privacidade dos pacientes - uma questão de ética para a gererncia do cuidado em enfermagem.pdf

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  • Artigo Original

    Privacidade dos pacientes uma questo tica para agerncia do cuidado em enfermagem*

    Narciso Vieira Soares1, Clarice Maria DallAgnol2

    RESUMOObjetivo: Identificar a percepo de pacientes de uma unidade de internao a respeito dos aspectos relacionados sua privacidade nohospital. Mtodos: Estudo qualitativo, do tipo exploratrio-descritivo. A amostra constituiu-se de 12 pacientes internados em um hospitalgeral e a coleta de dados ocorreu por meio de entrevistas semi-estruturadas e observao simples da ambincia desse local. Resultados:Situaes do cotidiano sugeriam ocorrncia de violao do espao pessoal e do corpo do paciente, por vezes, sem justificativa aparente. Aexperincia de exposio do corpo de si e do outro, a postura inadequada de profissionais da equipe de enfermagem, na viso dos pacientesconstituiram-se em condies geradoras de ansiedade, constrangimento e estresse, que repercutem em sua sade e bem-estar. Concluso: Asfalas deixaram transparecer a pouca expectativa dos pacientes quanto privacidade no cuidado recebido na instituio, tendo relacionadoprivacidade competncia tcnica e ao conhecimento dos profissionais sobre os procedimentos que realizam, associando ideias comoprestabilidade e gentileza no tratamento.Descritores: Privacidade; Comunicao sigilosa; tica em enfermagem; Administrao hospitalar

    ABSTRACTObjective: To identify patient perceptions in an inpatient unit with respect to issues related to privacy in the hospital. Methods: This wasa qualitative, exploratory, descriptive study. The sample consisted of 12 patients admitted to a general hospital; data collection occurredthrough semi-structured interviews and simple observation of the ambience of this setting. Results: Everyday situations showed theoccurrence of violation of personal space and the patients body, sometimes without apparent reason. The experience of exposure of onesbody and the inadequate professional posture of the nursing staff, the vision of patients was formed under conditions that generated anxiety,embarrassment and stress that impacted on their health and well-being. Conclusion: The statements made clear the low expectation ofpatients about privacy in the care received at the institution, with privacy related to technical competence and knowledge of professionalsabout the procedures they perform, such as linking ideas including helpfulness and kindness with their treatment.Keywords: Privacy; Confidential communication; Ethics in nursing; Hospital administration

    RESUMENObjetivo: Identificar la percepcin de pacientes de una unidad de internamiento respecto a los aspectos relacionados a su privacidad en elhospital. Mtodos: Estudio cualitativo, del tipo exploratorio-descriptivo. La muestra estuvo constituda de 12 pacientes internados en unhospital general y la recoleccin de los datos se realiz por medio de entrevistas semi-estructuradas y observacin simple de la ambiencia deese local. Resultados: Situaciones del cotidiano sugirieron la ocurrencia de la violacin del espacio personal y del cuerpo del paciente, aveces, sin justificacin aparente. La experiencia de exposicin del cuerpo de s mismo y del otro, la postura inadecuada de profesionales delequipo de enfermera, en la visin de los pacientes se constituyeron en condiciones generadoras de ansiedad, vergenza y estrs, querepercuten en su salud y bienestar. Conclusin: Los testimonios reflejaron la poca expectativa de los pacientes en cuanto a la privacidad enel cuidado recibido en la institucin, habiendo relacionado privacidad a la competencia tcnica y al conocimiento de los profesionales sobrelos procedimientos que realizan, asociando ideas como prestabilidad y gentileza en el tratamiento.Descriptores: Privacidad; Comunicacin sigilosa; tica en enfermera; Administracin hospitalaria

    Autor Correspondente: Narciso Vieira SoaresR. 15 de Novembro, 3722 - Centro - Santo ngelo - RS - BrasilCEP. 98803-240 E-mail: [email protected]

    Artigo recebido em 31/07/2010 e aprovado em 03/06/2011

    Acta Paul Enferm 2011;24(5):683-8.

    * Trabalho extrado da Tese de Doutorado intitulada A privacidade dos pacientes e as aes dos enfermeiros no contexto da internao hospitalar, apresentadaao Programa de Ps-Graduao em Enfermagem, Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS Porto Alegre (RS), Brasil.1 Doutor em Enfermagem. Professor da Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Misses Campus de Santo ngelo - Santo ngelo (RS),Brasil.2 Doutora em Enfermagem. Professora da Escola de Enfermagem, Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS Porto Alegre (RS), Brasil.

    Patient privacy - an ethical question for nursing care management

    Privacidad de los pacientes una cuestin tica para la gerencia del cuidado en enfermera

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    INTRODUO

    O trabalho da enfermagem oportuniza a seus atores oacesso ao corpo e s informaes sobre as condies devida e de sade daqueles que buscam o cuidado eatendimento. No ambiente hospitalar, frequentemente,emergem questes que envolvem a privacidade do paciente.O interesse em estudar esta temtica decorreu de indagaese reflexes ao longo da trajetria profissional dos autores,na assistncia e na docncia, a respeito das questes queenvolvem a tica e os direitos do paciente. Por meio daobservao emprica da prtica dos enfermeiros, constata-se a dificuldade em lidar com os aspectos relacionados tica, moral e ao direito dos pacientes(1).

    Nas observaes dos cuidados diretos ou indiretos,realizadas pelos enfermeiros e equipe, chamava atenoa forma automatizada como muitas dessas aesocorriam, bem como o incisivo foco na doena e emprocedimentos tcnicos. Condies como essas vmsendo apontadas na literatura cientfica em vrioscontextos de atendimento sade e hospitalizao.Por tudo que representam, um ambiente vulnervel.Nesse sentido: o paciente apresenta suas queixas, contasua histria e oferece seu corpo como palco. A partirda, passa a ser plateia, esperando ansiosamente pelodesenrolar de um enredo do qual j no mais participaativa e autonomamente(1).

    Ao problematizar a tica na relao com o paciente, umestudo(2) considera que, apesar dos discursos reforarem aparticipao do paciente nas decises que envolvem seucuidado, como sujeito capaz de pensar e agir, decidir o que melhor para si, alicerado em conhecimentos e informaescompartilhadas com os profissionais da equipe deenfermagem, na prtica parece no se fazer de modosatisfatrio, j que o sujeito que determina o processo pareceainda ser o profissional da sade(2).

    A preocupao com a privacidade e a divulgao deinformaes confidenciais das pessoas tem sido objetode estudos, discusses e reflexes ao longo da histria.Os relatos histricos apontam Hipcrates(3), como umdos pioneiros na formulao de princpios e leis quevisavam a defender os direitos dos doentes, em relao privacidade e confidencialidade das informaes dadasaos profissionais da sade. Preconizava, como devermoral do profissional, manter sigilo sobre as informaesrelacionadas vida e sade do doente por ele atendido.A tica de Hipcrates destaca-se no JuramentoHipocrtico, considerado como fundamento para origemda tica dos profissionais de sade(3).

    A dimenso tica do cuidado, a preocupao com apossibilidade de violao da intimidade dos sujeitos, deviolao de segredos e confidncias obtidas na relaoterapeuta/paciente tm sido apontadas na literaturacientfica(4-8) em vrios contextos de atendimento sade,notadamente, na hospitalizao. O ambiente hospitalar,por suas caractersticas e complexidade, favorece oestabelecimento de relaes de poder e assimetria entreequipe de enfermagem e pacientes, decorrentes dafragilidade e vulnerabilidade destes em virtude de

    alterao no processo sade doena. Nesse ambiente,frequentemente, emergem conflitos e dilemas comimplicaes ticas em decorrncia da complexidade dasrelaes que a se estabelecem.

    A manuteno da privacidade e confidencialidade dasinformaes sobre o outro constitui-se em uma virtudetica(5). Nossas virtudes ticas, assim como nossos valores,no so dons naturais, na realidade, so predisposiesque possumos e que apenas se constituem como tal, ouseja, deixam de ser possibilidade para ser fato, medidaque as exercemos em nossos atos cotidianos(9). Portanto,para que o respeito privacidade do paciente comovirtude tica no cenrio hospitalar se concretize, dependedo esforo e da dedicao consciente dos sujeitosenvolvidos no processo de cuidado. So consideradoselementos indispensveis para a concretizao dessapossibilidade a educao problematizadora, que incluaa reflexo crtica sobre o agir cotidiano; a transcendnciados atos sobre os costumes, mediante a crena nasupremacia do agir consciente sobre o agir habitual; e,necessariamente, a expresso fenomnica do produtofinal desse processo em ato(9).

    Em sua proposta inovadora da relao corpo e alma,o autor(10) concebe uma tica da alegria e da liberdade,fundada na possibilidade do indivduo, como um serlivre e como ncleo da ao moral, ser capaz de ampliarsua compreenso sobre o porqu das coisas aconteceremde determinada maneira. Nessa concepo, a reflexosobre a ao pode livrar os homens das cadeias daimaginao que os prendem e os impedem de ver atotalidade e, assim, chegar verdade. Estudo consideraque todos os seres humanos apresentam um potencialnatural de autoconservao que ele denominou de conatus,constituindo-se em uma fora vital, afirmativa que seexpressa no corpo como apetite e na alma como desejo,capazes de impulsionar o indivduo para a aoalicerada em princpios ticos(10).

    Na concepo tica em direo oposta aos hbitos ecostumes, o autor(10) busca construir uma tica coletiva,por meio de um princpio universal para as aeshumanas. Concebe o comportamento moral comopertencente a um sujeito autnomo e livre, ativo e criadore sua tica aponta para um ser humano ativo, capaz detransformar e transformar-se. Kant preocupa-se emcomo o ser humano deve agir, para que sua ao sejacorreta, justa e, por conseguinte, uma ao moral.Considerava que as exigncias da razo prtica nonecessariamente coincidem com as da razo terica, poiso autoconhecimento no garante aos indivduos agiremde modo mais responsvel ou melhor porque a razotem limites. Em suas obras Crtica da Razo Prtica eMetafsica dos Costumes, o autor(11) estabelece osfundamentos do conhecimento cientfico da natureza,estabelecendo, tambm, os fundamentos que guiam ascondutas humanas em suas aes na prtica.

    Na contemporaneidade, as comunidades cientficas,pesquisadores, filsofos, juristas, dentre outros, vmrefletindo sobre os conflitos que se originam dos novosfatos gerados pelo crescente avano tecnolgico. A tica

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    e a biotica passam a ser intensamente discutidas emdiferentes mbitos, na tentativa de dar respostas squestes que emergem na prtica cotidiana, especialmente,na rea da sade. Inclusive parecem no mais dar contade responder s questes cada vez mais complexas,resultantes das relaes que se estabelecem entreprofissionais da sade e pacientes. A tica ocupa-se,fundamentalmente, da reflexo sobre as aes do serhumano. Assim, busca orientao para a tomada dedeciso, mediante apreciao crtica sobre ocomportamento humano, envolvendo conhecimentos,razo, sentimentos, vivncias e valores socialmenteconstrudos(12-13). Enquanto a moral e a lei estabelecemregras para as aes, a tica busca justific-las. A ticainterpreta, discute, problematiza e investiga valores eprincpios na tentativa de responder aos motivos pelosquais devemos agir de determinada maneira(13).

    A privacidade considerada um direito individual quecontempla situaes relacionadas proteo da intimidadedos sujeitos, respeito dignidade, limitao de acesso aocorpo, aos objetos ntimos, aos relacionamentos familiarese sociais. Os profissionais de enfermagem tm comodesafio a reflexo tica sobre a responsabilidade e ocompromisso de suas aes nesse mbito(4).

    A exposio desnecessria e constrangedora do corpodo paciente e as relaes de poder intrinsecamente ligadasa essa temtica foram objeto de uma pesquisabibliogrfica(8) que analisou as questes de percepo docorpo, disciplina como forma de poder, pudor e dilemasticos. Refora-se a necessidade de redimensionar a prticados profissionais de enfermagem com base em umprocesso reflexivo e de autocrtica, que poder contribuirpara um cuidado mais complexo e humanizado.

    Neste artigo, a abordagem, corresponde ao objetivode identificar a percepo de pacientes de uma unidadede internao a respeito dos aspectos relacionados suaprivacidade no hospital, que derivam de uma propostamais ampla que consistiu em analisar situaes relativas privacidade do paciente no cotidiano de enfermagemhospitalar e as aes dos enfermeiros nesse contexto.

    A relevncia do estudo alicera-se nas contribuiespara a enfermagem visando a conduzir melhor asquestes que envolvem a privacidade do paciente, nohospital, embasado em princpios ticos de respeito aseus direitos.

    MTODOS

    Este estudo do tipo descritivo e exploratrio, denatureza qualitativa, teve como cenrio um hospital geralde grande porte do Rio Grande do Sul e foi realizadonos meses de outubro e novembro de 2008. A entrevistasemiestruturada com pacientes de uma Unidade deInternao Clnica Mdica e a observao simples daambincia desse local foram utilizadas, como estratgiasde obteno de dados. O estudo contou com aparticipao de 12 pacientes de ambos os sexos, queatenderam aos critrios de seleo: ter idade igual ousuperior a 18 anos; tempo de internao superior 24 horas;

    demonstrar condies cognitivas para compreender eresponder ao instrumento de coleta de dados.

    Previamente abordagem dos pacientes, utilizou-seo censo dirio da unidade para identificao daquelesque atendiam aos critrios de incluso para participardo estudo. As informaes sobre o tempo de internaoe as condies cognitivas desses pacientes foram obtidascom a enfermeira que ressaltou os pacientes quepoderiam ser convidados a participar do estudo. Ospacientes foram abordados individualmente nasdependncias da unidade, sendo convidados a participarda pesquisa, depois dos esclarecimentos sobre osobjetivos do estudo, e, aps anuncia, solicitava-sepermisso para a gravao e a assinatura do Termo deConsentimento Livre e Esclarecido.

    Conforme recomendado, a coleta completou-se porsaturao, obtida quando se alcana a sensao deencerramento porque os dados novos trazeminformaes repetidas, fenmeno este que foiobservado aproximadamente na 12 entrevista, o quefoi determinante na delimitao dos sujeitos(14). Aobservao simples ocorreu nos dias 25 e 26/11/2008,entre 7h e 13h, e consistiu na observao do ambienteda unidade de internao, nos aspectos que interferemna privacidade do paciente.

    O projeto de pesquisa foi aprovado pelo Comitde tica em Pesquisa da Universidade Regional Integradado Alto Uruguai e das Misses, campus de Santo ngelo,Parecer n 055-04/PPH/08. Obteve-se a anuncia porescrito da instituio para a coleta de dados. Valesalientar que, durante as entrevistas, zelou-se pelaprivacidade na obteno das informaes, com escutarestrita ao binmio entrevistadores-entrevistados.

    A anlise dos dados deu-se de acordo com o mtodode Anlise de Contedo(15) que prope as seguintes fasesde anlise temtica: Pr-anlise que consiste na organizao,leitura e escolha dos documentos a serem analisados,retomada das hipteses e dos objetivos iniciais composterior reformulao do material coletado, elaborando-se, assim, os indicadores que orientem a interpretao final;

    Explorao do material que, consistiu na codificao,mediante tratamento dos dados brutos com o objetivode compreender o texto onde foram classificados eagregados em categorias, significativas e vlidas, sob otema privacidade do paciente em ambiente hospitalar;Tratamento dos resultados, realizaram-se a inferncia ea interpretao. Nessa fase, os autores procuraramanalisar os significados das falas dos pacientes,interpretando e entendendo o enfoque das informaesobtidas e suas relaes com a privacidade do paciente.As interlocues empricas, oriundas das entrevistas comos pacientes, so identificadas como E1, E2, [...] E12 eo teor das observaes com a designao OBS, seguidada respectiva data de realizao.

    RESULTADOS

    A presente publicao focalizou duas categoriastemticas resultantes do estudo: exposio do corpo

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    de si e dos outros e postura (in)adequada da equipe deenfermagem. A apresentao de cada uma das categoriasinicia-se pelo teor da anlise do material oriundo dasentrevistas com pacientes, adicionando-se informaesobtidas por meio da observao do ambiente hospitalar,sendo apresentadas a seguir:

    A exposio do corpo de si e dos outrosEsta categoria retrata uma importante questo tica

    que protagonizou as falas dos pacientes, sendo tambmrealada na observao. Os pacientes manifestaram quea exposio do corpo de si e dos outros ocorre,notadamente, durante os procedimentos realizados pelaequipe de enfermagem, tais como: banho, higiene, trocade roupas, troca de curativos, dentre outros. Essaexposio, por vezes desnecessria, provocaconstrangimento, desconforto, preocupao, inseguranae estresse psicolgico durante a internao. As falas queseguem so ilustrativas:

    embaraoso ter que tomar banho e trocar as roupas nafrente dos outros. Aqui na enfermaria, parece que tem semprealgum olhando, a gente j est mais velha, no se acostuma comessa rotina, todos os dias fazem isso. (E1)

    A gente fica um pouco receoso, quando tem que se expor nafrente das enfermeiras, uma coisa que no est na gente. [...] eus no gosto quando aquelas outras pessoas [familiares dos outrospacientes] ficam me olhando na hora do banho. (E7)

    O estresse psicolgico, referido como umaexperincia negativa, manifesta-se em decorrncia dasobrecarga de fatores emocionais a que o indivduo submetido, ultrapassando sua capacidade de adaptaos situaes estressoras.

    Os prprios pacientes manifestaram experinciasnegativas de constrangimento ao se depararem com anudez dos outros que compartilham espaos na mesmaenfermaria, conforme as falas extradas das entrevistas:

    Eles fecham a porta para dar banho nele [paciente do leitoao lado], ficam sozinhos, mas a gente consegue ver tudo, porqueno tem uma cortina ou biombo. (E4)

    Na hora de passar a sonda na bexiga daquela senhora[paciente do leito ao lado] elas [tcnicas de enfermagem] pedempara os homens sarem do quarto, mesmo assim, as pessoas entrame saem. A porta fica s encostada, a elas abrem a porta, espiame vo embora. (E1)

    Os depoimentos mostram o constrangimento dospacientes diante de situaes que expem seu corpo eo corpo do outro, mesmo na presena de seus familiares,pois o fato de estarem acompanhando o pacientedurante a internao, no significa ter acesso suaintimidade. Convm destacar que a equipe deenfermagem, ao tocar e expor o paciente, deve atentarpara aspectos como diversidade cultural, sexo, idade,classe social, avaliando cuidadosamente suas reaesdiante das situaes que envolvem a privacidade, nosentido de adotar condutas que sejam aceitveis para

    ele, como foi dito em uma das entrevistas:

    uma experincia que a gente no esquece, imagina os outrosfazendo tudo por ti, lavando teu corpo, tuas partes ntimas, trocandotuas roupas, quem viveu essa experincia pode entender como agente se sente. [...] a sensao de que tu no vai mais conseguirfazer isso sozinho. (E8)

    Falas como esta ilustram a sensao de impotnciasentida pelos pacientes diante da exposio de seu corpoe do corpo do outro na realizao das aes de cuidadono ambiente hospitalar. Por essa razo, destaca-se aimportncia do enfermeiro dialogar com a equipe,adotando postura reflexiva sobre a necessidade deincentivar a progressiva independncia do paciente, bemcomo de mobilizar o potencial subjetivo etransformador dos sujeitos envolvidos, para o exerccioda autonomia.

    Postura (in)adequada da equipe de enfermagemOs entrevistados relataram que a equipe de sade

    realiza comentrios em voz alta sobre assuntos quedizem respeito somente ao paciente, mencionandodiagnsticos, procedimentos realizados e estado geraldo paciente. Os dilogos, por vezes, podem ser ouvidospor quem circula na unidade, incluindo outros pacientes,familiares, visitantes e profissionais alheios ao cuidado,tais como: pessoas de outros setores como serviosgerais, limpeza, servio radiolgico. Os fragmentos dasobservaes acenam para isso:

    No posto de enfermagem, a equipe comenta em voz alta sobresituao que diz respeito vida privada de determinado paciente,o que compartilhado por outros profissionais, no apenas osenvolvidos no processo de cuidado. Tais comentrios podem ser ouvidospor familiares de outros pacientes, visitantes, profissionais alheiosao cuidado, pessoas do setor de manuteno, limpeza, Rx, etc.

    Fonte: OBS. 26.10.2008.

    No ambiente hospitalar, as informaes relativas aodiagnstico e ao tratamento do paciente socompartilhadas como parte do processo de cuidado,sendo responsabilidade da equipe de enfermagem,especialmente, do enfermeiro gerente de equipe, aadoo de estratgias com o intuito de garantir aprivacidade e confidencialidade dessas informaes.

    Os relatos dos entrevistados apresentam situaesda prtica cotidiana que se configuram como posturainadequada da equipe de enfermagem diante dospacientes, medida que seus integrantes realizamcomentrios sobre questes relacionadas sua prpriavida pessoal a respeito dos aspectos do atendimentoque realizam a outros pacientes internados. Nas falas, hindicativos de que a postura assumida pela equipe, narelao com o paciente, vem sendo permeada pelaindiferena, em que o sujeito do cuidado por vezes desconsiderado em sua individualidade. Sentimentos deinsegurana e inadequao podem se manifestar nopaciente em virtude da percepo de descompromisso

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    da equipe para consigo, interferindo em sua privacidadee dignidade.

    As manifestaes dos pacientes deixam transparecerque alguns descuidos da abordagem da equipe vm sepautando em condutas eticamente inadequadas quepodem ser identificadas em falas como as que seguem:

    No gosto quando eles [integrantes da equipe de enfermagem]ficam falando dos outros pacientes sobre coisas que a gente nemprecisa saber. (E11)

    Na outra vez que estive internada, reclamei sobre as conversasdo pessoal na hora que do banho nas pacientes. (E9)

    Os excertos anteriores denunciam a contrariedadedos pacientes com os dilogos mantidos pela equipeentre si sobre assuntos que no lhes dizem respeito, nomomento da realizao do cuidado.

    DISCUSSO

    Nas manifestaes dos entrevistados evidenciam-sesentimentos e reaes dos pacientes diante da divulgaode dados relacionados s suas condies de vida e desade por quem tem o dever de preserv-los. Assim,destaca-se que a preservao do segredo sobre a sadee bem estar dos sujeitos est associada tanto com aquesto da privacidade quanto da confidencialidade. Aprivacidade, mesmo quando no h vnculo direto,impe ao profissional o dever de resguardar asinformaes que obteve junto ao paciente, preservandoo prprio paciente do acesso a dados privativos seuspor quem no participa dos seus cuidados. Osprofissionais da sade, assim como os funcionrios deoutras equipes, entram em contato com informaesrelativas ao paciente. No entanto, por dever de ofcio,eles teriam autorizao para o acesso apenas emdecorrncia da necessidade profissional(16-18).

    A conduta tica da equipe, referida nas entrevistas,pode estar sinalizando a ocorrncia de uma crise de valorespermeando as relaes estabelecidas entre profissionaisda enfermagem e pacientes, consequentemente,convergindo para um distanciamento nos objetivos docuidado. Tais atitudes podem denunciar a desestruturaode valores em que o descuido com os princpios ticosparece assumir aspectos de normalidade, diante de umanova cultura inserida nas vrias maneiras de cuidar e nasposturas assumidas pelos trabalhadores(4,19-21).

    A privacidade do paciente constitui-se em umaobrigao tico-legal que deve ser respeitada nascomunicaes orais ou escritas, no apenas nas interaesmantidas entre o paciente e a equipe de enfermagem,mas, com os demais trabalhadores que participam docuidado, assim como com seus familiares. deverprofissional da equipe de enfermagem defender opaciente em todas as circunstncias durante a realizaodos cuidados, garantindo sua privacidade e o resguardode sua autonomia, conforme preveem o Cdigo detica dos Profissionais de Enfermagem e a Carta dosDireitos dos Usurios do Sistema nico de Sade(22-23).

    Por vezes, os profissionais da enfermagem, sentem-seautorizados a tocar nos pacientes ao realizarem as aesde cuidado, sem autorizao prvia. Essa exposiodesnecessria, alm de gerar constrangimento e/ou estresse,influencia em seu relacionamento com os profissionaisenvolvidos no cuidado, com reflexos em sua recuperao(7).

    Os depoimentos reforam a importncia doenfermeiro, gerente de equipe de enfermagem, garantira privacidade e a individualidade do paciente, pois,conforme um estudo(10), os sujeitos possuem o potencialnatural de autopreservao e proteo, denominado deconatus, constituindo-se em uma fora vital, afirmativaque os mobiliza para a ao consciente. Nessaconcepo, respeitar o outro transcende aos cuidadosfsicos com o corpo. Da mesma forma, implicacompreender o indivduo em suas mltiplas dimenses,envolvendo sensibilidade, valores, crenas, relaes comDeus e a natureza. Assim, agir corretamente no resguardo privacidade e direitos do paciente hospitalizadoconstitui-se em uma virtude que pode ser concretizadapela atuao pautada em princpios ticos.

    Um estudo(6) considera que os termos privacidadee dignidade so conceitos inter-relacionados. Adignidade incorpora muitas caractersticas daprivacidade do indivduo, como o respeito pela pessoa,a privacidade do corpo, a privacidade do espao e doterritrio. Nesse sentido, privacidade e dignidadeimplicam respeito autonomia, no controle do pacientesobre suas escolhas(6). O autor de outro estudo(12) afirmaque o conhecimento e a informao sobre a privacidadedos pacientes representam importantes estratgiasvisando humanizao dos servios de ateno emsade, justificando sua importncia por ser um princpioderivado da autonomia, englobando a intimidade, a vidaprivada e a honra das pessoas.

    Assim, aponta-se para a responsabilidade dostrabalhadores da equipe de enfermagem, na construoconjunta de conhecimentos sobre a privacidade dopaciente, despertando para articulaes que promovamo respeito e a autonomia destes atores no cenriohospitalar. Essas concepes relacionadas ao daequipe de enfermagem sobre a privacidade do pacientereportam-se a um estudo em que o autor(9), aocontemplar em suas reflexes o humanismo, a arte deviver, o cuidado da alma, o cuidado do corpo, concebiaa necessidade do exerccio contnuo das virtudes comopossibilidades que precisam ser refinadas para o sujeitoagir eticamente na relao com o outro. Para aconcretizao dessa possibilidade, so consideradoselementos indispensveis, a educao, a transcendnciado ato sobre os costumes, mediante ponderao ejulgamento sobre o que fazer e o que no fazer, ou seja,a deliberao sobre as aes a serem praticadas(9).

    Como desafio ao enfermeiro gerente de equipeinclui-se a capacidade de analisar a prtica cotidianade cuidado em suas condies ambientais, culturais esociais, possibilitando a construo de novas formasde pensar e agir, em direo a melhores prticas para ocuidado de si, do outro, do ns(17). Assim, o cuidado

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    23. Conselho Federal de Enfermagem. Resoluo COFEN311/2007. Aprova a reformulao do Cdigo de tica dosProfissionais de Enfermagem [citado 2010 Maio 1].Disponvel em: http://site.portalcofen.gov.br/node/4345

    assume caractersticas solidrias, implicando no apenasproteger a sade e o bem-estar dos sujeitos envolvidos,mas refletindo-se no respeito sua dignidade, privacidade e autonomia.

    CONSIDERAES FINAIS

    Os resultados deste estudo sugerem que o corpodo paciente submetido a contnuos olhares eobservaes em razo do processo de cuidado, sendoprivilegiada a vigilncia como estratgia para manter ocontrole sobre os parmetros biolgicos, durante asaes de cuidado, em detrimento de outras dimensescomo as que envolvem a subjetividade que ficamarginalizada. Embora seja necessria e inevitvel ainterveno profissional para a realizao do cuidado,tambm importante questionar-se, continuamente,sobre os limites dessa manipulao, os quais deveriam,na medida do possvel, ser acordados com o prpriopaciente. por meio do corpo que o ser humanorelaciona-se com o mundo, ele o elo com o universo

    e outros corpos como um ser livre, constituindo-se oncleo da ao moral. A liberdade permite-lheestabelecer relaes com os outros, com a natureza ecom a sociedade. Devem-se considerar a integridade, aindividualidade e a fora interior como essenciais para aconcretizao das inter-relaes com outros sujeitos ecom a natureza, mediante o reconhecimento e o exerccioda autonomia. Entretanto, em decorrncia de fatoresrelacionados ao ambiente fsico, cultura institucional,por vezes, o paciente desrespeitado em sua privacidadee dignidade. Tais fatores associados condio defragilidade, em razo da doena vivenciada nainternao, podem interferir no processo de autonomiae tomada de deciso do paciente, necessitando que oenfermeiro e demais membros da equipe deenfermagem estejam atentos para auxili-lo a exercersua autonomia.

    Indubitavelmente, estas so questes importantes paraserem discutidas pelos enfermeiros, sobretudo nombito gerencial do cuidado e na organizao dosprocessos de trabalho das equipes de enfermagem.