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Prólogo

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O MEDO ESTAVA estampado no rosto dos aldeões. Agrupados a alguns passos da cabana, permaneciam imóveis, com os olhos presos no casebre. Gotas de suor brotavam das frontes enrugadas. E então, o

velho Giorgio levantou o dedo e urrou:— Morte à feiticeira!— Morte à feiticeira! — repetiram em coro os vinte homens e mulheres

que ousaram entrar na fl oresta, determinados a acabar com a maldição.Empunhando forcados e pás, avançaram contra a casa. A porta foi arran-

cada com o primeiro empurrão. Iluminado por um fraco raio de sol, o cômodo único entregou-se aos olhares esfogueados. Vazio.

— Ela escapou — disse com desprezo a viúva Trapponi.— E não faz muito tempo — comentou um jovem raquítico, com o

nariz metido no caldeirão suspenso acima de um leito de brasas. — Olhem, a lareira está acesa e a água, bem quente.

— Não duvido que ela tenha se escondido nas moitas das redondezas. Vamos tirá-la de lá — continuou o velho Giorgio.

Durante duas longas horas os aldeões revistaram a mata e sondaram o cume das árvores. Em vão.

— A dona deve ter percebido alguma coisa e abandonou a toca — res-mungou o ferreiro. — Que vá fazer suas diabruras em outro lugar!

Em seguida, voltou para o casebre, soprou as brasas e espalhou-as na cabana de madeira. Ajudado por um caolho, quebrou a única mesa para ali-mentar as fagulhas que dançavam nos quatro cantos da sala. O caolho topou num obstáculo que o fez vacilar.

— Oh, diabo! Uma argola! Há um alçapão debaixo da mesa! — berrou o camponês.

Gritando e gesticulando, homens e mulheres se reuniram no cômodo. Piso-tearam as chamas e se agruparam em torno do alçapão, olhando para a argola como se ela fosse abrir-lhes as portas do inferno. Porque, passado o primeiro momento de júbilo, o pavor vinha novamente congelar os sopros e umedecer as têmporas. O ferreiro preparou duas tochas. Sem uma palavra, fez sinal para que levantassem o alçapão. Um homem segurou a argola. No instante em que a porta de madeira virou, o ferreiro jogou uma tocha no buraco. Instintivamente todos recuaram.

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Nada aconteceu. Os mais afoitos se debruçaram sobre o vazio. Caída de uma altura menor que a de um homem na terra batida, a tocha iluminava os sete degraus de uma pequena escada de madeira. Não se distinguia nada mais.

— Sai do buraco, malvada, se não quer acabar assada — lançou Giorgio num tom que queria dar a impressão de segurança, mas que traía uma angústia surda.

Nenhuma resposta.— Vamos ter de ir lá — retomou o velho, parecendo muito mais

indeciso.Ninguém se mexeu.— São todos uns poltrões — berrou a viúva Trapponi. — Se meu Emílio

morreu, foi ela a culpada.Levantou as saias, agarrou a segunda tocha e se enfi ou no esconderijo.Quando chegou embaixo, iluminou o fundo da cavidade. No minúsculo

reduto, um corpo imóvel, coberto com um lençol, estava estendido num col-chão rústico no chão úmido. A mulher se aproximou. Dominando o terror, deu um passo adiante e puxou o pano com um gesto seco.

Abafou um grito, fez várias vezes o sinal-da-cruz e subiu precipitadamen-te. Com os olhos arregalados, agarrou-se à camisa do ferreiro.

— É obra do diabo! — ela urrou.

2

O IRMÃO PORTEIRO fi cou muito surpreso ao descobrir aquela estranha comitiva de camponeses transportando um corpo numa carroça.

— Sou o chefe da aldeia de Ostuni. Queremos ver o abade — disse o velho Giorgio.

— Nosso pai abade não está. O que desejam? — respondeu o monge com fi rmeza.

A ausência do superior do monastério desconcertou os camponeses. O que tinham descoberto era por demais importante para que contassem a um simples monge. Depois de um instante de hesitação, ele continuou:

— E quem dirige o monastério em sua ausência?— Dom Salvatore, o prior — respondeu secamente o irmão porteiro,

irritado com o fato de aqueles simples camponeses não quererem falar com ele. — Mas não o perturbamos por ninharias. De que se trata? É algum morto?

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— perguntou ele olhando na direção do corpo estendido na carroça e coberto por um lençol.

— Pior! — afi rmou o camponês solenemente.O monge, então, leu em seus rostos uma expressão de terror que o con-

venceu a incomodar o prior do monastério.Idealmente situado numa pequena colina sobranceira ao mar, cercado

de plantações de oliveiras, o monastério San Giovanni in Venere ainda era, em meados do século XVI, o principal centro religioso da vasta região dos Abru-zos. Situado no centro da Itália, esse maciço montanhoso ligava-se a Roma pela via Trajana, que dava no sopé do monastério, no pequeno porto de Venere, a uma dezena de léguas ao sul de Pescara, um dos maiores portos do mar Adriá-tico. O nome do lugar se devia à deusa Vênus. A lenda conta que um templo fora construído por um mercador naufragado, que afi rmava ter sido salvo por Vênus, a deusa nascida das águas. Dedicado à Vênus Conciliadora, era visitado por numerosos casais que ali iam pedir os favores da deusa do Amor. Uma igreja foi construída sobre as ruínas do santuário pagão, no início do século VIII, por um monge beneditino. Foi dedicada a Santa Maria e a São João. Em 1004, a igreja foi transformada em abadia pelos beneditinos. O nome que lhes deram conserva, fato raríssimo, a memória de seu passado pagão: San Giovanni in Venere.

A abadia conheceu um desenvolvimento fulgurante e teve, durante quase dois séculos, imensa irradiação econômica, cultural e espiritual. Ali se ensi-navam as artes, os diferentes ofícios. Possuía uma rica biblioteca com muitos copistas. Depois vieram os anos sombrios. Em 1194, foi saqueada por soldados da quarta Cruzada. Recuperou um pouco do lustre, mas em 1466 um horrível terremoto a destruiu em parte. Em 1478, a peste dizimou os monges que a estavam reconstruindo. Os sobreviventes conseguiram, à custa de trabalho e orações, recuperá-la e, naquele ano da graça de 1545, uma comunidade de uns quarenta monges ali morava, sob a direção do abade Dom Teodoro, secundado por Dom Salvatore, prior do monastério.

Como ainda estava um pouco frio nos primeiros dias da Quaresma, o prior vestiu uma larga túnica de lã marrom por cima do hábito preto de bene-ditino e saiu para receber os aldeões.

— A Paz de Cristo! — disse, dirigindo-se a eles.O velho Giorgio tirou o chapéu e limpou a garganta.— Somos da aldeia de Ostuni, padre, a umas vinte léguas daqui.

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— E por que fazer uma viagem de vários dias com este corpo?— O senhor deve saber, padre, que uma maldição se abateu sobre nossa

infeliz aldeia desde o Natal.— De fato, recebemos pedidos de preces — prosseguiu o prior que, de

repente, lembrou-se do emissário enviado ao monastério seguramente um mês antes. — Várias pessoas morreram de modo estranho, não foi?

— Tudo começou exatamente depois do Natal — continuou o campo-nês, satisfeito de ver que o monge se lembrava. — O fi lho do ferreiro caiu e se afogou no poço. Na festa de São Roberto, uma viga do aprisco caiu em cima de Emílio e lhe partiu os ossos. Alguns dias depois, foi a mulher de Francesco que morreu no parto do seu pequenino. E ainda na festa da Candelária, o velho Tino se foi numa noite, esvaziando as tripas, ele que era forte como um carvalho.

— É mesmo muito triste. Vamos continuar rezando pela salvação de seus parentes para que o Senhor os poupe de novas provações.

— Suas preces não serão o sufi ciente... Tudo isso traz a marca do Malig-no, padre.

Ao pronunciar essas palavras, o camponês observou a reação do monge. Vendo que ele continuava impassível, insistiu:

— Foi por causa daquela feiticeira que vive no bosque do Vediche! Cer-tamente ela tem negócios com o diabo e seus asseclas.

— O que vocês sabem sobre isso?— Ela se instalou numa cabana abandonada menos de uma lua antes do

Natal. Depois, ela foi à aldeia para aplicar sua medicina das plantas em troca de legumes e aves. Alguns não hesitaram em lhe pedir remédios para aliviar suas dores, e começaram a ir à cabana. Mas exatamente antes que todas essas desgra-ças se abatessem sobre nós, ela se recusou a tratar uma feia queimadura na mão do ferreiro. Depois, foi Francesco que ela se recusou a ajudar, e o amaldiçoou, gritando muitas injúrias contra Nosso Senhor. Um perdeu o fi lho, e outro, a mulher e o fi lho. Isso tudo é só bruxaria!

O monge fi cou por alguns instantes pensativo, em seguida, olhou para o velho camponês:

— Que prova vocês têm de que essa mulher é, de fato, a causa de todos esses males?

— O que eu sei — continuou o camponês com a voz trêmula — é que ela lançou feitiço na aldeia, e que o cemitério se encheu mais depressa em duas luas do que em quatro estações. É uma feiticeira! Somente as chamas nos libertarão da má sorte!

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— Vamos, vamos! Acalmem-se. Não se queimam pessoas desse modo. É preciso fazer uma investigação sobre essas mortes e interrogar a mulher. Eu falarei com o preboste do condado...

— Precisa de preboste, não; a malvada fugiu... e nós temos a prova de suas tramóias com o Maligno!

— Ah, é? Tenho curiosidade em vê-la.O camponês esboçou um sorriso desdentado e estendeu a mão na direção

da carroça.— A prova está aqui!Intrigado, o prior adiantou-se. Os aldeões se afastaram em silêncio. Dom

Salvatore segurou o pano que escondia a forma estendida e, com um gesto respeitoso, descobriu o rosto, depois o corpo.

Tratava-se de um homem de uns 30 anos, bem bonito, embora bastante emagrecido. Estava totalmente nu. Do lado, perto do coração, o prior notou uma longa cicatriz. O homem respirava, o coração batia, mas os olhos perma-neciam fechados.

— Pois bem — retomou o monge, virando-se para os aldeões —, o que isso signifi ca?

O chefe da aldeia retomou a palavra.— Nós o encontramos no porão da casa da feiticeira. Ele vive, mas a ca-

beça está ausente. Com certeza a mulher se dedicava a exercícios de magia com ele. Encontramos uma quantidade de pós e bálsamos perto dele. E olhe: ela o marcou nos pés e nas mãos com os sinais do Demônio... ele é um possuído. Foi por isso que o trouxemos para o monastério!

O monge observou a presença de curiosos sinais geométricos traçados a carvão nos pés e nos pulsos. Ele pensou, contudo, que não se pareciam em nada com símbolos satânicos e que poderiam estar ligados a uma técnica de tratamento, pois os sinais estavam cobertos com um ungüento ambarino. Vi-rou-se para os aldeões:

— Vocês conhecem este homem?— Não — respondeu Giorgio —, ele não é da aldeia. A gente quer saber

como é que ele pôde cair nas garras dessa diaba!— De fato, é uma história curiosa. Fizeram bem em trazê-lo. Vamos

mantê-lo aqui. Quanto a vocês, deixem a mulher em paz. Se ela reaparecer, avisem-me!

— Não demore a exorcizar o homem... O diabo está nele, com certeza!Dom Salvatore esboçou um sorriso à guisa de resposta. Mandou que o feri-

do fosse transportado para a enfermaria do monastério, e dispensou os aldeões.

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À noite, no capítulo da comunidade, ele contou o incidente. Confi ou o estrangeiro às preces da comunidade e aos cuidados de Frei Gasparo. Este afi rmou ao prior que o grave ferimento lateral tinha sido feito por uma adaga. Provavelmente, ela devia ter transpassado o coração. O homem escapara por milagre, e o ferimento tinha sido muito bem cuidado com cataplasmas de plantas. Embora o pulso estivesse fraco, suas funções vitais estavam preserva-das. Mas permanecia inconsciente, como que perdido num sono profundo. Os irmãos escutaram as explicações do prior. Em seguida, Dom Marco, um antigo prior de idade avançada, observou a Dom Salvatore que era contrário à regra deixar entrar um leigo na clausura monástica.

A enfermaria, de fato, situava-se nas partes comuns reservadas aos mon-ges. Como todos os mosteiros beneditinos, San Giovanni in Venere era com-posto de uma igreja, um claustro e edifícios conventuais onde viviam os ir-mãos. Na maioria das abadias, o espaço comum cerca o claustro, verdadeiro coração do monastério, que os monges utilizam para irem de um lugar a outro. Lá, como a abadia se ergue num terreno inclinado, os construtores edifi caram a igreja ao longo da face oeste do claustro, e o conjunto de prédios conven tuais, em três níveis ao sul do claustro, na encosta, de frente para o mar, com as faces norte e sul voltadas para os jardins. No andar inferior das partes comuns fi ca-vam o celeiro, o acolhimento e a hospedaria, únicos lugares abertos às pessoas estranhas ao monastério. No nível médio, na altura do claustro e da igreja, situavam-se a cozinha, o refeitório, o scriptorium, a enfermaria e a ofi cina de pintura. Por fi m, no andar superior, o dormitório dos monges, as latrinas e as celas do abade e do prior.

Dom Salvatore admitiu sem difi culdade que infringira a santa regra ao deixar que um leigo entrasse na clausura monástica. Justifi cou a decisão com a gravidade do estado do doente, que necessitava de cuidados intensivos, difíceis de oferecer fora da enfermaria. Lembrou aos irmãos que, segundo o próprio espírito de seu fundador, a caridade era a virtude suprema à qual ninguém poderia se furtar sem infringir certas regras em uso. A maioria dos irmãos não fi cou convencida com a vontade do prior, mas, na ausência do abade, ninguém poderia contestar suas decisões.

A noite caiu sobre o monastério. Depois do ofício das Completas, os monges se recolheram ao dormitório, e Dom Salvatore, à sua modesta cela.

Aquele homem sólido, de uns 50 anos, de rosto fi no, iluminado por um belo olhar azul, entrara para os beneditinos com a idade de 17 anos. Longos

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estudos fi zeram dele um mestre em teologia e nas Escrituras Sagradas. Eleito pela terceira vez para o cargo de prior do monastério de San Giovanni in Vene-re, havia dez anos, ele assumia todas as decisões na ausência do abade. Homem doce e humilde, era o contrário de Dom Teodoro, o pai abade eleito vitalício, um velho frio e infl exível.

Naquela noite, ele estava preocupado. Não acreditava na história de bru-xaria e possessão diabólica, mas sentia confusamente, como uma espécie de pressentimento, que aquele homem ferido iria causar-lhe muitas difi culdades.

Ainda era noite alta quando Frei Gasparo bateu na porta da cela do prior.— Venha depressa, Dom Salvatore!— O que há? — perguntou o prior, entreabrindo a porta enquanto co-

locava o escapulário.— Aconteceu algo insólito na enfermaria. A sala está iluminada e fechada

por dentro... e tem sangue escorrendo por debaixo da porta!

3

O IRMÃO CONTINUOU a contar enquanto caminhavam.— Eu me levantei um pouco antes do ofício das Matinas para

fazer curativo no ferido. Quando cheguei à enfermaria, fi quei espan-tado ao ver que a sala estava iluminada. Qual não foi minha surpresa quando constatei que o ferrolho interno estava fechado! Impossível abrir a porta... e, de repente, senti um líquido quente escorrer nas minhas sandálias. Quando perce-bi que era sangue, corri para avisar ao senhor. Parece que degolaram um boi!

— Quem dormia na enfermaria esta noite?— Apenas o homem ferido que os camponeses trouxeram.Nessa altura, os dois monges chegaram ao limiar da sala. Com uma to-

cha, Frei Gasparo iluminou a parte de baixo da porta fechada. O prior sentiu uma ânsia de vômito ao ver a poça de sangue que se espalhava a seus pés. De-pois, fez sinal ao irmão para que o ajudasse a arrombar a porta. Os dois homens conseguiram romper o pequeno ferrolho, que se quebrou brutalmente, e os monges se viram diante de um espetáculo de pavor.

A sala estava iluminada por uma tocha presa à parede. O homem que fora trazido da aldeia pelos aldeões estava estendido no chão, com o rosto

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tumefato, os braços em cruz; da ferida lateral escorria um fi lete de sangue. A alguns metros dele, jazia outro corpo num lago de sangue.

— Meu Deus! — exclamou o prior. — Frei Modesto! Ele... ele foi...— Estripado — constatou Frei Gasparo, com a voz trêmula. — Seu

ventre foi transpassado por uma lâmina de cauterização que eu tinha deixa-do perto do ferido — acrescentou, observando o objeto cortante ao lado do corpo.

— O que aconteceu? Quem cometeu esses crimes terríveis dentro de nossos muros?... E por quê?

— Mas por onde entrou o assassino? — inquietou-se Frei Gasparo. — A sala estava trancada por dentro... Ele ainda tem de estar aqui...

— Tem razão — emendou o prior, pegando um atiçador.Em seguida, fez sinal ao monge para que este abrisse o armário, o único

lugar onde um homem poderia se esconder. Com o coração palpitando, Frei Gasparo abriu a porta de madeira. Nada. Os dois homens se olharam, estu-pefatos. Dom Salvatore foi inspecionar as pequenas lucarnas rentes ao teto, mas elas eram estreitas demais para dar passagem a um homem, ou mesmo a uma criança. Restava a lareira. Só havia uma solução: o assassino deveria ter jogado uma corda para fugir. Os monges examinaram a passagem com o au-xílio de uma tocha. Surpreendentemente, não encontraram nenhum indício. Nenhuma marca de fuligem no chão, nenhuma marca ao longo da parede.

— É impossível — concluiu o prior, passando o dedo pelo conduto ne-gro. Quem quer que tenha passado por aqui teria inevitavelmente marcado as paredes.

— Foi... foi o diabo em pessoa que entrou — acrescentou Frei Gasparo com a voz trêmula.

Diante dessas palavras, o prior não pôde deixar de pensar no aviso dos aldeões. Afastou esse pensamento.

— Não podemos deixar estes cadáveres assim. E o assassino ronda talvez ainda dentro de nossos muros... Logo as Matinas vão tocar, é preciso...

— Ele ainda está vivo! — interrompeu bruscamente o irmão enfermeiro que se debruçara sobre o corpo do estrangeiro. — Se não perdeu muito sangue, e se eu conseguir fechar a ferida, ele tem uma chance de sobreviver.

O prior ajudou Frei Gasparo a recolocar o corpo inanimado no leito. Depois, enquanto o enfermeiro tentava salvar o moribundo, limpou o cadáver de Frei Modesto. Assim que as Matinas tocaram, ele deixou o irmão, ainda aterrorizado, prosseguir com o tratamento, e atravessou o claustro para ir à igreja e presidir o ofício.

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Ao término da liturgia, anunciou aos quarenta monges a convocação de um capítulo extraordinário. Frei Gasparo juntou-se a eles. O prior transmitiu-lhes as trágicas notícias da noite, omitindo apenas que a porta estava fechada por dentro, a fi m de evitar que um pânico irracional tomasse conta do monas-tério. Todos se olhavam, estupefatos. Quem teria cometido semelhante crime contra um deles? E por que também tentaram assassinar o misterioso ferido? E se perguntaram ainda o que Modesto fazia na enfermaria, no meio da noite. A menos que o tivessem matado em outro lugar e transportado para lá. Os monges passaram todo o dia obcecados com aquelas perguntas. A fi m de evitar um escândalo na ausência do abade, Dom Salvatore pediu à comunidade para guardar segredo sobre os trágicos acontecimentos, e, para os de fora, foi divul-gado o falecimento acidental de Frei Modesto.

Logo os monges tomaram providências para vigiar dia e noite a entrada do monastério.

Dois dias depois, o infeliz frade foi sepultado no cemitério dos monges, vizinho da abadia, de frente para o mar. Assim que o ofício terminou, Dom Salvatore foi à enfermaria em companhia de Frei Gasparo. Quando chegou à cabeceira do homem, ele se informou sobre seu restabelecimento.

— Com a graça de Deus, está recuperando as forças — comentou o enfermeiro. — Os ferimentos do rosto são superfi ciais, e eu consegui fechar o corte mais feio. Algumas horas a mais, e ele perderia todo o sangue.

— Ele não recuperou a consciência?— Ainda não. Já vi casos semelhantes. Eles fi cam, às vezes, entre o mun-

do dos vivos e o dos defuntos. Só Deus conhece-lhes o destino.— Sim, sua vida está nas mãos do Senhor — murmurou o prior,

levantando-se.Voltou, em seguida, para a cela que também lhe servia de escritório. Sen-

tou-se e registrou por escrito os acontecimentos do dia. O relatório destina-va-se ao pai abade que voltaria em algumas semanas de uma longa viagem ao estrangeiro. Dom Salvatore tremia já diante da idéia de anunciar a terrível no-tícia ao irascível Dom Teodoro.

O septuagenário, que gostava de ordem e de disciplina, não deixaria de lembrar ao prior que nenhum incidente maior jamais acontecera em sua presença em mais de trinta anos de abaciato. Dom Salvatore desejava, pois, esclarecer aquele crime atroz antes da volta de seu superior. Infelizmente, nin-guém vira ou ouvira coisa alguma durante aquela noite, e não se tinha encon-

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trado vestígio algum deixado pelo assassino. Sabia-se apenas, de acordo com o testemunho de vários irmãos, que o pobre Modesto se levantara e saíra do dormitório entre as Completas e as Matinas. Mas, como às vezes acontecia de esse piedoso insone ir à cripta da igreja para rezar durante a noite, ninguém se preocupou. O prior imaginou que o irmão deveria ter ouvido um ruído suspeito na enfermaria quando caminhava pelo claustro, e teria então dado com um indivíduo que tentava assassinar o ferido, provavelmente por sufoca-ção, como faziam supor as marcas em seu rosto. O monge se teria interposto, tornando-se ele mesmo vítima do monstruoso assassino. “Tudo isso parece plausível”, pensou o prior, “mas como pôde fugir, deixando o ferrolho puxado por dentro?”

Absorvido por essas perguntas, Dom Salvatore foi se ajoelhar diante do ícone da Virgem, num nicho perto de sua cama.

O monastério beneditino de San Giovanni in Venere tinha a particula-ridade de possuir uma ofi cina de ícones. Essas pinturas sobre madeira, repre-sentando o Cristo, a Virgem, ou os santos, eram muito difundidas na Igreja Ortodoxa do Oriente. Mas desde o grande cisma do século XI entre a Igreja do Oriente e a Igreja do Ocidente, os latinos tinham privilegiado as escultu-ras ou os vitrais. Ora, o abade do monastério de San Giovanni conservara, a partir de uma estada no Oriente, o gosto pronunciado pelas santas imagens pintadas. Enviou dois irmãos particularmente dotados para a pintura à ilha de Creta, a fi m de ali aprenderem a técnica. Um deles morrera, mas o segundo, Frei Angelo, continuava exercendo sua arte numa pequena ofi cina situada ao lado da enfermaria. Por causa disso, inúmeros ícones ornamentavam a igreja do monastério, e ainda outras peças conventuais, como o refeitório, a sala do capítulo, ou ainda as celas do prior e do abade.

Olhando fi xamente para a imagem da Virgem, Dom Salvatore confessou à Mãe do Cristo os tormentos que o agitavam. Depois, entregou-lhe a vida e especialmente a alma daquele homem que de repente irrompera na vida bem regrada do monastério. Como bom discípulo de Aristóteles e de Tomás de Aquino, ele era pouco inclinado a crer em manifestações sobrenaturais. Ou, pelo menos, procurava antes uma explicação racional para todo fenômeno apa-rentemente estranho. Essa sábia atitude lhe havia permitido desmascarar falsas manifestações de Deus ou do diabo, por vezes até em alguns monges um pouco exaltados demais. Dessa vez, porém, ele se perguntava, no fundo de si mesmo, se o diabo não estaria metido nos acontecimentos dos últimos dias.

Foi então que, apesar da hora tardia, bateram novamente na porta de sua cela.

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“SENHOR, O QUE mais aconteceu?”, pensou o santo homem, levantan-do-se com difi culdade para ir abrir.

Com o capuz levantado, como exige o uso depois das Com-pletas, Frei Gasparo parecia muito agitado.

— Ele abriu os olhos! O ferido recuperou a consciência.O prior fi cou aliviado por fi nalmente ter uma boa notícia. Logo acom-

panhou o monge enfermeiro, com pressa de interrogar ele mesmo o homem a respeito dos trágicos acontecimentos da antevéspera.

— Ele ainda não pronunciou uma única palavra — prosseguiu Frei Gas-paro —, mas permanece tranqüilo, com os olhos bem abertos, fi xos no teto.

Os dois monges entraram na enfermaria. Dom Salvatore teve um movi-mento de surpresa quando viu o olhar do ferido. O homem tinha o ar ausente, o rosto estava escavado, deixando aparecer maçãs salientes, mas os olhos, de um negro intenso, estavam impressos de gravidade e pareciam presos ao mais íntimo do ser. Dom Salvatore soube no mesmo instante que aquele homem voltava do abismo. Leu em sua alma e nela adivinhou um destino ao mesmo tempo trágico e luminoso. “Certamente, esse homem conheceu o paraíso e o inferno”, pensou.

— Está me ouvindo, meu amigo? — sussurrou ao ouvido do doente. — Talvez me ouça e não possa me responder — continuou em voz suave.

Depois de um tempo de silêncio, tomou-lhe a mão. O homem não ma-nifestou inicialmente nenhuma reação. Depois, virou lentamente a cabeça em direção ao monge e o olhou sem dizer nada. Dom Salvatore procurou captar no fundo de seus olhos uma palavra muda. Em vão. Depois de alguns instan-tes, o homem desviou o olhar e de novo fi xou o teto.

O prior desfez o aperto de mão e, lentamente, afastou-se em direção à porta. Frei Gasparo verifi cou a atadura enrolada no peito do ferido, e se apro-ximou do superior do monastério.

— Ele tem consciência do que o cerca, mas parece ausente de si mesmo — soprou Dom Salvatore. — Será que perdeu a memória?

— Isso pode de fato sobrevir a um choque violento — concordou o ir-mão enfermeiro. — Foi o que aconteceu com uma irmã de minha mãe, depois que ela viu o marido ser esmagado por uma carroça.

— Ela recuperou a memória?— Sim, depois de mais de um ano.

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— Como aconteceu?— Quase que por acaso. Um dia, um mercador desempacotou uns brin-

quedos. Minha tia se imobilizou e olhou para uma pequena boneca de trapo. Não podia tirar os olhos dela. E, de repente, parte de sua memória lhe voltou. Ela se virou para a minha mãe e lhe disse: “Olhe como ela se parece com a boneca que nós disputávamos antigamente.” A partir daquele momento, todos os dias, acontecimentos de seu passado lhe voltavam, até que ela fi cou boa da cabeça.

— Muito interessante — retomou o prior, parando diante da porta de sua cela. — Notou o olhar daquele homem?

— É triste e profundo — respondeu Frei Gasparo depois de um instante de refl exão.

— É verdade. Mas também vi nele luz, inteligência. Quase que ousaria dizer... saber. Esse homem não é um camponês.

— Suas mãos não são de um camponês. Talvez um mercador.— Eu diria antes um artista, ou um intelectual, mas minha imaginação

pode me pregar peças. Continue a tratá-lo com atenção e interrogue-o tanto quanto você puder. Avise-me se ele pronunciar a menor palavra.

Os dois monges se separaram. Tiveram difi culdade em conciliar o sono. Dom Salvatore rezou de novo à Virgem por aquele desconhecido. Desejava, é certo, que ele recuperasse a memória para esclarecer o assassinato inexplicá-vel de Frei Gasparo, e pensou que aquele homem tinha, sem dúvida, erguido um muro entre sua consciência e seu passado para ocultar uma imagem insu-portável. Qual? Como fazer com que recuperasse a memória? O que fazia na cabana da curandeira que os aldeões acusavam, com ou sem razão, de praticar bruxaria?

A prece do monge se transformava em numerosas perguntas, e ele acabou cochilando, encolhido diante do ícone de Maria, até que o sino do ofício das Matinas o surpreendesse.

Durante os dias que se seguiram, a saúde do ferido melhorou conside-ravelmente. Ele era de constituição bastante forte, e suas forças voltavam com uma rapidez que surpreendeu o irmão enfermeiro. Oito dias depois de ter recuperado a consciência, já podia se levantar e dar alguns passos. Frei Gasparo temia que uma queda reabrisse a ferida no peito, mas Dom Salvatore o enco-rajou, ao contrário, a atender a vontade do ferido de recuperar a mobilidade e explorar o lugar onde se encontrava.

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Apoiado ora no irmão enfermeiro, ora no prior, o homem progrediu cada dia um pouco mais. Deixou a enfermaria e percorreu o corredor que servia as peças comuns do andar: a cozinha, o refeitório, o scriptorium, a ofi cina de ícones. No fi nal do corredor, ele acabou entrando no claustro. Depois, con-seguiu contorná-lo integralmente. Dom Salvatore esperava todos os dias que ele recuperasse a memória e não deixava de observar seu olhar. Mas o homem continuava mudo; nada em seus olhos traía uma emoção ou o surgimento de uma lembrança oculta.

O prior teve de suportar as observações de vários irmãos que exigiam que o doente deixasse a clausura e fosse para a hospedaria. Ele se opôs a isso com o pretexto de que o homem tinha sido vítima de duas tentativas de assassinato, e que seria muito perigoso deixá-lo sair naquele estado da clausura monástica, agora rigorosamente guardada. Suas explicações não satisfi zeram os monges mais atentos ao estrito respeito à regra. O prior sabia que deveria prestar contas dessa audaciosa decisão ao pai abade assim que este voltasse de viagem. Sabia também que corria o risco de que o ancião o desaprovasse e expulsasse o ferido do monastério. A partir dali, tinha pouco tempo, já que o abade anunciara sua volta na Páscoa. Restavam, portanto, ao prior, menos de três semanas para ten-tar fazer o desconhecido recuperar a memória e, assim, elucidar o tão horrível quanto misterioso assassinato de Frei Modesto.

Foi então que Dom Salvatore recebeu, exatamente depois do ofício da noite, a visita de Frei Angelo, o pintor de ícones do monastério, que lhe anun-ciou uma bem estranha notícia.

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– EXATAMENTE ANTES das Completas, lembrei-me de que tinha esquecido de fechar à chave a ofi cina — cochichou, excitado, Frei Angelo ao prior, todo ouvidos. — Estava voltando, pois,

quando descobri que a porta estava entreaberta, e a sala, iluminada. Aproximei-me com precaução e dei uma olhada lá dentro. Qual não foi minha surpresa ao ver o ferido sentado à minha mesa, iluminado por uma tocha, gravando numa madeira emboçada que eu havia deixado de reserva.

— Quer dizer que ele pegou seu estilete para gravar o desenho de um ícone?

— Não sei de nada! Eu não quis entrar. Corri para avisar o senhor...

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— Fez bem — concluiu o prior, arrastando o monge para a ofi cina de pintura. — Vamos ver o que há.

Quando chegaram ao corredor, os dois monges constataram que a ofi cina estava mergulhada na escuridão.

— Tomara que não tenha acontecido nada — resmungou o prior, ansioso.Eles entraram na sala, que iluminaram nos menores cantos com o auxílio

da tocha. O homem tinha sumido, sem dúvida para voltar à enfermaria. Mas, quando a luz mostrou a mesa de trabalho, Frei Angelo não pôde reprimir um grito.

Na madeira emboçada com uma leve camada de gesso, o amnésico tinha gravado uma Virgem segurando ternamente o Menino Jesus nos braços. Os traços eram magnífi cos e as proporções, perfeitas.

— Por São Bento, é espantoso! — exclamou Frei Angelo. — Uma Vir-gem da Misericórdia! Como é que ele pôde fazer um traçado em tão pouco tempo... e sem modelo?

— Você quer dizer que ele não se inspirou em um ícone já pintado? — perguntou Dom Salvatore, cujo olhar esquadrinhava a sala à procura de eventuais modelos.

— Impossível! Eu nunca pintei esta Virgem. É um ícone do célebre pin-tor russo Andrei Roublev que viveu no século XIV.

— O que signifi ca que nosso homem já pintou este ícone — comentou o prior, pensativo.

— Certamente. E inúmeras vezes, se eu considerar a fi rmeza de seu traço. Mas não foi absolutamente na Itália que ele aprendeu esta arte.

— Você conhece um lugar onde se pintem essas Virgens da Misericórdia? — perguntou Dom Salvatore, cada vez mais intrigado.

Frei Angelo passou os dedos nos lábios e fi cou pensativo.— Só existem, que eu saiba, duas ofi cinas no mundo onde sabem pintar

essas Virgens — continuou o monge gravemente. — O primeiro é o grande monastério russo de Zagorsk, não longe de Moscou.

— Moscou! — exclamou o prior.— O segundo é uma península grega onde só habitam monges e onde

pintores russos enxameavam: o monte Athos.— O que signifi caria que nosso homem teria vivido e aprendido a pintar

ícones na Rússia ou na Grécia — continuou o prior.Frei Angelo se virou para ele:— Sim. Mas muito poucos leigos são autorizados a pintar nesses lugares

sagrados da Ortodoxia... Nosso homem é provavelmente um monge!

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AFIM DE NÃO aumentar o clima de confusão que reinava no monastério, Dom Salvatore decidiu manter em segredo aquela espantosa descober-ta. Ordenou a Frei Angelo que, a partir dali, deixasse a porta da ofi cina

de pintura aberta e observasse todas as ações e gestos do amnésico, sem jamais perturbá-lo em seu trabalho.

Todas as noites, quando os monges dormiam, o homem se instalava na ofi cina e continuava sua obra. Deixava, então, o ícone no lugar, sem nenhuma preocupação.

Depois de ter gravado o desenho da Virgem, e posto as folhas de ouro nos contornos dos personagens, ele selecionou cuidadosamente os pigmentos, misturou-os em gema de ovo e se pôs a pintar. Partindo das camadas mais es-curas da pele e das vestimentas, ele introduzia progressivamente a luz, e o ícone ganhava vida, com uma rapidez espantosa.

Frei Angelo estava surpreso com a destreza do pintor e com a delicadeza do drapeado da Virgem, assinatura dos grandes pintores de ícones. O prior, por sua vez, via naquilo o sinal evidente de que sua intuição não o enganara. Que incrível destino havia levado um monge ortodoxo, pintor de ícones, a ser gravemente ferido e recolhido por uma curandeira em pleno coração do maciço italiano dos Abruzos? Que pesado segredo carregava para que se pro-curasse matá-lo no interior do monastério, sem hesitar em assassinar selvage-mente outro monge que fora defendê-lo? Dom Salvatore só tinha uma idéia em mente: descobrir a identidade e a história daquele homem. Mas como?

Numa manhã, durante o ofício de Laudes, o prior teve uma nova idéia cuja paternidade atribuiu imediatamente ao Espírito Santo, tanto lhe parecia lumino-sa. Havia uma possibilidade em duas de que o amnésico tivesse vivido no célebre monte Athos. Ora, Dom Salvatore mantinha excelentes relações com um rico mercador de Pescara, Adriano Toscani, que ia freqüentemente à Grécia. Por que não lhe confi ar a missão de ir até Athos com um retrato do amnésico, esboçado por Frei Angelo, para indagar sobre o misterioso pintor de ícones? Mandou cha-mar o mercador, que aceitou de boa vontade ir a Athos, tanto mais que se prepa-rava para afretar um navio para a Grécia. O monte Athos fi cava a apenas três ou quatro dias de Pescara. Em 15 dias, no máximo, afi rmava, estaria de volta.

* * *

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Dom Salvatore pedia aos Céus para que o abade não voltasse antes que Toscani tivesse levado sua missão a cabo.

Esperando sua volta com ansiedade, ele continuava, todos os dias, indo à ofi cina para avaliar o avanço do trabalho do pintor. Um detalhe tinha impres-sionado os dois monges: o homem tinha quase acabado de pintar o rosto, as vestimentas, as mãos, mas, curiosamente, tinha deixado em branco os olhos da Virgem. Ora, cinco dias depois da partida de Toscani, Dom Salvatore viu que o resto do ícone estava inteiramente acabado, e que o homem tinha começado a pintar os olhos. O prior se inclinou sobre a obra quase acabada e constatou que os olhos da Virgem estavam fechados. “Uma Virgem de olhos fechados! Nunca vi nem ouvi falar de algo semelhante.”

Passada a surpresa, Dom Salvatore constatou a emocionante beleza da Virgem. Aquele detalhe fazia sobressair o leve sorriso que o pintor esboçara nos cantos da boca da mãe do Cristo, e lhe dava uma profundidade e uma doçura inigualáveis. Maria parecia, assim, absorta numa contemplação interior. Longe de lhe dar um ar ausente, aquela interioridade tornava-a intensamente presente em face do Menino Jesus.

— Este ícone emite uma força perturbadora — murmurou Dom Salva-tore, com a garganta presa de emoção.

Ele fi cou um longo tempo imóvel diante do ícone da Virgem de olhos fechados. Sua curiosidade se transformara em prece, e sua prece, em lágrimas que não conseguia conter. Jamais uma pintura o levara a sentir tanto a presença amorosa de Maria. “Este ícone é uma obra-prima”, pensou. “Ele só pode ser obra de um homem que atravessou o inferno das paixões e as superou. Um homem que vem dizer que a misericórdia divina é como o amor de uma mãe. Que ela é mais forte do que a morte...”

Dom Salvatore foi brutalmente arrancado de sua meditação por um gri-to rouco. Saiu precipitadamente da ofi cina. A alguns metros dali, diante da enfermaria, ele viu o amnésico de pé, o olhar cheio de pavor. O monge correu até ele para interrogá-lo. Mas embora falasse pela primeira vez com os olhos, nenhuma palavra saía-lhe dos lábios. Ele estendeu a mão para a enfermaria que estava mergulhada na escuridão. O prior iluminou a sala com a tocha e, por sua vez, soltou um grito de pavor.

Um monge jazia de costas, os olhos arregalados, o olhar alucinado, como se tivesse visto o diabo em pessoa. Estava morto.

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ANOTÍCIA DA MORTE brutal de Frei Anselmo foi anunciada à comunidade pelo prior logo no dia seguinte de manhã, depois do ofício de Laudes. A fi m de evitar o desastroso efeito do pânico, o superior tinha passado

a noite investigando, em companhia do frade enfermeiro, as causas da morte. Uma conclusão se impunha: o infeliz frade tinha morrido por ter tomado um violento veneno. Pacientemente, os dois monges conseguiram reconstituir o que poderia ter acontecido. O amnésico não lhes foi de nenhuma ajuda. Depois de ter avisado o prior, ele caíra num estado de total prostração, do qual não saiu.

A partir de inúmeros indícios materiais, os dois monges conseguiram elaborar uma hipótese que poderia explicar a morte do monge.

Depois das Completas, este tinha ido à cozinha, situada ao lado do re-feitório. Tinha bebido uma taça de vinho quente misturado com ervas medi-cinais, destinada ao amnésico, e que o enfermeiro preparava todas as noites depois do ofício. Naquela noite, Frei Gasparo tinha sido chamado de urgência à cabeceira de um irmão dominado por violentos espasmos no ventre. Deixou a bandeja na cozinha com a bebida ainda quente. Por motivo desconhecido, Frei Anselmo viu a taça de vinho e a bebeu. Mas, nesse ínterim, alguém der-ramou nela um veneno violento. O monge logo compreendeu que tinha se envenenado. Foi às pressas para a enfermaria, na esperança de encontrar um remédio. Infelizmente, não teve tempo, e morreu diante dos olhos do amné-sico que acabava de voltar para a enfermaria, depois de ter saído da ofi cina de pintura. Foi seu grito que alertou o prior.

Essa hipótese possibilitava compreender o encadeamento dos fatos e re-pousava sobre indícios precisos, deixando, contudo, sem resposta a questão essencial: quem colocara veneno na taça de vinho destinada ao amnésico? Pois o que parecia mais provável aos olhos dos dois monges era que alguém tinha mais uma vez tentado assassinar o desconhecido. De acordo com essa hipótese, Frei Anselmo teria sido vítima de sua gulodice.

Ainda assim a explicação não chegou a convencer todos os irmãos. Al-guns viam naquilo a obra do Maligno; outros, a do amnésico, o que tinha a vantagem de oferecer um culpado ideal.

A hipótese do prior apresentava, de fato, aos olhos da comunidade, um estorvo maior: uma terceira pessoa tinha posto o veneno. Ora, como a clausura do monastério fi cava perfeitamente fechada desde o primeiro crime, uma terrí-vel conclusão se impunha: o assassino era um dos monges da comunidade.

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FOI NESSE CONTEXTO deletério que Dom Teodoro, o pai abade, voltou de viagem. Antes mesmo de transpor o limiar do monastério, foi infor-mado sobre os acontecimentos por um monge que tinha saído ao seu

encontro sem o conhecimento do prior. Escoltado por outros cinco irmãos que o tinham acompanhado em seu distante périplo, ele chegou ao monastério ao cair da noite e foi para a igreja no meio do ofício de Completas. Os monges fi caram enormemente aliviados por reencontrar seu abade. Antes de sair da igreja, ele sussurrou ao pai prior que o procurasse dali a uma hora em sua cela, depois que tivesse feito uma colação.

Na hora marcada, Frei Salvatore deu três golpes secos na porta ligeira-mente entreaberta.

— Deo gratias — soprou com voz cansada Dom Teodoro.O prior entrou no cômodo iluminado por dois grandes círios, postos

dos dois lados da imponente mesa de trabalho do pai abade. Curvado sobre as páginas de um grande livro, ele nem mesmo levantou a cabeça para acolhê-lo.

— Volto exausto de uma longa viagem e constato com tristeza que a regra não é mais respeitada neste lugar — suspirou o velho.

Dom Salvatore compreendeu que o abade estava a par de tudo. Não o chamara àquela hora tardia para se informar, mas para acusar.

O prior beijou o escapulário em sinal de humildade e respondeu:— Que Deus me perdoe se faltei às minhas obrigações; infelizmente

nada pude fazer para evitar esses dois crimes horríveis...— Deixemos, por ora, esses crimes — interrompeu-o brutalmente o aba-

de. — São apenas conseqüências de sua negligência.O prior fi cou desconcertado. Dom Teodoro continuava lendo. Prosse-

guiu no mesmo tom cansado:— Soube que um indivíduo, que parece ter perdido a memória, encon-

tra-se sob nosso teto há várias semanas, expressamente por pedido seu. Não sabe que nossos costumes nos impedem de manter leigos, mesmo que feridos, na clausura do monastério?

— Posso, se o senhor o desejar, contar-lhe agora mesmo o que sei a seu respeito. O senhor terá condições de julgar se agi mal, mantendo-o aqui.

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— Faça isso — suspirou novamente o pai abade sem tirar os olhos da mesa de trabalho.

Dom Salvatore contou ao abade as circunstâncias em que havia acolhido o ferido e as do estranho assassinato de Frei Modesto.

— Muito bem — retomou o abade com leve irritação —, eu conheço a seqüência dos acontecimentos. Mas o senhor ainda não me disse por que esse homem ainda se encontra em nossa comunidade que, segundo me consta, não é um hospício!

— Concordo plenamente, Dom Teodoro, mas... este homem tem algo de especial...

O superior ergueu pela primeira vez os olhos para o interlocutor. Na frieza dos olhinhos enfi ados em órbitas escuras, escavadas por anos de jejum e penitência, um brilho de surpresa se acendeu.

Encorajado por esse sinal de interesse, Dom Salvatore continuou sua nar-rativa com mais entusiasmo.

— Assim que ele abriu as pálpebras, seu olhar me tocou e me intrigou. Por detrás daquele corpo abatido e daqueles olhos desvairados, eu pressentia a presença de uma grande alma. Parecia-me adivinhar que aquele homem pos-suía uma história digna de ser ouvida. Decidi então esperar que melhorasse um pouco para interrogá-lo. Infelizmente, embora sua saúde esteja hoje restabele-cida, o homem ainda não pronunciou uma única palavra e parece tão ausente como nos primeiros dias.

— Pois bem, ele partirá amanhã para o hospício San Damiano. Não te-mos vocação para cuidar de loucos — retomou o superior com autoridade.

— Certamente é o que eu teria feito... se não tivesse havido um aconte-cimento inesperado que confi rmou minha primeira impressão.

O abade espremeu os olhos. Dom Salvatore relatou-lhe o episódio do ícone e as palavras de Frei Angelo, segundo o qual o homem poderia ser um monge do monte Athos.

O prior fez uma pausa, buscando uma reação nos olhos do superior. Mas Dom Teodoro permanecia mudo, observando-o com seu olhar de águia.

— Para me certifi car — continuou —, perguntei a um amigo, o mer-cador Toscani, que partia justamente para buscar uma carga de especiarias na Grécia, se ele não poderia fazer uma breve parada em Athos. Nosso amigo deixou Pescara com um retrato do ferido, esboçado por Frei Angelo, há exata-mente 14 dias. Na melhor das hipóteses, poderá estar de volta amanhã.

Dom Teodoro descerrou os dentes e soltou com ironia:

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— Excelente idéia! Assim saberemos sem nenhuma dúvida se nosso ho-mem é um monge ortodoxo que foi transpassado por uma lança enquanto tentava fugir do monastério antes de atravessar o mar a nado para se refugiar em casa de uma feiticeira que cuidou dele perto daqui!

— Sua estada em Athos pode ser antiga, e o homem pode ter vivido, desde então, muitas outras provações — continuou Dom Salvatore sem se deixar desarmar pela arrogância do pai abade, à qual estava habituado. — Sim-plesmente espero que Toscani traga a identidade e a história desse infeliz, ou então alguns indícios que o ajudem a recuperar a memória: um nome, uma lembrança marcante, que talvez o liberte de sua prisão interior.

Um silêncio pesado caiu na cela do pai abade.— Pensa então agir por caridade? — perguntou fi nalmente o velho mon-

ge, escrutando ainda mais Dom Salvatore.— Parece-me que sim... — respondeu o prior, um pouco desestabilizado.— Pois bem, penso que não foi a caridade que motivou sua atenção pelo

pobre infeliz.— E... o que seria?— Curiosidade.— Curiosidade?— Sim, o simples e irreprimível desejo de saber — retomou Dom Teo-

doro, martelando cada palavra com certo júbilo. O senhor pensa estar movido pela santa compaixão, quando apenas cede à tentação do vão saber. No fundo, o destino desse homem lhe importa menos do que satisfazer a vontade de des-cobrir seu passado, sua história, seu nome!

— Admito que uma curiosidade bem humana pôde se juntar à caridade divina em meu ardor em ajudar esse homem — reconheceu humildemente o prior. — Mas o Cristo não ordena “separar o joio do trigo”?

— Como é fácil apelar para as Santas Escrituras para justifi car nossas in-clinações mais vis! — replicou o pai abade, que sentia crescer a cólera em suas veias que de repente saltaram.

— Por mais humana que seja, a curiosidade não é louvada pelos fi lósofos como uma virtude, mais do que como um vício? O grande Aristóteles não afi rma que o espanto está na origem da fi losofi a? — continuou o prior, que não tinha intenção de abdicar da peleja intelectual para a qual o abade o ha-via arrastado. — E Tomás de Aquino não lembrou que foi o questionamento fi losófi co que conduziu, pelas luzes da razão, os maiores fi lósofos antigos até a idéia do Único Criador?

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— Pouco me importa o que pensavam Aristóteles ou Platão — zangou-se Dom Teodoro. — O senhor sabe muito bem que eu não aprecio a importân-cia exagerada dada por alguns de nossos teólogos a esses pensadores pagãos. Quanto a mim, prefi ro me reportar às Sagradas Escrituras, que nos mostram que a curiosidade é a mãe de todos os vícios; o primeiro dos males que arrastou os homens para o pecado. Pois o pecado original provém exclusivamente do desejo de Eva de provar do fruto proibido. Foi sua curiosidade, seu desejo de saber, apesar da proibição divina, que a impeliu a comer do fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal. Foi também a sedução do saber, do conheci-mento pelo conhecimento, que levou Adão a seguir a mulher em sua queda. E o senhor, Dom Salvatore, pensa fazer obra de caridade, mas, ao transgredir nossas próprias regras, agiu em relação a esse homem apenas com a preocupa-ção de satisfazer sua própria curiosidade, tornando cúmplices de seu erro vários outros irmãos. Sabe-se bem: basta que o pai se ausente para que o diabo semeie a confusão entre os fi lhos. Amanhã tudo voltará à ordem. Logo que o ofício de Laudes terminar, esse homem será conduzido ao hospício de San Damiano.

— Dom Teodoro, o senhor sabe tanto quanto eu que se ele ainda não está louco, lá, ele se tornará. E se não perder defi nitivamente a razão, morrerá de alguma doença infecciosa que, todos os anos, leva bem uma terça parte daqueles infelizes.

— Esse homem perdeu a cabeça, e nosso monastério não é um hospício, Dom Salvatore — retomou o abade que recuperara o sangue-frio. — E, além disso, o senhor se esquece dos dois crimes pavorosos cometidos depois de sua chegada. Se ele não é diretamente o autor desses crimes, o que temos de veri-fi car, é de todo modo a causa das desordens. Vou desenvolver uma séria inves-tigação para esclarecer esses atos criminosos. O mais urgente, porém, é afastar aquele através de quem o mal se introduziu. E espero fazer-lhe uma visita em San Damiano para verifi car por mim mesmo se ele é possuído pelo diabo em pessoa, que é o que pensam alguns de nossos irmãos.

— Eu lhe suplico, pai, esperemos a volta de Toscani. Talvez ele nos traga notícias que ajudarão o homem a recuperar a memória e o nome.

O pai abade via que Dom Salvatore procurava retardar uma decisão que ele, que em breve completaria três decênios como abade do monastério, toma-ra diante de Deus em sua alma e consciência. Isso o irritava bastante, mas nada deixou transparecer.

— Acolhemos todos os dias dezenas de peregrinos, viajantes, pobres mi-seráveis e até bandidos — continuou. — Cada um recebe, segundo o costume de nossos mosteiros, abrigo e alimento durante três dias e três noites na hos-

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pedaria. Ninguém pode fi car mais tempo, muito menos na clausura; de outro modo, não poderíamos mais levar nossa vida consagrada ao louvor divino. Graças aos seus cuidados, que aprovo, esse doente recobrou gradualmente a saúde do corpo. Mas não a do espírito. Ele nunca disse uma única palavra, e sua atitude é a de um homem emparedado em si mesmo. Seu lugar não é mais aqui, Dom Salvatore. O senhor sabe disso, e eu ignoro por que afeição deslo-cada se obstina a cuidar de um doente que está desmemoriado e que nos traz tantos dissabores.

— Dê-me uma última oportunidade — insistiu o monge, ignorando a discórdia. — Se daqui a três dias Toscani não tiver voltado, e nosso homem não tiver pronunciado qualquer palavra, eu lhe prometo que não vou mais importuná-lo e que eu mesmo o levarei, em obediência à sua ordem, a San Damiano.

O pai Teodoro mergulhou novamente os olhos na obra e concluiu a con-versa com a mesma voz cansada e sem apelação:

— Amanhã, ao alvorecer, Dom Salvatore. Amanhã de manhã, depois do ofício de Laudes.

O monge se calou. Sabia que seu superior não voltaria atrás em sua decisão.

Assim que saiu da cela do pai abade, foi para a igreja e se prosternou diante de um ícone da Virgem.

Quando estava absorto na meditação, o irmão porteiro foi informá-lo de que o mercador Toscani acabara de chegar e mandara chamá-lo com urgência ao locutório, apesar da hora tardia.

— Deo gratias — ele suspirou de felicidade.Deu um pulo, inclinou-se diante do ícone e foi precipitadamente para a

portaria do monastério.

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– E ENTÃO? — lançou ele ao amigo, apertando-lhe as duas mãos e levando-o para perto do fogo.

O rosto redondo e jovial do mercador contrastava com a magreza ascética do monge. Mas nos olhos de ambos brilhava a mesma cha-

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ma, a de dois moços que se preparavam para partilhar um segredo proibido. Refreando, contudo, sua impaciência, o prior adivinhou que o hóspede não tinha tido tempo de cear. Então, mandou o irmão porteiro preparar uma cola-ção, antes de se sentar perto da grande lareira.

— As coisas não estão muito ruins — disse o mercador. — Pude chegar ao monte Athos fazendo-me passar por peregrino. Quando cheguei lá, fui ao monastério russo de São Panteleimon. O irmão porteiro era bastante simpático e falava um pouco a nossa língua. Pude interrogá-lo a respeito de nosso homem e lhe mostrar o retrato. O rosto lhe lembrava vagamente alguma coisa, mas foi-lhe difícil dizer mais. Eu lhe perguntei se um pintor de ícones tinha deixado um dos mosteiros nos últimos anos. Ele me falou, então, de um jovem monge de origem italiana, discípulo do grande pintor cretense Teófano Strelitzas, a quem proibiram de pintar ícones e que desaparecera repentinamente. Ele não conhecera esse homem, mas sabia que tinha sido noviço no monastério Simo-nos Petra.

“Decidi então ir a Simonos Petra, o mais impressionante dos vinte mos-teiros da ilha, suspenso à beira da falésia talhada a pique sobre o mar. Assim que cheguei, interroguei o irmão porteiro, mas ele não falava uma única pa-lavra de italiano. Ele me encaminhou a um irmão de origem piemontesa, um homem muito simples e muito falante. Quando eu lhe mostrei o retrato do ferido, ele deu um grito de pavor e imediatamente reconheceu nosso homem. ‘Ioannis, irmão Ioannis’, gritou ele muito excitado. ‘Ele sabia pintar ícones?’, perguntei-lhe então, irritado com o rumo que a conversa tomava. ‘Sim, sim, era um pintor notável. Aprendeu em poucos meses. Mas o higumeno* lhe pediu para parar de pintar, pois seus ícones perturbavam alguns irmãos pela beleza expressiva dos rostos de suas Virgens. É preciso dizer que nenhuma mu-lher, nem mesmo a fêmea de um animal, tem o direito de pôr os pés em Athos, e nós não vemos mulheres há muitos anos’, confessou-me o monge com certo desapontamento. Em seguida, acrescentou com um sorriso malicioso: ‘Aque-les que pintam ícones copiam modelos dos séculos passados, mas os monges que os pintaram outrora tentavam buscar na memória o rosto de suas mães, ou pior, se inspiravam no do pai abade, que eles julgavam parecido com o da Virgem... pela Santidade. Pobre Madona! Você vê aqueles pescoços de touro e aqueles queixos quadrados que eles punham nela! Só lhe falta a barba! Mas o irmão Ioannis conheceu umas mulheres danadas de bonitas antes de vir para

* Higumeno é o superior de um monastério ortodoxo ou católico do rito oriental. O termo correspondente usado no Ocidente é “abade”. (N. da T.)

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cá!’ Como eu lhe perguntasse sobre o nome de batismo de irmão Ioannis, ele refl etiu um pouco. ‘Infelizmente, não me lembro: ele foi postulante apenas alguns meses e passou por volta de dois anos usando o nome religioso. Recor-do-me apenas de que era nativo da Calábria.’ Perguntei-lhe então o que tinha acontecido com esse irmão. Ele me respondeu: ‘Depois que os Anciãos lhe pediram para parar de pintar, ele deixou o monastério, e eu nunca mais soube o que aconteceu com ele. Mas pergunte ao higumeno do monastério. Ele cer-tamente se lembrará; ele fala um pouco a sua língua.’”

Toscani foi subitamente interrompido pelo irmão porteiro que trazia uma sopa bem quente, um pedaço de pão e queijo de cabra. Embora ardesse de impaciência em ouvir a continuação, Dom Salvatore mandou que seu hóspede comesse antes de prosseguir. O homem não se fez de rogado e devorou o jantar em poucos minutos. Inúmeras idéias perturbavam o monge. Aquela pista seria a certa? E, em caso afi rmativo, por que teria ele saído de Athos? A última infor-mação dada pelo mercador o tinha tocado: embora romano, ele mesmo tinha sido criado por sua avó na Calábria. Emocionou-se diante da idéia de que o homem misterioso tivesse crescido na região em que ele próprio crescera.

Assim que engoliu o último bocado, o mercador continuou sua narrativa.— Solicitei então um encontro com o higumeno. O superior do monas-

tério, um homem seco com uma barba imponente, recebeu-me logo no dia se-guinte. Contei-lhe toda a história e lhe mostrei o retrato, assim como sua carta. Ele não manifestou nenhuma emoção e me afi rmou que se tratava de outra pes-soa. Como eu insistisse, ele me cortou brutalmente, escandindo as sílabas. “Inú-meros peregrinos aprenderam a pintar ícones, aqui ou em outro lugar, segundo a escola russa. O homem de quem vocês cuidam é certamente um deles. Mas eu não conheço o rosto deste aqui.” Com isso, despediu-se e me convidou a deixar o monastério o mais brevemente possível. O que fi z depois de ter, em vão, tentado rever pela última vez o irmão italiano. Foi a única pista que pude descobrir.

Dom Salvatore refl etiu longamente antes de reagir.— Não sei como lhe agradecer, meu amigo. Suas indicações talvez bas-

tem para tentarmos alguma coisa. Tanto mais que o pai abade acaba de voltar e ordenou que eu leve o homem amanhã mesmo a San Damiano.

— San Damiano! — exclamou o mercador. — Mas ele estará acabado!— Eu sei — retorquiu o monge. — Você conhece, como eu, nosso bom

pai. Apesar de seu grande coração, ele não pode admitir uma exceção à regra. Não temos mais escolha. Vamos até nosso pobre infeliz, e que Deus o ajude.

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FORAM PRONTAMENTE À enfermaria. Excitado demais com o rumo dos acontecimentos, Dom Salvatore contrariou mais uma vez a regra, dei-xando o mercador acompanhá-lo ao interior da clausura.

Fitando o homem de olhar desvairado, Dom Salvatore tomou-lhe as mãos e, como sempre fi zera, falou-lhe como se ele estivesse em seu estado normal:

— Meu amigo, consegui que nosso pai abade, que voltou esta noite de uma longa viagem, mantivesse você aqui por mais tempo. Amanhã de manhã não poderei fazer mais nada por você. Vão prendê-lo num hospício, onde termi-nará seus dias entre loucos, sem que ninguém possa tirá-lo de lá, mesmo que seu estado evolua. Também nunca mais poderá praticar sua arte. Pois sabemos desde o início que, todas as noites, você vai à ofi cina de ícones para pintar uma Virgem da Misericórdia. Ela é perturbadora. Este indício levou nosso amigo Adriano ao monte Athos, onde temos quase certeza que você viveu. Temos a noite para rasgar o véu que encobre seu espírito. Vou tentar despertar em você alguma lem-brança escondida. É sua última chance de voltar para nós. Agarre-a!

O homem escutou o monge docilmente, sem manifestar a menor reação. Dom Salvatore guardou silêncio durante longos minutos. Depois, convidou o hóspede a sair da sala. No momento em que este cruzava a porta, ele gritou, de repente:

— Irmão Ioannis.O tom era tão seguro que o mercador se assustou. Mas o homem não

se moveu. O monge tentou outra abordagem. Colocou o amnésico numa ca-deira, olhou-o diretamente nos olhos e, chamando-o novamente pelo nome, falou-lhe longamente sobre tudo o que ele sabia sobre o monte Athos e os acontecimentos contados por Adriano Toscani.

Ao fi m de duas horas, o homem, que não manifestava o menor sinal de emoção ou interesse, começou a adormecer. Profundamente desanimado, Dom Salvatore teve de reconhecer a derrota da última tentativa. Acompanhou o mercador, tão abatido quanto ele depois de tantos esforços empregados em vão. Em seguida, foi ver mais uma vez o amnésico que se deitara no catre da enfermaria. Quando ia se despedir, o prior hesitou. Mudou de idéia e decidiu infringir de novo a regra e dormir num catre ao lado do ferido.

Não conseguia abandonar aquele indivíduo na véspera de seu aprisiona-mento. Não sabia nada a respeito dele, mas a Providência o colocara em suas mãos. Dom Salvatore murmurou algumas preces ao se deitar no catre, deu um profundo suspiro e apagou a vela.

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Foi-lhe impossível conciliar o sono. O relato do mercador o assombrava. Pro-curava o ínfi mo traço, o detalhe aparentemente banal, mas susceptível de despertar a memória de seu hóspede, que pudesse ter-lhe escapado. Finalmente, decidiu dormir para ter força, no dia seguinte, de ver aquele homem ir para o hospício.

Apertou na mão esquerda as contas do rosário e começou a recitar as Ave-Marias. Isso o levaria a cair tranqüilamente no sono.

Apesar de tudo, as imagens continuavam a obsedar-lhe o espírito. Lembrava- se de que desde criança tinha difi culdade em adormecer. Sua avó, então, cantava cantigas infantis, baixinho ao seu ouvido. Imperceptivelmente, as palavras da can-ção de ninar calabresa brotaram de seus lábios, numa doce melodia: “Move lu sone di la montagnedda lu luppu sa magna la piccuredda la ninia vofa...”

Enquanto as frases cantaroladas se soltavam no silêncio, o amnésico se ergueu lentamente no leito. Seu olhar mudou, como se seu espírito estivesse repentinamente abalado. O homem mergulhava no mais fundo da memória. Teve então a visão da mãe inclinada sobre o berço, cantando-lhe a mesma cantiga: “... Move lu sone di la albania stu fi gghiu miu mutta me la ninia vofa stu fi gghiu miu mutta me la ninia vofa.”

A imagem se embaralhou, e ele se reviu com a idade de 7 anos no cemité-rio da aldeia. Olhava o pesado caixão da mãe descer para a terra. Enquanto os homens cantavam o Miserere, seus olhos permaneciam secos, mas uma angústia sem fi m afogava seu coração de menininho. Lágrimas quentes escorriam agora no rosto burilado do homem que ele se tornara. Reviu o pai pousar com fi rme-za a mão em seu ombro e sentiu com a mesma emoção de antes o tremor que o sólido camponês não conseguia dominar.

Depois, um outro rosto, o de uma jovem mulher de cabelos louro vene-ziano e de grandes olhos verde-esmeralda, se impôs em sua mente. Encolhido na beira da cama, abraçando os joelhos com os braços fortes, os olhos cheios de lágrimas, ele articulou essa simples palavra, a primeira que pronunciava desde sua chegada ao monastério:

— Elena.

Dom Salvatore deu um pulo. Constatou, emocionado, que seu hóspede acabara de falar. Acendeu uma vela e viu que o homem soluçava. Foi até ele e o apertou nos braços, com a força e o amor de um pai.

O desconhecido chorou por muito tempo. E, entre dois soluços, confes-sou ao monge sua terrível história.

— Chamo-me Giovanni Tratore. Sou fi lho de um camponês de uma pequena aldeia da Calábria. Minha vida se desequilibrou quando vi o rosto de Elena pela primeira vez...

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FORA HÁ 12 anos, no ano da graça de 1533. Sob o forte calor do mês de agosto, Giovanni trabalhava nos campos com o pai e o irmão mais novo, Giacomo. Foi ele quem primeiro viu a tropa de cavaleiros. Todos

os camponeses pousaram os ancinhos e se ergueram para observar aquela cena tão singular na pobre região: uma dezena de homens armados, cavalgando montarias ricamente aparelhadas. Vinham do mar e teriam acostado a algumas léguas dali, numa das inúmeras angras da costa recortada. Viram os campone-ses, mas seguiram caminho para a aldeia.

Menos de uma hora depois, retornaram na direção do mar. Intrigados, os camponeses abandonaram o trabalho mais cedo do que de hábito e voltaram em ritmo acelerado apesar do calor ainda forte. Tomaram conhecimento de toda a história da boca do velho Graziano, o chefe da aldeia. Aqueles homens de armas serviam à poderosa cidade de Veneza. Voltavam de Chipre, mas o navio deles tinha sofrido em alto-mar o ataque de vários xavecos* corsários. Conseguiram escapar-lhes, favorecidos pela noite, mas enfrentaram diversas tentativas de abordagem e de canhonada, e o navio sofrera graves avarias. Antes de prosseguir caminho rumo a Veneza, decidiram consertar o navio danifi cado. Pediam, mediante grande quantia em dinheiro, que os aldeões emprestassem suas mais bonitas casas para abrigar alguns nobres enquanto os marinheiros punham mãos à obra. O chefe da aldeia apressou-se em aceitar, e todos os cam-poneses de volta do campo se alegraram com essa dádiva. No fi m da tarde, uma grande fogueira foi acesa no centro da aldeia para assar um boi em homenagem aos venezianos.

Foi então que Giovanni viu Elena pela primeira vez. Jamais esqueceria aquele instante: era uma segunda-feira, dia da Lua,** por volta da décima se-gunda hora do dia.

* * *

* O xaveco (xabbak) era um pequeno barco com três mastros, de casco leve, usado pelos corsários e piratas argelinos no mar Mediterrâneo, entre os séculos XVI e XIX. (N. da T.)** Em português, os nomes dos dias da semana têm sua origem na liturgia católica. Na maior parte das outras línguas, sua origem são os nomes dos deuses pagãos aos quais os dias eram dedicados. (N. da T.)

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Ela cavalgava uma magnífi ca égua preta e estava envolta numa capa de cor púrpura. A longa cabeleira loura voava ao vento. Avançava no meio de uns vinte cavaleiros, mas Giovanni não viu senão ela, desde o primeiro instante. Deveria ter apenas 14 ou 15 anos.

Durante a refeição, ele a observou de longe, fascinado pela beleza e pela graça de seus gestos. Não podendo aproximar-se dos venezianos, que comiam à parte com alguns representantes da aldeia escolhidos pelo velho Graziano, Giovanni se empoleirara no alto de uma casa e não perdia nenhum dos mo-vimentos da adolescente. Ela estava em companhia de duas senhoras mais velhas, as únicas mulheres do grupo. Uma, pela nobreza das vestes, poderia ser sua mãe ou tia. A outra, visivelmente da mesma idade, dedicava-se ao conforto de suas senhoras. Os venezianos, em pequenos grupos de três ou quatro pessoas, instalaram-se em cadeiras e mesas trazidas pelos aldeões para a circunstância.

Uns trinta homens da tropa juntaram-se aos cavaleiros. Como a maior parte do grupo tinha fi cado no barco, Giovanni pensou que deveria se tratar de um grande navio, levando pelo menos duzentos homens e numerosos cavalos. Mercadorias também, com certeza, pois os venezianos eram antes de tudo co-merciantes, famosos e infl uentes em todo o Mediterrâneo. Contudo, parecia-lhe que aquela moça, que fascinava tanto por sua beleza, deveria ser muito mais do que uma simples comerciante. Não apenas porque estava ricamente adornada, com uma elegância deslumbrante, mas porque era objeto de atenção e proteção especiais. Posicionada entre as duas outras mulheres no centro da praça, na mesa mais bonita, cercada de soldados armados, ela parecia distinguir-se. Sistemati-camente, um guarda se levantava e se aproximava das damas. Sem dúvida para verifi car se tudo ia bem, pensou Giovanni. Quem era, pois, aquela adolescente? Talvez uma princesa, imaginou o jovem camponês cuja imaginação não conhecia mais limites.

Desde que sua mãe o deixara, Giovanni, já sensível e emotivo, desen-volvera uma grande capacidade de se evadir de um real que o entediava para, freqüentemente, se refugiar nos mundos maravilhosos que inventava. Seus so-nhos o levavam para além dos mares em aventuras extraordinárias, nas quais se mesclavam amores, combates, tesouros fabulosos. Quando menino, partilhara com os companheiros seus mais loucos sonhos e os arrastara em caças ao te-souro, abordagens de piratas ou amores corteses. Mas, ao crescer, seus amigos

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perderam o gosto pelo jogo e mais ainda pelo sonho. Estavam muito ocupados com os pesados trabalhos dos campos e não tinham outra preocupação a não ser casar-se com uma camponesa corajosa e construir uma casinha de pedra seca. Giovanni, por sua vez, levava a mesma vida frugal e laboriosa, mas con-tinuava sonhando com aventuras e amores épicos. Herdara da mãe um rosto bonito, grandes olhos negros e mãos fi nas que atraíam os olhares das moças da aldeia. Mas não se sentia seduzido por aquelas camponesas de atitude e lingua-gem desajeitada. Não via nelas nem a graça nem o refi namento de sua mãe. E desde que, com a idade de 13 anos, tinha ido com o pai à cidade de Catanzaro para comprar um asno, fi cara impressionado com a fi nura dos traços das mo-ças, sua elegância e modo de falar tão refi nado, e só pensava em encontrar uma mulher bela e educada.

Sabia que um pobre camponês iletrado não poderia jamais deixar sua aldeia, nem conquistar uma moça da cidade; assim sendo, suplicou ao cura que lhe ensinasse a ler e escrever. O homem de Deus não era um grande letrado e tinha mais o que fazer, mas, diante da tenacidade do menino, e das aptidões espantosas que de saída demonstrou, deixou-se convencer e lhe transmitiu os rudimentos que conhecia, especialmente o latim da Igreja. Giovanni passou então as noites, durante vários anos, estudando e relendo sem cessar o missal romano impresso em latim que o cura deixava na sacristia da modesta igreja da aldeia. O menino sabia que muitos outros livros, impressos nos primeiros decênios do século XVI, falavam de ciências naturais, fi losofi a, religião, e so-nhava em obtê-los. Projetava deixar a aldeia para descobrir o mundo e seus tesouros de conhecimento, mas não sabia ainda quando, nem para onde ir. Esperava confusamente uma oportunidade, um acontecimento particular que o impeliria a executar o projeto.

Desde que os venezianos acostaram, uma espécie de febre o dominara. Passou o fi m do dia num estado de grande excitação. Quando viu a moça no meio do grupo de cavaleiros, seu coração se apertou tanto que ele quase perdeu os sentidos. Teve uma sensação indizível, como que uma intuição fulguran-te, de que aquela moça lhe tinha sido enviada pelo destino. Tentou livrar-se dessa sensação, mas de nada adiantou. À noite, fi cou igualmente perturbado quando a contemplou perto do fogo. Sem que tivesse claramente consciência, seu coração ardente, sustentado pela imaginação transbordante, encontrou um objetivo tão nobre quanto insensato: apaixonar-se por aquela desconhecida e ser amado por ela.

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ENQUANTO A REFEIÇÃO terminava, uma só coisa importava para Giovan-ni: saber em que casa se hospedava a jovem. Não teve nenhuma di-fi culdade em acompanhar com os olhos o trajeto da veneziana. Ela

estava alojada com suas duas companheiras e cinco homens armados na casa mais bonita da aldeia, que fi cava na praça. Ele viu as velas serem acesas, por detrás das janelas, mas não distinguiu coisa alguma. Preparava-se para descer do esconderijo e se aproximar da casa quando uma pequena tropa de soldados montou sentinela diante da entrada.

Giovanni desceu discretamente de seu poleiro e decidiu ir até o mar ver o navio. Mas a escuridão era muito densa. Ele se instalou na cavidade de um rochedo à espera da alvorada. E não demorou a adormecer.

Os primeiros alvores do dia tiraram-no de um sonho estranho e angus-tiante que deixava em sua alma um perfume ao mesmo tempo exaltante e inquietante. Não teve tempo de se entregar um pouco mais a seu sortilégio, pois já ouvia ao longe os marinheiros se ocuparem no navio. Na véspera, eles tinham dado início aos trabalhos de reparação do casco e de um dos três gran-des mastros que se quebrara. Giovanni sabia que a empreitada duraria dois ou três dias, no máximo.

Esperando subir a bordo, apresentou-se ao capitão, que tinha descido à praia, e lhe ofereceu seus serviços. Este aceitou de bom grado aquela mão-de-obra suplementar; porém, para grande decepção de Giovanni, pediram-lhe para acompanhar em terra uma equipe de lenhadores e de carpinteiros encarre-gados de buscar troncos. De volta ao navio, pelo meio da tarde, agradeceram-lhe sem permitir que subisse a bordo.

Giovanni voltou para a aldeia passando pelos prados onde encontrou o pai e o irmão, preocupados com sua longa ausência. Explicou-lhes que tinha sido recrutado pelos venezianos para ajudar no conserto do navio e que aban-donaria os trabalhos nos campos por alguns dias. O pai, de início, recusou, pois estavam em plena época do feno, e havia o risco de o tempo fi car tempes-tuoso. Mudou de opinião quando Giovanni lhe entregou a moeda que o capi-tão lhe havia dado em troca de seus serviços. O dinheiro era tão raro para os pobres camponeses da Calábria que não podiam recusar uma quantia que lhes permitiria ir à cidade comprar um animal ou uma ferramenta.

De volta à aldeia, Giovanni só tinha uma idéia em mente: rever a jovem mulher. No decorrer do dia, ele tinha conseguido colher algumas preciosas

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informações com os carpinteiros: o navio pertencia a um rico armador e tinha sido fretado pelo Doge de Veneza, principal magistrado da cidade, para trazer de Chipre eminentes personalidades. Ele transportava ainda preciosas merca-dorias do Oriente, pois a ilha de Chipre era uma possessão veneziana e verda-deira plataforma do comércio entre a península itálica e o Império Otomano. E ainda melhor, Giovanni obteve informação decisiva com um dos mestres car-pinteiros: a bordo, encontravam-se a irmã e a fi lha do governador de Chipre, que não era outro senão o marido da neta do Doge. A jovem mulher que havia roubado seu olhar e seu coração era, portanto, fi lha do governador e bisneta do mais poderoso personagem de Veneza. A senhora mais velha era sua tia e a terceira, sua criada, como ele havia adivinhado. Longe de o desencorajar, essa notícia atiçou mais o seu amor. Uma pergunta, que ele tinha tido a prudência de não fazer, queimara seus lábios: como ela se chamava?

Quando a noite desceu, tentou se aproximar da praça da aldeia onde preparavam o jantar dos venezianos. Um velho camponês o tratou rudemente, mandando que se afastasse. Giovanni compreendeu, pelo olhar dos soldados que observavam a cena, que não tinha escolha. Como na véspera, postou-se no telhado de uma casa, mas não conseguiu saber de mais nada. Estava muito afastado para ver o rosto da jovem mulher ou ouvir o som de sua voz, ampla-mente coberto pelos risos e conversas barulhentas dos guardas que a cercavam. Apesar de tudo, sentiu prazer em contemplar seus gestos graciosos, sua cabelei-ra com refl exos de ouro que as chamas das tochas iluminavam por instantes.

Quando a bela se afastou para a sua morada, seguida por seus guardas, ele fi cou um longo tempo ainda empoleirado no posto de vigia. Quando fi nal-mente voltou para o casebre familiar, era noite profunda.

Pela manhã, voltou novamente para a margem e mais uma vez conseguiu ser contratado para a obra. Dessa vez, teve mais sorte e conseguiu pular numa das barcas que levavam da praia ao navio. Como se mostrara hábil em lidar com madeira, designaram-no para a equipe dos carpinteiros que consertavam o casco. Este tinha sido em parte rasgado pelo fogo alimentado pelos projéteis dos berberes,* e os carpinteiros se aplicaram em vedar os buracos do melhor modo possível, a fi m de que o navio pudesse voltar sem risco para o alto-mar, até Veneza.

* Habitantes de países outrora designados pelo nome de Barbária (África do Norte). (N. da T.)

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Na hora da refeição do meio do dia, Giovanni conseguiu passar para a ponte. Ninguém prestava atenção nele. Não pôde resistir à vontade de andar pela coxia até as cabines situadas na ré do navio. Com a louca esperança de descobrir a cabine da moça, girou várias maçanetas. As portas estavam fechadas. Finalmente, deu de frente com um ofi cial que o interpelou vivamente. Pretextou ter-se perdi-do, mas o homem não acreditou numa palavra e o expulsou do navio.

Giovanni voltou de mãos vazias e não teve coragem de ir para os campos encontrar o pai e o irmão sem levar uma moeda. Decidiu ir para a aldeia. Os venezianos tinham acabado a refeição e faziam a sesta no frescor das casas. A praça estava deserta.

Uma idéia arriscada atravessou a mente de Giovanni. Expulsou-a uma primeira vez. Ela voltou quase que de imediato. Alimentou-a alguns instantes para sentir-lhe o terrível sabor, antes de afastá-la de novo. Ela voltou pela ter-ceira vez. Então, ele cedeu.

Vencendo o medo, o rapaz atravessou a praça e foi para o lado direito da casa onde dormia a jovem mulher. Subiu por uma escada de madeira que levava ao palheiro. Constatou com alívio que a porta estava aberta. Entrou na peça escura, quase toda cheia de palha, sufocando, de tanto que a quentura era esmagadora. Depois, com cuidado, rastejou por cima do quarto do dono da casa, afastou lentamente o feno e aplicou a vista entre duas fendas do assoalho grosseiro.

Sua visão se habituou rapidamente à semi-escuridão que reinava no quar-to. Distinguiu duas camas. Em cada uma delas uma forma estava estendida. Infelizmente, embora ele estivesse a dois metros, foi-lhe impossível identifi cá-las. Ficou assim seguramente uma hora, imóvel, prendendo o fôlego e evitando o menor movimento que pudesse fazer ranger o velho assoalho. De repente, uma das formas se moveu; depois, levantou-se. Ela foi até a janela e abriu deli-cadamente uma das persianas.

Uma onda de luz inundou parte do cômodo. Giovanni imediatamente reconheceu a criada, debruçada no parapeito da janela. Na parte protegida da violenta luz do meio do dia, ele distinguiu a moça. Ainda estava adormecida, deitada de costas, com os olhos fechados, vestida com uma longa camisa de seda branca. Seus longos cabelos louros estavam espalhados em volta do rosto, tal uma coroa solar. Tinha um braço esticado sobre a cabeça, e o outro delicadamente pousado sobre o ventre. Em seu sono hesitante, ela esboçou um leve sorriso que dava ao rosto, salpicado de pequenas sardas, uma aparência quase infantil.

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O coração de Giovanni bateu de repente tão depressa que ele teve medo de ser descoberto. Com o fôlego curto, enchia os olhos com aquele rosto, como nos abeberamos diante de uma imagem sagrada. Aquela beleza não totalmente desabrochada representava para ele a essência mesma da Beleza. Cada curva de seu corpo tinha uma graça infi nita. Cada detalhe de seu rosto lhe parecia tão perfeito que ele se convenceu de que não existia no vasto mundo nenhu-ma outra harmonia tão refi nada, nenhum outro rosto ao qual ele pudesse se prender.

Mas o que fascinava ainda mais o moço era o que a jovem mulher sub-traía a seu olhar ensandecido: os olhos fechados. Não era tanto a forma das pálpebras nem mesmo a delicadeza dos longos cílios que o perturbavam, mas a expressão de ternura, quase de bondade, a curiosa mistura de força e fragilidade que emanava daqueles olhos fechados e daquele sorriso levemente esboçado.

Ele só tinha um desejo: penetrar no segredo daquele olhar. Que sonhos a obsedavam? Que doces imagens habitavam sua mente? Qual era a cor, o perfu-me, o calor, a linguagem de sua alma? Sem mesmo se dar conta, ele fechou as pálpebras e iniciou uma viagem imaginária no coração da bem-amada.

— Elena — disse suavemente a criada, que se virara para a jovem senhora.

Giovanni estremeceu.— Elena — murmurou. — Ela se chama Elena.Foi então que um enorme estalo se ouviu. Pois o destino quis que uma

das vigas sobre a qual o rapaz se deitara estivesse podre até o miolo.

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ACRIADA ERGUEU OS olhos e viu que caía poeira do teto. Depois, ouviu-se um segundo estalo. Ela correu para a sua senhora, que lentamente saía do sono, e a colou à parede, pedindo socorro. Dois guardas en-

traram logo. Constataram que um caibro ameaçava romper-se, e retiraram as mulheres do quarto. Depois, intrigados com aquele repentino desabamento da viga, foram visitar o palheiro para descobrir a causa. Apesar dos esforços de Giovanni para dissimular as marcas de sua passagem, eles não tiveram nenhu-ma difi culdade em constatar que um homem tinha deitado na viga estragada. Chamaram reforços. Foram necessários apenas alguns minutos para que os soldados descobrissem o rapaz encolhido na palha, do outro lado do cômodo.

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Page 38: Prólogo - img.travessa.com.br · uma altura menor que a de um homem na terra batida, a tocha iluminava os sete degraus de uma pequena escada de madeira. Não se distinguia nada mais

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Agarraram-no e conduziram-no aos ofi ciais que o interrogaram em pre-sença do velho Graziano. Giovanni começou afi rmando que tinha simples-mente ido dormir no palheiro. Como suas explicações não convenceram nin-guém, uma vez que o acesso àquela casa era proibido às pessoas da aldeia, ele acabou confessando a verdade.

— Assim que vi a jovem que se chama Elena chegar a cavalo na aldeia, eu me apaixonei por ela e queria vê-la mais de perto.

Essa declaração assombrou os venezianos. Eles concluíram que o rapaz tinha querido violentar Elena. O chefe da aldeia, que conhecia bem Giovanni, explicou-lhes que não era nada daquilo e lhes falou do caráter sonhador e idea-lista do rapaz. Finalmente, os ofi ciais decidiram mandar prendê-lo sob boa guarda.

Na mesma noite, os venezianos entraram em acordo e julgaram o caso sufi cientemente grave para que se infl igisse uma séria punição ao rapaz. Este foi suspeito de ter querido cometer um roubo e acusado de ter atentado contra o pudor das senhoras, observando-as de seu esconderijo. Seu caso foi agravado pelo testemunho de um ofi cial que afi rmou tê-lo surpreendido, no mesmo dia, rondando perto das cabines da ponte superior do navio.

Apavorado, Giovanni não soube o que responder para se justifi car. Foi decidido, junto com os representantes da aldeia — confusos porque as regras da hospitalidade não tinham sido respeitadas e com medo de represálias mais sérias contra os infelizes camponeses que eram —, que Giovanni seria chico-teado em praça pública, no dia seguinte pela manhã.

Elena, embora recuperada da emoção do ataque corsário, fi cou aterrori-zada ao saber que acabara de escapar da ameaça de um homem escondido no palheiro e que talvez tivesse esperado a noite para agredi-la. Ao mesmo tempo, esse episódio desagradável tornava mais excitantes aqueles dias de espera tão tediosa. Ela pensou ininterruptamente no caso e tentou imaginar o rosto do homem: seria ele monstruoso? Caolho? Teria horríveis cicatrizes, testemunhas de seus furtos passados? Ficou surpresa ao saber que se tratava de um jovem rapaz, pouco mais velho que ela, e que não tinha má reputação na aldeia. Perguntou-se então o que motivara seu gesto. Essa questão a atormentou de tal maneira que foi procurar o capitão do navio para lhe pedir permissão para interrogar o rapaz antes que lhe fosse aplicada a horrível sentença. Ele não consentiu, temendo que, durante a entrevista, acontecesse algo inesperado que traumatizasse a bisneta do Doge.

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