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Universidade Federal do Rio Grande do Norte Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes Programa de Pós-graduação em Psicologia PRODUÇÃO DE SENTIDOS E CAMINHOS EXISTENCIAIS: COMO ADOLESCENTES ABRIGADOS SIGNIFICAM AS SUAS HISTÓRIAS DE VIDA? Lara Mendes Braga Rigoti Natal 2017

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Universidade Federal do Rio Grande do Norte

Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes

Programa de Pós-graduação em Psicologia

PRODUÇÃO DE SENTIDOS E CAMINHOS EXISTENCIAIS: COMO

ADOLESCENTES ABRIGADOS SIGNIFICAM AS SUAS HISTÓRIAS DE VIDA?

Lara Mendes Braga Rigoti

Natal

2017

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Lara Mendes Braga Rigoti

PRODUÇÃO DE SENTIDOS E CAMINHOS EXISTENCIAIS: COMO

ADOLESCENTES ABRIGADOS SIGNIFICAM ÀS SUAS HISTÓRIAS DE VIDA?

Dissertação elaborada sob orientação do Prof. Dr.

Marlos Alves Bezerra e apresentada ao Programa de

Pós-Graduação em Psicologia, da Universidade

Federal do Rio Grande do Norte, como requisito

parcial à obtenção do título de Mestre em

Psicologia.

Natal

2017

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Universidade Federal do Rio Grande do Norte

Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes

Programa de Pós-graduação em Psicologia

A dissertação “Produção de sentidos e caminhos existenciais: como adolescentes

abrigados significam às suas histórias de vida?”, elaborada por Lara Mendes Braga

Rigoti, foi considerada aprovada por todos os membros da Banca Examinadora e aceita

pelo Programa de Pós-graduação em Psicologia, como requisito parcial à obtenção do

título de mestre em Psicologia.

Natal/RN, 14 de junho de 2017.

BANCA EXAMINADORA:

Profº Dr. Marlos Alves Bezerra – UFRN

Profº Dr. Cristóvão Pereira Souza – UNP

Profª Drª. Ilana Lemos Paiva – UFRN

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Profª Dªr. Maria da Conceição Passeggi – UFRN

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Memórias lembradas, histórias contadas,

Sentidos iluminam aos poucos a minha alma

Memórias lembradas, histórias contadas,

Meus olhos se acendem para as possiblidades.

Lara Rigoti

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Este trabalho é dedicado aos

Adolescentes em Acolhimento

Institucional no Brasil, e aos

profissionais que atuam nesse campo.

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Agradecimentos

A primeira coisa que lembrei, ao pensar no que escrever aqui, foi de um versículo

bíblico que aprecio: “Em tudo dai graças” (1 Tessalonicenses 5:18). Tenho aprendido a

ser grata a Deus, à vida, por todas as alegrias vivenciadas em minha história. E sou grata

também pelos desafios e circunstâncias difíceis porque estes são os que me ajudam a

superar cada novo obstáculo. Deus, neste caminho de mestrado, deu-me fôlego diante do

cansaço e renovo perante ao desânimo de alguns momentos.

Sou agradecida à minha família, pois me sinto cercada de amor e cuidado, dos que

moram perto ou distantes de mim. Agradeço ao meu esposo, Dudu, que, desde o início,

apostou no meu mestrado, me “chacoalhou” para buscar o que eu almejava e me ajudou

a enxergar minha capacidade. Ele foi compreensivo a cada instante e um referencial de

força e coragem para mim. Sou imensamente grata aos meus pais, Sérgio e Liana, que

nunca mediram esforços para me dar condições, mais do que necessárias, para minha

realização, sendo também, sempre compreensíveis, disponíveis a ajudar e interessados na

minha felicidade. Agradeço aos meus irmãos, Marinha e Davi, por todo encorajamento e

carinho em cada momento de minha vida. Aos meus sogros/ pais, Fernando e Nelsi, por

todo incentivo, conselhos e palavras de força e de fé.

Sou grata à meu orientador, Marlos, que me acompanhou nessa trajetória de

mestrado, acreditando em mim e na minha temática. Agradeço por ter sido próximo,

pronto a ouvir e a esclarecer dúvidas, pacientemente. Orientador que pude obter muitos

aprendizados não somente através de seu conhecimento acadêmico, mas seu

conhecimento de vida. Minha gratidão se resume à pessoa que você é, bem como, às

demais orientações que iluminaram meus projetos futuros.

Agradeço a todos os meus amigos, que estão sem nomes aqui para não me estender,

mas escritos em cada fase de minha trajetória e em meu coração. Eles são verdadeiros

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parceiros de vida, torcem por mim, vibram comigo e me apoiam em tudo. Obrigada à

Shirley, Luciana e Susana, amigas que conheci na Academia, por todas as trocas, apoio,

escuta e ajuda. O carinho de vocês contribuiu para tornar todo este percurso mais leve e

alegre. Obrigada à todos os colegas do CJMR pelo grande acolhimento, desde o início, e

aprendizados compartilhados.

Sou agradecida à todos os profissionais da Unidade de Acolhimento III,

principalmente à coordenadora Shirlenne, por toda a colaboração à minha pesquisa, seja

na receptividade, disponibilidade e atenção em todas as minhas visitas à instituição.

Agradeço, em especial, a todos os adolescentes que, de alguma forma, fizeram parte

da minha pesquisa e me depositaram confiança na escuta de suas preciosas histórias de

vida. A eles, o meu carinhoso muito obrigada!

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Sumário

Lista de Siglas ..................................................................................................... xii

Lista de Tabelas ................................................................................................ xiv

Lista de Figuras .................................................................................................. xv

1. Primeira gravura: que colagens fizemos? ....................................................... 1

2. Segunda gravura: ser adolescente na adversidade e no acolhimento

institucional ................................................................................................................. 7

2.1. As cores da adversidade: adolescente, família e vulnerabilidade social .... 8

2.1.1. A Família na Adversidade .................................................................. 16

2.1.2. Uma lente para o adolescente em vulnerabilidade ............................... 21

2.2. Quadros do Acolhimento Institucional no Brasil ................................... 29

2.2.1 Painel atual do Acolhimento Institucional no Brasil ...................... 36

2.2.2. Serviços de Acolhimento em Natal/RN........................................... 59

3. Terceira gravura: princípios norteadores e a pesquisa em ação .................. 63

3.1. Sociologia Clínica ................................................................................. 64

3.2 Pesquisa (auto) biográfica ...................................................................... 69

3.3 Caminhos Metodológicos ....................................................................... 76

3.3.1 Local e Participantes da Pesquisa .................................................... 76

3.3.2. Scrapbook: Instrumento e procedimentos de Acesso às Narrativas .. 80

3.3.3. Tratamento e análise das narrativas................................................. 85

3.3.4. Medidas de Proteção ao Participante e Aspectos Éticos .................. 87

4.0 Quarta gravura: guru, tigrão e sua turma .................................................. 94

4.1 Análise das Narrativas ............................................................................ 95

4.1.1. Os (des)caminhos de Guru .............................................................. 98

4.1.2. As aventuras de Tigrão ................................................................. 124

4.2. Costurando as Gravuras: Eixo Integrador ............................................ 149

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4.2.1. Eixo 1: A pessoa que partiu, o vazio que emergiu, as mudanças que

gerou e a saudade que ficou ............................................................................... 152

4.2.2. Eixo 2: Lugar de Prisão e Mesmice X Lugar de Amparo e Preparo 160

4.2.3. Eixo 3: Uma luz no fim do abrigo ................................................. 169

5.0. Fechando o álbum e abrindo novas histórias: minhas considerações ..... 177

Referências ....................................................................................................... 183

Anexos .............................................................................................................. 190

Apêndice A ....................................................................................................... 196

Apêndice B ....................................................................................................... 200

Apêndice C ....................................................................................................... 201

Apêndice D ....................................................................................................... 204

Apêndice E ....................................................................................................... 205

Apêndice E ....................................................................................................... 206

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Lista de Siglas

CAIC – Centro de Atenção Integrada à Criança

CAPS – Centro de Atenção Psicossocial

CEDUC – Centro Educacional

CNAS – Conselho Nacional de Assistência Social

CNCA – Cadastro Nacional de Crianças e Adolescentes Acolhidos

CNJ – Conselho Nacional de Justiça

CONANDA – Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente

CRAS - Centro de Referência de Assistência Social

CREAS - Centro de Referência Especializada de Assistência Social

DCA – Delegacia da Criança e do Adolescente

DPCA – Delegacias Especializadas da Criança e do Adolescente

DPSE – Departamento de Proteção Social Especial

ECA – Estatuto da Criança e do Adolescente

FECAM - Federação Catarinense de Municípios

FUNDAC - Fundação da Criança e do Adolescente

IPEA – Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada

IVS – Índice de Vulnerabilidade Social

LOAS – Lei Orgânica da Assistência Social

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MDS – Ministério de Desenvolvimento Social e Combate à Fome

MNMNR – Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua

OMS – Organização Mundial da Saúde

ONG – Organização Não Governamental

PETI – Programa de Erradicação do Trabalho Infantil

PNAS – Política Nacional de Assistência Social

SAI – Serviço de Acolhimento Institucional de Crianças e Adolescentes

SEMTAS - Secretaria Municipal de Trabalho e Assistência Social

SEPA - Serviço de Psicologia Aplicada

SUAS – Sistema Único de Assistência Social

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Lista de Tabelas

Tabela 1. Indicadores, subíndices e IVS do Brasil (2000 e 2010). ................................ 12

Tabela 2. Brasil/grandes regiões: crianças e adolescentes abrigados, segundo os principais

motivos de abrigamento. ............................................................................................. 39

Tabela 3. Principais dificuldades para o retorno da criança ou do adolescente sua família

de origem citadas pelos dirigentes, segundo a ordem de frequência. ............................ 57

Tabela 4. Diferenças entre Casa-lar e Acolhimento Institucional. ................................ 60

Tabela 5. Dimensões analisadas conforme eixos da pesquisa. .................................... 149

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Lista de Figuras

Figura 1. Capa do Scrapbook de Guru. .......................................................................... 1

Figura 2. Atividades que retratam o período anterior ao acolhimento, por Guru e Tigrão

..................................................................................................................................... 7

Figura 3. IVS (2010). .................................................................................................. 13

Figura 4. Brasil – Situação do vínculo familiar das crianças e adolescentes. ................ 54

Figura 5. Uma História que vale a pena contar, por Pooh e Guru. ................................ 63

Figura 6. Auto-retrato de Guru e Tigrão; Adolescentes do abrigo, por Tigrão. ............. 94

Figura 7. Carta para mim no futuro, por Guru e Tigrão.............................................. 177

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Resumo

O acolhimento institucional de crianças e adolescentes é um tema complexo para

discussão e pesquisa dentro e fora do campo psicológico. A presente pesquisa buscou

compreender como dois adolescentes em situação de acolhimento institucional, dão

sentido às suas histórias de vida antes do acolhimento, durante a institucionalização, e

como pensam que será depois que saírem do abrigo. Foi utilizado o scrapbook como

instrumento lúdico, de acesso às narrativas, tendo como suporte teórico a Sociologia

clínica, e como perspectiva metodológica a Pesquisa (Auto) biográfica. Esse estudo

mostrou que o acolhimento institucional se dá por diferentes violações de direitos as

crianças e adolescentes, reflexo de um quadro de vulnerabilidade social. A medida

protetiva de abrigo, que visa garantir o direito à convivência familiar e comunitária, não

funciona bem assim na prática. O abrigo é um espaço complexo e controverso, que muitas

vezes não cumpre o seu papel. Ele pode ser um lugar de reproduções de vulnerabilidades

e desproteção. E pode ser também um lugar de proteção, de relações afetivas, referências

e saídas existenciais. Ao dar voz a esses sujeitos, o trabalho oportunizou um espaço de

escuta e de reflexão sobre suas próprias histórias de vida e perspectivas pós-

institucionalização, possibilitando ressignificações. Talvez o acolhimento institucional

seja um “mal necessário” ou seja um “bem indesejado”. O mais importante é que, dentro

do abrigo ou não, eles querem ser ouvidos, ser amados, ser acolhidos.

Palavras-chave: Acolhimento institucional, adolescentes abrigados, narrativas

(auto)biográficas, história de vida, produção de sentidos.

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Abstract

Childhood protection is a complex topic of discussion and researches inside and outside

psychological Field. The present research sought to understand how two adolescents in a

situation of foster institution, give meaning to their personal histories before the received

and during the institutionalization, and how they think it will be after they leave the

shelter. Scrapbook was used as a ludic instrument, access to the narratives, having as

theoretical support Clinical Sociology, and as a methodological perspective the

(Auto)biography research. This study showed that foster institution is due to different

rights violations of children and adolescents, reflecting a framework of social

vulnerability. The protective measure of shelter, aimed at guaranteeing the right to family

and community coexistence, does not work well in practice. The shelter is a complex and

controversial place, which often does not fulfill its role. It can be a place of reproductions

of vulnerabilities and unprotection. And it can also be a place of protection, affective

relations, references and existential exits. By giving voice to these subjects, the work

provided a space for listening and reflection on their own life histories and post-

institutionalization perspectives, allowing re-significances. Foster institution may be a

"necessary evil" or an "unwanted good". Most important is, within the shelter or not, they

want to be heard, to be loved, to be sheltered.

Keywords: Foster institution, adolescents sheltered, (auto)biographical narratives,

personal history, production of meanings.

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1. Primeira gravura: que colagens fizemos?

Figura 1. Capa do Scrapbook de Guru.

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O interesse em trabalhar com essa temática surgiu de um estágio no Centro de

Referência Especializada de Assistência Social (CREAS), onde foi possível um trabalho

em uma instituição que atendia vítimas de violação de direitos humanos. Foi a partir do

compartilhamento de casos, entre a equipe, envolvendo adolescentes da unidade de

acolhimento, que despertou em mim a curiosidade de conhecer mais de perto a realidade

desses adolescentes e os desafios desse modelo de serviço de alta complexidade, medida

protetiva de abrigo.

Inicialmente, essa era minha única justificativa para realização desse trabalho.

Com o início das leituras e andamento do projeto de pesquisa, lembranças vieram de

outras experiências pessoais que influenciaram minha escolha pelo trabalho com o

público adolescente, como por exemplo, meu engajamento em uma Organização Não

Governamental (ONG) durante a adolescência. Nessa ONG vários jovens se reuniam para

trabalhos sociais envolvendo a arte, através do Hip Hop, teatro e circo. A maior parte

deles moravam em periferia e alguns eram ex-usuários de drogas. Esse período foi

marcante para o meu crescimento pessoal, pois percebi a relevância que grupos como

esses possuem na formação do sujeito adolescente, nas alternativas de vida, na construção

de sonhos e no seu lugar de cidadão. Pude perceber que estratégias diferentes, como

atividades artísticas proporcionam reflexões e alternativas de expressão acerca do que se

vive, pensa e sente, bem como possibilita autoconfiança, autonomia e inventividades para

sua própria maneira de existir. Dessa maneira, fui totalmente enviesada por essas

vivências na escolha da temática e postura metodológica na construção da minha

pesquisa.

Por esses motivos decidi realizar meu trabalho de dissertação na Unidade de

Acolhimento III, no município de Natal/RN, com adolescentes abrigados, por meio de um

recurso criativo, chamado Scrapbook, álbum personalizado de memórias e produções. A

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escolha desse instrumento lúdico objetivou facilitar a expressão das narrativas dos

participantes.

A seguir, abordarei uma breve explanação do contexto de acolhimento

institucional para crianças e adolescentes. E mais adiante, apresentarei as perguntas que

surgem dessa problemática e o que me proponho fazer nessa pesquisa, a partir de uma

postura teórica-metodológica pessoal.

Em primeira análise, o que enxergamos na realidade social que envolve o

acolhimento institucional é a vulnerabilidade social, que muitas famílias enfrentam.

Famílias que vivem, muitas vezes, um ciclo transgeracional de violências, onde são

vítimas e praticantes de violações de direitos.

Neste quadro, muitas crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade

social, acabam vivenciando a destituição familiar e, assim, o acolhimento institucional,

por serem vítimas de violência, negligência, abandono, ou porque seus familiares estão

impossibilitados, no momento, de cuidado e proteção. Dessa forma, crianças e

adolescentes são abrigadas até ser possível o retorno ao convívio familiar, ou, em último

caso, buscam encaminhá-las para família substituta (CNAS & Conanda, 2009). Essa

medida tem o intuito de garantir os direitos à convivência familiar e comunitária que

foram violados, seguindo um modelo diferente do anterior a 1988, no qual era voltado

para à exclusão.

Por essas circunstâncias, a tutela, exclusivamente jurídica, de crianças e

adolescentes até 18 anos de idade se tornou um compromisso do Estado no que se refere

à garantia de assistência social gratuita, universal e integral (Silva, 2010).

A trajetória de muitos adolescentes em situação de acolhimento começa ainda

quando criança. Eles ficam acolhidos em unidades de acordo com sua faixa etária ou com

a situação de grupo de irmãos. Caso não seja possível retornar a sua família de origem ou

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serem adotados, vão crescendo no ambiente institucional e mudando de abrigo até

chegarem na adolescência (12 a 18 anos). Esse período pode chegar a mais de 10 anos

(Silva, 2010).

As pesquisas realizadas sobre tal problemática, serão discutidas de maneira a

entender os diferentes pontos de vista de autores sobre os impactos e possibilidades que

o contexto de acolhimento institucional promove.

Diante de uma temática, na qual muitos estudos se afinam para investigar a

execução das medidas e políticas, bem como dos impasses para que ela se efetive da

melhor forma, eu me vi diante de uma outra preocupação. Essa, expressa nas seguintes

perguntas: como esses adolescentes dão sentido às suas trajetórias pessoais? Como eles

veem as suas experiências antes do abrigo, durante o acolhimento, e como imaginam que

será depois que saírem da instituição?

No interesse de responder a essas questões, o objetivo geral deste trabalho visa

compreender como adolescentes em situação de acolhimento institucional significam suas

histórias de vida. Para isso, foi necessário elaborarmos os seguintes objetivos específicos:

• Compreender como adolescentes abrigados veem as suas vivências antes do

abrigo;

• Entender como tem sido para eles a experiência da institucionalização;

• Conhecer quais as aspirações e projetos existenciais dos adolescentes depois que

saírem da instituição.

O trabalho em questão, se tratando de uma pesquisa qualitativa, não busca

generalização, mas sim a compreensão singular das trajetórias pessoais de adolescentes

abrigados, levando em consideração sua formação sócio, histórico, cultural, ideológica e

institucional. Trabalharei, nesse caminhar, com a Sociologia Clínica, como base teórica,

e a Abordagem (auto) biográfica, como guia metodológico, por acreditar que ambas se

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complementam no suporte para a compreensão dos sentidos que os adolescentes dão aos

seus percursos existenciais. Para ambas perspectivas, os sujeitos não são vistos como

somente narradores, mas em primeiro lugar, como protagonistas e co-construtores de

sentidos de suas histórias de vida. Desse modo, não tenho o interesse de apenas coletar os

relatos de vida dos adolescentes, mas sim, proporcionar um espaço de fala e de reflexão

que contribua para o processo de compreensão de si, de seus significados existenciais.

Esse processo se traduz em uma via de mão-dupla que ocorre no encontro do pesquisador

com o participante.

Dessa maneira, o presente trabalho está organizado em cinco capítulos (gravuras),

incluindo esta introdução, primeiro tópico. A segunda gravura versa sobre a

fundamentação teórica inicial, com o título Ser Adolescente na adversidade e no

Acolhimento institucional, afim de trazer uma contextualização do adolescente em

vulnerabilidade social e o histórico do acolhimento institucional no Brasil até os dias

atuais. O terceira capítulo, Princípios norteadores e a pesquisa em ação, diz respeito à

uma explanação do olhar teórico-metodológico da pesquisa, bem como, os passos e

decisões pertinentes ao campo que envolveram estratégias operacionais da pesquisa. Na

quarta gravura – Guru, Tigrão e sua turma – irei apresentar as principais observações

obtidas no campo, o conteúdo das narrativas e a compreensão dos significados

expressados pelos adolescentes ao longo do processo de Scrapbook, ou seja, trarei os

resultados e discussões. Mais adiante, farei a costura dos sentidos que os adolescentes

trouxeram com a fundamentação teórica inicial no espaço de discussão dos eixos e

dimensões da pesquisa.

A fim de preservar o anonimato dos participantes e dos demais atores envolvidos

na pesquisa, escolhi personagens do desenho do Ursinho Pooh como representantes de

casa um deles. Os participantes da pesquisa são: Tigrão (14 anos) e Guru (15 anos). Suas

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histórias serão (re)contadas e seus sentidos existenciais singulares considerados e

discutidos. Sobretudo, os convidei como protagonistas para representar a realidade dos

demais adolescentes da Unidade de Acolhimento III. Em alguns momentos, outros

adolescentes, coadjuvantes, serão chamados como porta-voz. Adianto essas informações

para o leitor começar a se aproximar dos personagens da pesquisa e da intenção de

protagonizar as vozes representantes do sistema de acolhimento institucional.

Essa pesquisa trabalha com as memórias nos tempos: passado, presente e futuro,

semelhante ao Projeto Fazendo História (Vidigal, 2010). O “Fazendo história” considera

que o passado, apesar de permear experiências difíceis, não pode ser silenciado, sendo

preciso um meio de expressá-lo. Destaca a importância do registro do presente no

acolhimento, o que não é simples, pois esse representa a falência da família, seja

temporária ou não. No entanto, o desafio de registrar essa fase, permite fazer dela, um

tempo de vida e não a espera pela vida. O registro do futuro, no livro-álbum, se volta para

os projetos de vida que são essenciais para uma visão positiva do futuro. Ao seguir esta

mesma perspectiva, a pesquisa, em questão, oportunizou aos adolescentes, a fala e o

registro visível desses tempos para, assim, compreender os significados que eles dão às

suas experiências antes, durante e, no futuro, depois do acolhimento.

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2. Segunda gravura: ser adolescente na adversidade e no acolhimento

institucional

Figura 2. Atividades que retratam o período anterior ao acolhimento, por Guru e Tigrão.

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2.1. As cores da adversidade: adolescente, família e vulnerabilidade social

Antes de entender o quadro do acolhimento institucional no Brasil de crianças e

adolescentes ao longo da história, é importante olhar para o contexto de risco e

vulnerabilidade social que os adolescentes estão imersos desde crianças com suas

famílias.

Primeiramente, se faz necessário diferenciar o conceito de risco do de

vulnerabilidade social, já que em muitas aplicações são tratados como sinônimos, ou

autores fazem uso de um dos conceitos e não tratam do outro. Um exemplo dessa situação,

ocorre em documentos dos órgãos do governo, como na Política Nacional de Assistência

Social – PNAS (Brasil, 2004).

Janczura (2012), em seu artigo, faz uma discussão sobre a temática, com

perspectivas de vários teóricos, apresentando diferenças das definições referidas acima.

Em síntese, ela aponta que a vulnerabilidade se refere a propensão à desordem e uma

sensibilidade aos fatores estressores. E o risco, segundo ela, está relacionado às

circunstâncias fragilizadas da sociedade tecnológica contemporânea, como baixo nível

socioeconômico, remuneração parental, baixa escolaridade, família numerosa, ausência

de um dos pais, dentre outros.

Sobre a relação entre o risco e a vulnerabilidade pode-se considerar que “a

vulnerabilidade opera apenas quando o risco está presente; sem risco, vulnerabilidade não

tem efeito” (Yunes & Szymanski, p. 28, 2001). A conduta do indivíduo perante às

circunstâncias difíceis vai variar de acordo com sua vulnerabilidade, em uma tendência

pouco adequada à situação (Janczura, 2012). Entretanto, a autora entende que a

vulnerabilidade não está condicionada a passividade dos vulneráveis, pois acontece pela

intervenção de outros atores sociais através, por exemplo, da discriminação social.

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Para Calil (2003), “Situação de risco pode ser considerada como um conjunto de

eventos indesejáveis, inter-relacionados em uma complexa rede de fatores históricos,

culturais, políticos, socioeconômicos e ambientais, que oferecem risco a toda uma

comunidade ou subgrupo social” (p.146). Tais exposições aos riscos relatados, segundo a

autora, podem comprometer o crescimento e o desenvolvimento do sujeito, interferindo

na sua adaptação ao ambiente, na sua aquisição de habilidades, desempenho de papéis

sociais, além de ainda influenciar na mudança de uma etapa da vida para a outra, como

por exemplo, da adolescência para a fase adulta. Nesse sentido, para Silva,

os fatores de risco social são gerados a partir de condições

de sociais, políticas e econômicas que limitam ou mesmo

impedem o desenvolvimento físico e psicossocial saudável

do indivíduo. Tais fatores acabam fazendo com que os

sujeitos enfrentem situações que os levem a ocupar os

grupos marginais da sociedade. (2010, p. 31)

Os autores Costa e Dell’Aglio (2009) diferenciam os fatores de risco pessoal e

risco social. Para eles, o fator de risco pessoal está relacionado com as baixas habilidades

intelectuais, sociais, bem como as deficiências e baixa autoestima, pois elas são

escanteadas pela sociedade do controle devido exigência de produtividade, um padrão

necessário para inclusão. Já o fator de risco social, segundo os autores, diz respeito às

situações de vulnerabilidade socioeconômica, como a de adolescentes em conflito com a

lei, privados de convivência familiar e comunitária, em situação de abuso sexual, de

violência, etc.

Jauczura (2010), por outro lado, vem discutir que a temática da resiliência deve

entrar nos debates sobre a problemática dos riscos que muitas crianças e adolescentes

vivenciam, já que alguns deles mesmo diante de contextos socioeconômicos difíceis ou

doentios, desenvolvem modos de enfrentamento próprios, que não lhe impedem de obter

um desenvolvimento sadio.

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Como abordado acima, situações de risco e vulnerabilidade estão totalmente

relacionadas. Alguns autores vão se ater a reflexões sobre a vulnerabilidade por

considerarem que é uma temática que gera muitas controvérsias.

As autoras, Abramovay, Castro, Pinheiro, Lima e Martinelli (2002), afirmam que

os primeiros estudos sobre a temática da vulnerabilidade, foram elaborados para abranger,

de forma integrada, a questão da pobreza e tipos de desvantagem social, focando-se nos

riscos de mobilidade social descendente e as condições de vulnerabilização que não se

restringiam aos indivíduos situados abaixo da linha de pobreza, mas a toda população em

geral. Elas complementam que esta noção advinha do fenômeno do bem-estar social em

uma concepção dinâmica, de variadas causas e dimensões.

O conceito que as autoras referidas adotam para a vulnerabilidade social (nível

individual, família ou comunidade), diz respeito a consequência negativa da relação entre

a aquisição de recursos materiais ou simbólicos dos indivíduos, e o acesso ao conjunto de

ofertas à nível social, cultural e econômico que advêm do Estado, mercado e da sociedade.

Trata-se de uma perspectiva conceitual analítica, também partilhada por essa dissertação.

Há três princípios importantes na definição acima: os recursos materiais e

simbólicos, nomeados também de ativos (Filgueira, 2001); o conjunto de ofertas dadas

pelo Estado, mercado e sociedade, que envolvem a possibilidade de ascensão do nível de

bem-estar, seja através do melhor uso dos recursos, da geração de novos, ou recuperação

dos esgotados; e por último, as estratégias de uso dos recursos de maneira à fazer frente

às mudanças estruturais em uma determinada situação (Abramovay et al, 2002). As

autoras explicam que a vulnerabilidade deve ser entendida como um cenário no qual

certos grupos sociais se mostram com dificuldades de lidar, inclusive, com o sistema de

oportunidades ofertados pela sociedade. É como se fossem mais preparados no lidar com

situações adversas e escassas, e quando, em algum momento, estão diante de um conjunto

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de ofertas, acabam aprisionados em uma situação de instabilidade, insegurança e

marginalidade.

Morais, Koller e Raffaelli (2010) esclarecem uma perspectiva sobre a

vulnerabilidade social como efeito de um processo, sobretudo, social que envolve o

contexto de vida e os amparos sociais, diferentemente da noção de “grupos de risco” que

personifica a adversidade como uma questão de comportamento. Elas relacionam o

processo de vulnerabilização com os eventos estressores, os quais se remetem aos fatores

de risco ao desenvolvimento. Tais fatores de risco seriam considerados situações relativas

a maior chance de consequências prejudiciais ou indesejadas, do ponto de vista mais

clássico; ou maior propensão a condutas que afetem a saúde ou bem-estar, em uma

perspectiva mais atual. As autoras veem o risco em uma perspectiva de “processo”, por

ser considerada a relação das condições “protetoras” e não numa relação causal e linear

entre risco e mau ajustamento. Assim, as experiências são singulares e permeiam muitos

elementos, que podem ficar no cruzamento da condição de desvantagem (risco) com as

consequências no desenvolvimento (ajustamento). A avaliação da intensidade dos fatores

estressores vai depender da percepção subjetiva de cada pessoa, por isso é importante

avaliar a experiência singular para compreender quais são os impactos negativos de cada

uma. Tal perspectiva defendida pelas autoras nortearam meu trabalho nesta pesquisa, bem

como a relação que Jauczura (2012) faz da temática de risco e vulnerabilidade social com

a resiliência. Em resumo, o uso do conceito de vulnerabilidade ocupa, neste trabalho, um

posicionamento da não culpabilização dos atores sociais envolvidos em situações de

adversidade.

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A Tabela 1 [extraída de Ipea 1 (2015). Atlas de vulnerabilidade social nos

municípios brasileiros. (1) IPEA, 1-84] apresenta os Índices de Vulnerabilidade Social

(IVS) no Brasil nos setores de Infraestrutura urbana, Capital humano e Renda e trabalho.

Tabela 1.

Indicadores, subíndices e IVS do Brasil (2000 e 2010).

Esses dados apontam para uma diminuição do IVS na maior parte dos percentuais,

ao comparar o ano de 2000 com o ano de 2010; com exceção do percentual do item “C”,

relativo ao IVS da Infraestrutura urbana, que apresentou o mesmo índice em ambos os

1 IPEA: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada.

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anos. Entretanto, o quadro geral do IVS no Brasil ainda demonstra grandes percentuais

de vulnerabilidade social.

De uma outra maneira, é possível visualizar, na Figura 1 [extraída de Ipea (2015).

Atlas de vulnerabilidade social nos municípios brasileiros. (1) IPEA, 1-84], o IVS nas

diferentes partes do país, divididos em categorias, como: alto, muito alto, médio, baixo e

muito baixo.

Figura 3. IVS (2010).

Os dados mostraram avanços importantes, ao comparar esse cenário com os

resultados de 2000. Entretanto, ainda ocorre a manutenção das desigualdades em

macrorregiões como no Norte e no Nordeste, que apresentaram, predominantemente,

mais elevado IVS (Ipea, 2015). Enquanto isso, os municípios do Centro-Sul do país

apresentam índices de menor vulnerabilidade social, especialmente em 2010. É visível na

região nordeste o alto índice de vulnerabilidade social, sendo o nível muito alto em

algumas localidades. Especificamente, no Rio Grande do Norte, se sobressai um alto fator

de vulnerabilidade.

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Abramovay e Castro (2002), apresentam conceitos de vulnerabilidades sociais

defendidos por alguns autores (como, Bourdieu, 2001), diferentes das noções únicas que

se voltam para os efeitos negativos, a fim de enxergar os aspectos positivos que a

vulnerabilidades podem fornecer quando promove resistências às situações adversas, ou

seja, uma vulnerabilidade positiva. Essa relaciona-se a potencialidades, pelas

experiências de desenvolver, criativamente, modos de resistir e enfrentar as dificuldades.

Nessa perspectiva, o conceito de vulnerabilidade não segue o mesmo caminho que os

debates relativos à exclusão e pobreza que colocam os jovens mais vulneráveis à parte,

fora do sistema, não considerando a análise dos processos e relações sociais (Abramovay

& Castro, 2002).

No estudo das autoras, os jovens, familiares desses outros atores da ONG (local

da pesquisa) destacaram mais as situações negativas da vulnerabilidade social em suas

vidas, entretanto, consideraram também aspectos positivos que essas condições

possibilitaram, isto é: “consciência dos riscos e obstáculos vividos e a busca de uma ética

de vida que representaria um capital simbólico e cultural, que se insinua no exercício da

crítica social” (p. 148).

Nos estudos sobre resiliência, o conceito de vulnerabilidade é usado para

relacionar as pré-disposições psicológicas do indivíduo que ampliam os impactos do

estresse e limitam reações satisfatórias ao mesmo, na contramão da resiliência que se

refere a capacidade de desenvolver modos de resistência às situações de crise (Janczura,

2012; Bezerra, 2015).

Sequeira (2009) pensa a resiliência de acordo com a perspectiva de Cyrulnik,

como um processo de superação, de transformação, um modo de subjetivação, que

acontece no encontro com o outro, fruto da relação entre fatores pessoais, institucionais

e/ou do contexto social.

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Diante da discussão proposta, podemos, então, relacionar a vulnerabilidade

“positiva” de Abramovay e Castro (2002) com a noção de resiliência de Janczura (2012)

e Bezerra (2015), bem como, com a ideia de “invulnerabilidade” de Morais e Koller

(2004), já que ambas são associadas às respostas benéficas do indivíduo diante de

situações adversas.

Ao falar de risco, vulnerabilidade e resiliência, se faz necessário discutir também

os fatores de proteção. Os fatores de proteção estão relacionados com aspectos autônomos

que mediam a interação entre os fatores de risco e comportamento diante deles,

produzindo resultados particulares (Morais, 2009). Três aspectos dos fatores de proteção

podem ser considerados: atributos de potencialidade, como autoestima; laços afetivos,

seja do próprio sistema parental ou de outros grupos que proporcionem suporte emocional

nos momentos difíceis; e os grupos de apoio social desenvolvidos na escola, trabalho,

serviços de saúde, centros religiosos (Morais, 2009). Esses grupos agem como fontes de

suporte que possibilitam o desenvolvimento de determinação pessoal e de potencialidades

singulares, geradas a partir de um sistema de crenças e significados para a vida.

As discussões sobre os fatores de proteção devem ser tão priorizadas quanto os

fatores de risco Morais e Koller (2004), assim como os debates sobre vulnerabilidade e

resiliência devem andar juntos. Devemos considerar que os fatores de proteção, além de

ajudar na prevenção e promoção dos aspectos potenciais dos indivíduos, podem auxiliá-

los em novos modos de enfrentamento de condições de risco.

Em uma análise macrossocial, é preciso considerar o funcionamento mais amplo

da sociedade. Cito isso, atenta ao fato de que a Psicologia como ciência e profissão, de

um modo geral, historicamente, tem endereçado ao indivíduo, sobretudo ao indivíduo

pobre, a responsabilidade sobre os conflitos e problemas que são de uma ordem

estruturante e estruturadora. E nessa esteira também estão as comunidades pobres, os

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bairros de periferia, o que gera uma patologização da pobreza Cruz (2010), Takeuti e

Bezerra (2009), Paiva e Yamamoto (2010).

2.1.1. A Família na Adversidade

A casa, para muitas famílias em situação de vulnerabilidade social, pode

representar um lugar de instabilidade, de fragilidade dos vínculos afetivos, mas, ao

mesmo tempo, de solidariedade, como pensa Gomes (2015). Nesse contexto adverso,

essas famílias acabam se desestruturando por deixar de ser um espaço de proteção, e as

tentativas de superação dessa realidade acabam ocorrendo de maneira fragmentada, tendo

em vista que não possuem redes de apoio suficientes, no enfrentamento de suas

problemáticas. Mesmo com essas fragilidades, ainda é o ambiente familiar que representa

o lugar do afeto, da aceitação e do pertencimento ao grupo familiar e comunitário.

Dessa maneira, depois que a família está passando por grandes dificuldades, e é

constatado a existência de risco pessoal/social e, assim, a violação de direitos dos seus

filhos, é que são feitos os encaminhamentos necessários à rede socioassistencial. Será

avaliada a necessidade ou não da destituição de tutela do filho, pela atenção especializada,

considerando a excepcionalidade e provisoriedade da medida.

O ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) reconhece e prevê a família,

também, como detentora de direitos. Por exemplo, o de receber recursos materiais do

Estado, que auxiliem no cumprimento do seu papel de cuidado, proteção e educação dos

seus filhos, com o objetivo de diminuir as suas fragilidades, vulnerabilidades e riscos.

Dessa maneira, a centralidade da família não é somente considerada pelo ECA, no que

diz respeito aos direitos de seus filhos, crianças e adolescentes, mas também aos seus

próprios direitos enquanto família (Moreira, Bedran & Carellos, 2011).

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Gomes e Pereira (2015) afirmam que a família deveria ter seus direitos

assegurados pelo Estado, inclusive no fornecimento de condições para que a mesma possa

participar ativamente do desenvolvimento dos seus filhos. Entretanto, essa questão, não

está entre as prioridades do Estado. A exclusão social no Brasil é predominante e muitas

famílias vivenciam risco pessoal e social, sendo excluídas das políticas sociais básicas

(trabalho, educação, habitação, saúde e alimentação), e quando algumas famílias

conseguem acesso, experimentam a ineficácia das políticas públicas, como: precárias

condições das escolas públicas, professores mal remunerados, hospitais com péssimas

condições de atendimento e falta de saneamento básico nos subúrbios.

Cruz (2010) discute uma visão interessante sobre a exclusão social, que mais se

parece com uma “inclusão perversa”, termo de José de Souza Martins (1997), no sentido

de uma igualdade aparentemente mascarada pelo que é conveniente segundo a lógica do

capital. Deste modo, existe toda uma sistematização das políticas públicas equipadas com

uma rede socioassistencial que são, de um modo geral, ineficientes por falta de

incentivos/financiamentos.

Para Iannelli, Assis e Pinto (2015), as famílias quando possuem acesso à

educação, trabalho e saúde, são capazes de exercer seus papeis de cuidado e proteção das

suas crianças e adolescentes. Por esse motivo, é necessário que o próprio município

forneça os incentivos para o combate das problemáticas sociais que essas famílias

vivenciam, como a violência doméstica, o desemprego, a dependência química, entre

outros. Então, significa que as famílias que tem pouco incentivo aos problemas sociais

são incapazes no seu papel de cuidado? Será que o Estado oferecendo todas as condições

de uma vida “digna” às famílias, estas deixariam de desproteger seus filhos? Acredito que

a visão exposta pelos autores adota uma visão unilateral, quando responsabilizam

somente o Estado de ofertar condições protetivas para as crianças e adolescentes. Na

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verdade, no papel de proteção lidamos com as duas faces da moeda, o Estado, enquanto

provedor dos equipamentos sociais de assistência (Constituição, 1988), e a família,

enquanto cuidadora, no privado (Art. 22, ECA, 1990).

A família pobre, diante das vulnerabilidades sofridas, acaba precipitando a ida de

seus filhos para a rua e, muitas vezes, ocorre o abandono da escola, para que possam

auxiliar na renda da família para sobrevivência (Iannelli, et al, 2015). Nessa ótica, a

medida temporária de se articular na rua acaba se fortalecendo e distanciando do convívio

familiar e social. E assim, segundo os autores, nesse modelo de família acontece a perda

ou quebra dos vínculos familiares, levando ao sofrimento e descrença do indivíduo em si

mesmo, e influenciando na sua baixa auto-estima e afetação, tanto na capacidade de amar,

quanto de ser amado. Essa exclusão social, privação de direitos, afeta profundamente a

banalização dos afetos, sentimentos e laços.

No Brasil, muitas famílias que tem a mãe como responsável, tem enfrentado a

pobreza e a miséria. No ano de 2000, por volta de 28,6% das famílias nas quais as

mulheres são responsáveis obtinham até meio salário mínimo como renda mensal. O

contexto no qual viviam era marcado pela:

Pobreza, a monoparentalidade, o desemprego, a baixa

escolaridade dos cuidadores, as práticas educativas

coercitivas, a hostilidade nas relações familiares, a presença

de doença física e/ou mental, a família numerosa, entre

outros fatores associados, dificultam a tarefa de cuidar dos

filhos, colocando em risco o desenvolvimento e o bem-estar

das crianças e dos adolescentes. (Siqueira, Tubino,

Schwarz, Dell'aglio, 2009, p. 178).

Contexto este que continua persistindo nos dias atuais. Pesquisa realizada em 2009,

prosseguem as autoras, indica que o quadro das famílias de crianças e adolescentes

abrigados retrata um índice de cerca de 70% de separação dos pais e mais de 70% indicou

que a figura materna é mais apontada como membro da rede de apoio em comparação à

figura paterna. Tal sistema familiar é muito dinâmico, pois constatou-se que as

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configurações familiares são instáveis, além disso, verificou-se as mudanças dos

companheiros da mãe e um “vai e vem” nos seus relacionamentos. De acordo com as

autoras citadas, nessas famílias, a figura materna é a pessoa fundamental no processo de

desenvolvimento e educação dos filhos, é o membro mais presente na vida dos mesmos,

é quem impõe limites e é a chefe familiar, configurando-se uma família monoparental. A

figura paterna, por outro lado, muitas vezes não convive com os filhos.

A pesquisa referida traz estas informações referentes às instabilidades no sistema

familiar dos abrigados, mas é preciso haver o cuidado para não incorrer na culpabilização

das mães na violação dos direitos das crianças e adolescentes. É preciso considerar uma

série de causas estruturais que permeiam esta problemática. A dinâmica familiar deve ser

tomada em perspectiva junto a outros elementos porque realidade social é multifacetada,

não existe uma causa única para a questão da violação de direitos da criança e do

adolescente.

Outro ponto a se considerar é a responsabilidade que a mulher acumula, em nossa

sociedade, de ir além do cuidado com as crianças e adolescentes, se ampliando para

jovens, idosos e doentes (Moreira et al, 2011). O excesso de responsabilidades, aliado aos

problemas de ordem social e emocional, sobrecarrega essa mulher, principalmente

quando se tem vários filhos, de uma maneira que ela acaba contribuindo com o processo

de negligência, abandono, encontrando, muitas vezes, na rua, a saída para o incremento

da renda familiar.

Outra situação comum diante das dificuldades das mães no cuidado com seus

filhos, envolve a própria entrega destes ao Conselho Tutelar. Segundo pesquisa realizada

por Freston (2000), com 53 mães que decidiram entregar seus filhos, 75% relataram

dificuldades econômicas para cuidar dos filhos, além de outros fatores relevantes, como:

a ausência do pai e falta de suporte familiar. Becker (2002) afirma que, muitas vezes, a

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intenção da mãe de entregar seu filho envolve proteção, bem como, salvá-lo e lhe garantir

o afeto e as condições que não se sente capaz de fornecer. Essa problemática é atravessada

por rotulações e preconceitos que menosprezam os motivos pelos quais a mãe tomou a

decisão de entregar seu filho (Cruz, 2007). Dessa maneira, é importante compreender o

que a mãe e a família estão vivenciando, muito mais do que a própria atitude de entrega

do seu filho.

Ainda segundo Beker (2002), muitas famílias monoparentais, chefiadas por

mulheres, estão sendo vistas em situação de vulnerabilidade social, pela situação de

pobreza que é influenciada pela falta de um companheiro que contribua na renda familiar.

Entretanto, é importante relativizar esta discussão porque um outro auxiliando na renda

familiar não, necessariamente, vai significar colaboração, cuidado e apoio aos filhos.

Em 2004, Feijó e Assis fizeram uma pesquisa com jovens infratores e suas

famílias, sendo identificado que em 40% dos casos, a figura paterna era ausente.

Verificaram que tal ausência contribuiu para o sofrimento emocional e financeiro dos

filhos, influenciando no desenvolvimento de sua identidade social. De acordo com

Padilha (2001), possivelmente, essa falta da figura paterna se torne um fator de risco a

mais para uma precoce experiência sexual, principalmente quando já vivenciam contexto

de vulnerabilidade social. É importante contextualizar esta discussão para mais uma vez

não incorrer em uma análise que venha a dar um peso na insuficiência da mãe como figura

de cuidado. Dessa forma, é preciso trabalhar com ações que ampliem a rede de apoio para

a família monoparental, seja à uma mãe, pai, avó, etc.

Entretanto, mesmo quando existe o casal, em contexto de vulnerabilidade, isso

não impede que haja violações, já que vivencia muitos problemas e dificuldades com a

criação e educação dos filhos, e experimenta sofrimento de diferentes ordens (problemas

emocionais, desemprego, falta de moradia própria, dependência química, criminalidade).

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Para Moreira et al (2011), o contexto de disfuncionalidade familiar promove, em

muitos casos, às crianças e adolescentes situações de violência física, psicológica, sexual,

e/ou submissão precoce ao trabalho. Por isso, diversas vezes, ficam sem acesso à escola

e ambientes de lazer e cultura. Segundo os autores, os ditos violadores, geralmente, foram

vítimas de diferentes tipos de violações, revelando uma retroalimentação das

desigualdades, já que as violações de direitos foram perpetuadas pelas desigualdades

sociais sofridas por essas famílias.

2.1.2. Uma lente para o adolescente em vulnerabilidade

Ao entrar em contato com as dificuldades de muitas famílias brasileiras no

contexto apresentado anteriormente, abrimos os olhos para a realidade de vulnerabilidade

social a qual muitos adolescentes têm vivenciado.

Existem muitos termos e conceitos usados para caracterizar o período da

adolescência, tais como: juventude, mocidade, flor da idade, nubilidade, etc. A

fundamentação teórica desse estudo, levará em consideração os termos da adolescência e

juventude, por serem utilizados concomitantemente no Brasil. Essas concepções ora se

sobrepõem, ora se configuram em campos diferentes, embora complementares, e ora se

constituem em um debate de visões distintas (Silva & Lopes, 2009).

Segundo as autoras, enquanto o termo da adolescência é mais voltado para as

teorias psicológicas que consideram a vivência subjetiva, o termo da juventude é mais

relacionado aos processos sociais mais gerais e as relações sociais produzidas ao longo

do tempo. Para a OMS – Organização Mundial de Saúde – (OPS, 1985), a adolescência

se configura como um processo biológico relacionado ao desenvolvimento cognitivo e de

estruturação da personalidade. Envolve as idades entre 10 e 19 anos, sendo a pré-

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adolescência entre 10 e 14 anos e a adolescência, em si, de 15 aos 19 anos. Para tal

organização, a juventude se refere a uma dimensão sociológica que aponta o processo de

preparação dos indivíduos para o papel de adulto na sociedade, estendendo-se dos 15 aos

24 anos. No ECA, a adolescência é considerada entre as idades de 12 e 18 anos

incompletos, e o termo da juventude não é citado.

Cruz (2010) critica o termo da adolescência predominante, que é permeada, no

senso comum e entre psicólogos, de uma visão determinista e universalista. Afirma que

esta é: por um lado, uma fase marcada por aspectos negativos, como conflitos e crises,

instabilidade emocional, confusões de papeis e dificuldades de desenvolver uma

identidade própria, e por outro, relacionada a atividades produtivas relativas à imagem e

ao corpo como um ideal de ser. Dessa maneira, a autora sublinha que tal perspectiva

determinista acaba ignorando as condições concretas da existência, ao se basear em uma

evolução linear e natural do indivíduo, que caracteriza essa fase como problemática ou

semi patológica. Ao mesmo tempo, a adolescência é vista como uma representação do

“futuro do país”, adquirindo, de alguma maneira, uma responsabilidade, desde a infância,

pelas mudanças no Brasil, responsabilidade que começa com as expectativas dos pais no

desempenho de papeis socialmente atribuídos (Cruz, 2010).

Silva e Lopes (2009) compreendem a juventude relacionando-a a questões sociais

e históricas para compreendê-la como uma dimensão social, considerando, dessa forma,

o duplo sentido da proteção infanto-juvenil. Elas entendem

A concepção da juventude como uma fase de transição pode

ser compreendida em relação à trajetória biográfica, que vai

da infância à idade adulta, e à transição considerada como

processo (de reprodução social), quando as trajetórias dos

jovens são reflexos das estruturas e dos processos sociais

(p. 91-92).

A perspectiva deste trabalho se fundamenta na ideia de que a adolescência é mais

do que uma fase biológica e psicológica do desenvolvimento humano. Baseia-se na

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perspectiva de que é uma construção social, significada na cultura, na linguagem e nas

relações sociais, semelhantemente a como é vista a juventude na concepção apresentada

acima. Não irei tratá-las como iguais concepções, mas as usarei para representar um

público que vivencia semelhantes experiências.

De acordo com as noções soberanas e deterministas da nossa sociedade, o simples

fato do indivíduo ser adolescente ou jovem, já provoca uma representação social de

irresponsabilidade e incapacidade. Quando esses moram em favelas ou bairros de

periferia, já são associados, muitas vezes, à miséria, violência e criminalidade, às classes

“perigosas”. Dessa maneira, o julgamento sobre o jovem e adolescente da periferia

acontece de forma ainda mais discriminatória. O conjunto de rotulações e estigmas sobre

eles influenciam nas suas próprias noções de si mesmo.

Na perspectiva de Gonçalves (2003), o determinismo, sobre um olhar hegemônico

da adolescência, abrange significados sociais que influenciam na apropriação dos

adolescentes desses significados como representantes de suas vivências singulares.

Assim, os fatores sociais acabam construindo uma determinada adolescência (Ozella,

2002). E por esse lugar assumido pelo adolescente na sociedade, podem ocorrer algumas

consequências ruins para alguns grupos, como por exemplo, os jovens em conflito com a

lei, os quais acabam não tendo a oportunidade de superar e ressignificar a experiência

vivenciada.

Conforme demonstrado no tópico anterior, muitos adolescentes no Brasil já

nascem em um contexto imerso de vulnerabilidades sociais, as quais envolvem violações

cometidas pelo Estado, sociedade e próprias famílias.

A vulnerabilidade se traduz, para indivíduos de grupos excluídos, no precário

fornecimento de recursos materiais e simbólicos fundamentais para que jovens façam uso

das oportunidades oferecidas pelo Estado, sociedade e mercado (Abramovay et al, 2002).

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Alguns insumos são necessários para que o bom proveito desses recursos venham

acontecer, tais como: educação, saúde, trabalho, lazer e cultura.

É notório em nosso país, as péssimas condições de educação e saúde que se

resumem na “inclusão perversa” discutida por Cruz (2010), e trazem indignação para

muitos jovens e suas famílias, pelo descrédito com seus direitos sociais. Esses e outros

fatores, que serão expostos adiante, retratam o sentimento de intolerância perante o Estado

e sociedade. Alguns jovens de periferia respondem a tudo isso com violência, como uma

forma de reação à violência por parte do aparelho estatal, representado pela truculência

da polícia, pela falta de reconhecimento, de invisibilidade social, pela indignação e

desvalorização como cidadãos.

Como relatado anteriormente, as famílias, com a necessidade de ampliação de

renda, influenciam na busca de seus filhos por trabalhos informais ou antecipam a ida

deles à rua para dali tirarem seu sustento. Por vezes, jovens e adolescentes da periferia

não conseguem emprego por discriminação, e quando conseguem, são submetidos à

péssimas condições de trabalho e remuneração (Castro e Abramovay, 2002). Por esse

motivo, muitos deles acabam se envolvendo com o tráfico, por oferecer um melhor

retorno financeiro e também um certo status nos grupos aos quais pertencem.

Quando levamos em consideração que o lazer pode ser relacionado tanto a

“estímulos como a antídoto contra violências” (Castro e Abramovay, 2002, p. 156), como

de fato é uma realidade, percebemos que a falta de atividades de diversão na comunidade

pode ser associada a vulnerabilidade social. Isso porque, como afirmam as autoras, a

carência de atividades voltadas ao lazer é explorada pelo tráfico, que ocupam muitos

locais, inclusive, os espaços “esquecidos” pelo poder público, e organizam esses espaços,

tornando-se a referência para os adolescentes. São escassas as oportunidades dos jovens

de comunidades pobres ao acesso à bens culturais e ao capital cultural e artístico mantidos

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por parte do patrimônio social e da humanidade (Castro e Abramovay, 2002). Elas

complementam que o lazer dos jovens, segundo eles mesmos, se resumem a jogar bola, ir

à praia e eventuais festas.

A vulnerabilidade à violência é uma realidade que envolve o medo, a exposição a

ela,e o envolvimento com práticas criminosas, como os atos violentos e o tráfico de

drogas, que são marcas de uma geração que resulta na morte precoce de muitos (Castro e

Abramovay, 2002). Nesse contexto, existe rivalidade entre gangues que limitam a

liberdade de locomoção e é comum a presença de narrativas, entre jovens, voltadas para

a participação em gangues, tráfico de drogas, prostituição e violência sexual. Assim como,

vários meninos encontrados nas ruas fugiram de suas famílias por serem vítimas de

violência doméstica pelos pais e, por esse motivo, sentem-se inseguros, sem referência e

com baixa autoestima. Essa modalidade de violência desencadeia a probabilidade de um

ciclo de violências que serão propagadas no decorrer do tempo.

Jovens e outras pessoas da periferia, de um modo geral, sofrem violência

institucional através de maus-tratos de policiais e membros da justiça, que agem como

indutores de indivíduos violentos (Castro e Abramovay, 2002).

A drogadição é um aspecto relacionado a vulnerabilidade social e se trata de uma

condição que muitos jovens consideram como um de seus problemas mais graves (Castro

e Abramovay, 2002). Segundo as autoras, as drogas lícitas, como o álcool, são

incorporadas em seu contexto como elemento de sociabilidade, por ser socialmente aceito,

sendo comum os casos de alcoolismo na família, por pais, irmãos e outros parentes.

Afirmam que o envolvimento com as drogas ilícitas começa, principalmente, com uma

relação de amizade ou pertencimento de um grupo e, esse consumo começa, geralmente,

fora de casa, no intuito também de se sentirem mais relaxados e alegres. Alguns estudos

sustentam que as drogas lícitas e ilícitas possibilitam resultados prejudiciais aos

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indivíduos, mas não significa, necessariamente, que o consumo de drogas está

diretamente relacionado à violência, já o tráfico está; apesar de que os usuários de drogas

possam estar mais suscetíveis à violência (Castro e Abramovay, 2002).

Em pesquisa realizada por Morais et al (2009), com adolescentes que vivem em

situação de rua, em todas as violências sofridas eles foram protagonistas. Segundo elas,

os eventos estressores mais apresentados foram por eles foram: ter dormido na rua,

conflitos com amigos, repetir ano na escola, brigas com irmãos e idas ao Conselho

Tutelar. Nessa pesquisa, a morte de familiar esteve entre os fatores com maiores impactos

ao estresse dos adolescentes, bem como o consumo de drogas, tentativa de suicídio

também era comum em seus contextos de vida. Verificou-se que quanto maior impacto

das situações adversas, maior é a condição de vulnerabilidade dos adolescentes, e muitas

dessas circunstâncias negativas, aconteceram antes do período de moradia na rua. Os

eventos mais estressores estiveram atrelados à violência doméstica, dificuldades

financeiras e contexto escolar (reprovação, abandono escolar e problemas com

professores). No entanto, ao buscar na rua um escape para os castigos e diferentes

agressões, se debateram com a continuidade da violência, sendo que em outros formatos

(agressão física, ameaça com armas, ameaças de abuso sexual, estupro, dentre outros),

agora agredidos por integrantes de gangs, companheiros, policiais e população em geral

(Morais et al, 2009).

Por outro lado, a pesquisa acima também identificou que, os adolescentes em

situação de rua, demonstraram a capacidade de sorrir, brincar e expressar afetos positivos

mesmo diante de situações adversas, ao contrário das rotulações sociais de que eles são

ou somente violentos ou vítimas das violações de direitos. Dessa maneira, não podemos

desconsiderar a capacidade dos mesmos no enfrentamento de circunstâncias difíceis.

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Nesse contexto, a violência juvenil tem surgido sob variadas óticas: como maneira

dos jovens quebrarem sua invisibilidade e demonstrarem suas capacidades de participar

de processos políticos e sociais; e como meios de comunicação para chamar atenção de

sua realidade adversa, por exemplo, grupo de rappers (Abramovay et al, 2002).

Fica claro, então, que a vulnerabilidade social não está atrelada somente à situação

de pobreza, mas também a uma gama de situações estressoras que produzem violências,

nas quais muitos adolescentes estão envolvidos como vítimas e como agressores. De fato,

a violência está por todos os lados, mas em meio a tudo isso, é possível buscar saídas ao

enxergar possibilidades de enfrentamento dessas adversidades pelos adolescentes, Estado,

família e sociedade.

É possível, mesmo na condição de restrição econômica, buscar soluções a esses

problemas através de linguagens juvenis atreladas ao esporte, artes e atividades lúdicas.

Muitos projetos sociais, vinculados à diferentes instituições, vem trabalhando no combate

a vulnerabilidade social, fornecendo condições aos adolescentes de desenvolver fatores

de proteção.

Por fim, a questão traçada nesse item invoca a problemática da geração da

juventude, que, segundo Castro e Abramovay (2002),

não basta referir-se a direitos individuais, mas também de

grupos e gerações e a características de um tempo e de

sociedades. Quais seriam as marcas desta geração, e de

gerações nessas sociedades? Afetam a geração dos jovens,

o desencanto, as incertezas em relação ao futuro, o

distanciamento em relação às instituições, a descrença na

sua legitimidade e na política formal, além de resistência a

autoritarismos e “adultocracia”. Nesse caso, a escola e a

família já não teriam a mesma referência que tiveram para

outras gerações, além de que há diversidades quanto a

construções dessas referências em grupos em uma mesma

geração. Por outro lado, o apelo da sociedade de espetáculo

e o apelo aos padrões de consumo conviveriam com

chamadas para a responsabilidade social e o associativismo.

Essas e outras tendências contraditórias também

potencializariam vulnerabilidades negativas e positivas (no

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sentido de fragilidades, obstáculos, capital social e cultural

e formas de resistência no plano ético cultural) (p. 146-147).

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2.2. Quadros do Acolhimento Institucional no Brasil

No processo de desenvolvimento do país, diversas práticas de assistência

institucional à infância e adolescência surgiram, em paralelo à evolução do pensamento

do ser criança e adolescente, imerso em um contexto sócio-histórico-cultural nacional e

internacional.

A assistência à infância no Brasil foi baseada na ideia de que as crianças pobres

possuíam desvio de comportamentos que só poderiam ser corrigidos a partir da

intervenção do Estado. Desse modo, ações foram criadas para retirar as crianças de suas

casas e comunidades e ficarem sob tutela de instituições, ao invés de priorizar o suporte

aos pais no cuidado com seus filhos (Rizzini, 2004).

Desde o período colonial, as crianças pobres eram sujeitas à violência,

preconceito, abandono e exploração. Elas ficavam sobre os cuidados dos jesuítas. E as

crianças órfãs desvalidas e abandonadas eram institucionalizadas em entidades religiosas

e depois reformatórios, com a intenção educacional ou correcional (Costa, Penso e

Conceição, 2014, p.11).

No século XVIII começaram a surgir instituições oficiais com o intuito de acolher

crianças abandonadas, frutos de relações extraconjugais entre senhores e escravas. Esse

quadro tomou uma proporção ao ponto de ser discutido na corte portuguesa, sendo então,

delegado o cuidado das crianças abandonadas às Casas de Misericórdia, instituições

religiosas voltadas para serviços caritativos, filantrópicos e hospitalares, fundadas pela

Irmandade Santa Casa de Misericórdia (Alves, 2001).

Nessas circunstâncias, foi preferível que as Casas de Misericórdia cuidassem das

crianças porque não envolveria nenhum investimento para a metrópole, já que tais

instituições viviam de doações e esmolas. Com a autorização do rei, as câmaras

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municipais, as quais eram atribuídos o papel da educação e criação das crianças

abandonadas, passaram a delegar essa função às Santas Casas. Assim, só continuaram

com o dever de organizar um livro de registro de cada criança, com as principais

informações da mesma para contribuir com uma possível identificação por parte da

família de origem (Medeitos,2014).

O Brasil introduziu o modelo da Roda de Expostos da Misericórdia de Lisboa nas

Santas Casas, com o interesse de garantir o anonimato dos pais. Era como uma roda

giratória que permitia que a criança fosse doada pela parede da instituição sem que fossem

vistos quem estava dentro ou fora da mesma (Medeiros, 2004). O abandono de crianças

acontecia por motivo ilegitimidade, de pobreza, doença de um dos pais, morte da mãe e

por doença dos bebês. A proteção e cuidados feitos pelas Santas Casas eram precários e

cerca de 90% das crianças faleciam devidos às péssimas condições de higiene e

alimentação. Tal proteção não envolviam crianças escravas, essas eram sujeitas aos

mesmos tipos de castigos e humilhações que seus pais quando atingiam os sete anos de

idade (Medeiros, 2014).

Nesse período ocorriam também adoções informais em família substitutas, nas

quais consideravam as crianças adotadas como filhos de criação (Costa, Penso e

Conceição, 2014, p.11). Essa expressão “filhos de criação” é utilizada até hoje,

costumamos ouvir “essa é a menina que eu crio” ou “esse é meu filho de criação”. Assim,

apesar das necessidades básicas serem fornecidas a essas crianças e adolescentes, em

muitos casos não são considerados como filhos, mas sim como alguém que eles cuidam

por favor.

O período caritativo da assistência às crianças abandonadas no Brasil perdurou do

período colonial até o século XIX. Nesse período iniciou-se uma maior visibilidade às

questões sociais do Brasil, baseados na caridade, piedade e compaixão, como condição

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para a salvação da alma (Silva, 2010). Por outro lado, foi marcado pela grande negligência

e invisibilidade dada a crianças e adolescentes que eram indesejados e bastardos

(Medeiros, 2014).

Segundo Silva (2010), a partir do século XIX, surgiu uma nova perspectiva

científica e social voltada para o desenvolvimento da temática da família e da infância,

que fazia crítica ao mecanismo baseado na caridade. Nesse contexto, a criança passou a

ser vista como uma questão de cunho social, sob a administração do Estado, atingindo

não somente os interesses das instituições religiosas e do âmbito privado, como antes

predominava. “Nesse contexto a criança passou a ser percebida como patrimônio da

nação, por ser considerada um ser em formação, poderia ser transformado em “um homem

de bem’ ou um “homem degenerado” (Silva, 2010, p. 36).

A criança passou a ser vista diferente do adulto, tanto em termos de capacidade e

modo de entender os fatos, quanto na inocência e na falta de malícia. Posteriormente, foi

vista a importância do brincar para a criança, principalmente nas famílias de elite. Essa

visibilidade foi bem menor nas crianças pobres, pois havia uma grande pressão pelo

trabalho infantil no período da industrialização (Costa, Penso & Conceição, 2014, p.11).

Com isso, a proteção à infância passou a fazer parte do controle social, com o

pensamento de oportunidade para regeneração da sociedade (Rizzini, 2008). Ou seja, o

cuidado com a criança poderia evitar o desvio para o “mal”, por exemplo, para a

criminalidade.

Dessa forma, proteger a infância significava proteger a sociedade, o que representa

a atitude paternalista e autoritária do Estado Republicano brasileiro, que não incentivava

a participação popular. Com o tempo, o Estado foi aperfeiçoando as condições necessárias

para que a camada pobre continuasse subordinada às suas atitudes assistencialistas (Silva,

2010).

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Essa concepção da assistência subdividiu a infância da adolescência, cada qual

com sua demanda particular. Os investimentos feitos dependiam da necessidade de

assistência, seja abandono, maus tratos, mendicância, vadiagem. (Rizzini, 2008). Ou seja,

atuação voltada para reduzir índices de mortalidade e de prevenir perigos morais vindos

da família. O reconhecimento da adolescência só veio com a mudança nas leis

trabalhistas. (Costa et al, 2014, p.11).

Em outubro de 1927, entrou em vigor o Código de Menores, instrumento de

proteção das crianças e adolescentes, menores de 21 anos, nos quais eram alvos da

omissão e de transgressão de seus direitos básicos pela família. O juiz era a autoridade

responsável pelo cumprimento da lei e o Conselho de Assistência e proteção dos menores

dava suporte ao mesmo. Enquanto isso, os conselheiros tutelares eram tidos como os

“delegados da assistência e proteção dos menores” (Campos, 2009, p. 8).

Segundo Lisboa (1994), citado por Campos (2009), a existência de lugares

apropriados se deu a partir da visão do Estado de que o abandono ocorria devido à

delinquência e assim os menores precisavam ser recolhidos nesses lugares para

vivenciarem um processo de reintegração social. A proposta do Código era de reeducar

aquele menor que transgrediu a sociedade.

O internamento não era visto como castigo, mas como intervenção terapêutica a

fim de preparar a criança para o convívio social normal. Nesse processo, se firmou a

aliança entre a justiça e a assistência à infância e à adolescência, com o intuito de

enquadrar os indivíduos à disciplina e ao trabalho (Rizzini, 2008).

Nesse contexto, a assistência social começou a sofrer diversas mudanças de acordo

com as transformações socioeconômicas do país. Em meados de 1930, o capitalismo

começava a dominar as relações socioeconômicas no Brasil (Silva, 2010). Nessa

conjuntura, as políticas sociais e a estruturação do modelo de proteção social surgiram

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como formas de enfrentamento às expressões diversas da questão social no capitalismo,

no qual se fundamenta na relação de exploração do capital sobre o trabalho (Behring &

Boschetti, 2011).

Depois de 50 anos, o Código de Menores foi reformulado, em 1979. Este era

instrumento de controle social da infância e da adolescência, agora não só alvo da omissão

e transgressão de seus direitos básicos pela família, mas pela sociedade e pelo Estado

(Campos 2009). O autor afirma que,

Esse Código considerava em situação irregular o menor

privado de condições essenciais à sua subsistência, saúde e

instrução obrigatória, quando fosse vítima de maus-tratos

ou castigos imoderados impostos pelos pais ou responsável,

quando se encontrasse em perigo moral (...) quando

apresentasse desvio de conduta em virtude de grade

inadaptação familiar ou comunitária e, ainda, quando fosse

autor de infração penal (p. 09).

Tal autora, afirma ainda que “a proteção destinava-se aos carentes e abandonados,

enquanto a vigilância, aos inadaptados e aos infratores” (p. 09).

Nas palavras de Silva (2010), “o novo código introduz a doutrina de situação

irregular, apenas consolidando o hiato existente entre a criança e o adolescente, por um

lado, o “menor abandonado” e o “delinquente”, por outro. (p. 42)

O que houve de inovação com o Código de 1979, comparado com o anterior, foram

as medidas baseadas no interesse da permanência do menor no seio familiar, apesar de

ainda visar a internação e a colocação em família substituta.

Entre as décadas de 1970 e 1980, iniciou-se um novo cenário político e

institucional no Brasil, pelas lutas de redemocratização, dando abertura a novas formas

de participação popular na gestão das políticas públicas (Campos 2009). Tudo isso se deu

com a queda do regime militar, dando margem à democracia e militância da população.

Em 1988, ocorreu uma grande reforma na constituição que culminou em uma legislação

altamente inovadora relativa à criança e ao adolescente, o Estatuto da Criança e do

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Adolescente (ECA). Esse foi aprovado em 1990 sob a defesa da doutrina de proteção

integral, em substituição da doutrina de situação irregular (Silva, 2010).

O ECA foi fruto de movimentos sociais implicados com a questão social de

meninos e meninas de rua que eclodiu na década anterior. Nesse quadro, a tutela,

exclusivamente jurídica, de crianças e adolescentes até 18 anos se tornou um

compromisso do Estado em relação à garantia de assistência social gratuita, universal e

integral (Silva, 2010).

Um dos princípios do Estatuto diz que “nenhuma criança ou adolescente será

objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade

ou opressão, punido na forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus

direitos fundamentais” (Art. 05).

O Sistema Único de Assistência Social (SUAS) é o modelo de gestão utilizado no

Brasil para operacionalizar as ações de assistência social. A assistência social é parte do

Sistema de Seguridade Social, apresentado pela Constituição Federal de 1988. O SUAS

é de responsabilidade do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, e está

previsto e regulamentado na lei federal nº 8.742, de 7 de dezembro de 1993, a Lei

Orgânica de Assistência Social (LOAS).

Um dos tipos de serviços que integram o SUAS, se trata das instituições de

Acolhimento Institucional da rede socioassistencial. Eles integram os Serviços de Alta

complexidade do SUAS, sejam de natureza público-estatal ou não-estatal, e estão

interligados ao Estatuto da criança e do Adolescentes (ECA), bem como ao Plano

Nacional de Promoção, Proteção e Defesa do Direito da Criança e do Adolescente a

Convivência Familiar e Comunitária (CNAS & Conanda, 2009).

Segundo os órgãos citados, dentre esses serviços existem as unidades de

acolhimento que surgiram no final da década de 80, após a promulgação da atual

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Constituição do Brasil. O início de suas atividades coincidiu com a discussão da

elaboração do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).

Segundo a nova lei, o acolhimento institucional em forma de abrigo é uma medida

de proteção temporária e excepcional (ECA, 1990, Art. 101, inciso VII, § único). Essa

medida tem o intuito de garantir o direito à convivência familiar e comunitária que foram

violados, seguindo um modelo diferente do anterior de 1988, no qual era voltado para à

exclusão (Silva, 2010). Nesse sentido,

Para que os dispositivos do ECA sejam implementados é necessário que

tantos os responsáveis por sua aplicação quanto os executores – entre os

quais as entidades que oferecem abrigo para crianças e adolescentes –

tenham não apenas conhecimento amplo do Estatuto, mas também

partilhem seus objetivos (Silva, 2004, p. 197).

Mesmo com o ECA, ainda existem inúmeras dificuldades para a sua implementação

devido a força ainda atuante de uma política desigual e excludente que prejudica a forma

como o acolhimento deve acontecer. Entretanto, passos importantes têm sido dados, por

profissionais comprometidos, à favor do efetivo cumprimento dos direitos das crianças e

adolescentes.

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2.2.1 Painel atual do Acolhimento Institucional no Brasil

Foi constatado pelo Levantamento Nacional de Abrigos para Crianças e

adolescentes (IPEA/DISOC) que havia 20 mil crianças e adolescentes vivendo em 589

abrigos no Brasil em 2003. A pesquisa demonstrou que a maior parte dos abrigados eram

meninos negros e pobres entre 7 e 15 anos de idade, que do total de abrigados, 87%

possuem família (Silva, 2004).

Em 2011, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), registrou 1.876 abrigos para

crianças e adolescentes cadastrados no país, enquanto a Fundação Oswaldo Cruz realizou

uma pesquisa em 2010, por solicitação do Ministério do Desenvolvimento Social e

Combate à Fome, constatou a existência de 2.624 instituições em território nacional

(Rodrigues, 2016). O acolhimento de crianças e adolescentes é considerado, pelo ECA,

uma medida de caráter provisório e excepcional, após ter sido averiguado violação por

abandono, negligência ou risco pessoal. Com o acolhimento institucional, a tutela das

crianças e adolescentes passa a ser do Estado. Um juiz responsável concede a guarda da

criança ou adolescente ao responsável pela instituição, o que não significa a perda do

poder familiar, situação que só ocorre em tramitação judicial (SENADO FEDERAL,

2014).

O Brasil contabilizou 36.551 crianças e adolescentes vivendo em abrigos mantido

por ONGs segundo dados do CNCA (Cadastro Nacional de Crianças e Adolescentes

Acolhidos), criado pelo CNJ (Conselho Nacional de Justiça). Das crianças abrigadas,

17.232 são do sexo feminino e 19.318 do sexo masculino, e deles, 1.926 não possuíam

registro de nascimento (SENADO FEDERAL, 2014).

Segundo Medeiros (2014), dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) do ano

de 2012, retratam que o maior número de crianças e adolescentes acolhidos está no

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Nordeste. O estado do Rio Grande do Norte (RN), em comparação com os outros estados

da região, está em quinto lugar referente ao número de crianças e adolescentes em

acolhimento institucional ou família acolhedora. No RN, há registradas 13 instituições de

acolhimento em funcionamento, nas quais abrigavam em 2012, 401 crianças e

adolescentes, enquanto em 2011 esse número era maior, de 443. Entretanto, o número de

institucionalizações no estado continuou alto, o que me faz questionar: a medida protetiva

de abrigo tem sido tomada como última alternativa?

Com essas informações iniciais, já podemos perceber o contexto familiar difícil e

de vulnerabilidade social que esses adolescentes vivenciaram para chegar à medida,

excepcional, de acolhimento. A institucionalização surge, para eles, como a última

alternativa de distanciá-los das violações de diretos ou das condições de vulnerabilidade.

Então, passam a residir em um local que é pouco semelhante a um lar, afastados da

convivência familiar e comunitária. Está previsto no ECA, o direito a convivência familiar

e comunitária, mas operacionalizar o que está escrito na lei tem sido um enorme desafio,

tendo em vista os dados que serão apresentados posteriormente.

O acolhimento é uma medida de caráter excepcional, ou seja, uma ação atípica

vista como última alternativa para proteção da criança ou adolescente. Outra característica

dessa medida é a provisoriedade, pois seu objetivo é que, o quanto antes, sejam

reintegrados em família de origem, como lhes é de direito. Quando não é possível o

retorno às suas famílias, eles podem ser encaminhados à família substituta. De modo

contraditório, a provisoriedade da medida se dobra face às dificuldades em relação a

reintegração familiar.

Dessa maneira, o acolhimento geralmente ocorre quando se configura a carência

extrema de recursos materiais da família/responsável; o abandono; a violência doméstica;

a dependência química; a vivência de rua e a orfandade (Iannelli, Assis & Pinto, 2015).

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Assim, o afastamento deve acontecer somente em situações excepcionais que envolvam

risco a integridade física e/ou psicológica da criança e do adolescente, e a medida deve

ocorrer para que haja o menor prejuízo ao seu processo de desenvolvimento. Sendo assim,

a medida deve ser implantada quando não for possível fazer uma intervenção com a

presença da criança e do adolescente no convívio familiar, seja nuclear ou extensa (CNAS

& Conanda, 2009); embora, o afastamento do meio familiar proporcione sentimentos de

tristeza, ódio, rejeição, insegurança, angústias, decepção; complementam as autoras. Há,

portanto, que se perguntar: será que o acolhimento tem trazido integridade psicológica

para essas crianças e adolescentes?

Dessa maneira, o acolhimento se dá, excepcionalmente, quando os pais ou

responsáveis não conseguem fornecer os cuidados necessários para seus filhos, afim de

que sejam assistidos em seus direitos previstos em lei. Vários motivos acarretam no

abrigamento de muitas crianças e adolescentes, como citado anteriormente, o principal

deles é a pobreza, segundo a Tabela 1 [extraída de Silva, E. R. (2004). O perfil da criança

e do adolescente nos abrigos pesquisados. In: ______. O direito a convivência familiar e

comunitária: os abrigos para crianças e adolescentes no Brasil. IPEA/CONANDA, (1) 41-

70].

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Tabela 2.

Brasil/grandes regiões: crianças e adolescentes abrigados, segundo os

principais motivos de abrigamento.

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O ECA prevê que “a falta ou a carência de recursos materiais não constitui motivo

de suspensão do pátrio poder” (Art. 23) e complementa, no parágrafo único deste artigo,

que “não existindo outro motivo que por si só autorize a decretação da medida, a criança

ou o adolescente será mantido em sua família de origem, a qual deverá, obrigatoriamente,

ser incluída em programas oficiais de auxílio”. Tais programas do governo se referem ao:

Bolsa família, Benefício de Prestação Continuada (BPC) e outros benefícios de caráter

eventual. Entretanto, a tabela mostra que, na prática, parte dos motivos citados na tabela

1, tem alguma relação com a pobreza, sendo eles: a carência de recursos materiais, com

24,1% dos pesquisados; o abandono pelos pais ou responsáveis, com 18,8%; a vivência

de rua, com 7,0% e a exploração no trabalho e/ou mendicância, com 1,8% (Silva, 2004).

Ela aponta que o somatório desses percentuais equivale a mais da metade, 52%, do índice

de crianças e adolescentes institucionalizados por contexto de pobreza. Supomos, então,

que as famílias dos abrigados não possuíam condições básicas de sobrevivência com

dignidade, tendo em vistas, as precariedades a que estão sujeitas, como: saneamento,

alimentação de qualidade, moradia, acesso à educação e à saúde.

Nesse contexto, pela dificuldade que os pais ou responsáveis encontram em suas

vidas e, inclusive, no fornecimento de condições necessárias e adequadas para seus filhos,

pode haver margem para outras violações de direitos, como a exploração do trabalho

infantil e a mendicância, que acabam ocasionando a institucionalização de as crianças e

adolescentes (Silva, 2004).

O Nordeste ocupa o segundo lugar no ranking subtotal dos motivos da

institucionalização, porém apresentou o maior índice de pobreza como fator de

abrigamento, com 34,3%; de vivência na rua, com 10%; e de orfandade com 5,5%.

Jaczura (2008) afirma que, considerando, todas as violações contra crianças e o

adolescente, que são, constantemente, notificadas pelas Delegacias Especializadas da

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Criança e do Adolescente (DPCA), o abrigo pode ou não, ser um lugar de reinserção

familiar. Ela aponta dois posicionamentos diferentes quanto a institucionalização: uma

perspectiva de que a institucionalização afeta negativamente o desenvolvimento da

criança e do adolescente, e outra, que defende a importância da função delegada aos

abrigos de atendimento que envolve a rede de apoio social, considerando positiva tal

medida protetiva. Tais perspectivas serão apresentadas a seguir, pois ambos permitirão

enxergarmos como se encontra o acolhimento institucional no Brasil para crianças e

adolescentes, nos diferentes pontos de vista. Alguns autores conseguem enxergar, ao

mesmo tempo, as duas faces da medida de abrigo, de um lado, os aspectos favoráveis do

acolhimento e, por outro, condições desfavoráveis e limitações que ele pode causar.

Estudos mais antigos, realizados por Grusec e Lytton (1988), citados por Siqueira

e Dell A’glio (2006), trazem a informação de que a internalização nos abrigos pode gerar

“prejuízos” cognitivos, como déficit de atenção, comprometimento do desenvolvimento

da linguagem, ou até mesmo agressividade e dificuldades emocionais. Porém esses efeitos

podem ser produzidos por outros fatores como a ausência de estimulação e brincadeiras,

o que permitem o agravamento do quadro (Siqueira & Dell A’glio,2006).

Na perspectiva de Arpini (2003), os abrigos tradicionais acabaram por criar as

mesmas dificuldades de sofrimentos e abandonos já vividos pelos adolescentes. Porém,

com o ECA, houve várias mudanças na concepção da instituição de acolhimento,

começando por sua estrutura. Atualmente, ela aponta que os abrigos são instituições

menores que abrigam um número menor de pessoas, com um ambiente familiar mais

favorável para um processo de socialização e convivência familiar mais eficaz para o

desenvolvimento da criança e do adolescente. Não significa, para a autora, que a

instituição oferece o mesmo ambiente funcional que a família fornece, nem que esse novo

modelo impeça que algumas violências características das instituições tradicionais sejam

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reproduzidas. Entretanto, a autora afirma que ela oferece condições, ao menos, de ser um

lugar onde se pode realizar inúmeras atividades e socializações, com a capacidade de

promover o desenvolvimento de relações recíprocas. Além de também poder

proporcionar a construção de referenciais identificatórios positivos, na perspectiva da

construção de sujeitos.

Outro fator desfavorável observado em pesquisa realizada por Arpini (2003), se

trata do fato dos abrigados apresentaram em seus discursos a dificuldade de conviver com

o estigma social, na escola, por exemplo, de que crianças e adolescentes

institucionalizados são problemáticas, não são “normais” e que o local em que estão é

consequência dos erros que cometeram em suas vidas.

Se pudermos pensá-la não apenas como depósito do “lixo

social”, talvez possamos realmente construir dentro dela

uma nova possibilidade e, a partir daí, dar um real sentido à

sua existência, permitindo que cada criança ou adolescente

que venha integrar a esse universo tenha a possibilidade de

encontrar aí um “olhar”, um “lugar” de construção de

desejos e possibilidades. (Arpini, p. 01)

Penso que tal estigmatização é mais provável acontecer, principalmente pelos

próprios profissionais do espaço escolar, tendo em vista que, geralmente, são os que

possuem a informação de quais alunos moram em abrigos. Além disso, essa suposição

pode ser fundamentada, a partir de discussões anteriores, no pressuposto de que os

adultos, inclusive do sistema educativo, carregam rótulos referentes à noção do

adolescente imerso na vulnerabilidade social e no abrigamento.

Nesse sentido, ao levar em consideração nosso contexto sócio-cultural, é possível

imaginar as inúmeras rotulações que os abrigados vivenciam, tais como: a determinação

de ser um indivíduo em uma fase “complicada” da vida, a adolescência; e a discriminação

por morarem em um abrigo, não estando em um seio familiar saudável por terem famílias

“desestruturadas” e problemáticas. A rotulação é de serem infratores, “delinquentes”, pois

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se estão institucionalizados, fizeram algo de errado. A previsibilidade social é de ser um

adolescente sem muita perspectiva de futuro profissional, já que vivenciaram uma série

de violências que dificultaram acessos que contribuíssem com a sua formação como

sujeitos. Essa rotulação acaba sendo reproduzida também pelos próprios profissionais da

rede socioassistencial e da unidade de acolhimento.

Silva (2010) afirma que nos casos de crianças e adolescentes que são vítimas de

violência, abandono ou negligência, elas são retiradas de seus lares, de suas famílias e

passam a viver em um ambiente que é pouco semelhante a um contexto familiar,

impossibilitando, tanto um desenvolvimento físico e psicológico adequado, quanto a

elaboração de projetos de vida (Silva, 2010). É válido destacar que o contexto familiar

dessas crianças e adolescentes estava fragilizado, ao ponto de produzir violações aos

mesmos, assim, essas famílias já não estavam proporcionando um desenvolvimento

adequado a seus filhos. Nesse sentido, suponho que, para a autora, o abrigo seria um

reprodutor dessas violências iniciadas no contexto familiar. Tal suposição se amplia

quando afirma que o quadro de precariedade do serviço prejudica, mais ainda, a criação

de um ambiente propício às crianças e aos adolescentes em situação de risco pessoal ou

social, pelo fato de acreditar que a institucionalização, em si, representa um problema

para o desenvolvimento dos abrigados. Significa, então, para ela, que o acolhimento

institucional promove mais riscos que antes da aplicação da medida, quando ainda viviam

no contexto familiar.

Morais e Koller (2004) defendem a ideia de que es fatores de risco e de proteção

devem ser priorizados de igual maneira, tendo em vista que o fator de proteção pode

favorecer o indivíduo a melhor lidar com situações de risco. Assim, as crianças e

adolescentes acolhidos teriam a chance de desenvolver, dentro do abrigo, um fator de

proteção à possíveis riscos futuros.

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Através de estudo realizado por Siqueira e Dell’ Aglio (2006), foi observado que

as instituições de acolhimento vêm apresentando melhorias em seus serviços, em

comparação com os primeiros abrigos brasileiros. Antes os locais eram insalubres e havia

grande número de crianças e adolescentes em um mesmo espaço, hoje esse quadro está

bem mais estabilizado e organizado. Entretanto, segundo elas, ainda existem muitos erros

no acolhimento, relacionados a precária qualificação e pequeno número de profissionais,

bem como a fragilidade das redes de apoio social e afetivo, devido à pouca interação entre

o abrigo e outras instituições, como: escolas, conselhos tutelares, família, comunidade,

serviços de saúde. Todos esses, importantes no processo de reintegração social. Ao

mesmo tempo, elas perceberam que a instituição oferece apoio social e afetivo aos

acolhidos, de forma a possibilitar a elaboração da capacidade de enfrentamento das

dificuldades, proporcionando efeitos resilientes.

Segundo Sequeira (2009), há a possibilidade de o abrigo ser um espaço alternativo

para o processo de identificação, contanto que não se disfarce como uma falsa família,

afinal, é papel dos abrigos oferecer proteção e acolhimento quando a família não tem

condições de cuidar de seus filhos. Ela reconhece que existem espaços que dificultam o

desenvolvimento adequado, principalmente quando os adultos cuidadores agem com

indiferença, sem expressão afetiva ou sem se importar com as crianças e adolescentes.

Isso também ocorre

quando o ambiente é hostil, agressivo e o clima institucional

é ostensivo; quando há excessiva ociosidade das crianças,

que ficam horas na frente da televisão, que podem faltar à

escola sem que lhes seja questionado o motivo ou sem que

sejam apontadas às consequências dentro de uma

perspectiva de futuro” (p. 13).

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Dessa maneira, o desdém ou desinteresse dos profissionais do abrigo pode ser o

elemento adverso mais prejudicial para o desenvolvimento da capacidade de superação

das crianças e adolescentes.

Nesse sentido, o que pode fazer a diferença no acolhimento institucional,

conforme Sequeira (2009) é a criação de um espaço acolhedor por meio de expressões de

afeto, desenvolvimento de relações sinceras, não estereotipadas. Lugar no qual as pessoas

do abrigo possam conversar, contar histórias, compartilhar experiências. Outro aspecto

importante, está voltado para as atividades domésticas, as quais podem ser divididas de

maneira que estimule a cooperação e trabalho em grupo para o bem-estar de todos. Assim,

ela destaca que o abrigo seria um facilitador da resiliência, ao permitir que as regras

fossem flexíveis e coerentes, além de promover arte e humor, empatia, comunicação

aberta, limites claros, tolerância aos conflitos e mudanças, reconhecimento, respeito e

privacidade.

A autora ressalta que a perda, a saudade e a separação não se configuram, em si,

como um empecilho para a formação da identidade de crianças e adolescentes, apesar de

serem situações que, com certeza, influenciam em sua formação. Contudo, o que vai

determinar essa formação, é a possibilidade de simbolização dessas experiências.

Segundo a Constituição Federal, o direito da criança e do adolescente à

convivência familiar e comunitária é dever da família, da sociedade e do Estado. A

promoção da convivência familiar e comunitária é de responsabilidade dos serviços de

acolhimento institucional e da rede socioassistencial, que envolve o Ministério Público,

o Poder Judiciário e os Conselhos Tutelares e dos Direitos (Iannelli, Assis & Pinto, 2015).

A aplicação desse serviço exige a promoção do fortalecimento, a emancipação e inclusão

social das famílias na rede de serviços públicos de forma a contribuir com as condições

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necessárias a um ambiente favorável e seguro da criança e do adolescente (CNAS &

Conanda, 2009).

Os serviços socioassistenciais de alta complexidade de atendimento exclusivo

para crianças e adolescentes estão entre duas das nove medidas de proteção previstas no

artigo 101 do ECA, devendo somente ser utilizados em situações em que, de fato, há

violação de direitos de crianças e adolescentes e que, após aplicadas outras medidas de

proteção, não foi sanado o risco, exigindo, assim, a separação destes da sua família. Estas

medidas também são aplicadas quando a família não é conhecida, está desaparecida ou

inexiste. A Tipificação Nacional dos Serviços Assistenciais esclarece que os Serviços de

Acolhimento congregam a missão de preservar vínculos com a família de origem, salvo

determinação judicial em contrário, e desenvolver, para com os acolhidos, condições para

sua independência e autocuidado, de acordo com seu ciclo de vida (Resolução nº 109, de

11 de novembro de 2009). Os serviços de acolhimento podem se dividir em acolhimento

em família acolhedora e acolhimento institucional. Nos dois casos, há um gestor do

serviço, que se equipara ao guardião para todos os efeitos de direito. No caso da família

acolhedora, deve ocorrer seleção, cadastramento, capacitação e acompanhamento de

famílias que acolherão uma criança ou adolescente sob medida de proteção. Estas famílias

são vinculadas a um programa de acolhimento familiar e recebem um termo de guarda

provisória do acolhido.

O acolhimento institucional só deve acontecer quando for a melhor medida para

proteger a criança e o adolescente, sendo necessário concentrar todos os esforços no

retorno seguro a convivência familiar, no menor tempo possível. Esse tempo não pode

ultrapassar dois anos, a fim de que seja promovida a reintegração familiar (nuclear,

extensa, em seus variados arranjos). Somente em situações de extrema excepcionalidade,

estes indivíduos podem ficar tempo superior a dois anos, e depois de justificação

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criteriosa elaborada pelos órgãos que acompanham o caso. Nessa situação, deverá ser

enviado relatório à Justiça da infância e juventude para avaliação quanto a melhor

alternativa para a criança e o adolescente, se persevera na tentativa de retorno ao convívio

familiar ou encaminhamento à família substituta (CNAS & Conanda, 2009).

Os princípios do acolhimento institucional, indicado no art. 92, são os seguintes:

• Preservação dos vínculos familiares e promoção da reintegração familiar;

• Integração em família substituta, quando esgotados os recursos de manutenção na

família natural ou extensa;

• Atendimento personalizado e em pequenos grupos;

• Desenvolvimento de atividades em regime de coeducação;

• Não-desmembramento de grupos de irmãos;

• Evitar, sempre que possível, a transferência para outras entidades de crianças e

adolescentes abrigados;

• Participação na vida da comunidade local;

• Preparação gradativa para o desligamento;

• Participação de pessoas da comunidade no processo educativo.

Além disso, o acolhimento institucional possibilita alguns riscos, como por

exemplo, à medida que se instaura a tutela jurídica sobre a família, se reforça certa

fragilização da autoridade parental, fragmentando ainda mais os já difusos laços

familiares em nossa sociedade (Moreira et al, 2011).

Ao mesmo tempo em que o acolhimento institucional funciona como uma

alternativa para por um fim à situação de risco vivenciada pelas vítimas, se configura em

uma dupla situação de abandono, pois, de um lado a criança ou adolescente é privado da

convivência familiar, e do outro, o abandono da própria família que, por razões diversas,

não conseguiu sustentar seu papel de cuidadora (Siqueira et al, 2009). Em muitas

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situações, as famílias vão sendo estigmatizadas com a incapacidade de criar seus filhos

devido a destituição da condição de tutela e cuidado dos mesmos e acabam sendo

excluídas do processo de decisão em relação ao caso e aos órgãos sociais. Dessa forma,

tais famílias acabam sendo abandonadas em sua desinformação, isolamento social e

pobreza (Rizzini, s.d.).

Muitas vezes, não se considera o histórico de violências sofridas pela dita família

violadora, impedindo uma atenção e escuta diferenciada. Essa realidade está repleta de

preconceitos, estigmas e rotulações. Nesse sentido, abre-se um olho para a violação de

direitos sofrida pela criança e pelo adolescente, e fecha-se o outro para o sofrimento

parental, que somado ao contexto de vulnerabilidade social vivenciado, ainda passou pela

destituição do seu papel de cuidado, que mesmo consentido, não deixa de ser difícil.

No período da infância e da adolescência o desenvolvimento é influenciado,

continuamente, pelo contexto no qual a criança e o adolescente estão inseridos. Elas

interagem e formam seus próprios grupos de relacionamento a partir da relação com

colegas, professores, vizinhos e outras famílias, bem como da utilização das ruas,

quadras, praças, escolas, igrejas, postos de saúde e outros (CNAS & Conanda, 2009). Na

interação com a comunidade, as instituições e os espaços sociais, as crianças e

adolescentes lidam a coletividade e expressam sua individualidade, encontrando recursos

essenciais para seu desenvolvimento. Estes espaços acabam sendo mediadores das

relações que as crianças e os adolescentes estabelecem, contribuindo para a construção

de relações afetivas e de suas identidades individuais e coletiva. Nessa coletividade estão

presentes os papéis sociais, regras, leis, valores, cultura, crenças e tradições, transmitidos

ao longo das gerações (CNAS & Conanda, 2009). Assim, sendo necessário o afastamento

do convívio familiar, as crianças e adolescentes devem, na medida do possível, continuar

no contexto social que lhes é familiar. Adoto este posicionamento quando, de fato, o

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acolhimento institucional foi a última saída, pois considero que os profissionais que

avaliam os casos de acolhimento devem, primeiramente, averiguar as alternativas de

permanência em família de origem ou extensa, enquanto a problemática da violação de

direitos é atendida pelos serviços de suporte, ou, na impossibilidade desta, tentar o

acolhimento familiar.

Dessa maneira, com a institucionalização, é crucial que o direito da criança e

adolescente seja assistido, a fim de manter e construir novos vínculos comunitários. Na

convivência comunitária são considerados: a realização de estratégias com o intuito de

promover a participação de crianças e adolescentes na vida da comunidade local e

estratégias que promovam a participação de pessoas da comunidade no processo

educativo do abrigo.

A realidade mostra uma situação diferente da prevista pelo ECA, o que esse reflete

em um quadro preocupante. Somente 6,6% dos abrigos pesquisados utilizam todos os

serviços disponíveis na comunidade, tais como: ensino regular, profissionalização para

adolescentes, creche, assistência médica e odontológica, atividades culturais, esportivas

e de lazer, e assistência jurídica. Sendo assim, 80,3% dos abrigos ainda oferece pelo

menos um desses serviços diretamente, de forma exclusiva, dentro do serviço de

acolhimento (Silva & Aquino, 2004).

A partir do “Levantamento Nacional”, foi possível identificar instituições

cadastradas na Rede SAC/Abrigos que oferecem outros serviços, além do abrigo, para

crianças e adolescentes. O resultado mostrou que esses serviços envolvem: atividades

extra-escolares (28,78%), cursos profissionalizantes (22,38%), escolas (13,66%), creches

(18,9%), o que possibilita fazer dos abrigos centros de convivência, onde as crianças

passam a ter a oportunidade de praticarem esporte e atividades artísticas e recreativas

(IPEA/DISOC, 2003).

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É importante viabilizar a circulação de pessoas da comunidade dentro das

instituições, para promover a convivência comunitária também dentro do abrigo, pois

facilita o estabelecimento de novos vínculos e relações, além de propiciar o renovo de

práticas e rotinas da instituição (Silva e Aquino, 2004). Essa circulação, segundo as

autoras, pode ocorrer tanto com a existência de trabalho voluntário com serviços

complementares (cabeleireiros, estagiários, costureiros, acompanhantes, orientadores

espirituis/religiosos, recreadores e professores de artes, línguas ou esportes), quanto com

a inserção do abrigo em serviços e equipamentos comunitários. Nesse aspecto, elas

complementam que os dados mostraram que 31,7% dos abrigos pesquisados no Brasil

contam com trabalho voluntário em serviços complementares, e 89,5% apresentam

inserção espacial adequada referente as disponibilidades de serviços e equipamentos

comunitários.

Quando ocorre o abrigamento, enquanto a criança ou adolescente fica sob a tutela

e cuidados da instituição de acolhimento, a família deve ser acompanhada pela equipe do

abrigo, a qual dará suporte para que a mesma supere as dificuldades que levaram a

destituição familiar. Essa superação também será trabalhada com os filhos acolhidos. Para

isso, será elaborado um Plano de atendimento Individual e Familiar que possui o intuito

de guiar a intervenção durante o período de afastamento, a partir de estratégias que visem

o atendimento às necessidades dessa família, considerando as suas peculiaridades e

potencialidades. A família será encaminhada para serviços que orientem e forneçam a

assistência básica de forma a auxiliar na resolução de suas problemáticas.

O Plano de atendimento deverá ser desenvolvido com base no estudo que levou o

acolhimento institucional, em conjunto com o Conselho Tutelar e, quando possível, com

a Justiça da Infância e da Juventude. Será considerado também em relação a criança,

adolescente ou a família: a dinâmica familiar, os relacionamentos afetivos na família

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nuclear e extensa, condições socioeconômicas, vínculos sociais e institucionais

(atividades coletivas, escola, instituições religiosas), demandas específicas (sofrimento

psíquico, abuso ou dependência de álcool e outras drogas, etc.), e a violência e outras

formas de violação de direitos na família. Desse modo, o plano deverá articular serviços

e órgãos que acompanhem a família, como: escola, Unidade Básica de Saúde, Estratégia

de Saúde da Família, CAPS (Centro de Atenção Psicossocial), CREAS, CRAS (Centro

de Referência de Assistência Social), programas de geração de trabalho e renda, dentre

outros (CNAS & Conanda, 2009).

Em todo processo de acolhimento, é essencial que a criança, o adolescente e a

família participem ativamente da procura de caminhos que possibilitem ultrapassar a

violação de direitos e situações de risco, bem como nas decisões voltadas para as ações e

encaminhamentos que atendam suas necessidades (CNAS & Conanda, 2009).

Segundo documento que orienta trabalho voltado ao acolhimento institucional,

organizado pelos órgãos acima citados, no que diz respeito ao acompanhamento da

família, as atividades devem resultar:

A acolhida da família, a compreensão de sua dinâmica de

funcionamento, valores e cultura; a conscientização por

parte da família de sua importância para a criança e o

adolescente e das decisões definitivas que podem vir a ser

tomadas por parte da Justiça, baseadas no fato da criança e

do adolescente serem destinatários de direitos; A

compreensão das estratégias de sobrevivência adotadas

pela família e das dificuldades encontradas para prestar

cuidados à criança e ao adolescente e para ter acesso às

políticas públicas; A reflexão por parte da família acerca de

suas responsabilidades, de sua dinâmica de relacionamento

intra-familiar e de padrões de relacionamentos que violem

direitos; O desenvolvimento de novas estratégias para a

resolução de conflitos; o fortalecimento da auto-estima e

das competências da família, de modo a estimular sua

resiliência, ou seja, o aprendizado com a experiência e a

possibilidade de superação dos desafios; o fortalecimento

da autonomia, tanto do ponto de vista sócio-econômico,

quanto do ponto de vista emocional, para a construção de

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possibilidades que viabilizem a retomada do convívio com

a criança e o adolescente. O fortalecimento das redes

sociais de apoio da família; o fortalecimento das

alternativas para gerar renda e para garantir a sobrevivência

da família (p. 33).

É relevante apontar que há influência das crenças dos profissionais acerca das

famílias nos resultados das ações. Por esse motivo é necessário que os profissionais

respeitem às diferenças das famílias e acreditem que é possível a reconstrução dos

vínculos. Essas atitudes contribuirão para o fortalecimento dos próprios recursos da

família no cuidado de seus filhos e na confiança da mesma em sua capacidade de cuidar

deles, possibilitando a superação das situações que levaram ao acolhimento institucional.

O fortalecimento da família e o reconhecimento de suas potencialidades está relacionado

com o sentir-se cuidada, ajudada e acolhida.

O fortalecimento dos vínculos é fundamental para esses indivíduos por oferecer-

lhes condições de um desenvolvimento saudável, que favoreça a formação de sua

identidade e auxilie na constituição deles como sujeitos e cidadãos.

Por esse motivo, quando não for possível o retorno à família de origem ou a

adoção, os profissionais envolvidos deverão trabalhar no fortalecimento da autonomia

das crianças e adolescentes. Os serviços responsáveis pela garantia da convivência

familiar devem fazer um esforço conjunto para continuar buscando apoio nas redes

sociais que trabalham com a adoção e perseverar na criação de estratégias para a busca

de famílias dispostas a acolher.

É importante, para o retorno familiar, o reconhecimento da complexidade de

determinadas situações de famílias, mas isso não deve impedir tentativas conjuntas para

a efetivação das ações. Quando não se tem êxito em todas as possibilidades de convívio

familiar, inclusive a adoção, o trabalho deve se concentrar na potencialização dessa

criança e adolescente, sendo importante, nesse processo, que estes possam visualizar em

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alguns profissionais da instituição referências de vida, tendo em vista a importância das

mesmas para seu desenvolvimento.

Nas Orientações Técnicas: serviços de acolhimento para Crianças e

Adolescentes, editadas pelo Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente

e Conselho Nacional de Assistência Social (CONANDA & CNAS, 2009), parece ser

simples as atuações dos profissionais na busca do retorno do convívio e reintegração

familiar, mas, na prática, o abrigamento envolve diversas facetas de um sistema

complexo, cheio de particularidades, que cobra dos profissionais muita responsabilidade

e cuidado nas intervenções. Existe, por um lado, uma negligência, desinteresse e

descrédito dos profissionais em relação às famílias dos acolhidos, na manutenção dos

vínculos familiares, como mencionado anteriormente; mas por outro, uma dificuldade de

operacionalizar essa tarefa devido à grande demanda e falta de preparo.

A figura 1 [extraída de IPEA/DISOC. (2003). Levantamento Nacional dos

Abrigos para crianças e adolescentes da Rede SAC. Relatório de Pesquisa número 1. (1)

1-56] mostra a situação do vínculo familiar das crianças e adolescentes depois da

institucionalização.

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Figura 4. Brasil – Situação do vínculo familiar das crianças e adolescentes.

Este quadro demonstra uma situação preocupante quanto ao número de crianças e

adolescentes sem a convivência familiar, principalmente, quando olhamos para 22,70%

dos casos, sem vínculo com suas famílias. O que denota uma controvérsia em relação aos

deveres do programa de acolhimento institucional. Silva (2004) identificou vários fatores

relacionados a ineficácia da garantia desse direito fundamental. Ela afirma que:

o acolhimento de crianças e adolescentes nos abrigos sem

decisão judicial; à escassez de fiscalização das instituições

de abrigo por parte do Judiciário, do Ministério Público e

dos Conselhos Tutelares; à inexistência de profissionais

capacitados para realizar intervenções no ambiente familiar

dos abrigados, promovendo a reinserção deles; à existência

de crianças e adolescentes colocados em abrigos fora de

seus municípios, o que dificulta o contato físico com a

família de origem; o entendimento equivocado por parte

dos profissionais de abrigo de que a instituição é o melhor

lugar para criança; a ausência de políticas públicas de apoio

às famílias; a demora no julgamento dos processos por parte

do Judiciário; e a utilização indiscriminada da medida de

abrigamento pelos conselheiros tutelares, antes de terem

sido analisadas as demais opções viáveis para evitar a

institucionalização de crianças e adolescentes (p. 65)

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O levantamento nacional dos abrigos para crianças e adolescentes da rede SAC

(IPEA/DISOC, 2003; Silva, 2004) identificou que apenas 6,6% das unidades

desenvolveram as atividades como estímulo ao convívio com a família de origem, e não

separação do grupo de irmãos. E 14,1% dos serviços promoveram: “visitas domiciliares;

acompanhamento social; reuniões ou grupos de discussão e apoio; e inserção em

programas de proteção/auxílio à família”. Tal realidade revela o descompromisso de

muitos serviços com a responsabilidade e cuidado com os laços familiares e comunitários

e com o esforço nesse sentido tão cobrado pelo ECA.

Com o passar do tempo, as crianças e adolescentes que já passaram pela ruptura

familiar, sem o contato com suas famílias, passam, ainda mais, a se distanciar

emocionalmente das mesmas e suas famílias delas. “O prolongamento do afastamento da

criança ou adolescente pode provocar enfraquecimento dos vínculos com a família, perda

de referências do contexto e de valores familiares e comunitários, exigindo preparação

ainda mais cuidadosa no caso de reintegração familiar” (Feijó & Assis, 2004, p.).

Pesquisa realizada por Iannelli, et al (2015), entre 2009 e 2010, em diferentes

portes de instituições de acolhimento, em âmbito nacional, com o apoio do Ministério de

Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS), verificou que, no que diz respeito à

situação de vinculo familiar das crianças e adolescentes abrigados, parte significativa

dessas famílias está presente nos serviços de acolhimento institucional, variando de

47,3%, cidades de médio porte, a 58,1% nas metrópoles. Entretanto, a falta de vínculos

na existência de família se constatou entre 19,4% e 22%, porte pequeno II e grande porte,

respectivamente. Nas grandes cidades há percentual mais alto de crianças e adolescentes

com família não localizada/desaparecida, sendo 3,4%. Em casos dos pais que moram em

outro município, diferente dos filhos, verificou-se 12,4% (metrópoles) e 33,6% nas

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cidades menores. Foi obtido número considerável de casos onde os irmãos são acolhidos

em outros serviços (Iannelli, Assis & Pinto, 2015).

Constatou-se, ainda, por elas, que há cerca de 6% de unidades que não

desenvolvem nenhuma atividade com as famílias de origem, ou seja, esses serviços não

estão estimulando e fortalecendo a convivência familiar e estão contrariando as

orientações e normativas. Isso demonstra que há a falta de fiscalização do Ministério

Público, Poder Judiciário e Conselho Tutelar. Municípios menores realizam menos

atividades com as famílias do que as metrópoles. Referente a reintegração familiar; 46,4%

dos casos estavam na fase de preparativos para reintegração ou retorno ao convívio

familiar.

Segundo Iannelli,et al (2015), as constantes ameaças ou violação dos diretos das

mesmas, dificultam o trabalho dos serviços na reintegração familiar. Tudo isso

relacionado ao ciclo de violência e ao contexto de vulnerabilidade social e familiar que

levaram as crianças e os adolescentes ao afastamento do seu contexto.

Dessa forma, as autoras afirmam que é essencial que sejam analisados os motivos

que levaram a continuidade da criança e do adolescente no abrigo, observando também

os fatores, sejam familiares ou pessoais, que levariam a uma segura reintegração familiar.

Existem dificuldades e riscos na reinserção familiar, pois as questões problemáticas da

família pelas quais levaram ao afastamento podem não ter sido ainda superadas, sendo

possível reincidências na violação de direitos. O tempo máximo de dois anos é um fator

que pode levar a uma reintegração no momento indevido. Por essa razão, devem ser

analisadas com cuidado as condições socioeconômicas de vida da família, o anseio dessa

com o retorno do abrigado ao lar e as relações entre os familiares (Iannelli, Assis & Pinto,

2015).

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A tabela 2 [extraída de IPEA/DISOC. (2003). Levantamento Nacional dos

Abrigos para crianças e adolescentes da Rede SAC. Relatório de Pesquisa número 1. (1)

1-56] retrata as dificuldades de reintegração à família de origem pela continuidade, de

alguma maneira, da violação de direitos, seja às crianças e adolescentes, ou as suas

famílias.

Tabela 3.

Principais dificuldades para o retorno da criança ou do adolescente sua família

de origem citadas pelos dirigentes, segundo a ordem de frequência.

O principal empecilho que se apresenta é a pobreza, e essa não é motivo para a

institucionalização, entretanto, temos que levar em conta que a pobreza está ligada a

outros elementos causadores da violação de direitos, visto que a resposta dos dirigentes

não se focou apenas nesse obstáculo (IPEA/DISOC, 2003). O ECA dispõe a

obrigatoriedade da inclusão de famílias que não exercem seu papel de cuidado devido a

pobreza, em programas oficiais de auxílio. Ao unir o fator socioeconômico com a

ausência de políticas públicas de apoio às famílias, o percentual chega a 46,24%. Isso

significa que se as políticas de atenção às famílias estivessem devidamente articuladas

com as políticas de atenção às crianças e adolescentes, provavelmente, impediria o

acolhimento institucional e redução desse quadro (IPEA/DISOC, 2003).

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A rejeição familiar, segundo tópico da tabela demonstra a fragilidade do vínculo

familiar e indica outra carência na introdução da medida protetiva de abrigo. Esse e os

demais fatores, apresentados no “levantamento nacional”, podem, de um modo geral,

indicar que os motivos que influenciaram a institucionalização, tendem a ser o principal

impedimento para o retorno à convivência familiar.

Dados mostram que o abrigamento de crianças e adolescentes possibilita o

comprometimento dos laços com pais e irmãos devido o afastamento da convivência

familiar, e há o risco de comprometer a construção da história de vida deles. Eles

consideram como parte de suas famílias as pessoas da família nuclear e extensa, ou seja,

inclui tios (as), primos (as) e avôs (ós) como participantes de suas trajetórias pessoais,

seja na sua criação ou na sua educação por um período de tempo. Isso demonstra a

relevância da família extensa e dessas atitudes de apoio e solidariedade do próprio sistema

familiar como prática fortalecedora.

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2.2.2. Serviços de Acolhimento em Natal/RN

Atualmente, crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade são assistidas

no Rio Grande do Norte por programas de Proteção Social de Alta Complexidade.

Segundo o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), há 18 serviços de acolhimento

cadastrados no estado, com o total de 297 abrigados. Entretanto, segundo Moreira (2014),

somente 13 unidades estão funcionando, sendo essas, oito governamentais e cinco não-

governamentais. Ela aponta que essas instituições estão lotadas em somente seis cidades

do estado, mais da metade em uma única região metropolitana, o que denuncia a ausência

de municipalização de atendimento. Esse quadro reflete a dificuldade, tanto do suporte ao

fortalecimento dos laços afetivos dos abrigamos com suas famílias, quanto em relação as

distâncias geográficas entre o abrigo e a família, devido à ausência de verbas que

financiem o deslocamento familiar (Moreira, 2014).

Em 2012, foi elaborada uma carta aos candidatos à prefeito e vereadores de

Natal/RN, durante o Encontro Nacional das Redes de Defesa de Direitos Humanos de

Crianças e Adolescentes, com várias denúncias, dentre elas, a situação dos serviços de

acolhimento para crianças e adolescentes do estado instalados em Natal, sob condições

de baixa qualidade do atendimento, insuficiências dos recursos básicos e capacidade de

acolhidos acima do limite, que resultaram no fechamento de três unidades da Fundação

da Criança e do Adolescente, FUNDAC (Moreira, 2014).

Segundo CNAS & Conanda (2009), existem diferentes tipos de serviços de

acolhimento para atender de forma mais adequada às demandas da população infanto-

juvenil, são eles: Abrigos Institucionais; Casas Lares; Famílias Acolhedoras; e

Repúblicas. Esta análise é feita com base na idade, história de vida, motivo do

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abrigamento, situação familiar, aspectos sócios-culturais, condições emocionais, dentre

outros.

Na cidade de Natal/RN, os serviços de acolhimento acolhem crianças de zero a

dezoito anos incompletos, as quais se encontram em situação de risco ou cujos direitos

tenham sido violados. No município atuam dois tipos de modalidade de instituições de

acolhimento, como mostra a Tabela 3 [adaptado de FECAN (2014). Santa Catarina possui

cerca de 130 abrigos institucionais para crianças e adolescentes], com suas respectivas

diferenças. Por esse motivo, pretendo me deter a alguns esclarecimentos sobre o perfil

casa-lar e o perfil unidade de acolhimento.

Tabela 4.

Diferenças entre Casa-lar e Acolhimento Institucional.

Casa-lar Abrigo Institucional

Educador/cuidador (pessoa ou casal)

residente morando na casa com as

crianças/ou adolescentes.

Equipe técnica exclusiva

Equipe técnica que acompanha as crianças

e suas famílias é vinculada à Secretaria de

Assistência Social, não é alocada somente

na Casa-lar. Atende e acompanha demais

serviços de alta complexidade.

Equipe técnica (psicólogo, assistente

social, orientadores sociais, serviços

gerais e cozinheira) obrigatória dentro do

abrigo, e exclusiva para atendimento das

crianças e suas famílias.

Atende no máximo 10 crianças, entre 0 e

18 anos incompletos.

Atende no máximo 20 crianças, entre

0 e 18 anos incompletos.

O modelo de serviço Casa-lar tem o objetivo de oferecer condições para o

desenvolvimento de relações mais aproximadas com o ambiente familiar, proporcionar

hábitos voltados para autonomia e interação social com pessoas das comunidades. A

particularidade dessa modalidade é fornecer atendimento apropriado para grupos de

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irmãos e a crianças e adolescentes com perspectiva de acolhimento de média ou longa

duração. Orienta-se que o(s) cuidador(es) se responsabilize por gerir a rotina doméstica e

as despesas, e convidem as crianças e adolescentes a participarem das decisões da rotina

da casa, de uma maneira mais flexível, menos institucional e próxima a uma rotina

familiar (CNAS & Conanda, 2009).

Tais conselhos, nas Orientações Técnicas: serviços de acolhimento para Crianças

e Adolescentes (CONANDA & CNAS, 2009), preveem que o abrigo institucional deve

ter um perfil e localidade residencial e que acolha os casos de crianças e adolescentes

com perspectiva de curta duração. Entretanto, é importante considerar que, na norma

referida, a preocupação com uma vinculação mais próxima com um ambiente familiar, a

flexibilidade da rotina e participação dos abrigados nas decisões aparece mais na

modalidade casa-lar do que no abrigo institucional. Questiono-me se o fato da maior

provisoriedade dos abrigados é motivo para ter um ambiente mais institucional e menos

familiar e participativo. O abrigo institucional não tem sido a “casa” de crianças e

adolescentes acolhidas temporariamente? Significa que o acolhimento se dá em uma

residência, mas não pode ter perfil de casa?

No município de Natal/RN há quatro serviços de acolhimento que atendem

crianças e adolescentes afastadas de suas famílias. O Aldeias Infantis SOS agrega cinco

casas-lares no mesmo município e bairro, no perfil abordado anteriormente, com uma

mesma coordenação e equipe técnica, sendo considerada uma entidade de acolhimento

(Moreira, 2014). O financiamento dessa entidade envolve o auxílio de pessoas físicas,

empresas que financiam projetos, além de convênio com o município.

As Unidade de Acolhimento I, III e III eram chamadas de Casas de Passagens. A

unidade I acolhe crianças de zero a seis anos; a unidade II, de seis a doze anos e a unidade

III, de doze a dezoito anos incompletos (SEMTAS, 2015). É válido ressaltar que, quando

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o acolhimento envolve grupos de irmãos, a prioridade na escolha do abrigo é feita de

acordo com a criança de menor idade, por esse motivo, essas instituições abrigam,

também, adolescentes. As unidades são mantidas e vinculadas à Secretaria Municipal de

Trabalho e Assistência Social de Natal (SEMTAS), e suas necessidades também são

supridas por doações da comunidade.

As instituições de acolhimento, embora bem estruturadas, teoricamente, ainda

representam um grande desafio para atender o que o ECA prevê, tendo em vista as

diversas demandas que este campo produz. Um campo que enfrenta vulnerabilidades e

oferece proteção, mas que também reproduz violações pelas constantes discriminações e

determinismos de nossa sociedade, ainda não superados pelas intensas mudanças

propostas pela Constituição de 1988 e pelo ECA. Contudo, precisamos reconhecer que

mudanças, mesmo que mínimas e lentas, têm ocorrido ao longo do tempo, graças aos

profissionais e pensadores que resistem ao modelo conservador de abrigamento e insistem

na visão e atuação do verdadeiro significado de “acolher”.

Todo esse panorama sobre o acolhimento institucional no Brasil, me deu subsídios

teóricos para compreender, no campo, a realidade das crianças e adolescentes

institucionalizadas.

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3. Terceira gravura: princípios norteadores e a pesquisa em ação

Figura 5. Uma História que vale a pena contar, por Pooh e Guru.

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3.1. Sociologia Clínica

O trabalho em questão está fundamentado nas abordagens compreensivas,

conforme classificação apresentada por Minayo (2013). Tais abordagens fazem parte de

uma das correntes de pensamento sociológicas, a Sociologia Compreensiva, também

conhecida como compreensivismo, a qual defende uma visão de mundo que tem

influenciado fortemente a construção do conhecimento da realidade. Ela se desenvolveu

a partir de princípios filosóficos da Alemanha, e tem Dilthey como um dos seus

precursores. Tal sociologia é reconhecida como antipositivista e considera a compreensão

e inteligibilidade como propriedades específicas dos fenômenos sociais. Nesse sentido,

apresenta os conceitos de significado e intencionalidade como separados dos fenômenos

da natureza (Minayo, 2013).

Dilthey afirmou que os acontecimentos humanos não podem ser quantificados,

nem objetivados, pois apresentam sentidos e identidades singulares que exigem uma

compreensão peculiar e concreta (Minayo, 2013).

Esses discursos são frutos de um movimento estruturalista que começou no início

do século XX, na Europa, a favor do resgate da subjetividade do sujeito e como forma de

responder à aplicação experimental nas ciências humanas (Wolff, 2012). Nesse sentido,

a predominância dos métodos experimentais começou a gerar uma insatisfação por não

conseguir atender os aspectos subjetivos relacionados ao contexto de vida dos atores

sociais. Assim, foram pensadas novas possibilidades de métodos e de enfoque qualitativo,

o que se repercute nos dias atuais com uma grande diversidade metodológica, dentre elas

a história de vida (Bueno, 2002).

Nessa linha de pensamento, as Abordagens Compreensivas vem destacar como

principais características em comuns entre si: a) o foco na experiência vivencial e

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entendimento de que a realidade humana é complexa; b) o acesso às pessoas se dá no

próprio contexto pelo qual estão inseridas; c) crença no encontro intersubjetivo, face a

face e com empatia, que ocorre na relação do pesquisador com as pessoas investigadas;

d) os resultados buscam apresentar a racionalidade dos contextos e as lógicas internas dos

sujeitos e grupos da pesquisa; d) seus materiais teóricos expõem a dinamicidade da

realidade e expressam a perspectiva de um projeto social em constante construção e com

visão para o futuro; d) não há universalização de conclusões, embora a leitura de

contextos singulares possibilitem constatações mais amplas através da análise das micro

realidades e comparações (Minayo, 2013).

A Sociologia, de forma geral, buscou encontrar causas e determinantes de um

fenômeno ou problema social em cima das dimensões do indivíduo, a partir do estudo

dos processos ideológicos, sociais, institucionais, políticos, econômicos e culturais. Nesse

contexto, o campo sociológico, independente da perspectiva teórica, mostra a divisão

entre indivíduo e sociedade. Dentro dessa discussão, a Sociologia Clínica, assim como

outras abordagens, se inseriu com o intuito de transitar entre esses dois pólos (Takeuti,

2009).

A autora expõe, a partir da descoberta do trabalho de Enriquez (1993), que os

fundamentos epistemológicos da Sociologia Clínica foram apontados, na verdade, por

autores clássicos com pensamentos não patenteados no campo sociológico. Estes autores

são: Weber, Simmel, Durkeim, Bataille, Callois, Leiris. Sendo assim, tal abordagem seria

uma possibilidade de retorno a esses autores, visando uma prática e teorização continuada

que fora estruturada por autores fundadores da Sociologia Clínica, como Enriquez e

Gaulejac. Nas academias brasileiras, este movimento interdisciplinar soma-se a outros

para a consolidação de uma tendência em unir pesquisa e ação de modo engajado e crítico.

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A singularidade da Sociologia Clínica se revela em princípios que a norteiam, tais

como: a) Relevância do psiquismo do homem seja a nível individual, quando coletivo,

respaldado/discutido pela teoria fenomenológica existencial, teoria psicanalista, e do

marxismo. Pois ambas buscam entender a capacidade dos sujeitos de burlar suas

determinações psíquicas e sociais e criar novas formas de existir socialmente. b)

Compreensão dos sentidos voltados para as relações dos sujeitos entre si e desses com a

sociedade na qual estão imersos. Pertinência da construção de sentidos feita por sujeitos

de forma compartilhada e implicada em uma determinada circunstância com

envolvimento num processo de reflexão. c) Sujeitos como participantes ativos no foco da

intervenção envolvendo, assim, a pesquisa-ação, já que a análise do objeto ocorre a partir

do encontro (no seu sentido dinâmico), momento em que ocorrem questionamentos entre

saberes dos envolvidos. d) O pesquisador tem a função de facilitar a fluidez expressiva

dos grupos de forma a impulsionar a capacidade de criatividade no grupo ou indivíduo,

em suas próprias dificuldades e desafios. e) Postura do pesquisador que reflete sobre suas

próprias concepções pessoais e posicionamentos sociais no processo de construção da

pesquisa (Takeuti, 2009).

Nesse sentido, o foco dessa abordagem clínica na Sociologia não é no

conhecimento do pesquisador, muito menos na sua capacidade de compreensão do objeto

de pesquisa, mas em uma ”epistemologia da recepção”, isto é, no modo como os autores,

os sujeitos da pesquisa, elaboram suas narrativas, contextualizando-as num quadro de

referência social-histórico e cultural conforme Castoriadis, Bouiloud, entre outros

(Takeuti 2009). Há uma aposta de que o sujeito é um ser com potencial para enfrentar

suas determinações sociais e psíquicas e ressignificar suas histórias de vida, criando novas

possibilidades de existência.

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Sentimentos como medo e vergonha, e as relações afetivas de modo geral, devem

ser contextualizadas em uma multideterminação de relações sociais, nas quais estão

presentes e imbricadas dimensões históricas, culturais e ideológicas (Bezerra:2009). Tal

preocupação é expressa entre outros, por Gaulejac (2001), ao afirmar, categoricamente,

que uma interpretação puramente psicológica só vem a ocultar a gênese social dos

problemas psíquicos. Insiste na postura do pesquisador enquanto analista das

contradições sociais e do peso que as regularidades objetivas do social intervêm sobre os

“destinos” sociais. É ainda esse autor (Gaulejac,1996) que elenca, acerca do sofrimento

social presente nas vivências de exploração, pobreza e repressão: a negação do sujeito;

sentimento de fracasso; perda do sentimento de identidade; impotência e perda da

capacidade de ação; e baixa auto-estima (Bezerra, 2009).

Gaulejac (1996; 2001), no tocante à sua investigação sobre o sofrimento social,

busca compreender em que medida os aspectos objetivos da realidade social estariam

implicados na produção do sofrimento. A pobreza seria, conforme o autor, o dado social

objetivo que permitiria a produção social do sofrimento. É a partir da realidade objetiva

que atravessa a subjetividade dos sujeitos, que poderemos retirar os elementos

constitutivos do sofrimento. Daí a pertinência de se debruçar nas vivências individuais e

experiências cotidianas, pois elas revelam as disparidades, contradições e conflitos

inerentes à produção da dor e do sentimento de sofrimento social.

A orientação central de uma prática, nessa perspectiva, se inscreve no contexto

das ciências sociais clínicas, definido por Levy (2001, p. 14): “compreendendo mais que

um conjunto de métodos e de técnicas, [...] duas faces complementares: um ato ou

análise organizacional como resposta a um pedido de ajuda, [...] e uma prática de

pesquisa diretamente implicada no processo de mudança”.

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Com essa orientação clínica, o compromisso central da intervenção sócioclínica é

com a capacidade de reflexão crítica e de ação caracterizada por uma autonomia, que se

diferencia, ao mesmo tempo, do individualismo metodológico do liberalismo

e das determinações estruturalistas de todas as ordens (Lévy, 2001).

O dispositivo de pesquisa e intervenção construído a partir de uma inspiração da

Sociologia Clínica deveria incidir e oportunizar a reconstrução das narrativas de vida,

através de um reencontro com os acontecimentos, sejam eles, verdades factuais ou

verdades, unicamente, para os sujeitos que os narra (Bezerra, 2009). Reconstrução aqui,

como diz o autor, é entendida como uma oportunidade de ressignificação da imagem de

si, de por em perspectiva um vivido de impossibilidades, faltas e carências e de

posicionar-se mediante o vislumbre de um vir a ser que ainda permanece como

potencialidade, mas que se contrapõe a um horizonte de desesperança.

Do ponto de vista político, o que está em pauta aqui, é, sobretudo, a formação de

sujeitos sociais autônomos que possam desenvolver e se apropriar de um capital social

que os coloque em condições de definir e defender seus interesses nas relações com o

Estado, com o mercado e com outros agentes sociais com os quais se relacionam (Matos,

2004).

Encerro esta sessão com uma citação de Takeuti (2009), discorrendo sobre as

aproximações entra abordagem biográfica e sociologia clínica na formação/trabalho do

pesquisador social. “reinventando-nos a cada momento da vida, pelo olhar que

simultaneamente se volta à vida passada e em direção ao devir que por certo é incerto”

(p. 326),

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3.2 Pesquisa (auto) biográfica

Pretendeu-se nesta investigação dar voz2 aos participantes, considerá-los como

ativos em todo processo, reconhecendo-os como possuidores de um saber que lhes é

próprio, singular. Dessa forma, acredita-se que é possível utilizar dos pressupostos da

Pesquisa (Auto)biográfica para contribuir com a compreensão dos discursos dos

participantes quando falam sobre suas histórias de vida. Tal visão possui a postura e

envolvimento do pesquisador para com o participante no processo de pesquisa, e busca

entender as narrativas expressas considerando a dimensão social, histórica e cultural do

indivíduo.

Dessa maneira, esse estudo é de cunho compreensivo, de natureza qualitativa, a

qual adota uma postura diferente do Positivismo, pois afirma que “não há neutralidade do

conhecimento, pois toda pesquisa intervém sobre a realidade mais do que apenas a

representa ou constata em um discurso cioso das evidências” (Barros & Passos, 2009).

A Pesquisa (auto)biográfica se consolidou enquanto abordagem e forma de

compreensão a partir do percurso de trabalho com a história de vida, concepção maior a

qual abarca uma série de outras modalidades de pesquisa empírica, como a história oral,

narrativas de vida e etnobiografia (Souza, 2006). Esse autor relata que a Autobiografia se

desenvolveu nos EUA no início do século XX, com os trabalhos da Escola de Chicago e

que, da década de 1960 até os dias atuais tem-se experiências em expansão dessa

perspectiva na França, Inglaterra, Suíça, Canadá, Portugal e América Latina. Assim,

segundo ele, a Associação Internacional das Histórias de Vida em Formação (ASIHVIF)

2 Embora este discurso de dar voz seja um dos princípios da Sociologia Clínica, muito vem se

discutindo sobre essa questão, principalmente em uma perspectiva descolonizadora, na qual pesquisador e

sujeitos da pesquisa comparem cada qual com a sua voz para empreender um diálogo possível de mútua

compreensão (Bezerra, no prelo).

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foi ganhando espaço na Europa, onde permitiu a consolidação das pesquisas com histórias

de vida, fundamentais para a emergência de diferentes experiências, para a constituição

dos grupos de pesquisa e autonomização do movimento biográfico.

No Brasil, a história de vida desenvolveu-se principalmente sob a influência da

história oral. Em 1960, surgiu o Programa de História Oral do Centro de Pesquisa e

Documentação Histórica e Contemporânea do Brasil, da Fundação Getúlio Vargas

(CPDOC/FGV). Foi um momento de crescimento e expansão, e em 1994 foi criada a

Associação Brasileira de História Oral (ABHO), que realiza seminários e divulga

pesquisas. Os trabalhos com história de vida são ainda usados nos campos da sociologia

(pesquisas realizadas pelo centro de Estudos rurais e Urbanos CERU, em 1976), da

história (com tentativas de recuperar as narrativas e validar o uso desse tipo de fonte), e,

sobretudo da educação (Souza, 2006).

De acordo com Sousa e Catani (2007), o campo da educação foi solo fértil para a

ampliação de pesquisas para história de vida e (auto)biografias, tanto no exercício da

formação, quanto na investigação, ou ainda, investigação-formação. Nesse contexto, a

(auto)biografia tornou-se conhecida a partir das publicações de pesquisas canadenses e

europeias no ano de 1980, que destacavam as histórias de vida, relatos de experiências,

trajetórias de formação profissional, bem como o uso de narrativas autobiográficas, que

visavam melhor compreender a pessoa do professor.

No Brasil, as pesquisas com história de vida continuam, predominante, na área

educacional, mas também tem sido desenvolvida na Sociologia, Antropologia e

Psicologia.

Pineau (2006, p.) considera a biografia como a “escritura da vida do outrem”,

enquanto a autobiografia como uma “escrita de sua própria vida”, valorizando o discurso

do próprio sujeito sobre suas experiências pessoais/sociais. Segundo Lejeune (2014),

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existem gêneros diferentes da autobiografia que também se remetem as “escritas do eu”,

como: o romance pessoal, o poema autobiográfico, o diário, as memórias, a biografia, o

autorretrato. Entretanto, o gênero escolhido por essa pesquisa foi a autobiografia. Esta

escolha justifica-se pela pretensão deste trabalho em compreender as trajetórias de vida

dos participantes a partir da experiência autobiográfica dos mesmos.

Dessa forma, quando fala-se de autobiografia, fala-se de história de vida, afinal a

autobiografia se trata da própria história do indivíduo escrita por ele mesmo. E quando

pensamos em história de vida, pensamos em narrativa, pois, segundo Bruner (2014), a

vida, toda a experiência humana é narrativa e essa tem um papel importante na elaboração

de uma interpretação da realidade. Segundo ele, pensamos narrativamente, em formato

de início, meio e fim, além de organizarmos nosso pensamento por elementos narrativos

como espaço, tempo, personagens, enredo, dentre outros. Esse modo de pensar

narrativamente, conforme o autor, tem relação com o processo de biografização que se

trata da conversão da pessoa que narra em autor, permitindo uma percepção de si, bem

como, autonomia e resistência.

Desse modo, do ponto de vista da ética da pesquisa (auto)biográfica, o uso das

narrativas se justificam porque, embora, elas não possam por si só mudar a vida de quem

narra, elas podem mudar, substancialmente, as representações de si e do outro

no processo de biografização.

Nesse campo de pesquisa, encontra-se autores como Souza (2008), que diferencia

o relato de vida da história de vida. O relato diz respeito a uma narração mais precisa do

que o indivíduo conta sobre sua vida, já a história de vida vai mais além, proporciona um

estudo de caso referente à vida do sujeito, ou grupo de pessoas, seja através dos discursos

ou de outras fontes que possibilitem o aprofundamento da pesquisa. No trabalho, em

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questão, outra fonte foi utilizada como facilitadora do discurso do participante e da minha

compreensão enquanto pesquisadora. Recurso esse, o qual será explicitado em Caminhos

Metodológicos.

Para Spindola e Santos (2003, p.03), a história de vida é um método que “é

necessariamente histórico (temporalidade contida no relato individual remete ao tempo

histórico), dinâmico (apreende as estruturas de relações sociais e os processos de

mudança), dialético (teoria e prática são constantemente colocados em confronto durante

a investigação) ”. Nessa pesquisa, buscou-se discutir esses três elementos visando

compreender os significados dos participantes em relação as suas histórias de vida. Para

o entendimento da historicidade dos mesmos, foi dado foco nos principais acontecimentos

e experiências compartilhadas pelos adolescentes abrigados no que diziam respeito às

vivências antes e durante o abrigamento. Além disso, considerei que essa historicidade,

na relação com o mundo, é descoberta quando contamos nossa história para alguém ou

para nós mesmos (Passeggi, 2016).

Para compreensão da dinamicidade das suas trajetórias, foi considerado o que eles

disseram sobre o modo como foi sendo construído o vínculo e o senso de pertencimento

em relação as diversas instituições – família, comunidade, abrigo, escola – bem como o

impacto das continuidades e rupturas que se estabeleceram em cada uma delas.

Experiências essas, singulares e constituintes da subjetividade. Será discutido, na Costura

do trabalho, as narrativas dos adolescentes em diálogo com as normativas da medida

protetiva de acolhimento institucional, ou seja, a discussão do vivido em relação a

normatização.

Dessa forma, como exposto no início da pesquisa, foi necessário estudo

aprofundado acerca da Constituição de 1988, da implantação do ECA, da medida de

acolhimento, dentre outros elementos históricos e sociais para ser possível enxergar o

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panorama em que os participantes da pesquisa estão inseridos, como esses são vistos

perante a lei e perante a sociedade. Ferrarotti (1991) aponta a importância da necessidade

do contexto histórico e das relações sociais para as biografias. Ele compreende o homem

como um indivíduo universal singular: “(...) tendo sido totalizado, e assim universalizado

pela sua época, ele retotaliza-a, reproduzindo-se a si mesmo como singularidade” (p.

173).

O autor acima também destaca, como importante princípio teórico, a relação do

papel que a presença do observador desempenha no processo de investigação, sendo essa

uma influência ativa, que interfere no comportamento do participante. Portanto, para ele,

o conhecimento construído é “(...) mutuamente partilhado, enraizado na

intersubjetividade da interação” (p. 172). Afinal, a interação começa quando o

pesquisador, uma pessoa externa e desconhecida para o participante, surge se

interessando em conhecer algo de sua história de vida. E para que seja possível um

diálogo entre ambos, uma mínima relação de confiança tem que se estabelecer ali. E

quando acontece, ocorre um encontro de reflexões que geram conhecimento.

Tal perspectiva (a história de vida), defende a ideia de que a realidade social é

complexa, possui diversas facetas e é constituída por pessoas que estão em um processo

de autoconhecimento contínuo (Abrahão, 2008). Essas vivenciam a experiência de forma

inter-relacionada e holística. Assim, para a autora, os fatos narrados possibilitam a

construção de sentido de uma vida, resultante da organização do que ocorreu nas

experiências e aprendizagens, com a dimensão espacial, temporal além das variadas

relações sociais.

Delory-Momberger (2012) destaca como objeto da Pesquisa biográfica, a

exploração dos processos de formação e transformação dos indivíduos – inseridos num

espaço social – que inclui a dimensão da contribuição desses para fazer existir, reproduzir

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e produzir tal espaço, a partir da maneira como dão forma e significam as situações e

acontecimentos de sua existência. Ou seja, para a autora, a Pesquisa biográfica é a

investigação dos processos de gênese e de devir dos participantes, privilegiando sua

inserção no meio social e material em construção. Na autobiografia é possível essa

análise, tomando como base a narrativa do participante.

Nesse sentido, esse trabalho ouviu cada adolescente buscando explorar, conhecer

os seus processos de formação e transformação para compreender como significavam

suas trajetórias pessoais, e como lidavam com todas elas. Apesar do meu objetivo não

visar, diretamente, a promoção de mudanças na vida dos adolescentes, é importante

destacar que a decisão de usar as narrativas como dispositivo, possibilita, segundo Souza

(2014), um processo de autotransformação. Assim como esse dispositivo viabiliza a

ressiginificação que é promovida pela reflexão de si, que pode mudar, substancialmente,

as representações de si e do outro. Dessa maneira, na autobiografia, a narrativa implica

um processo autoconstrutivo (Bruner, 2014).

É válido destacar que as ressignificações podem acontecer a partir das memórias

autobiográficas, por isso é essencial o pesquisador estar

[...] consciente de que o ato narrativo se estriba na memória

do narrador e que a significação que o narrador deu ao fato

no momento de seu acontecimento é ressignificado no

momento da enunciação desse fato, em virtude de que a

memória é reconstrutiva, além de ser seletiva, mercê não só

do tempo transcorrido e das diferentes ressignificações que

o sujeito da narração imprime aos fatos ao longo do tempo

[...]. (Abrahão, 2006, p.151).

Dessa maneira, as ressignificações das aprendizagens adquiridas ao longo da vida,

podem, a todo instante, ser acessadas como memórias, pelo indivíduo, e constituírem-se

como uma experiência pela qual um novo conhecimento pode ser construído.

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À medida que os participantes vão narrando sua história, os pesquisadores vão se

afetando, naturalmente, e refletindo sobre sua própria formação e autoconhecimento. Essa

interação sujeito-pesquisador, proporciona “(...)uma metaleitura, não só de nossas

vivências e experiências de formação, mas também vivência no processo de pesquisa (...)”

(Abrahão, 2008, p. 97). Dessa forma, a autora afirma que a pesquisa acaba se sobressaindo

aos objetivos da investigação. Nesse contexto, durante o ato narrativo entre o participante

e o investigador ocorre um compartilhamento de memória que provoca um processo de

produção de significados.

Assim, permite-se ao pesquisador/biógrafo estudar as formas que o

participante/biografado construiu acerca da sua experiência. Constitui-se então, numa

perspectiva investigativa, uma vez que produz conhecimentos experienciais dos

participantes e ao mesmo tempo, formativa, já que o processo de tomada de consciência

de si opera-se quando o sujeito pode viver “(...) simultaneamente, os papéis de ator e

investigador da sua própria história” (Souza, 2006, p. 26).

Brockmeier e Harré (2003) enxergaram “nessa virada discursiva e narrativa, na

Psicologia e nas outras ciências humanas” um novo paradigma iminente. É nessa

perspectiva que esse trabalho foi elaborado, enquanto uma pesquisa em Psicologia que

pretendeu caminhar na contramão do paradigma científico predominante, inclusive nas

ciências humanas, voltado para a explicação dos fenômenos, ao invés de compreensão

dos mesmos. A metodologia explicitada acreditou na possibilidade dos adolescentes

ressignificarem a sua trajetória, a sua vida, seu espaço e seu futuro, quando narraram e

refletiram sobre sua própria história. Isto é, a abordagem metodológica adotada pauta-se

na aposta que a interação entre pesquisador e os adolescentes abrigados produz efeitos

que necessariamente serão de ordem "macro”. Indo em outra direção, a aposta é nas

mudanças de ordem “micro”, ou seja, de novas sensibilidades, de um novo olhar, de novas

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possibilidades cognitivas que permitam compreender as determinações sociais que

incidem sobre eles e o que é possível ser empreendido nesse momento de vida a partir da

vida concreta nesses espaços em que se encontram.

3.3 Caminhos Metodológicos

Neste tópico abordarei a perspectiva metodológica deste trabalho, bem como, os

participantes da pesquisa, os procedimentos de acesso às narrativas dos adolescentes, os

aspectos éticos de proteção ao participante e sobre a definição dos personagens.

3.3.1 Local e Participantes da Pesquisa

A entidade na qual realizei o trabalho de campo foi a Unidade de Acolhimento III,

localizada em Natal/RN. Ela configura-se na modalidade de abrigo institucional e é

voltada para adolescentes na faixa etária de 12 a 18 anos incompletos. O termo mais

conhecido e utilizado para se referir a esse serviço, no município, é Casa de Passagem,

embora, segundo a Tipificação Nacional de Serviços Socioassistenciais (Resolução 109,

11 de novembro de 2009), os serviços de acolhimento para crianças e adolescentes podem

ser na modalidade Casa-lar ou Abrigo Institucional e não de Casa de Passagem, já que é

um perfil destinado para adultos e famílias. A nomenclatura mais adequada é Unidade de

Acolhimento. Entre funcionários e adolescentes, o termo “Casa de Passagem” é mais

utilizado, principalmente de forma abreviada “Casa” I, II ou III. Também é frequente o

uso do termo “abrigo” por autores, profissionais e acolhidos. Por esses motivos, utilizarei

os diferentes termos, inclusive abreviados, para me referir ao local da pesquisa.

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No período que realizei a pesquisa, havia uma média de 24 adolescentes

abrigados, incluindo os evadidos. Este número variou devido a entrada e desligamento de

adolescentes no abrigo, o que é comum acontecer devido o perfil dinâmico da instituição.

Havia 33 profissionais, dentre eles: 1 coordenadora, 1 psicólogo, 1 pedagogo, 2

assistentes sociais, integrantes da equipe técnica; 16 educadores sociais; 4 cozinheiras, 2

ASGs, 3 vigias e 3 seguranças armados. É válido considerar, o pequeno número de

profissionais da equipe técnica para lidar com a grande e complexa demanda dos casos.

A unidade localiza-se em um bairro da zona norte de Natal/RN e está neste espaço

há cerca de 5 anos. Por vezes, houve momentos de tensão com a comunidade local devido

as desavenças e práticas de roubos que alguns adolescentes cometeram no entorno da

Casa III.

A pesquisa foi realizada com dois adolescentes (na faixa etária de 12 a 18 anos

incompletos) abrigados na Unidade de acolhimento III. A escolha do número amostral se

deu pelo fato de ser uma pesquisa de caráter qualitativo, que demanda tempo na aplicação

do instrumento e análise das narrativas acessadas. Nas amostras não-probabilísticas

(intencionais), a definição é feita a partir da experiência do pesquisador no campo de

pesquisa, numa empiria pautada em raciocínios instruídos por conhecimentos teóricos da

relação entre o participante e o corpus a ser estudado.

É válido destacar que os dois participantes escolhidos representaram outros atores

da Casa III, nos discursos e percepções à respeito da realidade que é comum para eles.

Muitas vozes foram ouvidas durante a minha inserção no campo, de pessoas que se

aproximavam para falar. Entretanto, apenas duas delas puderam ser escolhidas para este

trabalho, conforme os critérios que serão apresentados mais adiante.

No Brasil, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) estabelece que

adolescente é o indivíduo entre 12 e 18 anos incompletos. Já o termo jovem costuma ser

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utilizado para designar a pessoa entre 15 e 29 anos, seguindo a tendência internacional.

Assim, à título de esclarecimento, podem ser considerados jovens os adolescentes-jovens

(entre 15 e 17 anos), os jovens-jovens (com idade entre os 18 e 24 anos) e os jovens

adultos (faixa-etária dos 25 aos 29 anos).

O único critério para participação foi o tempo previsto de permanência na

instituição, de no mínimo quatro meses, fornecido pela coordenação. Tal quesito teve o

intuito de prevenir que a pesquisa fosse interrompida por desligamento do adolescente do

serviço, já que se trata de uma instituição com medida provisória. Existem casos mais

rápidos nos abrigos em que crianças e adolescentes ficam acolhidos por curto período de

tempo, somente no aguardo de decisão judicial, que pode sair a qualquer momento. Há

outros casos mais complexos que demandam um tempo maior para acompanhamento

familiar, sendo preciso, no mínimo, alguns meses para avaliação da possibilidade de

reintegração ou colocação em família substituta.

Antes do recrutamento dos participantes da pesquisa, foi agendada uma reunião

com a coordenadora da unidade para melhores esclarecimentos sobre os objetivos da

pesquisa, número de participantes, atividades a serem desempenhadas, tempo necessário

e critério de participação. Solicitei a coordenadora a listagem de nomes dos adolescentes

que atendiam ao critério explicitado acima.

Posteriormente, agendei um encontro com tais adolescentes da unidade III, com a

finalidade de me apresentar e explicar sobre a proposta do estudo em questão,

esclarecendo possíveis dúvidas. Ao final, questionei quem desejaria participar. Para os

interessados, expliquei que essa pesquisa buscava cumprir os padrões éticos por ser

realizada com pessoas, necessitando, assim, da autorização deles, em documento (Termo

de Assentimento), para uso das informações adquiridas nas atividades realizadas.

Expliquei que tal pesquisa visava contribuir com o conhecimento científico na área do

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acolhimento institucional, e que possivelmente, seria replicado em outros estudos. Deixei

claro que, por serem menores de idade, o responsável por eles, nesse caso a coordenadora

da instituição, assinará o TCLE (Termo de Consentimento Livre e Esclarecido) com o

consentimento deles.

Parti do pressuposto de que havendo mais de dois adolescentes interessados em

participar da pesquisa, escolheria os casos de maior possibilidade de permanência na casa,

devido a possibilidade do desligamento, conforme justifiquei anteriormente. Surgiram

vários interessados, então, informei-lhes que havia voluntários de um Projeto da UFRN,

no qual eu participava, que poderiam realizar oficinas de Scrapbook com os mesmos,

voluntários os quais acompanhei em visita à Casa III para apresentação.

O projeto referido tem caráter de extensão e é vinculado ao Departamento de

Psicologia da UFRN. Ele se intitula: “A construção mediada de memórias e sonhos:

oficina de contos e elaboração de scrapbooks com crianças e adolescentes em

acolhimento institucional”. Atualmente, este projeto realiza atendimentos

psicoterapêuticos no SEPA (Serviço de Psicologia Aplicada), bem como montagem de

scrapbooks, geralmente, nos próprios serviços de acolhimentos, onde as crianças e

adolescentes estão inseridos. Tal iniciativa começou com um caso de atendimento

psicológico de uma criança abrigada, no qual uma das professoras do projeto

supervisionou. Depois disso, ela decidiu atender mais crianças e adolescentes das

instituições de acolhimento, se transformando, em 2009, em projeto de extensão.

Posteriormente, as professoras responsáveis do projeto tiveram conhecimento do Instituto

Fazendo História que trabalha com crianças e adolescentes em abrigamento, utilizando a

ferramenta do Scrapbook. Buscaram capacitação junto ao Instituto, e depois de

adaptarem este recurso, incluíram-no como atividade do projeto.

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3.3.2. Scrapbook: Instrumento e procedimentos de Acesso às Narrativas

A inserção no campo aconteceu durante 6 meses, com mais de 50 horas de

dedicação. Foi utilizado o Scrapbook (álbum personalizado), como instrumento de acesso

às narrativas, com o intuito de ser um dispositivo que facilitasse as falas e expressões dos

adolescentes acerca de suas histórias de vida. Todas as atividades do álbum foram

acompanhadas por mim, como pesquisadora responsável, em todo processo de aplicação.

Durante os encontros para construção desses materiais, realizei algumas perguntas

abertas (disponíveis nos apêndices) aos adolescentes para melhor esclarecimento e

compreensão do que estava sendo produzido em cada encontro.

O Scrapbook trata-se de instrumento conhecido como uma composição de

memórias e recordações mediante a personalização de álbuns de fotografias (Mesquita,

2012). Esse não se limita as fotografias, possibilita também a inclusão de outras

produções como: colagens, desenhos e pinturas. Nessa pesquisa, o scrapbook foi proposto

como um álbum que retratasse as histórias de vida dos adolescentes, bem como, seus

interesses, gostos, saudades e sentimentos. As páginas do álbum envolveram aspectos das

suas experiências antes e durante o abrigo, além de como pensavam seu futuro ao saírem

da instituição. Foi fornecido um espaço de escuta individual aos participantes, de forma

dinâmica e interativa, pois à medida que foram construindo cada página do scrapbook,

tiveram a liberdade de falar o que desejavam. Quando surgiram dúvidas para mim ou

houve a necessidade de complemento de alguma informação compartilhada pelo

adolescente, pedi para que explicassem mais sobre a atividade e, dependendo da dúvida,

fiz algumas perguntas abertas para melhor compreensão sobre o que participante estava

querendo expressar naquela produção.

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Os encontros para a construção dos Scrapbooks foram individuais, uma vez por

semana. Foram feitas até duas páginas do álbum por encontro, respeitando o tempo de

cada adolescente para concluir a atividade. Propus 22 atividades que se tornariam as

páginas do álbum, 5 delas foram elaboradas pela pesquisadora e 18 foram retiradas do

site do Instituto Fazendo História3. Entretanto, os participantes realizaram entre 16 e 18

atividades, pois, algumas delas, demonstraram desinteresse. Por outro lado, também

sugeriram algumas para realizar.

As atividades escolhidas do instituto foram: Como eu sou; Carteira de Identidade;

Minha rotina; Músicas, livros e filmes prediletos; Quando cheguei no abrigo; Sonhos;

Minha família; Meus segredos; As pessoas mais importante da minha vida; Sentimentos;

Educadores; Irmãos; Adolescentes do abrigo – adaptado (site) da atividade Quem são as

crianças do abrigo – ; As 5 coisas que mais gosto; As 5 coisas que menos gosto; Meu

time de futebol; Uma história que vale a pena contar; Minhas saudades. Recolhi, do site,

os modelos dessas atividades e as apresentei aos participantes, esclarecendo que eles

poderiam optar entre fazer a atividade no modelo impresso ou fazê-la em folha em branco,

à sua maneira. Algumas dessas atividades do site já possuem perguntas, então foram

respondidas quando o adolescente decidia realizar a atividade em outra folha. Os modelos

do site que foram propostos nessa investigação se encontram nos apêndices

No que se refere as atividades elaboradas por mim, propus: Minha vida antes do

abrigo, Minha vida no abrigo, Carta para mim no futuro, Meu auto-retrato antes, durante

e depois do abrigo”, e “A família que gostaria de ter”. Tais atividades foram sugeridas

em formato de desenho, com exceção da carta. Não foram criados modelos de páginas

3 Tal instituição é uma ONG de acolhimento que desde 2005 atua para que crianças e adolescentes

que precisaram ser separados de suas famílias possam encontrar na medida do acolhimento um momento

de reparação efetiva, a fim de fortalecê-los para que se apropriem e transformem suas histórias (2015). Esta

ONG é vinculada à Associação de Pesquisadores de Núcleo de Estudos sobre a Criança e o Adar dolescente

(NECA).

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para elas, como nas páginas disponibilizadas pelo site Fazendo História, pois o intuito é

que desenhem livremente sobre as temáticas acima.

No primeiro encontro com cada participante, foi informado o período médio de

realização da montagem do álbum e que a cada encontro seriam apresentadas

possibilidades de atividades para ele escolher fazer. Os adolescentes ficaram livres para

recusar as atividades que não desejavam realizar. Outras páginas do álbum contiveram

fotos dos adolescentes, tiradas por mim em lugar definido junto à coordenação da Casa

III e com o consentimento deles. A minha intenção era que, no scrapbook, contivesse,

também, fotos dos mesmos antes do abrigo, mas eles não possuíram fotos desse período

consigo.

A ideia de utilizar esse recurso na pesquisa em questão, surgiu do interesse e

pedido da própria coordenadora da instituição ao Projeto de scrapbook, pois reconhecia

a importância de tal ferramenta. Outro motivo foi o fato do projeto já acontecer em outros

abrigos que acolhem crianças, como as unidades I e II. Ao saber do interesse da

instituição, surgiu ideia e a oportunidade de utilizar o recurso do scrapbook nessa

pesquisa, como forma de acessar as narrativas autobiográficas dos adolescentes.

Um elemento que favoreceu a escolha do scrapbook, o qual explicitarei adiante,

foi o fato de muitos adolescentes brasileiros que vivem em situação de vulnerabilidade e

acolhimento institucional serem analfabetos, semianalfabetos ou com grandes

dificuldades na leitura e escrita. Dessa maneira, o recurso lúdico apresentado facilitou o

acesso às autobiografias dos adolescentes, já que utilizaram o desenho e pintura como

alternativas de expressão, não se limitando a escrita. Através desses recursos, os

participantes se demonstraram implicados nas atividades.

Diante disso, para uma melhor descrição das observações, acontecimentos,

impressões, sentimentos e dúvidas dos encontros no campo da pesquisa, foi utilizado o

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diário de campo. Instrumento esse, essencial para registro de capturas dos elementos mais

simples e sutis, aos mais aparentes. Santos (2006) apresenta o seu conceito de diário de

campo, como:

(...) um dispositivo de caráter pessoal que permite refletir e

registrar o ocorrido, impulsionando o pesquisador a

investigar a própria ação por meio do registro e análise

sistemática de suas ações e reações, bem como seus

sentimentos, impressões, interpretações, explicações, atos

falhos, hipóteses e preocupações envolvidas nessas ações

(p. 136).

Foi possível, nos encontros, captar relatos de práticas sociais, valores, definições e

atitudes do grupo no qual a pessoa se insere, essenciais para compreender o contexto

social. O diário de campo me ajudou a descrever o que vai além de uma gravação em

áudio, pois levou em consideração o que foi observado no momento que o participante

fala, bem como suas expressões e ações. A cada encontro, levei um caderno de anotações

para escrever as principais falas dos participantes no momento em que narravam. Após o

encontro, discorri como foi todo a atividade, com maiores detalhes do que foi ouvido e

percebido durante a construção dos materiais.

O diário de campo foi escolhido como forma de registro com o intuito de evitar um

possível constrangimento dos jovens, tendo em vista, que eles poderiam não se sentir à

vontade e não ser espontâneos na presença de um gravador.

O uso do instrumento apresentado e do diário de campo esteve alinhado com a

principal característica da pesquisa qualitativa, que é o fato de trabalhar com material não

quantificável, construído a partir dos significados atribuídos às práticas diárias e

cotidianas dos participantes (Flick, 2009; Minayo, 2002).

O foco do trabalho se deu no que eles narraram sobre suas histórias de vida no

processo de construção de cada uma, já que estes recursos foram mediadores da fala. Este

trabalho possibilitou que os adolescentes ficassem com os materiais produzidos, pois não

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pretendi ir à campo para, simplesmente, coletar informações dos adolescentes, mas sim,

possibilitar um espaço de escuta aos mesmos, eu ter acesso a informações para a pesquisa,

para que no fim, os dois lados, participantes e pesquisadora, tivessem ganhos: eles, o

scrapbook, eu, a dissertação. Claro que, mais do que nos “produtos” finais, foi durante o

processo que mais ganhamos, pois a cada encontro construímos conhecimentos

conjuntamente. Concluídas as atividades, levei um fichário para cada um deles, elaborar

a capa e colocar as atividades na ordem que quisessem. Posteriormente, fiz a entrega dos

álbuns e fiz devolutivas de como foi o nosso processo com eles e dei abertura para eles

falarem sobre a experiência de construção do scrapbook.

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3.3.3. Tratamento e análise das narrativas

A Pesquisa (auto)biográfica vai além do fornecimento de instrumentos de

pesquisa, pois “se torna um modo de compreensão por si mesma, trazendo dentro de si

seu próprio valor hermenêutico e heurístico” (Delory-Momberger, 2012b, p. 11). Em

outras palavras, ela consiste em uma reflexão que busca exprimir o mundo vivido, para

dele extrair e construir um sentido (Pineau, 2006). Dessa maneira, através dos

dispositivos que foram desenvolvidos, a intenção deste trabalho foi permitir uma

compreensão de mundo, deles mesmos, de sua realidade, de suas potencialidades e da sua

relação com o outro.

Pretendeu-se, assim, através das narrativas (auto)biográficas, compreender quais

os significados produzidos por adolescentes abrigados sobre suas trajetórias de vida.

Minayo (2013, p. 154) confia na história de vida como “a melhor abordagem para

se compreender o processo de socialização, a emergência de um grupo, a estrutura

organizacional, o nascimento e o declínio de uma relação social e as respostas situacionais

a contingências cotidianas” (Minayo, 2013, p. 154). Assim, a perspectiva da história de

vida, mais especificamente, a autobiografia pôde contribuir com a compreensão das

narrativas expressas pelos adolescentes da pesquisa.

O que diferencia a Pesquisa (auto)biográfica das demais, é o seu interesse com a

compreensão do mundo como experiência narrativa e de significação (Abrahão &

Passeggi, 2012). Ou seja, ela defende que a medida que o participante narra sobre sua

história, ele produz significados, sendo possível, assim, ocorrer um processo de

compreensão.

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Norteada por estas compreensões, parti para o trabalho de análise. Para esta etapa,

tomei como baliza os passos sugeridos por Gomes (2015). Assim, iniciei o processo de

análise com uma leitura exaustiva e compreensiva dos diários de campo – onde estavam

as descrições das narrativas – e paralelamente, a “leitura” das produções visuais do

scrapbook. A atitude de me reportar, integralmente, às diferentes formas de expressão

dos adolescentes, teve o objetivo de me impregnar do material acessado para, dessa

maneira, adquirir uma visão do todo e de suas particularidades. Posteriormente, realizei

recortes dos elementos principais relativos aos significados dos participantes,

separadamente, em cada período de vida: antes do abrigo, durante a institucionalização e

perspectivas do pós-abrigo. Períodos nos quais se remetem aos objetivos do trabalho. Uni

os elementos em comum dos adolescentes e formei núcleos temáticos, que se tornaram

as dimensões do trabalho. Então, para organização destas dimensões em cada eixo da

pesquisa – objetivos específicos – montei um quadro (Tabela 5), apresentado no item

Costurando as gravuras, que envolve os principais discursos dos participantes

correspondentes à cada dimensão e eixo do trabalho.

Foi preciso ir e voltar, diversas vezes, aos diários de campo e atividades, para

buscar expandir as compreensões iniciais e, assim, apreender o que estava sendo

comunicado pelos adolescentes. A partir deste ponto, passei a problematizar as narrativas

dos participantes com o referencial teórico da pesquisa, no intuito de contextualizar as

suas experiências de vida e significados que atribuem a ela, além das suas percepções de

si e projeções futuras.

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3.3.4. Medidas de Proteção ao Participante e Aspectos Éticos

Essa pesquisa foi autorizada pelo Departamento de Proteção Social Especial

(DPSE/SEMTAS), conforme documento de carta de anuência, anexado no processo da

Plataforma Brasil. Tal departamento é responsável pelas unidades de acolhimento em

Natal/RN.

Os participantes foram informados de todos os aspectos fundamentais que

envolveram a pesquisa, bem como, a coordenadora da unidade. Os adolescentes,

individualmente, tiveram a liberdade de manifestar-se sobre o seu desejo ou não de

participar do projeto. Foram tomados todos os cuidados em relação aos seus direitos e foi

respeitado o tempo individual preciso para elaboração das atividades. Além disso, foi

garantido o anonimato das informações e depoimentos dos indivíduos. Nos

comprometemos a seguir as Diretrizes e Normas Regulamentadoras de pesquisa

envolvendo sujeitos humanos do Conselho Nacional de Saúde (2012)

Assumimos o compromisso de utilizarmos o material resultante desse estudo de

forma devida, de modo que não venha a acarretar prejuízos morais ou de qualquer outra

ordem para os participantes, em atenção aos normativos da Lei 12.010, Art. 100,

parágrafo V, que dispõe sobre a “privacidade: a promoção dos direitos e proteção da

criança e do adolescente deve ser efetuada no respeito pela intimidade, direito à imagem

e reserva da sua vida privada”. Em decorrência, enquanto pesquisadores responsáveis

pela condução dos trabalhos, assumimos a total responsabilização caso ocorresse, durante

o andamento das atividades, algum risco de ordem emocional, garantindo o

encaminhamento a algum Serviço de Psicologia adequado, ou mesmo suporte terapêutico

inicial pela própria pesquisadora, já que atua como psicóloga clínica.

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Informo que a pesquisa em questão foi aprovada pelo Comitê de ética, CEP

HUOL.

No intuito de preservar o anonimato dos participantes, escolhi personagens do

desenho Ursinho Pooh para representá-los, como adiantado na introdução. Tal

representação foi escolhida a partir da identificação de um dos adolescentes da Casa III,

como o Pooh e a comparação de dois de seus irmãos como outros personagens do

desenho, sendo eles: Tigrão (irmão abrigado com ele e participante da pesquisa) e Leitão

(irmã caçula). A decisão das demais personalidades do desenho como atores da pesquisa

foi feita por mim, com base no perfil ou papel destes, para garantir de forma mais

aproximada uma relação do perfil dos atores da pesquisa com a descrição dos

personagens.

Os atores da pesquisa envolveram protagonistas e coadjuvantes que estiveram no

palco desse trabalho, representando o grande cenário do acolhimento institucional. Os

participantes Guru e Tigrão foram os personagens que protagonizaram esta dissertação.

Já os coadjuvantes, foram pessoas do abrigo ou familiares dos participantes que

estiveram, significativamente, presentes nas narrativas dos protagonistas. Configurando-

se no total, 8 atores da pesquisa.

Personagens do "Ursinho Pooh"

• Pooh: adolescente (coadjuvante da pesquisa) acolhido que se representou

como Pooh, por si considerar “gordinho”. Ele é irmão de Jessie, Tigrão e

Leitão. Possui outras duas irmãs, as mais velhas dentre eles, mas essas não

serão mencionados como personagens. A ordem de nascimento desses quatro

atores são: Jessie, Tigrão, Pooh e Leitão. Eles tiveram experiência de abrigo,

mas, posteriormente, somente Pooh e Tigrão permaneceram acolhidos até o

momento da pesquisa de campo, morando juntos nos mesmos abrigos desde

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que começaram seus percursos de institucionalização. O personagem do

desenho é um urso amigável, que está sempre disposto a ajudar seus amigos.

O ursinho adora mel, mas sua eterna busca sempre lhe traz problemas. A

relação do personagem com o adolescente foi feita por ele mesmo, mas

complemento que, de fato, ele afirmou valorizar amizades e gostar de

cooperar com programações da Casa III, bem como, ajudar na limpeza da

casa, quando lhe permitem.

• Leitão: criança (coadjuvante da pesquisa) que já fora abrigada, mas foi morar

com os tios com a reintegração em família extensa. Pooh representou sua irmã

caçula como esse personagem por considera-la pequena e feliz. Ele

demonstrou grande afeição por ela. No desenho, Leitão é um porco muito

pequeno e amigo de Pooh. Ele tem um medo constante do escuro e está

sempre muito ansioso sobre qualquer coisa relacionada ao desconhecido.

Leitão enfrenta seus medos para ajudar seus amigos, sendo Pooh seu melhor

amigo. Não tive contato com essa coadjuvante, não podendo fazer relação

dela com o perfil da personalidade do desenho.

• Tigrão: adolescente (14 anos, protagonista da pesquisa) que tinha seu irmão

mais próximo, Pooh, com ele no abrigo. Pooh representou o irmão como

Tigrão por enxerga-lo semelhante ao personagem, devido às características

de ser magro e engraçado. No desenho, ele se comporta como um tigre

simpático, disposto a ajudar, hiperativo, cheio de energia, que adora pular,

adora experimentar coisas novas, mas sempre percebe que essas aventuras

não são tão fáceis quanto parecem. Costuma ter muitas ideias, algumas não

tão boas, e geralmente não pensa muito antes de agir e falar, além disso,

representa a principal causa de confusões no desenho. Conforme observação

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de campo, o adolescente possui algumas afinidades com o personagem,

dentre elas: alegria, simpatia, disposição a ajudar, inclusive em tarefas

“domésticas”, quando permitido. O adolescente também costumava ter

algumas “más ideias” que acabavam influenciado seu irmão mais novo, Pooh,

a fazer parte de suas perigosas “aventuras”, como será abordado na análise

das narrativas.

• Guru: adolescente (15 anos, protagonista da pesquisa) acolhido, o qual

enxerguei similaridades, de perfil e história, com o personagem Guru. No

desenho, Guru é um jovem canguru, filho de Dona Can e o melhor amigo de

Tigrão. Mesmo sabendo o que poderia acontecer, Guru está sempre metido

em confusões, mas todas as vezes aprende uma lição. Ele gosta de descobrir

as pequenas maravilhas da vida. Tem energia, adora brincar, é bom e

simpático, e sempre expressa seus pensamentos como se fosse mais velho e

mais sábio para sua idade. O adolescente se assemelha, coincidentemente, na

maioria dos aspectos da personalidade de Guru. Ele expressou sentimentos e

pensamentos com “facilidade”. Já se envolveu em muitas situações de risco e

violência, tendo, muitas vezes, a consciência de que não era bom para si, e,

de fato, compartilhou comigo algumas lições que a vida lhe proporcionou.

Além disso, uma afinidade interessante entre o adolescente e o personagem

está ligado com a relação profunda de ambos com suas mães. Apesar dos dois

se envolverem em situações embaraçosas, distantes da mãe, depois corriam

de volta em busca de “colo”, ou podemos dizer, a “a bolsa de canguru”, afinal,

essas representavam, para eles, suas figuras de proteção.

• Dona Can: coordenadora (coadjuvante da pesquisa) da Casa III. Escolhi essa

personagem para identificar a profissional, por representar a figura de cuidado

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e proteção dentro o abrigo. Reconhecida, inclusive, pelos participantes, ao

longo da construção do Scrapbook. No desenho, Dona Can é um canguru,

mãe de Guru, que “banca a mãezona” dos outros personagens do Bosque dos

100 Acres. Ela é sempre prestativa, consola a todos e os ajuda quando estão

se sentindo desanimados. Sempre se preocupa com Guru, especialmente

quando ele se aventura com seu amigo Tigrão. Está constantemente

preocupada com o bem-estar de seu filho, mesmo que isso signifique tentar

mantê-lo longe de problemas. Ela vai oferecer o conselho materno,

alimentação, para quem lhe solicita. Usa palavras amáveis e disciplina gentil.

Com base em minhas observações e falas dos participantes, a coordenadora

demonstrava o quanto se importava e se preocupava com os adolescentes,

embora o estresse promovido pela demanda, dificuldades e dinâmica da

instituição, prejudicasse a sua relação com eles, já que havia atitudes de

desrespeito e incompreensões por ambos os lados. Mesmo assim, ela não

deixava de cumprir sua função de cuidado com os meninos, e esses validarem

o seu papel. Dona Can representa, não somente, essa profissional, mas o papel

de cuidado dos coordenadores e educadores sociais no sistema de

acolhimento institucional.

• Christopher Robin: adolescente (coadjuvante da pesquisa) acolhido que

representa o exemplo de amizade verdadeira para o adolescente Guru.

Christopher, no desenho, é um jovem garoto e o único amigo humano do

Ursinho Pooh (e da turma). Ele é com quem todos os animais podem sempre

contar quando entram em alguma confusão e precisam de ajuda.

• Kessie: adolescente, irmã de Tigrão, que já fora abrigada, mas se evadiu e

não retornou mais para o contexto de abrigo. Tal atitude da adolescente se

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assemelha com a da personagem. No desenho, Kessie é uma avezinha azul

que viveu com um dos animais em um episódio, mas no final do episódio,

migrou para o sul e não apareceu novamente na série.

• Corujão: educador social (coadjuvante da pesquisa) que Guru vai identificá-

lo como uma figura parental. No desenho, esse é o habitante mais velho do

Bosque e também o mais sábio, sempre dando conselhos úteis, instruções para

chegar em terras distantes e contando histórias de sua vida para os outros

personagens, que gostam de ouvi-lo falar. A partir do olhar de Guru, percebi

que o educador tem características semelhantes ao Corujão, como por

exemplo, dar bons conselhos. Por esse motivo resolvi incluí-lo como um dos

personagens.

• Roque-Roque: educador social (coadjuvante da pesquisa) que Guru vai

identificá-lo como um ente familiar. Roque-roque é um roedor muito

trabalhador que adora construir seus túneis e casas, paredes e muitas outras

coisas. Minha escolha para representação do educador foi mais aleatória. Esse

personagem aparece pouco no desenho, assim como na fala dos participantes.

• Bolota: educador social (coadjuvante da pesquisa), no qual Guru também

comparou com um ente familiar. No desenho, Bolota é um elefante, que antes

Pooh e seus amigos tinham medo. No entanto, Guru descobre que, na verdade,

os elefantes não oferecem perigo, a partir daí eles se tornam amigos do

Bolota. Tal personagem foi escolhido de forma mais aleatória. A única

relação que poderia ser feita é que no desenho, Bolota gosta de brincar com

os demais animais, e Guru, na pesquisa, falou desse educador como alguém

que brinca com ele.

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Coincidentemente, ou não, todos as personalidades do desenho, que

representaram os adolescentes, tinham perfil infanto-juvenil e pareceram ser órfãos ou

distantes de suas famílias, como demonstra a trama do desenho animado. Sendo possível

uma certa relação dessas semelhanças com a situação de abrigamento. Nessa trama, Pooh

e Tigrão são melhores amigos, e Leitão se insere como um personagem muito próximo e

importante para eles, tendo os três uma relação de muito afeto. Essa relação se aproxima

da realidade dos três irmãos que o adolescente Pooh retrata nessa pesquisa,

principalmente a relação de amizade e fraternidade entre Tigrão e Pooh. Já o participante

Guru, era pouco próximo de Pooh e Tigrão no abrigo, mas demonstrou se relacionar com

Christopher e alguns profissionais, identificados como coadjuvantes.

Dessa maneira, considerando Tigrão e Guru como protagonistas dessa pesquisa,

no próximo capítulo irei apresentar seus relatos e contextos de vida, nos quais os

coadjuvantes se inserem em alguns momentos.

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4.0 Quarta gravura: guru, tigrão e sua turma

Figura 6. Auto-retrato de Guru e Tigrão; Adolescentes do abrigo, por Tigrão.

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Neste capítulo, apresentarei duas grandes sessões. A primeira, conterá as histórias

dos adolescentes, seus sentimentos e pensamentos com a finalidade de apresentá-los e

mostrar o que eles narraram sobre si mesmos nos tempos de vida: antes do acolhimento,

durante a institucionalização e suas perspectivas no pós-abrigo. Demonstrarei também

algumas interpretações iniciais sobre os relatos dos participantes. Na segunda sessão,

trabalharei as dimensões temáticas, levantadas a partir da compreensão das narrativas nos

eixos da pesquisa.

4.1 Análise das Narrativas

O propósito deste trabalho foi protagonizar os adolescentes da pesquisa enquanto

atores e autores de suas próprias histórias. Não significa que tudo o que foi dito por eles

tenha sido verdade, mas foi a história que acreditavam ou queriam compartilhar. Segui o

trabalho com o pressuposto de que foi importante eu saber aquilo que eles quisessem que

eu soubesse. Dessa forma, na dissertação, não procurei fatos ou informações que

confirmassem as verdades ditas por eles, e sim, busquei dar-lhes voz para que se

expressassem espontaneamente. Isso se deu, desde a liberdade que tinham nas escolhas

das atividades e inclusão de alguma proposta por eles mesmos, ao processo de narrar

sobre elas. Sendo assim, nesse trabalho, busquei deixar claro para os adolescentes que

eles são os que possuem a maior propriedade sobre suas vivências e que podem escrever

novos capítulos de suas histórias.

A abordagem (auto) biográfica preza pelo respeito aos participantes, não busca

sugar informações, de qualquer maneira. Propõe liberdade para o que eles queiram ou

não dividir, no momento que queiram, de modo que a narrativa siga enquanto houver

“água para fluir”. Houve instantes que fiquei incomodada com o “não dito”, porque os

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adolescentes estavam indisponíveis para prosseguir na fala e paravam “por ali”, seja por

não saberem o que dizer ou não se sentirem à vontade para isso. Na verdade, o “não dito”

em palavras estava dizendo que havia um limite para a narrativa naquele momento. A

Sociologia Clínica instrui uma autoanálise constante do pesquisador no ato de pesquisar,

de ouvir e com o cuidado de não tratar o participante como um dado. Neste movimento

de caminhar, parar e recuar fui desenvolvendo este trabalho. Caminhar indo de encontro

com este outro, parar no intuito de refletir sobre o meu fazer pesquisa e recuar quando

percebia que estava invadindo.

O processo de análise começou, concomitantemente, à minha inserção no campo.

Durante as descrições nos diários de campo, pude refletir e entender vários pontos

tratados pelos participantes, entretanto, muitas questões ficavam abertas em minha mente,

as quais esperava que fossem esclarecidas em algum momento. Algumas foram, outras,

não. O ato de (re) escrever o que os adolescentes expressavam sobre si mesmos foi

importante para esboçar o caminho para a compreensão do todo.

Tive inúmeras dificuldades em conectar os fragmentos das histórias dos

participantes. Foi como jogar puzzle4. Tive que entender o “formato” de cada peça para

encontrar o devido lugar e algumas peças não foram encontradas, todavia, mesmo com

alguns detalhes fora do jogo, consegui compreender as histórias dos mesmos com a soma

das peças que eu tinha. A fragmentação se deu pela própria dificuldade dos adolescentes

em relação às lembranças nas cenas de suas histórias, bem como, na ordenação dos

pensamentos e clareza nas ideias. Os adolescentes não quiseram responder algumas

perguntas que fiz sobre os sentidos de certos termos ou contextos de alguns fatos. Deixei-

os à vontade. Observei que o silêncio às questões aconteceu em momentos que o assunto

4 jogo de paciência que consta de pequenas peças de formatos desiguais, que têm de ser ajustadas

umas às outras para com elas se formar uma imagem.

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tratado envolvia um esforço mental e emocional dos adolescentes para desenvolver uma

fala. Dessa maneira, a interpretação aconteceu como um processo de desembaçar de

lentes que foi ocorrendo passo a passo.

Concluídas as atividades e, assim, o trabalho de campo, comecei a avaliação das

narrativas descritas no diário, com o material produzido pelos adolescentes. Enxerguei

muitos conteúdos interessantes à minha frente, mas todos soltos e espalhados em cima da

mesa. Então, era chegado o momento de conectá-los. Para mim, foi a etapa mais difícil,

porém, mais empolgante. Minhas perguntas de pesquisa me ajudaram a nortear minhas

ideias e compreensões.

Na sequência deste tópico, apresentarei as trajetórias dos adolescentes da pesquisa

com algumas elucidações, iniciando por Guru e depois tratando de Tigrão. Cada atividade

proposta não será apresentada na ordem que foram realizadas, mas sim em uma sequência

lógica que permita ao leitor um melhor entendimento. Nos dois casos, de início, farei uma

breve contextualização da história e do perfil de cada um e, posteriormente, mostrarei as

narrativas compartilhadas nos três tempos de vida: Vida antes do abrigamento, Vida em

Abrigos, Depois do Abrigo.

Guru e Tigrão, apesar de vivências diferentes antes do abrigo e maneiras distintas

de enxergar questões de suas vidas, convergiram em vários pontos acerca do que um

adolescente espera ter: lar, afeto, aceitação, compreensão e concretização de sonhos. Eles

não conseguiram visualizar um caminho concreto para essas realizações. O futuro

profissional apareceu como algo incerto, embora algumas oportunidades fossem

proporcionadas justamente pelo abrigamento.

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4.1.1. Os (des)caminhos de Guru

Em poucos anos, esse adolescente viveu em lares e núcleos familiares diferentes.

Experienciou perdas de diferentes níveis no que diz respeito ao pertencer a uma família,

pois não foi possível a continuidade da vivência com a sua mãe, nem com pessoa da

família extensa, nem com pessoa da igreja e nem com uma possível mãe adotiva. Então,

Guru voltou a morar em um abrigo.

As narrativas de Guru começaram com o relato da perda de sua mãe e sofrimento

que sentia naquele momento. Parecia que o que ele mais precisava, assim que nos

conhecemos, era expressar a sua dor e perda.

Existiu um movimento de Guru de falar primeiro de suas experiências dolorosas,

tanto em relação a sua vivência antes do abrigo, quanto também de suas experiências

durante o abrigamento. Acredito que, metaforicamente, o tempo que ele precisou retirar

o boné da cabeça e olhar nos meus olhos, do primeiro para o segundo encontro, foi o

tempo que Guru precisou para trazer as experiências mais importantes, justamente as mais

dolorosas.

Com o passar dos encontros, ele foi me contando sobre suas vivências antes da

perda com um olhar de nostalgia, mesmo tendo vivido em um contexto de

vulnerabilidade, que envolvia situação de rua, trabalho infantil como pedinte na rua,

fome, crime e drogadição. Apesar de ter expressado sentimento de medo, tristeza e

arrependimento de suas “más condutas”, nesse período, ele não enfatizou o sofrimento,

pelo contrário, em sua fala parecia natural e “tranquilo” esta realidade. Ou seja, exprimiu

uma naturalização do contexto de vulnerabilização. Ele deu ênfase aos momentos bons

como, a sua frequência escolar e as notas boas que tirava, principalmente em matemática.

Além disso, destacou as brincadeiras que tinha com um de seus irmãos e primos, e a

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liberdade de ir e vir para onde quisesse, a qualquer hora. O principal motivo do seu sorriso

nas suas lembranças era a presença e companhia de sua mãe.

Com a institucionalização, pude fazer uma caracterização provisória: Para esse

adolescente sua trajetória de vida é significada como uma naturalização das situações de

vulnerabilização que foram vivenciadas por ele: contexto de pobreza e violência, perda

dos pais (distância de seu pai, morte de sua mãe) e saudade da mãe, ser “jogado” de um

lado para outro e rejeição da família extensa porque ele não correspondia a um “modelo”

idealizado. Por essa razão era possível destacar a liberdade de ir e vir e os

pequenos/poucos privilégios do abrigamento: acesso a terapia, esportes e videogame.

As experiências que contou sobre o abrigamento trouxeram emoções diferentes:

solidão, raiva, tristeza, alegria, conforto, esperança. Esperança essa, principalmente,

evidenciada quando falava sobre seus sonhos e perspectivas de futuro. Ao mesmo tempo,

lhe faltava, às vezes, a visão de um futuro diferente da realidade que viveu antes do abrigo.

Vida antes do abrigamento

As informações que trarei aqui remetem a uma contextualização sequencial de

fatos que ocorreram na vida de Guru antes da experiência de abrigamento. A cada

atividade, ele foi contando partes de sua história, e após isso, organizei como peças de

um quebra-cabeça com a finalidade de uma melhor compreensão. Um quebra-cabeças no

qual tive acesso a um número significativo, porém, limitado, de peças, e partir do qual

me esforcei para visualizar o quadro geral de sua história.

A maior parte das informações sobre sua história antes da institucionalização,

foram obtidas a partir de Minha vida antes do abrigo. Outras também trouxeram

conteúdos significativos que irei expor. Nessa atividade, ele dividiu uma folha em

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quadros e desenhou as fases mais marcantes de sua história, me contou e respondeu

questionamentos acerca das cenas de seu passado.

Guru, desde pequeno, passava a maior parte do dia na rua com sua mãe, catando

material para reciclagem e em situação de mendicância nos sinais. Segundo ele, durante

a sua infância, quando chegava o final do dia, dormiam em casa, no bairro de Felipe

Camarão. Um de seus irmãos também vivia essa realidade com ele e sua mãe.

Em Uma história que vale a pena contar, Guru escreveu:

Eu quando criança era ao mesmo tempo chato e legal

porque eu usada drogas e porque não dividia as coisas com

ninguém e gostava de fazer confusão. Eu era bom porque

estudava muito e porque gostava dos meus irmãos, eu ia

para a igreja de Deus.

Nesta fala, fica clara a ideia de Guru sobre si, durante sua infância, com a

dualidade “chato e legal”, trazendo o sentido de menino mau e bom a partir de seus

comportamentos. Ele remeteu a um passado que, simultaneamente, carregava mais de um

significado, demonstrando que um fato da vida pode conter sentimentos contraditórios.

Ao mesmo tempo, lhe trazia vergonha e orgulho.

Guru enfatizou, entusiasmado, que gostava de sua escola na época, em Felipe

Camarão. Tinha amigos da comunidade lá, adorava estudar, em especial matemática, e se

considerava inteligente. Depois da aula, muitas vezes chegou a brincar, por horas, na

frente da escola com seu irmão. Guru pediu uma folha à parte para fazer o registro dessa

cena. Afirmou também que jogava bola com alguns de seus irmãos mais próximos na

comunidade em que vivia.

Sua vida escolar foi cercada de inconstâncias devido ao contexto de mendicância,

violência e drogadição. No entanto, Guru afirmou que sempre voltava a frequentar a

escola porque gostava de estudar. Parte da sua infância ia para a escola, e de lá, ficava na

rua com sua mãe.

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Guru contou: “comecei a fumar pedra com quatro anos, aprendi sozinho vendo os

outros fumarem” (Uma história que vale a pena contar). Disse que depois passou a sair

com amigos e a se drogar escondido. Questionei-lhe se sua mãe tinha conhecimento de

sua drogadição. Segundo o adolescente, sua mãe não demonstrava saber. Fiquei curiosa

como ele escondeu dela durante tanto tempo. Uma possibilidade que me surgiu é de que

a sua mãe também se drogava, principalmente quando disse que começou tão novo.

Ao falar sobre sua experiência com as drogas, Guru falava cabisbaixo, como se

estivesse envergonhado. Disse: “Eu andava com uns amigos que roubavam (...) quando

eu era criança comecei a roubar e assaltar” (Uma história que vale a pena contar). Em

outra atividade (As cinco coisas que eu mais gosto e menos gosto), o adolescente

relacionou “trapacear” com roubo que fazia junto aos amigos, destacando como uma

atitude que não gostava de ter. As transgressões fazem parte da história de vida de Guru

antes do abrigamento. Embora se refira mais aos momentos positivos, elas também estão

lá denunciando uma trajetória de desvios em relação ao que se espera da vida de uma

criança criada numa família nuclear (pais e filhos).

Em alguns momentos, Guru propôs atividades e o deixei livre para expressar suas

lembranças e sentimentos. Em uma delas, ele pediu para fazer um desenho porque estava

com muitas coisas na cabeça. Desenhou uma casa, como se estivesse abandonada, e acima

dela fez uns tracejados que se cruzavam. Ao lado, escreveu “sol” e “1:30”. Explicou que

tais tracejados representavam o momento que tinham mais medo, pois em muitas

madrugadas, mais ou menos neste horário das 01:30, ele e os amigos trocavam tiros com

a polícia. Isso acontecia, geralmente, depois que roubavam e corriam para a favela. Essa

experiência, me pareceu ter acontecido já quando adolescente, quando decidiu morar na

rua, após evasão do Aldeias.

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Fica nítido o contexto de vulnerabilidade social que Guru vivia. Tal condição

relacionada à pobreza e às péssimas condições de vida, acaba ocasionando o sofrimento

concreto, que acarreta em negligência e vai afetando os vários aspectos da vida de Guru.

Ele experimenta práticas transgressivas como roubo e furto, consome drogas ilícitas, tem

seu rendimento escolar prejudicado. Tudo isso pareceu indicar que a vida na rua é a vida

que realmente diz da sua história, mesmo antes da perda de sua mãe.

Segundo o adolescente sua mãe o deixava no abrigo, mas ele sempre se evadia.

Confessa: “não sei porque ela me deixava lá” (Quando cheguei no abrigo).

Provavelmente na sua cabeça o abrigo é um lugar para órfãos, para quem não tem família.

Por mais que ele estivesse dando “trabalho”, o lugar dele era em casa, junto à família.

Entendo que provavelmente sua mãe reconhecia suas limitações no cuidado com seu filho

ou se preocupava com a sua condição de vida, desejando também o melhor para sua saúde

e seu futuro. Faço essa formulação baseada no seguinte: o tipo de relação que Guru tinha

com sua mãe e a referência que a mesma representava para ele, me fez pensar que a

intenção de sua mãe era protegê-lo. Entretanto, sabe-se que existem mães e guardiões que

desejam se abster da sua responsabilidade de cuidado, por problemas de várias ordens, e

preferem “jogar” seus filhos à porta do Estado.

É possível que a mãe de Guru tenha conhecido este serviço a partir da busca-ativa

que faz localização, inclusão no Cadastro Único e atualização cadastral de todas as

famílias extremamente pobres, bem como o encaminhamento dessas famílias aos serviços

da rede de proteção social. E dentre estes encaminhamentos, numa avaliação psicossocial,

tenha sido avaliado a possibilidade de abrigamento, como saída para garantir as

necessidades básicas para o seu filho e um lugar “propício” para seu desenvolvimento.

Guru contou que quando tinha 7 anos, sua mãe foi hospitalizada por comer muito

barro. Esta prática era comum na vida deles para lidar com a fome. Ele relatou que sua

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mãe veio a falecer no hospital, depois de um choque ao derramar água em um interruptor.

Tal perda o abalou muito. Contou sobre sua perda com um semblante de tristeza, angústia

e desamparo, no nosso segundo encontro, em As cinco coisas que eu mais gosto e menos

gosto. O que demonstra a grande necessidade que ele tinha de expressa sua dor e sua

tristeza, mesmo sendo sofrido o processo de contar.

Diante deste fato trágico, Guru foi residir com sua tia, que se tornou sua guardiã.

Afirmou ter gostado de morar com ela e seus filhos, pois se divertia com seus primos.

Quando brincavam, saiam para jogar futebol ou videogame na Lan house. Esses foram os

únicos entes da família extensa que o adolescente apontou. Eles já tinham certo convívio

antes do ocorrido e este vínculo familiar, acredito que estava ajudando Guru no seu

processo de luto.

Entretanto, seu novo lar durou pouco tempo e Guru foi encaminhado ao Aldeias.

Ele lamentou dizendo: “Morei na casa da minha tia, como uma família, mas lá era ruim

porque tudo era culpa minha” (Desenho sobre antes, durante e depois do abrigo). Não

ficou claro, na fala de Guru, os motivos pelos quais sua tia não pôde continuar com os

seus cuidados. Com base na afirmação acima e em outros relatos de Guru, uma via

possível para o entendimento do acontecido, pode ter relação com as dificuldades

encontradas pela tia em lidar com as “más condutas”, “maus hábitos” e processo de luto

de Guru. Imaginemos a condição de um adolescente que era acostumado com o contexto

de rua, violência e drogadição, que acaba de perder sua mãe, vivendo grande dor e com a

alma desorganizada e confusa. Questionei-me: o quanto o contexto da perda da sua mãe

e os hábitos de viver em situação de rua puderam ter um peso relevante nessa “má

conduta”?

Isso porque, ainda no que diz respeito às más condutas de Guru, os motivos da

devolução da guarda, podem encontrar uma explicação na sua fala em: Uma história que

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vale a pena contar, na qual ele se considerava, antes da fase de abrigamento, chato porque

usava drogas, tinha comportamento egoísta e gostava de fazer confusão. Provavelmente,

a tia nunca teve que lidar com uma criança que tivesse uma trajetória tão diferente de seus

filhos.

No entanto, não podemos justificar as dificuldades dessa tia em lidar com Guru e

sua bagagem emocional, nem, por outro lado, julgá-la pela decisão. Afinal, não temos

conhecimento de todos os ângulos deste quadro complexo. Todavia, há algo que podemos

afirmar com certeza: a construção do cuidado e sua manutenção está para além da simples

decisão pessoal.

Precisamos refletir que a escolha por cuidado envolve muito mais do que “criar”,

fornecendo as necessidades primárias. Se por um lado é preciso acolher, amar, dar apoio,

mesmo quando é difícil conviver e confrontar com as intransigências e dificuldades do

outro, por outro, precisamos olhar para o ser no seu contexto de produção social. Digo

isso considerando outras narrativas que tive acesso durante a pesquisa que expressam as

experiências de drogadição, furto e outras transgressões. Dessa maneira, cuidar, nesse

contexto de vida de Guru, é desafiador. E como veremos em outros momentos da

dissertação, esse desafio se coloca não somente para os membros da família extensa, mas

também para adotantes e profissionais que atuam na área.

Com a saída da casa de sua tia, Guru foi abrigado no Aldeias e com cerca de um

ano e meio na instituição “Eu me evadi para jogar videogame (...) daí fiquei na rua (...)

não sabia que eu podia voltar” (Desenho sobre antes, durante e depois do abrigo). Então,

começou a morar sozinho na rua, voltou a prática de recolher material para reciclagem.

No período que esteve na rua, catava material para jogar videogame e passava

muitas horas jogando. Ele me disse: “Num sentia nem fome quando jogava” (Desenho

sobre antes, durante e depois do abrigo). Questionei-lhe, nessa atividade, como se sentia

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jogando, respondeu: “Eu num sinto nada”. Essas afirmações me fizeram pensar que

durante o jogo, o adolescente não se sentia triste e não lembrava da sua fome e dor na

alma. Os jogos na internet, pareciam ser a diversão que Guru possuía, era seu escape do

real para vida virtual, um “vício” que permitia por algumas horas alívio e distração.

Porém, quando o tempo na Lan-house acabava, era a hora de voltar a dura realidade da

rua. Perguntei o que achava de morar na rua, respondeu: “Era ruim porque vivia sujo e as

pessoas falavam mal de mim”.

Nesse tempo de vivência na rua, um dia foi ver seu irmão mais próximo e chegou

a morar com ele um tempo, mas mesmo tendo onde comer e dormir, como disse, quis

voltar a morar na rua. Em alguns encontros, Guru falou sobre esse irmão, destacando

momentos muitos bons com ele na infância. Eles se distanciaram com o passar dos anos

e não pareceu que, atualmente, este irmão é uma referência de vida para Guru, mas dentre

os seus irmãos, este foi o que teve mais vínculo e proximidade.

Posteriormente, conheceu uma igreja e passou a morar um período na casa da

amiga do pastor que se sensibilizou com a sua história e condição, no entanto, relatou:

“Eu saí porque fui acusado de bater no neto dela, mas era mentira, não fiz isso (...) daí

depois de 2 meses, voltei para igreja e entreguei minha vida para Jesus” (Desenho sobre

antes, durante e depois do abrigo). Essa foi a segunda situação que Guru pôde ter sido

devolvido por suas “más condutas”.

Guru contou que certo dia “Quando eu comia lixo na rua, uma mulher me

convidou para comer no restaurante com ela (...) a gente se tornou amigo” (Desenho sobre

antes, durante e depois do abrigo). O adolescente chegou a morar 2 meses com ela, mas

depois ela chamou a Busca-ativa com o intuito de levá-lo a um abrigo. Como Guru já era

adolescente, tal instituição foi a Unidade de Acolhimento III, local onde nos conhecemos.

Antes de se despedirem, a amiga fez a promessa de que tentaria adotá-lo. Acredito que

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essa promessa foi o que convenceu Guru a voltar para um abrigo e também o que lhe deu

esperanças de voltar a ter um lar. Porém, a adoção não se concretizou porque não houve

consenso da família dela. Ele justificou a necessidade de concordância da família de sua

amiga porque “ela não morava sozinha”.

É possível que nesse período de convivência com sua amiga, Guru já se sentisse

parte de uma família, mais uma vez, quando teve que voltar para o abrigo. Situação essa,

muito difícil para um adolescente enfrentar. No início dos encontros do scrapbook, ele

trazia uma grande frustração dessa adoção mal sucedida. Ele disse: “Eu que quis ficar no

abrigo”. Resolveu permanecer na unidade por decisão própria, e penso que por esperança

de poder ser adotado, já que ele manifestou esse interesse em vários encontros, por esta

amiga ou por outro adotante. Até o momento que fiz o trabalho de campo, Guru já se

encontrava na Casa III há mais de dois anos.

Vida em Abrigos

Neste espaço, irei apresentar os discursos de Guru e algumas percepções obtidas

acerca do início das experiências de abrigo do adolescente até o momento da pesquisa de

campo.

O início do contato de Guru com a institucionalização começou antes do

falecimento de sua mãe. Como relatado anteriormente, quando a mãe o deixava no abrigo,

ele sempre se evadia e voltava a conviver com ela, passando a maior parte do dia na rua.

Essa foi a única informação que ele trouxe sobre essa fase (atividade: Quando cheguei no

abrigo). Não descreveu mais sobre essas experiências eventuais em abrigos.

Foi a morte da mãe que acabou consumando, até aquele momento, essa realidade

para o filho, devido aos insucessos do Serviço de Acolhimento Institucional de Crianças

e Adolescentes (SAI) na tentativa de reintegração para família extensa e de adoção.

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Quando a mãe de Guru faleceu, ele passou a morar na casa de sua tia. Da

experiência mal sucedida no novo lar, foi para o Aldeias. Ele falou pouco sobre esse

período. Disse que tinha nove anos. Quando entrou no Aldeias, passou a estudar em outra

escola. Em suas palavras: “a escola era chata e só tinha baixinhos”. Explicou depois que

ele era mais alto que as outras crianças e que não tinha se identificado com ninguém de

lá como amigo, para brincar. Suponho que Guru, nesse período, já estava desnivelado no

ensino de acordo com a sua idade, por talvez ter iniciado na escola mais tarde, e/ou por

idas e vindas na frequência escolar. Então, provavelmente, estava desnivelado em uma

turma, com crianças mais novas que ele, nas quais não conhecia e em uma comunidade

diferente da sua.

Contou que permaneceu no Aldeias por cerca de um ano e meio e que se evadiu.

Questionei o motivo e ele respondeu: “Para jogar videogame”. Perguntei se não quis

voltar e ele disse “Eu num sabia que podia voltar”. Então, passou a morar na rua, onde

permaneceu por 1 ano e 5 meses. Não ficou claro que se ele soubesse que poderia voltar

ao abrigo, tomaria esta decisão. Também não foi possível averiguar se este período incluía

o tempo que passou morando na casa da amiga do pastor e do período na casa de sua

amiga que conheceu no restaurante, como mencionado no item anterior. Fazemos essas

considerações com o intuito de pensar que a casa dessas “amigas” também foram uma

espécie de abrigo, uma vez que não podemos afirmar sobre a intenção de adoção por parte

de ambas. Por mais que tenha sido esboçado uma vontade de ajudá-lo, nenhuma das duas

amigas conseguiu dar um passo adiante, no sentido de suas casas deixarem de ser um

abrigo provisório e passarem a ser o seu lar.

O que podemos afirmar é que Guru foi encaminhado, pela sua amiga, e provável

candidata à mãe, para a Casa III. No processo de construção do Scrapbook, o adolescente

se deteve a narrar mais sobre sua experiência de abrigo na Casa III, visto que foi a

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instituição de maior permanência e de experiências significativas, que ele escolheu

partilhar comigo nas oficinas de Scrapbook.

No primeiro encontro, expus para Guru quais as atividades que iríamos trabalhar

para montar o álbum. Mostrei as atividades que poderíamos iniciar, por terem um caráter

mais de apresentação do adolescente, nas quais ele pôde falar seu nome e outras

informações pessoais mais introdutórias.

Guru preferiu começar pela Carteira de Identidade. Não quis responder a maioria

das perguntas propostas pela atividade, nem quis escrever sobre como gosta ou não de ser

tratado. As que envolviam preferências de itens que se identificasse, afirmou “Eu não

tenho preferência, por isso não vou responder”. Escreveu, apenas, sobre o tipo de jogo

que se interessa, videogame, e sobre seu time de futebol, o flamengo, dois tipos de jogos

significativos que perpassam a sua trajetória antes e durante o abrigamento, inclusive no

pós-abrigo, como tem sido discutido ao longo no texto. Afirmou neste dia: “Eu não tenho

casa, a minha casa é a casa de Deus”. Esta narrativa me fez refletir a casa de Deus, a

igreja, como um lugar onde todos podem chamar de casa porque Deus aceita a todos. Ele

foi bem objetivo sobre cada pergunta, o que é totalmente compreensível, afinal era nosso

primeiro encontro.

No final da atividade disse: “Tenho vergonha da minha história, já falei para muitas

pessoas e não gosto de repetir porque é uma história muito sofrida”. Deixei-o à vontade

e falei que ele poderia falar sobre a sua história somente quando quisesse. Logo depois,

ao final da folha escreveu: “Minha frase: eu quero viver mais...”. Tentei conversar mais

sobre a frase, mas ele não quis dar detalhes. O que poderia significar para Guru viver?

Diante do contexto, entendi que “viver” poderia significar, para ele, viver mais momentos

bons, sem tanto sofrimento, já que está cansado de contar sua história como se tivesse

apenas aflição e dissabor.

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Sobre a primeira afirmação do parágrafo acima, duas palavras me chamaram atenção

no que Guru traz sobre sua história: “vergonha” e “sofrida”. De acordo com o todo da

narrativa do adolescente, esta vergonha pode ter relação com as suas condutas nas quais

reprova, como o envolvimento com as drogas e com o crime. O sofrimento parece ter

relação com a perda de sua mãe e das “quase mães”, com a pobreza. Além disso, a própria

drogadição e criminalidade também o fizeram sofrer, quando ele contou que sentia medo

dessa realidade estava inserido.

Logo no segundo encontro (atividade: As 5 coisas que mais gosto e menos gosto),

Guru falou de sua grande dor. A perda de sua mãe foi, e continuou sendo, muito dolorosa.

Ele chegou a dizer: “Sinto muita dor e não passa, só aumenta” e depois afirmou “Não

gosto de sentir amor...porque sofro e fico fraco”. A primeira afirmação se referiu à um

luto mal elaborado que perdurou por oito anos, desde que sua mãe faleceu. E neste

período, ele passou por outras perdas de vínculos, de lar, de família, se vendo sozinho. Já

a segunda, trouxe o significado do amor, aliado a dor e ao sofrimento, associando a um

sentimento negativo de fraqueza e, assim, o desejo de não amar.

Levando em consideração que Guru viveu pouco tempo com a sua família depois

da perda da sua mãe, há 8 anos, e que grande parte deste tempo passou institucionalizado,

cerca de 5 anos no total, como poderia superar a sua dor sem apoio familiar? E na ausência

da família, como superar sem o apoio profissional necessário?

O primeiro contato de Guru com a psicoterapia foi com 9 ou 10 anos e não houve

uma continuidade. Somente com 15 anos, no final do processo de construção do álbum,

foi encaminhado novamente ao acompanhamento psicológico, com a minha

intermediação, junto ao SEPA da UFRN. Outros adolescentes do abrigo já faziam terapia,

mas segundo o adolescente, ele nunca havia sido direcionado.

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As instituições de acolhimento possuem uma equipe interdisciplinar, mas que não

conseguem dar conta de acolher os sofrimentos singulares de cada abrigado. Além disso,

o acesso aos serviços de escuta psicológica é limitado. Ao mesmo tempo, a equipe tem

dificuldade de identificar as demandas de sofrimento psíquico. Mas quando se consegue

ultrapassar tudo isso, muitos profissionais não demonstram ser hábeis para ouvir.

Na atividade Minhas saudades, Guru exprimiu: “Minha mãe era tudo o que eu

tinha”, demonstrando, novamente, uma grande tristeza e sentimento de vazio. Disse sentir

muita falta dela e de ter uma casa. Ela pareceu ter sido a sua única referência, sua única

base de sustentação. Afinal, além de ser quem o gerou, era a pessoa com quem mais se

vinculou e mais conviveu de sua família. Eles passavam a maior parte do tempo juntos.

Guru só conviveu com seu pai nos primeiros anos de vida, antes da separação de

seus genitores, e depois “Não tenho mais contato”. Falou pouco dele nos nossos

encontros, assim como de seus irmãos. Na atividade Meus irmãos, falou brevemente de

quatro deles, filhos de pai e mãe. Forneceu informações sobre cada um de forma objetiva

e por ordem de proximidade. Disse que, no geral “Gosto de todos, pois são legais”.

Segundo Guru, seu irmão mais próximo tinha 21 anos, era casado e tinha uma filha.

Outro, tinha 18 anos e também passou a morar com a tia depois do falecimento da mãe,

mas não entendi se este continuou residindo com a tia. Ele não soube dizer a idade de sua

única irmã, mas pareceu ser a mais velha dos irmãos. Acrescentou que ela morava

sozinha. Seu irmão caçula morava com seu pai e não tem contato. Afirmou possuir irmãos

de parte de pai, mas não conhece todos e os que conheceu, não tem proximidade. Pude

entender, que a maioria de seus familiares parecia residir no bairro de Felipe Camarão,

na época em que ele morava com a mãe. Acredito que o adolescente os avistava na

comunidade, inclusive seu pai e parentes paternos, porque depois da separação Guru

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menciona que seu pai casou de novo, ficando com seu irmão caçula. Aparentemente, o

adolescente não possuía relacionamento com estes.

Em Minha rotina, Guru preferiu desenhar como são suas manhãs, tardes e noites.

Disse: “A rotina é sempre igual”. Nesse dia, falou de suas atividades de segunda à sexta,

não relatando sobre os finais de semana. Retratou que na maioria de suas manhãs, ele vai

ao CAIC (Centro de Atenção Integrada à Criança)5 para jogar futsal e afirmou: “gosto de

jogar bola e tem uns meninos legais lá”. Perguntei se ele havia feito amigos nesta

instituição e respondeu que não.

De segunda à sexta, pela tarde, Guru vai para a escola, afirmou: “Não gosto de lá,

nem dos alunos, nem dos professores...lá não tenho amigos”. Sobre a sua frequência,

disse: “não vou todo dia”. Fica clara a sua desmotivação para estudar. A ausência de

amigos na escola, colabora para se tornar, para Guru, um espaço desinteressante,

possibilitando a inconstância na frequência escolar. Outro ponto importante sobre seu

desinteresse acredito que tem relação com a afirmação: “na escola, quando lembro dela

[mãe], bagunço na sala para esquecer” (Minhas saudades). Devido ao seu luto mal

elaborado, Guru tinha dificuldade de se concentrar na escola, se ocupando da bagunça

para não lembrar de sua dor. Consequentemente, essa dificuldade influenciava em seu

rendimento escolar.

Durante a noite, brinca de algum tipo de jogo, gosta de jogar dominó com uma

das educadoras sociais, também joga com outros educadores. Essa atividade foi realizada

na metade dos nossos encontros. Até este momento, ele não contou se jogava com outro

adolescente da casa. Suponho que não, pois em todos os dias até este encontro, eu o via

5 O CAIC é um equipamento público que oferece atividades pedagógicas e esportivas à crianças e

adolescentes.

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mais sozinho assistindo TV, ou no quarto. Quando havia adolescentes jogando em grupo,

algumas vezes, presenciei Guru atrapalhando as brincadeiras dos demais e estes

reclamando e o xingando.

Percebi que Guru se sentia excluído pelos outros adolescentes, mas ele também

parecia não saber se incluir e buscava se isolar, não somente no abrigo, mas em outros

espaços. Demonstrou não possuir amigos no abrigo, nem no Caic, nem na escola. Como

não se sentir sozinho?

O único espaço que frequentava, no momento da atividade que foi elogiado, foi a

o CAIC, sobre a escola e o abrigo ele não tinha vontade de permanecer.

A falta de relacionamento com as pessoas do abrigo, acaba tornando o ambiente

menos incômodo e familiar, menos acolhedor e, assim, vem o anseio de saída, como ele

mesmo disse nos primeiros encontros: “Quero que alguém me tire daqui”. Esta afirmação

me fez pensar que ele não queria sair por si próprio, como já havia feito no Aldeias.

Queria ser tirado de lá por alguém, para um outro lugar que o abrigasse com afeto e que

pudesse chamar de casa.

Na maior parte dos encontros, principalmente nos iniciais, observei uma visão de

baixa autoestima e vergonha de si mesmo, no que diz respeito a se sentir um menino

chato, trapaceiro, que fazia e pensava coisas erradas, e “incapaz” nos estudos. Mesmo ele

morando no abrigo, e não tendo as mesmas condutas de antes, trazia para o hoje, a sua

imagem do passado de “menino mau”, como algo intrínseco ao seu “caráter”. Parecia

haver sentimento de culpa e remorso que permitia uma “desadmiração” de si.

Como mencionamos anteriormente, todas as oficinas favoreciam algum nível de

expressão de como os adolescentes se viam. No primeiro encontro de Guru, ele escolheu

fazer a atividade Como eu sou e se descreveu como: “lento, tímido, pequeno, triste,

sonhador, alegre, frágil, feliz, barulhento, bagunceiro e carinhoso”. Ao lado de cada

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palavra, ele colocou um ponto de interrogação “entre parênteses” e adesivos que

correspondiam a tais sentimentos. Quando o questionei sobre cada característica e sobre

as interrogações, ele não quis explicar, parecia envergonhado, com um sorriso discreto

no rosto. Como Guru não se dispôs a dar uma explicação, uma possibilidade de

entendimento a partir da minha compreensão foi: as interrogações pareceram representar

as inconstâncias das suas respostas emocionais, de como seus sentimentos podem variar

de acordo com o contexto. Nessa perspectiva, ele sinaliza que os sentimentos em sua vida

adquirem uma dinamicidade em função das rupturas de vínculos, das perdas e das

decepções.

A autoimagem de Guru, na oficina do Autorretrato, foi representada por um

desenho de si mesmo. Minha primeira impressão ao olhar o desenho concluído foi o

retrato de sofrimento. Perguntei-lhe o que significavam os tracejados fortes que ele havia

desenhado em seu pé e tórax. Respondeu: “São machucados de quedas num jogo de

futebol com meu irmão”, entretanto seu irmão não estava com ele ali. Guru, no desenho,

estava sozinho, tinha um aspecto de assustado e as feridas não pareciam ser,

simplesmente, arranhões do futebol, pareciam para mim ser feridas no peito, na alma. Ao

ser questionado como ele se sentia no desenho, respondeu: “Um menino triste e sozinho”.

Assim o desenho parece ser uma expressão fiel da dor, feridas e angústia da alma.

Compreendo, com isso, que ele traz em seu corpo as marcas de uma vulnerabilidade que

nunca se encerrou, de um luto que nunca pôde ser elaborado, de um lar que nunca foi

consolidado, e de uma família que nunca pôde ser retomada.

No final do processo de construção do álbum, em Autorretrato sobre antes,

durante e depois do abrigo se desenhou, na fase durante o abrigamento, jogando futebol.

Contou: “Às vezes, nos sábados, Corujão acompanha a gente num campo próximo daqui

[Unidade III] pra jogar futebol (...) é legal”. Pareceu ser uma prática recente naquele

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momento. Sua autoimagem foi retratada de maneira diferente da sua percepção no início

das oficinas. Dessa vez, se desenhou sem aspecto de sofrimento, sem ferimentos, e não

estava sozinho porque falou do momento do desenho, jogando com outras pessoas do

abrigo. Com isso, uma nova imagem de si começa a ser construída deste encontro em

diante e outra realidade referente ao seu envolvimento interpessoal, ao comparar este

parágrafo com os anteriores.

No começo das atividades, vimos a ideia de Guru sentir-se sozinho, sem

participação em grupo. E já no final das oficinas, ele não expressou mais o sentimento de

solidão, pelo contrário, falou de momentos de lazer com adolescentes do abrigo. Cheguei

a presenciar, inclusive, ele e outros adolescentes jogando na varanda da unidade, situação

também observada na reta final da construção do álbum. O que isso pode significar? Uma

maior abertura de Guru para amizades? Sim. Guru demonstrou disponibilidade para

experimentar os aspectos positivos do abrigo: relacionamento com outros adolescentes,

construção de referências com adultos (profissionais do abrigo), o lazer e a prática

esportiva.

Sobre a sua vida escolar, Guru contou: “Quando eu era criança gostava muito de

ir à escola [Escola Municipal Djalma Maranhão] (....) antes eu era inteligente e lembrava

de tudo que eu aprendia (...), eu era muito bom em matemática” (Minha rotina). Ele

abaixa a cabeça entristecido e fala: “Não lembro mais das coisas como antes”. A ausência

da frequência escolar, gerou em nele, o esquecimento dos conteúdos da matemática e o

fez sentir-se burro e frustrado. Umas das minhas intervenções foi dedicada a fazer contas

de matemática, por sugestão dele. Essa intervenção lhe trouxe grande contentamento. Até

mais do que seu eu tivesse trabalhado com uma técnica vivencial em psicologia.

Guru afirmou sentir saudade da escola citada, porque foi onde estudou em sua

infância, além disso, falou: “Sinto falta de Felipe camarão, a gente [ele e sua mãe] tinha

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uma casa lá” (Minhas saudades). O adolescente sentia saudade de espaços em sua

comunidade de Felipe Camarão, como a escola e sua casa.

No final dos encontros, uma outra possibilidade de ser, começou a emergir para

Guru. Embora eu tenha pontuado nessa sessão parte das elaborações, discutirei no item

Costurando as gravuras, com mais detalhes.

Depois do Abrigo

Neste tópico explorei os horizontes de futuro de Guru, evidenciando tanto as

expectativas positivas, quanto negativas, que oscila entre a dureza da realidade e a

esperança de um porvir feliz.

Na primeira oficina, a afirmação do adolescente sobre aspirações futuras foi:

“Minha frase: eu quero viver mais...” (escrita em Carteira de Identidade). Não quis

conversar mais sobre o assunto. Durante esta atividade, falou sobre sofrimento, o que me

fez refletir que a sua vontade era colocar um fim em sua dor e aflição.

Na atividade sobre sonhos, Guru falou: “Quando eu crescer vou ser... policial e

professor de matemática”. Questionei o motivo destas profissões e ele respondeu que

desejava ser policial como uma profissão para fazer a coisa certa, justiça. Já a intenção

de ser professor, dizia respeito à sua admiração e prazer pela matemática.

Fiquei refletindo sobre as suas motivações da escolha das profissões de policial e

professor de matemática. As duas representações de figuras que ele deseja se tornar. O

policial associado ao agir com autoridade, com justiça e ser digno de respeito. A

matemática é um assunto que lhe interessa muito e que lhe motivava frequentar o espaço

escolar. Tornar-se professor de matemática lhe seria a garantia da obtenção da admiração,

aprovação e reconhecimento, e aprovação das outras pessoas, além de ser um tipo de

atuação que lhe certifica um término bem-sucedido dos estudos.

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Sonhar não significa ter uma visão romântica do futuro. Guru tinha uma visão

objetiva do porvir. Em Minha vida antes, durante e depois do abrigo, o adolescente se

desenhou com material para reciclagem a ser pesado na balança (desenhado ao lado), em

um lugar onde ele poderia vender esses materiais à troca de dinheiro. Era assim que ele

conseguia dinheiro para jogar videogame, e agora, no momento da atividade, se desenhou

voltando para tal situação. Ao lado da balança, desenhou uma “casa” e nela escreveu 157.

Questionei-lhe o significado deste número. Segundo ele, refere-se à um código de assalto.

Com isso, pensei na possibilidade dessa casa ser um lugar onde se vende materiais

roubados, não só recicláveis. Não significa, necessariamente, que ele retornaria a assaltar,

embora o desenho expresse que aquela seria uma possibilidade. Em momento posterior,

numa conversa sobre esta mesma numeração, afirmou não querer voltar a essa prática. A

ideia concreta de Guru sobre o seu futuro talvez o fizesse pensar que depois do abrigo,

ele terá que “se virar”, como sempre “se virou”.

A perspectiva amarga de Guru foi observada, tanto em Minha vida antes, durante

e depois do abrigo, comentada acima, quanto em Auto-retrato sobre antes, durante e

depois do abrigo, na imagem sobre sua vida posterior à institucionalização. Nesta

segunda atividade, ele retratou uma cena de retorno à moradia na rua, catando material

de reciclagem. Perguntei-lhe se havia outra possibilidade do que pudesse fazer ou lugar

onde poderia morar, e ele balançou a cabeça sinalizando um “não”. Sua expressão foi de

naturalidade e tranquilidade, demonstrando uma aceitação do fato de não ser adotado e

uma noção de sua realidade pós-abrigo, tendo em vista, que teria somente mais três anos

na unidade.

Ao me deparar com este depoimento, pensei: “E os sonhos de Guru...são apagados

pela realidade dura que ele vivenciou antes do abrigamento? ”. Esse questionamento

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surge porque não houve nenhum desenho representando a vida como professor de

matemática ou como policial.

Os sonhos de ser policial e professor demandam muito investimento. Com base

no que Guru apontou sobre sua situação pós-abrigo, podemos refletir por dois caminhos

que ele esboça a partir de uma perspectiva mais objetiva e pessimista. O primeiro, se

refere a situação de Guru logo que sair do abrigo, com 18 anos, na qual o contexto de rua

seria o mais provável, e seus anseios profissionais poderiam ou não acontecer mais tarde,

como algo remoto. O segundo, diz respeito ao entendimento de Guru que a rua é o lugar

que ele permanecerá, e os seus sonhos significariam uma idealização, que embora

desejada, não se concretizará.

Na atividade, Carta para mim no futuro, Guru disse: “Estude para ser alguém na

vida. Seja uma pessoa boa, que não faça mal a ninguém e ajude as pessoas. Corra atrás

dos seus sonhos, de ser jogador de futebol (...) jogador de videogame (...)”. Nessa

afirmação, Guru expõe o desejo por uma vida digna, honesta e “correta” para ele, como

estudar, trabalhar e ajudar outras pessoas. Os sonhos que foram expostos nessa fala se

voltavam mais para o esporte e para o lazer. É interessante perceber que o interesse por

se tornar jogador de futebol pode ter relação com o futsal que ele tem praticado no CAIC.

A pretensão de ser jogador de videogame tem ligação com o que sempre fez quando

criança, além de ser uma atividade que ele se considera eficiente. Estas opções podem ter

se tornado, em comparação com o ser policial e professor de matemática, mais coerentes

e próximas da atual realidade que ele vive. Assim, ele se sente mais capaz para sonhar, já

que essas possibilidades estão mais próximas. Desse modo, consegue enxergar metas

alcançáveis em função dessas vivências, seja informalmente antes do abrigamento, ou,

institucionalmente, durante o abrigamento.

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Tais sonhos representam, não um desejo de vida perfeita, mas a esperança de um

futuro melhor. Guru disse: “...quem sabe um dia eu consiga trabalhar aqui para ajudar e

nunca esquecer. Quando você tiver uma família, venha mostrar que mudou para melhor,

com um trabalho, uma casa, um estudo e fazendo coisas boas...” (atividade Carta para

mim no futuro). Futuro no qual abrangem conquistas relativas a uma vida digna, simples

e honesta do ponto de vista do olhar social. Sua fala traz a necessidade de mostrar à Casa

III que é possível mudar, ser melhor, bem como, a necessidade de reconhecer e ter

consideração pelo lugar que o acolheu. Tal necessidade fica evidente na parte em que diz

se interessar ajudar a unidade com o seu trabalho.

Nesta mesma carta, Guru afirma: “...espero que você consiga ter uma família...”.

Ele se referia a casar-se e ter filhos, pois logo depois que concluímos a carta, me falou:

“Meu sonho é ser pai, ter um casal ou um bucado de filhos”. Perguntei se ele gostaria de

ter um time de futebol. Respondeu: “Só se for de meninas [risos]”. Tal sonho sobre ele

constituir a própria família foi relatado no último encontro.

Antes disso, no começo dos nossos encontros, suas possibilidades de constituição

familiar depois do abrigamento eram focadas na adoção, como nesta afirmação: “Um dia

vou conseguir...ter uma família” (dita em Sonhos). Nesse momento, Guru demonstrou o

desejo de ser adotado para ter uma família, pois não tinha. Ele contou que no início da

semana na qual nos encontramos, ele se evadiu. Da escola, foi até a casa da amiga na qual

morou por um tempo e que, na época, prometera adotá-lo. Ele foi para perguntar se

realmente daria certo adotá-lo. Segundo Guru, “Ela me disse que ia ver se dava certo”.

Tive a impressão que ele não estava entusiasmado com aquela resposta. Parece que já

sabia da inviabilidade. A escolha dele de realizar essa atividade no dia do nosso encontro,

pareceu ser importante para relembrar dos seus anseios.

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Ao longo da construção do álbum, Guru foi demonstrando mais segurança no que

queria para sua vida e ampliando suas alternativas do que fazer no pós-abrigo. Sua

autoconfiança e esperança foram renovadas, sem “tirar pé do chão”, afinal conhecia a

realidade que estava fora dos portões da Casa III e sabia que a possibilidade de retornar à

coleta de material não deveria ser descartada.

Com o passar dos encontros, Guru foi se demonstrando mais tranquilo, sereno, e

quando quis realizar a atividade A família que gostaria de ter, desenhou a “casa III”, com

4 garotos (ele mesmo, um dos adolescentes e outros dois sem nome) e afirmou: “quero

que os amigos que vão vir sejam bons para mim e não fumem, que influenciem bem, que

eu possa conversar, como Christopher, sendo que quero mais”. Nesse sentido, a família

pode significar para ele também um grupo de outros adolescentes abrigados que sejam

um bom exemplo, que o ajude a melhorar, e com quem possa contar quando precisar.

Guru pareceu tranquilo ao falar da Casa III como família. Compreendi que ele não

se limitou a adoção como única possibilidade de obter uma família, diferente de sua

concepção inicial. Ele aceitou o fato que é difícil ocorrer adoção em sua idade e,

posteriormente, ampliou a ideia de uma família possível para ele, como amigos de

verdade que se importassem com ele, que o ouvissem e o ajudassem a seguir um bom

caminho.

Na semana posterior, realizou a atividade Adolescentes do abrigo e incluiu parte

dos abrigados e poucos educadores, associando alguns desses como entes familiares.

Guru afirmou que o Christopher “É como um irmão, a gente conversa e brinca”, Corujão

(educador) “É um pai, porque é legal, dá conselho para o bem”. Bolota (educador),

“Como um tio, porque conversa comigo e joga dominó”; e Roque-roque (educador) é

“Como um irmão porque ajuda no que eu pedir e dá conselho para o bem”. Todos esses,

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além de brincar, dedicam tempo com ele e lhe dão incentivo. Citou certos adolescentes

como más influências e que não queria proximidade.

Com o intuito de me esclarecer melhor, Guru explicou a diferença do que

considerava um amigo, amigo-irmão e irmão. O primeiro se refere a pessoa que, às vezes,

brinca; o segundo é o que se pode contar, confiar; e o terceiro se trata do irmão de sangue.

Ficou claro o anseio de Guru pela mudança de seus “maus hábitos” (pensamentos

e sentimentos ruins, vícios, danos a outrem e desobediência) para atitudes que

proporcionem o bem ao próximo. Nesse sentido, percebi que ele deseja ser um bom

exemplo para alguém e reconhece a importância de uma rede de apoio para alcançar esses

objetivos, por esse motivo busca suporte em boas influências. Tal intenção é observada

nas afirmações, anteriormente apresentadas, e também na fala: “...seja uma pessoa boa,

que não faça mal a ninguém e ajude as pessoas...” (atividade, Carta para mim no futuro).

Guru definiu o ser “bom” e ser “ruim” pelo comportamento e pelas escolhas.

Relacionou o primeiro com fazer a coisa certa, obedecer aos educadores e evitar

prejudicar/machucar pessoas. Ele associou o segundo com a prática errada de fumar,

roubar, brigar e bagunçar.

Ele afirmou, ao final da atividade, que não se sentia sozinho lá na casa. Percepção

esta, distinta do seu sentimento no início da construção do scrapbook, pois havia dito que

se sentia sozinho na unidade. Assim, de alguma forma, conseguiu se incluir mais e se

abrir para relacionamentos dentro da unidade. Nesta atividade, ele fez, novamente, a

relação da Casa III com sua família, à medida que vinculou profissionais e adolescentes

com figuras parentais, como pai, tio, irmão. Como explicitado, na semana anterior ele

falou que a família que desejava seria formada por bons amigos no abrigo, mas neste

encontro ele foi mais além, pois enxerga atualmente o abrigo como sua família e não só

formada por bons amigos, mas sim, amigos-irmãos, pai e tios.

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Interessante que, neste momento, ele escolheu somente figuras masculinas como

referências de família na unidade. Guru nunca teve um convívio com o seu pai. Morou

pouco tempo com ele na infância – entendi que mais ou menos os seus 5 primeiros anos

de vida. Mesmo depois do falecimento de sua mãe, não chegou a residir com seu pai, por

motivos que não foram relatados. Então fica clara a falta que ele possui de referência

masculina em sua história.

Até então, Guru não trouxe referência feminina na Casa, nessa atividade, apesar

de ter expressado gostar de algumas profissionais em outros encontros. Não demonstrou

também ter alguma referência feminina fora da unidade. Ele perdeu sua mãe e duas

“quase mães”, tia e amigas que tentou adotá-lo. Estas perdas significaram três separações

da figura feminina em sua vida. Em relação a adoção malsucedida, não voltou a falar de

sua amiga ao final do processo, o que pode demonstrar – juntamente com a ideia de

aceitação da dificuldade de adoção – uma superação da frustração inicial.

Na atividade Carta para mim no futuro, Guru disse: “(...) não se esqueça de Dona

Can. Gosto muito dela porque foi como uma mãe que ajudou a mim e a todos”. Nesse

comentário fica evidente que a coordenadora da unidade era uma figura de estima que

demonstrava cuidado e preocupação, mesmo com as reclamações que ele tinha em relação

a ela.

Sua mãe, figura maior de referência de amor, continua para ele como pessoa

insubstituível, mas a representação do papel materno foi se tornando possível através de

outras referências de cuidado, inclusive por uma profissional do abrigo.

Ele se evadiu na semana desta atividade e passou um tempo com seus irmãos em

Felipe Camarão. Ao final da atividade, falou: “eu tenho várias famílias”. Depois

continuou “Cidade de Deus, Felipe Camarão, rua da fé, morro do careca porque tenho

amigos, irmãos e pessoas da família lá”. O que Guru trouxe com estas narrativas foi muito

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significativo, pois se trata de um discurso diferente do que ele dizia nos nossos encontros

iniciais. Antes dizia que queria uma família, uma casa, agora diz que tem várias famílias,

em vários lugares, ou seja, várias casas.

Ficou clara a relação dos efeitos de tudo que fora relatado anteriormente com o

processo de escuta no Scrapbook.

No início das atividades do álbum, Guru demonstrou-se muito desanimado e em

sofrimento, depois ele se sentiu esperançoso em ser adotado e em uma de suas evasões,

resolveu visitar a amiga a qual prometera tentar lhe adotar, com o intuito de perguntar se

realmente iria dar certo a adoção. Ela respondeu que iria ver, ele voltou para a unidade,

conversou com a coordenadora e novamente recebeu a notícia da impossibilidade da

adoção. Parece-me que ao falar sobre suas aspirações, sua esperança na adoção foi

renovada, mas novamente se frustrou em lidar com tal realidade. Com o passar dos

encontros, foi mudando seu semblante para o de tranquilidade. Teve o interesse em

começar uma psicoterapia e foi reconhecendo aspectos positivos da unidade.

Na atividade do Auto-retrato antes, durante e depois do abrigo, ele se desenhou

nessas três fases. Na primeira coluna, se desenhou começando o dia catando lixo e

juntando material. Falou: “Eu fazia isso com mãe e meu irmão desde 1 ano”. Fez tal

afirmação com muita naturalidade, não como algo difícil para ele. No segundo momento,

quando foi institucionalizado, se desenhou jogando bola. Dentro da unidade, às vezes, os

adolescentes jogam bola e de vez em quando, aos sábados, um educador social os

acompanham para jogar futebol num campo próximo a unidade. No abrigo, ele teve a

oportunidade de entrar no CAIC para jogar futsal, no qual gosta muito. Ele participa 2

dias na semana. No terceiro momento, se desenhou morando na rua, catando material de

reciclagem, ou seja, a mesma realidade de antes do abrigo. Questionei se não havia mais

alguma coisa que poderia fazer, ou lugar onde poderia estar, e ele balançou a cabeça com

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um “não”. A sua expressão dizia que era algo natural e esperado para ele. Nesse momento,

lembrei dos sonhos que ele havia descrito em atividade anterior. Pareceu-me nesse dia,

que sonhos para Guru significava algo que ele desejava, mas que não iria acontecer, algo

que é muito difícil de se concretizar. Nessa mesma atividade dos sonhos, ele colocou que

gostaria de ser adotado e não trouxe mais essa possibilidade no final do processo, assim

como não trouxe seus anseios de ser tornar professor de matemática e policial.

A adoção não foi possível até aquele momento, ele se frustrou e depois aceitou

que em sua idade era difícil. Também faria sentido aceitar a realidade de que ao sair da

unidade não daria certo essas pretensões profissionais.

O fato de Guru passar a solicitar os exercícios, diz de um reencontro com o que

lhe dava prazer, pois além de ser algo divertido para ele, era também uma forma de provar

para si mesmo que nisso ele era bom. Assim, compreendi que se renovava o desejo de

estudar e enxergar que ele era capaz. No final do processo, soube por uma das educadoras

que ele passou a ir à escola com mais frequência.

Compreendi que Guru também estava passando por um processo de

ressignificação6 em relação às suas ambições profissionais depois que saísse do abrigo,

pois vieram à tona os projetos de se tornar jogador de futebol e jogador de videogame, e

saiu de cena a crença de que voltaria a vida de catar material na rua.

Para finalizar, a sua narrativa mais significativa que abrange os conteúdos

descritos acima se refere a Carta que ele escreveu para si mesmo no futuro, que diz:

Estude para ser alguém na vida. Seja uma pessoa boa, que

não faça mal a ninguém e ajude as pessoas. Corra atrás dos

seus sonhos, de ser jogador de futebol, ser lutador, jogador

de videogame. Espero que você consiga ter uma família.

Tenha muitos amigos. Nunca se esqueça da casa de

passagem porque lá me deram muitos conselhos bons e não

se esqueça de Dona Can. Gosto muito dela porque foi como

6 A noção de ressignificação que trabalhei foi de uma maneira próxima ao modo como Cyrulnik

(2009) discute resiliência. Isto porque não foi possível aprofundar na obra dele.

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uma mãe que ajudou a mim e a todos. Sempre venha visitar

aqui porque queria ficar mais tempo e só poderei ficar mais

3 anos. Quem sabe um dia eu consiga trabalhar aqui para

ajudar e nunca esquecer. Quando você tiver uma família,

venha mostrar que mudou para melhor, com um trabalho,

uma casa, um estudo e fazendo coisas boas. Nunca se

esqueça de Lara.

Em resumo, as compreensões que tive sobre os sentidos de Guru neste texto

tiveram relação com a esperança que ele tem por uma vida melhor e de se tornar alguém

“melhor”. Esta esperança já reflete um grande passo do adolescente na construção de

novos significados para suas aspirações existenciais. No início dos nossos encontros,

Guru se demonstrava totalmente inseguro e sem fé. Essa narrativa expõe a gratidão que

sente pelas pessoas que o ajudou e o interesse de retribuição, no sentido de provar que

todo suporte valeu a pena, pelo o que ele acredita que conquistará.

O interesse por retribuição por ambos demonstra o quanto foi importante para eles

todo o cuidado, até mesmo por pessoas que tinham uma postura rígida na unidade, como

Dona Can, a coordenadora da Casa III. Eles agradeceram por pessoas que o ouviram,

como eu, o que foi significativo ser incluída como parte de suas histórias de figura

importante.

4.1.2. As aventuras de Tigrão

Neste espaço, inicialmente, pretendo apresentar a história de Tigrão em

articulação com suas falas durante o processo de construção do álbum.

O adolescente é órfão de pai e mãe e tem 6 irmãos, mas um deles Tigrão não

considera como irmão porque “...é filho somente do meu pai e não da minha mãe”. Dentre

os cinco irmãos que considera, ele é o quarto por ordem de nascimento. As duas irmãs

mais velhas são adultas, a terceira é adolescente, o quarto é o Tigrão, como dito, e os dois

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irmãos mais novos são: Pooh (outro adolescente da pesquisa) e Leitão7 (irmã caçula,

criança). Além de Tigrão e Pooh, a irmã adolescente viveu em unidade de acolhimento,

evadindo-se posteriormente. Tigrão contou: “Os irmãos que tive mais aproximação foi

minha irmã mais velha porque gostava muito de conversar com ela e Pooh, porque sempre

fomos muito unidos”.

Tigrão, desde os 11 anos vive em contexto de abrigo. Passou por 3 instituições,

tais quais: o Aldeias, a Unidade de acolhimento II e posteriormente, a Unidade de

Acolhimento III.

Nos primeiros encontros Tigrão aparentava ser reservado, tímido, com dificuldade

para falar sobre si mesmo. Geralmente, demorava um tempo pensando sobre seus

sentimentos antes de falar. Contudo, para ele, ainda era mais fácil falar como se sentia,

do que de sua história antes do abrigo. Preferia desenhar, pintar e colar, era a maneira que

ele “se inscrevia” (modo como se expressava). Com o passar dos encontros, Tigrão foi

sendo mais espontâneo e se sentindo mais à vontade para narrar de si, verbalmente,

embora ainda falasse pouco. Disse uma vez: “Não sou muito de falar”. Dessa maneira,

fui percebendo a necessidade de me ater à linguagem que ele tinha mais facilidade de

expressar, que foram os desenhos e escritas no Scrapbook.

Nas atividades, de um modo geral, as falas de Tigrão se remetiam mais a

sentimentos, fatos, pensamentos, gostos e anseios da experiência de vida atual. Escolheu

realizar, primeiramente, as atividades relacionadas ao presente, posteriormente, sobre sua

vida pós-abrigo e, do meio para o final dos nossos encontros, quis fazer as propostas

relacionadas à vida antes do abrigo. A ordem das atividades escolhidas para serem

realizadas foram: Carteira de identidade; As cinco coisas que eu mais gosto e menos

7 Esta irmã foi incluída com o nome de personagem por ter sido mencionada em alguns momentos

por Tigrão e Pooh. Pooh lhe identificou como Leitão em uma das atividades. Entretanto, ela não mora em

abrigo.

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gosto; Meus sentimentos; Minha rotina; Atividade espontânea; Músicas, filmes e livros

prediletos; Minhas saudades; Quem sou eu; Sonhos; Desenho sobre antes do abrigo;

Minha Família; Auto-retrato sobre Antes, durante e depois do abrigo; A família que eu

gostaria de ter; Quem são as crianças do abrigo; Carta para mim no futuro; As pessoas

mais importantes da minha vida.

Nos itens a seguir, não irei trazer as narrativas e expressões de Tigrão por ordem

de atividades realizadas por ele, mas sim, de acordo com suas experiências antes, durante

e posterior ao abrigo.

Vida antes do abrigamento

Todas as atividades que se remetiam em fazer Tigrão contar sobre suas

experiências antes do abrigo, ele relutava em falar. Do meio para o final dos encontros,

deu algumas pinceladas de sua história e essas pinceladas foram aumentando no final. De

toda forma, o que ele trouxe foi bastante significativo e proporcionou algumas

compreensões interessantes.

Houve momentos pontuais que Tigrão falou de seu passado antes da

institucionalização, como nas atividades: Minha Família, Auto-retrato antes, durante e

depois do abrigo, Minha vida antes do abrigo.

Em Minha família, Tigrão desenhou seus pais e irmãos todos de mãos dadas.

Disse: “Na rua a gente andava assim, tudo de mão dada, um do lado do outro...a gente era

unido, mas a gente brigava muito, até de soco”, deu risadas. “Às vezes, eu, meus irmãos

e meu pai brincava de se bater com ursinhos”.

Pedi para Tigrão explicar mais sobre sua família, sobre como era cada um dos

entes familiares. Sobre seu pai disse, pausadamente: “Meu pai era brincalhão, carinhoso,

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rígido e batia na nossa mão quando a gente fazia coisa errada, e também colocava nós de

castigo”, “Minha mãe cuidava da casa, cozinhava e protegia muito a gente, muitas das

vezes quando nós fazia algo de errado, ela colocava a culpa nela pra gente não apanhar

do pai”. O adolescente falou com um olhar saudoso de seus pais, dando a impressão de

que tais referências foram positivas no tempo em que conviveram. Noutros momentos,

também demonstrou ter um grande sentimento de amor, respeito e admiração por seus

pais. Momentos esses, que serão compartilhados no item Vida em Abrigo. Tigrão

preservou, como sua família, a imagem de seus pais e irmãos de mãos dadas, ao lado da

casa onde moravam, isto é, a mesma configuração de sua família de origem, anterior ao

óbito de seus pais. Esse arranjo parecia que lhe dava força e segurança para lidar com seu

contexto de institucionalização, cujo a maioria dos casos envolvem famílias que não

supriram o papel de cuidado com seus filhos. Para Tigrão, seus pais não foram ausentes

ou negligentes, eles partiram, mas continuam presentes em suas lembranças. O abrigo

demonstrou ser para ele um lugar provisório enquanto não é adotado ou desligado.

A proposta da atividade, em questão, visava representar a família do adolescente

no presente. Tigrão retratou a sua família antes de seus pais falecerem. Esse fato dá início

a dispersão da família, e como citei anteriormente, Tigrão, Pooh e a irmã adolescente

passaram pela experiência de abrigamento, enquanto a irmã caçula foi morar com os tios

e as irmãs mais velhas eram adultas. Por um lado, penso que Tigrão traz, no desenho,

uma sensação nostálgica, o retrato de sua família no passado como sua referência. De

alguma maneira, ele a conserva nesse sentido, mas entende sua realidade e está aberto

para a adoção. Por outro lado, penso que talvez ele não queira pensar na configuração

atual e, então, representa a imagem de sua família congelada, inseparável diante das

circunstâncias ocorridas. Nela, seus pais continuam vivos e seus irmãos unidos, ao lado

da casa onde moravam.

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Na atividade Autorretrato, Tigrão se desenhou no período anterior à

institucionalização e disse: “Eu parecia um menino normal” e continuou: “Eu era um

menino magrelo, que só vivia de cabelo curto, cortado na máquina porque meu pai

mandava assim”. Nesse período, ele afirmou: “Eu aprendi a jogar futebol, mas não

gostava tanto”, “Eu e Pooh se montava com coisas das nossas irmãs, escondido do pai”,

falou rindo, relembrando o quanto se divertiam quando brincavam de se vestir de mulher.

Disse ainda: “ah! A gente gostava de brincar de boneca também”. Entretanto, o verbo

“parecer” me fez pensar que Tigrão se via, fisicamente, semelhante a um garoto, mas ele

não se sentia um menino “normal”, provavelmente porque gostava de brincar e se vestir

como menina.

Em Minha vida antes do abrigo, Tigrão, na mesma folha do Scrapbook, fez um

desenho de uma praia e escreveu: “Eu antes do Abrigo eu gostava de ir para o PETI8, lá

eu fazia flauta dose, letramento e dança. Eu gostava muito de ir para a praia de carroça

com minha família”. Nessas frases, ele destacou dois momentos importantes em sua

vivência antes da institucionalização.

Um dos momentos destacados foi a experiência no PETI, instituição na qual teve

a oportunidade de realizar oficinas com instrumento musical e dança, além de reforço no

aperfeiçoamento da leitura e escrita. Posteriormente, na Casa III, ele teve a oportunidade

de realizar atividades no CAIC e escolheu fazer a oficina de flauta dose. Já a dança era

presente na rotina de Tigrão na unidade. Presenciei vários momentos, no abrigo, em que

dançava animado. Ele me disse “Não tenho vergonha de dançar”. Um de seus sonhos era

ganhar uma flauta transversal e outro ser professor de Português. Tal escolha pela

8 PETI (Programa de Erradicação do Trabalho Infantil) é um programa do Governo Federal que

tem como objetivo retirar crianças e adolescentes de 7 a 15 anos de idade do trabalho considerado perigoso,

penoso, insalubre ou degradante. Possibilita o acesso, a continuidade e o bom desempenho delas na escola,

além de incentivar a ampliação de conhecimentos por meio de atividades culturais, esportivas, artísticas e

de lazer no horário complementar ao da escola (Brasil, 2004).

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profissão de professor talvez tenha relação com sua experiência no PETI com as aulas de

letramento.

O outro momento enfatizado diz respeito ao estilo de vida simples, aos programas

de lazer que eram coletivos, que envolvia toda a família, eram divertidos e não se

configurava como uma obrigação familiar.

Vida nos abrigos

Este item discute as experiências de institucionalização de Tigrão. Começarei

trazendo uma síntese da trajetória de abrigos que Tigrão viveu e depois apresentarei os

conteúdos das atividades que envolviam: sua auto-imagem, sentimentos, saudades, ideia

de família.

A primeira abordagem de Tigrão às suas vivências em instituições de acolhimento

foi em Minha vida durante o abrigo. O adolescente mesclou essa atividade com outra:

Como cheguei no abrigo, em uma só atividade. Então, ele desenhou três casas e, ao lado,

escreveu como foi o início da sua experiência em cada uma delas. Sobre o Aldeias,

destacou: “Quando fui para lá, Pooh, Bolota e eu, mim adaptei muito rápido”. Já na casa

II, pontuou: “Quando eu cheguei lá mim adaptei muito rápido porque meus irmãos Pooh

e Bolota estavam”. Escreveu da Casa III, o seguinte: “Quando eu cheguei aqui minha

irmã já tava aqui e tinha mais amigos”. O adolescente resumiu suas experiências nesses

abrigos, compartilhando como foi sua adequação em tais instituições. O que facilitou esta

nova experiência foi a presença dos seus irmãos.

No final da construção do Scrapbook, em Adolescentes do abrigo, Tigrão contou

que quando seus pais morreram, ele, Pooh, Kessie e Leitão, foram encaminhados,

primeiramente, ao Aldeias. Posteriormente, houve a tentativa de reintegração destes em

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família extensa, com a tia materna, mas no fim, somente Leitão permaneceu na casa da

tia.

Em um dos finais de semana, Tigrão e Pooh saíram da casa da tia para se encontrar

com as irmãs que estavam na “antiga casa”, residência de seus pais. Estava chovendo e

eles estavam se divertindo, tomando banho de bica e de chuva. Naquele momento, o

Conselho Tutelar chegou e “Minhas irmãs fugiram”. Tigrão decidiu ficar para ver o que

eles queriam. “O Conselho Tutelar levou a gente para Casa II”. Ao se referir “a gente”,

incluiu Pooh que também estava naquele momento. Leitão estava na casa dos tios. Ao

saberem do ocorrido, os tios foram buscá-los. Depois que voltaram para a casa dos tios,

Tigrão conta, com indignação: “Teve um dia que meu tio bebeu e começou a me

empurrar, eu pedi para ele parar, daí ele me deu um murro no meu ombro. Daí eu peguei

uma peixeira para furar ele, daí minha tia chegou na hora e me impediu”. Segundo o

adolescente, depois disso, sua tia resolveu “devolver” ele e Pooh e foram levados à Casa

II. Tigrão disse: “Ele bebia muito...era um drogado”.

Posteriormente, seus tios quiserem obter novamente a guarda dos irmãos, Pooh e

Tigrão, mas “A gente não quis”, Tigrão respondeu aos mesmos. Ele foi enfático: “Não

sou boneco para ficar sendo jogado de lá pra cá”. Entendi, com isso, que os irmãos foram

ouvidos pelos profissionais da instituição e permaneceram lá.

Compreendi que foi inviável a tentativa de tutela de Kessie pela tia, permanecendo

acolhida, e depois, sendo transferida para Unidade III. Enquanto Leitão permaneceu com

sua tia, Pooh e Tigrão foram direcionados à Unidade II. Nesse período, Tigrão já era

considerando adolescente e Pooh ainda criança. Kessie estava acolhida na Unidade III,

então, a fim de manter unidos os três irmãos, Tigrão e Pooh foram encaminhados à Casa

III.

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Kessie estava na Unidade III naquele período. Ele e Pooh ficaram na Casa II e

quando Tigrão completou 12 anos, os dois foram transferidos para Casa III. A

convivência entre esses três irmãos foi curta. Sua irmã evadiu-se e não retornou. Em um

dos encontros, Tigrão disse que tal irmã passou um tempo morando na casa dos pais,

depois que saiu do abrigo, mas que naquele momento ela estava vivendo com um

namorado bem mais velho que ela. Um dia, Tigrão e Pooh fugiram e foram se encontrar

com sua irmã. Dormiram lá e depois foram à praia juntos. O fato da irmã viver com

alguém mais velho não pareceu estranho para ele. Enquanto conversávamos, ele narrava

sobre esse relacionamento da irmã como sendo algo muito natural, mesmo ela sendo ainda

adolescente.

As duas irmãs mais velhas não foram institucionalizadas porque já eram maiores

de idade. Tigrão não falou mais sobre essas irmãs. Segundo o adolescente, ele e Pooh não

tinham contato frequente com elas. Às vezes as visitavam quando fugiam.

A história dos dois irmãos deixa claro o grande número de separações que eles

vivenciaram, mas é o próprio Tigrão que diz: “Pelo menos tenho o meu irmão comigo”.

Acredito que essa convivência de Tigrão com Pooh ajudou a lidar melhor com o

sofrimento que o luto deixou na vida deles.

É importante ressaltar que da morte dos pais até o final do meu trabalho de campo,

metade do período de institucionalização na vida de Tigrão foi na Casa III. Razão pela

qual, a partir desse momento irei detalhar sobre a percepção dele sobre si mesmo, seus

sentimentos e como vê a sua vida.

Em Carteira de Identidade, atividade na qual possibilitou a inserção de

informações pessoais, como explicado do tópico da dissertação: Técnicas e

procedimentos de Acesso às Narrativas, no item do endereço disse: “Vou colocar o

endereço lá de casa...minha casa é bem perto daqui, perto da torre”. O bairro onde fica

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localizada à Unidade III é o mesmo da casa que morava com sua família. Esse foi mais

um dos indícios que me levou a entender que Tigrão reconhecia essa casa como lar. E o

abrigo como um espaço temporário no qual ele reside enquanto não é adotado ou

enquanto não atinge a maioridade.

Nessa atividade, teve a oportunidade de falar o que gosta ou não que as pessoas

façam com ele. Escreveu: “Detesto quando alguém grita comigo...várias pessoas gritam

comigo”. Escreveu constrangido, em outro item da atividade: “Eu sou uma pessoa

brincalhão, legal, amigo e muito sorridente, malvado, ruim, respondão e malicioso”. Foi

interessante observar como ele se descreveu de maneira objetiva, com “qualidades” e

“defeitos”.

Em As 5 coisas que mais gosto e menos gosto, Tigrão decidiu começar pelo que

menos gostava e escreveu: “Ódio, Parque das Dunas, sardinha, futebol e raiva”. E

comenta: “Ódio e raiva não gosto de sentir porque são ruins”. Sobre o Parque das Dunas,

me contou o que havia ocorrido lá: “Dona Can levou todo mundo pra passear no Parque

das Dunas enquanto a casa era dedetizada. Daí a gente tava se divertindo, eu, Pooh e

outros meninos, sendo que (...) foram [dois adolescentes] inventar de fumar maconha lá,

daí os guardas viram e todo mundo foi expulso do Parque. Foi uma vergonha terrível,

nunca mais quero voltar lá...a gente já sai pouco, quando sai, eles estragam tudo”. Tigrão

falou da experiência com tom de raiva e associou o lugar que é de diversão com

sentimentos aversivos.

Tanto o desgosto com a experiência no Parque das Dunas, como a narrativa sobre

esse episódio relacionado com alguns outros (a sardinha na refeição, o futebol que não

gostava e era a única oportunidade de sair) davam uma forte impressão que havia raiva

em morar na casa III.

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Na fase de campo da pesquisa, não tive conhecimento de outra atividade esportiva

proporcionada pela instituição nos momentos lazer. No campo, próximo à unidade, por

vezes, um dos educadores sociais levavam os meninos interessados para jogar futebol. Os

adolescentes, que não trabalhavam no contraturno da escola, tinham a oportunidade de

praticar outros esportes no CAIC.

Acerca das cinco coisas que Tigrão descreveu mais gostar foram: “Dominó, pai e

mãe, bolos, piscina e amor”. O dominó é um jogo no qual adolescentes e educadores se

divertem juntos, com frequência, na Unidade III. E de todos os itens citados, é o único,

concretamente, que ele acessa constantemente. Sobre o amor, entendi que diz respeito ao

sentimento que ele tem pelos pais e que ainda não foi preenchido por nada que existe na

Casa III. Assim, a maior parte dos seus gostos escritos trouxeram um sabor de saudade e,

possivelmente, um gosto amargo pela ausência de prazeres pequenos, como o bolo, para

proporcionar pequenas compensações quanto ao amor (fraternal, romântico, etc) e uma

nova família que o adotasse.

A atividade Minhas saudades, oportunizou aos adolescentes descreverem o que

sentem falta acerca de alguém, lugar, comida e brinquedo. Tigrão escreveu sobre suas

saudades e explicou: “Sinto falta de brincar de quebra-cabeça porque aqui na Casa III não

tem, mas tinha nas outras casas”, se referia aos outros abrigos; “Saudade de comida como

bolo, brigadeiro e tortas de frango, e das comidas feitas pela minha mãe”; “tenho muita

saudade dos meus pais e da casa que a gente morava”. Tanto nessa atividade, como na

atividade As 5 coisas que mais gosto, Tigrão colocou sua mãe na frente de seu pai. Talvez

signifique a importância da mesma na vida dele enquanto figura de maior cuidado, apoio

e afeto. As saudades do adolescente trouxeram, com as lembranças, os sentimentos de

dor e tristeza visíveis no seu semblante.

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Em Músicas, filmes e livros preferidos, Tigrão pôde compartilhar mais de suas

predileções e o que elas o faziam recordar. Tigrão falou de quatro preferências de

músicas, dois filmes, mas não lembrou de livros que lhe interessou.

Sobre seus filmes prediletos, Tigrão escreveu: “Monster High” e “Pinguins do

Papai”. Não soube dizer que lembranças lhe traziam, mas apresentarei algumas reflexões

que tive sobre esses filmes. A história de Monster High gira em torno de personagens

adolescentes inspirados em monstros lendários e de filmes de terror, em uma escola para

monstros. Seus personagens possuem instintos e aparência de monstros, mas também com

sentimentos “bons” e atitudes heroicas. Trata-se de uma trama que quebra, de uma certa

maneira, o padrão tradicional de personagens e princesas perfeitas. De acordo com as

narrativas de Tigrão, a identificação dele com o desenho Monster High pareceu envolver

questões de gênero e sua auto imagem, a qual, ao mesmo tempo, foi retratada com

“qualidades” e “defeitos”. Já o filme “Pinguins do Papai”, conta a história do

protagonista, que o pai faleceu e deixou pinguins como testamento. Essa situação

oportuniza ao protagonista a reaproximação com os seus filhos e a reflexão de valores

pessoais e princípios familiares. Tal filme, tem a semelhanças com a história de Tigrão,

no que diz respeito ao conteúdo da perda de um pai e na diversão entre pai e filhos. Foi

possível perceber que as preferências de Tigrão tiveram relação com a sua história de

vida, memórias e sentimentos.

Da mesma maneira, as músicas prediletas de Tigrão ressoaram mensagens com

melodias baseadas nas marcas que a vida deixou nele e letras motivacionais, sugerindo

que tendo “fé em Deus”, ele conseguirá realizar seus sonhos. Músicas como: “Advogado

Fiel” (de Bruna Karla), “Na Eternidade” (de Bruna Karla), “Sou Humano” (de Bruna

Karla), “Agora é só vitória” (de Damares). Todas elas do estilo musical gospel. Tigrão

destacou a letra “Na Eternidade”, como a que faz mais lembrar de sua mãe. A letra dessa

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música exprime o que ele sentia, seja a saudade, arrependimento de não ter aproveitado

mais a presença de sua mãe ou demonstrado mais o que sentia por ela. Expressa também

que a mãe partiu porque Deus a acolheu, que as lembranças e lições ficaram, e depois na

eternidade, será possível o reencontro com a mãe falecida. A ênfase de Tigrão, nesta

música, foi significativa porque a mensagem da música lhe trouxe conforto e talvez uma

forma mais leve de aceitar tal partida, trazendo a esperança de se verem novamente, na

eternidade. É válido considerar as letras das demais músicas, pois elas demonstram

mensagens de força, conforto, superação e fé. Revelam sentimentos de dor, aflição e

tristeza, oportunizando ao adolescente expressar o que estava sentindo a partir de seus

versos. Validam a fraqueza e a imperfeição humana, além de incentivar a despreocupação

com julgamentos. Um destaque interessante foi a escolha das músicas relacionadas com

a sua espiritualidade. A confiança de que Deus vai defendê-lo, protegê-lo, bem como,

acolher sua dor. O adolescente usa essas músicas como temas motivacionais para lidar

com as dificuldades concretas da vida. A impressão que temos é que essas músicas

alimentam um sentimento vago de que algum dia as coisas vão melhorar.

Pude observar os diferentes gostos musicais de Tigrão na Unidade III, nos quais

ele se divertia, com o irmão, cantando e dançando, até mesmo com gestos e posições

“obscenas”. Eles pareciam se divertir com tais músicas e riam uns dos outros. Essas,

talvez, também oferecessem ao adolescente força para continuar: ao se divertir, expressar

a sexualidade e extravasar, porque no abrigo dançar é permitido.

Em Sentimentos, Tigrão teve a oportunidade de expressar mais sobre como se

sentia. Ele completou as frases propostas pela atividade da seguinte maneira: Eu fico

alegre quando... “recebo carinho”; Eu fico triste quando... “quando mim insulta”; Eu fico

com raiva quando... “me apelidam”; Eu fico com medo quando...“faço coisas erradas”.

Notei a falta que Tigrão sente de carinho, apoio, respeito e atenção. Elementos estes que

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são destacados por adolescentes independente do contexto de institucionalização. O que

realmente chamou a minha atenção foi o medo que ele dizia ter de fazer “coisas erradas”.

Acredito que o medo de Tigrão tinha relação com a punição do próprio abrigo, como o

registro dos BOs. situação que ele esclareceu na atividade abaixo.

Em Como eu sou, Tigrão retoma a questão do medo ao dar a seguinte explicação:

“(...)dos meus BOs que foi acumulando com minhas desobediências, daí tenho medo de

por causa disso eu ser levado pra o DCA9 e depois CEDUC10 (...) por causa disso tô

tentando se comportar porque aquele menino (...) foi pra o DCA por conta dos BOs que

ele acumulou (...). Não sei quantos BOs eu tenho porque eles não deixam a gente saber”.

As pessoas que Tigrão se refere, são os profissionais da instituição. Essa prática de

registrar BOs de fato acontece. Quando os adolescentes quebram alguma regra, fogem,

brigam uns com os outros, os educadores registram os fatos no livro de ocorrências.

Desconheço como a instituição passou a chamar essas ocorrências de Boletim de

Ocorrência (BO) e como Tigrão entendia que o somatório das ocorrências poderia levar

a penalidades junto a DCA. O termo BO se remete a infrações de crime. Tal terminologia

parece-me inadequada em uma instituição socioeducativa, soando de modo coercitivo e,

portanto, ameaçador. Nesse contexto, o mesmo lugar que proporciona proteção,

proporciona medo.

Na atividade em questão, o adolescente teve a oportunidade de marcar os itens nos

quais tinham relação com suas características pessoais. Além de considerar-se medroso,

destacou que se julga lento “pra escrever”, tímido “pra tudo, menos pra dançar [risos]”,

preguiçoso “pra arrumar meu armário”, sonhador “pois quero me tornar professor de

português”, feliz “porque dou sorrisos sempre e riu por qualquer coisa”, alegre “é a

9 DCA: Delegacia da Criança e do Adolescente. 10 CEDUC: Centro Educacional.

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mesma coisa que feliz”, se vê grande “porque sou alto”, barulhento “porque grito igual

meu irmão, do nada, quando dá vontade [risos]”, bem como, agitado, bagunceiro, e

demarcou que era carinhoso “só um pouco com meu irmão”. Destacou também que se

identifica como triste, mas não quis comentar mais sobre ele esse ponto.

A presença dos elementos triste e alegre, embora duais, pareceram significar, para

Tigrão, duas características que ele encontra em si próprio ao mesmo tempo. O fato dele

sorrir e dar risadas, mas também de sentir tristeza. Assim, uma característica não anula a

outra. Pelo contrário, elas se complementam para se aproximarem das diferentes emoções

que o garoto sente no seu dia-a-dia.

Nesse mesmo encontro, Tigrão quando olhou para a pasta de opções de atividades,

disse, de envergonhado: “Eu não tenho que fazer a atividade da história não né?...porque

não sei que contar”. A atividade que ele se referia era: Uma história que vale a pena

contar, que se referia a qualquer história que considerasse importante para compartilhar.

Respondi que ele só faria as atividades que quisesse, que não lhe seria imposta nenhuma

delas. Explicação esta, dada no primeiro dia e em outros momentos nos quais ele não quis

realizar essa atividade. Toda semana que via esta atividade como opção, olhava para ela

e dizia: “Essa não”. Fiquei intrigada para entender como Tigrão me indagou, mais uma

vez, a necessidade de fazê-la mesmo com meus esclarecimentos anteriores. Talvez o fato

de observar a atividade como opção em todos os encontros, o tenha feito pensar que em

algum momento teria que dar conta. Tive a impressão de que ele sentia a obrigação, em

algum dos nossos encontros, de ter algo a dizer, mas não tinha. Mas é possível também

que ele se sentia incumbido a contar algo importante de si que lembrava, mas que não

gostaria. Dessa forma, pensei que a sua reação poderia ter relação com o hábito de lidar

com perguntas constantes para responder e tarefas obrigatórias nas diferentes instituições

que ele se insere, como a escola e o abrigo, por exemplo. Foi interessante perceber a alívio

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no semblante de Tigrão após a minha resposta naquele dia. O fato poder escolher não

fazer ou não responder algo, pode ter proporcionado sensação de liberdade e autonomia,

e não de pressão e obrigação.

Outra atividade que Tigrão relutou em fazer foi Autorretrato, antes, durante e

depois do abrigo, porém escolheu deixa-la para o final da construção do álbum. Ele

desenhou como se via no presente em Autorretrato durante o abrigo, e explicou

envergonhado: “Hoje sou mais gordinho [risos], um veadinho [risos]”. A narrativa de

Tigrão apontou duas características que ele percebe em si: uma física e outra de gênero.

No entanto, ele não deu peso a qual dessas duas características era mais forte na imagem

de si. Minha percepção é de que a segunda característica tenha um impacto muito mais

estruturador na forma como ele se percebe desde antes do abrigo e que se confirma tanto

no abrigamento quanto na perspectiva de futuro.

Em Minha Rotina, Tigrão explicou como funcionava o seu dia-a-dia, de segunda

a sexta. “Pela manhã faço vôlei e estudo flauta, no CAIC, de segunda até quinta...gosto

muito de lá e estou adorando aprender a tocar flauta...eu já aprendi a tocar uma música,

do filme Titanic...depois vou apresentar com o pessoal do CAIC lá na UFRN”. A flauta

dose foi um instrumento que Tigrão teve contato no PETI e, no tempo institucionalizado,

pôde retomar no CAIC. Ele falou do instrumento com entusiasmo, principalmente quando

disse que iria se apresentar. A meu pedido, ele tocou a música que havia aprendido no

CAIC, mesmo envergonhado. Demonstrou-se alegre com o meu interesse em ouvi-lo.

Sua ida em quatro dias na semana ao CAIC, com o objetivo de inseri-lo em

atividades de arte e esporte, contribuem para sua potencialização enquanto adolescente e

convivência com outras pessoas, sejam profissionais ou alunos. “Pela tarde vou pra

escola, mas não gosto de lá...às vezes não tenho vontade de ir, daí falto”. Enquanto a

presença de Tigrão é constante no CAIC, na escola já deixa a desejar. Em outros

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encontros, me contou sobre suas faltas na escola. Comunicou-me seu interesse em ser

transferido para a Escola Estadual Edgar Barbosa, porque achava que teria mais amigos

lá, já que havia muitos gays como ele. É possível que Tigrão se sentisse desconfortável

na escola pela qual estava matriculado por ser “gay como eu”. Segundo o adolescente,

ele gostava de aprender e de estudar, principalmente português, mas demonstrou-se

desanimado em ir para as aulas porque não tinha amigos e não se sentia à vontade lá.

Sobre sua rotina à noite, comentou: “Me divirto com meus colegas porque aqui tem várias

opções de jogos, daí à noite a maioria está em casa porque só poucos estuda de noite, ou

porque fazem o EJA”.

A inserção de Tigrão em atividades “extras” que contribuíam no seu processo

formativo, não lhe impediam de ter uma relação com a rua voltada para a prostituição.

Sua rotina envolvia dois tipos de saídas da instituição: uma, para atividades programadas

pela Casa III; outra, experiências de fugas que representavam a liberdade almejada,

aventura e atuação remunerada.

Tigrão fugia, com frequência para se prostituir, juntamente com Pooh e outras

adolescentes da Casa III, na frente de um comércio do outro lado do abrigo. Saíam de

madrugada, arrecadavam dinheiro, compravam comida e, depois, saiam para passear, por

exemplo, na praia. Outros adolescentes se evadiram para comprar drogas na rua da

unidade porque lá havia uma “boca de fumo”.

Pooh me contou como funcionavam algumas de suas evasões com seu irmão,

Tigrão, com o intuito de fazerem programa.

Eu, Tigrão [outros adolescentes] se evade juntos, mas antes a gente planeja tudo. Quando a gente vai se evadir, um do grupo

vira a “cafetona” (...)tem a função de liderar o grupo fora da Casa

III. Pra gente decidir quem será a líder, fazemos um rodízio ou

sorteio. Quando a gente sai, todos vão fazer programa, menos eu.

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140

Tigrão com outros adolescentes planejavam suas fugas de maneira organizada e

em grupo, todos com a mesma finalidade, ganhar dinheiro através dos programas para

terem liberdade de saírem e comprarem o que queriam. Pooh disse mais:

A última vez eu fui, mas na hora desisti, fiquei só olhando e mangando deles. Nós cobramos o programa em cinquenta reais,

no mínimo, no [espaço comercial], mas no outro ponto, num

motel mais lá em baixo, cobramos até 100. Na semana passada, quando nos evadimos, ficamos de um dia pra outro. Enquanto

uma parte fazia programa, outra ia comprar lanche. Pedimos

dinheiro a minha mulher dizendo que nossa mãe tinha ido viajar e nos deixado na rua. Daí ganhamos 20 conto. Tem que dá ‘L’

né? (...) conseguimos na noite 220 conto, mas fomos quase

assaltados depois da praia, quando íamos pra um restaurante

comer. Achamos um celular na praia e vendemos também.

Em outro momento, Pooh relatou que se prostituía, assim como o irmão. Diante

dessas revelações, questionei a Pooh o que ele pensava de suas escolhas relativas aos

programas. Respondeu: “É meio arriscado, tem bixa que morre”. Tal afirmação não soou

como se estivesse considerando o risco. Então voltou ao assunto sobre o papel da

“cafetona”:

O ruim de ser a cafetona do grupo é porque quando a gente vai

dormir, ela tem que ficar acordada, vigiando enquanto os outros

dormem (...) a gente foi também no Norte Shopping, mas não

deixaram a gente entrar. Depois fomos no Midway, nos agarramos num casal de idosos para ajudá-los e conseguimos

entrar. Fomos nos brinquedos, mas os seguranças nos viram e

perguntaram dos idosos (...) e continuamos. A gente só num foi no cinema porque tava sem roupa adequada. Depois de lá,

achamos colchões num terreno e levamos até um terreno baldio

perto da casa III. Quando a gente nos evadimos, dormimos lá.

Interessante que até em meio à situação de risco, os adolescentes desenvolvem

regras, pré-estabelecidas, revezam a liderança para organizar o grupo. O líder tem maiores

responsabilidades, inclusive de cuidar e proteger os liderados, sendo que estes

reconhecem uns aos outros, permeando respeito. Este grupo se configura unido, com

objetivos em comum e que promove ajuda-mútua. Enquanto isso, o grupo de profissionais

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do abrigo tem dificuldades de agregar os adolescentes em propósitos em comum dentro

e fora da unidade, impossibilitando um efeito contrário a situação das inúmeras evasões.

Pelo contexto da história de Tigrão, compreendi que ele começou a se prostituir

depois do seu acolhimento, provavelmente por influência de outras crianças e

adolescentes. Pooh chegou a me contar que dentro das instituições há relação sexual e

abuso sexual entre os abrigados. Isso quer dizer que a violência, negligência e, assim, a

vulnerabilização continua ou começa, para alguns, dentro dos abrigos e permanece nas

redondezas dos serviços de acolhimento. Esta problemática abrange questões sérias e

graves que discutirei nos eixos da análise.

Em um dos nossos encontros, Tigrão falou sobre sua ociosidade, comentando:

“Queria ajudar a lavar a louça ou fazer um bolo, mas é proibido a gente entrar na cozinha

(...) eu lavava lá em casa”, “às vezes, elas até deixam a gente fazer alguma coisa”. Outro

adolescente comentou, uma vez, que gostava de varrer, mas não podia porque a limpeza

era somente com a ASG. Entendo que tais interdições objetivavam não explorar os

abrigados com tarefas domésticas, ao incluí-las como afazeres obrigatórios. Entretanto,

essa proibição desvalorizava a iniciativa dos adolescentes de fazerem parte da

manutenção do lugar que moravam, dificultando a eles se sentiram mais à vontade e

verem esse espaço como sua casa. Com isso, o perfil institucional do abrigo era

enfatizado. Percebi que alguns profissionais ficavam “em cima do muro” em relação a

tais determinações por, aparentemente, discordarem, então, em alguns momentos,

deixavam os adolescentes ajudarem. Presenciei momentos como esses. Depois de

concluídos os encontros com os participantes da pesquisa, em uma visita, visualizei

adolescentes e educadores sociais pintando internamente a unidade. Foi interessante vê-

los envolvidos com uma cooperação a fim de proporcionarem a melhoria no ambiente

que beneficiava a todos. Trabalhos em grupo com estes, geralmente, possibilitam um

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sentimento de igualdade entre pessoas da instituição, além de agregar maior valor ao

lugar.

No final da construção do Scrapbook, Tigrão quis realizar: As 10 pessoas mais

importantes. Antes de começar, perguntou: “Posso fazer um desenho? ”. Confirmei e ele,

sem pensar muito, pegou a folha e começou a desenhar uma linda árvore. Em cada galho,

foi escrevendo o nome de uma pessoa importante em sua vida. Na metade do desenho,

questionou se poderia colocar mais de 10 pessoas na árvore e respondi que poderia

colocar quantas quisesse. Dentre elas estavam: seus pais, irmãos, alguns profissionais da

Casa III (educadoras sociais, assistente social, psicóloga, coordenadora da unidade e eu).

Ele não colocou adolescentes da unidade, por mais que tivesse proximidade com alguns.

Compreendi que sua escolha se baseou em pessoas que ele percebia que se interessavam

em ouvi-lo ou ajudá-lo de alguma forma, pessoas que demonstravam algum tipo de

cuidado. Tigrão escreveu seu nome no tronco da árvore, representando ele mesmo. Não

disse mais nada, demonstrou-se satisfeito com sua produção. A inclusão de cada nome

em galhos e dele mesmo no tronco, pareceu significar que cada uma dessas pessoas eram

extensões sua e produziam frutos em sua vida. Entendi que o que Tigrão queria dizer é

que cada uma das pessoas no desenho fazia parte de sua vida, de sua história, eram

pessoas que o inspiram e por quem ele sente algum afeto. Geralmente, a imagem de uma

árvore com nomes de pessoas em ramos representa a genealogia de uma família. O

desenho de Tigrão, no perfil de uma árvore genealógica, pode demonstrar que, de alguma

maneira, essas pessoas representaram sua família, a qual, parte dela envolvia laços

consanguíneos e outra, laços construídos. A construção de laços com pessoas que ele

adotou para sua vida, pessoas que ele se importa e que ele sente que se importam com

ele.

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Ficou nítida a importância que sua família de origem e as pessoas do abrigo tem

para ele. Por mais que a distância entre Tigrão e a maior parte dos seus irmãos seja um

fato, cada um tem seu valor para ele. Por mais que ele demonstrasse para mim sua raiva

com pessoas da equipe, nos corredores da Casa III, algumas delas estavam presentes nos

ramos, o que significa a relevância dessas pessoas em sua vida. Fiquei surpresa com a

inclusão do meu nome. Foi gratificante saber que, de alguma forma, fiz parte desse

cuidado e fui importante para Tigrão durante o tempo da imersão em campo.

Muitos pontos que compartilhei sobre Tigrão se assemelharam as experiências,

significados, identificações e percepções do irmão Pooh. Eles eram a família um do outro

dentro do abrigo e demonstravam um grande sentimento de amizade e fraternidade.

Passaram até o fim da minha pesquisa de campo juntos nas mesmas unidades. Depois de

seis meses de concluído os Scrapbooks, período no qual fiz a devolutiva, eles tinham,

recentemente, passado a morar em casas diferentes do Aldeias e depois em modalidades

de abrigo distintos. Posteriormente, Pooh voltou para a Unidade de Acolhimento III e o

irmão continuou morando no Aldeias. Segundo Tigrão, a primeira mudança (separação

deles em casas diferentes do Aldeias) ocorreu porque “A gente tava brigando direto” e a

segunda (quando Pooh voltou à Casa III), “Ele tava brigando muito lá dentro e daí foi

expulso do aldeias”. As instituições de acolhimento possuem o dever de não realizar o

desmembramento do grupo de irmãos no contexto de abrigo. Na prática, essa separação

acontece pela necessidade de tratamento para dependência química de um dos irmãos;

abuso e/ou violência entre irmãos; e diferença de sexo e idade, o que dificulta a estadia

dos irmãos em uma mesma instituição. Entretanto, esse caso, se distancia muito de

afastamento de irmãos por questão de riscos. Entendi que os conflitos se intensificaram

pela discordância entre eles em relação ao abrigamento no Aldeias. Pooh, sem vontade,

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foi encaminhado à instituição influenciado pelo interesse do irmão e entendi que se

arrependeu.

As casas do Aldeias ficam localizadas no mesmo bairro e possibilitam os

encontros entre as crianças e os adolescentes que residem em casas diferentes, seja por

certa liberdade de locomoção pelos mesmos, ou por atividades com os abrigados aos

sábados. A Unidade III fica distante das casas do Aldeias, impossibilitando a convivência

entre eles.

Ao questionar Tigrão sobre o sentimento de saudade em relação ao irmão,

respondeu que “Às vezes, sim”. Tigrão não demonstrou tristeza com essa separação, na

qual pode ter sido amenizada pela experiência positiva dele no Aldeias. Da mesma

maneira, aparentou Pooh, que ficou satisfeito com o retorno à Casa III porque não queria

ter saído de lá, já que não se identificou com o perfil do Aldeias em vivência anterior.

Acredito que devem sentir muita falta um do outro, mas que se “adaptaram” a ideia de

morarem distantes, assim como se “acostumaram” com tantos afastamentos de entes

familiares ao longo de suas vidas. Observei, nesse contexto, uma naturalização da

separação, tendo em vista que irmãos antes tão unidos, não expressaram sofrimento

distantes um do outro. Esta situação me gerou uma grande indagação: conflitos e

divergências são motivos para o abrigo separar irmãos?

Vida depois do abrigo

A projeção da vivência pós-abrigo de Tigrão abrangeu vários aspectos: aceitação,

sonhos, reconhecimento, expectativas, gratidão. Tais elementos serão abordados por meio

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de quatro atividades principais: Sonhos, Auto-retrato depois do abrigo, A família que eu

gostaria de ter e Carta para mim no futuro.

Na atividade Sonhos, Tigrão teve oportunidade de escrever o que mais ansiava

conquistar ou obter. Em cada balão proposto pela atividade, o adolescente complementou

as frases: “Gostaria muito que... ‘eu ganhasse uma flauta transversal’”; “quando eu

crescer, vou ser... ‘professor de português, flautista, advogado e delegado’”; “Um dia vou

conseguir... ‘viajar para Paris’”. O primeiro sonho teve relação com a promessa que

recebeu de ganhar uma flauta transversal de uma determinada pessoa. Ele se demonstrou

bastante entusiasmado com o futuro. Esse instrumento musical representa o interesse de

Tigrão no aprendizado e aperfeiçoamento do seu talento. Acredito que a oportunidade

que ele teve de realizar o curso de flauta dose no CAIC, e as apresentações ao público

junto com a turma, o tenha influenciado o querer se tornar flautista como um de seus

objetivos. O que mais despertou minha atenção foram suas variadas aspirações

profissionais expostas no segundo balão. Questionei seus interesses em áreas tão distintas

e ele respondeu: “Primeiro vou realizar o desejo do pai, de ir pra o exército, daí depois

vou estudar pra ser delegado e depois advogado”. Complementou: “Primeiro quero

honrar o meu pai, depois faço o que quero (...) porque quero fazer que nem minha

professora, que primeiro foi da marinha para alegrar o pai, e depois foi fazer pedagogia”.

Perguntei-lhe o que ele queria, então, afirmou: “Ser professor de português”. Da forma

que o adolescente se expressou, parecia ser fácil alcançar essa trajetória. É interessante

ressaltar a ideia de Tigrão de priorizar o sonho do pai para ele, como forma de honrá-lo.

As palavras de seu pai demonstraram ainda ter força na vida do filho. Seu pai sempre o

disse como deveria se portar, também influenciou no percurso profissional que deveria

buscar, sendo para Tigrão, uma missão, um dever a cumprir. Assim, posteriormente,

poderia ter liberdade de fazer o que desejava, ser professor de português e flautista,

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sonhos nos quais ele escreveu primeiro, embora no discurso tenha priorizado os ideais de

seu pai.

O termo família para Tigrão o fazia relembrar de sua família de origem e sua

configuração anterior ao falecimento de seus pais. Pareceu continuar a ser sua família por

toda vida. Uma possível adoção pareceu ter um significado singular para ele. No final da

atividade Minha família, Tigrão, ao ver a proposta da atividade A família que eu gostaria

de ter, começou a falar do assunto, mas não quis desenhar, nem escrever nada no papel.

Narrou: “Sou gay e gostaria de ser adotado por um casal gay porque eu ia me sentir

melhor”. Posteriormente, falou sobre seu interesse no retorno ao Aldeias: “Quero ir para

o Aldeias porque é mais possível a adoção acontecer, por isso quero muito ir para lá(...)

pra isso tenho que me comportar bem por causa dos meus BOs, senão, num vou pra lá|”.

Tigrão falou da maior chance de adoção no Aldeias, com muita segurança. É provável

que Tigrão já tivesse ouvido, de profissionais, que havia uma maior probabilidade de a

adoção ocorrer em modalidades de abrigo casa-lar, como também ouvi. Possivelmente,

ele tenha comparado a dinâmica das adoções no Aldeias com as outras instituições de

acolhimento que vivenciou e tenha chegado a essa conclusão. Outras expectativas em

relação ao serviço referido foram baseadas na própria experiência nesse espaço.

Comentou ter tido uma experiência positiva lá: “Quando fui para o Aldeias, gostei muito

de lá, é melhor porque a pessoa tem mais liberdade”.

Apesar de Tigrão ter demonstrado seu interesse pela adoção, ele não pareceu

precisar de uma família, nem estar ansioso pela adoção, como várias crianças e

adolescentes. Como descrito na sessão Vida nos abrigos, ele não se considerava sem

família, pelo contrário, sua família, mesmo após o falecimento de seus pais, continuava a

mesma, como desenhou em Minha família. Tive a impressão de que a pretensão do

adolescente era viver em uma casa com pais adotivos, não para substituir a família que

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ele já considerava ter, mas sim, para uma nova oportunidade de viver em um espaço

familiar. Para Tigrão, um casal adotante homoafetivo permitiria um lugar familiar que ele

pudesse se sentir mais confortável, compreendido e que pudesse facilitar sua adaptação.

Tigrão demonstrou se interessar por espaços onde se sentisse mais à vontade, além

de uma casa com um casal homoafetivo. Apresentei no tópico anterior, que em Minha

Rotina, o adolescente comunicou sua pretensão em estudar na Escola Estadual Edgar

Barbosa “porque lá tem mais gays e eu ia me sentir mais à vontade”.

No desenho sobre como se via no futuro, em Auto-retrato depois do abrigo, se

desenhou uma mulher de cabelo liso e longo, bonita e com o corpo de miss. Questionei-

lhe sobre o desenho de uma mulher e ele revelou: “Vou me tornar uma travesti”.

Interessante que nos dois primeiros autorretratos, ele se desenhou como dois meninos,

sem uso de coloração e com aparência menos caprichada quando comparada à figura da

miss. Descreveu-se no passado, antes do abrigo, como um menino que jogava futebol e,

ao mesmo tempo, brincava de boneca. Naquele presente, como um menino que se veste

de menino, mas que se interessa por se relacionar com pessoas no mesmo gênero, ou seja,

“um viadinho”. No terceiro desenho, de travesti, ele dedicou mais tempo, coloriu a

imagem com esmero e primor, enquanto os demais desenhos tiveram menos destaque,

por isso ficaram em preto e branco. Tive a impressão de que ele se desenhou em um

processo de transformação, de um garoto para uma mulher. O desenho de si mesmo

depois da maioridade, quando poderá se tornar quem desejar. Chamou atenção o interesse

de Tigrão em se tornar uma mulher, no padrão de beleza da sociedade e totalmente

diferente de como ele se vê atualmente.

Suas escolhas voltadas para o futuro se referiam a expectativas de sentir-se melhor

com o seu gênero, por meio do seu corpo, principalmente no tratamento dos outros.

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No nosso último encontro, Tigrão quis escrever uma Carta para mim no futuro.

Teve dificuldade porque não sabia o que escrever para si mesmo e quase desistiu. Para

ajudá-lo, questionei-lhe sobre o que gostaria que ele mesmo, no futuro, se lembrasse.

Ficou pensativo e escreveu apenas uma frase que dizia: “Sempre ajudar ao próximo em

toda as horas mais difíceis”. Ele escreveu a carta, colocou no envelope e lacrou,

demonstrando também não querer falar mais sobre o assunto. Sua mensagem revela um

valor importante para ele, relacionado ao cuidado com outras pessoas.

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4.2. Costurando as Gravuras: Eixo Integrador

Apresentarei aqui a costura das compreensões obtidas, a partir das narrativas dos

adolescentes. As dimensões analisadas no trabalho estarão sendo discutidas nos três

eixos, os quais correspondem a cada objetivo do estudo.

A intenção do quadro abaixo é apresentar os destaques das narrativas associadas

as dimensões, com suas respectivas sínteses iniciais, para uma breve explanação do que

será problematizado em cada eixo. Trata-se da primeira compreensão do todo, para,

posterior aprofundamento na etapa de análise avaliada.

Tabela 5.

Dimensões analisadas conforme eixos da pesquisa.

EIXOS DIMENSÕES

ALGUMAS NARRATIVAS

DOS ADOLESCENTES SÍNTESES

EIX

O 0

1:

Min

ha v

ida a

nte

s d

o a

bri

go

Como me percebia?

"eu catava lixo..."; "...vivia sujo ... as pessoas falavam mal de

mim...eu dormia em qualquer

canto"; "a gente se 'montava' com

as coisas das minhas irmãs, escondido de pai", "eu parecia um

menino normal, até aprendi a jogar

futebol"

Vida sofrida, enfrentando

dificuldades materiais e

emocionais, vontade de se ver diferente

Quem era a minha

família?

"eu, minha mãe e meu irmão

passava o dia na rua", “morei na

casa da minha tia, como uma

família, mas lá era ruim porque tudo era culpa minha

Ao mesmo tempo a mãe e

irmãos como também

qualquer parente que pudesse fornecer abrigo. Sentimento

de pertença com os mais

íntimos e de convivência

maior da família nuclear, ao mesmo tempo...

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Minhas perdas,

minhas saudades

"Meus pais morreram", "...minha

mãe morreu"...,"sinto muita dor, não passa e só aumenta", "não

gosto de sentir amor...porque

sofro, fico fraco"; "tenho saudade da minha mãe, do meu pai";

"minha mãe era tudo o que eu

tinha", "morávamos numa fazenda

com vários cavalos", "eu tinha uma égua que ganhei do meu pai",

"tinha vários amigos na minha

escola"; "saudade de ir em Felipe Camarão", "saudade de comer o

cuscuz da minha mãe"

Pesar e sentimento de tristeza.

Apego ao passado e

sentimento de vazio no presente. Falta de detalhes e

momentos simples de alegria.

Distanciamento dos genitores

e dos amigos.

O que eu fazia

antes?

"Íamos à praia de carroça",

"morava todo mundo junto”, “Antes eu fazia coisas erradas",

"roubava com amigos", "aprendi

sozinho a fumar pedra com 4 anos", "morava na rua", "brincava

na casinha das bonecas",

"tomávamos banho de bica lá em casa", "eu ia para a igreja de

Deus", "quando dava ia jogar

videogame", “sempre gostei de

brincar de coisas de meninas...brincava com as coisas

das minhas irmãs”

Rotina que incluía o lúdico

(brincar), um lugar para se sentir compreendido e as

primeiras experiência de

vulnerabilidade.

EIX

O 2

: M

inh

a v

ida d

ura

nte

ab

rigam

ento

Como me vejo?

"triste e sozinho", “as pessoas me falam que eu tenho peitinhos, mas

nunca liguei, gosto de me ver

assim no espelho”, “hoje sou um

viadinho”

Sentimento de solidão,

perceber-se diferente da

maioria

Que lugar é este?

“Aqui não é minha casa, só quero

que alguém me tire daqui"; "eu

odeio esse lugar", "é chato...a

rotina é a mesma", “no final de semana não fazem nada, a não ser

jogar, assistir tv, mal saímos da

unidade", "recebo conselhos bons"; "a casa III é como uma família...",

"a noite a gente brinca de algum

tipo de jogo, como dominó(...)com educadores"; “Queria ajudar a

lavar a louça ou fazer um bolo,

mas é proibido”, “gosto de limpar,

mas só a ASG pode”.

Lugar de Prisão e mesmice X

Lugar de amparo, preparo e brincadeiras. Dificuldade de

desenvolver senso de

pertencimento e cooperação dos atores do abrigo, em

especial, dos adolescentes.

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Quem é a minha

família?

"meu sonho é ter uma família", "na

verdade tenho várias famílias...cidade de Deus, Felipe

Camarão, rua da fé, morro do

careca porque tenho amigos, irmãos e pessoas da família lá”;

"ainda bem que tenho o meu

irmão"; "minha família é como um

sol(...)o centro são meus pais, tios e avós e os raios sou eu e meus

irmãos"

Necessidade da adoção para fazer parte de uma família,

busca de sentimento de

pertença; percepção da família como sendo ou a família de

origem, ou/e o abrigo com os

seus profissionais e

adolescentes; e/ou amigos do bairro.

Mais perdas “Agora estão todos longe e não nunca mais falei com eles”

(amigos que fez no abrigo)

Ruptura de laços dentro do

abrigo.

O que eu faço hoje?

"Não gosto da escola”, “não tenho

amigos lá"; “a escola era chata e só tinha baixinhos”, "gosto lá das

aulas de futsal no CAIC", "flauta”,

“a gente sempre se evade junto", "fazemos programa na esquina

aqui da frente e às vezes na

esquina do motel mais ali em

cima", "às vezes, eu e ele faz um esquema nos ônibus, ele me dá o

sinal da pessoa e eu puxo o

celular", "fomos ao teatro Riachuelo"

A escola oferecida pelo abrigo

não é vista como espaço significativo, mas o abrigo

oferece outras oportunidades

de ocupação de tempo, de socialização, de lazer, de

arte/cultura e possíveis

caminhos para depois do

abrigamento. Entretanto, o abrigo não impede vivências

no campo da prostituição,

pequenos delitos e drogadição.

EIX

O 3

: C

om

o i

ma

gin

o m

inh

a v

ida q

uan

do s

air

do a

bri

go

O que vejo para mim no futuro?

"é difícil me adotarem", "quando

sair daqui vou coletar material";

“quero ser assim, bem bonita”, “vou ser uma travesti”, “não quero

ficar fazendo programa, não quero

isso pra minha vida, quero arranjar um homem bom”; “quero ser

jogagor de futebol, jogador de

videogame e lutador”; “Quem sabe

um dia eu consiga trabalhar aqui para ajudar e nunca esquecer”;

“vou ser cabeleireiro”.

Enxergaram a possibilidade tanto de retornar à situações

de vulnerabilidades, quanto

outras saídas para as condições concretas de vida; e

esperança de encontrar

alguém que lhe forneça

cuidados.

O que quero fazer ou

me tornar no futuro?

"quero ser professor de matemática e policial", "...ser

jogador de futebol, jogador de

videogame...", "quero ser

professora de português", "quero primeiro fazer a profissão que meu

pai queria, ir para o exército e ser

delegado...depois faço o que quero...ser professor", "quero

provar que mudei", "quero mostrar

para todo mundo que sou capaz"

Aspirações do ideal e aceitação social. Descrença de

encontrar alguma coisa de

futuro para si, esperança de

encontrar saídas a partir das oportunidades fornecidas pelo

abrigo. Anseio de honrar

expectativas parentais e surpreender expectativas de

demais pessoas (familiares,

profissionais do abrigo).

Como imagino que

será a minha

família?

"Quero ter minha própria família",

"quero adotar", "quero ser

adotado"

Manifesta interesse de cuidar

e ser cuidado, criando ou

tomando parte de uma família.

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4.2.1. Eixo 1: A pessoa que partiu, o vazio que emergiu, as mudanças que gerou e a

saudade que ficou

A orfandade foi o principal motivo para o acolhimento de Tigrão e Guru. Eles

viveram realidades diferentes na vida anterior à institucionalização. O primeiro, viveu em

contexto de rua com sua mãe e não convivia com seu pai, nem a maior parte dos seus

irmãos, sejam esses filhos de seus pais, ou filhos somente do seu genitor. O segundo,

vivia com seus pais e irmãos, “(...)todos juntos(...)”, como disse Tigrão. O comentário do

adolescente não se referia somente a moradia dos entes familiares na mesma casa, mas a

unidade e fraternidade entre eles. Pelos moldes sociais, a família de Tigrão se incluía no

perfil de família “estruturada” ou “ideal”, na qual envolve um grupo consanguíneo unido,

de pais casados que educam e protegem os seus filhos. Já na família de Guru, viviam

“todos separados”, pai e um dos irmãos para um lado, e Guru, demais irmãos e mãe para

o outro. O lado que Guru se encontrava, estava imerso em contexto de pobreza e rua.

Assim, ele e seus irmãos viviam como “filhos à solta”. Essa família, então, estaria em

uma condição disfuncional, de acordo com Moreira et al (2011). Estes e outros autores

colocam um peso acentuado no tipo de arranjo familiar levando a uma associação linear

entre vulnerabilidade e tipo de família (família nuclear). Inclusive, na Psicologia, este

olhar é bastante determinista em alguns tipos de análises.

A família monoparental de Guru, diante das problemáticas sociais que

vivenciava, passou a ter dificuldade na tarefa de cuidado dos filhos, no bem-estar dos

mesmos, colocando-os, assim, em risco e influenciando-os na precipitação da ida para a

rua, no intuito de auxiliarem na renda familiar para sobrevivência. Esse quadro da

monoparentalidade aliada à pobreza e a outros fatores é comum em muitas famílias,

segundo Siqueira et al (2009) e Iannelli et al (2015). O fato de viver em risco social é

atrelado ao fazer parte de grupos marginais da sociedade, como diz Silva (2010). Por

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outro lado, considero problemático estabelecer um perfil de família vulnerável, o que

poderia levar uma associação entre pobreza e vulnerabilidade. Rodrigues et al (1999)

apontam como é controverso essa relação, no sentido de endereçar às camadas pobres da

população, uma responsabilização e/ou vitimização pelas mazelas sociais e, assim,

relacionando-os a classes perigosas ou marginais. Essa é uma preocupação partilhada por

muitos estudos como os de Cruz (2010), Coimbra e Nascimento (2003; 2006).

Lembramos, na esteira de Wacquant (2003; 2008), que na contemporaneidade, pobreza e

perigo tem sido associados mundialmente, legitimando o endurecimento do estado penal.

No Brasil, justifica-se, inclusive, o extermínio de jovens negros moradores de bairros da

periferia em todo o país (Waisenfilz, 2013).

Guru afirmou ter começado a fumar com 4 anos. O que isso significa? Significa

que não é o abrigamento, nem a perda da mãe que lança o menino em um contexto de

vulnerabilidade. As situações de vulnerabilização estiveram presentes em todos os

momentos da sua vida e nem a presença de figuras protetivas como a mãe, o isentaram

de vivê-las.

Embora de contextos familiares distintos, Guru e Tigrão passaram por

experiências dolorosas semelhantes: a perda de suas maiores referências parentais. A

primeira perda de Guru foi de sua figura paterna que aconteceu após a separação de seus

pais, quando ele tinha cerca de cinco anos, passando a deixar de conviver e de se

relacionar com seu pai. Este construiu uma nova família e permanece vivo, mas não ficou

claro, em nenhum momento da sua fala, se essa figura já fora presente ou importante.

Guru não demonstrou tristeza com a ausência de seu pai, mas é possível que tenha sofrido

no período da cisão do relacionamento de seus pais. Depois de três anos da dissolução do

casamento, sua mãe faleceu. Já Tigrão, perdeu sua mãe e, posteriormente, seu pai, ambos

por motivo de doença, que pelo contexto, entendi que ocorreu em um pequeno espaço de

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tempo. Diante disso, Guru e Tigrão tiveram experiências de luto muito novos e em um

curto período de tempo entre elas.

Sobre perdas, autores da Sociologia Clínica, como Gaulejac (1999), vão dizer que

nas trajetórias dos sujeitos, em seus relatos de vida, ficam presentes de uma forma clara

a existência de rupturas e continuidades. E posso dizer, dentro desse trabalho, que as

rupturas são vivenciadas pelos adolescentes, como Guru e Tigrão, como perdas na sua

senda existencial. Essas perdas aparecem de várias formas. Uma das formas mais intensas

é a perda do processo de afiliação. Autores como Carreteiro (2001), entre outros, afirmam

que o processo de afiliação acontece ao longo da vida porque nos afiliamos e nos

desafiliamos em diversas instituições sociais, como família, escola, comunidade,

instituições de socialização primária e secundária.

No caso de Guru, especificamente, vi como o processo de desafiliação vai

acontecer em vários momentos de sua vida, criando várias rupturas daquilo que poderiam

ser momentos na construção de vínculos sociais. Nesse sentido, falar de rupturas e

continuidades, como diz a Sociologia Clínica, é, ao mesmo tempo, mostrar que existe a

continuidade do processo de vulnerabilização social, que é reiterado devido as vivências

da rua e as experiências de abrigamento. E existe uma ruptura de vínculos de afiliação

que, a cada vez, é vivida como perdas na possibilidade de construção de uma nova família

(Carreteiro, 2001), o que acontece três ou quatro vezes durante a experiência de vida de

Guru. Então, essa questão é importante para mostrar que isso acontece na sua vida e de

muitas outras crianças e adolescentes em contexto de abrigamento. Essa perda é vivida

como um luto a cada vez, uma morte simbólica de uma construção possível de um formato

de família. Dessa maneira, sob o olhar da Sociologia Clínica, a partir de Gaulejac

(2004/2005), Enriquez (2006), Bezerra (2009, 2013) e Takeuti (2009) há uma dinâmica

relacional que ultrapassa, de um lado, as características psíquicas dos sujeitos e, de outro,

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determinações sociais. Essa perspectiva socioclínica me ajuda a enfatizar as rupturas na

vida de Guru em três direções. A primeira, transcende características de personalidade; a

segunda, a inabilidade de adoção por parte do adotante; e a terceira ultrapassa as

competências dos profissionais dos abrigos. Essa situação traduz-se, então, em um

contexto perverso, onde a vulnerabilidade se produz e no qual essa trajetória existencial

de transgressões, dificuldades e dilemas também se produz construindo, na verdade,

grandes obstáculos e desafios para realização desse projeto de afiliação.

O sofrimento gerado pela perda e vulnerabilidade levam pessoas a desbravar

contextos difíceis como uma estratégia de sobrevivência (Sequeira, 2009). As marcas

negativas são legítimas, elas produzem dor, mas também promovem força e habilidades,

não por escolha, mas por contingência.

Durante a pesquisa de campo, os sentimentos de tristeza e saudade foram

exprimidos pelos dois adolescentes, embora o sentimento de grande dor e de solidão,

tivesse sido demonstrado mais por Guru. Uma diferença significativa entre eles é a

presença do irmão de Tigrão, Pooh, no abrigo com ele. Estes estavam no meu barco,

enfrentando e superando os percalços da vida juntos. Enquanto na ótica de Guru, ele se

via ali sozinho e sem família.

Na infância, Guru viveu em situação de rua e drogadição em momento anterior e

posterior ao falecimento de sua mãe. Eles eram pedintes nos sinais e recolhiam material

de rua para reciclagem. A maior parte do tempo, vivia fora de sua casa, na qual repousava

no fim do dia com sua mãe e um de seus irmãos. Sem a pretensão de construir uma

etnografia da “vida na rua” destaco o modo como Guru categoriza os laços sociais na sua

vivência de rua: como mencionamos anteriormente existem os amigos com quem é

possível partilhar lazer e práticas transgressivas (furtos e drogas). Existem os amigos-

irmãos com quem é possível “confiar e contar” (inclui: lazer e conselhos). Esse itinerário

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diz de uma sociabilidade que é produzida tendo em vista contornos que são apagados das

fronteiras entre legalidade e ilegalidade (Moreno, 2016).

Guru não teve figuras familiares que lhe dessem limites, vivendo em uma

condição de negligência, que unido a outros fatores, possibilitou ele crescer diante de

tantas vulnerabilidades. Como mencionei antes, sua mãe tinha ciência das dificuldades

de prover cuidados para com o filho e o encaminhou para o abrigo algumas vezes, mas

ele fugia e retornava para ao convívio com ela. Na literatura há estudos que indicam que

os cuidadores, principalmente as mães, acabam delegando ao Estado, o cuidado por

avaliarem o quanto não conseguem prover o mínimo de suporte, seja por problemas

financeiros, quanto pelo estancamento dos meios de sua rede familiar ou comunitária.

(Rossetti-Ferreira, Almeida, Costa, Guimarães, Mariano, Teixeira & Serrano, 2012).

Tigrão não pareceu ter tanta liberdade no seu contexto familiar quanto Guru. Sua

família, quando saía, iam todos juntos, de mãos dadas. O que pode simbolizar, além da

unidade, o quanto os filhos tinham que está perto dos pais, à vista dos mesmos, “na linha”.

Dentro de sua casa, o pai de Tigrão lhe dizia como deveria cortar o cabelo, qual esporte

fazer e que profissão escolher, como já comentado anteriormente. Ele recebia incentivos

quanto a fase escolar, era frequente e tinha a oportunidade de participar de atividades

como dança, flauta e letramento no PETI, instituição que agregou valor a sua formação.

Os papéis sociais relativos à religião estão ligados à noção de identidade e

autoestima desses jovens, além de se manifestarem de formas diferentes diante do

transcendente, conforme a religião a qual pertençam. Trata-se de estímulo motivacional

importante quando consideramos a vida nos abrigos. A religiosidade é citada pelos

adolescentes como fator de proteção, como no estudo de Carlos, Ferriani, Silva, Roque,

Vendruscolo (2013). Segundo esses autores a temática, mais particularmente a prática

religiosa protestante, é bastante presente nos abrigos, existindo encontros para essa

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finalidade. Já Regina Novaes (2012) ao discutir a questão da religiosidade aponta

aspectos importantes para nossa discussão. Embora a autora analise o sistema prisional

brasileiro e não o acolhimento institucional, compreendo que suas reflexões são

pertinentes. Primeiro, que a população carcerária vem se tornando cada vez mais jovem

e a presença de instituições religiosas, sobretudo neopentecostais, também aumenta em

seu interior. Isso em proporção inversa ao descuido do estado e fracasso da gestão

governamental no que diz respeito ao mínimo de dignidade humana naqueles espaços.

Segundo, porque essa movimentação religiosa, vai no sentido não só de acreditar em um

Deus, mas principalmente em passar a acreditar em si mesmos, o que parece muito mais

difícil. A impressão em alguns momentos é que enquanto alguns técnicos parecem

“sucumbir” ao discurso da naturalização (“É assim mesmo”), os religiosos parecem

estimular a esperança e a fé de que “as coisas vão melhorar, de que não estão sozinhos”.

Tanto Tigrão quanto Guru trouxeram boas memórias de suas infâncias, antes da

“partida” de suas referências parentais. Tigrão compartilhou lembranças de momentos

em família, de lazer, de brincadeiras entre irmãos e pai, e dos cuidados da mãe. Já Guru,

apesar do vínculo profundo com sua mãe, não relatou momentos bons com a mesma ou

sobre o relacionamento entre eles. Na verdade, ele só compartilhou a rotina que tinham e

algumas situações difíceis que enfrentaram, como: “A gente comia barro quando tava

com fome”. Porém, ficou clara a cumplicidade entre eles. O relacionamento de Guru com

sua mãe me fez lembrar do relato de Iannelli et al (2015), quando afirma que o contexto

de vulnerabilidade interfere na capacidade de amar e ser amado, além da banalização dos

afetos causada pelas inúmeras privações de direitos, exclusão e marginalidade. Diferente

dos autores, verifico que isso acontece de forma ambivalente porque a mãe de Guru

continua sendo objeto de amor, como disse: “Não gosto de sentir amor...porque sofro e

fico fraco”, embora que o que adolescente tenha vivido com sua mãe tenha sido dores e

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sofrimentos. A banalização dos afetos tem acontecido independente do contexto de

vulnerabilidade. Tigrão não pareceu viver situações vulneráveis antes do óbito de seus

pais, entretanto, a banalização dos afetos é muito mais intensa em suas narrativas,

sobretudo nas experiências de exploração sexual, no período de institucionalização.

Parafraseando Bauman (2004), é muito mais evidente em Tigrão a vivência de amores

líquidos do que na trajetória de Guru. Seria o abrigo, ao pensar na história de Tigrão,

também um lugar de vulnerabilidade?

Os destaques positivos de Guru, antes do abrigo, foram sobre seu desempenho

escolar, os tempos de diversão com seu irmão e a experiência de morar com sua tia e

primos, após o falecimento de sua mãe, “(...) lá eu vivia como uma família” (Minha vida

antes do abrigo). Diante desta afirmação, será que “viver como uma família” se refere

somente ao tempo que morou com sua tia e primos? Mais uma vez o sentido de família é

algo que não é determinável necessariamente pela presença ou ausência de pai e mãe

biológico.

A percepção dos dois adolescentes sobre si mesmos seguem caminhos de sentidos

bem distintos porque a autoimagem é construída para um em torno do gênero e para o

outro em torno da transgressão. A transgressão de Guru vai desde o não dividir “as

coisas,” até ser usuário de drogas. Ao mesmo tempo, ele é “obediente” porque frequenta

a igreja e não falta às aulas na escola. Tigrão traz a questão de gênero. Embora

“obediente” antes do abrigamento, ele também transgredia “escondido” do seu pai. Ao

final temos uma construção bastante ambivalente da auto-imagem de ambos com aspectos

que não podem ser dissociados e ao mesmo tempo relacionados a atuações sociais “bem

vistas” (obediência, estudar, gostar dos irmãos, ir para igreja) e “mal vistas” (fumar,

roubar ou trapacear, bagunçar, se montar) como discute Souza (2014).

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As histórias dos dois adolescentes mostraram que ambos cresceram em periferia

e ficaram órfãos, mas tiveram oportunidades e trajetos de vida antes do abrigo bem

diferentes. Um vive experiências de vulnerabilidade e outro é mais “contido” pelos

familiares, especialmente o pai. Tigrão de algum modo, mantém sua pequena família,

porque está com o irmão no abrigo. Os dois parecem divergir quanto a vida antes do

abrigo. O que teve uma infância vulnerável, sente que era mais feliz antes, quando tinha

sua mãe, apesar da dureza da vida e caminhos tortuosos; o que teve uma vida mais

“protegida” pela família e pelos mecanismos de bem estar social (PETI, bolsa família,

etc), vivia bons momentos em família, embora se sentisse podado.

Finalmente, ambas as trajetórias deixam muito claro que a vida antes do abrigo

não pode ser citada como boa ou ruim. Essas qualificações não se aplicam sob pena de

uma visão estática da vida desses jovens. Vivem momentos e existências com registros

ora amargos, ora prazerosos, que lhes deixarão marcas para etapas posteriores da vida.

Como de resto todos nós.

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4.2.2. Eixo 2: Lugar de Prisão e Mesmice X Lugar de Amparo e Preparo

As vivências dos adolescentes no serviço de acolhimento institucional

representaram complexidade por ser um lugar de múltiplas experiências.

Que lugar é esse? Quanto tempo vou ficar aqui? São perguntas que,

provavelmente, os participantes fizeram quando adentraram no abrigo. Questões “fáceis”,

talvez, para profissionais responderem, de acordo com as normativas, mas difíceis para

os adolescentes entenderem e se adaptarem. Depois de mais de dois anos imersos na Casa

III, é provável que Guru e Tigrão já entendessem melhor as nuances do espaço que

residiam, o que não significaria, necessariamente, adaptação e aceitação. Para eles, a Casa

III era um lugar de mesmice e prisão, mas, ao mesmo tempo, de amparo e proteção. Eles

reclamavam da rotina “parada”, principalmente, dos finais de semana, da falta de

atividades de lazer. Por outro lado, reconheciam que lá garantiam suas necessidades

básicas como comida, lugar para dormir, além de oportunidades de cursos e esportes.

Consideraram que, no abrigo, havia pessoas que se preocupavam com eles, que os

acolheram. Para Guru, até o fim do trabalho de campo, o abrigo se tornou sua casa. Esse

significado se deu com sua abertura em se vincular ao lugar e as pessoas. Já Tigrão, via a

Casa III como um lugar no qual morava enquanto não era adotado ou desligado, fazia

amizades, e possuía afeto e gratidão pelas pessoas que o ajudaram.

Os estudos da literatura tendem a fazer uma clivagem nesse ponto: de um lado

posicionam o abrigo como um lugar de proteção, e de outro, como um lugar de

desproteção, embora sejam ressaltados alguns aspectos do seu contrário. Em um artigo

de revisão de literatura, Janczura (2008) evidencia essa questão. A autora argumenta que

um grupo considera os elementos determinantes da violência contra a criança e o

adolescente e reforça os efeitos negativos da institucionalização; o outro, ressalta os

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aspectos psicossociais, no intuito de mostrar a possibilidade de o abrigo oferecer

oportunidades benéficas para o desenvolvimento deles. Para ela, não é suficiente entender

a dicotomia do abrigo, mas se faz necessário olhar com uma perspectiva de totalidade que

envolva ambas as visões, para perceber como o Estado e sociedade pode atender,

eficazmente, a questão do “abrigo”. Nas narrativas de Guru, Tigrão e os outros

participantes do nosso estudo, não foi possível posicionar, sob o olhar deles, o abrigo em

uma dessas polaridades. Do mesmo modo que no item anterior, a vida anterior ao abrigo

é uma amálgama de experiências positivas e negativas, que retratam a vivência complexa

e multifacetada da institucionalização.

Quando fazermos as afirmações precedentes é porque em alguns momentos do

trabalho de campo, eu ficava confusa porque parecia, a partir dos relatos, que se tratava

de muitos abrigos diferentes. Na verdade, era difícil ver tantos abrigos em um único lugar.

Segundo as narrativas dos adolescentes, o abrigo é, simultaneamente, um lugar de

mesmice, de preparo através das oportunidades para uma vida melhor, e um espaço de

perpetuação ou vivência de experiências vulnerabilizadoras. Porém, também é um lugar

que oportuniza alguns momentos positivos com membros da equipe. As pesquisas de

Rossetti-Ferreira et al (2012) mostraram que em muitos casos ocorre a “(re)violação” de

direitos, seja porque os abrigados não são ouvidos, pelos passados que lhes são negados,

vínculos afetivos fragilizados, pela desvalorização da família no cotidiano dos abrigos,

pela dificuldade de inserção na comunidade; e/ou pela inflexibilidade das regras

institucionais que, por vezes, não acolhem as necessidades e individualidades dos

abrigados. Por outro lado, Janczura (2008) apresenta posicionamentos de autores, tais

como, Arpini (2003), Rizzini e Rizzini (2004), Santana e Koller (2004), que defendem o

papel protetor das instituições de acolhimento, quando afirmam que as experiências

positivas de uma criança ou adolescente nesses espaços estão condicionados aos vínculos

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afetivos e ao apoio social e afetivo que o abrigo vai desenvolver com eles. Assim, é

possível proporcionar a formação de suas identidades e desenvolvimento, quando os

protegem e fornecem oportunidades de enfrentamento da vida social e pessoal.

Para Arpini (2003), o abrigamento obteve evoluções quanto à sua proposta de

trabalho, inclusive, de tornar o abrigo um lugar mais favorável para o desenvolvimento

de crianças e adolescentes, com a socialização, atividades e relacionamentos. Entretanto,

ela afirma que não há como oferecer um lugar semelhante a um espaço familiar saudável,

e nem impedir que violências sejam reproduzidas. Como não é possível impedir?

Diferente do entendimento da autora, questiono para que existem os serviços protetivos

de acolhimento institucional, se não podemos impedir que as violências sejam

perpetuadas?

O abrigo, dessa forma, se mostra contraditório do ponto de vista de uma política

construída para proteger e que desprotege. Essa contradição, da perspectiva sócio-

histórico, é aparente porque o sistema não é construído para “ressocializar”, mas sim para

“isolar” e “conter” os elementos perigosos, gerados pela infância “perigosa”, pelo

contexto “perigoso”, além de reforçar um bom comportamento para a vida em sociedade

(Coimbra & Nascimento, 2003).

A primeira experiência de desproteção que acontece com a institucionalização,

são perdas, por mais que a intenção seja evitar mais prejuízos e proporcionar ganhos.

Guru e Tigrão perderam o convívio com a sua casa, família e comunidade, e passaram

morar em um lugar desconhecido. É um distanciamento “necessário”, mas que muitas

vezes, é mal administrado porque o direito de convivência familiar e comunitária não é

atendido. Acontece também separações dentro da unidade, quando, pela avaliação do

serviço (fator idade, perfil e comportamento), é necessário transferir o abrigado de

instituição, envolvendo, por vezes, irmãos. Essas separações acarretam perdas de

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vínculos com outros acolhidos e com profissionais. E a manutenção desses vínculos são

inviáveis pelas tantas atribuições do serviço de acolhimento. Então, vê-se perdas de

diferentes níveis relatadas por Guru, Tigrão e outros adolescentes.

Guru ficou órfão, mas já possuía laços precários e passou a perceber pessoas do

abrigo como família. Tigrão tinha vínculos sólidos com sua família. Esta, mesmo com a

orfandade, permaneceu “contida” em sua memória, e o seu irmão era a sua família no

abrigo. Lá eles estavam juntos “no mesmo barco”, “enfrentando o mundo”,

compartilhando das mesmas práticas, como a prostituição. De toda forma, o abrigo

possibilitou a esses adolescentes, construir novos vínculos e referenciais de cuidado e

afeto. Tal construção se configurou como um fator de proteção que foi se edificando com

o passar do tempo (Janczura, 2008).

A primeira vivência de proteção é o distanciamento dos “perigos da rua”, referente

a Guru, e lugar de moradia, para Tigrão. O abrigo fornece as condições necessárias de

desenvolvimento físico e, de certa forma, psicológico, tendo em vista que proporciona

uma rotina que envolve a frequência escolar, possibilidade de cursos, esportes ou

trabalho, bem como, responsabilidades diárias com as regras da casa. Esta rotina gera

uma mesmice que é estruturadora. A dualidade mesmice e preparo aparece nos relatos

dos adolescentes, quando reclamam que “Aqui é chato, não tem o que fazer (...)

principalmente no fim de semana”, e quando elogiam os cursos e outras atividades

“preparatórias” para a vida. Dessa maneira, o papel protetivo, por um lado, é coerente,

por outro, incongruente, pois acaba sufocando os adolescentes na mesmice aprisionadora

que acaba desprotegendo.

Verifiquei a ausência da implantação de um projeto político-pedagógico que

envolva sociabilidade, movimentação, lazer, cultura, participação em tarefas do abrigo;

pois, somente, o acúmulo de atividades não promove o engajamento e comprometimento

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dos adolescentes consigo mesmos, com o abrigo e com as pessoas inseridas neste espaço

(Sequeira, 2009).

Guru, acostumado a tanta liberdade, teve dificuldades em viver em instituições de

acolhimento diante de tantas regras, dentro de quatro paredes. Ele fugiu de unidades de

acolhimento em vários momentos, inclusive na Casa III, que apesar de ter decidido

permanecer lá até ser adotado ou completar a maioridade, escapava com certa frequência,

de um “confinamento” no qual ainda era difícil de lidar. Suas fugas visavam vender

material para, com o dinheiro, jogar videogame, visitar familiares e, provavelmente,

consumir drogas ilícitas. Lemos, Moraes, Alvez, Halpern e Leite (2014) avaliaram que as

evasões possuem relação com a sensação de liberdade, de distanciamento dos problemas

e das regras da Unidades de Acolhimento. Assim, “a rua aparece como símbolo de

liberdade, para onde se foge, além de ser lugar de conflito e representação do abandono”

(Neves, 1996, p. 27).

Tigrão, antes da institucionalização, era controlado, “contido” pela família. No

abrigo, ele começou a ter mais liberdade e viver uma relação com a rua. Ele passou a

“estar solto”. Relação essa, com a prostituição e com a oportunidade de “ir e vir” na

cidade, juntamente com o seu irmão e alguns abrigados. Para Tigrão, não existia um tabu

na relação entre maiores e menores de idade. Há uma naturalização desse aspecto, seja na

relação da irmã com um homem mais velho, como no fato deles fazerem programa.

Tigrão, assim como Guru e outros adolescentes se evadiam para visitar parentes

mais próximos, a comunidade na qual pertenciam, além de fugirem para frequentar

espaços que gostavam, como: praia, shopping e lan-house. Alguns deles buscavam

escapar para manter vícios e maus hábitos, como a prática de roubos e assaltos, e o

consumo de drogas, inclusive, em uma “boca de fumo” na rua da Unidade III (Lemos et

al, 2014).

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Diante desse contexto, me perguntei: qual a postura dos profissionais do abrigo

nessas situações? Presenciei uma situação que respondeu essa pergunta. Um adolescente

do abrigo havia dito, abertamente, que iria fugir para se prostituir. Um dos educadores

sociais, o aconselhou a não fazê-lo devido os riscos que sofreria. Posteriormente,

questionei ao educador qual seria o procedimento nesse caso, então afirmou: “Não posso

impedi-lo, somente orientá-lo, porque aqui ele não está preso”. Situação identificada na

pesquisa de Lemos et al (2014). Segundo o profissional, os educadores presenciam várias

fugas, mas “Não posso fazer nada”. Significa, então, que os profissionais tentam

argumentar com os adolescentes que buscam fugir, mas essas tentativas fracassam. Que

proteção é esta? O que leva a esses fracassos que culminam nos muros vizinhos da

instituição em prostituição e drogadição? Percebo uma grande contradição, pois

concretamente os educadores não conseguem impedir as evasões. Dentro da unidade, eles

trabalham para manter a “ordem” com firmeza e rigidez, por meio de uma série de regras

para desenvolver a disciplina e uma rotina “saudável”, disponibilizam atividades e cursos

extras que oportunizam saídas existenciais. Mas na contramão, demonstram descrença

em relação ao impedimento das fugas, pois aparentam “cruzar os braços”, mesmo quando

sabem o que os adolescentes farão ao pular o muro. O que ocorre são sanções, tais como:

aguardar na porta da Casa III depois da fuga, comer por último, entre outros, que não

promovem mudanças de atitude porque se baseiam em estratégias punitivas e não

reflexivas.

Proibir para proteger seria confiná-los? E desproteger para garantir a liberdade

seria o que? Ao que parece, instala-se um paradoxo. Justamente a ação do Estado de

proteger e cuidar das crianças e adolescentes oportuniza situações diversas de desproteção

e descuidos, reproduzindo a vulnerabilização, ou pior, criando-a.

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Com base na minha vivência de campo, na maioria das ocasiões, os adolescentes,

especificamente, em situação de acolhimento, lidavam com muitas regras e pouca escuta,

várias punições e pouca conversa. Nos momentos de angústia ou indignação, poucos

adolescentes tinham segurança para se abrir com os profissionais do abrigo, porque a

maioria destes, quando estavam dispostos, buscavam escutar “com desdém” o que os

adolescentes falavam, sem acolhimento de fato. Quando havia a conversa entre eles, “em

segredo”, o sigilo era quebrado, como afirmou Tigrão. Desse modo, a confiança não se

estabelecia, o que impedia diálogos e aberturas importantes para adolescentes que viviam

um contexto tão difícil. Positivamente, também observei algumas pessoas da equipe

sensíveis, preocupados em como os adolescentes se sentiam, apesar de boa parte dos

profissionais corrigi-los após “infrações” com medidas coercitivas. Guru e Tigrão

criticaram e elogiaram profissionais. Os adolescentes reconheceram alguns deles como

figuras importantes em suas vidas. Sendo assim, as dificuldades impostas pelo sistema,

em questão, não são pretextos para a falta de cuidado e ausência de real acolhimento, ou

de uma descrença nos abrigados.

Este quadro reflete não só uma contradição do serviço de Acolhimento

Institucional, mas também a realidade da precária qualificação profissional para lidar com

demandas tão difíceis (Siqueira e Dell’Áglio, 2006; Sequeira, 2008).

A partir das vozes de educadores e adolescentes, atrelada à minha própria

observação na Casa III, a proteção e desproteção acontecem ao mesmo tempo, assim

como a mesmice/“prisão” ocorre simultaneamente, ao amparo e preparo.

Talvez fizesse sentido pensarmos que um lugar permeado por essa dualidade,

influenciasse na percepção dos adolescentes sobre si mesmos, também como dual, mas

não foi isso que percebi. Apesar de Tigrão, ter comentado sobre seus “defeitos” e

“qualidades”, os dois participantes se veem, de modo geral, como “desobedientes” e

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“malvados”. Antes do abrigamento, os adolescentes tiveram concepções pessoais alusivas

às normativas sociais de “transgressor” e “obediente”, e estas, continuaram presentes

dentro do abrigo, muito embora, este espaço lembrassem os adolescentes, na maioria das

vezes, do quanto eles eram “transgressores”.

Antes do abrigo, Guru se considerava “chato” e “legal” porque não seguia regras,

era egoísta, se drogava e roubava, mas, ao mesmo tempo, agia corretamente quando

frequentava a escola, tirava boas notas e gostava dos irmãos. Já Tigrão, obedecia às

ordenanças de seu pai, mas, em contrapartida, “camuflava” uma quebra de regra quando

“se montava” de menina escondido dele.

No contexto de abrigo, suas visões de si também eram construídas pela obediência

ou não às regras da instituição. A autoimagem de Guru era de “chato” e “burro”, enquanto

a de Tigrão, de “brigão” e “viadinho”. Guru desobedecia às normas da Casa III, se evadia,

e provavelmente, ainda se drogava. Ele não lembrava mais dos aprendizados escolares da

infância e não tinha o mesmo rendimento de antes na escola. Ele se sentia egoísta e

“trapaceiro”. Tigrão se via como desobediente por quebrar regras, fugir e prostituir.

Porém, ao mesmo tempo, podia expressar quem ele se considerava ser, não precisando

mais esconder.

Dessa maneira, a institucionalização promovia aos adolescentes: experiências

positivas e negativas, aceitação e rejeição, potencialização e menosprezo por serem

adolescentes “difíceis”. Essa representação de “difíceis” decorre do fato desses

adolescentes advirem de família “problemáticas”. Além disso, produz-se também a

representação de um ideal de bons adolescentes, os quais Guru e outros deveriam se

encaixar. Assim, o mesmo abrigo que acolhe, que protege, que enseja oportunidades, que

livra “dos perigos da rua”, é o mesmo que desprotege, que agride, que segrega, que

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dociliza, que amansa, e que descumpre as próprias medidas protetivas as quais foram

criadas.

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4.2.3. Eixo 3: Uma luz no fim do abrigo

Este eixo vem discutir os aspectos de “luz” e “escuridão”, que, metaforicamente,

representam as expectativas dos adolescentes sobre suas vidas pós-abrigo. A “luz”

significa a esperança dos participantes por um futuro “melhor”, a “escuridão” está

associada à idealização e ao concreto. Nesse sentido, discutirei estas representações

emergidas nas questões sobre: percepção de si no futuro, família, anseios profissionais,

aspirações existenciais, mudança de vida, aceitação e reconhecimento de pessoas.

Na dimensão O que quero para mim no futuro, Guru expressa expectativas

positivas em relação ao seu futuro. Tais expectativas como ser professor de matemática e

ser policial, parecem estar ancoradas em uma tensão estrutural: ser bom, digno e honesto

versus ser marginal. Alguns estudos, como os de Bezerra (2009) e Nascimento (2005),

apontam que o olhar social incide de forma intensa sobre a autoimagem do adolescente.

Dito de outra forma, a imagem de si, construída pelos adolescentes nos espaços

periféricos e contextos de vulnerabilização são atravessadas pelos discursos sociais sobre

o viver nesses espaços. Lembramos que Guru vivia na rua e que diversos autores

denunciam as representações “mortíferas” sobre o ser e estar na rua. Entre eles, podemos

citar: Rizzini (1998), Takeuti (1996), Faleiros (1997), que discutem como em diversos

momentos da história desse país, a sociedade engendra discursos de culpabilização nos

quais a criança e o jovem, em situação de rua, teria “o germe” potencial de violência,

necessitando a repressão e a disciplina. Lembramos também com Nascimento (2013), que

ainda hoje perdura a imagem de crianças e jovens em situação de rua como “menor

vicioso, desocupado, em situação de vadiagem”, e que tudo isso seria fruto de uma família

que não “possuía condições de discipliná-lo”. Ao contrário da imagem dos jovens

analisados por Takeuti (2003), participantes do Movimento Nacional de Meninos e

Meninas de Rua (MNMNR). Os adolescentes abrigados de nosso estudo não buscaram ser

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respeitados a qualquer preço. Não querem prestígio às custas de uma imagem de si

negativa de “bandido”, por exemplo. Preferem visualizar o ser professor, ou policial, por

mais que sintam que também não é isso que os preenche. Assim, o preço de um olhar

social negativo, quando essa autoimagem é construída em torno da marginalidade, da

transgressão, enfim do “ser bandido” que é a sombra do ser policial, do ser professor.

Nessa perspectiva, compreendi que Guru, na expectativa de uma adoção, queria

ser visto como um adolescente “comum” em uma família “normal”. Ele almejava a

oportunidade de ter uma realidade contrária da que viveu, que abrangia, além de um

contexto familiar que oferecesse afeto, a realização do sonho de ter uma vida nova, na

contramão dos sofrimentos e “maus” percursos que trilhou.

Enquanto Guru fugia de um determinismo do “ser criminoso”, Tigrão ansiava

viver em uma situação de maior liberdade e menos preconceito por “ser viado”. Ambos

buscavam aceitação e compreensão. Tive a impressão de que as escolhas de Tigrão

voltadas para o futuro, se referiam às expectativas de sentir-se melhor com uma opção

clara de seu gênero, por meio do seu corpo, principalmente, em relação ao tratamento dos

outros. Tigrão demonstrou se interessar por espaços onde se sentisse mais à vontade. Sua

intenção em ser adotado por um casal gay também refletia esse interesse de viver em um

espaço familiar em que pudesse se sentir mais confortável, compreendido e que facilitasse

a sua adaptação. Tigrão não buscava a adoção para substituir a família que ele já

considerava ter, mas sim, para uma nova oportunidade de viver em um espaço familiar.

O adolescente comunicou sua pretensão em estudar na Escola Estadual Edgar Barbosa

“porque lá tem mais gays e eu ia me sentir mais à vontade”.

Tigrão também expressou seus intentos referentes ao respeito e aceitação na

atividade sobre seus sonhos. No início dos nossos encontros, afirmou querer se tornar

professor de português, militar, advogado e delegado. As três últimas profissões foram

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almejadas por seu pai para ele. Primeiramente, o adolescente pretendia honrar os anseios,

em vida, de seu pai, para depois realizar o que desejava. É interessante pensarmos que

embora a intenção de Tigrão envolvesse o respeito que tinha pelo pai, a relação entre eles

mostrou também, como o filho, mesmo com o pai falecido, ainda sentia a necessidade de

“obedecê-lo” na escolha profissional. Compreendi que o anseio da profissão escolhida

por Tigrão, de professor, teve relação com uma atuação digna de admiração pelas pessoas.

Da mesma maneira, o fato de honrar os intentos do pai, significaria: ser um homem

respeitável.

Para Tigrão, o português tinha um significado importante devido a experiência do

adolescente, no PETI, com as aulas de letramento, que também o ajudaram a aprender a

ler e escrever no contexto das práticas sociais de leitura e escrita. Compreendi que essa

vivência foi marcante para ele, influenciando na sua opção de “ser professor”, que lhe

proporcionaria o respeito das pessoas, com o português, disciplina a qual se identificava.

Esta profissão lhe permitiria um caminho de aceitação maior pelo pai, caso não fosse

viável a carreira militar, de advogado ou delegado; diferente de suas escolhas por ser

travesti e cabeleireiro, onde a aceitação não ocorreria.

No caso de Guru, seu interesse pela matemática surgiu na sua vivência como

pedinte na rua e, a partir disso, ele conseguiu construir pontes entre algo que é “do gostar”

(matemática) e da experiência prática (pedinte, catador de lixo), produzindo habilidades

e competências no contexto de vulnerabilização. Assim, tornar-se professor seria uma

forma de extrair admiração e reconhecimento de uma vivência difícil. O contexto de rua,

então, “ensinou” Guru a lidar com as contas do dia-a-dia, beneficiou seu rendimento

escolar, que além de potencializá-lo, despertou sua sede de aprendizado. Dessa maneira,

as experiências práticas antes do abrigo ainda atuaram fortemente na construção de seus

horizontes de vida.

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Alguns sonhos acima, relatados pelos participantes, representam o aspecto da

idealização, que se localiza no campo do inatingível, como ser policial, militar, delegado

e advogado. Eram ambições influenciadas pelo que proporcionam socialmente: aceitação

e valorização (Guará, 2006). Por outro lado, a escolha pela matemática, por Guru, e

português, por Tigrão, na profissão de professor, de alguma maneira, era uma tentativa

de conciliar a identificação pessoal com a aceitação social. Assim, as aspirações

profissionais dos adolescentes passeavam entre conteúdo da idealização com o conteúdo

do concreto, mas sem um caminho e destino claros.

Ao pensar sobre a dimensão Como me vejo no futuro? É essencial considerar que

a atividade que mais proporcionou reflexões sobre o aspecto do concreto, no pós-

acolhimento, foi Auto-retrato antes, durante e depois do abrigo. Aparentemente, as

imagens dos dois participantes pareceram demonstrar somente aspectos distintos, quando

uma se volta para o contexto de rua, e a outra, para a questão de gênero. Mas foi possível

entender que ambos retrataram as oportunidades que a rua lhes oferece como saída de

sobrevivência: Guru no retorno à rua para catar lixo e Tigrão na continuidade de suas idas

à rua para se prostituir. Deste modo, eles representaram suas opções concretas de viver

depois do desligamento institucional. Apesar do anseio de ambos pela adoção, não

demonstraram acreditar que seria possível, pelo fator idade, tendo sido mais uma

“evidência” de que quando saíssem da Casa III, teriam que “se virar” com o que sabiam

fazer. Eles demonstraram tranquilidade e naturalidade ao me contar suas perspectivas de

futuro, como se estivessem, de certa forma, se preparando para enfrentar a realidade por

trás dos muros sem ter a Casa III para voltarem a se abrigar. Embora uma reação

“positiva” diante da fase de desligamento, o que se segue é o sentimento de vazio e

desamparo social pela inexistência de mecanismos protetivos nas políticas em torno da

juventude do país (Silva, 2010; Cruz, 2010).

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No fim do processo de construção do Scrapbook, as idealizações profissionais dos

adolescentes foram embaçando e dando lugar ao que eles consideravam mais provável de

acontecer, o concreto. Entretanto, mesmo diante da escuridão, conseguiram enxergar uma

luz no fim do abrigo que mostrava outras possibilidades na fresta entre a janela do

concreto e a janela da idealização. Esta fresta se chama esperança. Uma esperança difusa,

sustentada na possibilidade de que dias melhores virão, embora não se saiba como.

Guru passou a ver outras opções profissionais que faziam sentido para sua vida:

ser jogador de futebol, ser lutador, jogador de videogame ou profissional do abrigo. Tais

atuações tinham relação com os seus interesses pessoais, hobbies, e estavam mais de

acordo com as condições que Guru enxergava ter para alcançar em sua vida. Então,

novamente, redefiniu sua rota, e naquele momento, o menino de rua não havia retornado,

esse saiu de cena. Redefinições que representam ressignificações. Ressignificações essas

que também aconteceram em sua perspectiva de família. Com o passar dos encontros,

Guru foi ampliando seu olhar, no sentido de não precisar ser adotado para se sentir em

uma família, afinal, passou a ver que possuía várias famílias: uma de sangue e outras que

ele mesmo adotou como entes familiares, amigos e pessoas do abrigo. Dilatou mais sua

visão quando considerou o fato dele poder constituir sua própria família, casando e tendo

filhos.

Tigrão, na devolutiva, me disse que estava fazendo um curso de cabeleireiro e que

iria seguir a profissão. Pareceu descobrir um caminho no qual poderia ser mais autêntico,

pois o profissional da área da beleza possui maior aceitação quanto a estilos, modos de

ser, podendo ele, inclusive, tornar-se travesti.

Guru e Tigrão não associaram suas últimas aspirações – jogador de videogame,

jogador de futebol ou prostituição – como sonhos, mas sim, como possibilidades viáveis

do porvir. O sentido de sonho, para eles, pareceu significar: querer adquirir algo ou se

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tornar alguém que apreciam ou admiram, mas que é bem difícil de obter ou conquistar,

isso é, pretensões inalcançáveis. Sonhar seria, então, viajar no campo da imaginação.

Quando ouvi os sonhos dos adolescentes, no início dos encontros, fiquei empolgada com

o interesse deles por profissões honestas e admiráveis. Quando esses sonhos saíram de

cena, sendo substituídos por pretensões de menor realce, me percebi desanimada e,

depois, me dei conta que estava reproduzindo o pensamento predominante na sociedade

ao descreditar o valor das escolhas de menor notabilidade e representatividade. Assim, os

adolescentes entram nessa movimento e passam a almejar aquilo que as pessoas

reconheceriam e admirariam que eles buscassem. Por ser duro se verem distante dessas

ambições, todos conseguem ver outras possibilidades que fazem sentido e que são mais

possíveis, se frustrando com a impotência e incapacidade.

Foi duro para mim e confuso a dualidade da perspectiva de futuro que envolve

uma visão mais pessimista e mais cruel da realidade pós-abrigo e, ao mesmo tempo, uma

idealização, sonhos de um futuro profissional, por exemplo, diferente. Essa confusão me

ocorreu pela busca do lugar da ressignificação, como se este termo denotasse pensar

positivamente sobre si mesmo. Abandonei essa noção monolítica quando aprendi que a

ressignificação pode acontecer quando ocorre uma aceitação de determinada realidade,

que antes não era vista ou considerada como algo que poderia ser bom. Guru, por

exemplo, demonstrou com muita naturalidade e tranquilidade o fato de voltar a rua depois

do desligamento. Ressignificar, então, seria significar de novo, no sentido de, passar a

enxergar a realidade dura como ela é, sem negá-la, e assumir essa situação e procurar

contextualizá-la de um outro ponto de vista. Nesse sentido, um novo significado, não

apaga o fato de que depois do abrigamento as chances concretas dos adolescentes,

objetivamente falando, são parcas, são menores, e que a rua é a realidade mais provável.

Dessa maneira, ressignificar é entrar no campo das possibilidades, a partir do que é dado.

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O pensamento de Guru, com a ideia de que sairá do abrigo, talvez tenha sido de ver o que

ele conseguiria fazer a partir da realidade mais difícil, sem emprego e sem qualificação;

que caminhos seriam possíveis que não fossem os velhos caminhos, como de roubos,

drogas e marginalidade. Mesmo considerando a grande probabilidade de retorno a rua,

no nosso último encontro, ele ampliou suas possiblidades de atuação fora do abrigo, com

o se tornar jogador de futebol e de videogame, aspirações que não exigem qualificação

como ser professor de matemática e policial.

Nas minhas impressões iniciais, não havia percebido ressignificação na vida de

Tigrão. No momento de escrita da análise, percebi que o adolescente enxergou a

prostituição como uma realidade mais provável depois do abrigo, quando se desenhou

como travesti no fim dos nossos encontros. No início, Tigrão havia expressado suas

ambições em se tornar professor de português e flautista. Naquele momento, ele não

estava frequentando a escola e havia diminuído sua empolgação com a flauta dose. O que

ele sabia fazer era se prostituir. Durante a devolutiva, Tigrão comentou que estava

fazendo curso de cabeleireiro e que atuaria nesta profissão posteriormente. A visão do

futuro muda quando no presente se enxerga condições que o levem a outros caminhos.

Dessa maneira, em contraponto com o que Silva (2010) argumenta, essa pesquisa

demonstrou que, mesmo com as contradições e dualidades da Casa III, é possível que os

abrigos proporcionem um espaço no qual é possível um desenvolvimento físico e

psicológico positivo para os adolescentes, bem como a elaboração de projetos

existenciais. Observei com o meu próprio olhar e a partir das narrativas dos adolescentes,

os prejuízos da institucionalização na vida dos abrigados. Todavia, percebi também que

a Unidade III, com seus erros, limitações e dificuldades, se esforça para promover

condições de um ambiente menos hostil para os adolescentes, atividades formativas, e

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oportunidades para elaborações de seus projetos de vida. Para atender, na íntegra, o papel

dos serviços de acolhimento, há ainda um longo caminho a ser percorrido.

Como a proposta desse trabalho é construir um diálogo com os adolescentes, o

que mais importa é o que eles dizem sobre o abrigo. Dentre os vários pontos abordados,

um desses tinha relação com o significado de pessoas do abrigo para os participantes.

Tigrão reconheceu a relevância de alguns profissionais das instituições de acolhimento

que passou, considerando-os como figuras importantes em sua trajetória, em As 10

pessoas mais importantes. Guru em algumas atividades deixou clara a relevância de

pessoas do abrigo como referências familiares e figuras de cuidado. Ambos se

demonstraram gratos pelo acolhimento oferecido.

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5.0. Fechando o álbum e abrindo novas histórias: minhas

considerações

Figura 7. Carta para mim no futuro, por Guru e Tigrão.

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O que eu gostaria de ressaltar com essa experiência: o abrigo é um espaço de muita

complexidade. Não pode ser definido em termos maniqueístas: bom ou ruim, positivo ou

negativo, estruturador ou desestruturador. Muito mais do que isso, e talvez o aspecto mais

difícil de minha vivência, é constatar ao refletir sobre a vivência dos adolescentes, que

podem existir muitos espaços dentro do mesmo espaço de acolhimento institucional:

espaços regeneradores e lúdicos, mas também espaços de descaso, de abandono, de

brutalização. Certamente é difícil deparar-se com essa realidade: considerar que um lugar

projetado para acolher possa ser tão hostil e de rejeitador. Em alguns momentos tive a

impressão que Guru e Tigrão viviam em dois lugares diferentes, com profissionais e

rotinas diferentes. Trazer esses “espaços de experiência” para um único lugar foi muito

desafiador neste trabalho.

Narrar uma vida não é uma tarefa simples. Usei durante a dissertação uma

metáfora referindo que os adolescentes deixavam a cada encontro peças de um quebra-

cabeças. Ao encerrar este trabalho, tenho a compreensão que se tivesse um ano a mais

com eles, sei que não teria montado a imagem final. Com isso, entendo que o trabalho

das narrativas é sempre aproximado: são fragmentos de uma vida que se revelam nas

falas. Mas também nos gestos. Nas expressões faciais. Na interação com a pesquisadora.

Foi um intenso e longo trabalho de campo, onde várias vozes foram ouvidas e mais peças

entraram no jogo para compor, minimamente, o quebra-cabeça. Muito embora, dois

adolescentes tenham sido escolhidos para representar a dinâmica complexa das histórias

de vida dos que imersam o contexto de acolhimento institucional.

Nossos encontros semanais, tiveram um efeito na continuidade do processo

autobiográfico, de reflexão e ressignificação dos adolescentes, permitindo uma

elaboração mais aperfeiçoada da consciência de si, percepção do seu passado e realidade

atual, bem como de seus desejos existenciais. O ato de narrar permitiu a organização do

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pensamento e da fala sendo aperfeiçoados com o passar das atividades. Proporcionou que

eles lembrassem do que viveram, mantendo suas memórias vivas para iluminar os

caminhos que tomarão.

Além de Tigrão e Guru, tive a oportunidade de recolher fragmentos biográficos

de outros adolescentes da Unidade de acolhimento III. Foi um ano de intenso trabalho de

campo no qual suas vidas ficaram estampadas não somente em minha memória, mas

acima de tudo no meu coração. O dispositivo que foi construído durante esse período não

era simplesmente para “coleta de dados”. Posso afirmar agora que, sem a pretensão de

promover uma “psicoterapia de grupo”, pude oportunizar reflexões que acredito que

tiveram algum nível de efeito terapêutico a cada novo encontro. Nos nossos encontros foi

desenvolvido uma relação de confiança que permitiu que os adolescentes expusessem

suas feridas, esperanças e descrenças. Mesmo considerando que na devolutiva, o

“desfecho” não tenha sido o esperado e que o trabalho do pesquisador, com o dispositivo

de intervenção não “resultou” em uma “cura” ou “bem-estar”, acredito que o pesquisador,

como diz Boris Cyrulnik (2009), pode atuar, como foi minha intenção, como um tutor de

resiliência. Nesse sentido, na devolutiva, os adolescentes me falaram como foi positivo

os encontros que tivemos e eu correspondi.

O abrigamento não traz um colorido romântico da realidade. Em relação às

perspectivas posterior ao abrigo, alguns meninos tinham estampado uma noção de

realidade que voltará a se repetir como na condição de vida pré-abrigo, ou continuará

vivendo uma condição vulnerável que fora adquirida no abrigo.

Visualizei o quanto o contexto de acolhimento é gerador de tensão, estresse pelas

inúmeras dificuldades do próprio sistema e grandes demandas de trabalho para os

profissionais. Como cuidar sem ser cuidado? Como cuidar sem preparo? Há pouco

treinamento e reciclagem para as equipes deste contexto, a fim de lidar com tanta

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complexidade ao mesmo tempo. Os educadores sociais foram os que notei que possuíam

mais inabilidade na área. Nesse quadro de tensão, os profissionais diante do desafio no

lidar com os “filhos dos outros”, que passam a ser “filhos do Estado”11, o que predomina

é a impaciência, ao invés da compreensão. Como compreender com pouca escuta e muita

fala? Se a voz do “maior” se sobressai a do “menor”? Se a opinião do “menor” não tem

importância? Muitas vezes, o “maior”, por si mesmo, faz conclusões de se como deu a

história do “menor” e ainda julga como será o futuro deste. A intolerância passa a ser

permeada pelos dois lados, profissionais e abrigados, e acrescento um terceiro: o Estado

que não cuida do cuidador dos “seus filhos”.

Discutir a situação do abrigamento no Brasil fugiria completamente ao escopo da

dissertação nessas páginas finais. No entanto, é imprescindível dizer que, ao partir das

expressões dos jovens participantes das oficinas, a realidade é muito complexa: espaços

como as instituições de acolhimento são sem dúvida conquistas de um longo trabalho em

torno dos direitos das crianças e dos adolescentes. Sem dúvida, tais serviços ofertam

algum um tipo de cuidado que estaria ausente sem a sua existência. Por outro lado,

seguindo uma lógica contraditória e algumas vezes cruel, podem se tornar espaços de

perpetuação de violação de direitos. Talvez, como alguns autores sugerem, sejam um

“mal necessário” e complemento dizendo que talvez também sejam um “bem

indesejado”. Mas precisam ser interrogadas, sobretudo, acerca do processo de

sócioeducação, das bases pedagógicas e também políticas na qual se assentam e da

atenção aos trabalhadores sociais que devem operacionalizá-las.

Para além disso, importa ouvir os atores. Aqueles para as quais as políticas são

criadas. Muito se fala em nome deles. Ainda é preciso dar voz para que explicitem sua

11 Na tese de Silva (2015) compreendi que alguns autores fazem uma discussão crítica acerca desse

ponto, enfatizando que a situação é muito mais complexa, tendo em vista as tensões que existem entre as

políticas de Estado e as políticas de governo a cada vez.

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própria visão acerca daquilo que lhes concerne. Foi esse o desafio do nosso trabalho.

Embora a tentação de “dizer por” seja enorme, procuramos equilibrar a análise acadêmica

com a expressão do sentir e pensar dos adolescentes.

Foi justamente na autenticidade de suas narrativas que se tornou possível

apresentá-los não como pobres coitadinhos vítimas de um sistema cruel, embora a

perversidade que diferencia os diversos tipos de infância/adolescência no país seja real.

Ainda, graças a essa mesma autenticidade foi possível ultrapassar os estereótipos de

“desajustados”, “disfuncionais”, “maus”, “bandidos”, entre outros. As narrativas

elucidam o que eles são: sem romantizar, fantasiar ou atenuar. A vida não é preta, não é

branca. Há milhões de matizes que exprimem muitas possibilidades de cor. A dissertação

não foi também sobre vítimas ou vilões, mas sobre o repertório múltiplo do humano em

face da vida e seus desafios.

Guru e Tigrão disseram de suas vidas singulares, únicas. E ao fazerem isso,

narraram muito mais do que sobre si mesmos. Em suas histórias encontramos os ecos de

muitas outras histórias de orfandade, perda, luto, frustrações, vulnerabilidade e pequenos

ganhos.

O contexto da dissertação é em torno de um sistema protetivo contraditório. Do

mesmo modo que os jovens protagonistas e suas narrativas. Um sistema que protege

desprotegendo. Adolescentes desprotegidos e que engendram modos de proteger a partir

daquilo que lhes é ofertado. Justamente por essa razão, não podem ser tomados como

tolos. Desenvolveram uma arte de sobreviver em meio a estrutura caótica de suas

existências. O que não é pouca coisa.

No entanto, alguma coisa precisa ser feita dessas histórias. Dar-lhes visibilidade e

problematizá-las é o mínimo que eu poderia fazer para honrá-las. Acredito que publicita-

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las é um modo de provocar-nos enquanto sociedade a pensar o que queremos de nossas

crianças e adolescentes neste país.

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Anexos

Modelos das páginas de scrapbook (retiradas do site fazendo história).

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Figura D1. Atividades Como eu sou, Carteira de Identidade, Minha Rotina e Músicas,

filmes e livros prediletos.

Figura D2. Atividades: Quando cheguei no abrigo, Sonhos, Minha família, As pessoas

mais importantes da minha vida.

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Figura D3. Atividades: Educadores, Sentimentos, Meu time de futebol e Irmãos.

Figura D4. Atividades: Uma história que vale a pena contar e Minhas saudades.

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Figura D5. Atividades: Meus segredos e Adolescentes do abrigo.

Figura D6. Atividades: As 5 coisas que mais gosto e As 5 coisas que menos gosto.

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Apêndice A

Comprovante de aprovação da pesquisa pelo Comitê de Ética do Hospital Universitário

Onofre Lopes – HUOL/UFRN

DADOS DO PROJETO DE PESQUISA

Título da Pesquisa: Produção de sentidos e caminhos existenciais: como adolescentes abrigados significam as suas histórias de vida?

Pesquisador: Lara Mendes Braga Rigoti

Área Temática:

Versão: 1

CAAE: 53133315.6.0000.5292

Instituição Proponente: Programa de Pós-graduação em Psicologia

Patrocinador Principal: Financiamento Próprio

DADOS DO PARECER

Número do Parecer: 1.439.863

Apresentação do Projeto:

Trata-se de um projeto de dissertação de mestrado do Programa de Pós-Graduação em Psicologia que visa estudar as histórias de vida de adolescentes abrigados. A situação de destituição familiar e, assim, o acolhimento institucional se dão por motivo de violência, negligência, abandono, ou familiares impossibilitados, no momento, de cuidado e proteção. Dessa forma, as crianças e adolescentes são abrigadas até ser possível o retorno ao convívio familiar. Ou em último caso, encaminhadas para família substituta. O acolhimento institucional, em forma de abrigo, é uma medida de proteção temporária e excepcional. Essa medida tem o intuito de garantir o direito à convivência familiar e comunitária que foram violados, seguindo um modelo diferente do anterior a 1988, o qual era voltado para à exclusão doutrina de proteção integral em substituição da doutrina de situação irregular.

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Nesse quadro, a tutela, exclusivamente jurídica, de crianças e adolescentes até 18 anos se tornou um compromisso do Estado em elação à garantia de assistência social gratuita, universal e integral. . A pesquisa será feita com 3 adolescentes abrigados. Como instrumentos de acesso as narrativas será realizado primeiramente o Scrapbook (álbum personalizado de composição de memórias e recordações que envolvem fotos e produções artísticas). E em segundo momento, ele(a) poderá construir o Storyboard (desenhos sobre cenas de uma estória fictícia, em formato de história em quadrinhos, baseada na realidade dos adolescentes). Ambas as atividades serão acompanhadas e orientadas pela pesquisadora responsável. Durante a construção dessas duas atividades, a pesquisadora responsável fará algumas perguntas abertas para melhor compreensão da história de vida de cada participante, de acordo com que está sendo produzido no momento. A aplicação desses instrumentos durará quatro meses, sendo feitos encontros semanais. Será necessário a autorização do uso de imagens, tendo em vista que a pesquisa observará os scrapbooks que terão fotos coladas. Desse modo, será preservado o anonimato do adolescente. O único critério para participação é o tempo previsto de permanência na instituição, de no mínimo 4 meses, fornecido pela coordenação da unidade. Este procedimento tem o intuito de prevenir que a pesquisa seja interrompida por desligamento do adolescente do serviço, já que se trata de uma instituição com medida provisória.

Objetivo da Pesquisa:

Objetivo Geral

Compreender como adolescentes em situação de acolhimento institucionalsignificam suas

histórias de vida.

Objetivos específicos

• Compreender como adolescentes abrigados veem as suas vivências antes do abrigo;• Entender

como tem sido para eles a experiência da institucionalização;

• Conhecer quais as aspirações e projetos existenciais dos adolescentes depois que saírem da

instituição.

Avaliação dos Riscos e Benefícios:

Riscos: São descritos de forma adequada, informado claramente as atividades e o risco no decorrer das atividades á que a realização do Scrapbook e Storyboard a previsão de riscos é mínima, ou seja, risco que o adolescente corre é semelhante àquele sentido num exame físico ou psicológico de rotina.Pode acontecer um desconforto emocional por alguma pergunta durante a construção das atividades descritas acima, que será minimizado através de um encaminhamento a um serviço de Psicologia. Cabe registrar que a pesquisadora possui condições de oferecer um acolhimento e suporte terapêutico inicial, devido a ser profissional de psicologia. Em caso de algum problema que ele possa ter, relacionado com a pesquisa, ele terá direito a assistência gratuita que será prestada pela pesquisadora Lara Mendes Braga Rigoti. Benefícios: O adolescente terá como benefício a contribuição da produção de conhecimento na área do

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estudo, permanecer com os materiais produzidos, assim como a possibilidade de refletir sobre si mesmo e sobre seus projetos de vida, além de ressignificar vivências possivelmente dolorosas.

Comentários e Considerações sobre a Pesquisa:

Pesquisa relevante para a área.

Recomendações:

Sem recomendações adicionais.

Conclusões ou Pendências e Lista de Inadequações:

Projeto apresentado em conformidade com

Considerações Finais a critério do CEP:

Este parecer foi elaborado baseado nos documentos abaixo relacionados:

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199

Situação do Parecer:

Aprovado

Necessita Apreciação da CONEP:

Não

NATAL, 07 de Março de 2016

______________________________________

Assinado por:

HELIO ROBERTO HEKIS

(Coordenador)

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200

Apêndice B

Roteiro de perguntas de exploração

▪ O que você quis dizer com_______?

▪ O que isto representa para você?

▪ Como você se sentia naquele tempo?

Nestes itens, estão exemplos de perguntas abertas mais frequentes que realizei, quando

me surgiram dúvidas, com finalidade de esclarecer os discursos dos adolescentes.

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201

Apêndice C

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE

CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA

(PPGPSI/UFRN)

TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO – TCLE

Esclarecimentos

Estamos solicitando a você a autorização para que o adolescente pelo qual você é

responsável participe da pesquisa: “PRODUÇÃO DE SENTIDOS E CAMINHOS EXISTENCIAIS:

COMO ADOLESCENTES ABRIGADOS SIGNIFICAM AS SUAS HISTÓRIAS DE VIDA?”, que

tem como pesquisadora responsável Lara Mendes Braga Rigoti, sob orientação do Profº Dr.

Marlos Alves Bezerra.

Esta pesquisa pretende compreender como adolescentes em situação de acolhimento

institucional significam suas histórias de vida, antes do abrigo, durante o período de

institucionalização e como imaginam que será depois que saírem do abrigo.

O motivo que nos leva a fazer este estudo é querer contribuir com o campo do

conhecimento sobre os adolescentes que vivem em situação de acolhimento institucional. Além

disso, proporcionar a utilização de materiais alternativos e lúdicos que permitam que os

adolescentes falem de si mesmos, de seus interesses e reflitam sobre suas histórias de vida e

projetos existenciais.

Caso você decida autorizar, ele(a) poderá elaborar um Scrapbook (álbum personalizado

de composição de memórias e recordações que envolvem fotos e produções artísticas). E num

segundo momento, ele(a) poderá construir o Storyboard (desenhos sobre cenas da história de

vida dele(a) em formato de histórias em quadrinhos).

Ambas as atividades serão acompanhadas e orientadas pelo pesquisador responsável.

Durante a construção dessas duas atividades, a pesquisadora responsável fará algumas

perguntas abertas para melhor compreensão da história de vida dele(a), de acordo com que está

sendo produzido no momento. A aplicação desses instrumentos durará quatro meses. Será

necessário a autorização do uso de imagens uma vez que os scrapbooks que terão fotos coladas

do adolescente. Desse modo, será preservado o anonimato do adolescente.

Durante a realização do Scrapbook e Storyboard a previsão de riscos é mínima, ou seja,

o risco que ele(a) corre é semelhante àquele sentido numa sessão de psicologia.

Pode acontecer um desconforto emocional por alguma pergunta durante a construção

das atividades descritas acima, mas caso isso aconteça, que será minimizado através de um

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encaminhamento a um serviço de Psicologia. Cabe registrar que a pesquisadora possui

condições de oferecer um acolhimento e suporte terapêutico inicial, devido a ser profissional de

psicologia. O(a) adolescente terá como benefício a contribuição da produção de conhecimento

na área do estudo, ficar com os materiais produzidos, assim como ter a possibilidade de

ressignificar algumas vivências dolorosas e elaborar alguns projetos de vida.

Em caso de algum problema que ele(a) possa ter, relacionado com a pesquisa, ele(a)

terá direito a assistência gratuita que será prestada pela pesquisadora Lara Mendes Braga Rigoti.

Durante todo o período da pesquisa você poderá tirar suas dúvidas ligando para Lara

Mendes Braga Rigoti, através do celular: (84) 99987-2160, ou do e-mail

[email protected], ou para o orientador da pesquisa Marlos Alves Bezerra Celular: (84)

99987-4642, [email protected]. Você poderá entrar em contato também com o Comitê

de Ética em Pesquisa do Hospital Universitário Onofre Lopes (CEP/HUOL) através do telefone:

3342-5003, ou pelo e-mail: [email protected]. O CEP/HUOL fica localizado no endereço:

Av. Nilo Peçanha, 620, Petrópolis, CEP 59.012-300 Nata/RN.

Você tem o direito de recusar sua autorização, em qualquer fase da pesquisa, sem

nenhum prejuízo para você e para o(a) adolescente.

Os dados que ele(a) irá nos fornecer serão confidenciais e serão divulgados apenas em

congressos ou publicações científicas, não havendo divulgação de nenhum dado que possa

identificá-lo(a).

Esses dados serão guardados pelo pesquisador responsável por essa pesquisa na sala

do Laboratório de Estudos em Tanatologia e Humanização das Práticas em Saúde (LETHS), no

Laboratório de Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, por um período de

5 anos.

Se você tiver algum gasto pela participação dele(a) nessa pesquisa, ele será assumido

pelo pesquisador e reembolsado para você.

Se ele(a) sofrer algum dano comprovadamente decorrente desta pesquisa, ele(a) será

indenizado.

Qualquer dúvida sobre a ética dessa pesquisa você deverá ligar para o Comitê de Ética

em Pesquisa da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, telefone 3215-3135.

Este documento foi impresso em duas vias. Uma ficará com você e a outra com o

pesquisador responsável Lara Mendes Braga Rigoti.

Consentimento Livre e Esclarecido

Eu, ____________________________________________, representante legal do(a)

adolescente ____________________________________________, autorizo sua participação

na pesquisa “PRODUÇÃO DE SENTIDOS E CAMINHOS EXISTENCIAIS: COMO

ADOLESCENTES ABRIGADOS SIGNIFICAM AS SUAS HISTÓRIAS DE VIDA?”.

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203

Esta autorização foi concedida após os esclarecimentos que recebi sobre os objetivos,

importância e o modo como os dados serão coletados, por ter entendido os riscos, desconfortos

e benefícios que essa pesquisa pode trazer para ele(a) e também por ter compreendido todos

os direitos que ele(a) terá como participante e eu como seu representante legal.

Autorizo, ainda, a publicação das informações fornecidas por ele(a) em congressos e/ou

publicações científicas, desde que os dados apresentados não possam identificá-lo(a).

Natal, _____________________.

Assinatura do representante legal

Declaração do pesquisador responsável

Como pesquisador responsável pelo estudo “PRODUÇÃO DE SENTIDOS E CAMINHOS

EXISTENCIAIS: COMO ADOLESCENTES ABRIGADOS SIGNIFICAM AS SUAS HISTÓRIAS

DE VIDA?”, declaro que assumo a inteira responsabilidade de cumprir fielmente os

procedimentos metodologicamente e direitos que foram esclarecidos e assegurados ao

participante desse estudo, assim como manter sigilo e confidencialidade sobre a identidade do

mesmo.

Declaro ainda estar ciente que na inobservância do compromisso ora assumido estarei

infringindo as normas e diretrizes propostas pela Resolução 466/12 do Conselho Nacional de

Saúde – CNS, que regulamenta as pesquisas envolvendo o ser humano.

Natal, _____________________.

Assinatura do pesquisador responsável

Assinatura do professor orientador

Impressão datiloscópica do

representante

legal

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Apêndice D

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE

CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA

(PPGPSI/UFRN)

TERMO DE ASSENTIMENTO

Através deste termo esclareço que aceito participar da pesquisa “Produção de sentidos

e caminhos existenciais: como adolescentes abrigados significam as suas histórias de

vida?”, coordenada por Lara Mendes Braga Rigoti, sob orientação do Profº Dr. Marlos Alves

Bezerra.

Como sou menor de idade, meu responsável legal assinou um Termo de Consentimento

Livre e Esclarecido onde o pesquisador responsável explica a maneira como a pesquisa será

realizada, todos os meus direitos, riscos e benefícios que terei ao participar dessa pesquisa.

Nesse mesmo um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido o pesquisador

responsável declarou que cumprirá tudo que ele esclareceu e prometeu.

Juntamente com o meu representante legal, recebi, de forma que entendi, explicações

sobre essa pesquisa e os endereços onde devo tirar minhas dúvidas sobre a pesquisa e se a

mesma é eticamente aceitável.

Depois de conversar com meu representante legal, resolvi voluntariamente participar

dessa pesquisa.

Natal, (___/___/_____).

__________________________________________

Assinatura do participante

___________________________________________

Assinatura de uma testemunha

___________________________________________

Assinatura do pesquisador responsável

___________________________________________

Assinatura do professor orientador

Impressão datiloscópica do participante

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205

Apêndice E

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE

CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA

(PPGPSI/UFRN)

TERMO DE AUTORIZAÇÃO PARA USO DE IMAGENS (FOTOS)

Eu, _________________________ AUTORIZO Lara Mendes Braga Rigoti,

coordenadora da pesquisa intitulada: “Produção de sentidos e caminhos existenciais: como

adolescentes abrigados significam as suas histórias de vida?”, sob a orientação do Profº

Dr. Marlos Alves Bezerra, a fixar, armazenar e exibir a minha imagem por meio de foto com o fim

específico de inseri-la nas informações que serão geradas na pesquisa, aqui citada, e em outras

publicações dela decorrentes, quais sejam: revistas científicas, congressos e jornais.

A presente autorização abrange, exclusivamente, o uso de minha imagem para os fins

aqui estabelecidos e deverá sempre preservar o meu anonimato. Qualquer outra forma de

utilização e/ou reprodução deverá ser por mim autorizada.

A pesquisadora responsável Lara Mendes Braga Rigoti, assegurou-me que os dados

serão armazenados em meio digital, sob sua responsabilidade, por 5 anos, e após esse período,

serão destruídas.

Assegurou-me, também, que serei livre para interromper minha participação na pesquisa

a qualquer momento e/ou solicitar a posse de minhas imagens.

Natal, (___/___/_____).

Assinatura do participante da pesquisa

Assinatura e carimbo do pesquisador responsável

Assinatura do professor orientador

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Apêndice E

Algumas atividades realizadas pelos adolescentes.

Figura E1. Auto-retrato antes, durante e depois do abrigo de Tigrão e Guru.

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Figura E2. Minhas saudades, por Tigrão e Guru.

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208

Figura E3. Sonhos de Tigrão e Guru.

Figura E4. Como eu sou, por Tigrão e Guru.

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209

Figura E5. As 5 coisas que mais gosto, por Tigrão e Guru.

Figura E6. As 5 coisas que menos gosto, por Tigrão e Guru.