processo enunciativo: análise de alguns atos de...

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Originalmente publicado em: Agostinho Dias Carneiro. (Org.). O discurso da mídia. Rio de Janeiro: Oficina do Autor, 1996, v. , p. 44-70. Processo Enunciativo: análise de alguns atos de linguagem Giani David Silva- CEFET/MG Hugo Mari PUC Minas Paulo Henrique Aguiar Mendes - UFOP 1. Histórico Os estudos na área da Linguagem conheceram, a partir do século XIX, um avanço importante, seja do ponto de vista quantitativo, seja em razão da qualidade daquilo que foi produzido. Ao procurar fundamentar o conhecimento lingüístico com base numa análise rigorosa de fenômenos associados ao comportamento do significante, contemplando não só uma dimensão intra-sistêmica (descritivismo), como também uma inter-sistêmica (evolucionismo), o Historicismo legou-nos as condições para a sustentação de um objeto de estudo autônomo para a Lingüística, apesar de toda a contaminação com as tendências evolucionistas de época. Na seqüência, caberia ao Estruturalismo não apenas uma ratificação desse modo de fazer ciência, mas também a necessidade de sua sublimação, e de sua expansão para outras dimensões da linguagem. Todo o esforço em torno de uma certa axiomatização da Fonologia (cf. a definição de Fonema, de Trubetskoy, as teses do Círculo de Lingüística de Praga, as Premissas da Fonêmica Prática, de Pike) justifica parte deste empreendimento estruturalista. Isso, todavia, era pouco para um Projeto que dispunha, com elegância técnica, de uma arma tão poderosa quanto o conceito de estrutura. O Estruturalismo percorreu grande parte das dimensões de estudo da linguagem, em umas foi mais eficiente, em outras menos, mas em todas deixou o registro de relevância conceitual da estrutura e de eficiência técnica da comutação. O período subseqüente, nos estudos lingüísticos, tornou ainda mais radical o teor axiomático de suas hipóteses. Ao introduzir a necessidade de uma reflexão lógico-formal sobre a construção da gramática, na sua forma universal ou particular, a Gramática Gerativa impôs um rigor nos procedimentos de análise lingüística, até então desconhecido, para os estudos da linguagem, como ainda influenciou uma extensão das Ciências Humanas e Sociais. Os modelos lingüísticos alcançaram respeitabilidade também em áreas de conhecimento formal como a Matemática e a Lógica; alimentaram a expectativa de disciplinas emergentes como Cibernética, Inteligência Artificial; e foram determinantes no provimento de hipóteses para disciplinas siamesas como Psicolingüística, Sociolingüística, Etnolingüística etc. Que resultados podem ser extraídos desta busca constante de novos padrões de conhecimento da linguagem ?

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Originalmente publicado em: Agostinho Dias Carneiro. (Org.). O discurso da mídia. Rio de Janeiro: Oficina do Autor, 1996, v. , p. 44-70.

Processo Enunciativo: análise de alguns atos de linguagem

Giani David Silva- CEFET/MG

Hugo Mari – PUC Minas

Paulo Henrique Aguiar Mendes - UFOP

1. Histórico

Os estudos na área da Linguagem conheceram, a partir do século XIX, um avanço

importante, seja do ponto de vista quantitativo, seja em razão da qualidade daquilo que

foi produzido. Ao procurar fundamentar o conhecimento lingüístico com base numa

análise rigorosa de fenômenos associados ao comportamento do significante,

contemplando não só uma dimensão intra-sistêmica (descritivismo), como também uma

inter-sistêmica (evolucionismo), o Historicismo legou-nos as condições para a

sustentação de um objeto de estudo autônomo para a Lingüística, apesar de toda a

contaminação com as tendências evolucionistas de época.

Na seqüência, caberia ao Estruturalismo não apenas uma ratificação desse modo

de fazer ciência, mas também a necessidade de sua sublimação, e de sua expansão para

outras dimensões da linguagem. Todo o esforço em torno de uma certa axiomatização da

Fonologia (cf. a definição de Fonema, de Trubetskoy, as teses do Círculo de Lingüística

de Praga, as Premissas da Fonêmica Prática, de Pike) justifica parte deste

empreendimento estruturalista. Isso, todavia, era pouco para um Projeto que dispunha,

com elegância técnica, de uma arma tão poderosa quanto o conceito de estrutura. O

Estruturalismo percorreu grande parte das dimensões de estudo da linguagem, em umas

foi mais eficiente, em outras menos, mas em todas deixou o registro de relevância

conceitual da estrutura e de eficiência técnica da comutação.

O período subseqüente, nos estudos lingüísticos, tornou ainda mais radical o teor

axiomático de suas hipóteses. Ao introduzir a necessidade de uma reflexão lógico-formal

sobre a construção da gramática, na sua forma universal ou particular, a Gramática

Gerativa impôs um rigor nos procedimentos de análise lingüística, até então

desconhecido, para os estudos da linguagem, como ainda influenciou uma extensão das

Ciências Humanas e Sociais. Os modelos lingüísticos alcançaram respeitabilidade

também em áreas de conhecimento formal como a Matemática e a Lógica; alimentaram a

expectativa de disciplinas emergentes como Cibernética, Inteligência Artificial; e foram

determinantes no provimento de hipóteses para disciplinas siamesas como

Psicolingüística, Sociolingüística, Etnolingüística etc. Que resultados podem ser extraídos

desta busca constante de novos padrões de conhecimento da linguagem ?

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Não se pode esperar, de um percurso tão amplo como este, qualquer unanimidade

de avaliação. As hipóteses, de um estágio para outro, se não são incompatíveis, se

mostraram, ao menos, orientadas para alcançar um espaço conceitual diferente na

compreensão da linguagem. Há, porém, um efeito cumulativo, decorrente da formulação

de hipóteses, de estratégias de análise, da implementação de metodologias e da

construção de modelos, o qual converge, a despeito de preocupações locais, para uma

lingüística do enunciado. Foi este o padrão de excelência conceitual e formal alcançado

pelos estudos da linguagem num período, em termos do nosso recorte, de

aproximadamente um século e meio. Isso não quer dizer, com certeza, que os problemas

associados a este nível de análise tivessem sido superados neste período. A eficácia aqui

não pode ser aferida apenas pelos resultados obtidos (é lógico que eles são importantes !),

mas, sobretudo, pela autonomia com que os fenômenos de linguagem passaram a ser

encarados. É evidente também que o percurso na construção desta Lingüística do

Enunciado não foi realizado sem turbulências. Muitas causalidades externas, associadas

às mudanças fonéticas de vogais e consoantes, expuseram em demasia as pretensões do

Historicismo. Proliferações terminológicas inconseqüentes, reducionismo conceitual

aplicado à compreensão de certos fatos textuais chegaram a colocar em dúvida o valor da

análise estrutural. Quem não se lembra, por seu turno, da criação exagerada de regras,

muitas vezes ad hoc, para explicar fenômenos lingüísticos, amplamente exercitada a

partir do modelo standard da Gramática Gerativa? Exageros e desvios à parte, apesar de

seu controle em alguma extensão, restou uma dificuldade adicional: a inexistência de

uma abertura que viesse a contemplar aspectos da linguagem voltados para sua dimensão

enunciativa.

As preocupações com problemas associados à enunciação não constituem uma

etapa de reflexão posterior ao trabalho que foi acima descrito. Investidas nesta direção

foram freqüentes no período estruturalista. Registre-se, por exemplo, o trabalho de

Jakobson sobre as funções da linguagem, como forma incipiente de abordagem destes

problemas. Assim, é no interior da própria Lingüística que se produzem inconformismos

com todo um conjunto de fenômenos, relevantes para as práticas de linguagem, mas

desconsiderados no âmbito das concepções lógicas de análise do enunciado. Os

paradigmas hard, construídos nos moldes das ciências naturais e formais, cederam

espaços a paradigmas soft, abertos a iniciativas que introduziram, no campo da

Lingüística, a importância dos interlocutores, seja em termos das intenções que colocam

em jogo, seja em razão das convenções a que estão submetidos, do lugar social a que se

acham vinculados, das estratégias argumentativas que articulam. Toda esta diversidade de

procedimentos e compromissos das práticas de linguagem produziram a expectativa de

construção de um objeto de estudo com uma outra feição: de uma estrutura lógico-formal,

indiferente ao sujeito, migramos para o acontecimento discursivo, resgatando o sujeito.

Os fatos que associamos a uma perspectiva da enunciação não representam algo

de novo no estudo da linguagem. O que faz a diferença aqui é, de um lado, o modo pelo

qual têm sido abordados e, de outro, a persistência com que têm sido avaliados. Quanto

ao primeiro aspecto, é importante ressaltar que o reconhecimento intuitivo de fatos

relevantes para o estudo de fenômenos discursivos já foi um passo importante, para

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mostrar a necessidade de revisão e de expansão dos algoritmos de análise. Sua

importância não assegura, em conseqüência, os critérios exigidos para sua validade. A

extensão em que falamos de modelos, nas situações anteriores, em termos de uma certa

conjunção de parâmetros e procedimentos que acionamos na análise dos fenômenos, não

é, nas circunstâncias atuais, aplicável, por completo, à enunciação. Por mais provisória

que seja a análise de problemas, nas dimensões anteriores, existe um núcleo central de

princípios, construído de tal forma a prover uma certa classe de repostas. Quando se trata

da enunciação, entretanto, os fatos ainda estão a requerer, apesar de todo o avanço que

tem sido alcançado, um padrão de regularidade metodológica e conceitual. O que

podemos, portanto, incluir num suposto modelo de enunciação ?

Nas seções seguintes, pretendemos discutir uma dimensão deste problema, mais

precisamente, aquela voltada para a compreensão dos componentes do processo

enunciativo. Num primeiro momento, faremos, gradativamente, uma apresentação geral

das idéias precursoras apresentadas por Bakhtine, Todorov e Benveniste1, apontando

aspectos do esforço de caracterização lingüística deste processo, destacados pelos autores

e, na seqüência, de modo mais detalhado, o esquema formulado por Charaudeau2, como

parte integrante do seu modelo de análise do discurso.

2. Processo Enunciativo: aspectos gerais

Se percorremos três autores que foram, em alguma escala, precursores nesse

território, encontraremos os elementos fundamentais que serviram de base para aquilo

que tem sido discutido em termos de lugares enunciativos e da sua importância para a

compreensão de alguns fatos de linguagem. A abordagem de cada um deles nem sempre

foi específica apenas ao problema aqui selecionado. Os textos citados incluem outros

aspectos afeitos ao processo enunciativo. É possível, entretanto, que deles possamos

extrair alguma orientação para o problema em análise.

A partir de Bakhtine, por exemplo, ressaltaríamos um primeiro aspecto que nos

pareceu essencial: a crítica a uma lingüística do enunciado que, em nome do rigor

metodológico, elimina, do âmbito da análise lingüística, tudo aquilo que escapa ao

sistema formal da língua. Ao desenvolvê-la, o autor coloca em confronto a contingência

solipsista de uma lógica do enunciado e a necessidade social de uma dialética da

enunciação, único padrão adequado a responder pelas práticas sociais de linguagem. Esta

ênfase no social requer, na acepção do autor, uma revisão dos procedimentos de análise

da linguagem: enquanto o enunciado limita o universo discursivo, na extensão dos fatos

1 BAKHTIN, M. Língua, Fala e Enunciação / A Interação Verbal. In: Marxismo e Filosofia da

Linguagem. São Paulo: Hucitec, 1981. TODOROV, T. L’Énonciation. In: Langages. 17, 1970;

BENVENISTE, É. Aparelho Formal da Enunciação. In: Problemas de Lingüística Geral II. Campinas:

Pontes, 1989. 2 CHARAUDEAU, P. L´acte de langage como mise en scène. In: Langage et Discours. Éléments de

Sémiolinguiste. Paris: Hachete, 1983. p. 37-57.

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decorrentes da emergência do “eu”, a enunciação deve construir um universo discursivo,

fazendo-o expansivo às condições de emergência do “eu” e do “tu”(outro).

A percepção do autor sobre esta questão representa, em linhas gerais, o formato

básico para a compreensão de um modelo de análise do processo enunciativo: uma

concepção que precisa dar conta do lugar do “eu” e do “tu”, como instâncias produtoras e

integradoras das práticas de linguagem. Admitir este padrão de funcionamento para a

linguagem significa também reorientar, de alguma modo, o conhecimento sobre diversos

outros fatos lingüísticos. Por exemplo, em razão dele somos obrigados a pensar qualquer

questão de sentido, colocada numa interação verbal, como algo descentrado e instalado

num outro regime de engendramento, onde o “eu” não é mais o seu eixo, já não detém

mais sua hegemonia. O que passa a prevalecer é o conflito que determina um nova ordem

onde sujeito e mensagem terão de ser, cada vez mais, desdobrados em instâncias

múltiplas.

Uma segunda formulação a ser referida aqui, na proposta de Todorov, retoma,

basicamente, o mesmo teor da discussão anterior. Assim, a necessidade de

descentramento das instâncias de produção continua sendo imperativo ao processo

enunciativo, como o autor anuncia:

“Os primeiros elementos constitutivos de um processo de

enunciação são: o locutor, aquele que enuncia; e o alocutário,

aquele a quem é dirigido o enunciado; ambos são chamados,

indiferentemente, interlocutores. A partir daí, pode-se conceber a

organização das formas lingüísticas indiciais de duas maneiras...” 3

Da importância precursora da formulação do autor, compensa destacar não apenas a

atenção atribuída aos interlocutores, mas, sobretudo, a correlação deste fato com a

perspectiva de compreensão de um conjunto de operações lingüísticas. Destacam-se,

neste particular, as expressões indiciais e os dêiticos como instrumentos lingüísticos que

assumem um valor semântico que só pode ser determinado com base numa referência

direta à enunciação.

A relevância conferida pelo autor à enunciação, embora contraposta a um modo de

conceber certas relações lingüísticas, não confere a ela qualquer autonomia em relação ao

sistema da língua. Não se trata de assumir os interlocutores, numa esfera funcional

independente, mas antes de admiti-los como suportes para a naturalização das expressões

indiciais e dos dêiticos, por exemplo. Assim, enquanto o enunciado representa uma

instância de estruturação das relações funcionais, a enunciação, na ótica de Todorov,

institui-se como suporte de estruturação das relações comunicacionais; ambas numa

3 TODOROV, T. Enunciação. In: DUCROT, O. & TODOROV, T. Dicionário Enciclopédico das Ciências

da Linguagem. São Paulo: Perspectivas, 1977. p. 304.

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dimensão, estritamente, lingüística. É neste sentido que a análise do processo enunciativo

embora esteja comprometida com práticas sociais de linguagem, continua sendo uma

abordagem lingüística; uma abordagem que busca a sua fundamentação conceitual e

operacional em instrumentos concebidos na esfera da linguagem.

A terceira formulação nos remete ao texto de Benveniste, onde os elementos

constitutivos do processo enunciativo são também ressaltados. O autor recorta, por sua

vez, alguns fatos que possibilitam justificar, de modo mais específico, a importância da

enunciação na compreensão da linguagem. Assim, a preocupação em mostrar a

impossibilidade de que certos aspectos do uso da linguagem possam ser resolvidos na

dimensão do enunciado, como já havíamos comentado, também compõe a sua

argumentação em favor de um nível de análise, voltado para os problemas da enunciação.

Assim, da mesma forma que Todorov mostrou, dêiticos e expressões indiciais, como

relações exofóricas, não comportam solução na esfera do enunciado. Benveniste destaca

ainda, de modo mais incisivo, a importância que as questões relativas ao tempo, numa

dimensão enunciativa. O autor comenta a questão:

“Uma terceira série de termos que dizem respeito à enunciação

é constituída pelo paradigma inteiro - freqüentemente vasto e

complexo - das formas temporais, que se determinam em relação

a EGO, centro da enunciação. Os “tempos” verbais cuja forma

axial, o “presente”, coincide com o momento da enunciação,

fazem parte deste aparelho necessário.

Esta relação com o tempo merece que aí nos detenhamos, que

meditemos sobre sua necessidade, e que interroguemos sobre o

que a fundamenta. Poder-se-ia supor que a temporalidade é um

quadro inato do pensamento. Ela é produzida, na verdade, na e

pela enunciação. Da enunciação procede a instauração da

categoria do presente, e da categoria do presente nasce a

categoria do tempo. O presente é propriamente a origem do

tempo.”

No essencial da sua formulação, a existência do tempo na linguagem subordina-

se, diretamente, à enunciação, ato efetivo, através do qual o falante se apropria das formas

lingüísticas, dentre elas a forma do presente. Assim, é do presente, momento singular da

enunciação, que ele deriva o tempo e deste deriva, portanto, o passado e o futuro. Há dois

deslocamentos fundamentais nesta proposta do autor. O primeiro resulta da necessidade

de se desfazer a causalidade entre tempo e presente: de um lado, ele o faz desvinculando

o presente de uma decorrência imediata do tempo e situando aquele fora da esfera deste

último; de outro, resgatando essa correlação, na medida em que atribui ao presente a

função de engendrar o tempo. Desse modo, o presente torna-se um acontecimento único,

cuja natureza escapa ao registro do enunciado; é ele marca inerente da enunciação e que

só tem existência, enquanto esta perdura. O segundo deslocamento traduz-se pela quebra

da linearidade atribuída a passado-presente-futuro. Se a nossa tradição viu nesses três

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elementos uma condição de recorte linear do eixo temporal, Benveniste se propõe, ao

introduzir a enunciação como uma dimensão fundamental para a linguagem, mostrar que

o presente situa-se num estágio diferente e que tem a função de projetar, numa escala

temporal, pois é ele que gera o tempo, fatos que materializam o passado e o futuro,

verdadeiras instâncias temporais.

O modo pelo qual podemos operar com esta formulação do autor, na tentativa de

uma caracterização melhor do processo lingüístico da enunciação, ainda precisa ser

determinada, até mesmo em razão do grau de complexidade que ela pode oferecer.

Mesmo se justificando como um aspecto relevante da questão, ela está fora do alcance da

nossa discussão, no presente momento.

Destacamos, nas observações acima, três aspectos, a partir dos autores citados,

que nos pareceram importantes para justificar o processo enunciativo. O objetivo aqui

não era uma análise detalhada dos fatores neles presentes, mas somente uma tentativa de

apontar os caminhos pelos quais as possibilidades de estruturação de fenômenos no

campo da enunciação têm sido aventadas. O objetivo específico deste texto, como já

assinalamos, é uma avaliação do quadro de componentes da enunciação, conforme

formulado por Patrick Charaudeau, na seção seguinte.

3. Processo Enunciativo e Análise do Discurso

A forma explícita e operacional que tem sido dada ao processo de enunciação

deriva, de um modo geral, dos trabalhos que vêm realizados nas diversas visões da

Análise do Discurso. Como questão central à compreensão de estratégias discursivas, as

diferentes abordagens da AD acabaram, em função do seu quadro teórico, dos seus passos

metodológicos, configurando uma forma própria de funcionamento deste processo. Aqui,

estaremos discutindo, na sua dimensão teórica e na sua aplicação a alguns atos de

linguagem, o modelo desenvolvido por Charaudeau.

O modelo proposto se fundamenta numa concepção de ato de linguagem que

pretende ultrapassar a formulação um tanto simplista em que se arvora a teoria da

comunicação, segundo a qual o processo enunciativo se definiria em termos de um

processo simétrico entre emissor e receptor, os quais compartilhariam o mesmo código,

cabendo ao receptor simplesmente decodificar a mensagem proferida pelo emissor e, por

conseguinte, a sua intenção comunicativa.

Nesta perspectiva, Charaudeau, ao propor o desenvolvimento de um modelo de

compreensão do processo enunciativo, aplicado à análise do discurso, define um ato de

linguagem como sendo uma “misè en scène” da significação da qual participam os

parceiros da interação. Estes parceiros, no desempenho efetivo de suas práticas de

linguagem, estão subordinados a um certo número de contratos e convenções - práticas

psico-sociais partilhadas entre membros de uma dada comunidade - e têm, cada um

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deles, um projeto de fala que determina o “enjeu de cette mise en scène”. Em outros

termos, o ato de linguagem é, portanto, o resultado de duas atividades dialéticas: a de

produção e a de interpretação, que dependem de saberes supostos que circulam entre os

sujeitos da linguagem, saberes correlativos à dupla dimensão explícito/implícito do

fenômeno linguageiro. Assim, o ato de linguagem não se reduz à sua simples

configuração linguística, mas é um todo de significação onde uma parte somente é

explícita e uma outra é implícita; uma palavra não tem um sentido a priori fixado de uma

vez por todas no dicionário, mas , antes, contribui para o engendramento do sentido no

contexto situacional em que se inscreve a interação verbal, pois a linguagem, em sua

materialidade mais concreta, é o lugar de representação das práticas psico-sociais que

condicionam a constituição dos sujeitos da linguagem.

Pode-se dizer, em linhas gerais, que a perspectiva de análise do discurso proposta,

na dimensão da Teoria Semiolingüística de P. Charaudeau, representa um avanço no

domínio dos estudos sobre a linguagem, na medida que pretende ser um modelo

radicalmente integrador das diferentes dimensões que constituem o processo enunciativo,

contemplando, de forma orgânica, não só os elementos que se situam numa dimensão

estritamente linguística, mas também os elementos inseridos numa instância extra-

linguística e, sobretudo, as relações que uns e outros mantêm entre si.

Neste sentido, a intervenção teórica empreendida por Charaudeau busca explicar

fenômenos da linguagem que extrapolam o domínio do enunciado, através da postulação

de um dispositivo, cujas categorias possibilitam configurar um desdobramento das

instâncias enunciativas, constitutivas do processo interlocutivo e justificar não só os

papéis que os sujeitos assumem em cada uma dessas instâncias, como ainda o jogo

enunciativo que se estrutura a partir deles, nas circunstâncias efetivas de práticas

discursivas.

O dispositivo do ato de linguagem é, então, construído em função de um duplo

circuito que compreende, de um lado, numa dimensão exterior/extra-linguística, um

sujeito comunicante e um sujeito interpretante, enquanto seres psico-sociais, dotados de

intencionalidade e responsáveis pelos respectivos processos de produção e interpretação,

e, de outro, numa dimensão interna e estritamente lingüística, um sujeito enunciador e

um sujeito destinatário, enquanto seres de linguagem, desprovidos de intencionalidade.

Estes dois últimos sujeitos constituem projeções/hipóteses construídas pelos outros dois

sujeitos anteriores, não sendo, pois, idênticos a eles, nem, necessariamente, semelhantes,

já que configuram imagens destes, as quais podem tanto refletir e/ou corroborar suas

identidades como também refratar e/ou contradizê-las. A distribuição destes componentes

no processo enunciativo, bem como as relações estabelecidas entre eles foram

estabelecidas numa formulação geral do autor, conforme a adaptação abaixo:

Quadro 1: Processo enunciativo dos atos de linguagem

Ato de linguagem

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JEc

circuito interno JEé TUd

ILx

TUi

ILo circuito externo

Nesses termos, não existe relação simétrica entre os parceiros da comunicação,

mas, ao contrário, há, fundamentalmente, uma assimetria que caracteriza a relação

dialética entre o processo de produção e o de interpretação do ato de linguagem.

Utilizando a codificação empregada por Charaudeau, um sujeito comunicante (JEc) ,

para assumir o estatuto de um ser da palavra, precisa engendrar não só um sujeito

enunciador (JEé), como também um sujeito destinatário (TUd). A adequação hipotética

do propósito de fala do JEc implica que não apenas o sujeito enunciador (JEé), mas ainda

o sujeito destinatário (TUd) constituam um desdobramento do próprio comunicante

(JEc). O sujeito interpretante (TUi), por sua vez, de todo diferente do destinatário, mas

podendo se assimilar ou não a ele, elabora uma imagem do sujeito comunicante (JEc) em

função do sujeito enunciador ( JEé ) instaurado. Esta imagem, porém, não se identifica

com o JEé, como imagem construída pelo JEc. Assim, do ponto de vista da interpretação,

o sujeito enunciador (JEé) é apenas uma outra imagem de enunciador, construída pelo

sujeito interpretante (TUi), como hipótese sobre a intencionalidade do sujeito

comunicante (JEc). Dessa forma, como ressalta Charaudeau, se o sujeito destinatário

(TUd), enquanto construção ideal, é suposto estar numa relação de transparência com a

intencionalidade do sujeito comunicante (JEc), o sujeito interpretante (TUi), enquanto

suporte do processo de interpretação, encontra-se numa relação de opacidade com essa

intencionalidade.

É importante ainda ressaltar, nesta formulação do autor, que JEé e TUd são

instâncias enunciativas construídas a partir de um universo discursivo interno,

representado por ILx e determinado por condições lingüísticas que fazem deles seres de

linguagem. Por outro lado, JEc e TUi são instâncias inseridas num universo discursivo

externo, representado por ILo e determinado pelo conjunto das relações psico-sociais que

fazem de JEc e TUi seres históricos. Deste elenco de componentes do processo

enunciativo e em razão de relações estabelecidas entre eles, quando fixadas um modo

específico, deriva o conjunto de todos os atos de linguagem, conforme tentaremos

mostrar para os exemplos seguintes.

4. Atos de Linguagem: análise de alguns casos

Selecionamos, nesta seção, algumas práticas de linguagem que serão utilizadas

para confrontar, em cada circunstância, as condições gerais que precisam ser impostas

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para traduzi-las como um tipo de ato de linguagem específico. Estaremos recuperando,

nesta discussão, as condições determinadas por Charaudeau para o funcionamento de

quatro atos específicos, a saber: mentira, segredo, provocação e demagogia e avaliando-

as, a partir de exemplos extraídos de jornais. Na seqüência, comentaremos as condições

de existência de três outros atos (verdade, equívoco e boato), procurando formular as

suas condições determinantes.

Ao longo da discussão de cada um dos atos, mostraremos o modo pelo qual eles

operaram, algumas dificuldades de seu funcionamento, bem como alguns complementos

que podem possibilitar a sua avaliação, de modo mais decisivo. No fundo, a nossa

discussão, quase sempre, confrontou-se com a questão de saber se estes atos podem ser

compreendidos, nas práticas de linguagem em que se acham inseridos, apenas em razão

da sua estruturação no processo enunciativo.

4.1 - Mentira:

Charaudeau aponta as seguintes condições para a determinação do ato de mentira,

quanto à sua construção enunciativa:

1. JEé diz p (ILx);

2. JEc pensa não-p (ILo);

3. JEc o faz de sorte que TUi se identifique a um TUd que crê que JEc pensa p.4

Pelas condições impostas pelo autor, a mentira se constrói a partir de uma contradição

instaurada entre as duas instâncias locutárias: um JEé que diz p e que tem, como suporte,

o seu comunicante, isto é, as condições determinantes do seu dizer no mundo psico-

social, JEc, que pensa não-p. Essa dessintonia sobre p pode converter-se em mentira, à

medida que a pressão de JEc, através do seu porta-voz JEé, faz com que TUi, as

condições interpretantes, não desaprove o papel que é conferido a TUd, como imagem

construída por JEc, de crer que este pense p.

Podemos avaliar estas condições gerais para a existência do ato de mentira,

considerando o trecho abaixo, onde Paulo Maluf presta esclarecimentos sobre o incêndio,

com diversas vítimas fatais, ocorrido num abrigo da Prefeitura de São Paulo (construção

4 Estamos fazendo uma tradução livre do texto do autor, mantendo apenas, na forma original, a

denominação dos lugares enunciativos, como já o fizemos, anteriormente.

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da mentira) e é contestado pelo jornalista (refutação da mentira), através de fatos e

atitudes, associados às vítimas.

Texto 1:

“Mais à frente:

„... incêndios, na sua maioria causados por instalações elétricas feitas

de forma irregular e sem a menor preocupação com a segurança...‟

De pouco importa o fato de terem feito antes um abaixo-assinado,

contra as mesmas instalações, ou de estarem há um ano esperando

pela moradia definitiva, prometida para três meses pelo prefeito.”5

A partir das restrições enunciativas que foram antes formuladas para a mentira e dos fatos

que se fazem presentes no texto acima, podemos obter o seguinte quadro de relações:

Quadro 2: relações enunciativas da mentira:

JEc pensa não-p

(Maluf)

JEé diz p TUd crê que (Maluf em JEc pensa p campanha) (telespectador)

ILx = os moradores são

culpados pelo incêndio, ao

improvisarem as instalações

elétricas

TUi (simpatizantes do

Maluf)

ILo = a Prefeitura não atendeu

pedido de revisão da rede, feito

pelos moradores

O ato de mentira constrói-se em função de dois fatos contidos neste quadro: (a) a

discrepância sobre o conteúdo de p, mostrada na correlação entre JEc, que pensa não-p, e

JEé que diz p; (b) o fato de que TUi possa se igualar a TUd, ao crer que, com certeza, JEc

pense p. Em outras palavras, a condição efetiva para a existência da mentira, na extensão

do alocutário, implica que TUi, simpatizantes do Maluf, aceite as condições que foram

impostas a TUd, como imagem forjada por JEc. Neste sentido, portanto, as explicações

5 In: Folha de São Paulo. 07-08-1996.

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de Maluf devem ter sido acatadas em muitas circunstâncias, servindo, portanto, para

justificar a construção do ato da mentira.

Por outro lado, a mentira pode ser desvelada, quando, então, se transforma numa

falsidade, conforme podemos mostrar, numa reconstrução do quadro acima:

Quadro 2a: relações enunciativas de refutação da mentira

JEc pensa não-p

(Maluf)

JEé diz p TUd crê que (Maluf em JEc pensa p campanha) (telespectador)

ILx = os moradores são

culpados pelo incêndio, ao

improvisarem as instalações

elétricas

TUi (jornalista)

ILo = a Prefeitura não atendeu

pedido de revisão da rede, feito

pelos moradores

A desconstrução enunciativa da mentira requer uma refutação da condição (b) que foi

fixada para o Quadro 2. Assim, à medida que o esforço de JEé, em fazer TUi igualar-se a

TUd, não seja alcançado, isto é, que TUi, o jornalista, recuse a condição imposta a TUd

de crer que JEc pensa p, a mentira estará sendo refutada, conforme registramos no

Quadro 2a, a partir do Texto 1. Esta desconstrução da mentira nos parece distinta, na

dimensão enunciativa, da construção da verdade, pois, para que um ato a expresse, as

condições de sua existência passam a depender da dimensão enunciativa que impõe a JEc

pensar p e a JEé dizer p, como ainda, na extensão do alocutário, de TUi achar que JEc

pensa p. Caso TUi venha a julgar que JEc pensa não-p, quando ele, de fato, pensa p, então

estaríamos diante de um ato que lembra o equívoco. Mais à frente, vamos tentar

esquematizar estes dois últimos tipos de atos aqui lembrados, que não estão incorporados

à proposta do autor.

Em resumo, as condições essenciais para a existência da mentira, comparando-se

os dois quadros, não podem ficar, então, circunscritas a restrições impostas ao processo

enunciativo somente na dimensão dos locutores. A dimensão dos alocutários, isto é, a

condição (b) acima, precisa ser, igualmente, contemplada, pois a validade da mentira

requer a cumplicidade, a conivência de quem recebe a mensagem de supô-la verdadeira.

4.2 - Segredo

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Para o ato de linguagem que expressa segredo são apontadas as seguintes

condições, em termos de sua construção enunciativa:

1. JEé nada diz (ILx = );

2. JEc conhece p; ILo pode ser transmitido a TUd;

3. TUi faz a hipótese de que JEc conhece p e não o quer transmitir.

As condições acima mostram que a existência de um segredo depende de que JEé nada

diga sobre um determinado fato (ou que se recuse a entrar em detalhes sobre ele, se a

orientação discursiva for esta), mas que JEc, o seu suporte comunicante, conheça p e que,

além do mais, p poderia ser transmitido a TUd, a instância alocutária que partilha p com

JEé. Até este momento, todavia, teríamos apenas o ocultamento e não o segredo, pois este

requer, da parte de TUi, o reconhecimento do fato de JEc conhecer p e não manifestar

intenção de transmiti-lo.

Podemos agora avaliar o funcionamento do ato do segredo, com base no trecho de

uma entrevista que, conforme seleção abaixo. É importante registrar que o estatuto do

segredo apresenta-se de duas formas distintas e complementares: ou ele tem um registro

metalingüístico (sei algo que não posso lhe contar, não posso dizer isso etc.), ou ele se

traduz, numa forma dialogada (uma entrevista, por exemplo), por algum tipo de

interrupção, mas, em geral, com alguma marca metalingüística, ou extralingüística (risos,

silêncio etc.). Vejamos o trecho extraído de uma entrevista do Pastor Caio Fábio ao JB,

referindo-se ao seu envolvimento e ao da Igreja Universal com o poder político, em livro

que está escrevendo:

Texto 2:

“(...)

- Que bastidores são esses ?

- Vou contar, por exemplo, o que aconteceu comigo na época do

impeachment do presidente Collor, quando sofri várias tentativas de

suborno. Tentativas do poder constituído de cooptar evangélicos, que

receberam a missão de me silenciar em relação ao impeachment.

- Mas como isso se deu na prática ?

- Bom, se eu contar não tem livro (risos). (...)”6

6 In: Jornal do Brasil - Domingo. 10-08-1996.

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Contrastando as condições gerais que foram enumeradas para a configuração do ato do

segredo e os fatos que foram relatados no texto acima, podemos sugerir o seguinte

quadro, contendo as relações do processo enunciativo, constitutivas deste ato:

Quadro 3: relações enunciativas do segredo:

JEc conhece p

(Caio Fábio como

pastor)

JEé nada diz de p TUd

(Caio Fábio como (jornalista) entrevistado)

ILx = as tentativas de suborno do

pastor na época do impeachment

do Collor

TUi

(jornal, leitores)

ILo = envolvimento da Igreja

Universal com poder político no

Brasil

O ato do segredo estrutura-se neste texto, assumindo, como parte central, a resposta final

do pastor, a partir de dois parâmetros: (a) o fato de JEé nada dizer sobre o conteúdo p da

pergunta que é feita pelo jornalista, mas, ao mesmo tempo, deixar transparecer que

conhece p (se eu contar...) e que, em alguma extensão, poderia transmiti-lo a TUd e que

só não o faz com o objetivo de manter inédito certos aspectos livro; (b) além do mais,

TUi, as condições interpretantes, admite que JEc conheça p e que apenas não quer

informá-lo. Esta última restrição é importante, pois é ela que permite distinguir um

segredo de um blefe: se TUi não tivesse convicção de que JEc, realmente, conhecesse o

fato e apenas não desejasse informá-lo, nada haveria para se constituir em segredo e a

recusa de JEé, em dizê-lo, cairia no vazio.

4.3 - Provocação

Charaudeau expressa, com as seguintes condições, a possibilidade de existência de

um ato de linguagem que representa a provocação:

1. JEé diz p. ILx que constrói uma imagem de TUd desfavorável a TUi;

2. JEé sabe que TUi TUd;

3. JEc quer fazer com que TUi reaja.

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As condições 1-3 mostram que o ato de provocação, para ser realizado, na sua dimensão

enunciativa, requer: (a) um sujeito enunciador, JEé, que diz um fato, de tal maneira que o

seu conteúdo seja capaz de criar uma imagem de TUd, desfavorável a TUi, isto é, colocar

TUd em dificuldades é apenas uma forma indireta de referir-se a TUi, de modo

desfavorável. A provocação exige, ainda, uma condição adicional que mostra a intenção

de JEc em fazer com que TUi, o suporte da interpretação, reaja à imagem que lhe foi,

indiretamente, imposta.

Podemos ilustrar estas condições, a partir do texto abaixo selecionado que narra a

reação de um membro do PSDB, diante da aliança selada entre o PFL e o PPB, para as

eleições municipais em São Paulo. A reação se dá, em razão do fato de PSDB e PFL

serem aliados, em outras instâncias políticas maiores.

Texto 3:

“Montoro mostrou o grau de irritação dos tucanos paulistas com a

aliança PFL-PPB também ao comentar o desfecho do caso, com a

saída dos pefelistas do governo Covas.

„Estamos livres das negociatas que foram feitas para nos atrapalhar‟,

disse. Na vida política, Montoro é considerado um dos principais

inimigos do prefeito Paulo Maluf.”7

Aproximando os elementos constitutivos do processo de enunciação deste texto e

as condições fixadas para a existência da provocação, podemos propor o seguinte quadro

de correlações:

Quadro 4: relações enunciativas da provocação:

JEc pensa p

(PSDB de SP)

JEé diz p TUd

(Montoro) (jornalistas)

ILx = Estamos livres das

negociatas ...

TUi

(PFL)

ILo = toda sociedade sabe que a

aliança entre PFL-PSDB se traduz

por negociatas

7 In: Folha de São Paulo. 29-05-1996.

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O ato de provocação constrói-se, então, tendo em vista dois aspectos gerais: (a) a

existência de um JEé que afirma um certo conteúdo proposicional (“estamos livres das

negociatas...”) e que tem, como suporte comunicante, um JEc que também admite este

conteúdo e que o coloca em funcionamento, através do sujeito enunciador, JEé, com o

objetivo atingir negativamente TUi (o PFL é um partido de negociatas); (b) a enunciação

de JEé constitui-se, então, num instrumento que JEc põe em prática, a fim de fazer com

que TUi reaja, de algum modo, ao conteúdo que lhe foi, negativamente, imputado. Aqui,

mais uma vez, ressaltamos que, sem o atendimento a esta segunda condição, o ato

perderia o seu teor de provocação, pois esta supõe, do lugar do alocutário, alguma forma

de reação. No caso, pretendia-se que o PFL viesse esclarecer, de público, a aliança

assumida, ou negar a qualificação que foi atribuída ao partido. Se esta última condição

não for alcançada, não estaremos mais diante da provocação, mas de um outro tipo de ato

que lembra, possivelmente, o desprezo.

4.4 - Demagogia

Para o autor, a demagogia, como ato de linguagem e na dimensão do processo

enunciativo, constrói-se a partir das seguintes condições gerais impostas aos seus

componentes:

1. JEé diz p (ILx) que constrói uma imagem de TUd, favorável a TUi.

2. JEé sabe que TUi = TUd

3. JEc quer que, pela identificação de TUi a TUd, o próprio TUi lhe seja favorável

As condições previstas para o funcionamento da demagogia, na dimensão enunciativa,

requerem a presença de um enunciador, JEé, que, ao dizer um certo conteúdo, o faz de tal

forma a construir uma imagem de TUd que seja favorável a TUi. Isso quer dizer que JEé

torna-se um instrumento para JEc interpelar TUi. O enunciador coloca em prática, a partir

das condições que lhe impõe o ser comunicante, JEc, formas discursivas que são

confortáveis a TUd, seja pelo teor de sensatez, pela transparência, pela honestidade, ou

pela veracidade. Com esta “encenação enunciativa”, JEc deseja que, pela identificação

buscada entre TUi e TUd, que o primeiro seja favorável às suas pretensões. Aqui também

esta segunda condição é fundamental, pois caso ela não venha a se efetivar não estaremos

mais diante da demagogia, mas sim de alguma forma de seu desvelamento (a crítica, a

contestação etc.), formas que permitem a TUi tornar-se independente de TUd.

Considerando estas condições que são impostas ao seu funcionamento, podemos

supor que, de um modo geral, no texto abaixo, a manifestação do Presidente Fernando

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Henrique Cardoso de considerar que as taxas de juros no Brasil são “escorchantes”,

enquadra-se nas possibilidades de demonstração deste formato de prática de linguagem.

Vejamos, inicialmente, o texto:

Texto 4:

“O presidente Fernando Henrique Cardoso disse que considera

“escorchantes” os juros no Brasil. A afirmação foi feita ontem em

conversa com empresários que acompanham a visita à França.

FHC respondia a pergunta do empresário Mario Amato, presidente

honorário da Fiesp. Amato reclamou que, devido à diferença entre as

taxas de juros brasileiras e estrangeiras, comprar bens de capital no

exterior ficava “de graça”.8

Mapeando as restrições que são impostas para o funcionamento enunciativo da

demagogia nos fatos acima expostos, podemos, então, recompor o ato de linguagem aí

presente, do seguinte modo:

Quadro 5: relações enunciativas da demagogia

JEc

JEc pensa p (governo)

JEé diz p TUd (FHC) (empresários da comitiva)

ILx = os juros são escorchantes

TUi

(outros

empresários)

ILo = todo empresário no Brasil reclama

das taxas de juros

As razões que nos levam a compreender o ato acima, na extensão da análise que

estamos propondo, apontam para diversos fatos que precisam ser, complementarmente,

justificados. O primeiro ponto diz respeito aos dois universos discursivos que estão aqui

representados: ILo representa um consenso sobre a política financeira imposta pelo

governo e usada, comumente, para criticá-lo; ILx traduz apenas uma expropriação por

parte do JEc (que é equivalente a JEé) daquilo que é uma voz corrente na sociedade, mas

que não representa o seu discurso sobre o assunto em pauta. Quando, então, JEé enuncia

ILx, ele o faz pretendendo construir uma imagem de TUd que seja benéfica a TUi, o

8 In: Folha de São Paulo. 30-05-1996.

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suporte da interpretação. JEc opera, desta forma, tentando tornar TUd o alvo de suas

preocupações, de seu interesse, querendo mostrar-se próximo a ele, mesmo nas

circunstâncias difíceis, como um procedimento para neutralizar quaisquer iniciativas

críticas de TUi. O objetivo deste ato é fazer com que TUi se torne sensível às

preocupações de JEc, fazendo daquele um cúmplice de suas teses. No fundo, o que JEc

pretende é que as condições de TUi sejam alteradas, para que ele possa se identificar ao

destinatário. Além do mais, a este conjunto de informações podemos acrescentar, como

representante da demagogia, o fato de o governo estar assumindo um tal discurso, que

não corresponde a ações concretas, apenas pelo fato de ser um discurso que tem um

apelo popular fácil. Logo, uma vez que todos pensam que os juros são escorchantes, nada

é mais conveniente para o governo do que também fazê-lo.

Na seqüência, apresentaremos, numa visão ampla, observações sobre a

estruturação enunciativa de outros atos de linguagem que não estão incluídos na proposta

original de Charaudeau, mas que podem ser justificados, a partir do padrão metodológico

proposto.

4.5 -Verdade:

O ato de linguagem da verdade pode ser determinado, quanto aos elementos que

compõem o processo enunciativo, considerando-se as seguintes condições:

1. JEé diz p (ILx);

2. JEc pensa p (ILo);

3. JEc o faz de sorte que TUd e TUi julguem que ele pense p;

4. TUi admite que JEc, de fato, pense p.

As exigências que podem configurar este ato de linguagem decorrem das

condições gerais acima, conforme especificação seguinte: (a) a existência de um

enunciador, JEé, que diz p, a partir de um JEc que pensa também p. A confluência entre

pensar e dizer, na extensão do lugar do locutor, requer, em particular, que JEc, sujeito

comunicante, seja capaz de fazer com que TUd e TUi aceitem o fato de ele pensar p; (b)

o esforço de JEc precisa ser ratificado pela posição de TUi que não pode duvidar de que

JEc, de fato, pense p. Uma verdade, avaliada nos termos da enunciação, então, só pode

ser concebida, considerando-se necessária a compatibilidade entre os diversos lugares

enunciativos, porque um desvio na condição (2) acima, (JEc pensa não-p), nos levaria ao

ato da mentira, conforme mostramos em 4.1, ou um desvio em (4), (TUi admite que JEc,

de fato, pense não-p) nos remeteria ao equívoco , conforme 4.6, abaixo.

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Por outro lado, é importante, dentro do processo enunciativo, considerar a

possibilidade de ocorrência simultânea destes dois desvios. Este fato nos conduziria a

uma refutação da mentira (Cf. 4.1, Quadro 2a), o que pode configurar, em algum sentido,

uma restauração da verdade. Restaurar esta última, em razão da contestação daquela, só

pode ser validado do ponto de vista lógico: de fato, se afirmamos que “p é falso” (por

exemplo, “Está chovendo” é falso), podemos reverter a sua falsidade, dizendo “não-p é

verdadeiro” (“Não está chovendo” é verdadeiro). Se assumirmos, então, o estatuto desta

falsidade como equivalente à mentira, pode-se dizer que a sua negação resgata a verdade.

Vamos considerar agora a refutação da mentira num formato enunciativo, reescrevendo

as condições acima da seguinte maneira:

1a. JEé diz p (ILx);

2a. JEc pensa não-p (ILo);

3a. JEc o faz de sorte que TUd e TUi julguem que ele pense p;

4a. TUi admite que JEc, de fato, pense não-p.

O que fizemos, ao transformar a condição (2) em (2a) e (4) em (4a), foi, internamente,

também uma operação lógica de negação de p. Aqui, entretanto, parece residir uma

diferença com o caso anterior: a dimensão enunciativa coloca em jogo algo mais do que a

mera negação de um conteúdo proposicional, isto é, ela instaura a contradição (onde não

deveria existir - relação entre (1a) e (2a)) e ela refuta a contradição (onde deveria existir -

relação entre (2a) e (4a)). Assim, a primeira relação nos leva à instauração da mentira e a

segunda à sua refutação. Neste caso, entretanto, negar a mentira não pode implicar a

recuperação da verdade, porque, mesmo que a operação lógica da negação possa atuar

sobre o conteúdo proposicional, ela não atua sobre a intenção dos locutores ao construir a

mentira, a relação entre (1a) e (2a). Assim, a negação contida em (4a), como forma de

negar a mentira, não afeta aquilo que há de fundamental na sua construção, ou seja, o

descompasso intencional entre o fato de JEc pensar não-p e JEé dizer p. Concluindo, a

recusa da mentira pode nos levar à restituição da verdade, em termos do conteúdo

proposicional, usado para mentir - verdade semântica, mas não nos leva a conhecer, de

fato, as razões pelas quais os locutores mentem, logo, não recupera, digamos, a verdade

enunciativa.9

4.6 - Equívoco:

9 É importante ressaltar aqui a necessidade de um aprofundamento de uma diferença, que parece acentuar,

entre falsidade e mentira, na medida em que nos lançamos a uma discussão destes termos num outro padrão,

o dos processos enunciativos.

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Outro ato de linguagem que vamos tentar justificar aqui lembra um certo tipo de

desencontro interativo, a que estamos chamando de equívoco e que pode ser justificado, a

partir das seguintes condições gerais:

1. JEé diz p (ILx);

2. JEc pensa p (ILo);

3. JEc o faz de sorte que TUd e TUi julguem que ele, de fato, pense p;

4. TUi admite que JEc pense não-p

Estas condições propostas, na tentativa de uma estruturação do ato do equívoco,

reproduzem, com as alterações devidas, os argumentos que já foram apresentados para

justificar tanto a verdade, como a mentira. Assim, o equívoco aparece contraposto à

primeira, em razão do teor da condição (4) (para a verdade temos (4) = TUi admite que

JEc, de fato, pense p), como já mostramos. Quanto à segunda, o equívoco poderia ser

traduzido como uma forma de mentira “construída” pelo alocutário. Haveria, portanto,

uma inversão do valor negativo das condições (2) e (4): enquanto na construção da

mentira a condição (2) indicaria “JEc pensa não-p” e a (4), “TUi admite que JEc pense

p”, na do equívoco a condição (2) indicaria “JEc pensa p” e (4) “TUi admite que JEc

pense não-p”.

Na construção específica deste ato deve ser destacado, pois, o teor da condição

(4). A admissão de que “JEc pense não-p” comporta, ao menos, duas interpretações: uma

conduz ao equívoco e justificaria a admissão desta proposição em termos de meros

descuidos, de uma descrença generalizada de TUi sobre a enunciação de JEé; outra

assinala, de modo contundente, uma oposição sobre aquilo que é anunciado. Aqui

prevalece a intenção de TUi de se contrapor a JEc; neste caso, estaríamos diante de um

ato de contestação e não mais do equívoco. Uma compreensão melhor deste contraste de

intenções requer um conjunto de práticas discursivas mais extenso, só assim podemos

determinar um outro formato de funcionamento para a condição (4), fixando algum

aspecto que lembre a intenção deliberada de TUi de se contrapor a JEc, para a

contestação.

4.7 - Boato

Por fim vamos tentar esquematizar, em termos dos componentes do processo

enunciativo, as condições que devem ser satisfeitas para que um ato de linguagem, como

o boato, possa ser justificado.

1. JEé diz p (ILx);

2. JEc, intencionalmente, inventa p (ILo);

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3. JEc o faz de sorte que TUd e TUi julguem que p exista;

4. TUi admite que, de fato, p exista.

A partir das condições gerais acima, podemos apresentar as seguintes observações

gerais, como forma de justificar o funcionamento do boato: (a) um enunciador diz p, que

representa uma invenção do comunicante, JEc, que, por sua vez, o faz de tal forma que

TUd e TUi possa aceitar a existência de p (a invenção de p, certamente, requer traços

como naturalidade, factividade e verossimilhança); (b) a existência de p, por seu lado, é

reforçada em razão da sua admissão pelo interpretante TUi. É importante destacar, no

caso deste ato, a presença de operadores metalingüísticos como intencionalmente e

inventa. Os aspectos que deles podemos derivar (aspectos argumentativos de sedução, de

persuasão, de convencimento) são mais importantes para enunciação, do que a simples

qualificação lógica da falsidade de p (também possível para este ato). Como o boato é

uma construção discursiva, por excelência, produto de uma intenção deliberada de JEc

numa circunstância enunciativa dada, ressalta, na sua existência, a presença do JEc como

força determinante das condições enunciativas de JEé. A natureza do boato, neste

particular, atesta o teor paradigmático de JEé como criação de JEc, pois aquele só pode

atuar, discursivamente, depois de JEc criar as condições de existência de p.

5. Conclusão

Ao concluir este texto, gostaríamos de deixar evidenciadas aqui duas

preocupações distintas e quase sempre complementares, as quais se fizeram presentes no

curso da nossa reflexão. Destacamos, portanto, as dificuldades que, com mais freqüência,

rondaram as nossas discussões, bem como as perspectivas que, no estágio atual de

compreensão da teoria, conseguimos antever.

No âmbito das dificuldades, destacamos o grau de complexidade envolvido na

análise de questões relativas aos atos de linguagem, na sua dimensão enunciativa. Há

aspectos localizados como aqueles relacionados a uma avaliação empírica de “pensa p”

ou “pensa não-p” que acabam por nos conduzir à necessidade de uma contra-prova do ato

em questão. Por exemplo, ao analisar a mentira, foi necessário recorrer a uma contra-

prova, isto é, à sua contestação, pois só esta tornaria possível conceber uma contradição

entre as duas instâncias do locutor. Isso, porém, introduz uma certa exterioridade no

reconhecimento da mentira que pode ser assim descrita: os fatos que são dados à

percepção decorrem da performance de JEé e, para que aquilo que ele diz seja admitido

como mentira (logo, por algum critério exterior) é necessário voltarmos a JEc e ali negar

o que foi dito. Este procedimento torna-se amplo em demasia, pois estipula que, a

princípio, quaisquer manifestações de JEé possam ser transformadas em mentira.

Entretanto, restrições a serem impostas àquilo que JEé enuncia correm o risco de

determinar, para o esquema proposto, apenas um caráter descritivo, isto é, dado que um

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fato se traduz pela mentira, então, podemos descrever-lhe a forma de existência; e só

podemos admitir que algo tenha esta natureza, se para ele tivermos provas em contrário.

Assim admitida a questão, não é o processo enunciativo que engendra a mentira, mas ele

é usado apenas para descrevê-la. Há dificuldades também associadas a aspectos gerais

como a necessidade de se avaliar, de modo mais preciso, se as condições enunciativas

propostas são suficientes para determinar uma tipologia de atos, ou se deveríamos

recorrer a outros parâmetros de natureza lingüística ou extralingüística para uma

justificativa mais concisa. Todas estas dúvidas, se válidas, ainda estão a requerer um

aprimoramento conceitual mais preciso, bem como uma ampliação do alcance empírico

de sua avaliação. A reflexão teórica desenvolvida teve o objetivo de, meramente, recortar

e explicar os fenômenos numa dimensão ampla e o corpus aqui utilizado serviu apenas

para ilustrar parte da estruturação dos atos analisados.

Quanto às perspectivas, que pese as dificuldades destacadas, o quadro teórico

proposto por Charaudeau orienta para um alcance promissor de compreensão do processo

enunciativo. As vantagens contidas na sua proposta parecem apontar para duas direções.

De um lado, o desdobramento dos lugares enunciativos possibilita uma avaliação de

categorias como implícito/explícito, intenção/convenção, na medida em que podem ser

traduzidas como componentes e relações no interior de um jogo de opacidades e de

transparências, inerentes ao processo enunciativo. É claro que esta orientação, aqui

apontada, ainda exige um confronto com a tradição semântica de análise do

implícito/explícito, na dimensão proposicional; da mesma forma requer uma aproximação

com a Teoria dos Atos de Fala, para uma reavaliação de categorias como

intenção/convenção. De outro lado, e talvez com um destaque mais relevante, o teor que

foi atribuído à organização de alguns atos de linguagem, através de suas condições

enunciativas, parece indicar possibilidades de formulação de uma estrutura geral para os

atos e dela derivar, recursivamente, atos específicos. A correlação entre um ato e outro,

ocasionada pela alteração de certas condições enunciativas, parece sugerir alguma

investida mais decisiva nesta direção.