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PRODUÇÃO E REPRODUÇÃO: as famílias escravas na agricultura fluminense (1835-1885) uma perspectiva comparativa* Renato Rocha Pitzer** Este trabalho mereceu o 1? lugar do prêmio de Ciência e Tecnologia (Área da Ciên- cias Humanas) 1986 da Universidade Federal Fluminense (UFF), contando com a orientação do professor João Luiz Fragoso do Dept?de História da UFF. O Coletivo Editorial optou por publicar o texto em sua forma original, em virtude de ser um tra- balho premiado, tendo o autor incluído, ao final, um posfácio onde discute os desdo- bramentos e autocríticas ao projeto. " 24 anos, licenciado e mestrando em História pela UFF e membro do Coletivo Edito- rial da Revista Arrabaldes. 30 Revista Arrabaldes. Ano l, n°. 1, maio/agosto 1988 1 -INTRODUÇÃO Noventa e oito anos nos separam da abolição da escravatura. Estamos, pois, às vésperas do centenário do fim da escravidão negra no Brasil. Neste longo período, poucos estudos sérios dimensionaram coerente- mente o passado histórico do negro, tanto no período da escravidão, como no posterior, com a integração traumática do negro à sociedade brasileira. Os estudos perpassam, em geral, uma visão discriminatória do negro, oscilando entre o preconceito explícito, por um lado, que exclui ou reduz o seu papel, e por outro, não menos discriminador, que, embasado em um pa- ternalismo irritante, enaltece e idealiza a negritude, confirmando a grande estranheza que nossa sociedade ainda possui em relação aos 'de cor'. Se, para além disso, vislumbramos o problema da discriminação das mulheres em nossa cotidianidade, e por extensão, a questão de ser mulher negra neste Brasil, entramos em um campo bem mais delicado da história do país. Considerando que o estudo detalhado das famílias escravas é de grande valia para o melhor esclarecimento e redimensionamento destas questões até aqui levantadas, procuramos, a partir de três localidades distintas localiza- das no atual Estado do Rio de Janeiro —, perceber o que em cada uma delas de particular, e o que existe de semelhante entre elas, circunscrevendo tem- poralmente a pesquisa, em um período que precede e sucede o fim do tráfico negreiro, a fim de verificarmos as possíveis alterações provocadas por este na consecução de famílias negras cativas. Desde logo, faz-se necessário definirmos o que entendemos por família, evitando que a generalidade do conceito termine por invalidar a pesquisa. Para a existência de famílias escravas, consideramos essencial a existên- cia "do laço conjugai (legítimo ou ilegítimo) ou de um laço de paternidade ou maternidade" 1 . Fugimos, assim, das interpretações que, procurando as noções de com- padrio e parentesco, entendem a família de maneira mais ampla. A família que nos interessa, pois, possui um caráter restrito, podendo-se compor de ape- nas dois elementos (mãe/filho,pai/filho, marido/mulher). 1.1 - REVISÃO HISTORIOGRAFICA Este tema da família escrava nos pareceu interessante e polêmico quan- do, observando a historiografia brasileira, notamos a ênfase dada à inexistên- cia de famílias escravas no escravismo sul-americano. Esta tese é por vezes defendida de maneira dissimulada mas, na maioria dos casos, de forma enfáti- ca. As principais argumentações utilizadas por diversos autores, como Vera Ferlini, Jacob Gorender, Emília Viotti da Costa, Katia Mattoso e Stanley Stein 2 , são as seguintes: a) precariedade ou inexistência de vida familiar; b) a forte possibilidade de serem os escravos cônjuges ou filhos separados pela Arrabaldes 31

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Trabalho com o qual o historiador Renato Pitzer obteve o 1o lugar do prêmio de Ciência e Tecnologia (área de ciências humanas) em 1986 na Universidade Federal Fluminense. O trabalho foi orientado pelo Prof. João Fragoso, então professor do Departamento de História da UFF.

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Page 1: Produção e reprodução: as famílias escravas na agricultura fluminense (1835-1885) - uma perspectiva comparativa --- Renato Rocha Pitzer

PRODUÇÃO E REPRODUÇÃO:as famílias escravas na agricultura fluminense (1835-1885)— uma perspectiva comparativa*

Renato Rocha Pitzer**

Este trabalho mereceu o 1? lugar do prêmio de Ciência e Tecnologia (Área da Ciên-cias Humanas) — 1986 da Universidade Federal Fluminense (UFF), contando com aorientação do professor João Luiz Fragoso do Dept?de História da UFF. O ColetivoEditorial optou por publicar o texto em sua forma original, em virtude de ser um tra-balho premiado, tendo o autor incluído, ao final, um posfácio onde discute os desdo-bramentos e autocríticas ao projeto.

" 24 anos, licenciado e mestrando em História pela UFF e membro do Coletivo Edito-rial da Revista Arrabaldes.

30 Revista Arrabaldes. Ano l, n°. 1, maio/agosto 1988

1 -INTRODUÇÃO

Noventa e oito anos nos separam da abolição da escravatura. Estamos,pois, às vésperas do centenário do fim da escravidão negra no Brasil.

Neste já longo período, poucos estudos sérios dimensionaram coerente-mente o passado histórico do negro, tanto no período da escravidão, como noposterior, com a integração traumática do negro à sociedade brasileira.

Os estudos perpassam, em geral, uma visão discriminatória do negro,oscilando entre o preconceito explícito, por um lado, que exclui ou reduz oseu papel, e por outro, não menos discriminador, que, embasado em um pa-ternalismo irritante, enaltece e idealiza a negritude, confirmando a grandeestranheza que nossa sociedade ainda possui em relação aos 'de cor'.

Se, para além disso, vislumbramos o problema da discriminação dasmulheres em nossa cotidianidade, e por extensão, a questão de ser mulhernegra neste Brasil, entramos em um campo bem mais delicado da história dopaís.

Considerando que o estudo detalhado das famílias escravas é de grandevalia para o melhor esclarecimento e redimensionamento destas questões atéaqui levantadas, procuramos, a partir de três localidades distintas — localiza-das no atual Estado do Rio de Janeiro —, perceber o que em cada uma delashá de particular, e o que existe de semelhante entre elas, circunscrevendo tem-poralmente a pesquisa, em um período que precede e sucede o fim do tráficonegreiro, a fim de verificarmos as possíveis alterações provocadas por este naconsecução de famílias negras cativas.

Desde logo, faz-se necessário definirmos o que entendemos por família,evitando que a generalidade do conceito termine por invalidar a pesquisa.

Para a existência de famílias escravas, consideramos essencial a existên-cia "do laço conjugai (legítimo ou ilegítimo) ou de um laço de paternidade oumaternidade"1.

Fugimos, assim, das interpretações que, procurando as noções de com-padrio e parentesco, entendem a família de maneira mais ampla. A famíliaque nos interessa, pois, possui um caráter restrito, podendo-se compor de ape-nas dois elementos (mãe/filho,pai/filho, marido/mulher).

1.1 - REVISÃO HISTORIOGRAFICA

Este tema da família escrava nos pareceu interessante e polêmico quan-do, observando a historiografia brasileira, notamos a ênfase dada à inexistên-cia de famílias escravas no escravismo sul-americano. Esta tese é por vezesdefendida de maneira dissimulada mas, na maioria dos casos, de forma enfáti-ca. As principais argumentações utilizadas por diversos autores, como VeraFerlini, Jacob Gorender, Emília Viotti da Costa, Katia Mattoso e StanleyStein2, são as seguintes: a) precariedade ou inexistência de vida familiar; b) aforte possibilidade de serem os escravos cônjuges ou filhos separados pela

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venda a proprietários distintos; c) a prática de aborto proposital entre as es-cravas; d) a alta taxa de mortalidade infantil no meio escravo; e) a superiori-dade numérica de escravos do sexo feminino, o que levaria a um baixo índicede nascimentos.

Estas posições nos parecem problemáticas se não forem tratadas com odevido cuidado. Raramente os estudos sobre a família escrava são acompanha-dos de um estudo da família de homens livres, onde se atentasse para o per-centual de procriação destas famílias. Somente um estudo neste nível poderiarevelar se o índice de procriação e a existência de famílias eram tão insignifi-cantes no meio escravo como pretenderam demonstrar os autores citados. Al-guns estudos recentes sobre a família têm demonstrado que a 'família nuclear',rigidamente estabelecida, não era hegemônica entre a população livre noséculo XIX3. Como se exigir, portanto, tal rigidez da família escrava? A res-peito do desequilíbrio existente entre os homens e as mulheres escravas, gos-taríamos de recordar que, também aí, a preferência recai em demonstrar-se obaixo índice de nascimentos de escravos em relação ao número de cativosdo sexo masculino. Ao nosso ver, a perspectiva mais frutífera seria a de per-guntarmos quantas escravas em idade madura procriaram neste ou naqueleperíodo, e quantas das que procriaram eram casadas (legítima ou ilegitima-mente).

Dois pontos parecem importantes para a tomada de posição daquelesautores por nós citados:

a) Em primeiro lugar, a retomada, ainda que despida da roupagem racis-ta, dos pressupostos de Gilberto Freire4, que compreendia a impossibilidadeda existência da família escrava, na medida em que a autoridade do senhor dafazenda impediria que o marido ou mulher escravos possuíssem qualquerautonomia familiar. A família patriarcal do senhor abrangeria sua mulher,seus filhos, seus afilhados, agregados e escravos. Esta família ampla, somadaaos diversos elementos acima arrolados, inviabilizaria a família escrava.

b) Em segundo lugar, o referencial utilizado por estes autores — paraafirmarem a 'esterilidade' do escravismo brasileiro — é o Sul dos Estados Uni-dos da América, que se caracteriza por um alto índice na formação de famí-lias escravas e uma alta taxa de natalidade entre os cativos. Como já objeta-mos, o mais razoável seria termos como referencial a sociedade em que os pró-prios cativos vivem, rompendo com a dualidade (Escravismo na América Lati-na = Estéril x Escravismo no Sul dos EUA = Fértil)5. Além disso, quandopensássemos em influências efetivas provindas do exterior, deveríamos estu-dar com mais atenção as sociedades africanas de onde provêm os negros cati-vos, a fim de desprezarmos as interpretações correntes que persistem, porexemplo, em associar a poligamia africana à promiscuidade, devassidão, etc.6.

Outra tese criticável é aquela que advoga o fim do tráfico negreiro(1850), cujos defensores vêem uma ruptura imediata e uma relação direta decausa-efeito (fim do tráfico negreiro = maior incentivo por parte dos senhoresâ procriação)7. Esta interpretação despreza a heterogeneidadeeconômica bra-sileira em meados do século passado. Pensar que o impacto do final do tráfico

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negreiro deu-se de maneira indiferenciada em todo o Brasil, nos parece umafórmula um tanto ingênua, decorrente das generalizações correntes na histo-riografia brasileira, que carecem dos devidos embasamentos empíricos.

1.2 -PERSPECTIVA COMPARATIVA

Acreditamos, em vista disso, que o estudo comparativo é o mais fecun-do para a construção de sínteses gerais, a partir do estudo minucioso de maisde uma localidade. E no caso de um trabalho detalhado a respeito das famíliasescravas, destacamos este método de pesquisa.

O método comparativo é a única forma de superarmos a perspectiva po-sitivista da descrição, passando para a explicação, distinguindo os elementosespecíficos daqueles ocasionais, no dizer de Ciro Cardoso:

"Esta é uma tendência que de fato constitui um processoessencial no caminho para a sistematizaçSo dos conhecimen-tos, entre outras causas porque possibilita ao observador afas-tar-se de seu próprio ponto de observação, de sua sociedadeparticular: sem o que nSo há objetividade possível nas ciên-cias sociais" .

As localidades em que pretendemos nos deter estão circunscritas aoatual Estado do Rio de Janeiro, no período que vai de 1835 a 1885, e são asseguintes: Paraíba do Sul, Petrópolis e Capivary.

Paraíba do Sul caracteriza-se fundamentalmente pela produção agro-exportadora de café, fundada na exploração da mão-de-obra escrava. Petró-polis distingue-se pela pequena produção agropecuária, realizada majorita-riamente por imigrantes livres alemães com destino ao mercado local. Final-mente, Capivary caracteriza-se pela produção, pequena e média, de café (dequalidade inferior ao do Vale do Paraíba) e alimentos, ambos para o mercadointerno, utilizando tanto o negro cativo no processo produtivo, com os ho-mens livres pobres do município.

1.3 -PROPÓSITOS E PRESSUPOSIÇÕES

Nosso objetivo é, portanto, demonstrar a existência de vida familiar cati-va nestas localidades distintas, procurando perceber as nuanças destas famíliasem relação ao processo produtivo em que se inserem. Vida familiar que, ape-sar de dever obediência, respeito e favores ao Senhor, possuía uma relativaautonomia em face deste.

Como pressuposto principal, procuraremos demonstrar que as famíliasescravas interferiam efetivamente no cálculo econômico do senhor escravocra-ta. Quando estes transmitiam herança ou vendiam seus escravos, deveriampensar como partilhar ou vender sem dissociar as famílias escravas estabele-cidas. A transmissão desta propriedade dava-se hegemonicamente, ao nossover, de forma coletiva (o 'lote familar') e não individual (a unidade escrava).

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Subsidiando esta hipótese, verificar, a partir da construção de séries,se há um impacto imediato, decorrente do fim do tráfico negreiro, na taxa deprocriação e de famflias escravas, ou se — como pudemos averiguar em Pa-raíba do Sul — este reflexo se sentirá posteriormente e de maneira diferencia-da nas diversas localidades. Estudar se há uma variação (tanto no tempo comono espaço) do período intergenético das negras cativas. Verificar, ainda, se asuniões entre escravos, explicitadas nos inventários post mortem, eram reali-zadas à luz da Igreja Católica (casamentos legítimos) ou eram relações deconcubinato (casamentos ilegítimos).

Finalizando esta parte do trabalho, devemos salientar que a pesquisaem Paraíba do Sul já está relativamente amadurecida9 e que os principaisquestionamentos sobre as famílias escravas surgiram a partir do contato comesta localidade, sendo, pois, ela norteadora de nossas presentes preocupações.

2 -PARAÍBA DO SUL: UM PONTO DE PARTIDA

2.1 -BREVE RELATO HISTÓRICO

O município de Paraíba do Sul localiza-se no médio vale do rio que lhedá o nome, a meia distância entre as Minas Gerais e Rio de Janeiro, marcadopor uma topografia com relevos de pouca elevação — as chamadas 'meias la-ranjas' — que tanto se adaptariam ao cultivo do café.

Em conjunto com Vassouras e Valença constituem-se nos municípiosque mais produziram café, no já lendário Vale do Paraíba, durante o séculoXIX.

No início do séc. XIX, se caracterizava pela presença abundante dematas e florestas virgens, e ainda por uma baixa densidade demográfica. Se-gundo um cronista da época, "o total das pessoas adultas não passava de 500(segundo o rol do Pároco)"10. Margeando-se a estrada nova, por ranchos dearrear tropas — locais utilizados pelos tropeiros que vinham e voltavam deMinas ao Rio de Janeiro, para descansarem a si e a seus animais —, contras-tando o intenso tráfego da estrada com a precariedade dos estabelecimentosque ali se encontravam.

Em meados do séc. XIX, o desenvolvimento urbano não é significativo,mas a agricultura apresenta diferenças notórias, para João Fragoso:

"Já nesta época o sistema agrário da economia de expor-tação imprimia uma nova fisionomia aos campos de Paraíbado Sul, As matas estavam sendo substituídas pelas fazendasde café"11.

É, pois, o café que dará nova forma e vida ao nosso município, formaesta indissociada do mercado externo, devido às características e valor inter-nacional desta cultura. A técnica utilizada era a derrubada e queimada dasmatas, demonstrando o caráter extensivo da produção. Segundo João Frago-so, "a presença e disponibilidade das matas substituem a aplicação de um tra-balho adicional na refertilização dos solos12", sendo portanto a fronteiramóvel da produção um elemento fundamental para sua reprodução13.

Arrabaldes

Conforme o censo de 1840, a população do município era de 11.586habitantes, com uma densidade demográfica bastante baixa (9 habitantes porkm2)14. Torna-se claro que esta baixa densidade coloca em evidência a ques-tão da mão-de-obra necessária a mover esta economia.

A mão-de-obra utilizada será a do negro cativo, provenientemente majo-ritariamente da África, como podemos verificar na Tabela I.

TABELA I: Distribuição Entre Africanos e Crioulos em Relação aoPlantei Total-Paraíba do Sul (1835-1869).

período africanos crioulos n? de escravos n? de inventários

1835/391840/491 850/541855/591860/641865/69*

56,762,364,550,742,232,6

43,337,735,549,357,867,4

712509411

1.0211 .009

478

312314312416

Total 4.140 139

* Inclui os inventários de 1870.Fonte : Inventários Cartório de Paraíba do Sul.(Citado em FLORENTINO, Manolo G. e FRAGOSO, João L. R. Marcelino, filho de Ino-cência, crioula, neto de Joana, cabinda: um estudo sobre famílias escravas em Paraíba doSul (1835-1872). S,P. Revista de Estudos Econômicos. 17(2): 151-173. maio/ago. 1987.

No entanto, podemos perceber, pela mesma tabela, a não desprezívelparticipação dos crioulos — negros escravos nascidos no Brasil — à reproduçãodo plantei. Percebe-se que eles representam nunca menos que 35% do totaldos escravos.

Em síntese, os principais fatores para a reprodução do sistema escravis-ta-agrário-exportador em Paraíba do Sul são a terra e a mão-de-obra. No quetange à mão-de-obra, existem duas formas de reprodução: a primeira ligada àcompra de Africanos, e a segunda — que nos interessa em particular — ligado àreprodução dos negros no Brasil (os crioulos).

2.2 -A FAMÍLIA ESCRAVA

Como salientamos anteriormente, a historiografia tem relutado em acei-tar a idéia da conformação de famílias escravas no seio do escravismo colo-nial, no século XIX. Apontando problemas como o do alto índice de mortan-

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dade infantil, a preferência de compra de escravos homens em idade produtiva(15 a 40 anos)15.

. Se é certo, como consideramos, que a mortalidade dos infantes fossealtíssima, e que a desproporção entre homens e mulheres flagrante, como seatesta pela Tabela II, não nos parece correto depreendermos daí, que estefato inviabilize a existência de famílias escravas. Nos inventáriosposf mortempodemos verificar a existência das mesmas, como é possível aferir através daTabela III.

TABELA II: Distribuição Entre Homens e Mulheres em Relação aoPlantei Total - Paraíba do Sul (1835-1869).

período

1835/391840/491850/541855/591860/641865/69*

Total

homens(%)

66,963,762,864,657,560,9

mulheres(%)

33,136,337,235,442,539,9

n? de escravos

719509470

1.3011.789

595

5.383

n? de inventários

322115153517

135

* Inclui os inventários de 1870.Fonte: Inventários Cartório de Paraíba do Sul.(Citado em FLORENTINO, M. e FRAGOSO, J. - Marcelino. . . p. 11)

Se cruzarmos as informações contidas na Tabela l com as da Tabela III,verificaremos que, ainda que a opção dos senhores escravocratas fosse clarapelo tráfico negreiro, pelo menos 1/3 dos cativos estava ligado por laços deparentesco e conformando famílias.

Mediante as informações contidas nestas três tabelas podemos, ainda,contestar as posições que vêem o final do tráfico negreiro como um momentode grande ruptura na mentalidade do senhor escravocrata, ocasionando maiorincentivo por parte deste à procriação dos escravos. Se é óbvio que tal incen-tivo existiu com o fim do tráfico, isso não quer dizer que no período que pre-cede à sua revogação não existissem famílias escravas. A Tabela III demonstraclaramente que no período 1835/9 os escravos unidos por parentesco reu-niam 39,2% do total do plantei, enquanto no período 1865/70, ou seja, 20anos após a abolição do tráfico negreiro este número alcança a cifra de 42,5%.

, Arrabaldes

TABELA III: Distribuição dos Escravos de Acordo com as Famílias —Paraíba do Sul (1835-1869).

período

1835/391840/491850/541855/591860/641865/69*

n?de escravos unidos por n? defamílias parentesco (%) mães

663043

10612960

39,238,631,731,744,342,5

61303596

12460

total deescravos

525241378935951459

n? deinventários

1084

16157

T~*.,I /n/i arifi t ÍHQ m

* Inclui os inventários de 1870.Fonte: Inventários Cartório de Paraíba do Sul.(Citado em FLORENTINO, M. e FRAGOSO, J. -Marcelino. . ., p. 14).

Uma variação de apenas 2,3% em 35 anos. Podemos, assim, afirmar que a ten-dência à conformação de famílias precede o final do tráfico.

Durante as décadas de 1850 e 1860, o município sul-paraibano viveseu apogeu com a cultura do café. Sendo, pois, grande comprador de negroscativos pelo mercado interno, no chamado tráfico interprovincial e, portanto,ressentir-se-á tardiamente dos males do fim do tráfico internacional.

2.3 -MERCADO DE FAMÍLIAS ESCRAVAS?

A questão do tráfico, ou melhor, da forma de se adquirir escravos, nosremete a uma outra problemática. A de sabermos como se devam as compras/vendas de escravos e como se transmitiam os mesmos em heranças. O fato deestarem eles ligados por laços familiares intervinha nesta transmissão? Esteslaços eram respeitados, ou as famílias eram desagregradas neste ato de trans-ferência de propriedade?

Uma primeira aproximação aos registros de compra e venda de escravosem Paraíba do Sul nos levou a desenvolver a idéia de um 'mercado de famí-lias', ou seja, ao nosso ver as famílias escravas interferiam no cálculo econômi-co dos senhores escravocratas16. Temos em favor desta hipótese as partilhasconstantes nos inventários post mortem. Em síntese, no ato de transmissão deherança ou negociação de escravos, os seus proprietários, na maioria das vezes,não disssociavam as famílias escravas estabelecidas. No inventário de Manoel

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Joaquim de Oliveira, fazendeiro de café em Paraíba do Sul, a inventariante,esposa do finado e meeira dos bens, requer que, para pagamento de sua mea-ção, lhe seja dada "parte dos cafezais do Sítio, Tapera, Gaite, Inhane, a Famí-Ha do escravo Romão, a do escravo Augusto, Anna Parda. . ,"17.

As questões referentes à presença de famílias escravas, à existência deum mercado para estas famílias, e à sua recorrência no tempo, apresentam-seainda como hipóteses a serem precisadas — apesar de a pesquisa em Paraíbado Sul já estar um tanto encaminhada neste sentido. Não podemos deixar delembrar que o presente texto não possui um caráter conclusivo, na medida emque os registros de compra/venda de escravos n3o foram por nós trabalhadossistematicamente.

Através dos inventários é possfvel reconstruir algumas árvores genealó-cas de escravos, o que nos permitiria aferir a recorrência destas famílias notempo, visto que,

"na verdade, na medida em que a famflia se repete notempo juntamente com o próprio sistema produtivo, ela deve-rá ser considerada como um elemento estrutural para a estabi-lidade deste último" .

2.4 -BRECHA CAMPONESA/FAMÍLIAS ESCRAVAS-COMUNIDADE ESCRAVA

Algumas reflexões teóricas nortearam a confecção do presente projetode pesquisa. No caso sul-paraibano, ganham particular importância as reflexõesdesenvolvidas por Ciro Cardoso sobre a brecha camponesa no sistema escravis-ta. No chamado protocampesinato escravo, eram as "atividades agrícolas reali-zadas por escravos nas parcelas, e no tempo para trabalhá-las, concedidas paraeste fim no interior das fazendas"19. Nesta 'brecha camponesa' o escravo pos-suía uma relativa autonomia produtiva, à margem da produção do senhor.Nos terrenos comuns "o trabalho era de tipo familiar, embora a abertura dasclareiras fosse realizada coletivamente"20. Em sua conclusão, esclarece que;

"(. . .) nem todos os cativos se beneficiavam com o siste-ma mencionado: os escravos domésticos e urbanos, e nas fa-zendas em muitos casos os solteiros, não dispunham da possi-bilidade de exercer atividades econômicas"21.

Ciro Cardoso vê na brecha camponesa um componente estrutural daeconomia escravocrata, na medida em que, contribuindo para a subsistênciada mão-de-obra escrava, reduzia sobremaneira as perdas do senhor com a ali-mentação dos mesmos, além de atuar como uma válvula de escape para asinsatisfações dos escravos22.

Se introduzirmos a estas reflexões a idéia de famílias escravas estáveisno tempo, temos quase um círculo que se fecha em torno de si mesmo. Umavida na lavoura de café, mas, sobretudo, uma vida marginal que não nega a

a, e ao contrário, é um fator de 'estabilidade' social na relação senhor-

Arrabaldes

escravo, uma demonstração da capacidade de autonomia relativa do escravoem relação ao senhor.

"Não é diffcil perceber o peso do que aqui chamamos decomunidade de cativos na própria gestão econômica das-em-presas em questão, mais clara a partir de 1850, quando o mer-cado interno e a reprodução endógena se transformaram nospilares da reprodução do sistema" .

Para concluir esta parte do trabalho, reiteramos que Paraíba do Sul é areferência teórica de nossa pesquisa, o ponto de partida para as demais regiõesfluminenses, onde pretendemos verificar estas proposições até agora levanta-das.

3 -SOBRE A GENERALIDADE NA HISTORIOGRAFIA BRASILEIRA/OS CONTRAPONTOS: PETROPOLIS E CAPIVARY

"A idéia de que um produto possa estruturar toda a eco-nomia não parece comprovada nem por aqueles historiadoresque acreditam no poder organizador do produto-Rei. No fun-do, o que permanece é a concepção de que os vínculos co-merciais de um produto com o mercado mundial s3o suficien-tes para dotá-lo de certa magia, que se irradia por todos osdemais setores da economia colonial, dando-lhe um sentidoinequívoco; é incapaz de perceber que o sentido é dado aposterior! pelo historiador que relaciona, organiza, selecionae expõe o seu material histórico. Entretanto, tal concepçãosó tem favorecido uma visSo compartimentada e estanqueda história, como numa projeção de diapositivos: sai o pau-brasil, entra o açúcar e assim por diante. Durante o períodode dominância do ouro ou dos diamantes, o aluno de histó-ria — sobretudo os adolescentes — poderia indagar se o açú-car, ou mesmo o Nordeste continua existindo" .

A idéia central, criticada por Yedda Linhares e Francisco Carlos, é aque-la que preconiza a existência de ciclos na economia brasileira, ou seja, apóso início de sua colonização, o Brasil vivenciaria diversos ciclos econômicos —ciclo da extração do pau-brasil, da cana-de-açúcar, da mineração, do café,etc. . . —, ciclos estes que teriam um período de ascensão, apogeu e decadên-cia ou desaparecimento e que se sucederiam no tempo.

Tal análise leva, sem dúvida, a um desprezo das atividades econômicasmenos lucrativas. Ainda que estas possam manter uma grande parcela popula-cional, são ignoradas ou relegadas a segundo plano por não se integrarem na'economia de ponta' da sociedade. Para além de um desprezo às'atividadesdesenvolvidas em outras regiões, desprezam também aquelas desenvolvidasna própria localidade onde o 'ciclo' ocorre. Por exemplo, em Paraíba do Sulhavia a produção de alimentos realizada tanto por homens livres pobres comopor escravos, nas parcelas a eles destinadas para este fim. No entanto, tal pro-dução ligada ao abastecimento interno é-negada pela historiografia, em virtu-de de "uma visão plantacionista da sociedade colonial"25.

Arrabaldes 39

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lDe tudo que foi dito, fica patente a generalidade despropositada da his-

toriografia tradicional brasileira. Generalizações que não levam em conside-ração as diversidades econômicas e sociais da sociedade em questão, e querevelam sobretudo um baixo embasamento empírico às afirmações que sequerem gerais.

Entretanto, não desejamos com isso voltar-nos a um empiricismo posi-tivista. Pleiteamos alcançar o geral através de um estudo do particular, e "nes-te caso é perfeitamente válido e possível abordar a análise das estruturasparciais, com a condição de não perder de vista as determinações globais"26.

É neste sentido que consideramos imprescindível a uma pesquisa sobrefamílias escravas no Rio de Janeiro, um estudo do comportamento destas fa-mílias em localidades tipicamente distintas. Procurando formular um modeloque esteja aberto às suas vicissitudes conjunturais e distinguindo-se o compor-tamento familiar particular do geral.

Desta forma, passamos a uma discussão sumária dos casos que farão con-traponto ao modelo sul-paraibano.

3.1 -PETROPOLIS

3.1.1. - PARA NOS SITUARMOS

A localidade que pretendemos estudar está situada na Serra do Mar, auma altitude de 840 metros, mais precisamente, no alto da Serra da Estrela,distando 40 km do Rio de Janeiro. A altitude imprime ao clima temperaturasbaixas, e a floresta, ainda hoje abundante, contribui para que a região petro-politana seja bastante úmida. As chuvas são freqüentes o ano todo, ocasiona-das pelo encontro das massas úmidas, advindas do mar atlântico, com a Serrado Mar. Tanto a topografia como o clima desestimularam, desde os primór-dios da ocupação, o plantio de café, ocasionando um povoamento tardio nes-ta região.

Com o descobrimento de ouro nas Minas Gerais no século XVIII, pas-sou a ser urgente a construção de um caminho que facilitasse o acesso e otransporte do interior mineiro ao litoral fluminense, sendo então, em 1725,concluída a construção do chamado 'Caminho Novo', que ligava Minas Ge-rais ao Rio de Janeiro, saindo do Porto da Estrela, localizado ao fundo daBaía de Guanabara, atingindo o Alto da Serra petropolitana, cortando o RioParaíba do Sul e chegando finalmenteà capitania de Minas Gerais27. Em 1837,são feitos melhoramentos no 'Caminho Novo', empregando-se alguns traba-lhadores alemães nesta obra, sob a gerência do Engenheiro Júlio Koeler. Estecaminho seria, durante o século XIX, o principal escoadouro do café produzi-do no Vale do Paraíba.

Em 1830, a família imperial adquire, por compra, a Fazenda do Córre-go Soco, que corresponde a grande parte da área onde atualmente situa-se Pe-trópolis. Treze anos depois, D. Pedro II aprova a construção de um Palácio

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Imperial de Verão e o arrendamento da fazenda para o encaminhamento deum projeto de colonização, criando-se assim o núcleo de povoamento que umdos projetistas (Paulo Barbosa, Mordomo da Casa Imperial) denominou de"Povoacão-Palácio de Petrópolis".

Em 1845, chegam a Petrópolis aproximadamente 2.000 alemães. Vi-nham eles em famílias e a cada família era dado um 'prazo' de terras que oscolonos poderiam dispor em usufruto, cabendo a propriedade ao Imperador.Provinham os colonos em sua maioria de zonas rurais, expulsos de suas terraspelo processo de capitalização dos campos europeus. No entanto, não se podenegar que existissem entre eles grande parcela de artesãos, com uma vida urba-

na bem desenvolvida.Em 1846, o Arraial do Porto da Estrela é elevado à categoria de Vila da

Estrela, freguesia de S. Pedro de Alcântara de Petrópolis.Desde princípios da fundação da colônia, salta aos olhos o caráter urba-

no que ela vai tomando: os prazos de terras não erarn suficientes para que oscolonos se dedicassem exclusivamente à agricultura, terão logo de início quedesenvolver atividades não agrícolas para sobreviver. Praticam com freqüênciaa criação (de porcos e vacas principalmente), que atendia tanto ao mercadointerno como reduzia a necessidade de comprar tais produtos e seus derivadosno mercado, reduzindo assim as despezas caseiras. Participam da construçãodo Palácio, das obras para abertura da Estrada Normal da Estrela, e da cons-trução de pontes, escolas, igrejas, etc. . . Tendo, ainda, do ponto de vista daurbanidade, o surgimento desde o princípio de um artesanato (marceneiros,oleiros, ferramenteiros, etc.) que desempenhava papel importantíssimo noestabelecimento da Colônia.

Vale esclarecer que estas atividades não possuíam um caráter antagôni-co ou contraditório. Ao nosso ver tinham um caráter complementar. Ao queparece, existia uma relativa divisão familiar do trabalho, saindo o homem atrabalhar em atividades mais distantes da terra, e a mulher e filhos desenvol-vendo a criação e a agricultura.

Em 1854 é inaugurada a estrada de ferro unindo a Praia da Estrela àRaiz da Serra de Petrópolis. Dois anos após, tem início a construção da Estra-da União-lndústria, que ligaria Petrópolis a Juiz de Fora (MG)28. Em 1857, aVila de Petrópolis é elevada à condição de Cidade, instalando-se em 1859a Câmara Municipal de Petrópolis.

A manufatura e a indústria também aumentaram, e Petrópolis chegaráao final do século com um parque industrial que congregava cerca de 2.000operários, tendo como atividade principal a produção têxtil.

Enfim, a comunidade de Petrópolis se desenvolve de modo claramentedistinto das formas escravistas agroexportadoras encontradas no decorrer doséculo XIX. Sua produção não se destina ao mercado externo e nem se baseiana mão-de-obra escrava.

A bibliografia a respeito de Petrópolis possui diversos problemas ligadosà formação dos historiadores que a produziram. Marcados profundamente pe-lo positivismo, preferem exaltar personalidades e a operosidade do colono ale-

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mão, desprezando análises de maior profundidade teórica. Os trabalhos deboa qualidade são poucos, carecendo assim ainda a comunidade de uma pes-quisa mais aprofundada29.

3.1.2 - NEGROS NA COMUNIDADE BRANCA

Os negros poucas vezes são citados nos estudos desenvolvidos por estu-diosos dos assuntos históricos petropolitanos. Um leitor inadvertido poderia,facilmente, imaginar a completa inexistência do negro, cativo ou não, na co-munidade a que nos curvamos. No entanto, eles estão presentes mesmo noperíodo anterior à fundação da colônia, e em 1854, já com o núcleo coloni-zador germânico bastante consolidado, os negros totalizavam 12,5% da popu-lação da Imperial Colônia de Petrópolis.

Segundo o Diretor da dita Colônia, a população total era de 5.280 al-mas, sendo 2.743 colonos alemães, 2.501 extracolonos (de diversas nacionali-dades), 623 escravos e 36 africanos livres30. Ou seja, os escravos representa-vam 11,7% da população, o que certamente não deve descriteriosamente serdesprezado na análise da comunidade.

E é justamente sobre este núcleo que gravita a nossa preocupação. Com-preender como as famílias escravas se comportam em uma comunidade majo-ritariamente assentada sobre o trabalho livre, marcada pela urbanidade e n3opela união pura e simples do homem à terra. Como se desenvolverão as famí-lias escravas sem o componente de uma produção agrícola relativamente autô-noma (como vimos no caso sul-paraibano, com a brecha camponesa)? Ter afamília escrava petropolitana a mesma estabilidade que acreditamos teremconseguido as sul-paraibanas?

Em diversas atitividades, os colonos alemães labutavam lado a lado comos negros escravos, como na construção da Estrada Normal da Estrela, inicia-da em 1843, ou nas obras do Palácio Imperial de Verão.

Interessante observarmos que a vinculação pejorativa, tão freqüente-mente feita nas zonas agroexportadoras brasileiras, do trabalho manual en-quanto o trabalho escravo não parece ter correspondência nesta localidadeque pretendemos estudar. O trabalho manual era exaltado. Poder-se-ia objetarque, pejorativamente, se dissesse que o trabalho escravo era de baixa qualida-de, mas não discriminá-lo por ser manual.

Outro ponto que nos chamou atenção é que, segundo os inventários pornós consultados em Paraíba do Sul, aparecem com freqüência, nas contas dosfazendeiros falecidos, recibos de compras de escravos feitos na Serra da Estre-la, o que demonstra que, em Petrópolis, existiria um comércio bastante abun-dante de compra e venda de escravos.

As fontes que utilizaremos para esta pesquisa serão, preferencialmente,os inventários post mortem e os registros paroquiais. Entretanto, para o perío-do que precede a fundação da Colônia, necessitamos de um levantamentomais profundo das fontes a serem utilizadas, devido à quantidade de inventá-rios, antes da fundação, ser muito reduzida e nos parecer insatisfatória.

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Temos então que lançar mão de fontes que complementem o nosso es-tudo. As evidências quanto às famílias escravas, neste período anterior a1845, encontram-se em relatos de época, como o depoimento do alemão C.Schilichthoret, que, descrevendo uma viagem marítima entre o Rio de Janeiroe o porto da Estrela, nos diz o seguinte:

"Gordíssima negra estabelecera à proa da embarcaçãouma cantina ambulante, servindo excelente café. A filha, es-perta menina de 12 anos, ao trazer-me minha caneca, cha-mou-me de 'Excelência' e me beijou a mSo (. . .)"31.

Explicitando uma relação mãe-filha, ainda que não saibamos se estanegra era cativa ou liberta.

Outra fonte rica, que pode — e deve — ser utilizada são os testamentos.A título de exemplo, citamos o do padre Luiz Gonçalves Dias Correia,

proprietário da Fazenda Samambaia, em Petrópolis, feito em 1844, e que dizo seguinte:

"(. . .) Dei liberdade aos meus escravos Guido e a suamulher Lucinda, pretos e africanos, igualmente a seu filhoAbraão, etambém a Emerenciana e aGetúlio. (. . .) Por minhamorte deixo também libertos os meus escravos Gil e sua mu-lher Damiana, Reinaldo e sua mulher Claudina, com a condi-ção de servirem aos meus herdeiros por espaço de dois anos.(. . .) Deixo em legado aos meus libertos AbraSo e à sua mu-lher, se a tiver, a Getúlio e a Emerenciana, se já estiveremcasados, o usufruto do terreno. Casas, pomar e benfeito-rias". . . .

A utilização dessas fontes não deve ser feita de maneira aleatória, e simsistematicamente, a fim de percebermos as mudanças na estrutura das famíliascativas no tempo e no espaço.

Concluindo esta parte, desejamos realçar a relevância do tema das famí-lias em Petrópolis, na medida em que um estudo sistemático pode 'prever', oumelhor, antecipar um pouco daquilo que ocorreria com a mão-de-obra cativaapós a abolição, inserida repentinamente numa sociedade cujo trabalho se tor-nara livre no mercado.

Enquanto a totalidade da economia brasileira se movia pela mão-de-obra escrava, sendo, pois, o trabalho livre marginal, em Petrópolis ocorre exa-tamente o contrário, à margem da produção, encontramos o trabalho cativo.

3.2-CAPIVARY

A última região da qual pretendemos averiguar as famílias escravas éCapivary, atual Silva Jardim. Salientamos que o nosso contato com esta regiãose dá apenas através da leitura da tese de mestrado de Hebe de Castro e docontato com a própria autora33. Sendo assim, o estudo nesta localidade é oque se encontra em estágio mais inicial.

Localizado nos contrafortes da Serra do Mar, Capivary se insere em umamicro região na qual podemos inserir os municípios de Rio Bonito, Cachoeira

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de Macacu e partes de Campos e Macaé, caracterizados, a grosso modo, pelabaixa altitude e por morros, pequenas colinas arredondadas, as "meias-laran-jas", que não ultrapassem algumas dezenas de metros34, quase totalmente jádestruídos em nosso século, devido ao desgaste ocasionado pelo uso exausti-vo, principalmente com a cultura cafeeira.

As dificuldades ecológicas do local impuseram, desde o início, uma as-sociação do café com culturas de subsistência.

A ocupação de Capivary se dá tardiamente, e será a produção cafeeiraque levara', na 1a metade do séc. XIX, o povoamento a esta região — um po-voamento lento, se comparado com as regiões produtoras do Vale do Paraíba,e distinguindo-se por um crescimento substantivo das populações livres, du-rante todo o período escravista.

A avidez de terras para o cultivo do café neste período configura umafortíssima concentração fundiária na localidade. Quanto à população escrava,representava, em meados do séc. XIX, 38,5% de toda população recenseada35,demonstrando a importância da agricultura comercial e exportadora no muni-cípio.

Devemos aqui, relativizar o dito, comparando-o com as zonas 'de pon-ta' da economia nacional do período. Ora, se temos um número representa-tivo de escravos em termos locais, em termos relativos eles representam a 6?menor cifra da Província. Cabendo ainda ressalvar que o café produzido aliera de baixa qualidade e não tinha como concorrer com aquele produzido noVale do Paraíba, estabelecendo-se assim a ocupação, por parte deste café, in-ferior, no abastecimento do mercado interno.

Hebe de Castro demonstra o impacto que ressente a economia localcom o final do tráfico negreiro em 1850, ocasionando um aumento vertigino-so no preço dos escravos. Agravado em muito, se pensarmos que a localidadetratada possuía uma baixa produtividade de artigos ligados ao mercado inter-nacional, advindo daí uma deteriorização financeira precoce, obstaculizandoa sua capacidade de reprodução36.

Capivary se caracterizará, com o fim do tráfico, como uma região forne-cedora da mão-de-obra cativa, integrando-se no comércio interprovincial pelaenorme sangria de escravos. Tal elemento estimula ainda mais a intromissão,por parte dos homens livres pobres, no desenvolvimento de uma agriculturapolicultora, com vistas ao mercado local, utilizando apenas tangencialmentea mão-de-obra cativa.

Sobre a diversidade de culturas desenvolvidas nestas unidades agrícolaspelos 'homens livres pobres' , cabe-nos observar que se distinguiam dos esta-belecimentos escravistas comerciais de Capivary, mais em grau do que em na-tureza. Os homens livres também produziam café. Entretanto, este produtonão apresentava crescimentos, matendo-se estabilizado em termos de númerode cafezais, no tempo. Produzia preferencial e majoritariamente mandioca,árvores frutíferas, milho e feijão. Lembrando-se também, que, as zonas escra-vistas comerciais desenvolviam estas culturas.

Ao que parece, no município de Capivary, as conseqüências do fim do

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tráfico negreiro foram bastante distintas daquelas encontradas em Paraíbado Sul. A produção cafeeira escravista deixa de crescer, e o número de escra-vos novos que entram no local é bastante inexpressivo após 1850.

No entanto, a quantidade de escravos que continuou na comunidadenão pode ser considerada inexpressiva:

"Na verdade, o decréscimo geral dos estoques e o pequenodesequilíbrio, por sexo, dos planteis, em Capivary, comparati-vamente a outras regiões, mesmo nas faixas etárias mais dire-tamente produtivas, além de indicarem a limitaçSo da entradade escravos na região, n3o deixam de confirmar a tendência,revelada pela análise dos inventários dos 'fazendeiros', de ma-nutenção de algum m'vel de rejuvenescimento dos planteis apartir do crescimento natural, que mesmo negativo deveriamostrar-se superior ao de outras regiões, ao mesmo tempoque, disperso por toda comunidade, beneficiava preferencial-mente seus maiores produtores" .

Do dito, depreende-se que há uma tendência ao equilíbrio entre homense mulheres escravas e um maior incremento do crescimento natural dos escra-vos após 1850, levando-nos assim a questionar se a existência de famílias con-tribuiu ou não para esse crescimento natural.

Outra tentativa que devemos fazer é a de reconstituir o processo de ven-da dos escravos para outros municípios, verificando como este mercado fun-cionava, e se, como acreditamos, as transações com escravos eram feitas emfamília.

Enfim, pensar as vicissitudes da família escrava diante de uma comuni-dade pobre, onde até mesmo seus fazendeiros — se comparados aos de Paraíbado Sul — são bem menos abastados.

4 -POSFÁCIO:

Diversos elementos nos levaram a redimensionar a pesquisa que vínha-mos desenvolvendo, transformando-a, em parte, em decorrência de algumasreflexões posteriores à elaboração do projeto. Eis o porquê do presente posfá-cio, onde pretendemos apontar os 'novos' rumos do trabalho.

Como vimos, a problemática das famílias escravas carece de estudos sis-temáticos em nosso país, sendo este aspecto ainda mais marcante quando es-tudamos o caso do Rio de Janeiro. A polêmica que este tema encerra exigiu,de nossa parte, um cuidado redobrado. Diversos questionamentos surgiramacerca da fecundidade da comparação de três localidades diferenciadas no quediz respeito à sua lógica interna. Sendo assim, optamos estudar mais detida-mente aquelas localidades que se caracterizassem fundamentalmente pelaprodução agro-exportadora de café, balizada na mão-de-obra escrava. Destaforma, resolvemos aprofundar a pesquisa iniciada em Paraíba do Sul e esco-lher outra localidade que se aproximasse essencialmente desta - no caso, Va-

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lença -, com o intuito de construirmos um modelo de famílias escravas emeconomias tipicamente agro-expotadoras38.

Enfim, no momento atual, pretendemos aprofundar a tentativa de cons-trução deste modelo para, em seguida, retornarmos com maior embasamentoao projeto inicial ora apresentado.

NOTAS:

1 SI L VA, Maria Beatriz Nizza da. Sistemas de casamento no Brasil Colonial. SP, T. A.Queiroz Edit. e EDUSP, 1984, pág. 4.

2 FERLINI, Vera Lúcia Amaral. X» Civilização do açúcar - séc. XVI a XVIII. SP, Edit.Brasiliense, 1984; GORENDER, Jacob. O Escravismo colonial. SP, Edit. Atica,1980; COSTA, Emília Viotti da. Da Senzala à colônia. SP, DIFEL, 1966; MATTO-SO, Kátia M. de Queiroz. Ser escravo no Brasil. SP, Edit. Brasiliense, 1982; STEIN,Stanley. Grandeza e decadência do café no Vale do Paraíba. SP, Edit. Brasilisense,1961.

3 SAMARA, Eni Mesquita de. A família brasileira. SP, Edit. Brasiliense, 1984.

4 FREIRE, Gilberto. Casa-Grande & Senzala — formação da economia brasileira sob oregime da economia patriarcal. RJ, José Olympio, 1984.

5 A respeito da formação de famílias no sul dos EUA e nas Antilhas, ver o estudo deKLE|N, Hebert S. Slavery in the Américas. A comparativa study of Cuba and Virgí-nia. Chicago, University Press, 1967.

6 GARCIA, Manolo Florentino. La trata Atlântica de esclavos y Ias sociedades agrá-rias dei África occidental. México, El Colégio de México, 1985.

7 "... as fontes de abastecimento de escravos nunca se esgotaram até 1850. Comprarnegros adultos é mais barato do que criar filhos escravos. . ." — MATTOSO, Katia.op. cit. p. 127; "A grande alta dos preços dos escravos e a cessação das importaçõesde africanos difundiram entre os fazendeiros de café, em meados do século XIX,maior interesse na procriação dos seus escravos. Com o aumento da diferença entreo custo de criação do escravo e o seu preço quando adulto, tornava-se vantajoso es-timular e proteger a procriação no meio dos planteis" —GORENDER, Jacob, op. cit.p. 345; "O tráfico regular até 1850 garantia o abastecimento de negros e comprarescravos adultos saía mais barato do que criar seus filhos" — FERLINI, Vera, op. cit.p. 84; "Até a cessação do tráfico, a população masculina representava, em certasregiões, a grande maioria: cerca de 70% da população escrava. Essa diferença tendiaa diminuir à medida em que passaram a predominar os escravos nascidos no Brasil"- COSTA, Emflia Viotti da. op. cit, p. 267.

8 PEREZ BRIGNOLI, Héctor e CARDOSO, Ciro. Os métodos da história. RJ, Edit.Graal, p. 410.

9 Nosso contato com a localidade sul-paraibana se deu em decorrência de nosso traba-lho enquanto assistente de pesquisa de João Luiz Ribeiro Fragoso, que realiza atual-mente estudos para a elaboração de sua tese de Doutorado "Escravidão e formasde acumulação em uma economia agro-exportadora: médio-vale de Paraíba do Sul(1790-1888)".

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10 Francisco Pizarro, citado por FRAGOSO, João. "Sistemas agrários em Paraíba doSul", dissertação de Mestrado IFCS-UFRJ, 1983, p. 53.

11 FRAGOSO, João. op. cit. p. 15.

12 Idem, p. 19.

13 Idem, p. 23.

14 Idem, p. 41.

15 STEIN, Stanley, op. cit.

16 FLORENTINO, Manolo e FRAGOSO, João. "Marcelino, filho de Inocência, criou-la, neta de Joana, cabinda: um estudo sobre famílias escravas em Paraíba do Sul(1835-1872)", São Paulo. Revista de Estudos Econômicos. 17(2): 151-173. maio/ago. 1987.

17 Inventário de Manoel Joaquim de Oliveira (1862). Cartório do 1? Ofício de Paraíbado Sul, p. 56. Grifo nosso.

18 FLORENTINO, Manolo e FRAGOSO, JoSo. op. cit. p. 17.

19 CARDOSO, Ciro Flamarion. "A brecha camponesa no sistema escravista". IN: Agri-cultura, escravidão e capitalismo. Petrópolis, Vozes, 1982, p. 135.

20 Idem. p. 145.

21 Idem, p. 149. Grifo nosso.

22 Ver, além de CIRO, Cardoso. LINHARES, Maria Yedda e SILVA, Francisco CarlosTeixeira da. História da agricultura brasileira: combates e controvérsias. SP, Edit.Brasiliense, 1981, p. 131; FORENTINO, Manolo e FRAGOSO, João, op. cit. p. 26.

23 FLORENTINO, Manolo e FRAGOSO, João. op. cit. p. 27.

24 LINHARES, Maria Yedda e SILVA, Francisco Carlos Teixeira da. op. cit. p. 113.

25 Idem, p. 117.

26 CARDOSO, Ciro. "História da Agricultura e História Regional: perspectivas meto-dológicas e linhas de pesquisa", in: op. cit. p. 14.

27 PITZER, Jorge Rocha e LAGO, Marta. "Criadores-Artesãos. O processo de proleta-rizaçSo dos colonos alemães em Petrópolis — 1846-1900". Projeto de pesquisa apre-sentado ao CNPq, 1986, p. 06.

28 Idem, p. 05.

29 Trabalhos sobre Petrópolis: MARTINS, Ismênia de Lima. "Subsídios para a históriada industrialização de Petrópolis - 1850-1930". Petrópolis, UCP, 1983; SOUZA,Amélia Maria de. "Considerações sobre a historiografia petropolitana, Petrópolis,UCP, 1975, PITZER, Jorge e LAGO, Marta. Op. cit.

30 Cópia do Relatório do Estado da Imperial Colônia de Petrópolis, 1855. Museu His-tórico de Petrópolis.

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31 Citado por RABACO, Henrique. História de Petrópolis, Petrópolis, Instituto Histó-rico de Petrópolis. UCP, 1985, p. 129.

32 Idem, ibidem.

33 CASTRO, Hebe de. "À Margem da História: homens livres pobres e pequena produ-ção na crise do trabalho escravo". Dissertação de Mestrado UFF — Niterói, 1985.

34 Idem, p. 31.

35 Idem, p. 77.

36 Idem, p. 91.

37 Idem, p. 104. Grifo nosso.

38 PITZER, Renato Rocha: Tentativa de construção de um modelo de famílias escra-vas em economias tipicamente agro-exportadoras: Vale do Paraíba (1835-1885).Projeto de Pesquisa aprovado pelo CNPq, 1987, sob orientação da Professora MariaYedda Leite Linhares.

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