma rosapeixe dentro de minha idia / desvairada.5 Conforme ressaltamos a partir do itlico, a lembrana da rosa e do peixe se condensam e estabelecem na memria, por assim dizer, um nico signo, passvel de ser re-interpretado dessa maneira.

    A dialtica do esquecimento e da lembrana, visualizada nesse poema, funde as coisas no tempo presente e torna, assim, possvel haver uma rosapeixe, fruto da idia

    2 Adjetivo freqentemente usado para se referir a Herberto Helder.

    3 Para mais esclarecimentos acerca do onirismo, bem como de outras caractersticas da potica de Novalis, ler a sucinta apresentao feita por Rubens Rodrigues Torres Filho, em: NOVALIS. Plen: fragmentos, dilogos, monlogo, p.11-27.

    4 Sobretudo no captulo VI, intitulado O trabalho do sonho, em que encontramos os trechos O trabalho de condensao e O trabalho de deslocamento, lemos mais detalhadamente a respeito da elaborao onrica.

    5 HELDER, 1996, p.98. (Grifo meu).

    20

    desvairada do eu-lrico, ao se lembrar de sua casa, onde vivera a infncia, a casinfncia. Trata-se de um espao-tempo mtico, em que as coisas se incorporam umas nas outras: Havia a magnlia quente de um gato. /Gato que entrava pelas mos, ou magnlia /que saa da mo para o rosto /da me sobriamente pura.6 Novamente, enxergamos o emprego do que Freud chamou de elaborao onrica a partir da condensao de elementos constituintes da memria.

    J em Lavoura arcaica, a lembrana de Andr revela uma hipertrofia do amor materno por ele vivenciada na infncia, o que lhe oferece subsdio para justificar-se mais tarde diante de Ana, com os versos de Jorge de Lima:

    Que culpa temos ns dessa planta da infncia, de sua seduo, de seu vio e constncia? que culpa temos ns se fomos duramente atingidos pelo vrus fatal dos afagos desmedidos?7. (NASSAR, 2006, p. 129)

    Essa ltima observao ressalta justamente a relao me-filho, que marcou a constituio de Andr, especialmente ao contrapor desde sua infncia os carinhos maternos severidade dos ensinamentos transmitidos pelo pai.

    Voltando ao romance de Raduan Nassar, num certo momento, ao se recordar de quando, sozinho, encontrara Ana debaixo do telheiro selado, Andr relaciona as sensaes ali vivenciadas a outro evento passado na infncia, lembrando-se, assim, de quando capturava pombas. Suas reminiscncias deslocam e aproximam, portanto, fragmentos da infncia que, por ventura, lhe sugeriram sensaes semelhantes.

    A memria figura, assim, como um pndulo entre a lembrana e o esquecimento. Para o narrador, como para o poeta, esquecer um sinnimo de morte e condio de lembrana, ou seja, muitas coisas podem se perder no processo da recuperao pela memria. Afinal, lembrar ou

    6 HELDER, 1996, p. 98.

    7 A primeira pergunta um verso do poeta Jorge de Lima e aparece tambm como epgrafe da primeira parte do romance.

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    ainda rever situaes e/ou circunstncias j vividas anteriormente confere aos eventos passados uma tonalidade, obviamente, diferente de como deve, de fato, ter acontecido; mesmo assim, eles almejam a reconstruo do passado pela palavra.

    O eu-lrico, por sua vez, reconhece, todavia, a impossibilidade de ressuscitar integralmente em seu cantar o que j aconteceu, por isso ele afirma: Deito coisas vivas e mortas no esprito da obra. No caso de Andr, sua narrativa manifesta, enfim, a impossvel concretizao de seu desejo, ou seja, permanecer ao lado de Ana com o amor e a idade infantil que tiveram juntos: [...] vamos com nossa unio continuar a infncia comum, sem mgoa para nossos brinquedos, sem corte em nossas memrias, sem trauma para a nossa histria8. Ao contrrio do que ansiava, Andr tem acesso, a partir do jogo memoralstico, apenas, a uma infncia fragmentada.

    Vale a pena nos remetermos novamente ao trecho de Novalis acerca da memria, a fim de visualizarmos uma provvel justificativa para o anseio de Andr, bem como para o eu-lrico e o narrador do conto helderiano que estudaremos a seguir, em se aproximar do passado: Estamos sempre indo para casa. Esta frase a resposta para a pergunta para onde estamos indo?, fundamentada pelo protagonista Heinrich von Ofterdingen, do romance homnimo9.

    O narrador de Lavoura arcaica e o eu-lrico helderiano encontram na memria arcaica os deslimites da imaginao. Ambos contam-nos de um tempo inebriante. De um lado lemos a confisso do eu-lrico ao se lembrar de sua casa: Minha vida extasia-se como uma cmara de tochas. Ao passo que Andr, com forte emoo, se recorda de sua tenra idade, quando se irmanava natureza:

    8 NASSAR, p. 118, 2006.

    9 NOVALIS; MAHL, Hans Joaquim; SAMUEL, Richard. Heinrich von Ofterdingen. In: Werke, Tagebcher und Briefe. Mnchen: Carl Hanser, 1987. v.1, p.237-413.

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    [...] era num stio l do bosque que eu escapava aos olhos apreensivos da famlia; amainava a febre dos meus ps na terra mida, cobria meu corpo de folhas e, deitado sombra, eu dormia na postura quieta de uma planta enferma. (NASSAR, 2006, p. 11.)

    Alm do carter naturalmente fragmentrio da memria, que impede ao poeta e ao narrador alcanarem o passado integral, talvez seja valioso mencionarmos tambm o tempo em que se fundamentam os textos. Em se tratando de Lavoura arcaica, vale a pena citar um comentrio de Samira Chalhub a esse respeito: [...] a construo narrativa circular, atemporal, indicadora das origens, remetendo repetio paradigmtica do modelo mtico de textualidade.10 Conforme j foi muito comentado, as pginas dessa obra nassariana ecoam a parbola do filho prdigo e a atemporalidade caracterstica de textos mticos e religiosos como esse que por assim dizer os tornaram paradigmticos tambm foi mantida no romance. Essa temporalidade mtica, assim digamos, possibilita a no-objetividade de situaes e circunstncias vivenciadas por Andr.

    Curiosamente, encontramos algumas analogias (em termos estticos e temticos) entre Lavoura arcaica e o conto Trezentos e sessenta graus, escrito por Herberto Helder. Ali, o narrador aps ter partido, retorna antiga casa materna, tresmalhado, tal qual o filho prdigo, e nos conta ao chegar em casa, acerca de um quarto que dura desde as origens da vida, evocando, assim, o campo semntico de mtico.

    O tresmalhado narrador usando o adjetivo dado por ele mesmo desse conto, se assemelha muito a Andr o qual se auto-intitula como aquele que descende de Caim, bem como se nomeia com outros tantos eptetos relacionados ao lado gauche da vida. Ambos saram de casa, tal qual o filho prdigo; entregaram-se a vivncias pelo mundo afora e, finalmente, retornaram ao antigo lar, tomados por uma

    10 CHALHUB, Semitica dos afetos: roteiro de leitura para um copo de clera de Raduan Nassar, p. 24.

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    violncia. Embora a fora sombria do envelhecimento j tivesse atravessado tudo, o narrador deste conto, escrito por Helder, passara por vrios lugares e, ao final, coincide seu ponto de partida sua chegada, contando-nos, assim, sobre sua casa, sua origem. Aparentemente paradoxal e mesmo sem uma utilidade precisa, ele voltara para casa.

    O protagonista de Lavoura arcaica tambm medita sobre seu retorno. A certa altura da narrativa, refletindo sobre sua fuga, Andr confessa que mesmo distante da fazenda onde crescera, se acaso algum dia lhe ocorresse indagar sobre sua busca: para onde estamos indo?, teria, embora a vida pudesse lhe revelar novidades, sua austera origem como resposta a essa pergunta, evocando Novalis, conforme dissemos anteriormente.

    [...] no importava que eu, erguendo os olhos, alcanasse paisagens muito novas, quem sabe menos speras, no importava que eu, caminhando, me conduzisse para regies cada vez mais afastadas, pois haveria de ouvir claramente de meus anseios um juzo rgido, era um cascalho, um osso rigoroso, desprovido de qualquer dvida: estamos indo sempre para casa. (NASSAR, 2006, p. 33-34)

    Reiterando as semelhanas existentes entre o conto Trezentos e sessenta graus e o romance Lavoura arcaica, podemos relacionar o mote empregado por Andr comentado no pargrafo acima, s palavras do narrador helderiano, que por sua vez, em determinado momento, diz [...] somos como rvores, presos a um lugar, respirando atravs de uma lei calma e perene11, evidenciando, assim, sua perene relao com a origem. Em ambos os casos, as palavras relacionadas ao poeta Novalis: Estamos sempre indo para casa sentenciam o destino de encontrar-se em direo ao primordial.

    curioso que no s o ttulo do conto Trezentos e sessenta graus, escrito por Herberto Helder, como tambm o

    11 HELDER, 2005, p. 146.

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    nome dado ao livro, Os passos em volta, denotam certa ligao com a origem, ou ainda, com o ponto de partida.

    Como vemos, o movimento circular de sada e retorno, passado e presente, que pode nos remeter ao eterno retorno nietzschiano, est presente tanto em Lavoura arcaica quanto no conto Trezentos e sessenta graus. Outro excerto desse conto nos sugere um significativo valor dado memria e s lembranas e s criaes que advm dela: A casa como uma escrita onde as palavras se motivam e desenvolvem por si prprias e as metforas se geram como animadas extenses da carne, do sangue12.

    Retomando o poema escrito por Helder, o verso: Tudo morre o seu nome noutro nome nos mostra bem como o que j aconteceu est submetido a esta fatalidade: a possibilidade de ser modificado pelo tempo e/ou pela memria. No tempo primacial e mtico as coisas tm por si s outro significado. Entretanto, conforme dissemos a respeito, no poema e no romance encontramos a impossibilidade de retornar a esse tempo primevo e recolher dele seus elementos inteiros, pois o sujeito do tempo presente tem acesso somente a fragmentos do passado remoto.

    O tempo, agente ambguo que irmana vida e morte na memria, recebe da boca de Andr a seguinte caracterizao:

    [...] o tempo me castigava [...] o tempo, o tempo, esse algoz s vezes suave, s vezes mais terrvel, demnio absoluto conferindo qualidade a todas as coisas, ele ainda hoje e sempre quem decide e por isso a quem me curvo cheio de medo e erguido em suspense me perguntando qual o momento, o momento preciso da transposio? (NASSAR, 2006, p. 94-99).

    O poeta helderidano, por sua vez, sentencia que o tempo a fora sombria do envelhecimento13 e que, podemos completar sem sombra de dvida, certamente se apodera da vida. Apenas a narrativa, ou ainda a literatura,

    12 HELDER, 2005, p. 147. (Grifo do autor)

    13 Ibidem, p. 146.

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    pode sobreviver sua fora e confrontar, de alguma forma, a perecibilidade caracterstica de todas as coisas. Ainda assim, o narrador e o eu-lrico reconhecem, de antemo, a impossibilidade de alcanarem a genuna origem. Eles tm acesso aos fragmentos constitutivos da memria, a qual pode naturalmente ser preenchida pelo que de fato aconteceu e pelo que verossmil ter acontecido.

    Como j dissemos, outras similaridades percorrem o texto de ambos os autores aqui estudados. Uma torrente corporal envolve a memria de Andr e do eu-lrico construdo por Herberto Helder. O narrador de Lavoura arcaica, a certa altura, revela suas impresses ao ter mexido o cesto de roupas sujas no banheiro. [...] bastava afundar as mos [...] para encontrar as manchas peridicas de nogueira no fundilho dos panos leves das mulheres ou escutar o soluo mudo que subia do escroto engomando o algodo branco e macio das cuecas14. J o eu-lrico nos diz a respeito de suas irms: A menstruao sonhava podre dentro delas,/ boca da noite., assinalando, deste modo, mais uma marca comum em relao narrativa nassariana.

    Outra passagem nos possibilita aproximar Nassar a Helder. Trata-se de um momento em que Andr, se dirigindo irm, justifica sua paixo por ela a partir do contraste entre a severidade paterna e os desmedidos carinhos maternos: [...] te exorto a reconhecer comigo o fio atvico desta paixo: se o pai, no seu gesto austero, quis fazer da casa um templo, a me, transbordando no seu afeto, s conseguiu fazer dela uma casa de perdio (NASSAR, 2006, p. 134-135). Essa anttese, proposta a partir dos papis desempenhados pelo pai e pela me de Andr, e que desaguou no amor fraterno prenhe de afetos em Lavoura arcaica ressoa, de alguma maneira, em Helder.

    14 NASSAR, 2006, p. 143.

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    Na poesia aqui estudada, o eu-lrico afirma: Havia rigor. Oh, exemplo extremo, e se lembra tambm de como era rodeado pelas irms, descrevendo ardncia e movimentos inquietantes: As cadeiras ardiam nos lugares./ Minhas irms habitavam ao cimo do movimento/ como seres pasmados./ s vezes riam alto.15 Tambm uma hipertrofia da me aparece assiduamente e tem, por assim dizer, um papel fundamental na constituio da subjetividade do eu-lrico helderiano. Em outras palavras, em ambos os casos, encontramos uma contrastante realidade matizada por um afeto, sobretudo centrado na figura da me, e um severo rigor.

    Afinal, at mesmo em termos estticos, de certa forma, podemos efetuar alguma aproximao entre Helder e Nassar. Embora haja, obviamente, a diferena de gneros, ambos inovam e fogem produo literria de sua poca. Herberto Helder escreve um poema contnuo, auto-reflexivo, disforme e distante de enquadramentos estticos adota em sua potica um procedimento que aparentemente poderia nos sugerir uma associao escola surrealista de Breton; no entanto, sua poesia caracterizada por um orfismo e um hermetismo capazes de quebrar, por assim dizer, o velho paradigma da relao esttico-cognitiva: sujeito-objeto. No poema contnuo, tanto o eu-lrico, quanto as coisas se constituem por um intenso e ininterrupto devir16. A memria tambm manifesta essa constante transformao. Relembrando os seguintes versos (alguns j mencionados neste mesmo texto): Eu procuro dizer como tudo outra coisa /[...] sempre outra coisa, uma/ s coisa coberta de nomes.

    J o romance Lavoura arcaica sem sombra de dvida, digno dos predicativos propostos pelo crtico Alceu Amoroso

    15 HELDER, 1996, p. 98.

    16 A esse respeito, vale a pena a leitura do livro A inocncia do devir, ensaio a partir da obra de Herberto Helder, Vendaval, 2003; escrito por Silvina Rodrigues Lopes. Trata-se de uma inflexo crtica acerca do estudo da potica helderiana, em que a autora, a despeito de uma interpretao que o considera, poeta alqumico ou surrealista (leituras recorrentes de sua obra), o interpreta a partir da idia do devir.

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    Lima, impressionante, magistral possui um estilo cortante e aborda temas muito caros literatura em geral, sem repetir a esttica vigente no Brasil de sua poca (dcada de 1970), com pretenses de realismo e engajamento; ao contrrio, Raduan Nassar evidencia ali uma experimentao da linguagem, criativa e perspicaz, evocando a parbola do filho prdigo e produzindo assim uma fabulosa narrativa emoldurada no sculo XX com a sugesto de uma atmosfera mtica e, portanto, atemporal.

    Podemos dizer ainda que tanto Nassar quanto Helder, ao dialogarem com a tradio, a partir de uma abordagem de Novalis, figuram como tradutores. Ambos realizam uma traduo transluciferada, utilizando-nos de uma expresso cunhada por Haroldo de Campos. Sabrina Sedlmayer, no livro Ao lado esquerdo do pai, discorre sobre esse assunto analisando sua recorrncia no romance nassariano.

    Haroldo de Campos, em Transluciferao Mefistofustica, discorre sobre a atitude nom serviam que deve ter um tradutor que deseja converter o original na traduo de sua traduo. Nessa operao literria, o efeito seria o de uma leitura da tradio, no de maneira ordenada e diacrnica, e sim num salto tigrino do sincrnico, o da ruptura, da dessacralizao, da leitura por revs. Para o transcriador, a traduo seria uma espcie de persona, na qual falaria a tradio, porm, no aquele de voz nica e original, e sim a que o Agesilaus Santander iluminaria. (SEDLMAYER, 1997, p.83)

    Esse procedimento de que fala Campos, reiterado por Sedlmayer, perpassa a obra de ambos os autores aqui estudados. Sobretudo, em relao ao mote do poeta da flor azul17, anunciando esse anseio em retornar origem. Alm disso, Helder, no texto O bebedor noturno, inserido em Photomaton & vox18, anuncia claramente sua perspectiva de tradutor-transcriador.

    17 Trata-se da passagem: Wo gehen wir denn hin? Immer nach Hause, j muito comentada anteriormente e que encontramos no seguinte livro: NOVALIS; MAHL, Hans Joaquim; SAMUEL, Richard. Heinrich von Ofterfingen. In: Werke, Tagebcher und Briefe. Mnchen: Carl Hanser, 1987. v. 1, p. 373.

    18 HELDER, 1979.

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    guisa de concluso, podemos dizer que ao ler Nassar e Helder, o leitor se depara, afinal de contas, com elaboraes sofisticadas de escritas em torno da memria, o que necessariamente torna possvel consider-los como duas grandes referncias da literatura contempornea em lngua portuguesa. A assertiva proposta por Novalis de que o mundo precisa ser romantizado. Assim, reencontra-se o sentido originrio19 pode muito bem ser empregada a partir da leitura de ambos os escritores. Tentar reconstituir o passado a partir da memria resulta, afinal, em dedicar-se a uma colheita impossvel de ser feita, em que a procura pela origem pode tornar-se um ponto de encontro das reminiscncias e da imaginao.

    19 NOVALIS, 1988. p. 142

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    Referncias CHALHUB, Samira. Semitica dos afetos: roteiro de leitura para um copo de clera de Raduan Nassar. So Paulo: Hoker, Cespric, 1997.

    FREUD, Sigmund. A interpretao dos sonhos. Rio de Janeiro: Imago, 1999.

    HELDER, Herberto. Trezentos e sessenta graus. In:_____. Os passos em volta. Rio de Janeiro: Azougue editorial, 2005.

    ______. Poesia toda. Lisboa: Assrio & Alvim, 1996.

    ______. Photomaton & Vox. Lisboa: Assirio & Alvim, 1979.

    NASSAR, Raduan. Lavoura arcaica. So Paulo: Cia das letras, 2006.

    NOVALIS; MAHL, Hans Joaquim; SAMUEL, Richard. Werke, Tagebucher und Briefe. Mnchen: Carl Hanser, 1987. v. 1, p. 237-413.

    ______. Fragmentos I e II. In:______. Plen: fragmentos, dilogos, monlogo. So Paulo: Iluminuras, 1988.

    SEDLMAYER-PINTO, Sabrina. A fico mediterrnea de Raduan Nassar. In: CASTRO, Marclio (org.). Fices do Brasil: conferncias sobre literatura e identidade nacional. Belo Horizonte: Assemblia Legislativa do Estado de Minas Gerais, 2006. p.231-257.

    ______. Ao lado esquerdo do pai. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1997.

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    O germe do outro

    Luiza Strambi

    No presente trabalho, trataremos do dialogismo existente no romance Lavoura Arcaica, de Raduan Nassar. Convm que se defina, ento, o que vem a ser dialogismo. Para Mikhail Bakhtin, autor russo, dialogismo se define pelo dilogo entre os interlocutores e o dilogo com outros textos, ou seja, o dilogo entre diferentes discursos. Para este autor, nenhuma voz jamais fala sozinha, a minha palavra sempre contaminada pela palavra do outro. E o olhar do outro que permite a completude, uma vez que o seu campo de viso diferente do meu, a ele possvel o acesso ao que est inacessvel a mim. preciso que se troque de lugar com o outro para identificar-se com ele, preciso coincidir com ele para que, com a ajuda de uma srie de fatos que s so acessveis a partir do lugar em que me encontro, seja possvel complet-lo, acab-lo1.

    A obra de Nassar ilustra o que diz Bakhtin, em relao aos discursos do protagonista Andr e de seu pai, que parecem to conflitantes, mas que na verdade dialogam.

    1 Quando contemplo um homem situado fora de mim e minha frente, nossos horizontes concretos, tais como eles so efetivamente vividos por ns dois, no coincidem. Por mais perto de mim que possa estar esse outro, sempre verei e saberei algo que ele prprio, na posio que ocupa, e que o situa fora de mim e minha frente, no pode ver: as partes de seu corpo inacessveis ao prprio olhar a cabea, o rosto, a expresso do rosto , o mundo ao qual ele d as costas, toda uma srie de objetos e de relaes que, em funo da respectiva relao em que podemos situar-nos, so acessveis a mim e inacessveis ele. [...]

    Esse excedente constante de minha viso e de meu conhecimento a respeito do outro, condicionado pelo lugar que sou o nico a ocupar no mundo: neste lugar, neste instante preciso, num conjunto de dadas circunstncias todos os outros se situam fora de mim. [...]

    O excedente da minha viso, com relao ao outro, instaura uma esfera particular da minha atividade, isto , um conjunto de atos internos ou externos que s eu posso pr-formar a respeito desse outro e que o completam justamente onde ele no pode completar-se. [...]

    O excedente da minha viso contm em germe a forma acabada do outro, cujo desabrochar requer que eu lhe complete o horizonte sem lhe tirar a originalidade. Devo identificar-me com o outro e ver o mundo atravs de seu sistema de valores, tal como ele o v; devo colocar-me em seu lugar, e depois, de volta ao meu lugar, completar seu horizonte com tudo o que se descobre do lugar que ocupo, fora dele.. (BAKHTIN, 1992)

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    O discurso paterno permeado por ensinamentos religiosos, provenientes em sua maioria da Bblia, mas com resqucios do Alcoro, herdados dos ensinamentos do av. So saberes que so transmitidos de pai para filho, o que evidencia a importncia da tradio, como possvel percebermos nos seguintes trechos:

    [...] na doura da velhice est a sabedoria, e, nesta mesa, na cadeira vazia da outra cabeceira, est o exemplo: na memria do av que dormem nossas razes, no ancio que se alimentava de gua e sal para nos prover de um verbo limpo, no ancio cujo asseio mineral do pensamento no se perturbava nunca com as convulses da natureza; [...] cultivada com zelo pelos nossos ancestrais, a pacincia h de ser a primeira lei desta casa, a viga austera que faz o suporte das nossas adversidades e o suporte de nossas esperas [...]. (NASSAR, 1989, p. 58) [...] se outros ho de colher do que semeamos hoje, estamos colhendo por outro lado do que semearam antes de ns. assim que o mundo caminha, esta a corrente da vida (NASSAR, 1989, p. 161)

    No discurso paterno, destacam-se a religiosidade, como j dito anteriormente, a pacincia, a ordem, a clareza, a racionalidade, o amor e a unio na famlia, enquanto o discurso do protagonista laico, reivindica a liberdade de construo do pensamento fora da esfera do discurso religioso, a obscuridade, a fundao de uma igreja particular baseada no corpo. Nos seguintes trechos, acompanhamos a fala do pai e a defesa de certa doxa:

    O mundo das paixes o mundo do desequilbrio, contra ele que devemos esticar o arame das nossas cercas [...]. (NASSAR, 1989, p. 54) [...] a pacincia h de ser a primeira lei desta casa, [...] o suporte de nossas esperas, por isso que digo que no h lugar para blasfmia em nossa casa [...]. (NASSAR, 1989, p. 58-59)

    Com isso, surge ento um conflito na fala do protagonista, por ele se perceber marcado por ser epiltico, por no gostar do rduo trabalho na lavoura, por no se adequar rigidez que prega o pai. E por no se encaixar da maneira desejada no discurso patriarcal, Andr formula o seu discurso como uma resposta, na qual ele procura mostrar ao pai o que lhe era inacessvel, um outro ponto de vista sobre o que era repetido gerao aps gerao.

    32

    Temos, ento, a fala de Andr:

    voc tem um irmo epiltico, fique sabendo, volte agora para casa e faa essa revelao, volte agora e voc ver que as portas e janelas l de casa ho de se bater com essa ventania ao se fecharem [...], e voc pode como irmo mais velho lamentar num grito de desespero triste que ele tenha o nosso sangue [...] e diga ainda ele enxovalhou a famlia, nos condenou s chamas do vexame[...].(NASSAR, 1989, p. 39-40) fechei minhas plpebras de couro para proteger-me da luz que me queimava, e meu verbo foi um princpio de mundo: musgos, charcos e lodo; [...] eu disse cegado por tanta luz tenho dezessete anos e minha sade perfeita e sobre esta pedra fundarei minha igreja particular, a igreja para o meu uso, a igreja que freqentarei de ps descalos e o corpo desnudo, despido como vim ao mundo, e muita coisa estava acontecendo comigo, pois me senti num momento profeta da minha prpria histria [...].(NASSAR, 1989, p. 86-87)

    Para finalmente observarmos o contraste surgido no embate dos dois discursos, mostrado atravs da discusso entre pai e filho na ocasio do retorno a casa do protagonista:

    [...] Faa um esforo, meu filho, seja mais claro, no dissimule, no esconda nada do teu pai, meu corao est apertado tambm de ver tanta confuso na tua cabea. Para que as pessoas se entendam, preciso que ponham ordem em suas idias. Palavra com palavra, meu filho. Toda ordem traz uma semente de desordem, a clareza, uma semente de obscuridade, no por outro motivo que falo como falo. Eu poderia ser claro e dizer, por exemplo, que nunca, at o instante em que decidi o contrrio, eu tinha pensado em deixar a casa; eu poderia ser claro e dizer ainda que nunca, nem antes e nem depois de ter partido, eu pensei que pudesse encontrar fora o que no me davam aqui dentro. (NASSAR, 1989, p. 158) Como posso te entender, meu filho? Existe obstinao na tua recusa, e isto tambm eu no entendo. Onde voc encontraria lugar mais apropriado para discutir os problemas que te afligem? Em parte alguma, menos ainda na famlia; [...] foi o senhor mesmo que disse h pouco que toda palavra uma semente: traz vida, energia, pode trazer inclusive uma carga explosiva no seu bojo: corremos graves riscos quando falamos. No receba com suspeita e leviandade as palavras que te dirijo, voc sabe muito bem que conta nesta casa com o nosso amor! [...] Ao contrrio do que supe, o amor nem sempre aproxima, o amor tambm desune; e no seria nenhum disparate eu concluir que o amor na famlia pode no ter a grandeza que se imagina.

  • 33

    J basta de extravagncias, no prossiga mais neste caminho, [...] ponha um ponto na tua arrogncia, seja simples no uso da palavra! (NASSAR, 1989, p. 165-166)

    Observando atentamente os dois discursos, percebemos o dilogo entre eles: a fala de Andr construda a partir da desconstruo da fala do patriarca, ela tem a inteno de preencher as lacunas que encontra no discurso do pai, visando adequao ao seu ponto de vista e aos seus objetivos.

    Aps o desfecho de sua fuga de casa, a palavra de Andr contaminada pela palavra do pai, o que possvel de ser percebido, atravs do final da narrativa, quando o protagonista transcreve as palavras do patriarca, as quais parece ter incorporado ao seu discurso:

    Em memria de meu pai, transcrevo suas palavras: e, circunstancialmente, entre posturas mais urgentes, cada um deve sentar-se num banco, plantar bem um dos ps no cho, curvar a espinha, fincar o cotovelo do brao no joelho, e, depois, na altura do queixo, apoiar a cabea no dorso da mo, e com olhos amenos assistir ao movimento do sol e das chuvas e dos ventos, e com os mesmos olhos amenos assistir manipulao misteriosa de outras ferramentas que o tempo habilmente emprega em suas transformaes, no questionando jamais sobre seus desgnios insondveis, sinuosos, como no se questionam nos puros planos das plancies as trilhas tortuosas, debaixo dos cascos, traadas nos pastos pelos rebanhos: que o gado sempre vai ao poo. (NASSAR, 1989, p. 193-194)

    E, em certo ponto, as atitudes do patriarca acabam se mostrando afetadas pelo que lhe diz o filho: tomado pela clera, o pai, defensor da racionalidade, mata a filha, Ana, quando informado sobre o incesto, evidenciando a contaminao de suas atitudes pelo discurso de Andr.

    Percebemos, assim, como os dois discursos dialogam, o de Andr desconstruindo a fala do pai e as atitudes do pai sendo contaminadas pela fala de Andr.

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    Referncias NASSAR, Raduan. Lavoura Arcaica. So Paulo: Companhia das Letras, 1989.

    BAKHTIN, Mikhail. Esttica da Criao Verbal. So Paulo: Martins Fontes, 1992.

    BRAIT, Beth (Org.). Bakhtin: dialogismo e construo do sentido. Campinas: Editora da UNICAMP, 1997.

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    Entre experincia e tradio: um descompasso em Lavoura Arcaica

    Lara Spagnol

    Eu tinha simplesmente forjado o punho, erguido a mo e

    decretado a hora: a impacincia tambm tem os seus

    direitos!

    Publicada pela primeira vez em 1975, Lavoura Arcaica marca a estria do escritor paulista Raduan Nassar na literatura brasileira, e at os dias atuais suscita discusses quanto s suas classificaes formais Sabrina Sedlmayer, por exemplo, em ensaio de ttulo A fico mediterrnea de Raduan Nassar, atenta para a hibridez desta narrativa nassariana em meio literatura nacional1. Esta obra de Raduan Nassar apresenta ao leitor o relato em primeira pessoa do adolescente Andr, a quem a tradio familiar, representada pela figura autoritria do pai, ao mesmo tempo em que oprime, fomenta sua clera.

    Certamente no seria plausvel discorrer sobre este embate tcito, travado entre protagonista e tradio, sem atentar para a questo temporal presente em Lavoura Arcaica. Durante toda a narrativa, o tempo - aquele que faz diabruras, que brinca com o personagem, que tem caprichos tal qual uma pessoa est presente, contrapondo o discurso paterno, nos quais a sucesso dos dias tratada como um fenmeno ao qual o homem deve, sobretudo, pacincia, ao relato de Andr, para quem existe, tambm, o tempo de ser gil2, os direitos da impacincia.

    Em Da clera ao silncio Leyla Perrone-Moiss atenta para esta divergncia existente entre pai e filho que,

    1Lavoura Arcaica explora uma imbricada dualidade tnica e mostra-se hbrida desde o incio. SEDLMAYER, A fico mediterrnea de Raduan Nassar, p.237

    2 NASSAR, Lavoura Arcaica, p. 95.

    36

    obviamente, compartilham o mesmo tempo, mas no o decodificam da mesma forma:

    Por sua experincia individual, Andr descobre que existe o tempo de aguardar e o tempo de ser gil, que no podia ser gil tendo-se pela frente instantes de pacincia. Sua vivncia do tempo , assim, muito diferente daquela que aconselha o pai.3

    Este confronto entre pai e filho, que tambm o confronto entre o tempo da experincia e o tempo da tradio, o que constitui o cerne do desassossego de Andr. Enquanto a impacincia e o recalque do adolescente reclamam os direitos do corpo4, a severidade paterna de Iohna atenta para o perigo que encontra-se tanto na vastido ilimitvel do mundo externo, quanto no profundo poo do mundo interior5, explicitando, assim, a incompatibilidade destas duas geraes.

    Thayse Leal Lima, em dissertao de ttulo O mundo desencantado: um estudo da obra de Raduan Nassar, assinala o tempo como uma das principais matrias do discurso paterno: Ele [o tempo] , na verdade, um dos temas mais complexos que aparecem nos sermes de Iohna e, podemos afirmar, constitui-se num dos pontos mximos de seus ensinamentos morais.6

    Este importante ensinamento paterno dialogar sempre com a tradio, como visto anteriormente, reiterando a capacidade modificadora do tempo, a impotncia do homem perante a sucesso dos fatos, a humildade, a pacincia e o conformismo, imprescindveis no trato da passagem dos dias:

    [...] Ai daquele, dizia o pai, que tenta deter com as mos seu (do tempo) movimento: ser consumido por suas guas; ai daquele, aprendiz de

    3 PERRONE-MOISS, Da clera ao silncio, p.63

    4 Ibidem, p.62

    5 LIMA, O mundo desencantado: um estudo da obra de Raduan Nassar, p.14

    6 Ibidem, p.22

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    feiticeiro, que abre a camisa para um confronto: h de sucumbir em suas chamas[...]7 [...] rico s o homem que aprendeu, piedoso e humilde, a conviver com o tempo, aproximando-se dele com ternura, no contrariando suas disposies, no se rebelando contra seu curso, no irritando sua corrente.8

    necessrio atentar para o fato de que figura paterna cabe repassar os ritos da tradio - dispositivo este que carece de um tempo imaculado para existir - sua famlia. Tentar conservar o tempo atravs do conformismo seria, portanto, uma forma de solidificar as tradies, o que, como j assinalado por Octavio Paz, representa uma tentativa de manter a estabilidade no seio da famlia.9

    Este engessamento dos hbitos e dos ritos, pretendido pelo pai, entra em claro conflito com a perspectiva de Andr, cujo desejo agitar os alicerces da casa, pr grito neste rito,10 tombar a mesa dos sermes. Para um adolescente com tais ambies, tratar do tempo de forma paciente e conformada parece incabvel. Andr, portanto, constri um dilogo duplo: por vezes deixa vir tona sua impacincia adolescente, por outras tenta se conter nos momentos em que no h outra alternativa seno agir com parcimnia:

    [...] e eu espreitava e aguardava, porque existe o tempo de aguardar e o tempo de ser gil [...] e acompanhava e ia lendo na imaginao as cruzetas deformadas e graciosas, impressas nos seus recuos e nos seus avanos pelos ps macios no cho de terra; e existia o tempo de ser gil, e era ento um farfalhar quase instantneo de asas quando a peneira lhe caa sorrateira em cima, e minhas mos j eram um ninho [...] existia o tempo de aguardar, mas eu j tropeava, voltando impaciente da janela, chutei com violncia a palha que eu, no bico, dia-a-dia, tinha amontoado no meio do quarto, e foi uma ventania de cisco na cabea, por um instante me perdi naquele redemoinho.11

    7 NASSAR, Lavoura arcaica, p. 183

    8 Ibidem, p. 52

    9 PAZ, apud LIMA. O mundo desencantado: um estudo da obra de Raduan Nassar, p.22

    10 NASSAR. Lavoura arcaica, p.66

    11 Ibidem, p.95

    38

    Se, como observado at aqui, entende-se, no que diz respeito ao campo temtico de Lavoura Arcaica, a presena de um conflito entre geraes, apoiado na incompatibilidade temporal existente entre pai e filho, pretende-se mostrar a seguir como este descompasso persiste nos espaos fsicos e formais desta obra.

    Sobre o que diz respeito aos aspectos fsicos de Lavoura Arcaica, novamente Thayse Leal Lima quem apresenta as possveis distines entre os espaos pblicos e os espaos privados existentes no ambiente familiar ao qual pertence o narrador:

    Persiste uma diferena entre os espaos de convivncia coletiva a mesa dos sermes, a sala de jantar, a lavoura -, onde sobressaem os valores da ordem estabelecida, e os espaos privados o quarto, o banheiro, a casa abandonada, - onde imperam os valores dos indivduos.12

    O tempo parece exercer suas particularidades em conformidade com estes espaos: mesa dos sermes, o que se observa a vagarosidade do tempo, marcado pelo mover difcil dos ponteiros do relgio, enquanto a casa velha cenrio de episdios caracterizados pela ao, regidos por um tempo urgente.

    Observa-se no ambiente coletivo: [...]o pai cabeceira, o relgio de parede s suas costas, cada palavra sua ponderada pelo pndulo, e nada naqueles tempos nos distraindo tanto como os sinos graves marcando as horas.13

    J nos espaos privados, tem-se, como exemplo, este relato de Andr: [...]voltando ao quarto onde eu ficava, mal entrei voei para a janela, espiando atravs da fresta (Deus!) ela estava l, no longe da casa, debaixo do telheiro selado que cobria a antiga tbua de lavar [...]14

    12 LIMA. O mundo desencantado: um estudo da obra de Raduan Nassar, p.15

    13 NASSAR, Lavoura arcaica, p.51.

    14 Ibidem, p. 89.

  • 39

    A este ponto, a distino proposta por Thayse Leal Lima parece clara: o espao pblico, que tem como representante principal Iohna, dialoga com o tempo referente figura paterna, e tem como seus elementos constituintes a espera, a sobriedade, o respeito. J o espao privado caracteriza-se pela individualidade, atravs da qual o tempo flui de forma menos arrastada, e se permite agir instantaneamente.

    A linguagem utilizada nos dois espaos tambm se distingue atravs de caractersticas relacionadas ao tempo. Observa-se, no espao pblico, a linguagem prpria de Iohna, marcada pelo discurso linear, formal, recorrente a metforas relacionadas ao ambiente rural, no qual est instalada a famlia. O uso da tradio, prprio ao pai, extrapola o campo temtico e alcana os aspectos formais da obra atravs discurso paterno, que utiliza de forma convencional os recursos temporais da narrativa.

    Nos espaos privados, predomina a linguagem do protagonista Andr, j que atravs de sua perspectiva que se constri a narrativa de Lavoura Arcaica. Observa-se, ento, uma narrativa na qual o foco desloca-se do tempo dos acontecimentos, que parecem ser o fio condutor de toda a obra (o encontro de Pedro com Andr e a volta de Andr para a casa de sua famlia), at as mais antigas memrias de infncia do narrador, passando por episdios vividos em famlia antes de sua sada de casa e relatos memoriais de carter descritivista. Esta quebra da linearidade, caracterstica do discurso de Andr, aponta novamente para uma confluncia entre contedo e forma nesta obra de Raduan Nassar, uma vez que representa uma quebra na linha temporal da narrativa, assim como o rompimento que, durante o decorrer de Lavoura Arcaica, Andr procura fazer acontecer em relao perspectiva tradicional do tempo. Afirma Leal Lima: Por seu turno, o relato do filho, desenvolvido de modo no-linear, ao sabor da memria pessoal, de acordo com a caoticidade do pensamento

    40

    apaixonado, provoca um abalo nas idias impostas pelo pai.15

    E exatamente atravs deste uso da no-linearidade que se permite ao leitor perceber o anteriormente mencionado jogo duplo que Andr realiza com o tempo, mesclando momentos impacientes de clera com momentos de uma pacincia que beira o lirismo.

    Esta duplicidade, porm, parece se enfraquecer diante da impacincia adolescente do protagonista em um importante momento da obra: o incesto cometido com a irm Ana. Sedlmayer, em Lavoura Arcaica um palimpsesto, afirma sobre o episdio:

    [...] O protagonista, guiado pela hybris e ainda no consciente do significado de Maktub16[...] nem da natureza do lamento milenar da cultura ao qual encontrava-se enredado [...] revolta-se e, destitudo de culpa, comete o incesto.17

    Certamente o episdio do incesto constitui uma das passagens de Lavoura Arcaica na qual a relao de Andr com o tempo parece mais se explicitar. Alternando o tempo de aguardar com o tempo de ser gil, o protagonista consegue aproximar-se de sua irm e conduzi-la a seu domnio, tal qual fazia com as pombas em sua infncia:

    Foi este o instante: ela transps a soleira, me contornando pelo lado como se contornasse um lenho erguido sua frente, impassvel, seco, altamente inflamvel; no me mexi, continuei o madeiro tenso, sentindo contudo seus passos dementes atrs de mim [...] mas a sombra indecisa foi aos poucos descrevendo movimentos desenvoltos, perdendo-se logo no tnel do corredor: fechei a porta, tinha puxado a linha, sabendo que ela, em algum lugar da casa, imvel, de asas arriadas, se encontraria esmagada sob o peso de um destino forte [...]18

    15 LIMA. O mundo desencantado: um estudo da obra de Raduan Nassar, p.24

    16 Est escrito NASSAR. Lavoura arcaica, p.89

    17 SEDLMAYER. Lavoura arcaica: um palimpsesto, p.10

    18 NASSAR. Lavoura arcaica, p.100

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    Porm, neste caso, o equilbrio, outras vezes existente no jogo de Andr com o tempo, parece dar lugar impacincia, uma vez que o ato do incesto no pertence ordem paciente da sensatez; pelo contrrio, relaciona-se revolta, como colocado por Sedlmayer, e, conseqentemente, impacincia.

    No que seria, portanto, seu maior momento de impacincia, Andr profana19 o ambiente familiar atravs da relao incestuosa com sua irm, sem ter conscincia de que este ato dialoga com um dos mais tradicionais preceitos de sua famlia: a existncia de uma predestinao, maktub.

    Ao contrrio do pai, que aceita o tempo como algo irrevogvel e definitivo, Andr se prope a escapar de seu destino, a partir do momento em que tenta assumir sua individualidade, numa tentativa de esquivar-se da tradio familiar:

    [...] eu disse cegado por tanta luz tenho dezessete anos e minha sade perfeita e sobre esta pedra fundarei minha igreja particular, a igreja para meu uso [...] e muita coisa estava acontecendo comigo, pois me senti num momento profeta da minha prpria histria [...]20

    A ironia, que se percebe a este ponto, capaz de aproximar a trajetria de Andr trajetria de um heri grego, como prope Sedlmayer, em j citado artigo21, reside no fato de que, ao se declarar profeta de sua prpria vida e ao cometer o incesto em um ato de individualidade exacerbada, Andr no se esquiva do peso da predestinao; ao contrrio, a reafirma, como se ver no desfecho trgico que traz o livro.

    L-se, no ltimo captulo de Lavoura Arcaica, o seguinte trecho dos sermes de Iohna, citado in memorian por Andr:

    19 Pode-se entender o conceito de profanao como aquilo que, tendo sido sagrado ou religioso, restitudo ao uso e propriedade dos homens. AGAMBEN, Elogio da profanao, p.97

    20 NASSAR. Lavoura arcaica, p. 87.

    21 SEDLMAYER. Lavoura arcaica: um palimpsesto, p.11

    42

    [...] e com olhos amenos assistir ao movimento do sol e das chuvas e dos ventos, e com os mesmos olhos amenos assistir manipulao misteriosa de outras ferramentas que o tempo habilmente emprega em suas transformaes, no questionando jamais sobre seus desgnios insondveis, sinuosos, como no se questionam nos puros planos das plancies as trilhas tortuosas, debaixo dos cascos, traadas nos pastos pelos rebanhos: que o gado sempre vai ao poo22

    A palavra do pai, a este ponto, reitera a viso paciente e conformista que fora sempre proferida mesa dos sermes. Contudo, neste trecho, ao propor que no se questione a manipulao misteriosa do tempo, da mesma forma atravs da qual os fatos corriqueiros no so questionados, o personagem Iohna parece referir-se ao prprio desgnio insondvel, que lhe conferido ao fim da narrativa: o assassinato de sua prpria filha e a conseqente desconstruo final de sua famlia. O pai traria, portanto, o destino trgico que fora destinado sua famlia em seu prprio discurso. E Andr, ao apossar-se do verbo do pai, no fim da narrativa, se assume ciente do que representava maktub dentro da tradio temporal, a qual ele pertencia.

    A experincia que relatada ao leitor em Lavoura Arcaica responsvel por criar uma mudana de perspectiva, como prope Sedlmayer em A fico mediterrnea de Raduan Nassar23. No desfecho da obra, ao se ver confrontado com as falhas existentes dentro de sua prpria famlia, o pai tomado pela impacincia colrica de Andr, e comete o assassinato de sua prpria filha. Andr, diante desta experincia, assume o discurso paterno, denunciando o destino trgico que aguardava sua famlia.

    Ao fim de Lavoura Arcaica seria provavelmente um equvoco posicionar Andr, ao momento da narrao, como um personagem capaz de reitificar o discurso do pai; o que se passa com este adolescente parece aproximar-se muito mais

    22 NASSAR. Lavoura arcaica, p.193

    23 [...] ao rebelar-se contra esse verbo spero, esse verbo milenar, algo da ordem da experincia foi tocado. (SEDLMAYER, 2006, p.243)

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    de uma relativizao desta luta entre liberdade e tradio, apoiada na gide do tempo, como quer Alceu Amoroso Lima. O tempo, base primeira do confronto que mote da obra de Nassar, quem conduz, pelo que deixa ver o fim da narrativa, mudana de perspectiva do adolescente Andr. o protagonista que se torna, por fim, capaz de abandonar sua clera e entender a fala paterna, no como se constitusse o fechamento de um velho ciclo, mas sim como se conduzisse ao incio de um novo.

    Referncias AGAMBEN, Giorgio. Elogio de la profanacin In:______. Profanaciones. Buenos Aires: Adriana Hidalgo, 2005.

    LIMA, Thayse Leal. O mundo desencantado: um estudo da obra de Raduan Nassar. 2006. Dissertao (Mestrado em Estudos Literrios) UFMG, Belo Horizonte.

    NASSAR, Raduan. Lavoura arcaica. So Paulo: Companhia das Letras, 2005.

    PERRONE-MOISS, Leyla. Da clera ao silncio. In:______. Cadernos de Literatura Brasileira: Raduan Nassar. So Paulo, 1996.

    SEDLMAYER, Sabrina. A fico mediterrnea de Raduan Nassar. In: CASTRO, Marclio (org.) Fices do Brasil: conferncias sobre literatura e identidade nacional. Belo Horizonte: Assemblia Legislativa do Estado de Minas Gerais, 2006.

    SEDLMAYER, Sabrina. Lavoura arcaica: um palimpsesto. So Paulo: Fundao memorial da Amrica Latina, 1999.

    44

    O amor como dispositivo do universo

    Assis Benevenuto Vidigal

    Deus faz germinar o gro e o caroo, extrai o vivo do

    morto e o morto do vivo. Assim Deus. Por que vos

    afastais dEle? (Alcoro 6:95).

    Falas-me de um Criador... * Pois ele s formou as

    criaturas para destru-las?... * Por que so feias? * Por

    que so belas? * A quem cabe a responsabilidade? * No

    compreendo nada. (Omar Khyym, Coleo Rubiyt).

    o amor

    O amor a nica razo da vida1 o que nos diz a personagem, me do chacareiro, em Um copo de clera, de Nassar. Esta frase sobre o amor pode parecer um tanto contraditria, pois aprendemos que amor e razo so opostos. Por outro lado, o que percebemos quando recorremos literatura universal: podemos encontrar sempre o amor sendo o propulsor das aes, como, por exemplo, em Shakespeare, nos contos de Andersen, de Grimm, nas tragdias gregas, at mesmo na Bblia, Alcoro. Mas o amor a qu? Talvez o amor em suas variadas formas: a si prprio, ao outro, ao dinheiro, s obsesses, ao pas. De fato, essas manifestaes de amor podem levar outros nomes: egosmo, compaixo, misericrdia, doena, loucura etc. E no por acaso que, na mitologia antiga, quando a Loucura arrancou os olhos do Amor, ela foi presa a ele e fadada a estarem sempre juntos: a Loucura conduzindo o Amor. Essa variedade de manifestao faz com que seja difcil admitir que o amor esteja em tudo. Aqui, podemos pensar no amor como dispositivo do enredo, do universo.

    Ao longo das minhas leituras sobre a obra de Raduan Nassar, mas principalmente em Lavoura arcaica, fui percebendo que o amor sempre teve um espao de grande

    1 NASSAR. Um copo de clera, p. 80.

  • 45

    peso nas narrativas desse autor, com destaque para os desenvolvimentos das personagens e do enredo. E no por coincidncia que a descrio da famlia da novela Um copo de clera e a do romance Lavoura arcaica se aproximam muito pela forma descrita. Em Nassar, o amor muitas vezes causador da discrdia. o excesso de amor que ativa o descaminho, a perdio, o orgulho, a reviso dos conceitos de mundo, da tradio, das experincias. isso que Andr narrador e personagem principal nos diz, pois em funo do seu amor por Ana, ou por si prprio, que ele profana2 os ensinamentos do Pai.

    [...] Pedro, tudo em nossa casa morbidamente impregnado da palavra do pai; era ele Pedro, era o pai que dizia sempre preciso comear pela verdade e terminar do mesmo modo, [...], mas era ele tambm, era ele que dizia provavelmente sem saber o uso que um de ns poderia fazer um dia, era ele descuidado num desvio, olha o vigor da rvore que cresce isolada [...].3

    Andr, ento, fez novos usos dos ensinamentos da famlia, usos que o favoreciam. Alm desse incontrolvel amor pela irm, Andr muitas vezes toma o lugar do predestinado ao mal, do torto, epilptico, descendente de Caim. Ele prprio faz uma auto-referncia dizendo ser um portador da cicatriz na testa, uma aluso aos textos bblicos. Isso faz com que o discurso do adolescente ganhe medidas estrondosas, mticas, como se a narrativa tivesse uma fora tirada dos lamaais da criao do universo; e o trabalho sobre linguagem na obra nos d perfeitamente essa noo. Dessa forma, o amor deixa de ser um simples afeto e passa a ser questo de existncia, de experincia e contestao da tradio: a construo ou a destruio. Mas como seria possvel o sentimento mais sublime ser causador de tanta discrdia? Seria o amor igual a

    2 "[...] profanar significa devolver ao uso comum o que foi separado na esfera do sagrado [...]. (AGAMBEN. Elogio da Profanao, p. 107)

    3 NASSAR. Lavoura Arcaica, p. 43. A partir daqui, todas as citaes referentes a esta obra viro assinaladas no texto, entre parnteses, seguidas dos nmeros das pginas a que se referem.

    46

    tudo na vida: possui duas medidas, como o vinho que serve para a adorao de Cristo, para metaforizar o sangue do salvador; por outro lado o mesmo vinho que desperta a ira adormecida no corpo doente, o vinho que liberta das amarras. Seria ele tambm um salvador. Mas, curiosamente no romance, o amor serve como dispositivo para lutar contra o tempo.

    o tempo

    Ento chegamos em outro ponto essencial para a anlise de romance. Falar sobre o tempo como falar do amor: discutir filosofia. Assunto muito caro a filsofos, literatos, escritores, matemticos, desde os tempos mais antigos. Toda a leitura de Alceu Amoroso Lima, na quarta capa de Lavoura arcaica, desgua no tempo. Creio que este elemento, para Raduan Nassar, foi matria principal para a construo da narrativa: o tempo que no nos favorece pelo esquecimento pois, no geral, quanto mais tempo se tem de vida, menor a capacidade de memria , pela impossibilidade do resgate das eras mais antigas, por se encontrar nele a grande dvida (ou a certeza) da criao, e das leis e de tudo.

    Podemos analisar sob diferentes perspectivas a questo do tempo no romance de Nassar: o tempo das personagens, cada uma encravada em uma doutrina antiga, ou mesmo escavando o corpo com as prprias unhas para registrar seu tempo como num livro; o tempo da obra; o da narrativa. Alm de o substantivo tempo aparecer escrito por oitenta e quatro vezes na narrativa, vrias personagens aparecem em algum momento da obra como se estivessem trabalhando sobre o tempo, ou sofrendo, ou se questionando, ou apenas aceitando as leis do tempo:

    [...] se esculturava o corpo inteiro quando uma haste verde atravessada na boca paciente era mastigada no com os dentes, mas com o tempo; e era ento uma cabra de pedra [...]. (p. 20-21). [...] a me envelheceu muito, eu continuei pensando nela noutra direo e pude v-la sentada na cadeira de balano, absolutamente s perdida

  • 47

    nos seus devaneios cinzentos, destecendo desde cedo a renda trabalhada a vida inteira em torno do amor e da unio da famlia. [...] (p. 38-39). [...] o pai cabeceira, o relgio de parede s suas costas, cada palavra sua ponderada pelo pndulo, e nada naqueles tempos nos distraindo tanto como os sinos graves marcando as horas: O tempo o maior tesouro de que um homem pode dispor; embora inconsumvel, o tempo o nosso melhor alimento, sem medida que o conhea, o tempo contudo nosso bem de maior grandeza: no tem comeo no tem fim; [...] onipresente, o tempo est em tudo, [...]. (p. 53-54).

    Toda essa recuperao sobre o tempo pode ser vista mesmo no ttulo da obra: lavoura vem do latim laboria, a preparao da terra para a sementeira ou plantao; arcaica descende do grego archaiks, aquilo que est fora de uso, rudimentar, antiquado, que pertenceu Antiguidade, ou tambm se refere quele que se dedica a estudar o que antigo, especialmente a linguagem. Ou seja, a famlia seria como uma plantao: semeando esta lavoura e trabalhando nela por tempo indeterminado que seus frutos ho de vingar. Esta terra, onde a famlia germina, est calcada no tempo que evoca os lugares e nunca poderemos ver nem pegar o saco de sementes da mo do primeiro lavrador, no entanto com obstinada cegueira que repetimos o mesmo gesto de abaixar sobre a terra e remover com nossas mos grossas o tero do universo.

    Mas para Andr estes instrumentos de culto vida esto obsoletos. Ele no quer continuar a tradio do pai, mas sim buscar novas experincias cabveis ao seu tempo e seus desejos. Este embate de tempos pacincia (Pai) X urgncia (Andr) juntamente com o dispositivo do amor amor da famlia, de Andr por sua irm Ana , servem de alicerce para toda a obra. Vm de um tempo antigo os ensinamentos da famlia, e viver com ela estar preso a um tempo comprimido onde passado e presente no se distinguem e impossibilitam um futuro desgarrado, diferente.4

    4 Ler: VILA. Mensagem na garrafa: aporias do sujeito do fim do milnio.

    48

    O tempo fsico irredutvel. Mas atravs dele que nos permitida a experincia, a memria, a tradio, a vida. Walter Benjamin inicia seu texto Experincia e Pobreza5 mostrando, atravs de uma parbola muito parecida com as que o pai de Andr conta , como a experincia nos era transmitida. Em Lavoura arcaica, observamos este mesmo mecanismo: a experincia passada para a famlia, para os filhos atravs do mais velho, o pai, pelas parbolas. Mas h recusa aos "ensinamentos promscuos do pai" por parte de Andr e de seus irmos Ana e Lula, o lado esquerdo da mesa. Para Andr, aquele tempo no existe; um tempo envelhecido, destitudo de verdade, engessado e cerceador dos seus desejos de liberdade/amor.

    O tempo da narrativa de Andr inclina-se muito ao tempo presente, apesar de ser relatado a partir de sua memria, suas lembranas. Claro que sempre no ato da leitura, momento da enunciao, esse tempo se tornar presente, mas esta caracterstica se torna ainda maior, pelo fato de que, nesta obra, a linguagem como uma personagem que se questiona, como o prprio Andr. Essa metalinguagem deixa o texto sempre muito pungente e atual. Cito trs passagens do dilogo entre pai e filho:

    Toda ordem traz uma semente de desordem, a clareza, uma semente de obscuridade, no por outro motivo que falo como falo. (p. 160) Conversar muito importante, meu filho, toda palavra, sim uma semente; entre as coisas humanas que podem nos assombrar, vem a fora do verbo em primeiro lugar. (p.162) [...] foi o senhor mesmo que disse h pouco que toda palavra uma semente: traz vida, energia, pode trazer inclusive uma carga explosiva no seu bojo: corremos graves riscos quando falamos. (p. 167)

    Poderamos falar que grande parte da narrativa de Andr est no seu tempo psicolgico. O que nos faz perceber o peso que este personagem carrega em relao ao amor, famlia, aos questionamentos da tradio, ao tempo. De

    5 Ler: BENJAMIN. Magia e tcnica, arte e poltica: ensaios sobre literatura e histria da cultura.

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    acordo com Benedito Nunes o primeiro trao do tempo psicolgico a sua permanente descoincidncia com as medidas temporais objetivas6, justamente o que ocorre nas longas falas de Andr que revelam seus sentimentos e pensamentos, onde o que seria um minuto real de cena tem maior durao, devido ao tempo psicolgico do personagem.

    O tempo possui uma vasta pluralidade de sentidos e por isso muitas vezes se torna difcil fechar conceitos. Em Lavoura arcaica, a construo da narrativa atemporal e se faz pelo fio condutor da memria de Andr, que busca no tempo histrico a tradio e que mostra pelo tempo psicolgico toda a fora que o discurso da obra tem: a fora que tm o amor de Andr, a tradio da famlia, a predestinao a ser torto, alm de toda a eficincia do trabalho literrio de Nassar.

    amor X tempo

    Alguns estudiosos, como Sabrina Sedlmayer,7 j apontaram que, por coincidncia ou no, o nome Ana em rabe significa eu. O fato de o autor ser de famlia rabe, cultura que est muito presente em Lavoura arcaica, corrobora para o pensamento de que o nome dado irm no foi por acaso. No podemos afirmar, s mais um mistrio para podermos buscar novas leituras. Se Andr profana toda a tradio porque est em busca do amor de Ana ou de si prprio, talvez no nos interesse como causa, mas sim o amor como o dispositivo das aes e estas inevitavelmente ocorrendo no/contra o tempo. O movimento de vida ocorre sobre um tempo, a escrita ocorre em um tempo, a elucidao sobre a escrita ocorre em outro tempo, as evocaes narrativas tambm e assim por diante. Estamos incrustados no tempo e suas variaes.

    6 NUNES. O tempo na narrativa.

    7 Ler: SEDLMAYER, 1999, p.7.

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    Existe um ciclo no tempo os segundos, as horas, os anos, sculos que sempre se fecha e recomea. Para ns, sempre irredutvel, apesar das repeties, j para o Tempo apenas continuidade. possvel pensar que justamente por isso que o tempo e o amor como nica razo para viver tema que sempre volta, que constante, cclico dentro da literatura universal.

    Cito:

    e, circunstancialmente, entre posturas mais urgentes, cada um deve sentar-se num banco, plantar bem um dos ps no cho, curvar a espinha, fincar o cotovelo do brao no joelho, e depois, na altura do queixo, apoiar a cabea no dorso da mo, e com olhos amenos assistir ao movimento do sol e das chuvas e dos ventos, e com os mesmos olhos amenos assistir manipulao misteriosa de outras ferramentas que o tempo habilmente emprega em suas transformaes, no questionando jamais sobre seus desgnios insondveis, sinuosos, como no se questionam nos puros planos das plancies as trilhas tortuosas, debaixo dos cascos, traadas nos pastos pelos rebanhos: que o gado sempre vai ao poo. (p.196)

    Este o trabalho do amor atravs da memria pelo tempo. Como podemos perceber, mesmo dentro deste embate, Andr termina sua narrativa homenageando seu pai, buscando na memria a tradio ensinada ao filho, uma forma de amor.

    No por acaso, encontrei um outro leitor de Raduan Nassar que acredita na clebre frase de que o amor a nica razo da vida. Falo do diretor de cinema Aluzio Abranches, que, em sua adaptao de Um copo de clera para o cinema, trabalhou sob a tica dessa frase. o que podemos ver, entre outras informaes sobre o diretor e seus trabalhos, em uma entrevista que realizei com Abranches e que tambm se encontra publicada neste caderno.

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    Referncias AGAMBEN, Giorgio. Profanaes. Traduo de Selvino Jos Assmann. So Paulo: Boitempo, 2007.

    VILA, Myriam. Mensagem na garrafa: aporias do sujeito do fim do milnio. In: VASCONCELOS, M. S; COELHO, H. R. 1000 rastros rpidos: cultura e milnio. Belo Horizonte: Autntica, 1999.

    BENJAMIN, Walter. Magia e tcnica, arte e poltica: ensaios sobre literatura e histria da cultura. So Paulo: editora Brasiliense, 1985.

    CHALUB, Samira. Semitica dos afetos: roteiro de leitura para Um copo de clera, de Raduan Nassar. So Paulo: Hacker, Cespric: 1997.

    JOBIM, Jos Luis. Palavras da crtica. Rio de Janeiro: Imago, 1992.

    NASSAR, Raduan. Lavoura arcaica. 3. ed. So Paulo: Companhia das Letras, 1989.

    NASSAR, Raduan. Um copo de clera. 5. ed. So Paulo: Companhia das Letras, 1992.

    NUNES, Benedito. O tempo na narrativa. So Paulo: tica, 1988.

    SEDLMAYER, Sabrina. Lavoura arcaica: um palimpsesto. So Paulo: Fundao Memorial da Amrica Latina, 1999.

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    Entrevista com Aluzio Abranches, diretor do filme Um copo de clera

    Assis Benevenuto Vidigal

    Primeiramente, agradeo ao Aluzio Abranches pela sua gentileza e disponibilidade em conceder esta entrevista. Farei aqui algumas perguntas que no pude encontrar em outras entrevistas concedidas pelo diretor.

    1. Como comeou sua carreira no cinema?

    Abranches: Na verdade foi meio por acaso. Formei em Economia no Rio de Janeiro e fui para Londres fazer um mestrado. Quando cheguei l me matriculei na escola de Cinema, mais ou menos assim mesmo: passei em frente, me informei, preenchi um pedido para entrar na escola. No fui entrevista do mestrado de Economia e em dois meses estava comeando a escola de Cinema. Claro que eu sempre gostei muito de assistir a filmes, gerao Godard, Fellini, Truffaut, Buel, por a.

    2. Antes de Um copo de clera voc gravou outros filmes?

    Abranches: Curtas metragens. Teve um que foi visto por mais de cinco milhes de pessoas, A porta aberta. Em uma poca em que era obrigado a passar um curta antes de um filme estrangeiro, e a passou com Batman ou Ligaes perigosas. Agora estou tentando recuperar os que fiz em Londres.

    3. Como foi trabalhar o texto das personagens no filme de forma to prxima a do texto escrito? Isso teve alguma influncia na escolha dos atores principais? De que forma se deu essa escolha?

    Abranches: No livro, o texto dele (do Homem). Muitas vezes ele descreve ou imagina situaes, tipo, se eu falasse

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    isso, ela responderia aquilo e ento eu diria para ela Tive ento que transformar os relatos e fantasias dele em cenas reais; difcil, mas, como o texto muito bom, prazeroso. A escolha dos atores foi um insight. No foi porque so casados, porque achei que seria mais fcil.

    4. Inicia-se o filme Um copo de clera com a imagem de um formigueiro, metfora utilizada por Nassar no livro homnimo, mas em outro momento do texto. Por que comear o filme explicitando aos espectadores essa metfora?

    Abranches: Achei a imagem bonita, o buraco do formigueiro, as savas agitadas, a msica, anunciando o que vem pela frente.

    5. Como foi a recepo do filme no Brasil e no exterior? Voc acha que existe um pblico mais preparado para receber a montagem do filme?

    Abranches: Muito boa tanto aqui quanto no exterior. um filme mais voltado a um pblico mais intelectualizado, claro, pois o texto sofisticado, as palavras e o significado delas so sofisticados. Mas tem a situao do relacionamento deles, tem o sexo que bom. Acho que isso interessa a todo mundo. Na Itlia o filme ficou um ano em cartaz.

    6. Porque voc acha que a Itlia recebeu muito bem Um copo de clera? Algo em especial?

    Abranches: Bom, os italianos so meio tarados e adoraram a Julia Lemmertz. Claro que, tambm, o filme chegou neles muito bem: o conflito de casal, o homem sozinho ainda pensando na me... Acho que teria ido muito bem na Frana tambm, os franceses adoram discutir esse assunto, mas no estreou l.

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    7. Em que tipo de cinema esteve seu filme na Itlia? Digo isso porque no Brasil, como em outros lugares tambm, existem em alguns cinemas somente filmes de determinado segmento, em outros nem tanto.

    Abranches: No circuito de cinema arte, mas foi muito bem lanado e ficou em cartaz durante um ano em muitas cidades.

    8. Na novela de Nassar, o narrador sugere uma relao sexual entre o casal. J no filme, a cena acontece de fato, mesmo que tambm sugerida pela imaginao do chacareiro atravs da saia da jornalista. O que o levou a querer desenvolver as cenas de sexo? Voc acha que elas do ao filme algo de essencial que somente a narrativa da novela no consiga?

    Abranches: Com certeza!!! Aquela relao sem sexo (BOM) no tem a menor