problema do sofrimento: c. s. lewis

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  • 8/14/2019 Problema do Sofrimento: C. S. Lewis

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    OPROBLEMA

    DOSOFRIMENTO

    C.S. LEWISSe Deus bome todo-poderoso

    por que permite quesua criatura

    sofra?

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    O Autor

    Nascido na Irlanda em 1898, C. S. Lewis estudou no Malvem College durante umano, recebendo a seguir uma educao ministrada por professores particulares. Eleformou-se em Oxford, tendo trabalhado como professor no Magdalen College de 1925 a1954. Em 1954 tornou-se Catedrtico de Literatura Medieval e Renascentista emCambridge. Foi um conferencista famoso e popular, exercendo grande influncia sobreseus alunos.

    C. S. Lewis conservou-se ateu por muitos anos, tendo descrito sua converso nolivro "Surprised by Joy": "No Termo da Trindade de 1929 entreguei os pontos e admitique Deus era Deus. . . talvez o convertido mais desanimado e relutante de toda a

    Inglaterra." Foi esta experincia que o ajudou a compreender no apenas a apatia mastambm a resistncia ativa por parte de certas pessoas em aceitarem a idia de religio.Como escritor cristo, caracterizado pelo brilho e lgica excepciona is de sua mente e porseu estilo lcido e vivo, ele foi incomparvel. O Problema do Sofrimento, Cartas doInferno, Cristianismo Autntico, Os Quatro Amores e As Crnicas de Nrnia so apenasalguns de seus trabalhos mais vendidos. Ele escreveu tambm livros excelentes paracrianas e outros de fico cientfica, alm de muitas obras de crtica literria. Seustrabalhos so conhecidos por milhes de pessoas em todo o mundo atravs de tradues.C. S. Lewis morreu a 22 de novembro de 1963, em sua casa em Oxford, Inglaterra.

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    ndice

    Prefcio .............................................................. 04

    1. Introduo ...................................................... 05

    2. A Onipotncia Divina .................................... 13

    3. A Bondade Divina ......................................... 19

    4. A Maldade Humana ....................................... 30

    5. A Queda do Homem ...................................... 38

    6. O Sofrimento Humano ................................... 51

    7. O Sofrimento Humano (continuao)............. 64

    8. O Inferno ....................................................... 69

    9. O Sofrimento dos Animais ............................ 76

    0. O Cu ............................................................. 85

    Apndice ............................................................ 92

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    PrefcioQuando o Sr. Ashiey Sampson sugeriu-me que escrevesse este livro, pedi licena

    para faz-lo anonimamente, desde que, se tivesse de dizer aquilo que realmente pensosobre o sofrimento, seria forado a fazer declaraes aparentemente to fortes que setornariam ridculas se algum soubesse quem as fizera. O anonimato foi rejeitado comoinconsistente com a srie; mas o Sr. Sampson afirmou que eu poderia escrever umprefcio explicando que no vivia de acordo com os meus princpios! E este divertidoprograma que estou agora levando a cabo. Deixem que confesse, imediatamente, naspalavras do bondoso Walter Hilton, que atravs de todo este livro "sinto-me to distantede sentir realmente aquilo que falo, que no posso seno pedir misericrdia e desejaralcanar tais sentimentos na medida do possvel".* Todavia, justamente por essa razo,existe uma crtica que no pode ser feita contra mim. Ningum pode afirmar: "Ele zombade cicatrizes onde no existiu ferimento algum", pois eu nunca, em nenhum momento,estive num estado de esprito em que at mesmo a idia de sofrimento grave fosse menosdo que intolervel. Se qualquer homem est a salvo do perigo de subestimar esteadversrio, eu sou esse homem. Devo tambm acrescentar que o nico propsito do livro resolver o problema intelectual criado pelo sofrimento; para a tarefa mais elevada deensinar coragem e pacincia jamais fui tolo o bastante para considerar-me qualificado,nem tenho qualquer coisa a oferecer aos meus leitores exceto minha convico de quequando preciso suportar a dor, um pouco de coragem ajuda mais do que muitoconhecimento, um pouco de simpatia humana tem mais valor do que muita coragem, e a

    menor expresso do amor de Deus supera tudo.Se um verdadeiro telogo ler estas pginas ver facilmente que so obra de um leigo

    e amador. Exceto nos dois captulos finais, partes dos quais so admitidamenteespeculativas, acredito que confirmei doutrinas antigas e ortodoxas. Se quaisquer partesdo livro mostraram-se "originais", no sentido de serem novidade ou no-ortodoxas, issoaconteceu contra a minha vontade e como resultado de minha ignorncia. Escrevo,naturalmente, como leigo da Igreja da Inglaterra: mas tentei no presumir nada que nofosse professado por todos os cristos balizados e participantes.

    Como esta no uma obra erudita, no me preocupei em traar as idias e citaesat suas fontes quando no houve facilidade em faz-lo. Qualquer telogo descobrirfacilmente o que, e quo pouco, tive oportunidade de ler.

    C. S. LEWIS

    Magdalen College, Oxford, 1940

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    Introduo

    Fico surpreendido com a audcia com que algumas pessoas se encarregam de falar sobre Deus.Num tratado dirigido a mpios, elas comeam com um captulo provando a existncia de Deus medianteas obras da Natureza. . . isto apenas confere aos leitores base para pensar que as provas de nossareligio so muito fracas. . . notvel o fato de que nenhum escritor cannico jamais fez uso da

    Natureza para provar Deus.

    PASCAL. Pendes, 4, 242. 243.

    H poucos anos, quando eu era ateu, se algum me perguntasse: "Por que vocno cr em Deus" minha resposta teria sido mais ou menos esta: "Veja o universo em quevivemos. Sua maior parcela consiste de espao vazio, completamente escuro einconcebivelmente frio. Os corpos que se movem nesse espao so to poucos e topequenos em comparao com o espao em si que, mesmo que cada um deles fosseconsiderado como estando abarrotado, at o seu ponto mximo, de criaturasperfeitamente felizes, ainda assim seria difcil crer que a vida e a felicidade fossem maisdo que um subproduto do poder que fez o universo."

    Da forma como est, porm, os cientistas pensam que muito poucos dentre os sis do

    espao talvez nenhum deles exceto o nosso possuem quaisquer planetas; e emnosso sistema improvvel que qualquer planeta exceto a Terra tenha vida. A prpriaexistiu sem vida por milhares de anos e pode continuar existindo durante outros milhesquando a vida a tiver deixado. E, como ela enquanto dura? organizada de maneira talque todas as suas formas s podem viver custa umas das outras.

    "Nas formas inferiores, este processo impe a morte, mas nas superiores surge umanova qualidade chamada de percepo que as capacita a se associarem com o sofrimento.As criaturas provocam sofrimento ao nascer, vivem infligindo sofrimento, e sofrendomorre a maior parte. Na mais complexa de todas as criaturas, o Homem, existe ainda umaoutra qualidade que chamamos de razo, mediante a qual ele capaz de prever o seuprprio padecer que desde ento precedido de forte angstia mental, e a prever sua

    prpria morte embora almeje avidamente a permanncia."Ele tambm capacita os seres humanos, atravs de centenas de invenes

    engenhosas, a infligir muito mais dor do que de outra forma poderiam provocar uns nosoutros ou nas criaturas irracionais. Este poder foi por eles explorado ao mximo. A sua

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    histria , na sua maior parte, um registro de crimes, guerras, doenas e terror, comapenas aquela pitada de felicidade suficiente para dar-lhes, enquanto dura, um medoagoniado de perd-la; e, quando ela se perde, a misria pungente da lembrana. De vezem quando eles melhoram um pouco sua condio e surge o que chamamos decivilizao. Mas, todas as civilizaes desaparecem e, mesmo enquanto perduram,infligem sofrimentos peculiares suficientes para exceder qualquer alvio que tenhamproporcionado aos padecimentos normais do homem.

    "Que nossa civilizao fez isso, ningum pode negar; que ela desaparecer comotodas as que a precederam, bastante provvel. Mesmo que isso no acontea, e ento? Araa est condenada. Toda raa que surge em qualquer parte do universo est condenada;pois o universo, segundo dizem, est cansado, e ir transformar-se um dia em umainfinidade uniforme de matria homognea a baixa temperatura. Todas as histriasacabaro em nada: toda vida se mostrar no final como sendo apenas uma contorotransitria e sem sentido sobre a face idiota da matria infinita. Se voc me pedir paraacreditar que esta a obra de um esprito benevolente e onipotente, replico que todaevidncia aponta na direo oposta. Ou no existe esprito por trs do universo, ou entoexiste um esprito indiferente ao bem e ao mal, ou seja, um esprito perverso". Existe umapergunta que jamais pensei em fazer. Nunca notei que a prpria fora e simplicidade docaso dos pessimistas nos colocava imediatamente diante de um problema. Se o universo mau, ou mesmo um tanto mau, como foi possvel aos seres humanos atribu-lo atuaode um Criador sbio e bondoso? Os homens so tolos, talvez; mas no to tolos assim. Ainferncia direta do preto para o branco, da flor do lodo para a raiz virtuosa, da obra semsentido para um obreiro infinitamente sbio, faz vacilar a crena. O espetculo douniverso como revelado pela experincia jamais pode ter sido a base da religio: deve ter

    sempre sido algo a despeito do qual a religio, adquirida de uma outra fonte, foi mantida.Seria um erro replicar que nossos ancestrais eram ignorantes e, portanto entretinham

    agradveis iluses sobre a natureza, as quais o progresso da cincia desde ento dissipou.Durante sculos, em que todos os homens criam, o tamanho e o vazio do universo j eramconhecidos. Podemos ler em alguns livros que os homens da Idade Mdia pensavam quea Terra era plana e que as estrelas estavam prximas, mas isso uma mentira. Ptolomeulhes dissera que a Terra era um ponto matemtico sem tamanho em relao distnciadas estrelas fixas uma distncia que um texto popular medieval estima como sendo decento e dezessete milhes de milhas. E em tempos ainda mais antigos, mesmo no incio,os homens devem ter tido a mesma sensao de imensidade hostil de uma fonte aindamais bvia.

    Para o homem pr-histrico, a floresta circundante deve ter sido suficientementeinfinita, e aquilo que era sobremaneira estranho e inquietante, que temos de buscar naidia de raios csmicos e sis sem calor, vinha fungar e uivar toda noite sua porta. Osofrimento e desperdcio da vida humana foi com certeza igualmente bvio em todos os

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    perodos. Nossa prpria religio comea entre os judeus, um povo espremido entregrandes imprios guerreiros, continuamente derrotado e aprisionado, familiarizado com aPolnia ou a Armnia com a trgica histria dos vencidos. No passa de tolice colocar osofrimento entre as descobertas da cincia. Deixe este livro de lado e reflita durante cincominutos sobre o fato de que todas as grandes religies foram primeiras pregadas, epraticadas longamente, num mundo onde no existia o clorofrmio.

    Em toda poca, ento, uma inferncia a partir do curso dos acontecimentos nestemundo at a bondade e sabedoria do Criador teria sido igualmente descabida; e jamais foifeita.1 A religio tem uma origem diferente. No que se segue, deve ficar entendido queno estou principalmente argumentando a verdade do cristianismo, mas descrevendo asua origem tarefa essa, a meu ver, necessria, se devemos colocar o problema dosofrimento em seu cenrio correto.

    Em toda religio desenvolvida encontramos trs fios ou elementos, e no cristianismoum a mais. O primeiro deles o que o Professor Otto chama de experincia do numinoso.Os que no conhecem este termo podem entend-lo mediante o seguinte artifcio.Suponhamos que lhe dissessem que havia um tigre no cmodo ao lado: voc saberia queestava em perigo e provavelmente sentiria medo. Mas se lhe dissessem que "h umfantasma no quarto ao lado" e voc acreditasse, sentiria com certeza o que geralmentechamado de medo, mas de um tipo diferente. Seu sentimento no teria como base a idiade perigo, pois ningum tem praticamente medo do que um fantasma pode fazer-lhe, maso simples fato de tratar-se de um fantasma. Ele "misterioso" em lugar de perigoso, e otipo especial de medo que provoca pode ser chamado de pavor.

    Com o misterioso chegamos s fronteiras do numinoso. Suponhamos agora que lhedissessem simplesmente: "Existe um esprito poderoso nesta sala" e voc acreditasse.Seus sentimentos seriam ento ainda menos parecidos com o mero receio do perigo: mas

    a perturbao seria profunda. Voc ficaria espantado e gostaria de recuar umsentimento de insuficincia para enfrentar tal visitante e de fraqueza diante dele emoo essa que poderia ser traduzida nas palavras de Shakespeare: "Sob ele o meugnio reprovado". Este sentimento pode ser descrito como reverncia, e o objeto que odesperta como o numinoso.

    No existe nada mais certo do que o fato de o homem, desde um perodo muitoprimitivo, ter comeado a crer que o universo era assombrado por espritos. O ProfessorOtto supe talvez com demasiada facilidade que desde o incio tais espritos eramconsiderados com reverncia numinosa. Isto impossvel de provar por uma razo muitoboa os pronunciamentos que expressam reverncia em relao ao numinoso e os queexpressam simples medo do perigo podem fazer uso de linguagem idntica. Haja vista,que podemos hoje dizer que temos "medo" de um fantasma ou que temos "medo" da altados preos.

    1 I.e., jamais feita nos primrdios de uma religio. Depois de a f em Deus ter sido aceita, "teodicias"explicando, ou justificando, as misrias da vida, iro naturalmente surgir com bastante freqncia.

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    , portanto teoricamente possvel que houvesse tempo em que os homensconsiderassem esses espritos simplesmente como perigosos e se sentissem em relao a

    eles exatamente como se sentiam em relao aos tigres. O que certo que agora, pelomenos, a experincia numinosa existe e, se comearmos a partir de ns mesmos,podemos faz-la retroceder at a muito tempo.

    Um exemplo moderno pode ser encontrado (se no formos orgulhosos demais parabusc-lo ali) no livro "The Wind in the Willows" onde Rato e Toupeira se aproximam dePan na ilha.

    Rato ele encontrou flego para sussurrar tremendo , est com medo? Com medo? murmurou o Rato, com os olhos brilhando de amor indizvel.

    "Com medo? dEle? , jamais, jamais. E, todavia, todavia, . Toupeira, estou com medo.Retrocedendo um sculo, descobrimos copiosos exemplos em Wordsworth talvez

    sendo o melhor aquela passagem no primeiro livro do Preldio (Prelude) onde eledescreve a sua experincia enquanto remava no lago em um bote roubado. Voltandoainda mais no tempo obtemos um exemplo muito forte e puro em Malory2, quandoGalahade "comeou a tremer demasiado no momento em que a carne mortal passou acontemplar as coisas espirituais". No incio de nossa era ele encontra expresso noApocalipse onde o escritor caiu aos ps do Cristo ressurreto "como algum que estivessemorto". Na literatura pag, encontramos a descrio de Ovdio do bosque escuro noAventine, do qual se diria num relance, numen inest3 o lugar assombrado, ou h umaPresena aqui; e Virglio nos d o palcio de Latino "terrvel! (horrendum) com florestase santidade (religione) de tempos idos".4

    Um fragmento grego atribudo a Esquilo, fala-nos da terra, do mar e das montanhastremendo debaixo do "olho temvel do seu Mestre". E bem antes disso, Ezequiel fala dos"aros" em sua teofania, dizendo que eram to altos que o amedrontaram; 6 e Jac,acordando do sono, diz: "Que lugar terrvel este!"7

    No sabemos at que ponto na histria este sentimento retrocede. Os homensprimitivos com toda certeza acreditavam em coisas que iriam fazer nascer em ns essesentimento se crssemos nelas, e parece ento provvel que a reverncia numinosa sejato antiga quanto a prpria humanidade. Nossa principal preocupao no , porm, dat-lo. O importante que de uma ou outra forma ele veio a existir e se difundiu, nodesaparecendo da mente humana com o desenvolvimento do saber e da civilizao.

    Esta reverncia no resultado de algo implcito do universo visvel. No existepossibilidade de argumentar a partir do simples perigo at o "misterioso", e menos aindaao plenamente numinoso.

    2 XVII, xxii.3 f'asti, III, 296.4 Aen. VII, 172,5 Fragmento 464. Sidgwick's edition.6 Ez 1:187 Gn 28:17

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    Voc pode dizer que lhe parece muito natural que o homem primevo, cercado porperigos reais, e portanto amedrontado, viesse a inventar o misterioso e o numinoso. De

    certa forma isso verdade, mas vamos primeiro entender o nosso significado. Voc achaisso natural porque, partilhando da natureza humana com seus ancestrais remotos, podeimaginar-se reagindo aos perigos da solido da mesma forma;e esta reao sem dvida "natural" no sentido de conformar-se natureza humana. Elano de maneira alguma "natural", entretanto, no que se refere idia do misterioso ounuminoso j estar contida no conceito de perigo, ou que qualquer percepo deste ouqualquer rejeio da mgoa e da morte que ele possa trazer conseguisse transmitir amenor compreenso do pavor fantasmagrico ou reverencia numinosa a uma intelignciaque ainda no tivesse qualquer idia sobre os mesmos.

    Quando o homem passa do medo fsico para o temor e reverncia, ele d umverdadeiro salto, e passa a apreender algo que jamais poderia ser transmitido, como operigo, plos fatos fsicos e dedues lgicas extrados deles. A maioria das tentativas de

    explicar o numinoso pressupe a coisa a ser explicada como quando os antroplogos afazem derivar do temor dos mortos, sem explicar por que homens mortos (com certeza aespcie menos perigosa de homens) deveriam atrair este sentimento peculiar. Contratodas essas tentativas, devemos insistir que o temor e a reverncia se acham numadimenso diferente daquela do medo. Eles so uma espcie de interpretao que ohomem d ao universo, ou uma impresso que obtm dele. Assim como enumeraoalguma das qualidades fsicas de um bonito objeto jamais poderia incluir a sua beleza, oudar a menor idia do que consideramos beleza a algum que no possua experinciaesttica, assim tambm nenhuma descrio factual de qualquer ambiente humano poderiaincluir o misterioso e o numinoso ou sequer aludir a eles.

    Ao que parece ento, s existiam dois pontos de vista que podemos manter comrelao reverncia. Ou se trata de uma simples distoro da mente humana, que no

    corresponde a nada objetivo e no serve a nenhuma funo biolgica, mas que nomostra qualquer tendncia de desaparecer dessa mente, mostrando-se no seu mais plenodesenvolvimento no poeta, filsofo ou santo; ou, por outro lado, se trata de umaexperincia direta daquilo que verdadeiramente sobrenatural, a que pode serapropriadamente dado o nome de Revelao.

    O numinoso no se identifica com o que moralmente bom, e o homem cheio dereverncia ir provavelmente, se deixado aos seus prprios recursos, pensar no objetonuminoso como "transcendendo o bem e o mal". Isto nos leva ao segundo fio ouelemento na religio.

    Todos os seres humanos de que a histria ouviu falar reconhecem algum tipo demoralidade; isto , eles tm em relao a certas atitudes propostas o sentimento que seexpressa atravs das palavras:

    "Devo" ou "No devo". Essas experincias se assemelham reverncia em umaspecto, a saber, elas no podem ser logicamente deduzidas do ambiente e dasexperincias fsicas do homem que as sofre. Voc pode tentar escolher entre "quero" e"sou forado a", "ser bom" e "no ouso" quanto tempo quiser sem tirar dessas frasesqualquer ilao em relao a "devo" ou "no devo". Assim sendo, mais uma vez, as

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    tentativas de converter as experincias morais em outra coisa, sempre pressupemexatamente aquilo que esto tentando explicar como quando um famoso analista a

    deduz do parricida pr-histrico. Se o parricdio produziu uma sensao de culpa, isso foiporque os homens julgaram que no deveriam t-lo cometidos: se no se sentissem assim,no teria produzido sentimento de culpa. A moralidade, assim como a reverncianuminosa, um salto; nela, o homem ultrapassa qualquer coisa que possa ser"transmitida" nos fatos da experincia. Ela possui uma caracterstica demasiado notvelpara ser ignorada. Os conceitos morais aceitos pelos homens podem diferir mas todosconcordam em prescrever um comportamento que os seus adeptos falham em praticar.

    Todos os homens esto igualmente condenados, no por cdigos de tica estranhos,mas pelo seu prprio, e assim todos tm conscincia de culpa. O segundo elemento nareligio a conscincia, no apenas de uma lei moral, mas de uma regra moral tantoaprovada como desobedecida. Esta conscincia no uma inferncia lgica nem ilgicados fatos da experincia; se no a trouxssemos nossa experincia, no a

    encontraramos nela. Ou se trata de uma iluso inexplicvel, ou de revelao.A experincia moral e a experincia numinosa esto to longe de ser a mesma coisa

    que podem coexistir por longos perodos sem estabelecer contato mtuo. Em muitasformas de paganismo a adorao dos deuses e as discusses ticas dos filsofos poucotm a ver umas com as outras. O terceiro estgio no desenvolvimento religioso surgequando o homem os identifica quando o Poder Numinoso em relao ao qual sentemreverncia se torna o guardio da moral que consideram obrigatria. Mais uma vez, istopode parecer-lhe muito "natural". O que pode ser mais natural para um selvagemperseguido ao mesmo tempo pela reverncia e pela culpa do que pensar que o poder queo apavora tambm a autoridade que condena seu erro? E isso , na verdade, natural parao ser humano, embora no seja o mais bvio.

    O comportamento real desse universo assombrado pelo numinoso no se assemelha

    de modo algum quele exigido de ns pela moralidade. Um deles parece destrutivo, cruele injusto; o outro nos impe as qualidades opostas. A identificao dos dois tambm nopode ser explicada como a satisfao de um desejo, pois no satisfaz o desejo deningum. O que desejamos nada menos que ver essa Lei cuja autoridade crua j insuportvel, armada com as reivindicaes incalculveis do numinoso. De todos ossaltos dados pela humanidade em sua histria religiosa, este com certeza o maissurpreendente. No de admirar que muitas sees da raa humana o tivessem recusado;a religio no-moral e a moral no-religiosa existiram e continuam a existir. Talvez umnico povo, como povo, deu o novo passo com perfeita deciso isto , os judeus: masgrandes personagens em todos os tempos e lugares tambm o deram, e somente os quefazem isso esto a salvo das obscenidades e barbaridades da adorao imoral ou domoralismo frio e triste da auto-retido. A julgar pelos seus frutos este um passo em

    direo a uma sade melhor. E embora a lgica no nos obrigue a d-lo, difcil resistir mesmo no paganismo e no pantesmo a moral est sempre surgindo, e at mesmo oestoicismo, quer queira quer no, se v dobrando o joelho diante de Deus.

    Mais uma vez pode ser loucura, uma loucura congnita ao homem esurpreendentemente feliz em seus resultados, ou pode ser revelao. Se for revelao,

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    ser ento real e verdadeiramente em Abrao que todos os povos vo ser abenoados,pois foram os judeus que identificaram plena e inequivocamente a Presena terrvel

    assombrando os picos escuros das montanhas e nuvens com "o Senhor justo" que "ama ajustia".8

    O quarto fio ou elemento um evento histrico. Houve um ho mem nascido entreesses judeus que alegava ser, ou o filho de, ou ser "um com", o Algo que ao mesmotempo o terrvel assombrador da natureza e o autor da lei moral. A alegao tochocante um paradoxo, e at mesmo um horror, que podemos com toda facilidade serlevados a aceit- la levianamente que somente duas opinies sobre esse homem setornam possveis. Ou ele foi um luntico completo de um tipo singularmente abominvel,ou, foi, e , precisamente aquilo que afirmou. No existe meio termo. Se os registrostornarem a primeira hiptese inaceitvel, voc precisa ento sujeitar-se segunda. E sefizer isso, tudo o mais reivindicado plos cristos se torna crvel que este Homem,tendo sido morto, estava porm vivo, e que sua morte, de maneira incompreensvel para a

    mente humana, produziu uma real mudana em nossas relaes com o "terrvel" e "justo"Senhor, modificao essa em nosso benefcio.

    Perguntar se o universo como o vemos parece mais o trabalho de um Criador sbio ebom do que obra do acaso, indiferena ou malevolncia, omitir desde o incio todos osfatores relevantes no problema religioso. O cristianismo no a concluso de um debatefilosfico sobre as origens do universo: mas um evento histrico catastrfico que seseguiu ao longo preparo espiritual da humanidade por mim descrito. No se trata de umsistema no qual temos de encaixar o fato embaraoso do sofrimento: mas , ele mesmo,um dos fatos embaraosos que precisam ser enquadrados em qualquer sistema por nsplanejado. Num certo sentido, ele cria, em lugar de resolver, problema do sofrimento,pois este no seria um problema a no ser que, lado a lado com nossa experincia diriadeste mundo sofredor, tivssemos recebido o que julgamos ser uma boa certeza de que a

    realidade final justa e plena de amor.Por que esta segurana me parece boa j foi por mim indicado at certo ponto. Nose trata de compulso lgica. Em qualquer estgio do desenvolvimento religioso ohomem pode rebelar-se, se no sem violentar sua prpria natureza, pelo menos seminsensatez. Ele pode fechar seus olhos espirituais ao numinoso, se estiver preparado paraseparar-se da metade dos grandes poetas e profetas de sua raa, de sua prpria infncia,com a riqueza e profundidade da experincia descontrada. Ele pode considerar a leimoral como uma iluso e assim distanciar-se da base comum da humanidade. Poderecusar-se a identificar o numinoso com o justo, e permanecer ainda um brbaro,adorando a sexualidade, os mortos, a fora da vida, ou o futuro. Mas o custo alto. Equando chegamos ao ltimo passo, a Encarnao histrica, a segurana a mais forte detodas.

    A histria estranhamente parecida com muitos dos mitos que atemorizaram areligio desde o incio, todavia no como eles. No se mostra transparente razo: nopoderamos t-la inventado. No possui a lucidez suspeita a priori do pantesmo ou dafsica newtoniana.8 SI 11:7

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    Ao que parece, possui o carter arbitrrio e idiossincrtico que a cincia moderna est nos

    ensinando a aceitar neste universo obstinado, onde a energia formada por pequenasparcelas de uma quantidade que ningum pode prever, onde a velocidade no ilimitada,onde a entropia irreversvel d ao tempo uma direo real e o cosmos, no mais estticoou cclico, se move como num drama, de um incio real para um fim real. Se qualquermensagem do mago da realidade tivesse algum dia de alcanar-nos, deveramos esperarencontrar nela justamente aquela sinuosidade inesperada, irredutvel e dramtica queencontramos na f crist. Ela possui o toque de mestre o sabor spero e viril darealidade, que no foi feita por ns ou, na verdade, para ns, mas que nos golpeia na face.

    Se, em tal base, ou em outras melhores, seguirmos o curso atravs do qual ahumanidade tem sido orientada, e nos tornarmos cristos, encontraremos ento o"problema" do sofrimento.

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    A Onipotncia Divina

    Nada que implique em contradio se encontra, debaixo da onipotncia de Deus.

    TOMAS DE AQUINO. Summ. TheoL, l.' Q XXV, An. 4.

    Se Deus fosse bom, Ele desejaria fazer suas criaturas perfeitamente felizes, e seDeus fosse todo-poderoso poderia fazer tudo o que quisesse. Mas as criaturas no sofelizes. Portanto, falta a Deus bondade, poder, ou ambas essas coisas". Este o problema

    do sofrimento em sua forma mais simples. A possibilidade de responder a ele depende demostrar que os termos "bom" e "todo-poderoso",e talvez tambm o termo feliz, soambguos: pois deve ser admitido desde o incio que se os significados populares ligadosa essas pala vras forem os melhores, ou os nicos possveis, ento o argumento irrespondvel. Neste captulo farei alguns comentrios sobre a idia de onipotncia e, noseguinte, sobre a de bondade.

    Onipotncia significa "poder para fazer tudo, ou todas as coisas".1

    bastante comum, numa discusso com um incrdulo, ouvir dizer que Deus, se existissee fosse bom, faria isto ou aquilo; e ento se declaramos que o ato proposto impossvel,receber a resposta:"Mas pensei que Deus fosse capaz de fazer tudo". Isto faz surgir a questo daimpossibilidade.

    No uso ordinrio da palavra, impossvel geralmente subentende uma clusulasuprimida iniciada com as palavras salvo se, ou exceto, ou ainda a no ser que. Assim, impossvel para mim ver a rua de onde estou sentado escrevendo agora; isto , impossvel ver a rua salvo se eu subir ao andar superior de onde posso olhar por cima doprdio que interfere com a minha viso. Se eu tivesse quebrado a perna diria: "Mas impossvel subir ao andar superior" querendo indicar, porm, que impossvel a noser que apaream alguns amigos que me levem at l. Vamos avanar agora para umplano diferente de impossibilidade, dizendo: ", de qualquer forma, impossvel ver a ruaenquanto eu permanecer onde estou e o prdio intermedirio continuar onde est".Algum poderia acrescentar: "a no ser que a natureza do espao, ou da viso, fossediferente do que ". No sei o que os melhores filsofos e cientistas responderiam a isto,

    mas eu teria de replicar: "No sei se o espao e a viso poderiam possivelmente ter sidode uma natureza tal como a que voc sugere."

    Fica ento claro que as palavras poderiam possivelmente referir-se aqui a algumaespcie absoluta de possibilidade ou impossibilidade diversa das possibilidades eimpossibilidades relativas que temos considerado. No sei se ver para alm da esquina ,

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    neste novo sentido, possvel ou no, pois no sei se se trata ou no de umaautocontradio. Sei, porm muito bem que se for autocontraditrio absolutamente

    impossvel. O absolutamente impossvel pode ser tambm chamado de intrinsecamenteimpossvel porque leva consigo a sua impossibilidade, em lugar de tom-la deemprstimo de outras impossibilidades que, por sua vez, dependem de outras ainda. Eleno contm qualquer clusula do tipo "salvo se". impossvel sob quaisquer condies eem todos os mundos e para todos os agentes.

    "Todos os agentes" aqui inclui o prprio Deus. A sua onipotncia significa poderpara fazer tudo que intrinsecamente possvel, e no para fazer o que intrinsecamenteimpossvel. possvel atribuir-Lhe milagres, mas no tolices. Isto no um limite ao seupoder. Se disser: "Deus pode dar a uma criatura o livre-arbtrio e, ao mesmo tempo,negar-lhe o livre-arbtrio" no conseguiu dizer nada sobre Deus: combinaes depalavras sem sentido no adquirem repentinamente sentido simplesmente porqueacrescentamos a elas como prefixo dois outros termos: "Deus pode".

    Permanece verdadeiro que todas as coisas so possveis com Deus; asimpossibilidades intrnsecas no so coisas, mas insignificncias (praticamente noexistem). No possvel nem a Deus nem mais fraca de suas criaturas executar duasalternativas que se excluem mutuamente; no porque o seu poder encontre um obstculo,mas porque a tolice continua sendo tolice mesmo quando falada sobre Deus.

    Deve ser, porm lembrado que os raciocinadores humanos com freqncia cometemerros, seja argumentando a partir de dados falsos ou por falha no argumento em si.Podemos chegar assim a pensar coisas possveis que na verdade so impossveis, e vice-versa. 2

    Devemos, portanto, tomar a mxima precauo ao definir aquelas impossibilidadesintrnsecas que nem mesmo a Onipotncia pode realizar. O que se segue no deve serconsiderado como uma afirmativa do que so, mas uma amostra do que poderiam ser.

    As inexorveis "leis da natureza", que operam em desafio ao sofrimento ou mritohumano, que no so detidas pela orao, parecem, primeira vista, fornecer um forteargumento contra a bondade e o poder de Deus. Vou apresentar a idia de que nemmesmo a Onipotncia poderia criar uma sociedade de almas livres sem ao mesmo tempocriar uma natureza "inexorvel" e relativamente independente.

    No h razo para supor que a autoconscincia, o reconhecimento de uma criaturapor si mesma como um "eu", possa existir exceto em contraste com um "outro", algo queno o "eu". contra um ambiente, e preferivelmente um ambiente social, que Eu medestaco. Isto faria surgir uma dificuldade quanto percepo de Deus se fssemossimples testas: sendo cristos, aprendemos da doutrina da Abenoada Trindade que algoanlogo "sociedade" existe no imo do ser divino desde os tempos eternos

    1

    O significado original em latim pode ter sido "poder sobre ou em tudo". Estou dando o que julgo ser aidia corrente.2 E.g., todo truque de magia faz algo que, para a audincia, com sua informao e poder de raciocnio,parece contraditrio.

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    que Deus Amor, no apenas no sentido da forma platnica de amor, mas porque,dentro dEle, as reciprocidades concretas do amor residem desde antes de todos os

    mundos e so assim distribudas s criaturas.Mais uma vez, a liberdade de uma criatura deve significar liberdade de escolha: e

    escolha implica na existncia de coisas a serem escolhidas. Uma criatura sem ambienteno teria escolhas a fazer: assim sendo, a liberdade, como a autoconscincia (se noforem na verdade a mesma coisa) exige novamente a presena no "eu" de algo alm do"eu".

    A condio mnima de autoconscincia e liberdade seria ento que a criatura devesseapreender a Deus e, portanto, ela mesma fosse diferente de Deus. possvel que taiscriaturas existam, conscientes de Deus e de si mesmas, mas no de seus semelhantes.Caso positivo, sua liberdade simplesmente aquela de fazer uma nica e singela escolha:amar a Deus mais do que ao "eu" ou ao "eu" mais do que a Deus. Mas uma vida assimreduzida aos essenciais no pode ser concebida por ns. No momento em que tentamos

    introduzir o conhecimento mtuo dos semelhantes encontramos o obstculo danecessidade da "Natureza".

    As pessoas falam com freqncia como se nada fosse mais fcil do que duas mentessingelas se "encontrarem" ou perceberem uma outra. Mas no vejo possibilidade defazerem isso exceto num meio comum que forma o seu "mundo exterior" ou ambiente.Mesmo nossa vaga tentativa de imaginar tal encontro entre espritos desencarnados nogeral introduz sub-repticiamente a idia de, pelo menos, um espao e um tempo comuns,a fim de dar significado partcula co de coexistncia: e o espao e tempo j so umambiente. Mas, mais do que isto exigido. Se os seus pensamentos e sentimentos mefossem apresentados diretamente, como os meus prprios, sem qualquer sinal de quefossem exteriores ou de outrem, como poderia distingui-los dos meus? E quepensamentos ou sentimentos poderamos ter sem objetos em que pensar ou sentir?

    Poderia eu sequer passar a conceber o "externo" e o "outro" a no ser que tivesse aexperincia de um "mundo externo"? Voc pode responder, como cristo, que Deus (eSatans), de fato, afetam meu consciente desta maneira direta sem sinais "exteriores".Sim: e o resultado que a maioria das pessoas permanece ignorante da existncia deambos. Podemos, portanto, supor que se as almas humanas afetassem umas s outrasdireta e imaterialmente, seria um raro triunfo de f e percepo para qualquer delas crerna existncia das demais.

    Seria mais difcil para mim conhecer meu prximo sob tais condies do que atualmente conhecer Deus: pois ao reconhecer o impacto de Deus sobre mim sou agoraauxiliado por coisas que me atingem atravs do mundo exterior, tais como a tradio daIgreja, as Sagradas Escrituras, e a conversa de amigos religiosos. O que necessitamospara a sociedade humana exatamente aquilo que temos algo neutro, nem voc nem

    eu, que podemos ambos manipular a fim de fazer sinais um para o outro. Posso falar-lheporque podemos os dois estabelecer ondas de som no ar comum entre ns. A matria, quemantm as almas separadas, tambm as une. Ela permite que cada um de ns tenha umaparte "de fora" assim como outra "de dentro", de modo que aquilo que representa paravoc atos de vontade e pensamento so rudos e olhares para mim; voc est capacitado

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    no apenas para ser, mas para aparecer: e, portanto tenho o prazer de conhec-lo.A sociedade, ento, implica num campo comum ou "mundo" em que os seus

    membros se encontram. Se existir uma sociedade angelical, como os cristos tmgeralmente crido, os anjos devem ento possuir tal mundo ou campo; algo que seja paraeles como a "matria" (no sentido moderno e no escolstico) para ns.

    Se a matria, porm, deve servir como um campo neutro, ela precisa possuir umanatureza fixa. Se um "mundo" ou sistema material tivesse um nico habitante, ele poderiaconformar-se a todo o momento com os seus desejos "as rvores para satisfaz-lo juntar-se-iam dando sombra". Mas se voc fosse introduzido num mundo que variassedessa forma a cada capricho meu, ficaria incapacitado de agir nele e perderia ento oexerccio de seu livre-arbtrio. No fica tambm claro se poderia tornar sua presenaconhecida a mim, desde que a matria com que tentou fazer-me sinais j se acha sob omeu controle e, portanto incapaz de ser manipulada por voc.

    De novo, se a matria tem uma natureza fixa e obedece a leis constantes, nem todosos estados da mesma sero igualmente agradveis aos desejos de uma determinada alma,nem sero todos igualmente benficos para esse agregado particular de matria que vocchama de corpo. Se o fogo d conforto a esse corpo de uma certa distncia, ele irdestru-lo quando a distncia for encurtada. Assim, mesmo num mundo perfeito, vemos anecessidade para esses sinais de perigo que as fibras sensveis de nossos nervos destinam-se a transmitir. Isto indica um elemento maligno inevitvel (na forma de dor) emqualquer mundo possvel? No julgo isso, pois embora possa ser verdade que o menorpecado j um mal incalculvel, o mal da dor depende do grau em que se faz sentir, edores abaixo de uma certa intensidade no so praticamente temidas nem sentidas.Ningum se preocupa com o processo: "morno, calor agradvel, quente demais, queima"que o avisa para retirar a mo exposta ao fogo; e, se devo confiar em minhas prpriassensaes, uma leve dor nas pernas quando nos deitamos depois de andar bastante

    durante o dia , de fato, agradvel.

    Repito, ento, que se a natureza fixa da matria impede que seja sempre, e em todas assuas disposies, igualmente agradvel at mesmo para uma nica alma, muito menospoder a matria do universo ser distribuda a qualquer momento de maneira a serigualmente conveniente e agradvel a cada membro de uma sociedade. Se algumviajando numa direo est descendo um monte, outro algum na direo oposta estarsubindo o monte. Se at mesmo um pedregulho estiver onde eu quero que esteja, ele nopoder, exceto por coincidncia, encontrar-se onde voc quer que se encontre. E isto estbem longe de ser um mal: pelo contrrio, fornece ocasio para todos aqueles aios decortesia, respeito e generosidade atravs dos quais o amor, o bom humor e a modstia seexpressam. Mas ele com certeza deixa aberto o caminho para um grande mal, o dacompetio e hostilidade.

    Se as almas forem livres, impossvel evitar que tratem desse problema mediante acompetio em lugar da cortesia. E uma vez que entrem realmente no campo da

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    hostilidade, podero ento explorar a natureza fixa da matria a fim de se magoaremumas s outras. A natureza permanente da madeira que nos capacita a us-la como vigatambm nos permite fazer uso dela para golpear nosso prximo na cabea. A naturezapermanente da matria significa em geral que, quando os seres humanos brigam, a vitriaquase sempre cabe ao que possuir superioridade em armas, habilidades e nmero, mesmoque sua causa seja injusta.

    Podemos, talvez, conceber um mundo em que Deus tenha corrigido os resultadosdeste abuso do livre arbtrio pelas suas criaturas a cada momento: de maneira que umaviga de madeira se tornasse macia como grama se usada como arma, e o ar se recusasse aobedecer-me se tentasse utiliz-lo em ondas sonoras que transmitissem mentiras ouinsultos. Num mundo assim, porm, os atos errados seriam impossveis e, portanto,ficaria anulado o livre arbtrio; se o princpio fosse levado sua concluso lgica, os

    maus pensamentos tornar-se-iam tambm impossveis, desde que a massa cerebral queusamos para pensar se recusaria a faz-lo quando tentssemos estrutur-la. Toda matrianas proximidades de um homem perverso estaria sujeita a alteraes imprevisveis. Aidia de que Deus pode modificar, e realmente modifica, ocasionalmente, ocomportamento da matria produzindo o que chamamos de milagres, faz parte da fcrist; mas a prpria concepo de um mundo comum e, portanto estvel exige que taisocasies sejam extremamente raras.

    Num jogo de xadrez possvel fazer certas concesses arbitrrias ao seu oponente,que se colocam em relao s regras gerais do jogo como os milagres para as leis danatureza. Voc pode privar-se de um castelo, ou permitir que o adversrio se arrependa

    de um movimento j feito, anulando-o. Mas se voc aceitasse tudo que ele pudessedesejar a qualquer momento se todos os movimentos dele fossem revogveis e setodas as suas peas desaparecessem toda vez que a posio delas no tabuleiro odesagradasse no haveria ento na realidade um jogo entre vocs. O mesmo acontececom a vida das almas num mundo: as leis fixas, as conseqncias desenvolvendo-seatravs da necessidade causal, e toda a ordem natural, so tanto limites dentro dos quaissua vida comum fica confinada como tambm a condio nica sob a qual essa vida podeexistir. Tente excluir a possibilidade do sofrimento que a ordem da natureza e aexistncia do livre-arbtrio envolvem, e descobrir que excluiu a prpria vida.

    Como disse antes, este relato das necessidades intrnsecas de um mundo

    apresentado apenas como um espcime do que poderiam ser. O que so realmente, s aOniscincia tem as informaes e a sabedoria para discernir: mas no provvel quesejam menos complicadas do que as por mim sugeridas. No preciso dizer aqui que"complicadas" refere-se apenas sua compreenso por parte do homem; no devemos

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    A Bondade Divina

    O amor pode suportar e pode perdoar. . . mas o Amor jamais pode reconciliar-se a um objeto quecause desamor. . . Ele jamais poder, portanto, reconciliar-se com o seu pecado, porque o pecado porsi mesmo incapaz de ser alterado; mas Ele pode reconciliar-se sua pessoa, por que esta pode serrestaurada.

    TRAHERNE. Centuries of Meditation, 2, 30.

    Qualquer considerao da bondade de Deus imediatamente nos ameaa com oseguinte dilema.

    De um lado, se Deus mais sbio do que ns, o seu julgamento deve diferir do nossosobre muitas coisas, e no apenas sobre o bem e o mal. O que nos parece bom pode entono ser bom aos olhos dEle, e o que nos parece mau pode no ser mau.

    Por outro lado, se o juzo moral de Deus varia em relao ao nosso, de forma que o"branco" para ns possa ser "preto" para Ele, no estamos dizendo nada quando Ochamamos de bom; pois declarar "Deus bom", ao mesmo tempo em que afirmamos quea sua bondade inteiramente diversa da nossa, seria realmente dizer "No sabemos o queDeus ". Assim sendo, uma qualidade por completo desconhecida em Deus no pode

    conceder-nos uma base moral para am-Lo e obedecer-Lhe. Se Ele no (no que nos dizrespeito) "bom", iremos obedecer, se o fizermos realmente, apenas atravs do medo eesta ramos igualmente dispostos a obedecer a um Demnio onipotente. A doutrina daDepravao Total quando extrada a conseqncia de que, desde que somostotalmente depravados, nossa idia de bem no possui mrito algum pode entotransformar nosso cristianismo numa forma de adorao demonaca.

    A soluo para este dilema depende de observar o que acontece, nas relaeshumanas, quando o homem de padres morais inferiores entra na sociedade de outros queso melhores e mais sbios do que ele e passa gradualmente a aceitar os padres deles cujo processo, ao que acontece, posso descrever bastante corretamente, pois passei pelomesmo. Quando entrei na Faculdade eu tinha to pouca conscincia moral quanto umacriana. Uma leve repugnncia pela crueldade e pela avareza era o mximo que podia

    sentir quanto castidade, verdade e auto-sacrifcio, pensava nessas coisas como umbabuno pensa na msica clssica.Pela graa de Deus entrei num grupo de jovens (nenhum deles cristos, entretanto)

    que se igualavam suficientemente a mim no intelecto e na imaginao a fim de assegurara intimidade imediata, mas que conheciam e tentavam obedecer a lei moral. As idias

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    deles a respeito do bem e do mal eram, portanto bem diferentes das minhas. O queacontece em tais casos no absolutamente como se lhe pedissem para tratar como se

    fosse "branco" o que at ento chamava de preto. Os novos julgamentos morais jamaisentram na mente como simples inverses (embora os invertam) de juzos anteriores, mas"como senhores com certeza esperados". Voc no pode duvidar da direo que estseguindo: so mais como o bem do que os pequenos fiapos de bem que voc j sentiu,mas, num certo sentido, so compatveis com ele.

    O grande teste , porm, o reconhecimento dos novos padres que se faz acompanharde um sentimento de vergonha e culpa: temos conscincia de nos havermos intrometidonuma sociedade para a qual no temos as devidas qualificaes. luz de taisexperincias que devemos considerar a bondade de Deus. A idia de "bondade" por partedEle difere sem dvida alguma da nossa; mas voc no precisa temer que, ao abord-la,venha a ser-lhe pedido que inverta os seus padres morais.

    Quando a relevante diferena entre a tica divina e a sua ficar aparente, voc no ir,de fato, ter qualquer dvida de que a mudana exigida seja na direo que j chama de"melhor". A "bondade" divina diverge da nossa, mas no totalmente diferente: ela nodifere como o preto do branco, mas como um crculo perfeito se destaca da primeiratentativa de uma criana para desenhar uma roda. Quando, porm ela aprende a desenhar,saber que o crculo que traa ento aquele que estava tentando reproduzir desde oincio.

    Esta doutrina pressuposta nas Escrituras/Cristo chama os homens aoarrependimento um chamado que seria sem sentido se o padro de Deus fosse porcompleto diferente daquele que j conheciam e deixaram de praticar. Ele apela para nosso juzo moral, como o temos agora "Por que se recusam a ver por si mesmos o que correio?"1 No Velho Testamento, Deus censura os homens com base nas suas prprias

    concepes de gratido, fidelidade e justia: e se coloca, Ele mesmo, no banco dos rusdiante das suas criaturas: "Por que foi que seus pais me abandonaram? Por acaso Eu fiz aeles alguma injustia, para se afastarem de Mim?" 2

    Depois dessas preliminares, penso que ser seguro sugerir que alguns conceitos dabondade divina que tendem a dominar nossos pensamentos, embora raramente expressosem tantas palavras, esto sujeitos a crticas.

    Quando nos referimos bondade de Deus hoje, estamos indicando quase queexclusivamente seu amor; e nisto talvez tenhamos razo. E por amor, neste contexto, amaioria de ns quer dizer bondade o desejo de ver outros felizes, e no a prpriapessoa; no feliz deste ou de outro modo, mas apenas feliz. O que realmente nossatisfaria seria um Deus que dissesse a respeito de qualquer coisa que gostssemos defazer: "Que importa se isso os deixa contentes?" Queremos, na verdade, no tanto um Pai

    Celestial, mas um av celestial uma benevolncia senil que, como dizem, "gostasse dever os jovens se divertindo" e cujo plano para o universo fosse simplesmente que sepudesse afirmar no fim de cada dia: "todos aproveitaram muito".lLc 12:572Jr 2:5

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    No so muitos os que, devo admitir, iriam formular uma teologia exatamente nesses

    termos; mas um conceito semelhante espreita por trs de muitas mentes.No me julgo uma exceo: gostaria imenso de viver num universo governado de

    acordo com essas linhas. Mas desde que est mais do que claro que no vivo, e desde quetenho razes para crer, mesmo assim, que Deus Amor, chego concluso que meuconceito de amor necessita correo.

    Eu poderia, sem dvida, ter aprendido at mesmo dos poetas que Amor algo maisrigoroso e esplndido do que a simples bondade: que at o amor entre os sexos , comoem Dante, "um senhor de terrvel aspecto". Existe bondade no amor, mas amor e bondadeno so confinantes, e quando a bondade (no sentido dado acima) separada dos demaiselementos do Amor, ela envolve uma certa indiferena fundamental ao seu objeto, e atmesmo algo semelhante ao desprezo em relao a ele. A bondade consente comfacilidade na remoo do seu objeto temos todos encontrado indivduos cuja bondade

    para com os -animais constantemente os leva a mat-los a fim de que no sofram. Abondade desse tipo no se preocupa com o fato de o seu objeto tornar-se bom ou mau,desde que escape ao sofrimento.

    Como as Escrituras afirmam, os bastardos que so estragados:os filhos legtimos, que devem continuar a tradio da famlia, so corrigidos.3 Paraaqueles com quem no nos preocupamos absolutamente que exigimos felicidade sobquaisquer termos: com nossos amigos, nossos entes queridos, nossos filhos, somosexigentes e preferimos v-los sofrer do que ser felizes em estilos de vida desprezveis edesviados. Se Deus amor. Ele , por definio, algo mais do que simples bondade. E, aoque parece, de acordo com todos os registros, embora tenha com freqncia nosreprovado e condenado, jamais nos considerou com desprezo. Ele nos prestou ointolervel cumprimento de nos amar, no sentido mais profundo, mais trgico e mais

    inexorvel.A relao entre Criador e criatura naturalmente nica e no pode ser comparada aqualquer das demais relaes entre uma criatura e outra. Deus est, ao mesmo tempo,mais distanciado e mais prximo de ns do que qualquer outro ser. Ele est mais distantede ns porque a completa diferena entre aquilo que possui o Seu princpio de existnciaem Si Mesmo e aquilo a que a existncia est sendo transmitida tal que comparada a elaa diferena entre um arcanjo e um verme praticamente insignificante. Ele faz, nssomos feitos: Ele o original, ns os derivados. Mas, ao mesmo tempo, e pela mesmarazo, a intimidade entre Deus e at mesmo a menor das criaturas mais prxima do quequalquer outra que as criaturas possam alcanar umas com as outras.

    Nossa vida, a qualquer momento, suprida por Ele: nosso pequenino e milagrosopoder de livre-arbtrio s pode operar nos corpos que a Sua energia contnua mantm

    vivos nosso prprio poder de pensar o Seu poder comunicado a ns. Uma relaoassim singular s pode ser entendida atravs de analogias: dentre os vrios tipos de amorconhecidos entre as criaturas, chegamos a um conceito inadequado, mas til do amor deDeus pelo homem.

    O tipo mais inferior, que chamado de "amor" apenas como uma extenso da

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    palavra, aquele que o artista sente por um arte-fato. A relao entre Deus e homem assim retratada na viso de Jeremias sobre o oleiro e o barro,4 ou quando o apstoloPedro fala da igreja inteira como de um prdio no qual Deus trabalha, e dos membrosindividualmente como sendo pedras.5 A limitao de tal analogia , naturalmente, que nosmbolo o paciente no tem percepo, e que certas questes de justia e misericrdiasurgidas quando as "pedras" esto realmente "vivas" permanecem, portanto, no-representadas. Mas, de toda forma, trata-se de uma analogia importante.

    Ns somos, no em metfora, mas verdadeiramente, uma obra-de-arte divina, algoque Deus est fazendo e, portanto, algo com o qual Ele no ficar satisfeito at quepossua umas tantas e determinadas caractersticas. Defrontamos de novo aqui com aquiloa que dei o nome de "elogio insuportvel". O artista pode no se preocupar muito com oesboo feito com negligncia para divertir uma criana: ele pode deix-lo ficar como est,

    mesmo que no seja exatamente aquilo que pretendia que fosse. Mas em relao aograndioso quadro de sua vida o trabalho que ama, embora de forma diversa, tointensamente como o homem ama uma mulher ou a me a um filho ele se aplicarintensamente e iria, sem dvida, dar muita preocupao ao quadro se este tivessesensibilidade. Podemos imaginar um quadro sensvel, depois de ter sido apagado eraspado e recomeado pela dcima vez, desejando no passar de um esboo simples feitonum minuto. Da mesma maneira, natural para ns desejar que Deus nos traasse umdestino menos glorioso e menos rduo; mas, assim, no estaremos ento desejando maisamor e sim menos amor.

    Outro tipo o amor de um homem por um animal relao esta usada

    freqentemente nas Escrituras para simbolizar a relao entre Deus e os homens; "somoso seu povo e as ovelhas do seu pasto". Esta , em certo sentido, uma analogia melhor doque a precedente, porque a parte inferior perceptiva, embora indiscutivelmente inferior:mas pior pelo fato de o homem no ter feito o animal e no compreend-lointeiramente. Seu grande mrito est em que a associao (digamos) de homem e co temcomo objetivo principal o bem do primeiro: o homem domestica o co para que possaprimeiro am-lo, e no para que este o ame, e para que o animal o sirva, e no para queele possa servi-lo. Todavia, ao mesmo tempo, os interesses do co no so sacrificadosaos do homem. O propsito final (de que possa am-lo) no alcanado plenamente ano ser que o animal tambm, a seu modo, o ame; nem o co pode servi-lo a no ser que

    ele, de uma forma diferente, o sirva. Justamente porque o co, segundo os padreshumanos, uma das "melhores" criaturas irracionais, e um objeto digno de ser amadopelo homem naturalmente naquele grau e tipo de amor apropriados para tal objeto, eno com tolos exageros antropomrficos o homem interfere no co e o torna mais

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    digno de amor do que ele o era na sua simples natureza. Em seu estado natural ele cheirae tem hbitos que frustram o amor humano: o homem ento o submete a treinamentospara que tenha um comportamento adequado dentro de casa, d-lhe banhos, ensina-o ano roubar, capacitando-o assim para que possa ser amado completamente.

    Para o filhote, todo o processo pareceria, caso fosse um telogo, lanar gravesdvidas sobre a "bondade" do homem: mas o co adulto e treinado, maior, mais saudvele com um perodo de vida mais longo do que o co selvagem, e admitido, como se ofosse, por assim dizer, pela Graa, a um mundo de afeies, lealdades, interesses econfortos inteiramente alm de seu destino animal, no teria tais dvidas. Deve sernotado que o homem (e estou falando apenas do homem bom) tem todo esse trabalhocom o co, e causa todo esse sofrimento a ele, apenas por se tratar de um animal que seacha no alto da escala por ser to digno de amor que vale a pena torn-lo ainda mais

    digno desse amor. Ele no d treinamento domstico lacraia nem banho centopia. possvel que desejssemos, na verdade, que Deus se incomodasse to pouco conosco quenos deixasse por nossa prpria conta, a fim de seguirmos nossos impulsos naturais queEle desistisse de nos transformar em algo to diverso de nosso "eu" natural: mas, denovo, no estamos pedindo mais amor e sim menos.

    Uma analogia mais nobre, aprovada pelo tom constante dos ensinamentos doSenhor, aquela que existe entre o amor de Deus pelo homem e o amo r de um pai pelofilho. Toda vez em que ela usada, porm, isto , toda vez que repetimos a Orao doSenhor, deve ser lembrado que o Salvador fez uso dela num momento e lugar em que aautoridade paternal tinha uma posio muito mais elevada do que nos tempos modernos.

    Um pai quase se desculpando por ter trazido seu filho ao mundo, temeroso de restringi-lopara que no cresa com inibies ou at mesmo de disciplin-lo a fim de no interferirem sua independncia mental, um smbolo bastante precrio da Paternidade Divina.

    No estou discutindo aqui o fato de a autoridade dos pais, em sua expresso antiga,ter sido uma coisa boa ou m. Estou apenas explicando o que o conceito de Paternidadeteria significado para os primeiros ouvintes do Senhor, e na verdade para os seussucessores durante muitos sculos. Ficar ainda mais simples se considerarmos como oSenhor (embora, em nossa crena, um s com o Pai e co-eterno com Ele como nenhumfilho terreno o com um pai terreno) considera sua prpria Filiao, submetendocompletamente Sua vontade vontade paterna, nem sequer permitindo que o chamem

    "bom" porque BOM o nome do Pai. Amor entre pai e filho, neste smbolo, significaessencialmente um amor cheio de autoridade de um lado, e amor obediente do outro. Opai faz uso de sua autoridade para transformar o filho na espcie de ser humano que ele,com justia, e em sua sabedoria superior, quer que ele seja. Mesmo em nossos dias,

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    embora algum possa dizer tal coisa, essa pessoa no estaria dizendo nada ao afirmar:"Amo meu filho, mas no me importa quo corrupto ele seja, contanto que se divirta".

    Chegamos finalmente a uma analogia perigosa e de aplicao muito mais limitada,que, todavia, acontece ser a mais til para o nosso propsito especial no momento quero dizer, a analogia entre o amor de Deus pelo homem e o amor deste por umamulher. Ela usada livremente nas Escrituras. Israel uma esposa infiel, mas seu MaridoCelestial no pode esquecer-se dos dias felizes do passado: "Lembro-me de ti, da tuaafeio quando eras jovem, e do teu amor quando noiva, e de como me seguias nodeserto". Israel a noiva pobre, perdida, que seu amado encontrou abandonada ao ladodo caminho e vestiu e adornou, tornando-a digna de amor, mas mesmo assim ela lhe foiinfiel. "Infiis" o nome que nos d o apstolo Tiago, porque nos voltamos para a"amizade do mundo", enquanto Deus "com cime anseia pelo esprito que fez habitar em

    ns".A Igreja a noiva do Senhor a quem ele ama de tal forma que no pode suportar

    qualquer mancha ou ruga nela. A verdade que esta analogia serve para enfatizar que oamor, por sua prpria natureza, exige o aperfeioamento do ser amado; que a simples"bondade" que tudo tolera, menos o sofrimento em seu objeto, est, nesse aspecto, noplo oposto do amor. Quando nos apaixonamos por uma mulher, deixamos de am-laquando est limpa ou suja, ntegra ou desonrada? No ento que na realidadecomeamos a nos preocupar? A mulher considera sinal de amor num homem quando eleno se importa com a sua aparncia? O amor pode, de fato, continuar amando mesmoquando a beleza dela se foi; mas no porque est perdida. O amor pode perdoar todas as

    enfermidades e continuar amando a despeito delas: mas o amor no pode deixar dedesejar a sua remoo. O amor mais sensvel do que o prprio dio em relao aqualquer mancha no -ser amado; o seu "sentimento mais suave e sensvel do que oschifres delicados dos caracis". De todos os poderes ele o que mais perdoa, mas o quemenos desculpa: fica satisfeito com pouco, mas exige muito.

    Quando o cristianismo diz que Deus ama o homem, isso significa que Ele o amarealmente; no se trata de um interesse indiferente, quase um "desinteresse" em nossobem-estar, mas que, numa verdade terrvel e surpreendente, somos os objetos do seuamor. Voc pediu um Deus de amor, e o tem. O grande esprito que invocou tolevianamente, o "senhor de terrvel aspecto", est presente: no uma benevolncia senil

    que sonolentamente deseja que voc seja feliz sua prpria moda, nem a glidafilantropia de um magistrado consciencioso, nem mesmo o cuidado de um hospedeiroque se sente responsvel pelo conforto de seus hspedes, mas o prprio fogo consumidor,o Amor que fez os mundos, persistente como o amor do arteso pela sua obra e desptico

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    como o amor do homem por um co, previdente e venervel como o amor do pai pelofilho, ciumento, inexorvel, exigente, como o amor entre os sexos.

    Como isto pode ser, no sei: supera nosso poder de raciocnio explicar comoquaisquer criaturas, para no dizer criaturas como ns, possam ter um valor toprodigioso aos olhos de seu Criador. Trata-se certamente de um peso de glria no salm de nossos mritos mas tambm, exceto em raros momentos de graa, alm de nossodesejo; estamos inclinados, como as donzelas na velha pea teatral, a protestar contra oamor de Zeus.10 Mas o fato parece indiscutvel. O Impassvel fala como se sentissepaixo, e aquilo que contm em Si mesmo a causa de sua prpria e de outras bnos,fala como se pudesse sentir-se carente e ansioso. "No Efraim meu precioso filho? filhodas minhas delcias? pois tantas vezes quantas falo contra ele/tantas vezes ternamente melembro dele; comove-se por ele o meu corao".11 "Como te deixaria, Efraim? Como te

    entregaria, Israel? Meu corao est comovido dentro em mim".12", Jerusalm, quantas vezes quis eu reunir os teus filhos, como a galinha ajunta os

    seus pintinhos debaixo das asas, e vs no o quisestes!"13O problema de reconciliar o sofrimento humano com a existncia de um Deus que

    ama s insolvel enquanto associarmos um significado trivial palavra "amo r" econsiderarmos as coisas como se o homem fosse o centro delas. O homem no o centro.Deus no existe por causa do homem. O homem no existe por sua prpria causa."Porque todas as coisas tu criaste, sim, por causa da tua vontade vieram a existir e foramcriadas".14

    No fomos feitos em princpio para amarmos a Deus (embora fssemos tambm

    criados para isso), mas para que Deus possa amar-nos, para que nos tornemos objetos emque o amor divino possa sentir "agrado". Pedir que o amor de Deus se satisfaa conoscona condio em que nos encontramos, pedir que Deus deixe de ser Deus: porque Ele oque , o Seu amor deve, na natureza das coisas, ficar impedido e sentir repulsa por certasndoas em nosso carter, e porque j nos ama Ele precisa esforar-se para nos tornardignos de amor. No podemos sequer desejar, em nossos melhores momentos, que Ele sereconcilie com nossas impurezas presentes no mais do que a jovem mendiga poderiaquerer que o rei Cophetua se satisfizesse com os seus andrajos e sujeira, ou que um co,tendo aprendido a amar o homem, pudesse desejar que este tolerasse em sua casa acriatura violenta, coberta de vermes, poluente, da alcatia selvagem.

    10 Prometheus Vinctus , 887-900

    11 Jr 31:20

    13 Mt 23:37

    14 Ap 4:11

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    O que chamaramos aqui e agora de nossa "felicidade" no o alvo principal queDeus tem em vista: mas, quando formos aquilo que Ele pode amar sem impedimento,seremos de fato felizes.

    Posso perfeitamente prever que o curso de meus argumentos venha a provocar umprotesto. Eu havia prometido que ao passar a compreender a bondade divina no nos seriapedido que aceitssemos uma simples inverso de nossa prpria tica. Mas pode serobjetado que tal inverso foi jus tamente o que nos pediram que aceitssemos. A espciede amor que atribuo a Deus, pode ser dito, exatamente do tipo que ns seres humanosdescrevemos como "egosta" ou "possessivo", e contrasta desfavoravelmente com a outraespcie que busca primeiro a felicidade do ente amado e no a satisfao daquele queama. No estou certo de que seja assim que me sinto mesmo em relao ao amor humano.No acho que devo dar muito valor amizade de um amigo que se importe apenas com a

    minha felicidade e no proteste se cometo uma desonestidade. De todo modo, o protesto aceito, e a resposta para ele colocar o assunto sob uma nova luz, e corrigir o que temsido unilateral em nossa discusso.

    A verdade que esta anttese entre o amor egosta e o altrusta no pode ser aplicadasem ambigidade ao amor de Deus pelas suas criaturas. Conflitos de interesses, eportanto oportunidades seja de egosmo ou generosidade, ocorrem entre os seres quehabitam um mesmo mundo: Deus no pode de forma alguma competir com uma criatura,assim como Shakespeare no o faz com a personagem Viola. Quando Deus se tornaHomem e vive como uma criatura entre as Suas prprias criaturas na Palestina, Sua vida ento de supremo auto-sacrifcio e o leva ao Calvrio. Um moderno filsofo pantesta

    declarou: "Quando o Absoluto cai no mar se transforma em peixe";do mesmo modo, ns, cristos, podemos apontar para a Encarnao e dizer que quandoDeus se esvazia da sua glria e se submete quelas condies nicas sob as quais oegosmo e o altrusmo tm um claro significado. Ele considerado como inteiramentealtrusta. Mas, em sua transcendncia. Deus como a base incondicional de todas ascondies no pode ser facilmente visualizado dessa forma.

    Chamamos o amor humano de egosta quando ele satisfaz suas prpriasnecessidades custa daquelas do objeto da mesma forma que um pai mantm em casaos filhos que deveriam, para o seu prprio bem, ser colocados no mundo. A situaoimplica em uma necessidade ou paixo por parte do ser amado, e a desconsiderao ou

    ignorncia culpvel das necessidades deste por parte de quem ama. Nenhuma dessascondies est presente na relao entre Deus e o homem. Deus no tem necessidades. Oamor humano, conforme nos ensina Plato, filho da Pobreza de uma carncia oufalta; ele causado por um bem real ou imaginrio no ser amado, que necessrio ou

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    desejado pelo amante. Mas o amor de Deus, longe de ser causado pela bondade do objeto,faz surgir toda a bondade que este possui, amando-o primeiro para faz-la existir e depoistornando-a digna de amor real, embora derivado. Deus Bondade, Ele pode conceder obem, mas no pode necessit-lo ou obt-lo. Nesse sentido todo o Seu amor infinitamente desprendido pela sua prpria definio; ele tem tudo a dar e nada a receber.Assim sendo, se Deus fala algumas vezes como se o Impossvel pudesse sofrer paixo e aplenitude eterna pudesse ter qualquer carncia, e carncia daqueles seres a quem concedetudo a partir da sua simples existncia, isto s pode significar, caso signifique algointeligvel para ns, que o Deus do milagre tornou-se capaz de sentir tal anseio e criar emSi mesmo aquilo que ns podemos satisfazer. Se Ele nos quer, esse desejo de suaprpria escolha. Se o corao imutvel pode ser entristecido pelas marionetes que elemesmo fez, foi a Onipotncia Divina, e nada mais, que assim o sujeitou, voluntariamente,

    e com uma humildade que excede todo entendimento.Se o mundo no existe principalmente para que possamos amar a Deus, mas para

    que Ele possa amar-nos, esse mesmo fato, num nvel mais profundo, assim para o nossobem. Se aquele que em Si mesmo tem tudo escolhe necessitar de ns, porquenecessitamos de quem nos necessite. Antes e por trs de todas as relaes entre Deus e ohomem, como agora aprendemos no cristianismo, abre-se o abismo do ato divino do purodar a eleio do homem, do nada, para ser o amado de Deus e, portanto (em algumsentido) o necessrio e desejado de Deus, que a no ser por esse ato nada necessita nemdeseja, desde que Ele eternamente possui, e , toda bondade. E tal ato foi feito a nossofavor. bom que conheamos o amor, e melhor ainda conhecermos o amor do melhor

    objeto. Deus. Mas conhec-lo como um amor em que fomos primariamente oscortejadores e Deus o cortejado, no qual buscamos e Ele foi achado, em que a suaconformidade s nossas necessidades, e no a nossa s dEle, vieram primeiro, seriaconhec-lo numa forma falsa prpria natureza das coisas. Pois somos apenas criaturas:nosso papel deve ser sempre o do paciente para o agente, da fmea para o macho, doespelho para a luz, do eco para a voz. Nossa mais elevada atividade deve ser a resposta, eno a iniciativa. Experimentar o amor de Deus de forma verdadeira e no ilusria, portanto experiment-lo como nossa rendio Sua exigncia, nossa conformidade aoSeu desejo:experiment-lo de maneira oposta seria um solecismo contra a gramtica doser. Eu no nego, naturalmente, que num certo nvel podemos falar corretamente da busca

    de Deus pela alma, e de Deus como receptivo ao amor da alma. Mas, a longo prazo, abusca de Deus pela alma no passa de um aspecto ou aparncia (Erscheinung) da buscada mesma por Ele, desde que a prpria possibilidade de amarmos um dom dEle parans, e desde que nossa liberdade no passa de uma liberdade de resposta melhor ou pior.

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    Eu penso ento que nada distingue tanto o tesmo pago do cristianismo como a doutrinade Aristteles de que Deus move o universo, sendo Ele mesmo imutvel.. como o Amadomove o que ama.15 Quanto cristandade, "Nisto consiste o amor, no em que nstenhamos amado a Deus, mas em que Ele nos amou".16

    Desse modo, Deus no possui a primeira condio do que chamado amor egostaentre os homens. Ele no tem necessidades naturais, nem paixo, para competir com oSeu desejo do bem do amado: ou se existir nEle algo que tenhamos de imaginar deacordo com a analogia de uma paixo, um desejo, Ele se encontra ali pela Sua prpriavontade e por nossa causa. A segunda condio tambm est em falta. Os interesses reaisde uma criana podem diferir daqueles que a afeio do pai exige instintivamente, porquea criana um ser isolado do pai com uma natureza que possui suas prpriasnecessidades e no existe unicamente para o pai nem encontra perfeio total em seramada por ele, e que o pai no compreende inteiramente.

    Mas as criaturas no so assim isoladas de seu Criador, nem Ele deixa de entend-las. O lugar para. o qual Ele as destina em Seu esquema de coisas o lugar para o qualso feitas. Quando o alcanam, sua natureza preenchida e sua felicidade alcanada: umosso quebrado foi colocado no seu lugar no universo, a angstia passou. Quandoqueremos ser outra coisa que no aquela que Deus quer que sejamos, devemos estardesejando, de fato, aquilo que no nos far felizes. Essas exigncias divinas que, aosnossos ouvidos naturais, soam como as de um dspota e pelo menos como as de algumque ama, na verdade nos levam aonde deveramos querer ir se soubssemos o quequeremos.

    Ele exige nossa adorao, nossa obedincia, nossa prostrao. Supomos que essascoisas podem benefici-lO de alguma forma, ou tememos, como o coro de Milton, que airreverncia humana possa acarretar a "diminuio da sua glria"? Ningum pode

    diminuir a glria de Deus recusando-se a ador-lO, como no poderia o luntico apagar osol escrevendo a palavra "escurido" nas paredes de sua cela. Mas Deus deseja o nossobem, e nosso bem am-lO (com esse amor responsivo prprio das criaturas) e para am-lO deve mos conhec-lO: e se O conhecermos, iremos de f ate prostrar-nos sobre a nossaface. Se no o fizermos, isso mostra que- o que estamos tentando amar no ainda Deus embora possa ser a mais achegada aproximao de Deus que nossos pensamentos efantasia podem alcanar. O chamado todavia no apenas para a prostrao e reverncia;mas para um reflexo da vida divina, uma participao da criatura nos atributos divinosque est muito alm de nossos desejos presentes. Somos convidados a "revestir-nos deCristo", a nos tornarmos como Deus. Isto , quer o queiramos quer no, Deus pretendedar-nos aquilo de que necessitamos e no aquilo que agora julgamos desejar. Mais umavez, ficamos embaraados com o cumprimento intolervel, por demasiado amor e no por

    falta dele.15Met., XII, 7.16I Jo 4:10

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    Mesmo isto, talvez, ainda esteja aqum da verdade. No se trata simplesmente deque Deus nos fez arbitrariamente de modo que Ele seja o nosso nico bem. Em vez disso.

    Deus o nico bem de todas as criaturas: e por necessidade, cada uma delas deveencontrar o seu bem nessa espcie e grau da fruio de Deus que prpria sua natureza.A espcie e grau podem variar de acordo com a natureza da criatura: mas que jamaispossa haver qualquer outro bem um sonho ateu. George Macdonald, numa passagem deque no me lembro agora, representa Deus dizendo aos homens: "Vocs devem ser fortescom a minha fora e abenoados com a minha bno, pois nada tenho alm disso paradar-lhes." Essa a suma. Deus d o que Ele possui, e no aquilo que no possui: Ele d afelicidade que existe, no aquela que no existe. Ser Deus ser como Deus e partilharda Sua bondade em resposta de criatura ser miservel essas so as trs nicasalternativas. Se no aprendermos a comer o nico alimento que cresce no universo quequalquer universo possvel jamais poder fazer crescer ento iremos ficar eternamentefamintos.

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    A Maldade Humana

    No existe maior sinal de um orgulho confirmado do que julgar-nos suficientemente humildes.

    LAW. Serious Call, cap. 16.

    Os exemplos dados no ltimo captulo tinham como objetivo mostrar que o amorpode causar sofrimento ao seu objeto, mas apenas na suposio de que esse objeto precisaser alterado a fim de tornar-se inteiramente digno de ser amado. Por que os homensprecisam de tanta alterao? A resposta crist de que usamos nosso livre-arbtrio paranos tornar excessivamente maus to conhecida que praticamente no precisa serexpressa. Fazer, porm, com que esta doutrina ganhe vida real na mente do homemmoderno, e at mesmo dos modernos cristos, muito difcil.

    Quando os apstolos pregavam, eles podiam supor como certa, mesmo em seusouvintes pagos, uma percepo real do fato de merecerem a ira divina. Os mistriospagos existiam para acalmai este sentimento, e a filosofia de Epicuro alegava livrar oshomens do medo do castigo eterno. Foi contra este pano de fundo que o Evangelho surgiucomo boas notcias. Ele trouxe notcias de uma possvel cura para os homens que sabiamachar-se mortalmente enfermos. Mas tudo isto mudou, O cristianismo tem agora depregar o diagnstico que por si mesmo pssimas notcias antes de ganhar aateno dos ouvintes para ensinar-lhes a cura.

    So duas as causas principais. Uma delas o fato de que por cerca de um sculotemos nos concentrado de tal forma em uma das virtudes "bondade" ou misericrdia que a maioria de ns no acha que necessrio nada alm de bondade para serrealmente bom ou de crueldade para ser realmente mau. Desenvolvimentos ticos assimassimtricos no so incomuns, e outras pocas tambm tiveram as suas virtudesfavoritas e curiosas insensibilidades. E se uma virtude deve ser cultivada custa dasdemais, nenhuma delas possui mais valor do que a misericrdia pois todo cristo deverejeitar por completo essa propaganda sub-reptcia a favor da crueldade que tentaexpulsar a misericrdia do mundo rotulando-a de "Humanitarismo"e "Sentimentalismo".

    O problema real est em que "bondade" uma qualidade fcil de ser atribuda a nsmesmos em bases absolutamente inadequadas. Todos se sentem benevolentes se nada

    acontecer para aborrec-los no momento. O homem se consola ento facilmente arespeito de todos os seus outros vcios, atravs de uma convico de que "seu coraoest no lugar onde deve estar" e de que "no mataria uma mosca", embora de fato jamaistivesse feito o menor sacrifcio por um semelhante. Pensamos que somos bons quando

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    e, se houver poderes superiores ao homem, a eles tambm. Um Deus que noconsiderasse tal coisa com desgosto implacvel no seria um ente bom. No podemos

    sequer desejar um Deus assim seria como desejar que todo nariz no universo fosseabolido, que o perfume do feno, das rosas, ou do mar jamais voltasse a deliciar qualquercriatura, porque nosso hlito cheira mal.

    Quando simplesmente dizemos que somos maus, a "ira" de Deus parece umadoutrina brbara; mas to logo percebemos nossa maldade, ela parece inevitvel, umsimples corolrio da bondade divina. Manter sempre nossa frente a percepo derivadade um momento como o que descrevi, aprender a detectar a mesma corrupo real eindesculpvel sob mais e mais de seus disfarces complexos, portanto indispensvel parauma verdadeira compreenso da f crist. No se trata naturalmente de uma novadoutrina. No estou tentando produzir nada esplndido neste captulo, mas simplesmenteprocurando fazer com que meu leitor (e, mais ainda, eu mesmo) atravesse a ponsasinorum dando o primeiro passo para sair de um paraso insensato e da completailuso. Mas esta iluso tornou-se, nos tempos modernos, to forte, que devo acrescentaralgumas consideraes tendentes a fazer com que a realidade se mostre menos incrvel.

    l. Somos enganados porque olhamos a superfcie das coisas. Supomos no ser muitopiores do que Y, que todos reconhecem como um indivduo decente, e certamente(embora no devamos anunci-lo em voz alta) melhores do que o abominvel X. Mesmonum nvel superficial estamos provavelmente enganados quanto a isto. No esteja tocerto de que seus amigos o consideram to bom quanto Y. O prprio fato de voc t-loescolhido para comparao suspeitoso: ele est provavelmente muito acima de voc eseu crculo. Mas, suponhamos que tanto Y como voc no paream "maus". At queponto o comportamento de Y enganoso assunto entre ele e Deus. A fachada dele podeno ser falsa, mas voc sabe que a sua . Isto lhe parece um simples artifcio , porque eupoderia dizer o mesmo a Y e a cada homem por sua vez? Mas justamente esse o ponto.

    Todo homem, que no muito santo nem muito arrogante, tem de "conformar-se" aparncia exterior de outros homens: ele sabe que existe em seu ntimo algo que estmuito abaixo at mesmo de seu mais casual comportamento em pblico, mesmo suaconversa mais livre. Naquele instante enquanto seu amigo hesita procurando umapalavra, quais os pensamentos que passam pela sua mente? Jamais falamos toda averdade. Podemos confessar fatos pouco atraentes a covardia mais baixa ou aimpureza mais vil e mais prosaica mas o tom falso. O prprio ato de confessar umolhar hipcrita infinitamente pequeno uma pitada de humor tudo isto contribui paradissociar os fatos do seu prprio "eu".

    Ningum poderia adivinhar quo familiares e, num certo sentido, apropriadas suaalma essas coisas so, como elas fazem parte do resto: bem no fundo, no calor de seuntimo, elas no fazem soar uma nota to discordante, no parecem to estranhas edesligadas do restante de voc, como aparentam quando colocadas em palavras.Subentendemos e com freqncia cremos que vcios habituais so atos nicos eexcepcionais, e cometemos o erro oposto em relao

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    s nossas virtudes como o mau jogador de tnis que chama sua forma normal deseus "maus dias" e considera como normais seus raros sucessos. No penso que sejanossa falta o fato de no podermos dizer a verdade a respeito de ns mesmos; o murmriopersistente e ntimo, em todo o decorrer de nossa vida, causado pelo despeito, pela inveja,pela lascvia, pela cobia e pela autocomplascncia, simplesmente no se revela empalavras. Mas o importante que no devemos considerar nossos pronunciamentosinevitavelmente limitados como um registro completo do pior que temos dentro de ns.

    2. Uma reao de si mesma saudvel est agora em movimento contraconceitos puramente privados ou domsticos de moral, um novo despertar da conscinciasocial. Sentimo-nos envolvidos num sistema social inquo e partilhando de uma culpacorporativa. Isto muito verdadeiro: mas o inimigo pode explorar at mesmo as verdades

    para enganar-nos. Tome cuidado para no estar fazendo uso da idia da culpa emconjunto para distrair sua ateno de suas prprias culpas enfadonhas e fora de moda quenada tm a ver com o "sistema" e que podem ser tratadas sem esperar pelo milnio. Aculpa conjunta talvez no possa ser, e certamente no , sentida com a mesma fora que apessoal. Para a maioria de ns, como somos agora, este conceito no passa de umadesculpa para fugir ao assunto real. Quando tivermos verdadeiramente aprendido aconhecer a nossa corrupo individual, poderemos ento na verdade passar a pensar naculpa corporativa e dificilmente pensaremos demasiado nela. Mas devemos aprender aandar antes de correr.

    3. Temos a estranha iluso de que o simples tempo cancela o pecado. Ouvi outros, e

    a mim mesmo, recapitularem crueldades e falsidades cometidas na infncia como se nofizessem diferena na vida presente da pessoa, que chega at mesmo a rir da lembrana.Mas o tempo em si nada faz com relao ao fato ou culpa de um pecado. A culpa no lavada pelo tempo mas pelo arrependimento e pelo sangue de Cristo: se nos tivermosarrependido desses primeiros pecados devemos lembrar-nos do preo pago pelo nossoperdo e nos mostrar humildes. Quanto ao fato de um pecado, prov vel que algumacoisa possa cancel-lo? Todos os tempos esto eternamente presentes para Deus. No pelo menos possvel que ao longo de alguma linha de sua eternidade multidimensionalEle veja voc para sempre no jardim da infncia tirando as asas de uma mosca, sempreagindo repulsivamente, mentindo e cobiando quando estudante, sempre naquele

    momento de covardia ou insolncia como subalterno? Pode ser que a salvao noconsista no cancelamento desses momentos eternos, mas na humildade aperfeioada quesuporta a vergonha para sempre, rejubilando-se na ocasio por ela fornecida compaixode Deus e contente por ser de conhecimento comum ao universo.

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    Talvez nesse momento eterno S. Pedro ele ir perdoar-me se estiver errado negue para sempre a seu Mestre. Se for assim, seria ento realmente verdade que as

    alegrias do Cu so para a maioria de ns, em nossa condio atual, "um gosto adquirido" e certos estilos de vida podem tornar o gosto impossvel de adquirir. Talvez osperdidos sejam aqueles que no ousem ir a um lugar to pblico. No sei naturalmente seisto verdade, mas acho que vale a pena ter em mente esta possibilidade.

    4. Devemos evitar o sentimento de que existe "segurana nos nmeros". naturalsentir que se todos os homens so maus como dizem os cristos, ento a maldade perfeitamente justificvel. Se todos os alunos colam nos exames, certamente as provasforam difceis demais? assim que os professores dessa escola se sentem at que ficamsabendo que existem outras escolas onde noventa por cento dos alunos passaram nessasmesmas provas. Comeam ento a suspeitar que a falha no estava com os examinadores.

    Muitos de ns passaram pela experincia de viver em algum bolso da sociedade humanalocal alguma escola, faculdade, regimento ou profisso onde o tom era mau. E dentrodesse bolso certos atos eram considerados como normais ("todos fazem isso") e outroscomo inviavelmente virtuosos e quixotescos. Mas quando samos dessa m sociedadedescobrimos, para nosso horror, que no mundo externo o nosso "normal" era o tipo decoisa que nenhum indivduo decente jamais sonharia praticar e nosso "quixotesco" tomado por certo como o padro mnimo de decncia. O que nos pareciam escrpulosexcessivamente mrbidos e fantsticos enquanto estvamos no "bolso", mostram-seagora como tendo sido os nicos momentos de sanidade que gozamos ali. prudenteenfrentar a possibilidade de que a raa humana inteira (que no passa de uma

    insignificncia no universo) seja, de fato, apenas um desses bolses locais de maldade uma escola ou regimento de m qualidade, em que um mnimo de decncia passa porvirtude herica e a absoluta corrupo por imperfeio perdovel. Mas, existe qualquerevidncia exceto a prpria doutrina crist de que isto assim? Acho que existe. Emprimeiro lugar, existem entre ns essas pessoas estranhas que no aceitam o padro local,que demonstram a alarmante verdade de que um comportamento diferente de fatopossvel. "Pior ainda, temos o fato de que tais pessoas, mesmo quando separadasgrandemente no espao e no tempo, possuem um hbito suspeito de concordarem umascom as outras em geral quase como se estives sem em contato com uma opiniopblica mais ampla fora do bolso. O que comum a Zaratustra, Jeremias, Scrates,Gotama, Cristo1 e Marco Aurlio algo bastante substancial.

    Terceiro, encontramos em ns mesmos uma aprovao terica deste comportamentoque ningum pratica. Mesmo dentro do bolso no dizemos que a justia, misericrdia,firmeza e temperana no tm valor, mas apenas que o costume local to justo, forte,temperante e misericordioso qua nto pode ser razoavelmente esperado. Comea a parecer

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    que as negligenciadas regras escolares, mesmo nessa escola de m qualidade, estavamligadas a um mundo maior e que quando o ano terminar poderemos encontrar-nosdefrontando a opinio pblica desse mundo mais amplo. Mas o pior de tudo que nopodemos deixar de ver que unicamente o grau de virtude que agora consideramosimpraticvel pode possivelmente salvar a nossa raa do desastre mesmo neste planeta.

    O padro que parece ter entrado no "bolso", vindo de fora, acaba sendoterrivelmente relevante para as condies em seu interior to importantes que umaprtica consistente da virtude pela raa humana mesmo por dez anos encheria a. terra deplo a plo de paz, abundncia,, sade, alegria e tranqilidade, como nada mais poderiafaz-lo.

    Pode ser costume aqui embaixo tratar as regras do regimento como letra morta ouum conselho de perfeio: mas, mesmo agora, todo aquele que pra para pensar pode ver

    que quando encontrarmos o inimigo esta negligncia ir custar a vida de cada homem.Ser ento que iremos invejar a pessoa "mrbida", o "pedante" ou "entusiasta", querealmente ensinou sua companhia a atirar, a cavar, e a poupar seus cantis de gua?

    5. A sociedade maior com que contrasto aqui o "bolso" pode no existir segundoalgumas pessoas, e em qualquer caso no temos experincia quanto a ela. Noencontramos anjos ou raas no decadas. Mas podemos ter algum vislumbre da verdademesmo em nossa prpria raa. As diferentes eras e costumes podem ser consid eradascomo "bolses" em relao umas s outras. Afirmei, algumas pginas atrs, que asdiferentes idades sobressaam em diferentes virtudes. Se, ento, voc jamais for tentado apensar que ns, os modernos europeus do ocidente, no podemos ser realmente to maus

    porque, falando em termos comparativos, somos humanos se, em outras palavras, vocjulga que Deus possa estar satisfeito conosco nessa base pergunte a si mesmo se achaque Deus deveria alegrar-se com a crueldade das eras cruis pelo fato de se sobressarempela coragem ou castidade. Atravs da considerao de como a crueldade de nossosancestrais se afigura a ns, voc pode ter um vislumbre de como nossa fraqueza,mundanismo e timidez teria parecido a eles, e portanto como ambos devemos parecer aosolhos de Deus.

    6. possvel que minha repetio do termo "bondade" j tenha despertado umprotesto na mente de alguns leitores: No estamos nos tornando na verdade uma raacada vez mais cruel? Talvez estejamos.

    1 Menciono o Deus Encarnado entre os professores humanos para enfatizar que a diferena principalentre Ele e os demais no se encontra no ensino tico (com que me ocupo aqui) mas na Pessoa e noMinistrio.

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    Mas penso que nos tornamos assim na tentativa de reduzir todas as virtudes bondade,pois Plato ensinou correta-mente que a virtude uma s. Voc no pode ser bom a noser que possua todas as demais virtudes. Se, apesar de ser covarde, presunoso eindolente, voc mesmo assim nunca fez grande mal a qualquer outra criatura, isso foiapenas porque o bem-estar de seu prximo ainda no entrou em conflito com suasegurana, auto-aprovao, ou comodidade. Todo vcio leva crueldade. At mesmo umaemoo boa, a piedade, se no for controlada pela caridade e a justia, leva, atravs daira, crueldade. As maiores atrocidades so estimuladas por relatos daquelas cometidaspelo inimigo; e a piedade pelas classes oprimidas quando separada da lei moral como umtodo, leva mediante um processo natural s brutalidades incessantes de um reino doterror.

    7. Alguns telogos modernos, com bastante razo, protestaram contra umainterpretao excessivamente moralista do cristianismo. A Santidade de Deus algomais, e diferente, da perfeio moral: a Sua reivindicao sobre ns algo mais, ediferente, da reivindicao do dever moral. No nego isso: mas este conceito, como o daculpa corporativa, facilmente usado para fugir do ponto real. Deus pode ser mais do quea bondade moral: Ele no menos. A estrada para a terra prometida passa pelo Sinai. Alei moral pode existir para ser transcendida: mas no podem transcend-la aqueles queno tiverem primeiro admitido a sua reivindicao sobre eles, e a seguir tentado comtodas as suas foras satisfazer essa reivindicao, e enfrentado francamente a realidade doseu fracasso.

    8. "Ningum, ao ser tentado, dig