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UNIVERSIDADE REGIONAL INTEGRADA DO ALTO URUGUAI E DAS MISSÕES CÂMPUS DE FREDERICO WESTPHALEN PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS MESTRADO EM LETRAS ÁREA DE CONCENTRAÇÃO EM LITERATURA COMPARADA PROCESSOS DE MODERNIZAÇÃO CONSERVADORA NO BRASIL: UMA LEITURA DE RECORDAÇÕES DO ESCRIVÃO ISAÍAS CAMINHA, DE LIMA BARRETO Autora: JULIANA FALKOWSKI BURKARD Orientadora: Profª. Drª. SILVIA NIEDERAUER FREDERICO WESTPHALEN RS 2014

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UNIVERSIDADE REGIONAL INTEGRADA DO ALTO URUGUAI E DAS MISSÕES

CÂMPUS DE FREDERICO WESTPHALEN

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS

MESTRADO EM LETRAS

ÁREA DE CONCENTRAÇÃO EM LITERATURA COMPARADA

PROCESSOS DE MODERNIZAÇÃO CONSERVADORA NO BRASIL:

UMA LEITURA DE RECORDAÇÕES DO ESCRIVÃO ISAÍAS CAMINHA,

DE LIMA BARRETO

Autora: JULIANA FALKOWSKI BURKARD

Orientadora: Profª. Drª. SILVIA NIEDERAUER

FREDERICO WESTPHALEN – RS

2014

1

UNIIVERSIDADE REGIONAL INTEGRADA DO ALTO URUGUAI E DAS MISSÕES

CÂMPUS DE FREDERICO WESTPHALEN

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS

MESTRADO EM LETRAS

ÁREA DE CONCENTRAÇÃO EM LITERATURA COMPARADA

PROCESSOS DE MODERNIZAÇÃO CONSERVADORA NO BRASIL:

UMA LEITURA DE RECORDAÇÕES DO ESCRIVÃO ISAÍAS

CAMINHA, DE LIMA BARRETO

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa

de Pós-Graduação em Letras – Mestrado em

Letras, área de concentração em Literatura

Comparada da Universidade Regional Integrada

do Alto Uruguai e das Missões - Câmpus de

Frederico Westphalen sob a orientação da Profa.

Dra. Sílvia Niederauer, como requisito parcial para

a obtenção do título de Mestre em Letras.

FREDERICO WESTPHALEN – RS

2014

2

UNIVERSIDADE REGIONAL INTEGRADA DO ALTO URUGUAI E DAS MISSÕES

CÂMPUS DE FREDERICO WESTPHALEN

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS

MESTRADO EM LETRAS

ÁREA DE CONCENTRAÇÃO EM LITERATURA COMPARADA

A Comissão Examinadora, abaixo assinada,

aprova a Dissertação de Mestrado

PROCESSOS DE MODERNIZAÇÃO CONSERVADORA NO BRASIL:

UMA LEITURA DE RECORDAÇÕES DO ESCRIVÃO ISAÍAS

CAMINHA, DE LIMA BARRETO

elaborada por

Juliana Falkowski Burkard

como requisito parcial para a obtenção do grau de

Mestre em Letras

COMISSÃO EXAMINADORA

__________________________________________________

Profa. Dra. Sílvia Niederauer

Orientadora/Presidente

___________________________________________________

Prof. Dr. Lizandro Carlos Calogari (CAFW/UFSM)

1ª arguidor

____________________________________________________

Profa. Dra. Luana Teixeira Porto (URI)

2ª arguidora

3

Dedico este trabalho aos meus pais, Wanda e

Nestor Burkard, e à minha filha, Pietra Burkard

Garbinatto.

4

AGRADECIMENTOS

Meus agradecimentos mais sinceros são em primeiro lugar aos meus pais, Wanda e

Nestor Burkard, pelo incentivo aos estudos dos filhos e por oportunizarem a mim essa

especialização.

Agradeço também ao meu namorado, Jefferson Garbinatto, sua compreensão durante o

período em que precisei ficar ausente em virtude dos estudos foi fundamental para que eu

pudesse desempenhar essa função com tranquilidade.

À minha filha Pietra, que, mesmo tão pequena, colaborou comigo, trazendo-me

serenidade neste momento importante e decisivo para o meu futuro e o dela também, muito

obrigada.

A todos os professores do Mestrado, por compartilharem de forma espetacular e com

amor à Literatura os seus conhecimentos, fica meu reconhecimento. Em especial, meu

agradecimento é à Profa. Dra. Sílvia Nierderauer, por orientar meu trabalho depois de tê-lo

iniciado, por sua paciência, seu carinho, amizade e companheirismo durante essa trajetória.

E a Deus, a quem recorri por meio de orações nos momentos de angústia e dificuldades,

por sempre me mostrar que a fé nos dá força para continuar em frente.

5

“Modernidade é a tensão entre o efêmero e o eterno”.

(Charles Baudelaire)

6

RESUMO

Este trabalho analisa a temática da Modernização Conservadora que se instaurou no Brasil na

transição do século XIX para o século XX tendo como corpus de análise o romance

Recordações do escrivão Isaías Caminha (1909), de Lima Barreto. O estudo busca verificar

quais são as ideias presentes na obra que remetem à noção de modernização conservadora, qual

é a imagem de modernidade que predomina no romance e quais são as principais consequências

sociais decorrentes da modernização no Brasil sob a ótica ficcional do autor. Para auxiliar nas

reflexões e análises, são tomados como referência os pressupostos concernentes à modernidade

e modernização de estudiosos como Marshall Berman, Walter Benjamin, Jürgen Habermas,

Florestan Fernandes, Ana Cristina Teixeira Machado, Marilena Chauí, Raymundo Faoro e

Darcy Ribeiro. Foi possível verificar que Lima Barreto, por meio da voz personagem Isaías,

narra situações que remetem à ideia de modernização que ocorreu no Brasil e que não trouxe

consigo uma perspectiva de inclusão, deixando a grande massa da sociedade à sua margem e

que essa modernização privilegiava e defendia os interesses de poucos, denotando a ideia da

existência de uma sociedade conservadora.

Palavras-chave: Modernidade, Modernização Conservadora, Lima Barreto.

7

ABSTRACT

This thesis examines the issue of Conservative Modernization which arose in Brazil in the late

nineteenth century to the twentieth century using as an analytical corpus the romance

Recordações do escrivão Isaías Caminha (1909) by Lima Barreto. The study aims to verify

what are the ideas in the work that refer to the notion of conservative modernization, which is

the image of modernity that prevails in the novel and what are the main social consequences of

modernization in Brazil in the fictional perspective of the author. To assist in the reflections

and analysis, are taken as reference the assumptions concerning modernity and modernization

of scholars such as Marshall Berman, Walter Benjamin, Jürgen Habermas, Florestan Fernandes,

Ana Cristina Teixeira Machado, Marilena Chauí, Raymundo Faoro and Darcy Ribeiro. We

found that Lima Barreto, through the voice character Isaiah tells situations that refer to the idea

of modernization that took place in Brazil and that did not bring an inclusive perspective,

leaving the bulk of the society to its banks, and that this favored modernization defended the

interests of a few, denoting the idea of having a conservative society.

Key Words: Modernity, Conservative Modernization, Lima Barreto.

8

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ........................................................................................................................ 9

1. CONCEPÇÕES DE MODERNIDADE ........................................................................ 12

1.1 A ideia de modernidade ................................................................................................ 12

1.2 Problemas da modernidade ......................................................................................... 16

1.3 Os excluídos da modernidade ...................................................................................... 23

2. MODERNIZAÇÃO NO BRASIL .................................................................................. 28

2.1 Brasil: urbanização e industrialização ........................................................................ 29

2.2 Brasil no início do século XX: o advento da modernidade ....................................... 31

2.3 Modernização conservadora ........................................................................................ 40

3. A MODERNIZAÇÃO CONSERVADORA EM RECORDAÇÕES DO ESCRIVÃO

ISAÍAS CAMINHA ................................................................................................................. 50

3.1 Lima Barreto e seu romance Recordações do escrivão Isaías Caminha ................... 50

3.2 Análise da temática Modernização Conservadora no Brasil no século XX no

romance Recordações do escrivão Isaías Caminha ........................................................... 59

CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................................. 81

REFERÊNCIAS ..................................................................................................................... 85

9

INTRODUÇÃO

De acordo com José Antônio Segatto (1999), o Brasil, em seu processo histórico, foi

caracterizado por ser excludente e autoritário. Tais traços característicos se fazem presentes nas

manifestações literárias de Lima Barreto nem sempre de maneira explícita e, mesmo nas

entrelinhas, referências a uma sociedade injusta e discriminatória são uma constante em sua

obra.

O período em que uma determinada obra literária é produzida pode não apenas

representar uma sociedade e seus valores, como pode também interferir, em certa medida, na

sua produção. Por isso, tantas obras literárias muitas vezes são lidas e entendidas como uma

representação social de um dado período histórico. Tal é o caso do corpus de análise da presente

pesquisa, o romance Recordações do escrivão Isaías Caminha¹ (1909), de Lima Barreto.

No período em que o autor Afonso Henriques de Lima Barreto viveu (1881-1922), ele

sofreu com ações de uma sociedade elitista, preconceituosa, discriminatória e excludente;

características de uma herança autoritária de formação da sociedade brasileira, assunto tratado

pelo autor em algumas de suas obras, como Clara dos Anjos, Os Bruzundangas, e o próprio

romance corpus de análise desta pesquisa.

Algumas produções de Lima Barreto retratam as mudanças ocorridas na cidade do Rio

de Janeiro em decorrência do surto modernizador que marcou o Brasil e ganham destaque pelo

enfoque social, como os romances Morte e Vida de MJ. Gonzaga de Sá, e Recordações do

escrivão Isaías Caminha.

O romance em estudo traz características do processo de modernização pelo qual o

Brasil passou, como a mão-de-obra do homem substituída pelas máquinas nas indústrias, o

avanço na imprensa e a rapidez com que as informações eram veiculadas. Além disso, o

personagem Isaías Caminha, que vive nesse cenário, ilustra o sujeito inserido na cidade grande,

visto como apenas mais um dentre a multidão e o preconceito com que os negros eram tratados.

O referido romance pertence ao século XX, período em que o Brasil passou por um

processo de modernização conservadora e não trouxe consigo uma perspectiva de inclusão de

minorias, o que foi representado na Literatura por grandes autores, dentre eles, Lima Barreto.

¹ BARRETO, Lima. Recordações do Escrivão Isaías Caminha. São Paulo: Companhia Editora

Nacional, 2004. Todas as demais citações foram retiradas desta edição, passando-se a indicar apenas a

página.

Considerando isso, o objetivo geral da pesquisa consiste em analisar de que forma a

temática da modernização conservadora no Brasil aparece no romance Recordações do

10

escrivão Isaías Caminha (1909), de Lima Barreto, e que implicações sociais decorrem dessa

modernização, segundo a perspectiva da obra. É válido salientar que Lima Barreto se

desenvolveu como escritor após a abolição da escravatura. Nesse período, embora livre, o negro

ainda era tratado com preconceito e com desconfiança, aspectos presentes na narrativa do autor.

É importante destacar que, embora Lima Barreto e seu romance Recordações do

Escrivão Isaías Caminha pertençam ao século XX, a proposta que visa a analisar o processo de

modernização conversadora no Brasil presente nessa obra é um tema que agora, no século XXI,

ainda é atual, haja vista que o país não estagnou em termos de modernização. Ou seja, à medida

que o tempo foi passando, o Brasil foi apresentando sinais de avanços em várias esferas, como

na economia, na saúde, na ciência e na tecnologia, por exemplo. Além disso, outras situações

presentes no romance em estudo, como o preconceito e o poder de manipulação da imprensa,

também são uma constante hoje.

Além de considerar a sua atualidade, a escolha por esse tema justifica-se ainda pelo fato

de que Lima Barreto e suas obras, com exceção de Triste fim de Policarpo Quaresma, parece

terem sido esquecidos, havendo poucos estudos acadêmicos dedicados a esse autor e suas

produções.

O presente estudo é pertinente e vem ao encontro da linha de pesquisa do Mestrado em

Letras da URI – Literatura, História e Memória –, dada a proximidade existente entre a

Literatura e a Sociedade representada, em certa medida, no romance em estudo, o qual não

deixa de ser uma produção de cunho memorialista. Dessa forma, a execução desta dissertação

justifica-se não apenas por um interesse pessoal pela temática, mas também por ser um desafio

que visa a contribuir para os estudos relacionados à Lima Barreto.

Ainda, esta pesquisa tem a intenção de contribuir para os estudos literários sobre essa

relação existente entre Literatura e Sociedade, uma vez que Recordações do escrivão Isaías

Caminha é um romance marcado por questões sociais, dentre elas, a exclusão e a injustiça,

assuntos sempre pertinentes que não se tornam ultrapassados com o tempo.

A obra supracitada trata-se de um romance à clef (romance com chave), o qual pode ser

lido de acordo com suas correspondências entre personagens e situações fictícios, de um lado,

e pessoas e fatos reais, de outro; como se fosse um romance baseado em fatos reais. Este estudo

busca traçar uma analogia entre a modernização conservadora no Brasil no século XX e como

esse processo se apresenta no romance corpus da análise desta proposta.

Entende-se por modernização conservadora quando a modernidade se instaura e,

embora ela promova avanços nas mais variadas esferas, sejam de ordem científica, cultural ou

11

tecnológica, por exemplo, há a manutenção de certos hábitos e ideologias que se colocam em

prol das elites; ou seja, quando a modernidade atinge a poucos, no caso, as classes dominantes.

Por meio de estudo acerca do processo de modernização no Brasil e de informações

relevantes sobre a vida de Lima Barreto e sua contribuição como escritor para a Literatura

Brasileira, têm-se em vista analisar a linguagem utilizada pelo autor e o enredo da narrativa a

fim de identificar de que modo a temática modernização conservadora se apresenta nas

Recordações do escrivão Isaías Caminha.

Além disso, busca-se verificar em que medida o que Lima Barreto vivenciou no período

do processo de modernização no país é representado em seu romance e quais os fatores sociais

mais discutidos na obra analisada, considerando a perspectiva do narrador personagem Isaías.

Também serão avaliadas quais as principais consequências sociais decorrentes da

modernização no Brasil sob a ótica ficcional do autor. Para que tal análise tenha resultados

satisfatórios, é importante que se tenha uma compreensão clara sobre alguns conceitos, dentre

eles, “modernidade” e “modernização”.

Para embasar esta proposta de pesquisa, serão tomados como base pressupostos de

alguns teóricos e estudiosos como Walter Benjamin, Marshall Berman, Maria Cristina Teixeira

Machado, Max Weber, Sérgio Paulo Rouanet e Jürgen Habermas.

O primeiro capítulo desta dissertação trata sobre as concepções de modernidade no

Brasil, qual é a ideia de modernidade, seus problemas e os excluídos, ou seja, os que ficam à

sua margem. No segundo capítulo, é discutido sobre a modernização no Brasil, sobre a

urbanização e a industrialização no país e sobre a ideia de modernização conservadora.

Informações e reflexões sobre a vida e a obra de Lima Barreto também são aqui apresentadas.

Já no terceiro capítulo, analisa-se sobre a modernização conservadora no romance Recordações

do escrivão Isaías Caminha,considerando não somente a temática em si, como também alguns

elementos da narrativa, como a sua estrutura, a linguagem e o enredo.

12

1. CONCEPÇÕES DE MODERNIDADE

Modernidade é um termo cuja complexidade não permite uma definição exata nem

mesmo a delimitação de data para seu surgimento. No entanto, pode-se afirmar que ela sofreu

influências do pensamento iluminista que, ao lado da Revolução Francesa e da Revolução

Industrial, foi marco importante no século XVIII.

O ponto de partida da modernidade tem como característica um período histórico que

pretendia transformar a sociedade por meio da fé na ciência e em que se pudesse pôr em prática

um estado próspero e justo. Costuma-se entender como modernidade, então, uma época em que

há uma mudança em relação com a tradição de pensamentos, valores e ideais e o

estabelecimento da autonomia da razão. Além disso, relaciona-se à consolidação da

modernidade com o desenvolvimento do capitalismo.

Mudanças sociais como industrialização e urbanização podem ser compreendidas

como modernização, que é um processo por meio do qual uma sociedade torna-se moderna em

termos de aparência ou comportamento. Tais aspectos serão discutidos no segundo capítulo.

1.1 A ideia de modernidade

Entre certos autores e estudiosos, dentre eles Marshall Berman, Walter Benjamin e

Sérgio Paulo Rouanet, por exemplo, nem sempre há um consenso de posicionamento em

relação aos conceitos de “modernidade” e “modernização”. Nesse sentido, existem, entre eles,

tanto a apologia quanto a condenação da modernidade, visto que esta é bastante controversa:

de um lado, a riqueza cultural e material, o progresso científico e o tecnológico; de outro, a

miséria e a regressão humana, não apenas no sentido econômico, como também no sentido

social e intelectual. A rigor, para um dos grandes estudiosos do assunto, Marshall Berman, a

modernidade é vista como um “estado”, e modernização como um “processo”. Segundo o autor:

Ser moderno é encontrar-se em um ambiente que promete aventura, poder, alegria,

crescimento, autotransformação e transformação das coisas em redor – mas ao mesmo

tempo ameaça destruir tudo o que temos, tudo o que sabemos, tudo o que somos. A

experiência ambiental da modernidade anula todas as fronteiras geográficas e raciais,

de classe e nacionalidade, de religião e ideologia: nesse sentido, pode-se dizer que a

modernidade une a espécie humana. Porém, é uma unidade paradoxal, uma unidade

de desunidade: ela nos despeja a todos num turbilhão de permanente desintegração e

13

mudança, de luta e contradição, de ambiguidade e angústia. Ser moderno é fazer parte

de um universo no qual, como disse Marx, “tudo o que é sólido se desmancha no ar”.

[...] No século XX, os processos sociais que dão vida a esse turbilhão, mantendo-o

num perpétuo estado de vir-a-ser, vêm a chamar-se “modernização” (BERMAN,

1987, p.15-16).

Essa ideia de modernidade proposta por Berman pode ser entendida como algo positivo,

por um lado, no que diz respeito ao crescimento e ao progresso social e, por outro, como algo

negativo, pois, ao invés de a modernidade promover uma unidade entre as pessoas, ela acaba

por fragmentá-la, uma vez que nem todos têm condições de acompanhar os avanços pelos quais

a sociedade passa.

Segundo Maria Cristina Teixeira Machado (2002), a ideia de modernidade como

“estado” e de modernização como “processo” proposta por Berman remete ao pensamento de

Sérgio Paulo Rouanet, que, partindo das reflexões de Max Weber, segundo ela, pressupõe que

“racionalização, modernização e modernidade são fenômenos que se inter-relacionam e se

interpenetram” (MACHADO, 2002, p. 13). A racionalidade pode ser entendida como o ato de

se agir por meio da razão, de forma sistêmica e metódica, o que é uma característica do mundo

moderno.

De acordo com Rouanet (1998, p. 120), “Os processos globais de racionalização que se

deram na esfera econômica, política e cultural” contribuíram para a mudança de mentalidade

empresarial, dissolvendo as características do feudalismo e atuando na formação de pensamento

calcado em técnicas racionais. No âmbito político, substituiu-se a autoridade descentralizada

pré-moderna pelo Estado moderno, o qual possuía um sistema em que o poder militar era

permanente. Já em termos culturais, a ideia de racionalidade contribuiu para a inovação das

visões do mundo.

A partir dos anos 1950, alguns estudos sobre modernização sugerem que seu conceito

esteja atrelado a diversos processos que estão entrelaçados, como, formação de capital e

mobilização de recursos, desenvolvimento e aumento da produtividade do trabalho,

estabelecimento de poderes políticos, expansão de direitos de participação política e de formas

urbanas de vida.

Após breves noções conceituais, convém traçar algumas características fundamentais da

vida moderna. Machado afirma que, sob a ótica filosófica de Georg Hegel, “tempos modernos”

são “novos tempos” que vêm aproximadamente desde 1500, período de transição entre a Idade

14

Média e a Idade Moderna. Assim, “tempos modernos” significa uma época “nova”. Por sua

vez, segundo a autora (2002, p. 18), “os ‘novos tempos’ são marcados pela experiência do

progredir, da aceleração dos acontecimentos históricos e, finalmente, pela compreensão da

simultaneidade cronológica de desenvolvimentos não simultâneos”. Assim, conceitos como

revolução, progresso, emancipação e desenvolvimento, por exemplo, chegam até os dias atuais

marcados pelos “novos tempos”.

Considerando essa perspectiva de Berman, algumas características da vida moderna do

século XX podem ser observadas na atualidade, pois, ainda hoje, têm-se descobertas científicas,

a ascensão dos meios de comunicação, o aprimoramento das indústrias, o crescimento

populacional de muitas cidades do país, já que algumas pessoas ainda saem do campo em busca

de melhores oportunidades.

Além disso, é importante destacar que, segundo Berman, a história da modernidade pode

ser dividida em três fases. A primeira é compreendida entre os séculos XVI e XVIII, em que as

pessoas já percebem uma nova realidade e experimentam uma vida moderna, sem, no entanto,

ter uma ideia do que isso realmente signifique. A segunda fase vai do ano de 1790 até o século

XIX. A Revolução Francesa transforma o modo de vida das pessoas e suas percepções,

provocando mudanças radicais nos âmbitos social, político e pessoal, porém, mantendo no

público moderno as lembranças do modo de vida tradicional. Já o século XX diz respeito à

terceira fase, momento em que o processo de modernização atinge a população em nível

mundial.

Discorrer sobre modernidade requer inclusive a compreensão de alguns fundamentos

essenciais do Iluminismo, o qual foi um movimento intelectual ocorrido principalmente na

França no século XVIII. Este período foi marcado por transformações na estrutura social da

Europa, especialmente no que tange à liberdade, ao progresso e ao homem. Para os iluministas,

Deus estava presente na natureza e no indivíduo e era possível descobri-lo por meio da razão.

Esses filósofos provocaram muitas mudanças no pensamento moderno. Almejavam o

progresso, propunham a busca pela felicidade humana e objetivavam livrar o homem das trevas

e o trazer à luz por meio do conhecimento.

Retomando as noções sobre modernidade, ela pode ser caracterizada como paradoxal,

uma vez que apresenta não somente um lado positivo para os homens devido ao progresso e às

inúmeras oportunidades que trouxe consigo, tal como proposto pelo pensamento Iluminista,

mas também aspectos negativos, como a limitação do homem em suas funções em virtude das

máquinas, que substituíram a sua mão de obra, e, infelizmente, o homem colocou-se numa

15

posição de prisioneiro da modernidade ao invés de isso torná-lo livre.Portanto, a modernidade

não se constitui somente de avanços, mas também de retrocessos. Nesse sentido, conforme

Berman, os seres humanos compartilham entre si um conjunto de experiências vitais a que ele

chama de “modernidade”.

Nessa ideia de Berman, é possível encontrar o paradoxo da modernidade, a qual é

interessante e proporciona ao homem uma gama de oportunidades, de descobertas e de avanços.

Contudo, nada disso é seguro e acaba pondo em xeque aquilo que, de alguma forma, para ele,

era ou parecia ser sólido. Berman se propõe a explorar e identificar de que forma as tradições

podem contribuir de maneira positiva para a própria modernidade e como elas podem

empobrecer o entendimento que as pessoas têm do que é ou do que possa ser modernidade.

Assim, a vida moderna tem experimentado muitas mudanças, dentre elas, Berman cita:

Grandes descobertas nas ciências físicas, com a mudança da nossa imagem do

universo e do lugar que ocupamos nele; a industrialização da produção, que

transforma conhecimento científico em tecnologia, cria novos ambientes humanos e

destrói os antigos, acelera o próprio ritmo de vida, gera novas formas de poder

corporativo e de luta de classes; descomunal explosão demográfica, que penaliza

milhões de pessoas arrancadas de seu habitat ancestral, empurrando-as pelos

caminhos do mundo em direção a novas vidas; rápido e muitas vezes catastrófico

crescimento urbano; sistemas de comunicação de massa, dinâmicos em seu

desenvolvimento, que embrulham e amarram, no mesmo pacote, os mais variados

indivíduos e sociedades; Estados nacionais cada vez mais poderosos,

burocraticamente estruturados e geridos, que lutam com obstinação para expandir seu

poder; movimentos sociais de massa e de nações, desafiando seus governantes

políticos ou econômicos, lutando por obter algum controle sobre suas vidas; enfim,

dirigindo e manipulando todas as pessoas e instituições, um mercado capitalista

mundial, drasticamente flutuante, em permanente expansão. No século XX, os

processos sociais que dão vida a esse turbilhão, mantendo-o num perpétuo estado de

vir-a-ser, vêm a chamar-se ‘‘modernização’’ (BERMAN, 2007, p. 25).

Essas fontes de mudanças pelas quais a vida moderna passou deixam implícita a ideia

de que nem todas elas parecem ter sido exclusivamente positivas e remetendo ao progresso,

mas também denotando ideia de possíveis retrocessos, mais uma vez ratificando a ideia de que

a modernidade apresenta um duplo viés. Em outros termos, há o entendimento de que a

modernidade implica a problemática de uma dupla relação entre os benefícios que a

humanidade encontra frente às várias oportunidades proporcionadas por ela, como também a

possibilidade de limitações e fragmentações que a própria modernidade pode vir a impor.

Do século XIX para o século XX, a modernização cresceu e prosperou em vários

âmbitos, dentre eles, na arte, na literatura, na arquitetura e no design, no setor tecnológico e no

científico. De acordo com Berman (2007, p. 34), “[o] século XX talvez seja o período mais

16

brilhante e criativo da história da humanidade, quando menos porque sua energia criativa se

espalhou por todas as partes do mundo”. Para o autor, a vida moderna é motivo de orgulho,

embora o mundo tenha tanto o que fazer, temer e envergonhar-se.

A vida moderna pode ser motivo de orgulho, então, por todas as melhorias e progressos

proporcionados à humanidade, como o avanço científico e tecnológico, por exemplo. Mesmo

assim, o homem tem muito a fazer, inclusive buscar incluir a parcela da população que não tem

condições de acompanhar o novo ritmo de vida proposto pela modernidade, minimizar e, quiçá,

erradicar a exclusão. Essa parcela à margem da modernidade não é exclusividade do século

XX, ainda no século XXI nem todos puderam ser incluídos nesse novo padrão, o que é motivo

para o homem envergonhar-se. Ou seja, a modernidade não é regida apenas por prosperidade,

mas também apresenta suas problemáticas, o que será discutido na sessão seguinte.

1.2 Problemas da modernidade

Em seu livro Charles Baudelaire, um lírico no auge do capitalismo (1994), Walter

Benjamin discorre sobre modernidade. Nesse estudo, o autor busca traçar um perfil da vida e

da obra de Baudelaire, um dos mais importantes poetas franceses cujas poesias tornaram-no o

fundador artístico e o mentor intelectual da modernidade enquanto movimento literário. Em seu

mais famoso livro, As flores do mal (1856), Baudelaire escreveu o poema “O cisne”, no qual se

tem a representação de uma cidade tomada pela movimentação constante, mas que também se

paralisa. É feita uma analogia entre a cidade e o vidro, pois ambos são quebradiços, isto é, são

frágeis e transparentes, por acabarem expondo o seu “conteúdo”, no caso das cidades e os

sujeitos.

Georges-Eugène Haussmann, nomeado prefeito de Paris por Napoleão III, foi

responsável pela remodelação da cidade parisiense, pois esta estava sendo ameaçada de se

tornar inabitável. Houve expansão ferroviária e o crescimento da população. As ruas já haviam

se tornado estreitas, de modo que as pessoas se sentiam sufocadas e encurraladas. Segundo

Benjamin (1989, p. 85), “[n]o início da década de 50, a população parisiense começou a aceitar

a ideia de uma grande e inevitável expurgação da imagem urbana”.

Os pensadores do modernismo do século XIX eram, ao mesmo tempo, “entusiastas e

inimigos da vida moderna”, justamente por ela ser tão contraditória e ambígua. Já os pensadores

do século XX tinham uma concepção mais rígida sobre a modernidade, não sendo possível,

17

para eles, haver um duplo viés para a modernidade, e sim, os extremos. Dessa forma, não é

possível ser isto e aquilo, mas sim, isto ou aquilo.

Uma das problemáticas da modernidade diz respeito aos avanços tecnológicos em que as

máquinas substituem a mão de obra do homem e o limitam em suas funções. Outra

problemática, segundo grandes críticos do século XIX, como Nietzsche, Marx e outros, é que

o destino do homem foi condicionado pela tecnologia moderna e a organização social. No

entanto, para eles, os homens modernos eram capazes de compreender esse destino a que eram

condicionados e também tinham capacidade de combatê-lo. Esse combate parece não acontecer,

pois, muitas vezes, o homem, ao invés de se tornar mais livre, coloca-se numa posição de

prisioneiro da própria modernidade.

Em seu livro A modernidade e os modernos, Walter Benjamin traz importantes reflexões

sobre a modernidade. Segundo ele, para Baudelaire, o verdadeiro tema da modernidade é o

herói e, para viver a modernidade, é preciso de uma formação heroica. O pano de fundo em que

se constrói essa imagem de herói é:

[n]o espetáculo desta população doentia, que engole a poeira das fábricas, que

inala partículas de algodão, que deixa penetrar seus tecidos pelo alvaiade, pelo

mercúrio e por todos os venenos necessários à realização das obras-primas...

Esta população espera os milagres a que o mundo lhe parece dar direito; sente

correr sangue purpúreo nas veias e lança um longo olhar carregado de tristeza

à luz do sol e às sombras dos grandes parques (BENJAMIN, 1975, p.10).

De acordo com Baudelaire, o trabalho que o assalariado desempenha no dia a dia é tão

importante quanto os aplausos que o gladiador recebia na arena na antiguidade. Segundo

Benjamin, Baudelaire faz uma dura crítica a certos poetas que costumam tratar de assuntos

realmente modernos e contentam-se em abordar temas estereotipados por ordem do governo.

No entanto, “O espetáculo da vida mundana e de milhares de existências desordenadas; vivendo

nos submundos de uma grande cidade — dos criminosos e das prostitutas — A

'GazettedesTribunaux' e o iMo-niteur' provam que apenas precisamos abrir os olhos para

reconhecer o heroísmo que possuímos” (BENJAMIN, 1975, p.14).

Benjamin afirma que, para Baudelaire, “toda a modernidade deva ter valor para se tornar

futuramente antiguidade"(BENJAMIN, 1975, p.16). A relação da modernidade com a

antiguidade é muito interessante. A modernidade caracteriza uma época bem como a força que

age nela, isso faz com que ela se pareça com a antiguidade.

18

Em seu ensaio “Sobre alguns temas de Baudelaire” (1994), Walter Benjamin reflete

acerca das mudanças de percepções visto que mudaram também as experiências. Para ilustrar

tal ideia, o autor cita os jornais que aparecem em larga escala e que o tipo de informações neles

contidas não entra na “tradição”. Ou seja, este meio de comunicação acaba limitando os sujeitos

que já não têm facilmente “algo de si” para contar para o outro, refletindo certa atrofia da

experiência na comunicação, bem como da memória individual e coletiva. Isso contribui para

que a tradição da narração oral se torne cada vez mais obsoleta. No romance de Lima Barreto

em estudo, a questão da imprensa, mais especificamente o jornal, seu poder de comunicação e

de persuasão estão bastante presentes, sendo este o meio em que o personagem Isaías Caminha

trabalha.

Benjamin (1994, p. 198) afirma, em seu ensaio “O narrador”, que parecemos estar

privados da nossa faculdade de intercambiar experiências e atribui esse fenômeno ao fato de

que “as ações da experiência estão em baixa, e tudo indica que continuarão caindo até que seu

valor desapareça de todo. Basta olharmos um jornal para percebermos que seu nível está mais

baixo que nunca, e que da noite para o dia não somente a imagem do mundo exterior mas

também a do mundo ético sofreram transformações que antes não julgaríamos possíveis”.

Assim, o autor deixa claro que, os meios de comunicação, nesse caso, os jornais, limitam o

homem na troca de experiência com o outro por meio da tradição oral, pois transmitem o

conteúdo que lhes convém e com a qualidade que julgam adequada.

O autor ainda assevera que a sabedoria está se extinguindo, o que contribui para que o

mesmo ocorra com a arte de narrar. Para ele, a morte da narrativa culmina com o surgimento

do romance. Neste caso, Benjamin se refere à narrativa como tradição oral (patrimônio da

epopeia), e acredita que ela se distancia do romance, pois este se apresenta em forma de livro,

cuja difusão se torna possível por meio da imprensa, ou seja, da modernidade.

No século XIX, a multidão se tornou o tema principal dos literatos. Além disso, nesse

período, a multidão se tornou público e para quem a leitura se tornou um hábito. Neste ensaio,

o autor cita como exemplo a cidade de Londres, o seu crescimento e o aumento da população.

Os homens em meio à multidão vivem num ritmo acelerado e de forma individualista, como se

nada tivessem em comum uns com os outros. Tal característica da modernidade também foi

percebida no Brasil e retratada por Lima Barreto em Recordações do escrivão Isaías Caminha.

Para tratar da modernidade, é importante recorrer a Baudelaire, pois os avanços

vivenciados pelas cidades e seu ritmo acelerado não passaram desapercebidos por ele, que

19

sempre foi capaz de perceber as mudanças, mostrá-las em suas produções e também de se opor

a elas.

Outro autor que também contribui muito com seus estudos sobre a modernidade é Sérgio

Paulo Rouanet. Em seu livro As razões do Iluminismo (1998), o autor propõe um resgate crítico

do conceito de razão, do projeto da modernidade e do legado da Ilustração.

Para iniciar, o autor (1998, p.12) afirma que “a razão é o principal agente da repressão,

e não o órgão da liberdade”. Para ele, a razão é crítica e o irracionalismo é conformista. Ainda

assevera que o conceito clássico de razão deve ser revisto, especialmente depois de Marx,

Freud, Weber, Adorno e Foucault. É necessário haver um novo racionalismo calcado numa

nova razão capaz de crítica e autocrítica.

Segundo Rouanet (1998, p. 13), “A verdadeira razão é consciente de seus limites,

percebe o espaço irracional em que se move e pode, portanto, libertar-se do irracional.

Habermas, segundo Rouanet, acredita que é importante instaurar-se um novo paradigma, o da

relação comunicativa calcada na interação entre os sujeitos no cotidiano.

Para Rouanet:

A racionalidade comunicativa se tornou possível com o advento da

modernidade, que emancipou o homem do jugo da tradição e da autoridade, e

permitiu que ele próprio decidisse, sujeito unicamente à força do melhor

argumento, que proposições são ou não aceitáveis, na tríplice dimensão da

verdade (mundo objetivo), da justiça (mundo social) e da veracidade (mundo

subjetivo). Ocorre que simultaneamente com a racionalização do mundo

vivido, que permitiu esse aumento de autonomia, a modernidade gerou outro

processo de racionalização, abrangendo a esfera do Estado e da economia que

acabou se automatizando no mundo vivido e se incorporou numa esfera

“sistêmica”, regida pela razão instrumental (ROUANET, 1998, p. 14).

Assim, a racionalidade comunicativa promoveu o homem em sua emancipação no

sentido de ser capaz de decidir o que é melhor para si.Sobre racionalização e emancipação,

Jürgen Habermas (1968) discorre em Técnica e ciência enquanto ideologia. Essa obra é

dedicada a Herbert Marcuse, na qual Habermas estabelece uma conexão com a tese de

Marcuse,“Ideologia da Sociedade Industrial”, cuja concepção está calcada na ideia de que a

ciência e a tecnologia nas sociedades capitalistas tinham como intenção a dominação de classe.

Habermas afirma que, para Marcuse, a ciência e a técnica teriam como projeto um

mundo que fosse determinado por interesse de classes. Assim, para haver uma emancipação,

seria necessário que a técnica e a ciência sofressem uma revolução, trazendo de volta a natureza

que, em outros tempos, foi dominada pelo homem e, se os homens fossem capazes de se

20

comunicar e reconhecerem-se uns nos outros, poderiam também reconhecer a natureza como

sendo um outro sujeito.

Ainda em Técnica e ciência enquanto ideologia, Habermas assevera que para Marcuse,

aquilo que Weber denominou como racionalização seria uma forma oculta de dominação

política, tendo em vista que a técnica já seria uma dominação sobre a natureza e sobre o homem.

Rouanet (1998) continua suas reflexões, afirmando que a desvalorização da cultura fez

com que não tivéssemos condições de sermos críticos e questionadores, o que impediu nossa

vontade de transformar o mundo.

Ainda no seu livro As razões do iluminismo (1998), Rouanet discorre sobre a Ilustração

e a crise pela qual passa o seu legado. Segundo o autor:

A crença no progresso expôs o homem a todas as regressões. Seu

individualismo estimulou o advento do sujeito egoísta, preocupado unicamente

com o ganho e a acumulação. A crença na mudança das relações pessoais como

forma de implantar o paraíso na Terra levou a uma utopia concentracionária, e

resultou da criação de todos os gulags. Sua cruzada desmistificadora solapou

as bases de todos os valores, deixando o homem solitário, sob um céu deserto,

num mundo privado de sentido (ROUANET, 1998, p. 27).

Embora se acredite no progresso como algo que impulsiona o homem para as grandes

conquistas e que avançar é, ou ao menos deveria ser sempre o melhor, acaba trazendo ao alcance

do homem também outras problemáticas como o regresso, que, por exemplo, na vida cotidiana,

o homem, ao invés de se ter mais relações interpessoais, torna-se solitário.

Rouanet propõe que a Ilustração não seja reduzida meramente a uma parte de uma

tendência na história. Segundo ele, é importante distinguir Ilustração e Iluminismo e cita um

ensaio que escreveu intitulado Erasmo, pensador Iluminista (1998), em que sugeriu reservar o

termo Ilustração para a corrente de ideias surgidas no século XVIII e o termo Iluminismo para

denominar “uma tendência intelectual, não limitada a qualquer época específica, que combate

o mito e o poder a partir da razão” (1998, p. 28). Assim, o autor propõe que o Iluminismo seja

uma tendência trans-epocal que não teve sua origem na Ilustração e tampouco encerrou no

século XVIII.

O autor também cita o Contra-Iluminismo que não possui um tempo determinado e cujas

tendências eram combatidas pelo Iluminismo. De acordo com Rouanet, no início da

modernidade, “o Contra-Iluminismo combatia a Ilustração, e o pensamento Iluminista tendia a

aceitá-la, no todo ou em parte” (1998, p. 28). Por outro lado, atualmente, o contrailuminismo

apoia a Ilustração, pois graças a ela surgiram as sociedades industriais modernas.

21

O Iluminismo pode existir ainda nos tempos de hoje, porém, não com uma identidade

conceitual clara. Somente o próprio Iluminismo é capaz de construir sua identidade de forma

satisfatória se tomar como base a Ilustração, pois é com ela que o Iluminismo se confronta e é

a ela que lança suas críticas.

Iluminismo foi o movimento cultural desenvolvido na Inglaterra, Holanda e França nos

séculos XVII e XVIII. Nesse período, o desenvolvimento intelectual proporcionou a origem de

ideias de liberdade política e econômica que eram defendidas pela burguesia. Assim, os

filósofos e economistas que difundiram essas ideias julgavam-se propagadores da luz e do

conhecimento, por isso, eram chamados de iluministas.

Já a Ilustração tinha como sua principal bandeira a razão, a qual se contrapunha à fé,

que estava cada vez mais em ascensão. As pessoas extremamente religiosas se apegavam a

modelos pré-estabelecidos e não possuíam discernimento e senso crítico, o que dificultava a

razão de persuadi-las. A fé na ciência proporcionou a destrutividade humana e estimulou o

individualismo. Assim, o iluminismo é entendido como uma tendência que cruza

transversalmente a história e que se atualizou na ilustração; a ilustração é uma importantíssima

realização histórica do iluminismo.

Quando o Iluminismo se propõe a fazer uma análise da Ilustração, reconhece nela seus

pontos negativos e toma consciência de si mesmo, faz um diagnóstico daquilo que é precário e

busca manter no presente o que ainda pode ser válido. Recorrendo a sua própria história, o

Iluminismo questiona a Ilustração como a principal de suas figuras, fazendo-lhe uma crítica e

ao mesmo tempo uma autocrítica. Concluindo a sua crítica, o Iluminismo “terá conseguido ao

mesmo tempo salvar a herança positiva da Ilustração e auto construir-se como Iluminismo

moderno” (ROUANET, 1998, p. 30).

Para o Iluminismo realizar uma análise da Ilustração, Rouanet propõe que seja

necessário percorrer três etapas: (1) indicar os elementos estruturais do Iluminismo; (2) dotá-lo

de uma base normativa; (3) vinculá-lo a raízes sociais contemporâneas.

Segundo Rouanet (1998, p 31), a primeira sugere um confronto crítico com a Ilustração.

Esta “se propunha criticar todas as tutelas que inibem o uso da razão e julgava possível fazê-lo

a partir da própria razão. Ela tinha dois vetores: a crítica e a razão”. O novo Iluminismo possui

essas duas características, embora não sejam as mesmas da Ilustração.

O novo Iluminismo revive a crença no progresso que depende da ação do homem. O

autor (1998, p.32) afirma que “O único progresso humanamente relevante é o que contribui de

22

fato para o bem estar de todos, e os automatismos do crescimento econômico não bastam para

assegurá-lo”; ou seja, não basta ser bom para si mesmo ou para um pequeno grupo, o progresso

deve ser favorável a todos.

Manter a fé na ciência, resgatar o ideal cosmopolitano, ser adepto da doutrina dos

direitos humanos, combater o poder ilegítimo, lutar pela liberdade, advogar uma moral não-

repressiva são valores que só podem ser realizados pela mudança das relações pessoais. Para

Rouanet (1998, p. 33), “São indicações esparsas, mas suficientes para mostrar ao mesmo tempo

a possibilidade de construir uma ética iluminista baseada nos valores da Ilustração e a

necessidade de retificar esses valores”.

Rouanet (1998, p. 35) assevera que “Equipado com um novo modelo de razão e um

novo conceito de crítica, dispondo de um acervo de valores próprios, que não coincidem

inteiramente com os de nenhuma outra corrente, e enraizado num solo social que salva de todo

idealismo, o novo Iluminismo estará pronto para prosseguir a tarefa que a Ilustração não pôde

concluir”. O novo Iluminismo propõe uma nova razão e uma nova crítica cujo objetivo é

garantir o advento da autonomia integral para todos.

O iluminismo representou, então, o momento em que a razão se impôs como forma de

conhecimento do mundo. Para os iluministas, a razão era indispensável para estudar os

fenômenos naturais e sociais; inclusive, acreditavam que a crença religiosa deveria ser

racionalizada, visto que o indivíduo poderia descobrir Deus por meio da razão. Dessa forma,

os dogmas da igreja tornaram-se dispensáveis.

Em se tratando de progresso do pensamento, o esclarecimento tinha como objetivo

principal fazer com que os homens perdessem o medo e colocá-los na posição de senhores. O

esclarecimento tinha como meta extinguir os mitos e proporcionar o saber.

Esse período, século XVIII, além de estar calcado no racionalismo, contou com

intensos avanços científicos e tecnológicos como, por exemplo, a invenção do tear mecânico

e da máquina a vapor.

A transição de uma sociedade tradicional baseada na fé para uma sociedade alicerçada

na razão, juntamente com os progressos científicos e tecnológicos, marcam o advento da

modernidade. A visão do mundo fragmentada também embasa a concepção de modernidade

bem como o fato de o homem ser visto como responsável por sua vida e por seu destino.

Walter Benjamin escreveu o ensaio “Experiência e pobreza” (1933) no qual apresenta

conceitos sobre a experiência, a cultura, a barbárie, a tecnologia e o trabalho. O autor chama a

23

atenção para o advento da tecnologia na modernidade do século XIX, afirmando que os

indivíduos e suas formas de experiências não estão preparados para recepcionar esse novo

cenário mundial.

Benjamin inicia seu ensaio, citando a importância da experiência transmitida dos mais

velhos para os mais jovens, mostrando que tal prática já não é mais tão presente no cotidiano

das pessoas. O autor também faz referência a uma geração que viveu entre 1914 e 1918, a qual

presenciou uma das mais terríveis experiências da história. Ele relata que nesse período era

possível perceber que os combatentes voltavam silenciosos do campo de batalha, pois estavam

mais pobres em se tratando de experiências comunicáveis. De acordo com Benjamim, o homem

adquiriu certas experiências da pior forma possível:

Porque nunca houve experiências mais radicalmente desmoralizadas que a

experiência estratégica pela guerra das trincheiras, a experiência econômica

pela inflação, a experiência do corpo pela fome, a experiência moral pelos

governantes. Uma geração que ainda fora à escola num bonde puxado por

cavalos viu-se abandonada, sem teto, numa paisagem diferente em tudo, exceto

nas nuvens, e em cujo centro, num campo de forças de correntes e explosões

destruidoras, estava o frágil e minúsculo corpo humano (BENJAMIN, 1985, p.

115).

O autor levanta o seguinte questionamento: qual o valor de todo o nosso patrimônio

cultural se a experiência não mais o vincula a nós? Ou seja, de que nos basta a riqueza cultural

se, em se tratando de experiência, somos pobres? Segundo Benjamin, a pobreza de experiência

não é mais privada e, sim, atinge a toda a humanidade. Nesse sentido, ela resulta na barbárie;

no entanto, o autor chama a atenção para um conceito novo e positivo de barbárie. Essa pobreza

de experiência direciona o homem a recomeçar, contentar-se com pouco e ir em frente.Para

corroborar essa ideia, Benjamin cita importantes criadores que partiram do zero e foram grandes

construtores, como por exemplo, Descartes, Einstein e Newton.

A modernidade, portanto, não trouxe consigo somente uma perspectiva de mudanças,

avanços e oportunidades de recomeço, pois ela, infelizmente, não atingiu a todos, desta forma,

havendo uma parcela da população que ficou a sua mercê.

1.3 Os excluídos da modernidade

Tratar do tema modernidade não requer somente esclarecimentos acerca de noções

conceituais sobre ela. Como já visto anteriormente, a modernidade traz consigo muitas

perspectivas novas, avanços e progressos em várias esferas para o homem e a sociedade na qual

24

está inserido. No entanto, ela apresenta também as suas problemáticas e seus aspectos

negativos, como, junto com a riqueza de ideias, vem a pobreza de experiências, e o ritmo

acelerado das cidades faz com que indivíduos vivam mais isolados como se não tivessem nada

em comum uns com os outros; com o avanço tecnológico, o homem perde seu lugar para a

máquina. Ou seja, nem todos se beneficiam da modernidade e muitos ficam à margem dela.

Nesse sentido, têm-se os excluídos da modernidade.

Destarte, muitos estudiosos têm contribuído com suas reflexões acerca da modernidade,

seus benefícios, suas implicações e os excluídos. Charles Baudelaire: um lírico no auge do

capitalismo (1994), de Walter Benjamin, apresenta temas bastante diversificados, dentre eles,

a modernidade, a boemia, a literatura, o flâneur. No entanto, Ricardo André Martins chama a

atenção para a possibilidade que o texto de Walter Benjamin nos permite, o de “utilizá-lo como

fonte de investigação sobre a incorporação de um dos temas mais caros à literatura moderna: a

perspectiva de proletários, operários, boêmios, flâneurs, vagabundos, trapeiros, taverneiros,

negociantes de vinho, conspiradores, enfim, uma ‘esfera de vida’ específica da Paris do século

XIX” (2012, p. 38).Ou seja, um grupo de personagens que no nosso entendimento atual, seriam

os excluídos da sociedade.

No referido texto, Benjamin busca reconstruir o cenário problemático e turbulento que

luta contra o avanço da modernidade e do capitalismo em Paris, considerada a capital do século

XIX. O autor inicia o texto, citando a figura do conspirador e comenta como as conspirações

do proletariado contribuíram para a divisão do trabalho e dos próprios conspiradores, visto que

alguns eram casuais; outros, profissionais.

Os conspiradores profissionais ocupavam seu tempo quase que totalmente para dedicar-

se a conspirações e seu ponto de encontro para tal eram as tavernas, ambiente frequentado por

qualquer tipo de gente e de caráter questionável. Assim, se constituía o ambiente parisiense

denominado “boemia”. Os conspiradores tinham como meta a derrubada do governo existente

e, desde a Revolução Francesa, o que almejavam era apenas revolução afim de, dentre alguns

objetivos, instaurar uma perturbação social.

Esses conspiradores profissionais acreditavam que, quanto menor fossem suas bases

intelectuais e racionais, mais êxito teriam, assim, buscavam atingir os conspiradores mais

intelectuais. No entanto, além de muita raiva,comungavam de um mesmo propósito: a revolta

que visava a atingir a estabilidade e a permanência do poder.

25

De acordo com Martins (2013), Benjamin, em Charles Baudelaire: um lírico no auge

do capitalismo, apresenta ideias que podem ser compreendidas como uma provocação à revolta,

à raiva e à fúria, assim como faziam os conspiradores profissionais. Além disso, é nesse meio

que nasce o projeto literário de Baudelaire.

Segundo Martins:

pode-se notar em Baudelaire uma nítida e contraditória simpatia para com toda

essa “massa indefinida” de conspiradores, de infames, de excluídos e

marginalizados, para com os “de baixo”, com os quais se congraça através da

flânérie e da boêmia. Do mesmo modo como o conspirador casual e subalterno

estava à vontade nas tavernas mencionadas por Marx de forma depreciativa,

Baudelaire também se irmanava com a atmosfera embriagada desse mundo à

margem do mundo “civilizado” e “iluminado”, situado mais precisamente nos

velhos arrabaldes da capital francesa, seus subúrbios e periferias mais

afastados, temidos e ignorados. É precisamente nessa atmosfera que

Baudelaire escreverá uma parcela considerável dos poemas constantes em As

flores do mal (de 1857) (MARTINS, 2013, p. 41).

Como se verifica por meio desse excerto, é possível compreender que a simpatia e a

identificação de Baudelaire com esse grupo impulsionam os seus escritos.

No século XIX, o número de trapeiros aumentou consideravelmente devido à renovação

dos métodos industriais, o que fez com que os resíduos da crescente produção aumentassem

seu valor. Naquela época, a figura do trapeiro era fascinante aos olhos de Baudelaire, pois eram

questionáveis os limites possíveis de se viver na miséria em um contexto industrial.

A economia influenciou o movimento das grandes cidades. Com a alta taxa de impostos

sobre o vinho, os cidadãos se viam obrigados a frequentar as tavernas onde encontravam vinho

artesanal mais barato.

Com o avanço do processo de modernização das cidades, o público leitor burguês

gradativamente vai preferindo descrições voltadas para a própria cidade grande e o seu ritmo

acelerado de vida, o que passa a se apresentar na literatura em nível mundial. O romance

Recordações do escrivão Isaías Caminha, de Lima Barreto, é um exemplo de obra voltada para

essas descrições e representações do processo de modernização pelas quais o Brasil passou.

Martins consegue compreender e transmitir a essência do sucesso de Baudelaire:

O fato é que o poeta francês soube plasmar como nenhum outro a rica

experiência do leitor de seu tempo em sua lírica, o que decerto ampliou as

condições de recepção de sua obra, em função da visão cindida, bifrontal, dupla

que Baudelaire brandia em seus textos, mesmo os mais vanguardistas e

arrojados. A boêmia, a flânérie, combinadas à sua sensibilidade peculiar,

sempre oscilando entre a simpatia pelos oprimidos e a tendência a um

26

conservadorismo, fez de Baudelaire o poeta ideal para expressar, através de

seus versos, o Geist (espírito) da modernidade, em meio às conturbadas

transformações sociais e urbanas pelas quais atravessa a Paris de sua época, até

chegar ao leitor de hoje. Sem dúvida, a percepção de que a obra literária não

poderia ser apenas uma diversão aristocrática com palavras, uma construção

retórica de grande complexidade, conferiu à lírica de Baudelaire a consciência

de que a ética deve combinar-se de modo produtivo com a estética, e ao mesmo

tempo uma forma específica de conhecimento do mundo. O que, enfim,

Baudelaire conseguiu em sua arte foi aliar a disciplina mental de um rígido

construtor de versos, de técnica impecável, à vida “desregrada” de um homem

mundano, disposto a tudo compreender e, sobretudo, a viver antes de escrever

(MARTINS, 2013, p. 65).

De acordo com Martins (2013, p. 66), a poesia de Baudelaire, como nenhuma outra,

apresenta uma imensa gama de tipos de sujeitos provenientes do povo, dos excluídos, dos

oprimidos e marginalizados da época. Sua obra lírica é a primeira a esses personagens para o

texto literário. O romance de Lima Barreto, corpus de análise neste estudo, também apresenta

essas características por meio do personagem Isaías Caminha, o qual é negro, e que vai para a

cidade grande e enfrenta preconceito, vivencia o seu crescimento populacional e da indústria

em que as máquinas surgem como forma de substituição da mão de obra do homem e da

imprensa, através da qual se verifica a rapidez da informação.

Outra autora que também disserta sobre as minorias e excluídos é Marilena Chauí, em

seu livro Conformismo e resistência (1987). A autora chama a atenção para as lutas das classes

das minorias (trabalhadores, negros, mulheres, moradores de favelas, homossexuais) que são

reprimidas e alvos de preconceito. As lutas dessas classes são vistas como uma “questão

política”.

De acordo com Chauí, a sociedade brasileira, enquanto uma sociedade autoritária,

conserva a cidadania como um privilégio das classes dominantes. Essa sociedade autoritária é

onde a classe dominante produz uma ideologia da indivisão e da união nacionais, a fim de

exorcizar o horror às contradições. Frente ao horror à realidade das contradições é que a classe

dominante elabora as situações de crise. A crise é entendida como uma invasão súbita e

inexplicável da irracionalidade, a qual ameaça a ordem política e social. Contra a

irracionalidade, as classes dominantes lançam mão de técnicas racionalizadoras, a

“modernização”, visto que as tecnologias pareciam ter um poder de reorganização e de

racionalização.

Reiterando a ideia de Berman, que entende “modernidade” como um estado e

“modernização” como um processo, o capítulo seguinte trata da modernização no Brasil, em

que se verificam informações sobre a urbanização e a industrialização no país. Busca-se

27

delimitar em que consiste o processo de modernização conservadora e estabelecer um panorama

histórico do Brasil no início do século XX que transita entre a modernidade e a tradição.

28

2. MODERNIZAÇÃO NO BRASIL

Maria Auxiliadora Guzzo de Decca publicou, em 1991, Indústria, trabalho e cotidiano, em

que traz a seguinte reflexão:

Ao longo do século XIX o mundo rural prevaleceu sobre o mundo urbano no Brasil,

ainda que, na Europa, a produção industrial e a vida urbana já fossem realidades

significativas desde os fins do século XVIII. A chamada Revolução Industrial havia

alterado os rumos do desenvolvimento sócio-econômico europeu: a fábrica mecanizada

modificara e remodelara não só as formas de produção e de trabalho, mas a própria

organização social. Iniciado na Inglaterra, o processo de mecanização da produção se

estendeu pela Europa, tornando-se a fábrica centro decisivo para a economia e para o

poder e a dominação da burguesia. A fábrica generalizou-se enquanto sistema de

produção, aparecendo, com sua implantação, novas formas de pensar (DECCA, 1991

p. 03).

No excerto acima, a autora faz um breve apanhado do que acontecia na Europa no que

diz respeito ao processo de modernização e traça uma analogia com a situação do Brasil. Decca

ainda discorre em seu livro sobre a ideia de que, no Brasil, nas décadas finais do século XIX,

ocorreram transformações econômicas e sociais que propiciaram ao país condições para a

industrialização e para um acelerado desenvolvimento urbano.

Dessa forma, tratar de modernidade e modernização no Brasil exige, em primeira

instância, recorrer a informações essenciais acerca de acontecimentos no país que contribuíram

para a instauração desses processos, como o crescimento populacional das cidades, o

surgimento da máquina na substituição da mão-de-obra do homem e a rapidez com que as coisas

acontecem. Além disso, a modernização conservadora, seu conceito e seus fundamentos são

pontos de extrema relevância neste estudo.

Nessa perspectiva, tornam-se pertinentes os pressupostos de autores como Darcy

Ribeiro, antropólogo, Raymundo Faoro, jurista, sociólogo, historiador, cientista político e

escritor brasileiro; Marilena Chauí, professora e doutora em Filosofia; e Alfredo Bosi,

professor, crítico e historiador da Literatura Brasileira, os quais irão nortear as reflexões

subsequentes.

O presente estudo também está calcado em informações de vida e obra referentes a

Afonso Henriques de Lima Barreto (1881 - 1922), mais conhecido como Lima Barreto, o qual

foi jornalista e um dos mais importantes escritores literários brasileiros. Recordações do

escrivão Isaías Caminha, de Lima Barreto, é um romance à clef e faz parte da modernidade

29

brasileira e aspectos do modernismo serão nele destacados. A obra do autor, que está imerso

nas modificações impostas pela chegada da modernidade, retrata a mobilidade social, histórica

e cultural do novo momento.

2.1 Brasil: urbanização e industrialização

Darcy Ribeiro discorre com bastante consistência em seu livro O povo brasileiro (2008)

sobre o processo sociocultural do país no século XX. Segundo o autor, em se tratando do plano

econômico, “o Brasil é produto da implantação e da interação de quatro ordens de ação

empresarial, com distintas funções, variadas formas de recrutamento da mão-de-obra e

diferentes graus de rentabilidade” (p. 160). A primeira foi a empresa escravista dedicada à

produção de açúcar e mineração de ouro, a segunda foi a empresa comunitária jesuítica calcada

na mão de obra servil indígena; a terceira foi a multiplicidade de microempresas de produção

de gêneros de subsistência e de criação de gado, e a quarta constituída por banqueiros,

armadores e comerciantes de importação e exportação.

De acordo com Ribeiro:

Toda a vida colonial era presidida e regida, de fato, pela burocracia civil de

funcionários governamentais e exatores, e pela militar dos corpos de defesa e

de repressão. A seu lado, operando de forma solidária, estava a burocracia

eclesiástica dos servidores de Deus, consagrando, dignificando os que se

ocupavam dos negócios terrenos, sobretudo captando a maior parte dos

recursos que ficavam na terra, para com eles exaltar a grandeza de Deus nas

casas e templos de suas ordens. Essa cúpula patricial, cuja elite era quase toda

oriunda da metrópole, formava com a cúpula empresarial e, com a mercantil,

a elite dominante da colônia, essencialmente solidária frente aos outros corpos

da sociedade, apesar de suas cruas oposições de interesses (RIBEIRO, 2008,

p. 162).

Essa classe empresarial-burocrático-eclesiástica contribuiu de forma significativa para

a formação do povo brasileiro a qual nos moldou de acordo com sua cultura e interesses. Seu

objetivo não era criar um povo autônomo, no entanto, fez surgir um povo novo “destribalizando

índios, desafricanizando negros, deseuropeizando brancos” (p. 163).

Ribeiro traz reflexões muito pertinentes sobre a urbanização caótica. O autor afirma que

o Brasil já nasceu como uma civilização urbana e assevera que nossa primeira cidade, de fato,

foi na Bahia, já no primeiro século, período em que surgiram também o Rio de Janeiro e João

30

Pessoa. São Luís, Cabo Frio, Belém e Olinda surgiram no segundo século, sendo que, no

terceiro, surgiram São Paulo, Mariana (em Minas) e Oeiras (no Piauí), em que se interiorizou a

vida urbana. Com o passar dos séculos, as cidades cresceram e se tornaram grandes centros

urbanos, podendo comparar-se ao México.

O crescimento das cidades foi regido por alguns acontecimentos, como a abolição que

oportunizou o ir e vir dos negros, o que expandiu a população do Rio de Janeiro e da Bahia. Os

negros foram a principal força de trabalho usada para produzir tudo o que se edificou no Brasil,

onde se constituiu uma das maiores massas negras do mundo moderno. A abolição deste povo

foi a mais tardia da história e foi a principal causa da queda do Império e da Proclamação da

República. Mesmo assim, as classes dominantes reestruturaram seu sistema de recrutamento de

mão de obra de forma bastante eficaz, a qual era constituída basicamente por escravos negros

imigrantes importados pelos europeus, pois, na Europa, essa população era excedente e acabou

sendo exportado por preços baixos.

Outro aspecto para o qual Ribeiro chama a atenção é para a carreira do negro no Brasil.

Quando ele era escravo, ele servia para executar tarefas duras cuja mão de obra era fundamental

para todos os setores produtivos. Sua função era enriquecer os senhorios e viviam em péssimas

condições. Quando se tornou trabalhador livre, o negro passou a ser explorado de outras formas.

Embora elas fossem melhores do que a escravidão, ele continuava a desempenhar sua antiga

função, que era trabalhar incessantemente.

Além disso, a crise de desemprego na Europa trouxe muitos imigrantes para o Brasil,

principalmente para São Paulo. O povo europeu, que aqui fixou residência, renovou a economia

do país e promoveu a expansão da industrialização. Segundo o autor, urbanização e

industrialização são dois processos complementares e costumam estar associados um ao outro,

visto que a industrialização oferece empregos urbanos à população rural que adere ao êxodo

em busca de oportunidades. Ele acredita que o monopólio da terra e a monocultura contribuíram

de forma significativa para a expulsão da população do campo para a cidade.

No século XX, o Brasil chegou a ter algumas das maiores cidades do mundo, como São

Paulo e Rio de Janeiro, cuja população é o dobro de Paris ou Roma, no entanto, apresentam

menos serviços urbanos e oportunidades de trabalho, o que faz com que se pense em como parte

dessa população sobrevive sem trabalho.

O crescimento exorbitante da população proporcionou a impossibilidade de o setor

econômico continuar crescendo. Isso porque a estrutura agrária não tinha capacidade de elevar

31

a produção agrícola ao passo que crescia a população, expulsando-a do campo para a cidade.

Esta, por sua vez, não tinha condições estruturais para absorver o número populacional que saiu

do campo, deixando um grande número à mercê da marginalidade.

O autor ainda afirma que pertencemos à massa humana acometida pelo atraso, no

entanto, que anseia a modernidade e o progresso. Cabe às novas gerações fazer deste país “uma

das nações mais progressistas, justas e prósperas da Terra” (2008, p. 204).

Darcy Ribeiro também discorre acerca da classe e do poder e mostra com clareza como

as classes eram organizadas segundo a hierarquia no século XX. O patronato (empresários) e o

patriciado (general, deputado, bispo, líder sindical e outros) compunham a classe dominante. Já

a classe intermediária era composta por profissionais liberais, pequenos empresários,

funcionários e empregados. Nas classes subalternas, encontravam-se a aristocracia operária,

trabalhadores especializados, pequenos proprietários, arrendatários, gerentes de grandes

propriedades rurais. Finalmente, a classe da grande massa da população brasileira, a classe dos

oprimidos formada por aqueles marginalizados: os negros, moradores de favelas e periferias,

enxadeiros, boias-frias, empregados de limpeza, empregadas domésticas, prostitutas, a maioria

analfabetos e com dificuldades de se organizar, se manifestar e reivindicar algo em seu favor.

Tal hierarquia permanece nos tempos atuais.

Aqui no Brasil, as classes ricas e pobres se distanciam por questões sócio-culturais.

Quando um sujeito consegue atravessar a barreira social e ingressar em outro estrato e nele

permanecer, é possível observar que seus descendentes – em uma ou duas gerações – também

cresceram, refinaram-se, educaram-se, mesclando-se sem distinção com o patriciado

tradicional.

Expostos alguns pressupostos concernentes à ideia de modernidade, a seção seguinte

discute a respeito do advento da modernidade no Brasil no início do século XX à luz de

Florestan Fernandes.

2.2 Brasil no início do século XX: o advento da modernidade

De acordo com Florestan Fernandes (1987, p. 13), a Revolução Burguesa é um tema muito

importante para “o estudo sociológico da formação e desenvolvimento do capitalismo no

Brasil”, o qual ocorreu no final do século XIX e início do século XX e que está diretamente

ligado ao advento da modernidade no país.

32

Em A revolução burguesa no Brasil (1987), Fernandes discute sobre o que pode ou não ser

considerado histórico, e que para determinar algo como tal, deve-se considerar a importância

que o ocorrido tem para a coletividade “empenhada em manter, em renovar ou em substituir o

padrão de civilização vigente” (p. 17). O padrão de civilização que se pretendeu absorver e

expandir no Brasil, depois da Independência, apresenta ideias “bem definidos e de

aperfeiçoamento interno constante” (p. 17) nos setores econômico, social e de políticas de

organização de vida que imperam no que se pode chamar de “mundo moderno”.

A Independência proporcionou a expansão da burguesia e a valorização social crescente do

alto comércio. Nesse sentido, de acordo com Fernandes,

Enquanto o agente artesanal autônomo submergia, em consequência da absorção de

suas funções econômicas pelas “casas comerciais importadoras”, ou se convertia em

assalariado e desaparecia na “plebe urbana”, aumentavam o volume e a diferenciação

interna do núcleo burguês da típica cidade brasileira do século XIX. Ambos os

fenômenos prendiam-se ao crescimento do comércio e, de modo característico, à

formação de uma rede de serviços inicialmente ligada à organização de um Estado

nacional mas, em seguida, fortemente condicionada pelo desenvolvimento urbano

(1987, p. 18).

Para o autor, o “burguês” pode ser entendido de duas formas “clássicas”. O primeiro

tipo de burguês seria aquele que visa ao lucro como forma de acumular riqueza como fonte de

independência e poder. O outro seria aquele que é capaz de inovar, que tem tino empresarial e

talento organizador, qualidades requeridas pelos grandes empreendimentos econômicos

modernos. Esses dois tipos clássicos de burguês possuem objetivações de processos histórico-

sociais distintos; porém, têm atributos básicos do “espírito burguês” que se associam cada vez

mais ao estilo de vida nas cidades. Para Fernandes, dentre outras coisas a se considerar, “tais

fatos justificam o recurso apropriado às duas noções (de “burguês” e de “burguesia”),

entendidas como categorias histórico-sociais e, pois, como meios heurísticos legítimos da

análise macrossociológica do desenvolvimento do capitalismo no Brasil (1987, p. 20).

Embora o passado do Brasil não tenha sido igual ao da Europa, foi possível

reproduzirmos de maneira peculiar o seu passado recente, visto que ele fez parte do “processo

de implantação e desenvolvimento da civilização ocidental moderna no Brasil” (1987, p. 20).

Discorrer sobre Revolução Burguesa requer encontrar os agentes das grandes transformações

histórico-sociais, de certa forma, responsáveis pela desagregação do regime escravocrata-

senhorial e da formação de uma sociedade de classes no Brasil. Nesse sentido, para tratar da

Revolução Burguesa, é importante investigar:

33

quais foram e como se manifestaram as condições e os fatores histórico-sociais

que explicam como e por que se rompeu, o Brasil, com o imobilismo da ordem

tradicionalista e se organizou a modernização como processo social. Em suma,

a “Revolução Burguesa” não constituiu um episódio histórico. Mas um

fenômeno estrutural, que se pode reproduzir de modos relativamente variáveis,

dadas certas condições ou circunstâncias, desde que certa sociedade nacional

possa absorver o padrão de civilização que a converte numa sociedade

histórico-social. Por isso, ela envolve e se desenrola através de opções

inteligentes, através dos quais as diversas situações de interesses da burguesia,

em formação e em expansão no Brasil, deram origem a novas formas de

organização do poder em três níveis concomitantes: da economia, da sociedade

e do Estado (FERNANDES, 1987, p. 20-21).

A primeira grande revolução social no Brasil foi a Independência. Tal revolução pode

ser entendida como “um marco histórico do fim da era colonial e como ponto de referência para

a época da sociedade nacional” (1987, p.31). A Independência apresentava,

concomitantemente, um elemento “puramente revolucionário” e outro “especificamente

conservador”. O primeiro tinha como propósito a ordem social (herança da sociedade colonial)

dos caracteres heteronômicos, visto que isso era importante para que adquirisse a autonomia

exigida por uma sociedade nacional. Já o segundo elemento, o conservador, consistia em

“preservar e fortalecer uma ordem social que não possuía condições materiais e morais

suficientes para engendrar o padrão de autonomia necessário à construção de uma nação” (1987,

p. 32).

Sobre a coexistência desses elementos, Fernandes afirma que ela provinha:

de uma realidade inexorável, percebida e apontada mesmo pelos homens que

conduziam os acontecimentos (como José Bonifácio, por exemplo). A grande

lavoura e a mineração, nas condições em que podiam ser exploradas

produtivamente, impunham a perpetuação das estruturas do mundo colonial –

da escravidão, à extrema concentração da renda e ao monopólio do poder por

reduzidas elites, com a marginalização permanente da enorme massa de

homens livres que não conseguia classificar-se na sociedade civil e a erosão

invisível da soberania nacional nas relações econômicas, diplomáticas ou

políticas com as grandes potências. Portanto, a Independência foi naturalmente

solapada como processo revolucionário, graças ao predomínio de influências

histórico-sociais que confinavam a profundidade da ruptura com o passado

(1987, p.32-33).

Criar um Estado nacional independente significou o surgimento de uma ordem legal

capaz de adotar uma rede de instituições mais “moderna” e “eficaz”. Além disso, representou a

conquista da autonomia de pensar o presente ou o futuro coletivamente. Com a criação do

34

Estado nacional, surgiu também uma nova orientação do querer coletivo. A esse respeito,

Fernandes assevera que “Toda e qualquer ação, de maior ou menor importância para a

coletividade, voltava-se de um modo ou de outro para dentro do País e afetava ou o seu presente,

ou o seu futuro, ou ambos. Portanto, com a Independência e a implantação de um Estado

nacional, configura-se uma situação nacional que contrasta, psicossocial e culturalmente, com

a situação colonial anterior” (1987, p. 59).

A modernização no Brasil possuía um caráter desordenado, porém intenso, em virtude

das tendências de desenvolvimento político e econômico e das tendências de crescimento

urbano. A formação e a consolidação de uma ordem social nacional geravam pressões

modernizadoras. Para criar um Estado nacional, é preciso:

organizar o espaço econômico, social e político de uma forma peculiar. Não só

se torna necessário imprimir regularidade e eficácia a certos serviços, certos

tipos de comunicação ou de contato e a certas instituições integrativas de

âmbito nacional;é preciso assimilar a tecnologia que torna possível semelhante

organização do espaço econômico, social e político, na qual se funda o

conhecimento, a capacidade de previsão e o controle dos homens sobre os

processos econômicos, sociais e políticos que operam dentro desse espaço,

preservando ou alterando seu padrão de equilíbrio segundo objetivos ou

direções determinados pelo querer coletivo. [...] As condições histórico-sociais

imperantes favoreceram, singularmente, o rápido desenvolvimento dos demais

segmentos das elites senhoriais e, o que é mais importante, imprimiram à

modernização amplitude, proporções e intensidade consideráveis para uma

sociedade literalmente submersa no tradicionalismo (FERNANDES, 1987, p.

65).

O aparelhamento do país era o principal aspecto da modernização econômica. Era ele

quem tirava o Brasil da posição marginal no cenário do capitalismo comercial durante o sistema

colonial e,dessa forma, o país adquiriu um status próprio na organização da economia mundial.

Esse status permitiu a absorção de “novos padrões de comportamento e de organização

econômicos, tecnologia moderna, instituições econômicas, capital e agentes humanos

economicamente especializados etc.”, proporcionando destaque na “participação dos modelos

capitalistas de organização da personalidade, da economia e da sociedade” (1987, p. 94).

Os fazendeiros de café e os imigrantes foram protagonistas históricos cujos papéis

estratégicos contribuíram para a formação e o desenvolvimento do capitalismo moderno. As

categorias sociais de tais personagens promoveram a mudança entre o passado e a criação das

novas estruturas econômicas no país. Segundo Fernandes:

35

O fazendeiro de café, que surgiu e se afirmou, historicamente, como uma

variante típica o antigo senhor rural, acabou preenchendo o destino de dissociar

a fazenda e a riqueza que ela produzia do status senhorial. Do outro lado, o

imigrante que nunca se propôs como destino a conquista do status senhorial. O

que ele procurava, de modo direto, imediato e sistemático, era a riqueza em si

e por si mesma. Só tardiamente e por derivação ele iria interessar-se pelas

consequências da riqueza como fonte, símbolo e meio de poder. Por isso ambos

possuem algo em comum: identificam a ruptura com a ordem senhorial como

um momento de vontade social, que exprimia novas polarizações históricas do

querer coletivo. O fazendeiro de café terminou representando, na cena histórica

brasileira, o senhor rural que se viu compelido a aceitar e identificar-se com a

dimensão burguesa de sua situação de interesses e do seu status social. O

imigrante, por sua vez, sempre foi tangido pela auri sacra fames fora do

contexto do tradicionalismo e, se levou em conta a acumulação estamental de

capital, não o fez para praticá-la de maneira conspícua, mas pura e

simplesmente para legitimar, socialmente, ações econômicas de extremo teor

espoliativo, extorsivo ou especulativo. Assim, os dois polos opostos da

sociedade de tocavam e se fundiam nos planos mais profundos de

transformação da ordem econômica, social e política (1987, p.103-104).

“O fazendeiro, ao lado do imigrante, aparece como construtor pioneiro do Brasil

moderno” (1987, p. 104). O fazendeiro tinha em mente adotar a personalidade moderna como

um “homem de negócios” da cidade e via a fazenda como fonte de riqueza, não de status.

Assim, ele não aderiu ao estilo de vida isolado do antigo “barão do café” e não via problema

em ter outra atividade econômica. Assim, esse “homem de negócios” fez da cidade seu habitat

e, aderindo ao seu estilo de vida, contribuiu para a formação e a expansão da economia urbana.

Ainda em A revolução burguesa no Brasil, Fernandes discorre sobre alguns aspectos da

ordem social competitiva. Sobre isso, o autor afirma que:

Ao absorver o capitalismo como sistema de relações de produção e de troca, a

sociedade desenvolve uma ordem social típica, que organiza

institucionalmente o padrão de equilíbrio dinâmico, inerente à integração,

funcionamento e diferenciação daquele sistema, e o adapta às potencialidades

econômicas e socioculturais existentes. Essa ordem social tem sido designada,

por historiadores, economistas, sociólogos, juristas e cientistas políticos, como

ordem social competitiva (1987, p. 150).

A competição foi absorvida e surgiu em várias situações importantes para o

desenvolvimento de um estilo de vida social urbano “moderno”. Essa competição, ao crescer,

36

tinha uma força social que era incompatível com a permanência da ordem escravocrata e

senhorial. Além disso, revelou-se como uma influência sociodinâmica difícil de controlar,

promovendo a aceleração no ritmo da desagregação dos estamentos dominantes.

É importante ressaltar que a competição operou como um fator de revitalização de

privilégios estamentais e se vinculou a processos que dificultaram o desenvolvimento do regime

de classes. De acordo com Fernandes:

Trata-se de uma situação ambígua, pois aqui estamos diante do avesso da

medalha: incorporada a contextos histórico-sociais ou socioculturais mais ou

menos arcaicos, os dinamismos sociais engendrados pela competição

concorrem para manter ou preservar “o passado no presente”, fortalecendo

elementos arcaicos em vez de destruí-los (1987, p. 176).

A ordem social competitiva e os interesses e valores sociais conservadores

(particularistas e elitistas) possuem uma relação estreita. Calcada em suas essências históricas,

econômicas e políticas, ela manteve o presente preso no passado. A competição não só acelerou

a decadência e o colapso dos estamentos, como também prendeu a expansão do capitalismo a

“um privatismo tosco, rigidamente particularista e fundamentalmente autocrático, como se o

‘burguês moderno’ renascesse das cinzas do ‘senhor antigo’” (1987, p. 168). Ou seja, ela forma

uma ordem social na qual, “além da desigualdade de classes, conta poderosamente o

privilegiamento dos privilegiados na universalização da competição como relação e processo

sociais” (1987, p.168).

Embora os interesses sociais e políticos senhoriais fossem hegemônicos e mesmo tendo

um significado sólido para o crescimento da economia urbana, a ordem social escravocrata e

senhorial mostrou-se com dificuldades para “absorver e regular estrutural e dinamicamente, os

processos econômicos que ela desencadeava” (1987, p. 170). Segundo Fernandes:

O “novo setor econômico” expandiu-se de forma relativamente caótica e

indisciplinada, já que apenas algumas de suas fases e efeitos podiam ser,

efetivamente, controlados a partir de dentro e segundo critérios ou interesses

estabelecidos pela ordem social existente. Essa situação criava uma aparência

de vigorosa “liberdade econômica” e de ebulição da “livre iniciativa”, na esfera

dos negócios (1987, p. 170).

37

A existência de uma aristocracia agrária com o poder da sociedade e do Estado limitava

consideravelmente a ebulição dos interesses econômicos externos, mais especificamente no que

tangia ao setor urbano. Houve certo embate entre iniciativas tomadas para organizar uma

economia de mercado capitalista com a resistência dos estamentos dominantes que tentavam

controlar de alguma forma “a ampla modernização dos meios de troca, de comunicação e de

transportes” (1987, p. 170). Dessa forma, por detrás das relações econômicas, criou-se uma

situação de conflito político em que “os que defendiam a modernização institucional intensiva

e rápida da economia fechavam os olhos ou aceitavam tacitamente os riscos de maior controle

externo da economia interna, a partir de fora ou de dentro. Os que combatiam, obstinadamente,

qualquer modernização, defendiam o status quo nos limites do privilegiamento exclusivo dos

interesses senhoriais” (1987, p. 170).

Os estamentos senhoriais tinham como interesse estabelecer um consenso no que dizia

respeito à modernização institucional de economia e à expansão de um mercado capitalista,

visando aos seus interesses econômicos e tentando evitar problemas potenciais de ordem social

e política.

Fernandes assevera que:

A falta de elasticidade da ordem social escravocrata e senhorial, diante da

emergência e da expansão do capitalismo como uma realidade histórica

interna, gerou uma acomodação temporária de formas econômicas opostas e

exclusivas. Dessa acomodação resultou uma economia “nacional” híbrida, que

promovia a coexistência e a interinfluência de formas econômicas

variavelmente “arcaicas” e “modernas”, graças à qual o sistema econômico

adaptou-se às estruturas e às funções de uma economia capitalista diferenciada,

mas periférica e dependente (pois só o capitalismo dependente permite e requer

tal combinação do “moderno” com o “arcaico”, uma descolonização mínima,

com uma modernização máxima) (1987, p. 176).

Para o autor, é possível estabelecer uma diferença entre a antiga ordem social

escravocrata e a moderna ordem social competitiva. Na primeira, a apropriação não se

defrontava com reguladores externos de real eficácia e, na segunda, vários fatores converteram

a “integração nacional” em um processo democrático e revolucionário que destruiu barreiras

sociais arcaicas e introduziu niveladores sociais de classe. Dentre esses fatores, podem ser

citados o mercado, os níveis de vida e de salário, a competição e o conflito, a consciência

38

operária e a participação política reivindicativa e inconformista dos setores pobres e

assalariados.

Esse processo democrático e revolucionário está calcado na emancipação nacional e nas

tendências modernizadoras controladas de fora, “de desenvolvimento de um mercado

capitalista interno e de crescimento urbano-comercial” (1987, p. 196). No entanto, em virtude

da preservação da escravidão, da produção colonial e da ordem social escravocrata e senhorial,

a dominação senhorial e sua transformação em dominação oligárquica, promoveram um

bloqueio nos setores econômico, social e político na formação das classes, de modo que se

impôs o “controle conservador e o poder autocrático das elites das classes dominantes como

fio condutor da história” (1987, p. 196). Houve uma repetição no circuito histórico da transição

da sociedade colonial para sociedade imperial. Sobre isso, Fernandes explica que:

Os que tinham riqueza e o poder político puderam privilegiar seus interesses

e posições de classe, acelerando essa formação societária no topo e impedindo,

na medida do possível, sua consolidação na base da ordem social competitiva.

Em consequência, puseram-se em condições de manter privilégios que não

poderiam substituir normalmente (isto é, se os setores pobres e assalariados

contassem com oportunidades análogas de acelerar, por seu lado, o

desenvolvimento e o fortalecimento do regime de classes) e, também, de

converter vários requisitos da ordem social competitiva em privilégios

fechados (a começar pelo monopólio da riqueza e do poder, que torna a

dominação oligárquica sob a República uma “democracia entre iguais”, ou

seja, uma rígida ditadura de classe) (1987, p. 196).

O poder oligárquico está intrinsecamente ligado ao início de uma transição na qual

houve uma recomposição nas estruturas do poder, a qual marca o início da modernidade no

Brasil e, de acordo com Fernandes, “separa a ‘era senhorial’ (ou o antigo regime) da ‘era

burguesa’ (ou a sociedade de classes’) (1987, p. 204).

A burguesia não assume papel de instrumento da modernidade. Porém, ela mantém um

comprometimento com tudo o que lhe é vantajoso, como, beneficiar-se das desigualdades e da

heterogeneidade da sociedade brasileira, “mobilizando as vantagens que decorriam tanto do

‘atraso’ quanto do ‘adiantamento’ das populações” (1987, p. 204).

A modernização acontecia com rapidez, especialmente onde havia maior expansão

econômica e nas cidades cujo crescimento era tumultuado. Em termos políticos, direcionava-se

39

mais para amortecer a mudança social espontânea, ao invés de estender-se às zonas rurais e

urbanas mais ou menos atrasadas e estáveis.

Todo o processo de industrialização que aconteceu desde a transição para o século XX

até a década de 30 compõe a evolução interna do capitalismo competitivo. O núcleo dessa

evolução estava no esquema de exportação e de importação. A influência modernizadora vinda

de fora se ampliou e se aprofundou, porém, perdia força ao difundir valores, técnicas e

instituições instrumentais que visavam a criar uma economia capitalista satélite. Para

Fernandes:

Ir além representaria um risco: o de acordar o homem nativo para sonhos de

independência e de revolução nacional, que entrariam em conflito com a

dominação externa. O impulso modernizador, que vinha de fora e era

inegavelmente considerável, anulava-se, assim, antes de tornar-se um fermento

verdadeiramente revolucionário, capaz de converter a modernização

econômica na base de um salto histórico de maior vulto (1987, p. 206-207).

Depois da Abolição, a oligarquia, para fortalecer-se, precisava renovar-se, recompondo

o padrão de dominação de acordo com as imposições da ordem social emergente e em expansão.

Setores insatisfeitos da grande burguesia e setores radicais das classes médias deram origem a

alguns conflitos que se acabaram com a monopolização do poder da “velha” oligarquia. Esta

teve a oportunidade de que necessitava para restaurar a influência econômica, social e política.

Essa “crise” fez com que os interesses oligárquicos ficassem menos visíveis e mais flexíveis, e,

de acordo com Fernandes, “favorecendo um rápido deslocamento do poder decisivo da

oligarquia ‘tradicional’ para a ‘moderna’ (algo que se iniciara no último quartel do século XIX,

quando o envolvimento da aristocracia agrária pelo “mundo urbano dos negócios” se tornou

mais intenso e apresentou seus principais frutos políticos) (1987, p. 208-209).

O autor afirma que:

É nesse entrechoque de conflitos de interesses da mesma natureza ou convergentes e de

sucessivas acomodações, que repousa o que se poderia chamar de consolidação

conservadora da dominação burguesa no Brasil. Foi graças a ela que a oligarquia – como

e enquanto oligarquia “tradicional” (ou agrária) e como oligarquia “moderna” (ou dos

altos negócios, comerciais-financeiros mas também industriais) – logrou a possibilidade

de plasmar a mentalidade burguesa e, mais ainda, de determinar o próprio padrão de

dominação burguesa. Cedendo terreno ao radicalismo dos setores intermediários e à

insatisfação dos círculos industriais, ela praticamente ditou a solução dos conflitos a

largo prazo, pois não só resguardou seus interesses materiais “tradicionais” ou

“modernos”, apesar de todas as mudanças, como transferiu para os demais parceiros o

seu modo de ver e de praticar tanto as regras quanto o estilo do jogo (1987, p. 209).

40

A modernidade como consequência do progresso nas mais variadas esferas da sociedade

nem sempre está ao alcance de todos e acaba por privilegiar as elites. Ainda,em algumas

situações, mantêm-se certos hábitos e ideologias que são de interesse, justamente, das classes

dominantes.

2.3 Modernização conservadora

Pensar em modernização é pensar também, inevitavelmente, em mudanças e

transformações, assuntos que Florestan Fernandes discorre em seu livro Mudanças sociais no

Brasil, 1979. O autor reflete que:

As sociedades humanas sempre se encontram em permanente transformação,

por mais “estáveis” e “estáticas” que elas pareçam ser. Mesmo uma sociedade

tida como “estagnada” só pode sobreviver absorvendo pressões do ambiente

físico ou de sua composição interna, as quais redundam e requerem adaptações

sócio-dinâmicas que significam, sempre, alguma mudança incessante, embora

esta seja com frequência pouco visível (1979, p. 23).

Ou seja, juntamente com as mudanças e as transformações pelas quais as sociedades

passam, vêm as adaptações a essas novidades, mesmo que não sejam tão perceptíveis, elas

inevitavelmente acontecem.

Ainda neste livro, Fernandes também traz importantes reflexões sobre a diferenciação

social e o regime de classes:

Ao estudar o regime de classes em sociedades que se defrontam com o

desenvolvimento capitalista induzido e controlado de fora, além disso sujeitas

ao impacto negativo das debilidades resultantes de suas posições

heteronômicas, os cientistas sociais têm de operar, tanto descritiva quanto

interpretativamente, com uma heterogeneização máxima dos fatores

propriamente estruturais e dinâmicos da diferenciação social. Eles precisam

adaptar seus ângulos de observação, de análise e de interpretação à natureza e

à variedade das forças que intervêm, concretamente, na configuração e nos

dinamismos do regime de classes das nações capitalistas heteronômicas: umas,

procedentes das sociedades hegemônicas externas; outras, provenientes de

tendências dominantes na evolução das estruturas internacionais de poder,

criadas pela interação e acomodação, ao nível mundial, das impulsões

imperialistas das nações capitalistas hegemônicas; outras, por fim, que nascem

“a partir de dentro”, das próprias sociedades de classe dependentes e

subdesenvolvidas (às vezes “introduzidas a partir de fora” mas, com

41

freqüência, parte da evolução interna do capitalismo) e que se voltam na

direção do “desenvolvimento capitalista para dentro” (1979, p. 26).

O autor explica, sob a sua ótica, quais são as características da mudança social no Brasil.

Segundo ele, “o padrão brasileiro de gente de prol” (1979, p. 35) está calcado no período

colonial. Esse padrão, que ainda não foi neutralizado, tem uma relação com a ordem social

competitiva e a mentalidade mandonista, exclusivista e particularista das elites das classes

dominantes. Desse modo, as relações de classe sofrem interferências de padrões de tratamento

e reproduzem o passado no presente, a ponto de que a perspectiva cultural inerente à consciência

conservadora dos dias atuais lembre “mais a simetria ‘colonizador’ versus ‘colonizado’ que a

‘empresário capitalista’ versus ‘assalariado’” (1979, p. 35). Assim, fica claro que ainda há um

distanciamento social entre as classes e que isso nem sempre é uma questão quantitativa.

Fernandes ainda afirma que:

Aquele padrão compatibiliza a coexistência da tolerância e até da cordialidade

com um profundo desdém elitista por quem não possua a mesma condição

social. O que faz com que aquilo que parece “democrático”, na superfície, seja

de fato “autoritário” e “autocrático”, em sua essência. Esse patamar psico-

social das relações humanas é a nossa herança mais duradoura (e, ao mesmo

tempo, mais negativa) do passado colonial e do mundo escravista. O principal

foco dos dinamismos sócio-dinâmicos da mudança social é a organização das

sociedades (1979, p. 35).

De acordo com Fernandes, há dois movimentos de mudança social que operavam de

forma espontânea, os quais se superpunham e se fundiam. Um desses movimentos se dava por

meio de “processos de diferenciação da ordem social escravocrata e senhorial, [...], status e

papéis sociais, de relações sociais ou de funções sociais das instituições-chave” (1979, p. 39).

Já o outro movimento ocorria através da disseminação de “novas técnicas, valores e instituições

sociais, implantados no ‘setor novo’ graças à eclosão de um mercado capitalista moderno, à

reorganização político-administrativa do Estado e à crescente expansão urbano-comercial”

(1979, p. 39). Esses dois movimentos são o que, basicamente, segundo o autor, contribuíam

para a transformação econômica, social e cultural.

Conforme Fernandes, a mudança social beneficia apenas a um pequeno grupo e não a

toda a sociedade brasileira. Nesse pequeno universo beneficiado estavam os nobres, os

burgueses. Para o autor:

42

Esse monopólio não iria desaparecer juntamente com a desagregação da ordem

escravocrata e senhorial: a Abolição, a proclamação da República e a

“revolução liberal” de 30 apenas assinalam que ele entra em crise. A destruição

do modo de produção escravista leva, pela primeira vez, a descolonização ao

âmago do sistema econômico, revolucionando as bases da ordem social e do

sistema de poder. Ela exige que se limite, gradualmente, a articulação dinâmica

entre estruturas arcaicas e modernas. Todavia, a persistência do esquema de

exportação-importação e o fato de que a expansão do mercado interno iria

relativizar a grande lavoura, tiveram efeitos especiais. Mantêm-se o trabalho

servil disfarçado e várias formas de trabalho semilivre muito tempo depois da

universalização do trabalho livre. Portanto, a ordem social competitiva atinge

um clímax evolutivo excluindo tanto os brancos e os mulatos que não lograram

proletarizar-se ou classificar-se nos estratos sociais médios e altos. O que

surge, muito forte, não é o fim do processo que nos preocupa. Mas a pressão

de baixo para cima, que visa impor a “presença” e as “necessidades” da Nação

como um todo na esfera da mudança social, visando acabar com o

esmagamento e a sufocação elitista da mudança social (1979, p. 43).

Para a minoria privilegiada, seus interesses refletem os da Nação. Seus interesses

particularistas se sobrepõem aos da grande massa excluída que tem os seus esquecidos,

ignorados e subestimados. Desse modo, o controle social e a dominação de classe identificam

a Nação como os “donos do poder” (1979, p. 45). Além disso, os problemas que ganham

prioridade também são os que estão ligados aos interesses da minoria privilegiada, a qual,

muitas vezes é, segundo Fernandes, “insensível aos dramas humanos ou desumanos das massas

e pouco sensível às ‘questões de ordem nacional’ que não a ponham em risco visível” (1979,

p.46).

Darcy Ribeiro, dentre assuntos já discutidos neste estudo, em O povo brasileiro (2008),

também traz ideias pertinentes sobre o arcaico e o moderno. O autor inicia suas reflexões acerca

desse tema com a ideia de que:

A passagem do padrão tradicional, tornado arcaico, ao padrão moderno opera

a diferentes ritmos em todas as regiões, mas mesmo as mais progressistas se

veem tolhidas e reduzidas a uma modernização reflexa. Isso não se explica,

contudo, por qualquer resistência de ordem cultural à mudança, uma vez que

um veemente desejo de transformação renovadora constitui, talvez, a

característica mais remarcável dos povos novos e, entre eles, os brasileiros.

Mesmo as populações rurais e as urbanas marginalizadas enfrentam

resistências, antes sociais do que culturais, à transfiguração, porque umas e

outras estão abertas ao novo. São, de fato, antes atrasadas do que conservadoras

(RIBEIRO, 2008, p. 227).

43

Ou seja, embora haja a vontade de aderir ao padrão moderno de vida, há certa dose de

resistência ao novo, mais em virtude de atraso do que ao engajamento a um modelo

conservador.

Culturalmente, o Brasil parece ser homogêneo, uma vez que cada um de seus membros

tem condições de se comunicar com contingentes modernizados e são predispostos a aceitar

inovações. Estes membros não são limitados a um conservadorismo camponês nem a valores

tradicionais, ou seja, não são obrigados a viver sob um modo arcaico a não ser as condições

sociais que os atam a eles. No entanto, para promover a renovação, não basta estar receptivos

ou sedentos de mudanças.

Ribeiro compara o brasileiro com seus ancestrais europeus, indígenas e africanos, e

afirma que ele “se constitui como homem tábua rasa” (2008, p. 249), visto que é bastante

receptivo às mudanças e ao progresso, se comparado com o camponês europeu tradicionalista,

o índio comunitário ou o negro tribal.

A Revolução Industrial propôs inovações; no entanto, o processo foi lento devido à

resistência das classes dominantes. Trata-se de um modelo de modernização que não se adequa

ao padrão, à estrutura do país. Essas classes dominantes fundamentam seus privilégios e

interesses numa ordenação de estrutura arcaica, o que é um fator que só gera atrasos. Ribeiro

reflete:

Esse é o caso da propriedade fundiária, incompatível com a participação

autônoma das massas rurais nas formas modernas de vida e incapaz de ampliar

as oportunidades de trabalho adequadamente remuneradas oferecidas à

população. É também o caso da industrialização recolonizadora, promovida

por corporações internacionais atuando diretamente ou em associação com

capitais nacionais. Embora modernize a produção e permita a substituição das

importações, apenas admite a formação de um empresariado gerencial, sem

compromissos outros que não seja o lucro a remeter a seus patrões. Estes se

fazem pagar preços extorsivos, onerando o produto do trabalho nacional com

enormes contas de lucros e regalias. Seu efeito mais danoso é remeter para fora

o excedente econômico que produzem, em lugar de aplicá-lo aqui. De fato, ele

se multiplica é no estrangeiro (RIBEIRO, 2008, p. 228).

Os interesses do patronato empresarial e os interesses do povo são divergentes. O fato

de o domínio do poder institucional e do controle da máquina do Estado estarem nas mãos de

uma mesma classe dominante faz com que haja uma maior dificuldade e resistência de

progresso que atinja a população como um todo.

44

Com a declaração da independência, a classe dominante se nacionalizou e estava pronta

para lucrar com o regime autônomo, assim como aconteceu com o colonial. Essa classe

apropriou a independência a qual “representou o translado de regência política, encarnada por

um rei português, sediado em Lisboa, para seu filho, assentado agora no Rio de Janeiro, de onde

negociaria a independência nacional com a potência hegemônica da época, que era a Inglaterra”

(2008, p. 252). Tendo o seu poder reconhecido como legítimo, passou a reger a sociedade

brasileira contra os interesses de seu próprio povo.

Assim, a monarquia instaurou-se no Brasil, renovou-se e ampliou-se nas décadas

seguintes. A cultura vulgar e a maioria das técnicas produtivas começaram a se modernizar. De

acordo com Ribeiro (2008, p. 231), “Como a criação das escolas para as elites não correspondeu

qualquer programa de educação de massas, o povo brasileiro permaneceu analfabeto”.

A revolução agrária-mercantil transformou o modo de produção indígena e promoveu a

prosperidade que nos colocou dentro do cenário mundial, passamos a ser capazes de prescindir

da reprodução vegetativa da população por meio da compra de novos membros escravos. A

revolução industrial aliviou o trabalho da força humana e oportunizou à sociedade o seu

ingresso num processo transformativo em que o negro passou a ser livre e demorou décadas

para aprender a viver com autonomia. A utilização de dispositivos mecânicos, como máquinas

de vapor, de petróleo e de eletricidade, oportunizou-nos sermos mais eficazes para prover o

mercado mundial e passamos a exportar mais mercadorias por preços relativamente menores.

Complementando essa ideia, Ribeiro assegura que:

Posteriormente, sobretudo no pós-guerra, uma imensa quantidade de

mercadorias novas, como medicamentos, plásticos, meios de comunicação,

formas de recreação, nos atou mais ainda ao mundo. Reagimos, procurando

produzir esses bens aqui mesmo, num esforço de industrialização substitutiva

das importações. Mas só o pudemos fazer associados a interesses estrangeiros

que, se nos tornaram mais eficazes e modernos, nos fizeram mais lucrativos e

úteis para eles que para nós, inclusive implantando um colonialismo interno

que provocou intenso empobrecimento relativo de zonas de antiga ocupação

(RIBEIRO, 2008, p. 237).

O excerto acima sugere que as modificações e o progresso foram mais significativos e

trouxeram mais benefícios para os estrangeiros do que para nós mesmos.

O autor destaca que o impacto da industrialização, agindo com base em estruturas

arcaicas, viu-se limitado na sua capacidade de transformação. A mão-de-obra, em primeira

45

instância, escrava e depois assalariada, continuou atuando como algo que “deformou o

crescimento econômico dento do capitalismo industrial e a integração do povo nos estilos de

vida da nova civilização” (RIBEIRO, 2008, p. 238). A transformação mais significativa foi a

de se aderir a um sistema tecnológico mecanizado por motores substitutivos da mão-de-obra e

força do homem.

Como consequência da implantação desse sistema, a economia brasileira teve boa parte

a sua população excedente das necessidades de produção, diferente de antes, em que o Brasil

era necessitado de mão-de-obra, chegando ao ponto de importá-la por meio dos escravos. Dessa

forma, a mão-de-obra do trabalhador brasileiro tornou-se obsoleta e ficou à margem do sistema

econômico.

Em relação à nossa cultura, Ribeiro faz uma dura crítica. Segundo ele, a camada

senhorial cultua mais a moda que seus próprios valores. Essa situação se agrava ainda mais nos

dias de hoje em virtude da grande força da indústria cultural, que, por meio dos mais diversos

veículos de comunicação, “ameaça tornar ainda mais obsoleta a cultura brasileira tradicional

para nos impor a massa de bens culturais e respectivas condutas que dominam o mundo inteiro”

(RIBEIRO, 2008, p. 240). Dessa forma, o autor nos provoca a refletir sobre o nosso povo, que

sempre fora tão criativo nas mais diversas manifestações artísticas, hoje se vê ameaçado a

perder essa criatividade para uma “universalização de qualidade duvidosa” (2008, p. 240).

Porém, como essa cultura é a que predomina, é ela que se expressa nos setores mais

avançados da produção em termos tecnológicos, como na arquitetura das casas senhoriais e

templos. Já a cultura popular que sempre fora transmitida oralmente, tanto no ambiente rural

quanto no urbano era unificada por um corpo comum de compreensões. Diante dessa cultura

popular, a antiga cultura erudita, que era mais receptiva a novos valores e formas de expressão,

contrastava com o “moderno” em face do arcaico. Essa modernidade se manifestou em boa

parcela da população tanto das cidades quanto das vilas, diferenciando-se das massas rurais

principalmente por atitudes menos conservadoras.

Como exemplo do progresso e da modernização, Ribeiro (2008, p. 241) cita a mudança

de posição que a mulher passou a assumir na sociedade e a sua obtenção de melhores condições

de vida. Cita a continuação da criatividade principalmente do negro-massa e usa o culto a

Iemanjá que acontece na Bahia, São Paulo e Rio de Janeiro como exemplo de inovação que

aposentou “o velho e ridículo Papai Noel, barbado” (2008, p. 241).

Complementando essa reflexão, o autor ainda assegura que:

46

Comprimida por todas essas pressões transformadoras, a cultura popular

brasileira tradicional, tornada arcaica, se vai transfigurando em novos moldes.

Estes, embora correspondentes ao padrão “ocidental” comum às sociedades

pós-industriais, assumem no Brasil qualidades peculiares relacionadas à

especificidade do processo histórico nacional. Como essas variam por regiões,

as áreas culturais operam como estruturas de resistência à mudança, num

esforço de preservação de suas características. Mas elas só podem manter-se

tradicionais como arcaísmos em relação ao que se torna o perfil cultural

predominante como obsolescência com respeito à economia prevalecente

(RIBEIRO, 2008, p. 242).

O processo geral de industrialização abrange boa parte da população devido à ação

uniformizadora dos sistemas de comunicação de massa que proporciona a interação entre

indivíduos de diferentes regiões do país.

O processo de modernização no Brasil que ocorreu na virada do século XIX para o

século XX teve reflexos também na literatura. Lima Barreto foi testemunha do processo de

modernização pelo qual a cidade do Rio de Janeiro passou nesse período e registrou em

algumas de suas obras traços que evidenciam as rápidas mudanças ocorridas especialmente no

âmbito social, bem como as consequências sofridas pelas camadas mais populares em virtude

dessa modernização, como Recordações do escrivão Isaías Caminha e Vida e Morte de M.J.

Gonzaga de Sá.

Lima Barreto tinha suas obras voltadas para uma crítica à sociedade em geral,

denunciando o preconceito e a marginalização social e racial. Nas primeiras décadas de 1900,

a literatura passou a ser vista não somente como uma manifestação estética, mas como uma

tendência a críticas. O objetivo das críticas e denúncias sociais deste autor, por meio de sua

produção literária, era transformar a sociedade, tornando-a mais justa e humanitária, pois

acreditava no poder de transformação social através da literatura. Lima Barreto colocava em

sua obra não apenas impressões pessoais, não eram obras pura e meramente compostas por

traços autobiográficos; mas buscava também registrar seu testemunho do modo de vida de

trabalhadores, de pessoas comuns, muitas vezes marginalizados e pertencentes à classe de

minorias.

O Rio de Janeiro passou por transformações econômicas, políticas e sociais a partir da

implantação do regime republicano no Brasil. Para acompanhar o progresso, a cidade deveria

assumir o aspecto de uma sociedade moderna com uma imagem civilizada criada pela

burguesia e, consequentemente, as minorias passaram a ser excluídas desse processo por não

se enquadrarem nesse novo modelo de sociedade.

47

Observando esse quadro social que circundava a cidade do Rio de Janeiro, Lima Barreto

escrevia de forma crítica sobre a situação. O processo de modernização fez com que a cidade

do Rio de Janeiro sofresse mudanças em sua estrutura física, ou seja, houve uma reurbanização,

porém, esta foi excludente, e não trouxe uma perspectiva inclusiva para as grandes massas.

Junto a isso, o comportamento das pessoas também foi se modificando, tornando-se

semelhante aos modelos europeus, como, o hábito de caminhar sozinho pelas ruas e às pressas.

Tais traços passaram a ser, dentre outros, algumas características do homem moderno, presentes

no romance Recordações do escrivão Isaías Caminha.

Com o processo de modernização no Brasil, observaram-se avanços e, por outro lado, a

manutenção de ideologias que se colocaram em prol das elites. A este estado de coisas alguns

autores chamaram de “modernização conservadora”, ou seja, o país atravessou um processo de

modernização que atingiu a poucos, no caso, as camadas dominantes. No ensaio “O termo

modernização conservadora: sua origem e utilização no Brasil” (2009), Murilo José de Souza

Pires e Pedro Ramos baseiam-se em estudos de diversos nomes que são referência para embasar

o que diz respeito ao termo e sua origem, dentre eles, Moore Junior, que o usou, em primeira

instância, buscando mostrar como ocorreram as revoluções burguesas na Alemanha e no Japão

na transição das economias pré-industriais para as economias capitalistas industriais.

No âmbito mundial, tomam-se como base as revoluções burguesas na Alemanha e no

Japão, as quais foram parciais e não eliminaram completamente as estruturas sociais, políticas

e econômicas do antigo regime, diferente dos casos da Inglaterra, da França e dos Estados

Unidos. Dessa forma, o Estado nacional desses países estreitou as relações entre os terra

tenentes e a burguesia, excluindo os camponeses e proletariados do direito pleno à democracia

e à cidadania.

De acordo com Pires e Ramos (2009), Moore Junior destacou a existência de três

caminhos históricos percorridos desde o mundo pré-industrial ao contemporâneo. O primeiro

diz respeito à construção de sociedades capitalistas e democráticas na Inglaterra, França e

Estados Unidos. O segundo se refere à era capitalista, porém em grandes revoluções e culminou

com o fascismo, que foi o caso da Alemanha e do Japão; e o terceiro circunda o consumismo o

qual se desenvolveu na Rússia e na China. As revoluções determinaram padrões de

desenvolvimento capitalista diferenciados, uma vez que o processo de modernização pelo qual

passaram os dois países não teve condições suficientes para eliminar os elementos tradicionais

da antiga sociedade pré-industrial.

48

No contexto da modernização conservadora, observa-se que a burguesia nascida da

revolução capitalista não teve condições suficientes para se desvincular da classe dos

proprietários rurais, o que acabou resultando em um pacto político entre a burguesia e os terra

tenentes. Este pacto visava a manter um projeto de uma sociedade capitalista que estivesse ao

mesmo tempo arraigado aos interesses dos proprietários rurais.

Muitas podem ser as definições para o termo “modernização conservadora”, depende

do viés que se analisa. Por exemplo, em âmbito nacional, Alberto Passos Guimarães, ensaísta

brasileiro preocupado com a justiça social, é referência no que tange à modernização

conservadora e a analisa pelo prisma econômico (1977, p. 3): “a ‘estratégia de modernização

conservadora’, assim chamada, porque, diferentemente da reforma agrária, tem por objetivo o

crescimento da produção agropecuária mediante a renovação tecnológica, sem que seja tocada

ou grandemente alterada a estrutura agrária”. Já Azevedo, considera aspectos históricos e

políticos da modernização conservadora. Para o autor (1982, p. 24):

[...] dependendo das circunstâncias históricas e nacionais, a burguesia pode

desempenhar um papel reacionário ou revolucionário, aliar-se às velhas classes

dominantes e promover uma modernização conservadora, através da revolução

passiva, de caráter elitista e autoritário, promovendo transformações pelo alto.

No caso do Brasil, merece destaque o fato de que, embora médias e grandes unidades

de exploração agrícola foram modernizadas e se transformaram em unidades capitalistas, não

houve o fracionamento da estrutura fundiária nacional. Portanto, mesmo contando com

processos de modernização, manteve suas raízes no que era tradicional, podendo dizer que tal

processo foi de uma modernização conservadora.

A modernização conservadora é um fenômeno observado no Brasil, em particular, nos

primeiros decênios do século XX. O país progrediu em termos de sua modernização tecnológica

e em sua estrutura econômica, mas esse progresso atingiu a poucos. Dito em outros termos, a

modernização alcançou apenas aquelas camadas mais ricas da sociedade, pois eram estas que

tinham condições de acompanhar o desenvolvimento em curso. Muitas pessoas se deslocavam

de determinadas regiões do Brasil para centros mais desenvolvidos, mais notadamente São

Paulo e Rio de Janeiro; contudo, ao chegarem a essas metrópoles, não eram absorvidas pelas

cidades, sobrando-lhes apenas condições de trabalho e de vida mais humildes. Isso tudo, em

49

certa instância, alimentava estereótipos e preconceitos já existentes, algo que ajuda na

caracterização de um país autoritário.

Neste capítulo, discorreu-se sobre alguns pressupostos concernentes ao processo de

urbanização e de industrialização no Brasil, sobre algumas ideias referentes à modernização

conservadora e sobre o advento da modernidade no país no início do século XX, sob a ótica de

Darcy Ribeiro e Florestan Fernandes.

O próximo capítulo aborda alguns aspectos importantes sobre Lima Barreto e seu

romance Recordações do escrivão Isaías Caminha, que, juntamente com este e o capítulo

anterior, servem de suporte para a realização da análise a que esta dissertação se propõe.

50

3 A MODERNIZAÇÃO CONSERVADORA EM RECORDAÇÕES DO ESCRIVÃO ISAÍAS

CAMINHA

3.1 Lima Barreto e seu romance Recordações do escrivão Isaías Caminha

Muitos acontecimentos em nível mundial ou mesmo nacional rompem barreiras e, por

serem tão pertinentes, acabam se tornando tema na literatura. Tal é o caso do processo de

modernização conservadora que se deu na passagem do século XIX para o século XX, período

em que viveu Afonso Henriques de Lima Barreto. Este nasceu na cidade do Rio de Janeiro em

1881 e durante sua vida enfrentou preconceito por ser mestiço. Teve oportunidade de boa

instrução escolar custeada por seu padrinho, o Visconde de Ouro Preto. Em 1904, após a loucura

acometer seu pai, e já órfão de mãe, abandonou o curso na Escola Politécnica para assumir o

sustento dos irmãos.

Após concluir o segundo grau, Lima Barreto possuía uma excelente qualidade na sua

produção textual, pois lia muito. Isso contribuiu para que ele iniciasse sua atividade como

jornalista. O autor levava uma vida solitária, boêmia e entregue à bebida, chegando a ser

internado duas vezes na Colônia de Alienados na Praia Vermelha em virtude do alcoolismo,

pois apresentava alucinações quando estava em estado de embriaguez.Suas experiências

pessoais foram inspirações para temáticas para seus livros, como a desigualdade social, o

racismo, as decisões políticas quanto à Primeira República, e também seus sentimentos

despertados no período em que esteve internado. Lima Barreto faleceu em primeiro de

novembro de 1922 e recebeu o devido reconhecimento na Literatura após a sua morte, visto

que, em razão do centenário de seu nascimento, em 1981, alguns eventos foram realizados em

sua homenagem.

Lima Barreto estreou como escritor no ano de 1909, publicando, em Portugal, o romance

Recordações do escrivão Isaías Caminha. Em 1911, começou a publicar em formato de

folhetins Triste fim de Policarpo Quaresma,o qual, em 1915, foi editado em brochura. Numa e

Ninfa (1915), Vida e morte de M. J. Gonzaga de Sá (1919), Clara dos Anjos (1948) e Diário

íntimo (1953) também estão entre as principais obras do autor.

Em Recordações do escrivão Isaías Caminha, o jovem Isaías é um menino do interior

que, observando a desigualdade intelectual entre sua mãe e seu pai, toma gosto pelos estudos e

resolve ir para a cidade grande com a finalidade de tornar-se doutor; ele acreditava que,dessa

forma, o fato de ser mulato poderia não ter tanta importância, tendo estudado medicina. Com

51

pouco dinheiro e uma carta de recomendação dirigida ao deputado doutor Castro, Isaías segue

para o Rio de Janeiro.

Já instalado em um hotel, Isaías faz amizade com o senhor Laje da Silva, que o apresenta

ao doutor Ivã Gregoróvitch Rostóloff, jornalista de O Globo. Isaías decide procurar o deputado

Castro, a fim de que este possa lhe conseguir um emprego, assim, poderia custear o estudo de

medicina. Foi recebido com frieza e obteve a resposta de que era muito difícil conseguir um

emprego.

Isaías perambula pela cidade por muitos dias, sem dinheiro, passando fome, procurando

emprego e, a cada negação recebida, percebe que é em virtude de sua cor, o que o faz pensar

que jamais iria se ajustar na vida. Rostóloff o convida para ir até a redação do jornal O Globo

e o jovem recebe a oportunidade de trabalhar como contínuo. Inserido nesse contexto, o

personagem vai conhecendo e descrevendo na narrativa, que é em primeira pessoa, tudo o que

permeia o mundo da imprensa, mais especificamente, o jornal. Isaías perde suas grandes

ambições, já não pensa mais em formar-se doutor e acostuma-se com o trabalho de contínuo.

Na ocasião do suicídio de Floc, companheiro de trabalho, Isaías é incumbido de ir ao

encontro de Ricardo Loberant para comunicá-lo sobre o ocorrido. Como Isaías o flagra

juntamente com Aires d’Ávila em uma sessão de orgia, Loberant passa a dispensar um

tratamento de maior atenção a Isaías, promove-o a repórter do jornal e passam a dividir

confidências e farras. Isaías ganha de Loberant proteção e dinheiro em troca de sua discrição.

Passado o tempo, Isaías sente-se mal, fica ressentido ao lembrar que deixou de lado seu

objetivo inicial que era estudar e tornar-se doutor, e que não se dedicou ao trabalho com a força

de que era capaz. Sentia-se tomado pela fraqueza, pois adulava o diretor do jornal para obter

dinheiro.

Embora Triste fim de Policarpo Quaresma e Recordações do escrivão Isaías Caminha

tenham alcançado algum êxito, Lima Barreto recebeu duras críticas, especialmente por sua

forma de escrever, que destoava do padrão vigente no momento, visto que sua linguagem era

mais coloquial e despojada. Além desse modo peculiar de escrever, o autor acreditava que a

Literatura era um meio de denunciar a desigualdade, o preconceito e a injustiça; por isso,

problemas sociais como esses eram uma constante em suas produções, como pode ilustrar o

seguinte fragmento do corpus deste estudo, Recordações do escrivão Isaías Caminha:

O trem parara e eu abstinha-me de saltar. Uma vez, porém, o fiz; não sei mesmo em

que estação. Tive fome e dirigi-me ao pequeno balcão onde havia café e bolos.

52

Encontravam-se lá muitos passageiros. Servi-me e dei uma pequena nota a pagar.

Como se demorassem em trazer-me o troco reclamei: “Oh! fez o caixeiro indignado e

em tom desabrido. Que pressa tem você?! Aqui não se rouba, fique sabendo!”. Ao

mesmo tempo, a meu lado, um rapazola alourado reclamava o dele, que lhe foi

prazenteiramente entregue. O contraste feriu-me, e com os olhares que os presentes

me lançaram, mais cresceu a minha indignação (p. 22).

O excerto denuncia o quão retrógrado era o comportamento de algumas pessoas em

relação ao negro, que era tratado com desconfiança mesmo depois da abolição da escravatura.

Pensar neste literato traz consigo a ideia de que ficção e realidade estão intrinsecamente

associadas, uma vez que, juntas, retratam dramas pessoais e a vida da época. Isto é possível de

se verificar em Recordações do escrivão Isaías Caminha, o qual não deixa de trazer, em certa

medida, dados autobiográficos, como, o fato de o personagem ser negro, enfrentar preconceito

e trabalhar na imprensa, como Lima Barreto, o que se pode observar em: “Assim fazia a minha

reportagem no Ministério da Marinha. Desde os ministros até aos contínuos, todos me enchiam

de mimos e de festas” e “Nos meus primeiros meses de reportagem foi quando amei mais

ativamente a vida” (p. 162). Nessas passagens, Isaías relata um pouco sobre seu trabalho no

jornal, assim como Lima Barreto muito contribui para com a imprensa carioca como jornalista.

A vida da época também é representada nesse livro por meio de passagens que mostram

claramente o poder de manipulação exercido pela imprensa, principalmente pelos jornais:

O Rio de Janeiro tinha então poucos jornais, quatro ou cinco, de modo que era fácil

ao Governo e aos poderosos comprar-lhes a opinião favorável. Subvencionados, a

crítica em suas mãos ficava insuficiente e cobarde. Limitavam-se aos atos dos

pequenos e fracos subalternos da administração; o aparecimento d’O Globo levantou

a crítica, ergueu-a aos graúdos, ao presidente, aos ministros, aos capitalistas, aos

juízes, e nunca os houve tão cínicos e tão ladrões. Foi um sucesso; os amigos do

Governo ficaram em começo estuporados, tontos, sem saber como agir. (p. 84). [...]

Raul Gusmão, com aquela covardia moral que o caracterizava, logo que o soube tão

relacionado nas Laranjeiras, com influência entre os colegas, falando familiarmente

com deputados e senadores – gente influente para a glória e tudo o mais – começou a

elogiá-lo pelo seu jornal (p. 124)

Nessa perspectiva, é possível observar que a imprensa, de certa forma, teve o poder de

persuasão e de manipulação, além de transmitir conhecimentos e notícias, incutia nos leitores

o seu ponto de vista, enaltecendo, denunciando e denegrindo a imagem de quem e do que lhe

convinha.

53

Lima Barreto viveu durante a transição do século XIX para o século XX, período que

foi marcado pela necessidade de o Brasil desfazer-se do estereótipo de país atrasado, buscando

instaurar a modernidade, a qual foi fundamentada em aspectos de ordem material tendo como

referência a Europa Ocidental.

Diante do advento da modernização, escritores da época discorriam sob sua ótica acerca

de questões políticas, culturais, sociais e econômicas do Brasil daquele momento histórico, os

quais representavam uma parcela significativa da elite intelectual brasileira. Lima Barreto foi

um dos escritores que denunciava acontecimentos sociais, como exemplifica este fragmento do

romance:

O seu gabinete era alvo de uma peregrinação. Durante o dia e nas primeiras horas da

noite, entrava toda a gente, militares, funcionários professores, médicos, geômetras,

filósofos. Uns vinham à cata de elogios, de gabos aos seus talentos e serviços. Grandes

sábios e ativos parlamentares eu vi escrevendo os seus próprios elogios. O leader do

governo enviava notas, já redigidas, denunciando os conchavos políticos, as

combinações, os jogos de interesses que se discutiam no recesso das ante câmeras

ministeriais. Foi sempre coisa que me surpreendeu ver que amigos, homens que se

abraçavam efusivamente, com as maiores mostras de amizade, vinham ao jornal

denunciar-se uns aos outros. Nisso é que se alicerçou o O Globo; foi nessa divisão

infinitesimal de interesses, em uma forte diminuição de todos os laços morais (p. 107-

108).

Grandes e significativas mudanças ocorreram na segunda metade do século XIX no

Brasil. Na economia, observou-se a ascensão do café, houve as primeiras tentativas industriais

e criaram-se instituições financeiras. No âmbito social, ganharam destaque a abolição da

escravatura e a chegada dos imigrantes europeus. Neste período, a modernização caracterizou-

se também pela construção de ferrovias, o que transpareceu uma ideia de progresso.

Contudo, essa ideia de progresso parece não ter avançado além dessas esferas. Quando

há avanços e inovações, espera-se que a modernização não se restrinja a indústrias e ao setor

econômico, por exemplo, mas, sim, que a mentalidade das pessoas também evolua e que, certos

comportamentos, como o preconceito, não sejam mais colocados em prática. Infelizmente,

nesse sentido, não houve uma evolução significativa, pois a mentalidade do homem nem sempre

acompanhou a modernização.

O período que marcou a transição do século XIX para o século XX, portanto, passou

por muitas mudanças significativas as quais tiveram reflexos também na literatura. Os textos

literários apresentavam certas ideologias acerca de vários aspectos, inclusive sobre o modo de

construção da identidade nacional brasileira. Lima Barreto (1881-1922) viveu no período dessa

54

transição e, certamente, o que vivenciou nesse período exerceu influência sobre a sua visão

crítica do Brasil, a qual era, de alguma forma, sempre presente em suas obras.

Recordações do escrivão Isaías Caminha tem Isaías como principal personagem, o qual

passara por várias situações constrangedoras e preconceituosas por ser negro:

Percebi que o espantava muito dizer-lhe que tivera mãe, que nascera num ambiente

familiar e que me educara. Isso, para ele, era extraordinário. O que me parecia

extraordinário nas minhas aventuras, ele achava natural; mas ter eu mãe que me

ensinasse a comer com o garfo, isso era excepcional. Só atinei com esse seu íntimo

pensamento mais tarde. Para ele, como para toda a gente mais ou menos letrada do

Brasil, os homens e as mulheres do meu nascimento são todos iguais, mais iguais ainda

que os cães de suas chácaras (p. 163).

Lima Barreto, por meio do romance supracitado, denuncia a desigualdade, a injustiça e

o preconceito na sociedade brasileira, mais especificamente no cenário da cidade do Rio de

Janeiro, o que se pode ilustrar com o fragmento citado. O corpus de análise pertence ao período

em que o Brasil viveu um processo de modernização e retrata como isso atingiu a população,

visto que nem todos foram beneficiados por esse processo e boa parte do povo ficou à sua

margem.

Para compreender melhor o autor Lima Barreto e seu trabalho enquanto escritor, pode-

se recorrer a alguns estudos, dentre eles, Lima Barreto, um pensador social na primeira

república (2002), de Ana Cristina Teixeira Machado. A autora escreve um capítulo intitulado

“Um flâneur com pés de chumbo” no qual discorre sobre o autor, sua forma de escrever e a

modernidade. Segundo Machado,

Compreendendo a literatura como um instrumento de comunhão entre os

homens, desejava uma linguagem que denunciasse os entraves sociais ao

congraçamento humano. [...] A modernidade transfigura a linguagem à medida

que as transformações desencadeadas pelo processo modernizador exigem

formas inovadoras de expressão. Na literatura brasileira do início do século,

Lima Barreto foi a voz que atendeu a esse impulso inovador (MACHADO,

202, p. 91-92).

Os romances de Lima Barreto têm como cenário a cidade, que é onde a modernidade se

apresenta com bastante expressividade. Sevcenko apud Machado:

A cidade do Rio de Janeiro abre o século XX defrontando-se com perspectivas

extremamente promissoras [...] Núcleo da maior rede ferroviária nacional [...]

o Rio de Janeiro completava sua cadeia de comunicações nacionais com o

comércio de cabotagem para o Nordeste e o Norte até Manaus. Essas condições

55

prodigiosas fizeram da cidade o maior centro comercial do país [...]

Acrescente-se ainda a esse quadro o fato de essa cidade constituir o maior

centro populacional do país, oferecendo às indústrias que ali se instalaram em

maior número nesse momento o mais amplo mercado nacional de consumo e

de mão-de-obra [...] A nova filosofia financeira nascia com a República,

reclamava remodelação dos hábitos sociais e dos cuidados pessoais. Era

preciso ajustar a ampliação local dos recursos pecuniários com a expansão

geral do comércio europeu, sintonizando o tradicional descompasso entre essas

sociedades em conformidade com a rapidez dos mais modernos transatlânticos

[...]E acompanhar o progresso significava somente uma coisa: alinhar-se com

os padrões e o ritmo de desdobramento da economia europeia, onde “nas

indústrias e no comércio o progresso do século foi assombroso, e a rapidez

desse progresso miraculosa” (apud MACHADO, 2002, p. 85-86).

É nesse cenário moderno da cidade do Rio de Janeiro que se desenvolve a narrativa

Recordações do escrivão Isaías Caminha. Nesse romance o personagem Isaías praticava a

flânerie:

Saía, mas evitava a rua do Ouvidor e o Laje da Silva, que passara a tratar-se de

outro modo. Dei em passear de bonde, saltando de um para outro, aventurando-

me por travessas afastadas, para buscar o veículo em outros bairros. Da Tijuca

ia ao Andaraí e daí à Vila Isabel; e assim, passando de um bairro pra outro,

procurando travessas despovoadas e sem calçamento, conhecia a cidade – tal

qual os bondes a fizeram alternativamente povoada e despovoada, com grandes

hiatos entre ruas de população condensada e toda ela, agitada, dividida,

convulsionada pelas colinas e contrafortes da montanha em cujas vertentes

crescera. Jantava, uns dias; em outro, almoçava unicamente; e houve muitos

que nem uma cousa ou outra fiz. Descobri a Biblioteca Nacional, para onde

muitas vezes fui, cheio de fome, ler Maunoassant e Daudet (p. 45).

De acordo com Maria Cristina Teixeira Machado (2002, p. 66):

A posição de Lima Barreto no campo intelectual de seu tempo traduz-se como

marginalidade. A estrutura social da ‘República das Letras’, além de marcada

pelo predomínio da boêmia literária nas campanhas da Abolição e da

República, foi ainda caracterizada como um período em que a vida literária

sobrepujou a literatura.

Ao lado da marginalidade social e étnica do autor, está a literária. Ao ousar inovar, em

termos de linguagem, outros escritores não lhe perdoaram, negando-lhe o prestígio e o

reconhecimento a que ele tanto aspirava.

O fato de Lima Barreto ter em seus romances personagens negros, discriminados e à

margem da sociedade, torna necessário um apanhado de questões sociais que delinearam a

56

perspectiva de vida para os negros, bem como para o escritor negro. Ao final do Império, ocorre

a Abolição da Escravatura que, de acordo com Machado, não foi uma luta uniforme:

De um lado, estavam os políticos que consideravam um desafio social e ético

redimir a sociedade brasileira do passado de escravidão. Era premente fazer

justiça aos negros, dar-lhes liberdade em curto prazo e integrá-los em uma

democracia moderna. [...] Do outro lado estavam os fazendeiros do Centro-Sul

que, apesar de sua participação tardia na luta abolicionista, representavam um

papel fundamental para o seu sucesso. Ao contrário dos políticos e intelectuais,

a consciência social dos cafeicultores e de seus planos econômicos de curto ou

médio prazo (MACHADO, 2002, p. 94-95).

Os objetivos das partes divergiam. Os primeiros queriam emancipar o escravo o quanto

antes, e os segundos tinham como principal interesse passar do trabalho escravo para o trabalho

livre: “Os abolicionistas queriam libertar o negro; os cafeicultores precisavam substituir o

negro”. Assim, com aval e patrocínio do governo, foi permitida a entrada de imigrantes no país

e, “sob o domínio do café, depois de proclamada a república, iniciou-se o movimento que foi

chamado de ‘a grande imigração’” (MACHADO, 2002, p. 95).

Com o decreto da abolição da escravatura, o singular liberalismo republicano não tinha

nada a oferecer ao ex-escravo. Então, se por um lado o Império promoveu a liberdade do negro,

a República não lhe ofereceu sequer uma perspectiva de futuro, apenas a marginalidade. Os

senhores do café e os militares florianistas disputavam a primazia no regime recém-instaurado.

De acordo com Machado:

Ao abolir-se a escravatura, como se viu, não se desenhava para escritor negro

ou mulato pós-88 o mesmo futuro a que visavam os militantes filhos de

escravos nos decênios de 1870 e 1880. A arena passara da senzala ao mercado

de trabalho. A saga de Isaías Caminha é, ainda segundo Bosi, a metáfora do

intelectual ao mesmo tempo livre e confinado. Onde quer que vá, Isaías sente-

se como que exilado sob a cor da pele (MACHADO, 2002, p. 96-97).

Dessa forma, segundo Machado (2002, p. 97), a abolição da escravatura leva o homem

negro a avançar em duas direções: “para fora, na medida em que é expulso de um Brasil

moderno, cosmético, europeizado; para dentro, na medida em que é tangido para os porões do

capitalismo nacional, sórdido e violento”.

A autora (2002, p.7) deixa evidente qual o posicionamento de Lima Barreto em relação

à modernidade:

57

Lima Barreto é um combativo inimigo do Brasil moderno, porque o

identificava com as mazelas da República nascente: a corrupção dos políticos

e da imprensa, [...] a transformação dos costumes pela introdução de novos

hábitos, a transgressão à fisionomia da cidade, [...] a submissão da lei aos

interesses pessoais [...]. O moderno é identificado ao novo corrompido, ao

novo sem dignidade, à deterioração moral e intelectual o país.

Em sua produção literária, Lima Barreto criticava constantemente a Academia Brasileira

de Letras. Além disso, o comportamento dos políticos da época também era alvo de seus

ataques; no entanto, a denúncia social era seu objetivo maior. Machado faz um paralelo e

compara a forma de escrever e representação social nos contos e nos romances de Lima Barreto.

Conforme a autora:

Contrapondo o conto com romances como Isaías Caminha, vemos que neste

último, como romance à clef que é, os recursos ficcionais são pouco elaborados

e os elementos que lhe dão suporte são facilmente identificáveis. No conto, a

ficção se alimenta da realidade social e, ao transfigurá-la, adquire contornos

individuais e personalidade própria. Nesse sentido, poder-se-ia dizer que ele

extrapola a realidade imediata, alcançando dimensão universal. Podemos

afirmar que em Isaías Caminha, a arte é o meio de que o autor se utiliza para

denunciar a realidade (MACHADO, 2002, p. 101).

Um romance à clef, expressão francesa cujo significado aproximado é romance com

chave, pode ser lido e entendido como uma narrativa na qual o autor se refere a personagens e

fatos reais por meio de personagens e fatos fictícios. Esse recurso é utilizado para tratar com

discrição determinadas situações a fim de evitar acusações de violação de privacidade e para

não deixar ninguém em uma posição constrangedora. Ainda, escrever um romance à clef pode

ser uma oportunidade de retratar experiências autobiográficas sem se expor e também permite

criar um novo desfecho para determinada história.

O poder representado pela imprensa, mais especificamente os jornais, ganha destaque

na literatura de Lima Barreto e é alvo de crítica. Machado (2002, p. 143) afirma que “Numa

época em que os jornais desempenhavam um importante papel na difusão dos literatos, a

marginalidade do autor é reforçada pelo jogo de poder que preside a dinâmica de seu

funcionamento”. A história da sociedade capitalista está intimamente ligada à história da

58

imprensa. Essa conexão pode ser comprovada por alguns traços da sociedade capitalista. Assim,

Machado destaca:

Em primeiro lugar, a influência da imprensa sobre as massas e sobre os

indivíduos conduz a uma tendência marcada pela unidade e uniformidade dos

comportamentos. [...] Em segundo lugar, o estreito vínculo entre a imprensa e

a ordem capitalista aparece também na evolução do problema da liberdade de

informar e de opinar. [...] Finalmente, a corrida para a revolução nas técnicas

de impressão seria o terceiro traço revelador da relação dialética entre o

capitalismo e imprensa (MACHADO, 2002, p. 145-146).

Essa revolução das técnicas de impressão diz respeito ao uso da máquina a vapor pelo

Times, na Inglaterra, em 1814, a qual permitia uma produção em massa, tendo o custo reduzido

e a circulação acelerada. Junto ao crescimento da produção, houve a abertura de mercados e

com ela a necessidade das propagandas e anúncios.

A corrida pelas inovações das técnicas promoveu o crescente fluxo de informações

devido ao telégrafo, ao cabo submarino, ao telefone e ao rádio. Dessa forma, a história da

imprensa foi marcada pelo conflito entre opinião e informação, opinião e publicidade. Com o

avanço do capitalismo, a imprensa buscava com rapidez chegar até os leitores. Isso implicava

não só a multiplicação dos exemplares como também os meios de transportes deveriam atender

a sua distribuição de maneira rápida. Tais traços podem ser observados na obra Recordações

do escrivão Isaías Caminha, de Lima Barreto.

No Brasil, a passagem do século foi marcada pela substituição dos pequenos jornais

pelas grandes empresas jornalísticas. Assim, houve a diminuição do número de periódicos e a

estrutura de empresas jornalísticas consolidou-se. Além disso, o desenvolvimento capitalista do

país teve como característica a formação de uma burguesia em uma ascensão econômica

significativa. Para Machado:

A disparidade entre os níveis econômico e político de atuação da burguesia

conduziu a relações de poder que refletiram diretamente no desenvolvimento

da imprensa. Embora a imprensa já apresentasse durante a República uma

estrutura capitalista, ela foi forçada a acomodar-se ao poder político que não

tinha ainda conteúdo capitalista, já que o Estado serviu principalmente à

estrutura pré-capitalista. O contraste entre o jornal como empresa capitalista e

sua posição como servidor de um poder que corresponde a relações

predominantemente pré-capitalistas manifestou-se, por exemplo, na existência

de jornais de virulenta oposição, confrontando com aqueles que se

subordinavam ao poder; nas campanhas sucessórias marcadas por violências

que não correspondiam ao conteúdo programático das correntes em choque; na

necessidade, para os detentores do poder, de comprar a opinião da imprensa, o

que se tornou rotina durante a República (MACHADO, 2002, p. 147).

59

Essa característica se apresenta no romance Recordações do escrivão Isaías Caminha e

mostra a percepção sensível de Lima Barreto sobre essa questão do poder da imprensa. Por

meio de seus personagens, o autor mostra como enxerga a transformação da imprensa brasileira,

“o contraste entre o jornal de circunstância (arrimado a uma figura de prestígio) e a nova fase,

a da imprensa jornalística cada vez mais complexa e cada vez mais inserida na complexidade

da estrutura social em mudança” (MACHADO, 2002, p. 149).

De acordo com Machado (2002, p. 149), “Os homens de letras buscavam encontrar no

jornal o que não encontravam nos livros: notoriedade e dinheiro [...] Lima Barreto, marcado

pela marginalidade social, étnica e literária, não encontrou espaço na imprensa dominante”. A

participação do autor na vida urbana foi promovida pela pequena imprensa, de origem

proletária.

A imprensa e as inovações das técnicas de impressão são um claro exemplo do processo

de modernização que está presente no romance Recordações do escrivão Isaías Caminha. A

obra de Lima Barreto pode ser considerada, segundo Machado (2002, p. 163), “um documento

vivo da natureza excludente e autoritária da modernização brasileira”.

Considerando os aspectos aqui discutidos sobre Lima Barreto e seu romance em

questão, a seção seguinte traz uma análise que visa a cotejar a referida obra do autor e aspectos

sociais do Brasil no início do século XX, buscando encontrar uma proximidade entre ambos no

que tange à presença da modernização conservadora no país.

3.2 Análise da temática Modernização Conservadora no Brasil no século XX no romance

Recordações do escrivão Isaías Caminha

Nesta seção, pretende-se analisar a temática da modernização conservadora no Brasil

presente no romance Recordações do escrivão Isaías Caminha (1909), de Lima Barreto, haja

vista que é possível cotejar a referida obra com o período em que o país passou pelo processo

de modernização, mais especificamente no início do século XX. Para tanto, é importante tomar

como ponto de partida o pré-modernismo, período literário em que o romance supracitado foi

publicado.

O pré-modernismo, também conhecido como período sincrético, deve ser considerado

com uma fase, e não como uma escola literária, pois não foi um movimento, tampouco uma

60

ação organizada. Ele não possui um vasto número de representantes, porém, conta com nomes

de grande valor para a Literatura Brasileira, dentre eles, Lima Barreto, Monteiro Lobato e

Euclides da Cunha. Pré-modernismo é um termo que designa uma produção literária vasta

pertencente aos primeiros vinte anos do século XX. Nessa fase, encontram-se tendências e

estilos literários variados, desde poetas parnasianos e simbolistas, até os escritores que

começavam a desenvolver um novo regionalismo, outros preocupados com uma literatura

política e outros, ainda, com propostas inovadoras.

Embora o pré-modernismo não se constituía como uma escola literária, apresentando

individualidades muito marcantes, é possível perceber alguns aspectos significativos entre

algumas obras dessa fase. Mesmo apresentando certo conservadorismo, são obras inovadoras,

pois apresentam ruptura com o passado, linguagem mais simples e coloquial, trazendo como

tema a denúncia da realidade brasileira, o regionalismo, os tipos humanos marginalizados

(sertanejo nordestino, o caipira, funcionários públicos, os mulatos), e apresentando uma ligação

com fatos políticos, econômicos e sociais contemporâneos, aproximando a realidade da ficção.

Na transição do século XIX para o século XX, a Literatura Brasileira caracterizou-se

pelo sincretismo estético, pelo entrecruzamento de várias correntes artístico-literárias. Nessa

fase, os autores mostravam seu inconformismo perante aspectos políticos e sociais,

incorporando seus próprios conceitos que abriram o caminho para o modernismo, que teve seu

auge em 1922. Além disso, muitas obras ainda mostravam influência das escolas literárias

passadas como o realismo/naturalismo e parnasianismo/simbolismo. A essas tendências, cuja

dicotomia era renovadora e conservadora, chamou-se de Pré-modernismo.

Outros conceitos importantes para auxiliar na análise estão em Lima Barreto: retórica

e literatura militante nas Recordações do escrivão Isaías Caminha (2013), de João Adalberto

Campato Jr. Nesse estudo, o autor conceitua “retórica” como o discurso que visa a convencer

as pessoas a fazer ou a entender o que querermos. De acordo com Campato, “A comunicação

retórica, pois, é comunicação persuasiva, em que um interlocutor deseja agir sobre o outro” (p.

19). Para ele, é impossível haver uma obra neutra, ou seja, toda obra, em maior ou em menor

grau, conserva certo teor persuasivo.

Considerando o conceito de retórica, o autor afirma que Lima Barreto é dotado do

espírito retórico. Em virtude disso, “A relação dos assuntos tratados por Lima Barreto, no

decorrer de sua atividade jornalística, é extensa: a questão racial, [...] a República, [...] a

modernização no Rio de Janeiro, a política, [...] entre muitos outros” (2013, p. 25). “Já literatura

militante”, para Lima Barreto, trata-se de uma literatura “cheia de preocupações políticas,

61

morais e sociais, completamente oposta a uma atividade artística que privilegia o culto do

dicionário ou que se limita a descrever temas banais e fúteis, de nenhum interesse

verdadeiramente humano” (CAMPATO, 2013, p. 27). Sendo assim, Recordações do escrivão

Isaías Caminha é um exemplo claro de literatura militante.

Referidos os conceitos de retórica e de literatura militante, estabeleçamos uma relação

entre eles e as Recordações do escrivão Isaías Caminha. Campato (2013, p. 30) assevera que:

Quanto à persuasão, o discurso retórico especifica-se justamente por esse

aspecto. Persuade-se alguém convencendo, comovendo ou agradando. Na

origem do discurso de Isaías, torna-se possível identificar intuito dessa espécie:

ele quer crer ao auditório que a causa do fracasso dos mulatos encontra-se na

sociedade, e não na sua natureza.

Isaías, enquanto orador do discurso persuasivo nas suas recordações tem como objetivo

provar que os negros e mulato não são inferiores aos brancos e que não alcançam o

desenvolvimento em razão das barreiras impostas pela sociedade. Para justificar tal ideia, Isaías

vale-se “do exemplo de sua vida, isto é, circunstancia o debate: o mulato é ele, e a sociedade

que destrói os seus sonhos é aquela que lhe é contemporânea” (CAMPATO, 2013, p. 47) e

argumenta de forma que o leitor veja a sociedade negativamente. Ele quer provar que a

sociedade é a causa do fracasso dos mulatos porque ela é “marcadamente preconceituosa,

injusta e insensível, representa-lhes um obstáculo à ascensão social e profissional”

(CAMPATO, 2013, p. 65). Um exemplo, dentre tantos, que pode ilustrar essa afirmação é o

episódio de Isaías após ler nos jornais a seção “precisa-se”. Embora o motivo de não ser aceito

para a vaga de emprego não tenha ficado explícito, é possível depreender-se que tenha sido

devido ao fator racial.

Ainda de acordo com Campato (2013, p.93), “Não podemos separar, nas Recordações,

narração e argumentação. Os dois elementos formam um único plano, haja vista as provas

surgirem justamente no decorrer da narração, que acaba sendo suporte para os argumentos”.

Outra característica que o autor atribui à narrativa de Isaías é a verossimilhança, pois “tudo

aquilo que dá a conhecer ao público é crível e razoável” (p. 94). A verossimilhança dá

credibilidade ao público, e a credibilidade leva ao sucesso a persuasão.

No romance Recordações do escrivão Isaías Caminha, Lima Barreto aborda a temática

da modernização conservadora que ocorreu no Brasil e denuncia, por meio da voz do

personagem Isaías, um dos problemas decorrentes desse processo, que é o fato de o mulato ficar

à margem da sociedade que, de alguma forma, limita suas condições de ascensão. Ou seja,

62

Isaías que foi para o Rio de Janeiro com o intuito de formar-se doutor, depois de passar por

algumas dificuldades, especialmente em virtude de sua cor, conseguiu um emprego como

contínuo no jornal O Globo. Tempos depois, melhorou sua condição dentro do jornal: foi

promovido a repórter. No entanto, não progrediu mais do que isso e, seu objetivo primeiro –

formar-se doutor-, não se concretizou.

Contextualizado o período em que o romance Recordações do escrivão Isaías Caminha

foi publicado, avancemos para o século XX, período em que o Brasil viveu o advento da

modernidade. Embora com muitos avanços na economia, na arquitetura, na ciência e na política,

por exemplo, Lima Barreto denuncia no romance supracitado que o pensamento das pessoas,

expressas nas suas atitudes, não acompanhou essa evolução. Tal afirmação deve-se ao fato de

sua obra ser caracterizada como um romance à clèf, considerado um romance de escândalos.

Para a crítica, Lima Barreto estaria representando a sociedade do Rio de Janeiro por meio de

personagens fictícios do jornal O Globo, o qual, também fictício representava o jornal carioca

O Correio da Manhã, além de denunciar “arranjos” envolvendo autoridades políticas.

Segundo Machado:

A militância nos jornais condicionou, em Lima Barreto, uma estética marcada

pela simplicidade e pelo despojamento, trazendo para a literatura temas do

cotidiano e os tipos populares, enfim, o universo do homem comum. Sua pena.

combativa e militante está sempre a utilizar-se da ficção como meio para

expressar os problemas que o sensibilizam. Na ficção, recorre sempre à ironia

e à caricatura, artifícios que lhe permitiram não só extravasar a indignação

sempre presente, como também realçar, exagerar a realidade. Esperava, com a

exposição das deformações da realidade, conseguir mobilizar as pessoas em

direção à sua rejeição (2002, p. 80).

Feitas, brevemente, as primeiras observações sobre o pré-modernismo, sobre o romance

à cléf e sobre a literatura militante de Lima Barreto, serão retomadas também, de forma sucinta,

algumas noções de modernidade. Parafraseando Marshall Berman (1987), a modernidade une

a espécie humana, derrubando fronteiras de cunho geográfico, racial, religioso, ideológico e até

mesmo no que diz respeito à classe social. Ainda de acordo com o autor, a vida moderna se

caracteriza por vários fatores, dentre eles a industrialização da produção, a aceleração do

próprio ritmo de vida, a explosão demográfica, o rápido crescimento urbano e os sistemas de

comunicação de massa.

Como já discutido no segundo capítulo, muitos podem ser os conceitos para o termo

“modernização conservadora”. Porém, independente do viés que se analisa, a questão é que a

modernização conservadora no Brasil se caracteriza pelo fato de que a classe dominante não se

63

preocupou em expandir a cidadania para a grande massa da população. No romance

Recordações do escrivão Isaías Caminha, essa questão aparece nas dificuldades que Isaías

encontra para se inserir na sociedade, por exemplo, quando sofre preconceito sendo acusado de

roubo no hotel em que estava hospedado, ou quando a sua cor lhe impede de arranjar um

emprego, como na passagem do anúncio de “precisa-se”.

Além disso, embora tenham ocorrido avanços nas mais variadas esferas da sociedade,

não houve oportunidade para promover a emancipação da classe trabalhadora. Ou seja, houve

o desenvolvimento em alguns aspectos e estagnação em outros, que não evoluíram justamente

por pensamentos conservadores em se tratando de modernidade. E é sob esse prisma que se

desenvolve a narrativa do romance Recordações do escrivão Isaías Caminha. A esse respeito,

Machado (2002, p. 171) afirma que “Na leitura das crônicas de Lima Barreto, despertou-me a

atenção a presença de artefatos modernos que, introduzindo novas formas de lazer, de

comunicação, de transporte e de intercâmbio, mudando hábitos, sugere transformações no

modo de perceber e de ser da sociedade”.

Recordações do escrivão Isaías Caminha tem o mulato Isaías como narrador

personagem o qual, movido pela admiração que tem pela retórica de seu pai (um padre),

dedicou-se aos estudos preparatórios, e, ao concluí-los com êxito, sentiu necessidade de ir além:

Demorei -me na minha cidade natal ainda dois anos, dois anos que passei

fora de mim, excitado pelas notas ótimas e pelos prognósticos da minha

professora, a quem sempre visitava e ouvia. Todas as manhãs, ao acordar-me,

ainda com o espírito acariciado pelos nevoentos sonhos de bom agouro, a

sibila me dizia ao ouvido: Vai, Isaías! vai!... Isto aqui não te basta... Vai para

o Rio! (p. 14)

Tal fragmento ilustra um dos motivos pelos quais muitas pessoas saíam de suas terras

de origem e iam para a cidade grande em busca de oportunidades. Assim, acontecia a explosão

demográfica, o crescimento urbano e a atração pelo novo a que Berman se referia.

Por ter consciência de que o Rio de Janeiro era uma cidade grande, Isaías sentia-se

apreensivo, uma vez que lá não conhecia ninguém que pudesse intervir por ele ou ajudá-lo em

momentos de necessidade. Isso contribui para a ideia de que na fugacidade do mundo moderno,

o homem, ao invés de ter mais relações interpessoais, torna-se solitário, sendo apenas mais um

na multidão. Isaías, vendo a modernidade iminente, sente a necessidade de inserir-se nesse novo

64

contexto, porém, a própria sociedade não lhe oferece condições para isso, devido ao seu

conservadorismo demonstrado por meio do preconceito racial.

Considerando os prós e os contras de ir para a cidade grande, Isaías decidiu ir. Seu tio

Valentim, por quem Isaías sempre teve muito apreço, levou-o até o coronel Belmiro e pediu-

lhe uma carta de recomendação para o doutor Castro, um deputado por quem Valentim

trabalhou nas eleições. De posse da carta de recomendação, Isaías tinha sua situação no Rio de

Janeiro como garantida. Almejava arranjar um emprego, cursar o ensino superior e formar-se

doutor. Esse desejo de ser alguém “importante” foi graças ao saber de seu pai. Mais do que isso,

o motivo de desejar ser doutor fica claro no fragmento:

Ah! Seria doutor! Resgataria o pecado original do meu nascimento humilde,

amaciaria o suplício premente, cruciante e onímodo de minha cor... Nas dobras

do pergaminho da carta, traria presa a consideração de toda a gente. Seguro do

respeito à minha majestade de homem, andaria com ela mais firme pela vida

em fora. Não titubearia, não hesitaria, livremente poderia falar, dizer bem alto

os pensamentos que se estorciam no meu cérebro. O flanco, que a minha

pessoa. Na batalha da vida, oferecia logo aos ataques dos bons e dos maus,

ficaria mascarado, disfarçado... Ah! Doutor! Doutor!...Era mágico o título

tinha poderes e alcances múltiplos, vários, polifórmicos... Era um pallium,

era alguma coisa como clâmide sagrada, tecida com um fio tênue e quase

imponderável, mas a cujo encontro os elementos, os maus olhares, os

exorcismos se quebravam. De posse dela, as gotas da chuva afastar-se-iam

transidas do meu corpo, não se animariam a tocar-me nas roupas, no

calçado sequer. O invisível distribuidor dos raios solares escolheria os

mais meigos para me aquecer, e gastaria os fortes, os inexoráveis, com o

comum dos homens que não é doutor. Oh! Ser formado, de anel no dedo,

sobrecasaca e cartola, inflado e grosso, como um sapo intanha antes de ferir

a martelada à beira do brejo; andar assim pelas ruas, pelas praças, pelas

estradas, pelas salas, recebendo cumprimentos: Doutor, como passou?

Como está, doutor? Era sobre-humano!... (p. 18-19)

Pensar em ter o título de doutor, fazia Isaías imaginar-se outra pessoa. Não seria mais

aquele a quem os outros humilhavam e negavam-lhe oportunidades. Seria sim, aquele a quem

todos dispensariam o melhor dos tratamentos, pois, embora negro, seria doutor e poderia inserir-

se, tranquilamente, na camada mais nobre da sociedade, sem preocupar-se com olhares de

reprovação ou desdém. Ou seja, seria a oportunidade para ingressar no padrão de vida moderno,

sem correr o risco de ficar à margem da sociedade.

Isaías tomou o trem rumo ao Rio de Janeiro, depois uma barca. Nesse momento, Isaías,

maravilhado, passa a descrever ricamente com detalhes sua chegada ao Rio de Janeiro e tudo o

que vai sobressaltando aos seus olhos. Por meio de sua descrição, já se pode perceber que o Rio

65

de Janeiro, essa cidade grande para onde Isaías foi à busca de seu título de doutor, difere muito

do interior, da sua terra de origem:

O espetáculo chocou-me. Repentinamente senti -me outro. Os meus sentidos

aguçaram-se; a minha inteligência, entorpecida durante a viagem, despertou

com força, alegre e cantante... Eu via nitidamente as coisas e elas penetraram

em mim até ao âmago. Convergi todo o meu aparelho de exame para o

espetáculo que me surpreendia. Estive por instantes espasmodicamente

arrebatado, para um outro mundo, adivinhado além das coisas sensíveis e

materiais. Voluptuosamente, cerrei os olhos; depois, aos poucos, descerrei as

pálpebras para olhar embaixo o mar espelhento e misterioso. A barca vogava,

as águas negras abriam—fingindo resistência, calculando a recusa. O casario

defronte — o da orla da praia, envolvido já nas brumas da noite, e o

do alto, queimando-se na púrpura do poente — surgia revolto aos meus olhos,

bizarramente disposto sem uma ordem geometricamente definida, mas

guardando com as montanhas que espreitavam a cidade, com as inflexões

caprichosas das colinas e o meandro dos vales, um acordo oculto,

sutilmente lógico[...] Havia um brando ar de sonho, e eu fiquei todo penetrado

dele. Andamos. Agora, a barca movia-se ao longo de uma comprida ilha

pejada de edifícios. Mais perto, mais longe, pequenas lanchas corriam,

erguendo para a pureza do céu irreverentes penachos de fumo; na linha

do horizonte, havia uma terra baixa, ao fundo, onde dolentemente agitado

pela viração, um esguio coqueiro, firme e orgulhoso, crescia solitário;

grandes cascos escuros de saveiros e galeras ruminavam placidamente; e

botes velozes, cruzando as respectivas derrotas, brincavam sobre as ondas

como crianças travessas... (p. 23-24).

Além de edifícios e da forma como Isaías descreve a cidade como sendo outro mundo,

o que denota uma visão de lugar moderno, diferente de seu lugar de origem, outro aspecto que

também traz essa ideia é a cidade do Rio de Janeiro como oportunidade de negócio

(exportação), como fica evidente no fragmento em que Lajes da Silva conversa com Isaías no

Hotel:

Vim a negócios... O senhor sabe, continuou o desconhecido; o senhor sabe;

quem quer vai, quem não quer manda... Se me limito a encomendar a farinha

— é uma desgraça! Chega azeda e de péssima qualidade — então é um

inferno! Os fregueses reclamam; a pretexto disso, não pagam. Para evitar essas

e outras, venho de dois em dois meses comprá-la, eu mesmo... Veja o senhor

só - é uma despesa, mas que se há de fazer?! (p. 25)

Outros fragmentos descritivos que também denotam essa ideia de cidade grande e

moderna são:

Os elétricos subiam vazios e desciam cheios. Ingleses de chapéu de palha

cintados de fitas multicores, com pretensões à originalidade, enchiam-

nos [...] Os bondes continuavam a passar muito cheios, tilintando e

dançando sobre os trilhos. Se acaso um dos viajantes dava comigo, afastava

66

logo o olhar com desgosto. Eu não tinha nem a simpatia com que se olham as

árvores; o meu sofrimento e as minhas dores não encontravam o menor eco

fora de mim. As plumas dos chapéus das senhoras e as bengalas dos homens

pareceram-me ser enfeites e armas de selvagens, a cuja terra eu tivesse sido

atirado por um naufrágio. Nós não nos entendíamos; as suas alegrias não eram

as minhas; as minhas dores não eram sequer percebidas... (p. 67-68)

Saía, mas evitava a Rua do Ouvidor e o Laje da Silva, que passara a

tratar-me de outro modo. Dei em passear de bonde, saltando de um para

outro, aventurando-me por travessas afastadas, para buscar o veiculo em

outros bairros. Da Tijuca ia ao Andaraí e dai à Vila Isabel; e assim, passando

de um bairro para outro, procurando travessas despovoadas e sem

calçamento, conheci a cidade — tal qual os bondes a fizeram

alternativamente povoada e despovoada, com grandes hiatos entre ruas

de população condensada, e toda ela, agitada, dividida, convulsionada

pelas colinas e contrafortes da montanha em cujas vertentes crescera ( p. 70).

Tais ideias do romance vêm ao encontro do pensamento de Machado que

assevera que “tempos modernos” significa uma época “nova”. Reiterando os pressupostos da

autora (2002, p.18), “os ‘novos tempos’ são marcados pela experiência do progredir, da

aceleração dos acontecimentos históricos”. Ainda, “novos tempos” são marcados pelo conceito

de revolução, progresso, emancipação e desenvolvimento.

A solidão de Isaías e a ideia de cidade grande podem ser percebidas no fragmento em

que ele lamenta não conseguir encontrar o deputado Castro, depois de várias tentativas e com

seu dinheiro terminando:

Voltava para o hotel taciturno, preocupado, cortado de angústias. Sentia-me

só, só naquele grande e imenso formigueiro humano, só, sem parentes, sem

amigos, sem conhecidos que uma desgraça pudesse fazer amigos. Os meus

únicos amigos eram aquelas notas sujas encardidas; eram elas o meu único

apoio; eram elas que me evitavam as humilhações, os sofrimentos, os

insultos de toda a sorte; e quando eu trocava uma delas, quando as dava

ao condutor do bonde, ao homem do café, era como se perdesse um amigo,

era como se me separasse de uma pessoa bem amada... Eu nunca compreendi

tanto a avareza como naqueles dias que dei alma ao dinheiro, e o senti tão

forte para os elementos da nossa felicidade externa ou interna...

( p. 39-40)

Estar só em meio a uma multidão desconhecida faz Isaías refletir com pesar a diferença

da cidade grande e o seu lugar de origem: “De tarde, repetia a visita, e mais uma vez voltava

desalentado, para ficar na janela do hotel, desanimado, oprimido de saudades do sossego,

da quietude, da segurança do meu lar originário” (p. 42).

67

A pretensão de Isaías estar no Rio de Janeiro para estudar impressionou Lajes da Silva

e este passou a tratá-lo de doutor, o que muito lhe agradou. Estando os dois no Teatro, Isaías

conheceu os jornalistas Raul Gusmão e Oliveira, este de O Globo. Isaías ficava impressionado

com a admiração que Lajes da Silva tinha por jornalistas.

Dirigindo-se até a Câmara dos Deputados a fim de encontrar-se com o doutor Castro,

Isaías assistiu à sessão da Câmara. Os deputados, longe de serem representantes dos interesses

da sociedade e promotores do bem comum, tal como se idealiza, mostram-se como elementos

destituídos de ética, de capacidade e objetivavam apenas a satisfação de interesses pessoais. O

descaso fica nítido aos olhos de Isaías quando assiste a uma sessão na Câmara:

O miúdo deputado subiu à tribuna, limpou o suor, arrumou os livros ao lado

e preparou-se para falar. Fez-se silêncio, depois de uma infernal contradança

no recinto. Fagot começou [...] Parecia que as palavras de Fagot lhe morriam

nos lábios: movia a boca e gesticulava como um doido furioso. Os colegas

desapegados da sua eloquência dividiam-se em grupos. [...] ao fundo, ainda,

mas um pouco à direita, um deputado gordo, com o calor que com o correr do

dia se fizera forte, esquecido no sono, por detrás de um par de óculos azuis,

roncava perceptivelmente. (p. 34-35)

Ao sair da Câmara dos Deputados, Isaías descreve a cidade e a forma como as pessoas

se comportam no seu dia-a-dia, como se estivessem alheias ao que acontecia no governo,

simplesmente aceitando a situação em que se encontravam:

Ainda pouco familiarizado com o trânsito pesado da rua, atravessei a Rua

Direita cheio de susto, cercando-me de mil cautelas, olhando para aqui e para

ali, admirado que aquela porção de gente trabalhasse sob sol tão ardente,

sem examinar que valor tinham as suas Câmaras e o seu Governo. E a

facilidade com que os aceitava, pareceu-me sentimento mais profundo,

mais espontâneo, mais natural que a minha ponta de crítica que já

começava a duvidar deles (p. 35).

No segundo capítulo dessa dissertação, discutiu-se, à luz de Darcy Ribeiro, a respeito

do processo de urbanização e industrialização no Brasil no século XX. O crescimento da cidade

do Rio de Janeiro foi regido por alguns acontecimentos, dentre eles a abolição que contribuiu

para a expansão da população das cidades. Em determinado fragmento do livro em estudo, no

diálogo entre o Coronel Figueira e Isaías, fica evidente a noção do processo de urbanização

pelo qual passou a cidade do Rio de Janeiro:

68

— Como isto está mudado! Conheci isto quando ainda era um brejo,

um depósito de cisco... Havia barrancos, covas, capinzais... As lavadeiras

faziam disto coradouro... Acolá (apontou) estava o teatro, o Provisório... Oh!

o Provisório... Eu me lembro que... (eu era muito rapaz, muito...) vim com

meu pai assistir à “Sonâmbula”... Nunca vi uma sala tão bonita... A Stoltz

cantava... Nunca ouviu falar nela?

— Não senhor! E perguntei logo: O senhor é do Rio?

— Não, mas vinha quase sempre aqui. Meu pai tinha fazenda na Raiz

da Serra. Hoje, aquilo não vale nada, mas no tempo dele a estrada a não tinha

matado e era lugar rico... Conheço muito o Rio... Quando fui para o Sul em

65, passei por aqui... O Imperador veio ver o desfilar do batalhão... Eu ia

triste, pensava em morrer... Não morri, voltei, estou aqui... Está tudo

mudado: Abolição, República... Como isso mudou! Então de uns tempos para

cá, parece que essa gente está doida; botam abaixo, derrubam casas,

levantam outras, tapam umas ruas, abrem outras... Estão doidos!!!

— Há quanto tempo não vem ao Rio, coronel? — Desde 1882. (p. 42)

Acontecimentos como a abolição, a república e o crescimento urbano, são indícios das

mudanças e do processo de modernização pelo qual o Brasil passou no início do século XX e

que Lima Barreto, percebendo tais eventos, apresenta em seu romance. Além disso,

considerando a perspectiva de Berman sobre algumas características da vida moderna, é

possível observar no fragmento acima do romance, a ideia de que “a industrialização da

produção, que transforma conhecimento científico em tecnologia, cria novos ambientes

humanos e destrói os antigos” (BERMAN, 2007, p. 25).

Seguindo o enredo da narrativa, após ter com o doutor Castro que disse que nada podia

fazer por Isaías, este foi tomado por um tremendo ódio por ser apenas mais um na multidão

daquela grande cidade, em quem nunca ninguém reparou, nem sequer se preocupava com a sua

situação e pelas dificuldades pelas quais estava passando, considerando-se uma vítima das

ações de uma sociedade preconceituosa:

Num relâmpago, passaram-me pelos olhos todas as misérias que me

esperavam, a minha irremediável derrota, a minha queda aos poucos — até

onde? até onde? E ficava assombrado que aquela gente não notasse o meu

desespero, não sentisse a minha angústia... Imbecis! pensei eu. Idiotas que vão

pela vida sem examinar, vivendo quase por obrigação, acorrentados às suas

misérias como galerianos à calceta! Gente miserável que dá sanção aos

deputados, que os respeita e prestigia! [...] Depois dessa violenta sensação

na minha natureza, invadiu-me uma grande covardia e um pavor sem

nome: fiquei amedrontado em face das cordas, das roldanas, dos

contrapesos da sociedade; senti-os por toda a parte, graduando os meus atos,

anulando os meus esforços; senti-os insuperáveis e destinados a esmagar-

me, reduzir-me ao mínimo, a achatar-me completamente... (p. 50).

69

Além de se sentir insignificante em meio a tantas pessoas na cidade grande, Isaías relata

uma situação em que sofreu preconceito e o sentimento que tomou conta de seu íntimo:

Um sujeito entrou no bonde, deu-me um grande safanão, atirando-me o jornal

ao colo, e não se desculpou. Esse incidente fez -me voltar de novo aos

meus pensamentos amargos, ao ódio já sopitado, ao sentimento de opressão

da sociedade inteira... Até hoje não me esqueci desse episódio insignificante

que veio reacender na minha alma o desejo feroz de reivindicação. Senti-

me humilhado, esmagado, enfraquecido por uma vida de estudo, servir de

joguete, de irrisão a esses poderosos todos por ai. (p. 51)

A voz de Isaías denuncia a existência de uma sociedade opressora e que o fato de ter

uma boa instrução escolar, não foi o suficiente para lhe garantir status e uma posição social

confortável; ou seja, o “pecado” de sua cor prevalecia em detrimento do restante do seu ser, o

que se, por um lado lhe deixava com vontade de reivindicar, por outro, o enfraquecia para tal.

No Brasil republicano a Constituição estava calcada em princípios liberais, e era por

meio do apadrinhamento que as camadas menos favorecidas da população, que eram

submetidas à opressão dos líderes políticos, poderiam gozar de alguma oportunidade de

ascensão. Isaías tinha essa ilusão de que poderia tirar algum proveito do apadrinhamento de

Castro, mas, na verdade, acabou se defrontando com o verdadeiro poder político opressor. Esse

é um exemplo de modernização conservadora que, apesar do progresso econômico,

arquitetônico e tecnológico, o mesmo não aconteceu com as relações interpessoais. Essa

crueldade castradora traz Isaías à realidade:

Depois dessa violenta sensação na minha natureza, invadiu-me uma grande

covardia e um pavor sem nome: fiquei amedrontado em face das cordas,

das roldanas, dos contrapesos da sociedade; senti-os por toda a parte,

graduando os meus atos, anulando os meus esforços; senti-os insuperáveis e

destinados a esmagar-me, reduzir-me ao mínimo, a achatar-me

completamente... (p. 50)

A percepção da realidade na qual Isaías estava inserido é um exemplo de que a

modernidade apresenta um duplo viés. Ao passo que ela é caracterizada pelas mudanças que

visam ao avanço social, também apresenta aspectos negativos, considerando que nem todos têm

condições de acompanhar o novo ritmo da vida moderna e ficam à sua margem.

Isaías fora chamado para depor na polícia sobre um roubo que aconteceu no Hotel em

que ele estava hospedado. Enquanto esperava, ouviu o Capitão Viveiros perguntar se o

70

mulatinho já havia chegado. Mais uma vez, o ódio tomou conta de Isaías, afinal ele era

inteligente e estudioso. Sofrendo preconceito, imaginava que, tempos mais tarde, não seria

possível que esse tipo de situação continuasse a acontecer e que ser negro não fosse motivo

para sofrer: “isso tudo é uma questão de semântica: amanhã, dentro de um século, não terá

mais significação injuriosa” (p. 55-56). No entanto, é possível perceber que, em pleno século

XXI, esse estigma ainda não se desfez.

Marginalizado diversas vezes por ser mulato, Isaías relembra com pesar o episódio que

tivera que prestar depoimento na delegacia em virtude de um roubo no Hotel onde estava

hospedado. Na passagem, fica evidente que todo o seu caráter e conhecimento adquirido com

estudos de nada valiam diante de sua cor e que conhecer alguém influente é que fazia a diferença

para ser bem tratado:

E esta passagem do xadrez que me faz vir estes pensamentos amargos. Imagino

como um escritor hábil não saberia dizer o que eu senti lá dentro [...]Encontrei

-o outro homem, mais brando e disposto à simpatia, tratando-me por

“menino” e “meu filho” [...]

— Você não tem relações aqui, no Rio, menino? — Nenhuma.

Admirou-se muito, extraordinariamente, a ponto de repetir de outro modo a

pergunta:

— Mas ninguém? Ninguém?

— O meu conhecimento mais intimo é o do doutor Ivã Gregoróvitch

Rostóloff—conhece?

—Oh! como não? Um jornalista, do O Globo, não é?

— Esse mesmo.

— Por que não me disse logo? Quando se está em presença da polícia, a nossa

obrigação é dizer toda a nossa vida, procurar atestados de nossa conduta, dizer

os amigos, a profissão, o que se faz, o que se não faz...

— Não sabia que era um homem importante, por isso...

— Pois não! Um jornalista é sempre um homem importante, respeitado, e nós,

da polícia, temo-lo sempre em grande conta. Vá-se embora, disse-me ele por

fim, e procure mudar-se daquele hotel quanto antes. Aquilo é muito

conhecido. Os furtos se repetem e os ladrões nunca aparecem Mude-se

quanto antes, é o meu conselho. Vá!

Eu ia saindo e, antes de transpor a porta, o delegado veio ao meu encontro e

recomendou em voz baixa:

— Não diga nada ao doutor Rostóloff — sabe? Ele pode publicar e ambos nós

temos que perder... (p. 63)

Isaías percebe que o regime republicano é carregado de mazelas sociais, em que negros

e pobres eram excluídos devido ao preconceito e à incompetência dos detentores do poder. Para

71

ele, o prestígio e a ascensão social eram conquistas que se deviam graças ao favorecimento

arbitrário destinado a determinados sujeitos. Tal foi a sorte de Isaías que, na ocasião do suicídio

de Floc, teve de ir ao encontro de Loberant em casa de Rosalina onde o flagrou com prostitutas.

Por ter sido discreto, Isaías conquistou sua “simpatia”:

E toda essa modificação tão imprevista no meu viver, viera-me do suicídio do

Floc. Tendo surpreendido na casa da Rosalina, em plena orgia, o terrível

diretor, vexei-o. Nos primeiros dias, ele nada me falou; mas já me olhava mais,

considerava-me, preocupava-o no seu pensamento. Breve me fez perguntas de

boa amizade: donde era eu, que idade tinha, se era casado, etc. As respostas

eram dadas conforme as perguntas; bem cedo, porém, graças à bondade

com que me tratava, as ampliei até à confidência (p. 162)

A prostituição presente no romance de Lima Barreto também denota a ideia de

modernização conservadora, tendo em vista que, a mulher, ao lado dos negros, faz parte dos

grupos minoritários da sociedade. Esta, por sua vez, não tem interesse em oportunizar a

ascensão dessas minorias. Assim, o próprio cenário urbano e moderno, acaba por incentivar tal

profissão à mulher.

É possível, por meio de descrições, ter ideia do ritmo de vida acelerado das pessoas na

cidade do Rio de Janeiro. Isaías, decidido a procurar um emprego, mesmo que fosse humilde,

sai pelas ruas:

Ao chegar à Rua do Ouvidor, a rua dos lentos passeios elegantes, havia

uma agitação de mercado. Cestos de verduras, de peixes, de carnes, passavam

à cabeça de mulheres e homens; os quitandeiros ambulantes corriam por ela

acima; pequenas carroças de hotéis caros davam-se ao luxo de atravessá-

la em toda a extensão; e pelas soleiras das portas imensas moles de jornais

diários eram subdivididos pelos vendedores de todos os pontos da cidade. As

polêmicas malcriadas de uns contra os outros sobrepunham-se, abraçavam-se

fraternalmente ao impulso do italiano indiferente: Gazeta! País! Jornal do

Comércio! Os cafés já estavam abertos e ainda iluminados. Comprei um jornal

e entrei num deles. Por essa hora, têm uma freguesia apressada e especial.

Noctívagos, vagabundos, operários, jogadores, empregados em jornais —

gente um tanto heterogênea que lá vai e se serve rapidamente (p. 65).

Tal fragmento pode ser associado à imagem do flâneur, proposta por Baudelaire. Tal

termo designa a ideia de sujeito que caminha pela cidade sem preocupar-se a chegar a algum

lugar. A ideia tem ainda relação com o indivíduo que passeia pela cidade motivado pela própria

característica urbana, como a eclosão, tendo como referência grandes centros urbanos do século

XIX.

72

Parafraseando Darcy Ribeiro em O povo brasileiro (2008), a industrialização e a

urbanização estão interligadas. A primeira oferece oportunidades de emprego, assim, muitos

saem de suas terras de origem e vão para a cidade grande em busca de melhores oportunidades.

Consequentemente, ocorre a expansão da urbanização. O que acontece é que algumas cidades,

como o Rio de Janeiro, por exemplo, embora fossem maiores que Paris, não tinham estrutura

para absorver toda a população que ali chegou, deixando muitos à margem da sociedade

vivendo em precárias condições. Foi o caso de Isaías. Ele foi para o Rio de Janeiro e o fato de

ser negro dificultou e muito sua estada na cidade, especialmente nos primeiros dias, pois

ninguém queria lhe dar emprego.

O deputado Castro, que não atendeu ao pedido da carta de recomendação do coronel

Belmiro acabou prejudicando, e, por que não dizer, impedindo Isaías de ascender socialmente

e na obtenção do título de doutor. Castro e o próprio Estado republicano, do qual é legítimo

representante, reduzia os mulatos, como Isaías, à condição estagnada e sem expectativas.

Recordações do escrivão Isaías Caminha é um exemplo de que as relações interpessoais

e o pensamento das pessoas em pleno século XX eram atrasados, não acompanhando o processo

de modernização, tal como ilustra o fragmento:

Pus-me a ler o jornal, os anúncios de "precisa-se". Dentre eles, um pareceu -

me aceitável. Tratava-se de um rapaz, de conduta afiançada para

acompanhar um cesto de pão. Era nas Laranjeiras. Estava resolvido a

aceitar; trabalharia um ano ou mais; guardaria dinheiro suficiente que me

desse tempo para pleitear mais tarde um lugar melhor. Não havia nada que me

impedisse: eu era desconhecido, sem família, sem origens... Que mal havia?

Mais tarde, se chegasse a alguma coisa, não me envergonharia, por certo?!

Fui, contente até. Falei ao gordo proprietário do estabelecimento. Não

me recordo mais das suas feições, mas tenho na memória as suas grandes

mãos com um enorme "solitário" e o seu alentado corpo de arrobas.

— Foi o senhor que anunciou um rapaz para...

— Foi; é o senhor? respondeu-me logo sem me dar tempo de acabar. — Sou,

pois não.

O gordo proprietário esteve um instante a considerar, agitou os pequenos olhos

perdidos no grande rosto, examinou-me convenientemente e disse por fim,

voltando-me as costas com mau humor:

— Não me serve.

— Por quê? atrevi-me eu. — Porque não me serve. (p. 66).

O referido atraso no pensamento das pessoas no século XX pode ser explicitado por

meio do preconceito, como é exemplificado no fragmento acima. Prova disso é que, nesse

73

período, já ocorrida a abolição e, o negro sendo um homem livre para o trabalho, deveria

desfazer-se do estereótipo de escravo e de inferioridade, sendo inserido na sociedade de forma

igualitária junto aos demais, especialmente, em termos de oportunidades, porém, não é o que

aconteceu realmente. Tal fato ilustra a ideia de modernização conservadora.

Em determinado momento do romance, Isaías narra sobre uma lei que obriga a todos os

transeuntes a andarem calçados:

Nascera a questão dos sapatos obrigatórios de um projeto do Conselho

Municipal, que foi aprovado e sancionado, determinando que todos os

transeuntes da cidade, todos que saíssem à rua seriam obrigados a vir calçados.

Nós passávamos então por uma dessas crises de elegância, que, de quando em

quando, nos visita. Estávamos fatigados da nossa mediania, do nosso

relaxamento; a visão de Buenos Aires, muito limpa, catita, elegante,

provocava-nos e enchia-nos de loucos desejos de igualá-la. [...] “A Argentina

não nos devia vencer; o Rio de Janeiro não podia continuar a ser uma

estação de carvão, enquanto Buenos Aires era uma verdadeira capital

europeia. Como é que não tínhamos largas avenidas, passeios de

carruagens, hotéis de casaca, clubes de jogo?” Laje da Silva, farejando o

que continha de negociatas nos melhoramentos em projetos, propugava-

os com ardor. Nas suas conversas na redação constantemente dizia:

— Que são dez ou vinte mil contos que o Estado gaste! Em menos de cinco

anos, só com as visitas dos estrangeiros, esse capital é recuperado... Há

cidade no mundo com tantas belezas naturais como esta? Qual! Aires

d'Ávila chegou mesmo a escrever um artigo, mostrando a necessidade de ruas

largas para diminuir a prostituição e o crime e desenvolver a inteligência

nacional. E os da frente, os cinco mil de cima, esforçavam-se por obter

as medidas legislativas favoráveis à transformação da cidade e ao

enriquecimento dos patrimônios respectivos com indenizações fabulosas e

especulações sobre terrenos. Os Haussmanns pululavam. Projetavam-se

avenidas; abriam-se nas plantas squares, delineavam-se palácios, e, como

complemento, queriam também uma população catita, limpinha, elegante e

branca: cocheiros irrepreensíveis, engraxates de libré, criadas louras, de

olhos azuis, com o uniforme como se viam nos jornais de moda da

Inglaterra. Foi esse estado de espírito que ditou o famoso projeto dos sapatos (

p. 117-118).

Tal fragmento exemplifica como o Brasil precisava desfazer-se do estigma de país

atrasado, colocando-se em comparação com os outros, a quem deveríamos tomar como exemplo

de países evoluídos e tornamo-nos também modernos. Essa noção de necessidade de progresso

fica evidente em: “Agora, aqui para nós, aduzia Floc, a coisa é necessária... Causa má impressão

ver essa gente descalça... Isso só nos países atrasados! Eu nunca vi isso na Europa...” (p. 143).

Após a abolição, o negro passou a ser um trabalhador livre. No entanto, a visão que se

tinha do negro naquela época, no século XX, era bastante retrógrada, nem um pouco moderna,

74

ou seja, o pensamento das pessoas não evoluiu ao passo que o progresso atingiu outras esferas

da sociedade:

Percebi que o espantava muito o dizer-lhe que tivera mãe, que nascera

num ambiente familiar e que me educara. Isso, para ele, era extraordinário. O

que me parecia extraordinário nas minhas aventuras, ele achava natural; mas

ter eu mãe que me ensinasse a comer com o garfo, isso era excepcional. Só

atinei com esse seu intimo pensamento mais tarde. Para ele, como para toda a

gente mais ou menos letrada do Brasil, os homens e as mulheres do

meu nascimento são todos iguais, mais iguais ainda que os cães de suas

chácaras. Os homens são uns malandros, pianistas, parlapatões quando

aprendem alguma coisa, fósforos dos politicões; as mulheres (a noção aí é mais

simples) são naturalmente fêmeas. (p. 163).

O fato de Isaías ter uma família e acesso à educação causava espanto em algumas

pessoas, pelo fato de ser mulato. É como se os mulatos estivessem fadados a ter sua imagem

associada apenas à condição de escravos. Esta ideia mostra que o pensamento das pessoas

parece não ter acompanhado a evolução que levou a sociedade à modernidade.

Em um determinado momento da narrativa, Leiva faz um comentário sobre a exploração

das grandes massas e fica implícita a ideia de privilégio aos interesses de uma minoria

dominante:

o senhor acha justo que esses senhores gordos, que andam por aí, gastem numa

hora com as mulheres, com as filhas e com as amantes, o que bastava para

fazer viver famílias inteiras? O senhor não vê que a pátria não é mais do que

a exploração de uma minoria, ligada entre si, estreitamente ligada, em

virtude dessa mesma exploração, e que domina fazendo crer à massa que

trabalha para a felicidade dela? O público ainda não entrou nos mistérios da

religião da Pátria... Ah! quando ele entrar! Levado pelo calor da frase Leiva

continuou a falar cheio de forças, entusiasmo: — Não há na natureza nada que

se pareça com a nossa sociedade governada pelo Estado... Observe o senhor

que todas as sociedades animais se governam por leis para as quais elas não

colaboraram, são como preexistentes a elas, independentes de sua vontade; e

só nós inventamos esse absurdo de fazer leis para nós mesmos — leis que,

em última análise, não são mais que a expressão da vontade, dos

caprichos, dos interesses de uma minoria insignificante... No nosso corpo

há uma multidão de organismos, todos eles interdependem, mas vivem

autonomamente sem serem propriamente governados por nenhum, e o

equilíbrio se faz por isso mesmo. O sistema solar... Na natureza, todo o

equilíbrio se obtém pela ação livre de cada uma das forças particulares... (p.

74-75).

Mais adiante, pode-se perceber a noção de que a modernidade se instaura no Brasil:

— Vê tu, dizia-me ele, quem no Brasil tem conhecimentos mais seguros que o

T. Mendes? E acrescentava logo: como se pode acreditar que, na nossa época

científico-industrial, um homem que não conhece como se fabricam os

encanamentos d'água, as propriedades do ferro e o seu tratamento

industrial, as teorias hidráulicas, poderá aquilatar e dirigir os serviços de

75

uma cidade moderna, cuja primeira necessidade é um seguro e farto

abastecimento d'água? (p. 76-77).

No excerto acima, fica evidente a necessidade de que para o homem acompanhar o

progresso da cidade e a modernidade que nela se instaura, é importante que ele tenha

conhecimentos adequados.

Na redação do O Globo, os membros do jornal discutiam sobre sua prestação de serviços

ao que um deles diz que ele foi útil:

quando era manifestação individual, quando não era coisa que

desse lucro; hoje, é a mais tirânica manifestação do capitalismo e a

mais terrível também [...]São grandes empresas, propriedade de

venturosos donos, destinadas a lhes dar o domínio sobre as massas,

em cuja linguagem falam, e a cuja inferioridade mental vão ao

encontro, conduzindo os governos, os caracteres para os seus desejos

inferiores, para os seus atrozes lucros burgueses ( p. 79).

O excerto acima pode ser entendido como uma crítica à modernização conservadora no

Brasil em que a imprensa era um veículo de comunicação, cujo poder exercido sobre a

população era conduzido segundo um jogo de interesses, especialmente das classes dominantes.

Mais adiante na narrativa, Gregoróvitch Rostóloff convidou Isaías para ir vê-lo no O

Globo. Enquanto o esperava, Isaías presenciou muitas conversas e situações dentro do jornal

que o fizeram pensar na grandeza e no poder que tinha a imprensa:

Naquela hora, presenciando tudo aquilo, eu senti que tinha travado

conhecimento com um engenhoso aparelho de aparições e eclipses,

espécie complicada de tablado de mágica e espelho de

prestidigitador, provocando ilusões, fantasmagorias, ressurgimentos,

glorificações e apoteoses com pedacinhos de chumbo, uma máquina

Marinoni e a estupidez das multidões. Era a Imprensa, a Onipotente

Imprensa, o quarto poder fora da Constituição! (p. 97)

Isaías começou a trabalhar no O Globo como contínuo. No fragmento da narrativa,

pode-se perceber como a imprensa, neste caso o jornal, era respeitada e, quem nele trabalhava,

era visto como alguém importante na sociedade:

76

As conversas da redação tinham-me dado a convicção de que o doutor

Loberant era o homem mais poderoso do Brasil; fazia e desfazia

ministros, demitia diretores, julgava juízes e o presidente, logo ao amanhecer,

lia o seu jornal, para saber se tal ou qual ato seu tinha tido o placet desejado

do doutor Ricardo. Participar de uma redação de jornal era algo

extraordinário, superior, acima das forças comuns dos mortais; e eu tive

a confirmação disso quando, certa vez, na casa de cômodos em que morava,

dizendo-o ao encarregado que trabalhava na redação do O Globo, vi o

pobre homem esbugalhar muito os olhos, olhar-me de alto a baixo,

tomar-se de grande espanto como se estivesse diante de um ente extraordinário.

As raparigas que residiam junto a mim, lavadeiras e costureiras, criadas

de servir, apelidaram-me “o jornalista”, e mesmo quando vieram a ter exato

conhecimento da minha real situação no jornal, continuei a ser por esse apelido

conhecido, respeitado e debochado (p. 99).

A importância da imprensa e de quem nela trabalhava se evidencia no poder que ela

tinha. Ou seja, por meio de suas publicações, era possível promover, rebaixar ou desmoralizar

qualquer membro da sociedade. Dessa forma, as pessoas respeitavam e admiravam os

funcionários da imprensa. No caso de Isaías, além de respeitado era também tratado com certo

deboche, em virtude de sua cor, visto que, um jornalista mulato poderia causar certa estranheza

nas pessoas.

Isaías continua o relato sobre como funcionava o jornal em que trabalhava e sobre como

ele funcionava conforme um jogo de interesses que não se preocupava com a moralidade da

sociedade. Ainda denuncia o suborno por parte das autoridades políticas, o que lhes garantia

não serem alvos de críticas nos jornais concorrentes de O Globo:

O seu gabinete era alvo de uma peregrinação. Durante o dia e nas primeiras

horas da noite, entrava toda a gente, militares, funcionários, professores,

médicos, geômetras, filósofos. Uns vinham à cata de elogios, de gabos

aos seus talentos e serviços. Grandes sábios e ativos parlamentares eu

vi escrevendo os seus próprios elogios. O leader do governo enviava

notas, já redigidas, denunciando os conchavos políticos, as combinações,

os jogos de interesses que se discutiam no recesso das antecâmaras

ministeriais. Foi sempre coisa que me surpreendeu ver que amigos, homens

que se abraçavam efusivamente, com as maiores mostras de amizade, vinham

ao jornal denunciar-se uns aos outros. Nisso é que se alicerçou o O

Globo; foi nessa divisão infinitesimal de interesses, em uma forte diminuição

de todos os laços morais. Cada qual mais queria, ninguém se queria

submeter nem esperar; todos lutavam desesperadamente como se

estivessem num naufrágio. Nada de cerimônias, nada de piedade; era

para a frente, para as posições rendosas e para os privilégios e concessões. Era

um galope para a riqueza, em que se atropelava a todos, os amigos e

inimigos, parentes e estranhos. A República soltou de dentro das nossas

almas todas uma grande pressão de apetites de luxo, de fêmeas, de brilho

social. O nosso império decorativo tinha virtudes de torneira. O encilhamento,

com aquelas fortunas de mil e uma noites, deu -nos o gosto pelo esplendor,

pelo milhão, pela elegância, e nós atiramo-nos à indústria das

indenizações. Depois, esgotado, vieram os arranjos, as gordas

negociatas sob todos os disfarces, os desfalques, sobretudo a indústria política,

77

a mais segura e a mais honesta. Sem a grande indústria, sem a grande

agricultura, com o grosso comércio nas mãos dos estrangeiros, cada um de

nós, sentindo-se solicitado por um ferver de desejos caros e satisfações

opulentas, começou a imaginar meios de fazer dinheiro a margem do

código e a detestar os detentores do poder que tinham a feérica vara legal

capaz de fornecê-lo a rodo. Dai a receptividade do público por aquela espécie

de jornal, com descomposturas diárias, pondo abaixo um grande por dia,

abrindo caminho, dando esperanças diárias aos desejosos, aos descontentes,

aos aborrecidos. E os outros jornais? Nos outros o suborno era patente; a

proteção às negociatas da gente do governo não sofria ataques; não demoliam,

conservavam, escoravam os que dominavam (p. 107-108).

A imprensa, enquanto ferramenta que proporcionava a defesa dos interesses das

camadas dominantes da sociedade sem pensar no bem estar coletivo, caracteriza a existência de

uma modernidade que é conservadora.

Em um momento de reflexão, Isaías olha pela janela e pensa:

Olhei aquelas encostas cobertas de árvores, de florestas que quase desciam por

elas abaixo até às ruas da cidade cortadas de bondes elétricos. Quantas formas

já as cobriram — quantas vidas já as não tinham pisado! Depois que a

civilização viera, quantas vezes elas não tinham sido despovoadas, e

perdido o seu tapete de verdura!? E pelos séculos, apesar dos cataclismos,

das evoluções geológicas, da ação do homem, nem uma só vez aquela

terra deixara de fazer surgir plenamente, nas ramagens das árvores e nas

plumagens do passaredo, a energia vital que estava nas suas entranhas! (p.

129-130).

A reflexão de Isaías mostra sua consciência em ralação às mudanças ocorridas na cidade

com o passar do tempo, o que denota a ideia de urbanização e de modernização ocorridas no

Rio de Janeiro, centro urbano onde se passa a narrativa.

Loberant propôs a Isaías fazer reportagem e ter aumento de salário. Satisfeito, aceitou.

Porém, continuou sofrendo preconceito. Isso despertou nele o ódio e usou da violência:

Encontrei o tal repórter na Rua Primeiro de Março e antes que ele fizesse

o menor movimento atirei -me sobre o seu grande corpanzil, deitei-o por

terra e dei-lhe com quanta forca tinha. Na delegacia, a minha vontade era rir-

me de satisfação, de orgulho, de ter sentido por fim que, no mundo, é preciso

o emprego da violência, do marro, do soco, para impedir que os maus e os

covardes não nos esmaguem de todo. Até ali, tinha eu sido a doçura em pessoa,

a bondade, a timidez e vi bem que não podia, não devia e não queria ser mais

assim pelo resto de meus dias em fora. Ria-me, pois tive vontade de rir-me,

por ter descoberto uma coisa que ninguém ignora (p. 164).

78

Cansado de ser humilhado e ignorado por sua cor, Isaías se satisfez ao descobrira algo

que ninguém ignora, a violência. Agir dessa forma, fez com que fosse percebido pelas pessoas

e, por que não dizer, respeitado, o que não costumava acontecer, já que até o momento, Isaías

tinha se mostrado um sujeito pacífico. Após a briga, Isaías começou a ter a consideração dos

colegas de redação e passou a receber um tratamento diferente do de costume: “Desse dia em

diante as dificuldades desapareceram. A redação toda me encheu de consideração e a

minha intimidade com o doutor Loberant aumentou” (p. 165).

Ao final da narrativa, Isaías reflete sobre o rumo que sua vida tomou:

Lembrava-me... Lembrava-me de que deixara toda a minha vida ao acaso e que

a não pusera ao estudo e ao trabalho com a força de que era capaz. Sentia-

me repelente, repelente de fraqueza, de falta de decisão e mais amolecido

agora com o álcool e com os prazeres... Sentia-me parasita, adulando o diretor

para obter dinheiro. Às minhas aspirações, àquele forte sonhar da minha

meninice eu não tinha dado as satisfações devidas. A má vontade geral, a

excomunhão dos outros tinham-me amedrontado, atemorizado, feito

adormecer em mim com seu cortejo de grandeza e de força. Rebaixara-

me, tendo medo de fantasmas e não obedecera ao seu império (p. 172).

Consciente, Isaías relata com um tom de lamentação sobre a sua atual condição, fruto

das experiências vividas no Rio de Janeiro, das poucas oportunidades e das ações excludentes

da sociedade. Devido a isso, Isaías não levou adiante seu propósito inicial, formar-se doutor.

Com a falta de oportunidades para seguir em frente com o seu objetivo, Isaías rendeu-se à

conveniência de ter de “adular” o diretor para ter condições de, ao menos, ascender no jornal.

A temática da modernização conservadora está presente em toda a narrativa das

Recordações do escrivão Isaías Caminha e pode ser observada por meio de alguns fragmentos

que denotam tal ideia. Para ilustrar, pode-se tomar como exemplo o fato de Isaías ter deixado

sua terra natal para ia ao Rio de Janeiro em busca de melhores oportunidades de vida, as

descrições que o personagem faz da cidade grande e moderna e a cidade como oportunidade de

negócios. Além disso, a solidão de Isaías em meio à multidão e a prática da flanérie, a

urbanização e a noção de progresso, a marginalização de Isaías enquanto excluído da sociedade

também exemplificam a temática.

Também denotam ideia de modernização conservadora as relações interpessoais e o

pensamento das pessoas que não acompanharam o progresso nas mais variadas esferas sociais,

a exploração da grande massa trabalhadora em detrimento do privilégio das classes dominantes

79

e o preconceito, tanto racial sofrido por Isaías, como a prostituição, que ilustra que no início do

século XX a mulher, como minoria, ao lado dos negros, tinha poucas oportunidades.

Retomado o enredo da narrativa e abordados alguns fundamentos essenciais acerca da

modernidade, modernização conservadora, romance à clèf, retórica e literatura militante, é

possível cotejar a obra Recordações do escrivão Isaías Caminha com o período em que o Brasil

viveu o processo de modernização o qual ocorreu na transição do século XIX para o século XX.

O romance em estudo é, portanto, um exemplo de romance à clèf (romance com chave),

uma vez que a própria crítica da época assim o considerou, por representar pessoas e fatos reais

daquele período. Além disso, o romance pertence à literatura militante por abordar problemas

sociais e que, por meio da retórica do narrador personagem Isaías, pretende convencer ou, pelo

menos, deixar claro para o leitor que a sociedade preconceituosa e elitista é a culpada pela não

ascensão dos negros e mulatos. Tudo isso está inserido no contexto do advento da modernidade

no início do século XX no Brasil, mais especificamente na cidade do Rio de Janeiro, cenário da

narrativa Recordações do escrivão Isaías Caminha.

Nesse período, o país passou pelo processo de modernização. A abolição, a expansão

urbana e a industrialização são apenas alguns dos fatores que caracterizam essa época. A falta

de estrutura das cidades, nesse caso, do Rio de Janeiro, para absorver toda a população que ali

se instalou em busca de melhores oportunidades de vida, deixou muitos à mercê da própria

sorte. A grande massa, marginalizada por uma sociedade preconceituosa e excludente, não teve

oportunidade nem condições de acompanhar e se inserir no modo de vida moderno da grande

cidade.

Durante a narrativa, não são apresentados somente aspectos que denotam a ideia de

modernidade no Rio de Janeiro (como o bonde elétrico, os automóveis, as ruas movimentadas

e os edifícios, por exemplo). São apresentadas também aos leitores situações que mostram como

toda a modernidade que se instaurou no Brasil não atingiu a todos e privilegiava os interesses

de poucos que compunham a classe dominante, os burgueses, os políticos e a própria imprensa,

considerados os detentores do poder. Aliado a isso, o romance em estudo mostra claramente

que o pensamento das pessoas daquela época, por meio de suas atitudes, não acompanhou a

modernização que aconteceu nas mais diversas esferas. Portanto, é possível afirmar que o

Brasil, no século XX, viveu o que podemos chamar de modernização conservadora.

De acordo com Celso Furtado, em Formação Econômica do Brasil (2005), a

modernização conservadora no nosso país é fruto da história, em que, as elites monopolizaram

80

a renda e impunham como prioridade o benefício próprio, além de tomarem como exemplo o

estilo de vida de outros países, como Paris. Tais situações comandadas pelas classes dominantes

acabavam dificultando e, por que não dizer, impedindo que a maior parte da população, a grande

massa, fosse incorporada aos padrões da modernidade, especialmente na esfera material. É o

que Lima Barreto ilustra em sua obra Recordações do escrivão Isaías Caminha.

81

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Afonso Henriques de Lima Barreto (1881-1922) é um autor cuja fortuna crítica é

razoavelmente limitada, visto que ainda há poucos estudos acadêmicos dedicados a este autor

que, por muito tempo, ficou esquecido. Visando a contribuir para os estudos sobre o autor e sua

obra é que se desenvolveu esta dissertação.

Lima Barreto estreou como escritor quando publicou, em 1909, o romance Recordações

do escrivão Isaías Caminha. O referido romance foi alvo de críticas pelos literatos da época,

pois consideraram a obra um romance à clèf, expressão francesa cujo significado aproximado

é “romance com chave”. A chave, segundo a crítica, estaria na representação de pessoas e fatos

reais por meio de personagens e acontecimentos fictícios, envolvendo a imprensa carioca e os

políticos.

O autor viveu na transição do século XIX para o século XX. Nesse período, o Brasil

presenciou o advento da modernidade, a qual, não trouxe uma perspectiva inclusiva das

minorias. Dessa forma, por meio da sua retórica (discurso com o intuito de persuadir o leitor) e

da sua literatura militante (a qual é “cheia de preocupações políticas, morais e sociais”, segundo

Lima Barreto), o autor buscou denunciar, em Recordações do escrivão Isaías Caminha, as

problemáticas sociais que, sob a ótica dele, mereciam atenção.

Modernidade é um termo um tanto quanto complexo, pois não é possível definir com

exatidão quando surgiu; no entanto, sabe-se que sofreu influências do pensamento iluminista.

Pode ser considerada uma época em que há uma ruptura de pensamentos, valores e ideais

tradicionais e está diretamente associado à consolidação do capitalismo. Acredita-se que

modernidade pode ser entendida como um estado e modernização como um processo.

Dentre os aspectos que podem caracterizar a modernidade, têm-se as grandes

descobertas científicas, a industrialização, o avanço tecnológico, o ritmo de vida acelerado,

explosão demográfica e mercado em permanente expansão.

Outro termo que pode caracterizar a modernidade é paradoxo, tendo em vista que ela

não apresenta somente aspectos positivos como proporcionar à sociedade o progresso.

Analisada sob outro prisma, é possível perceber que ela também traz aspectos negativos, como,

ao passo que é instaurada a industrialização, a mão-de-obra do homem é substituída pela

máquina. À medida que há aumento populacional, as relações interpessoais dificultam, já que

as pessoas acabam se tornando apenas mais uma em meio à multidão. Além, disso, nem todos

82

têm condições de acompanhar o novo padrão de vida imposto pela modernidade, dessa maneira,

têm-se seus excluídos.

Assim, a modernização que privilegiou os interesses das classes dominantes e não

permitiu que a grande massa da população fosse incluída e pudesse acompanhar esse processo,

chamou-se de modernização conservadora.

Nessa perspectiva, essa dissertação teve como objetivo principal cotejar as Recordações

do escrivão Isaías Caminha com o processo de modernização conservadora pelo qual o Brasil

passou no início do século XX, analisando de que forma esse processo foi representado no

referido romance de Lima Barreto.

O cenário em que ocorre o enredo do referido romance é a cidade do Rio de Janeiro,

contexto que Lima Barreto utiliza para desenvolver a sua narrativa. O corpus de análise dessa

dissertação tem o mulato Isaías como narrador personagem que escreve suas recordações em

ordem cronológica sempre buscando, por meio das ricas descrições de lugares e

acontecimentos, evidenciar a modernização da cidade do Rio de Janeiro e provar aos leitores

que os negros e mulatos não tinham oportunidade de ascender em virtude das ações castradoras

de uma sociedade elitista e preconceituosa.

Verificou-se que essa representação ocorreu basicamente por meio do personagem

mulato Isaías, que, indo para o Rio de Janeiro, sofreu muito preconceito até mesmo depois de

conseguir um emprego como contínuo no jornal O Globo. Isaías, vítima das mazelas da

sociedade, pertence à grande massa da população que não teve oportunidade de ascender

socialmente. A representação também ocorreu por meio do referido jornal que, ao lado de

grandes políticos, era detentora do poder que defendia os interesses de uma minoria, da classe

dominante.

A marginalização de grande parte da população brasileira deveu-se à falta de estrutura

nas cidades que não tinham capacidade para absorvê-la, haja vista que muitos deixavam seus

lugares de origem e iam para a cidade grande em busca de oportunidades melhores de emprego,

de estudo, enfim, de vida, assim, gerando a explosão demográfica, uma das características da

modernização. Tal situação foi ilustrada no romance de Lima Barreto por Isaías, que foi para a

cidade grande para estudar e formar-se doutor, na esperança de que esse título anulasse o seu

“pecado original” de ser mulato. Por infortúnio, não foi “apadrinhado” pelo deputado Castro, o

que lhe trouxe muitos percalços e dificuldades. O principal fato decorrente da modernização

83

conservadora, verificou-se, portanto, ser a exclusão da grande massa da população, da classe

trabalhadora.

No decorrer da narrativa, Isaías apresenta várias situações em que descreve o Rio de

Janeiro que denota a ideia de cidade grande, moderna e em desenvolvimento. Automóveis,

telégrafos, bondes elétricos, edifícios, ruas largas, aglomerações, agitação das pessoas, são

alguns aspectos que caracterizam a cidade como tal.

A imagem de modernidade no Brasil que predomina na obra é, justamente, a ideia de

modernização conservadora. Várias descrições do narrador personagem remontam para uma

perspectiva de cidade grande, como já citado. Porém, o progresso não atingiu a toda a população

e não eram todas as pessoas que tinham condições de acompanhar os avanços em virtude da

falta de oportunidades da própria sociedade.

Pode-se afirmar que o período em que Lima Barreto viveu (transição do século XIX

para o século XX) influenciou a sua produção literária. É sabido que o meio social e

determinado período histórico podem interferir em certa medida em determinada obra. Tal é o

caso do romance Recordações do escrivão Isaías Caminha. Sendo autor de uma literatura

militante, Lima Barreto usou seu livro para denunciar problemas sociais que julgava pertinentes

serem levados a público. Então, o próprio processo de modernização conservadora pelo qual o

Brasil passou no início do século XX foi tema de sua produção.

Além da modernização conservadora e da marginalização dela resultante, o preconceito,

a capacidade e o poder de o jornal manipular e persuadir a população, o jogo de interesses da

imprensa e das classes dominantes, o “apadrinhamento” como oportunidade de ascensão social

e o adultério envolvendo políticos foram temas também abordados no romance de Lima

Barreto.

A linguagem do romance pode ser considerada moderna, pois a forma de escrever de

Lima Barreto destoava dos padrões vigentes da época. Sem eufemismos e formalidades, seu

texto caracteriza-se pelo pioneirismo do uso da linguagem simples, direta e coloquial.

Corroborando tal ideia, Machado (2002, p. 80) afirma que “Lima Barreto adota um

procedimento literário que resulta numa linguagem transparente, descuidada, de comunicação

imediata, acima de tudo, expurgada dos efeitos estilísticos e retóricos tão comuns à época. À

procura de maior comunicabilidade, Lima Barreto rejeita os padrões formais e a própria noção

de estilo”.

84

Descobertas científicas, avanços tecnológicos, cidades em descomunal crescimento

devido à explosão demográfica e à industrialização, são apenas alguns exemplos do progresso

que o Brasil vive em pleno século XXI. Se fizermos uma retrospectiva e voltarmos para o início

do século XX, momento em que o Brasil acompanhou o advento da modernização,

perceberemos que esse processo é constante e que, mesmo tendo passado um século, o

pensamento das pessoas parece não ter acompanhado todos os avanços que caracterizam a vida

moderna. Prova disso, é o preconceito, temática abordada no romance Recordações do escrivão

Isaías Caminha e que, ainda hoje pode ser percebida no comportamento de muitas pessoas.

Assim, fica evidente que o tema “modernização conservadora” no Brasil, ainda aparece

no século XXI, em alguns aspectos. A questão que se coloca, então, é a atualidade temática do

livro de Lima Barreto, pois, embora o tempo passe e o país progrida em várias esferas sociais e

o homem seja adepto ao padrão moderno de vida, a essência do ser humano, deixada

transparecer por seus pensamentos, hábitos e atitudes, mostra ser dotada de uma boa dose de

conservadorismo. Daí a pertinência em se trazer à tona um escritor que estava à frente de sua

época, seja pela linguagem utilizada no romance, e, principalmente, pela ousadia em desvelar

uma sociedade que parece ainda não saber lidar e situar-se diante da modernidade crescente.

As denúncias feitas pela voz de Isaías são o reconhecimento do despreparo de todos em relação

ao novo modelo de vida que se implantou no Brasil. Por um lado, há a necessidade e o desejo

de se colocar, diante do mundo, em especial, a Europa, como um país moderno, aberto às

tecnologias; por outro, o modernismo parece ser uma armadilha perigosa, pois os excluídos, os

marginalizados, as minorias começam a ser protagonistas de uma virada social para a qual a

sociedade elitista não está preparada para assumir e respeitar.

A nova etapa social que se instaura no Brasil, referida em Recordações do escrivão

Isaías Caminha, traz à tona o reconhecimento do novo, aliado, mesmo que de forma disfarçada,

ao equívoco de que as benesses da modernidade são inclusivas. Se a sociedade brasileira sempre

conviveu com o preconceito, mesmo que não explicitamente, é por meio do personagem Isaías

que a percepção do outro ainda é incômoda e, ao que parece, será um longo caminho a ser

percorrido para que a igualdade seja verdadeira.

85

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