princÍpios da educaÇÃo anarquista: o orfanato de prÉvost
DESCRIPTION
PRINCÍPIOS DA EDUCAÇÃO ANARQUISTA: O ORFANATO DE PRÉVOSTTRANSCRIPT
PRINCÍPIOS DA EDUCAÇÃO ANARQUISTA: O ORFANATO DE
PRÉVOST
NASCIMENTO, Luciano Ricardo – FURB
KRAEMER, Celso – FURB [email protected]
Eixo Temático: História da Educação
Agência Financiadora: não contou com financiamento Resumo O presente texto discute a experiência de Paul Robin (1837-1912) no Orfanato de Prévost, França, no século XIX. Existe um numero pequeno de pesquisa sobre esse assunto embora ele seja de grande importância para a educação. A experiência de educação em Prévost retoma as linhas históricas do pensamento anarquista na Europa, alicerçada por pensadores como Proudhon, Bakunin e Kropotkin. Robin foi o principal nome no que tange a educação libertária no século XIX, aplicando no dia-a-dia, as inúmeras questões educacionais que vinham sendo discutidas nos meios socialistas e anarquistas. Prévost é considerada uma iniciativa educacional importante, dentre as diversas que se desenvolveram na Europa no século XIX e XX. Robin dirigiu o Orfanato de Prévost por mais de uma década, mais exatamente entre os anos de 1880 e 1894 na cidade de Cempuis na França, originando um verdadeiro espaço de liberdade em meio à educação castradora da época. Ele aplicou e melhorou uma novidade metodológica; dissolveu tabus para a época, com um ensino sem gratificações ou castigos; a convivência entre ambos os sexos; um ensino racional sem a adoração ao divino; o desenvolvimento integral dos alunos. A experiência ecoou de forma positiva e possibilitou às gerações futuras vislumbrar uma alternativa diferente na educação, uma mudança dos padrões estabelecidos que pode ser percebido em trabalhos educacionais futuros como a Escola Moderna de Ferrer y Guardia. Quanto aos aspectos metodológicos, a pesquisa foi exploratória, alicerçada na pesquisa bibliográfica, contando com o auxílio de estudiosos como Silvio Gallo, Leila Floresta e Jonas n. Figueiroa. Palavras-chave: Educação. Anarquismo. Educação integral. Paul Robin.
Introdução
O objeto de estudo do presente artigo é a experiência de Paul Robin no Orfanato de
Prévost, um experimento da educação anarquista. Para tal, faz-se uma breve apresentação do
conceito de anarquia. Trata-se de uma palavra que vem do grego e significa “sem governo;
4305
estado de um povo que se rege sem autoridade constituída, sem governo.” (MALATESTA,
1999, p. 11) e o anarquismo, conforme Rodrigues (1988, p. 15), “é a doutrina dos anarquistas
– é uma nova ordem social baseada na liberdade, na qual a produção, o consumo e a educação
devem satisfazer às necessidades de cada um e de todos.”
No meio acadêmico e para grande parte da população, são inúmeras as interpretações e
os termos utilizados, muitas vezes de forma equivocada, sobre os conceitos aplicados a
determinados grupos ou pensamentos ideológicos; com o anarquismo não é diferente, na
Europa produziu-se “uma fobia antianarquista” por um longo período após a revolução russa.
No Brasil não foi de outra forma, conforme relata Dulles (1977):
A campanha antianarquista produzida pelo PCB começou em abril de 1922, com a publicação em Movimento Communista de um artigo que Canellas afirmava que os anarquistas haviam se manifestado a favor da guerra mundial e pegaram em armas para defender o ‘Czar, o rei da Inglaterra e Poincaré’. Canellas disse ainda que milhares de anarquistas, para ‘seguiram a moda’, ‘desataram a dizer sandices sobre a revolução russa, muitas delas copiadas de jornais ou traidores’.(DULLES, 1977, p.160.)
Dulles (1977) ainda relata que apesar da participação anarquista na revolta
bolchevique na Rússia, em 1917, a perseguição de Lênin e seus companheiros de revolução
provocou uma perseguição a todos os grupos desalinhados em qualquer nível com o
pensamento comunista, almejando assim que toda resistência ao comunismo fosse quebrada.
O anarquismo antes de ser posto à prova, de ser testada sua praticabilidade, ganhou
inimigos em todas as camadas sociais, conforme mostra Rodrigues (1988): na burguesia
porque esta tinha medo de perder suas fortunas advindas dos braços dos trabalhadores; entre
os políticos e governantes por não desejarem ficar ‘desempregados’ e assim ter de produzir
seus próprios sustentos; na Igreja por receio de que as pessoas emancipadas dispensassem
seus serviços, ficando a igreja desta forma ocupando um papel secundário na sociedade.
Para as anarquistas, segundo Rodrigues (1988), a escola oficial tinha o mérito de
ensinar a ler e escrever, mas tinha o defeito de deformar a inteligência, o caráter, condicionar
os alunos à submissão e à obediência. Para os anarquistas, saber ler não era tudo. O aluno
precisa aprender a verdade histórica, científica e social. O anarquista queria um ser humano
educado, instruído, culto, despido de ódio, de rancor, de inveja, com capacidade para se auto-
governar, gerir seus atos, ser livre e cultivar a liberdade como a vida, todos os dias
4306
Martín Luengo et al (2000) aponta que a educação libertária se forma com pessoas que
sentem, pensam, vivem e raciocinam, desejando para si e para os demais a liberdade, a
igualdade e a justiça social. A educação libertária resulta em uma maneira de proceder diante
da vida, segundo a qual as normas que nos regem se baseiam no respeito, no
autoconhecimento, na discussão para outro desenvolvimento do ambiente social. A educação
libertária inclui uma luta permanente contra o que se apresenta como intransponível e ela
resiste a que seja assim. Inclui a luta contra os imobilismos; é mover-se em um terreno onde a
dúvida é um componente importante.
Para Gallo (1995b), na educação anarquista, Paul Robin (1837-1912), é um dos
principais nomes da pedagogia libertária no século XIX, por ter sido o precursor no sentido de
trabalhar, na prática, as várias questões educacionais teóricas que vinham sendo debatidas nos
meios anarquistas. Toda a teoria pedagógica libertária que vinha sendo construída por
importantes autores como Proudhon (1809-1865), Bakunin (1814-1876) entre outros, mesmo
bastante interessante e profunda, não tinha ainda uma vinculação mais estreita como a
vivência prática: tais teóricos libertários não tinham vivência mais concreta do sistema
educacional, “além de suas próprias experiências como alunos. Mesmo tendo uma aguda
visão da realidade, tinham com a educação apenas uma relação de exterioridade” (GALLO,
1995b, p. 87). Paul Robin, ao contrário, foi professor e pedagogo, segundo Gallo (1995b)
relata. Conhecia com profundidade a educação, sua bases teóricas, seus sistemas e, desta
forma, pode trabalhar de maneira muito mais completa e profunda a teoria e a prática de uma
pedagogia libertária. Neste contexto, em 1880, Robin é nomeado diretor do Orfanato de
Prévost, em Cempuis – Paris. O Orfanato de Prévost era uma instituição de ensino bastante
avançada para os padrões da época e Robin recebe liberdade total para colocar em prática as
suas idéias, de uma educação inovadora e que apresentou significativas contribuições.
A partir desses dados, o presente artigo pretende discutir a experiência do pedagogo
Paul Robin no Orfanato de Prévost. Para melhor situar a experiência de Robin traçou-se as
linhas históricas do pensamento anarquista na Europa. Em seguida descreve-se a experiência
de Paulo Robin no orfanato de Prévost. A questão de pesquisa interroga: ‘quais princípios da
educação anarquista aplicadas em Prévost e de que forma eles foram aí trabalhados?’ Por fim,
quanto aos aspectos metodológicos, a pesquisa foi exploratória, alicerçada na pesquisa
bibliográfica.
2 Anarquismo: conceitos gerais
4307
2.1. Anarquia, anarquistas e anarquismo: conceitos
O anarquismo e a anarquia, de modo geral, são associados a vários tipos de desordem,
contudo, eles possuem também um significado mais limitado, isto é, “a ausência de
autoridade coercitiva usada para manter a ordem social, em especial quando a autoridade é
exercida pelo Estado.” (SILVA e MIRANDA NETTO, 1986, p. 17). Os anarquistas,
portanto, não são contrários a um estilo de vida organizado, mas sim, ao uso indevido da
coerção e da força para mantê-lo; é o “estado de um povo que se rege sem autoridade
constituída, sem governo.” (MALATESTA, 1999, p. 11)
Segundo Walter (2000), os primeiros que foram chamados anarquistas, o foram como
insulto no curso das revoluções inglesa e francesa dos séculos XVII e XVIII, para dar a
entender que os anarquistas queiram o caos ou a confusão. Mas desde os anos de 1840, com
Proudhon, que os anarquistas incorporaram este termo como símbolo para mostrar que
queriam anarquia, quer dizer, a ausência do governo, da extinção total do estado como
personificação do autoritarismo.
Segundo Gallo (2006), não é correto se falar em anarquismo, como sendo apenas um,
já que são diversas as perspectivas assumidas pelos inúmeros teóricos e militantes do
movimento anarquista, em múltiplos pontos de vista, o que determinam a impossibilidade de
agrupar o pensamento anarquista em uma doutrina. Uma boa forma de se entender o
anarquismo é considerá-lo um principio gerador:
Defendo nesta obra que devemos, assim, considerar o anarquismo como um princípio gerador, uma atitude básica que pode e deve assumir as mais diversas atitudes particulares de acordo com as condições sociais e históricas às quais é submetido. [...] formado por seis princípios básicos de teoria e de ação: autonomia individual, autogestão social, internacionalismo, ação direta, associações operarias e greve geral. (GALLO, 2006, p.10;grifo do autor)
Pode-se enxergar no anarquismo como princípio gerador Gallo (2006), um paradigma
de análise político-social, pois existiria assim um elo que liga entre si as diferentes práticas
anarquistas. O Anarquismo assumiria diferentes formas e facetas de interpretação da realidade
e de ação de acordo com o momento e as condições históricas em que fosse aplicado, pois o
principio gerador, na visão de Gallo (2006), dissocia o anarquismo de uma ideologia
engessada, possibilitando explicar as várias facetas em que se desdobra o pensamento
anarquista.
4308
Para Costa e Sant’Anna (1981) a maioria do que atualmente se sabe dos anarquistas
foi plantado com a aparição, no cenário político, de Michail Bakunin (1814-1876) de origem
russa: impossível isolar suas idéias e separá-las de suas ações que inauguram um estilo e
marcaram o advento do anarquismo nos combates sociais pela destruição da autoridade e pela
instauração de outra sociedade. Tal sociedade Bakunin, conscientemente, sequer esboçou,
pois seriam parte e criação das massas. Em 1841 foi para Dresden. Conheceu Arnold Ruge,
um proudhoniano, crítico de Hegel, a quem os historiadores atribuem o início da conversão de
Bakunin ao anarquismo. Esta foi celebrada publicamente nas páginas do jornal de Huge, onde
Bakunin produziu o seu primeiro e mais importante ensaio ‘A Reação na Alemanha’. Neste
ensaio, Bakunin estigmatizaria uma de suas máximas mais conhecidas: ‘o impulso destrutivo
também é um impulso criador’.
Costa e Sant’Anna (1981) descrevem que a presença e a atuação de Kropotkin
auxiliaram para a melhoria e da imagem do anarquismo junto à opinião pública. Em 1891,
Kropotkin acreditava e acenava com a possibilidade de que o anarquismo se formasse graças
à maturação da opinião pública e com o mínimo possível de agitação e desordem. Escreveu
também a ‘A ajuda mútua’, uma clássica formulação das idéias comuns a quase todos os
anarquistas, a de que a sociedade não passa de um fenômeno natural existente antes da
aparição do homem que, por sua vez e por sua natureza, respeitaria as leis sem precisar de
regulamentos artificiais, onde as pessoas se solidarizariam ajudando-se umas às outras.
Kropotkin desenvolveu as idéias do comunismo-anárquico, uma combinação de idéias do
comunismo com o anarquismo.
2.2. Princípios gerais da educação anarquista
A educação anarquista (ou libertária) pode ser considerada uma das iniciativas
educacionais não oficiais mais importantes, dentre as diversas que se desenvolveram na
Europa e em várias partes do mundo no século XIX e XX.
Conforme esclarece Gallo (1995a) em meio ao movimento socialista, o anarquismo
trouxe suas propostas pedagógicas fundamentadas na idéia proudhoniana de que a
emancipação dos trabalhadores passaria pela criação de suas próprias escolas, trabalhando as
diretrizes educacionais voltadas para um caminho diferente das propostas pelo estado e pela
igreja.
4309
Gallo (1995a) destaca que a concretização de uma educação que objetive ultrapassar
a relação do saber com o poder, preparando as pessoas para a vivência plena de sua liberdade,
em torno da liberdade dos demais é extremamente complexa e passa, dentre outras, pela
questão da relação de educação com a ideologia.
Oiticica (1983) nota também que a educação do povo é uma faca de dois gumes: por
um lado, transmite a ideologia capitalista e tanta inserir os indivíduos no sistema; por outro
lado, fornece condições, como a alfabetização para que esses indivíduos do povo tomem
contato com outras ideologias.
Desse modo, defende Gallo (1995a), que uma sociedade justa deve ter uma educação
igualitária; de acordo com a relação saber/poder, sistemas de ensinos diferentes correspondem
a classes sociais diferentes e a conseqüente exploração das menos sábias pelas mais
privilegiadas que, claro, tudo fazem para manter esta condição.
Portanto, compreende-se que a educação libertária ensina cada pessoa a explorar seu
poder, contudo, com uma visão contrária ao uso e abuso deste poder, estudando seus limites a
partir dos parâmetros do respeito e da solidariedade. A educação libertária é caracterizada
ainda por uma oferta de liberdade e conhecimentos e uma possibilidade de aprendizagem
alternativa, proporcionando mudanças sociais e mudanças na formação individual.
4 Paul Robin e o Orfanato de Prévost
Desde início do século XIX, quando Proudhon (1809-1864), sistematizou o
Pensamento Libertário, vários pensadores e educadores têm buscado organizar a educação
segundo os pressupostos do pensamento anarquista em oposição ao pensamento capitalista e
sua organização vigente na sociedade.
Paul Robin (1837-1912), como inúmeros pensadores de sua época, não concordava
com o ensino que era desenvolvido na sociedade. Entendia o ensino como ciência pedagógica
e buscou um modelo alternativo de educação. Robin foi um contestador em sua vida
profissional, entre os anos de 1861 e 1864 ocupou o cargo de professor na rede pública,
dedicando-se a lecionar ciência e matemática, sua inquietude com o modelo de educação de
sua época o levou a organizar visitas a fabricas e artesões, a ensinar seus alunos fora do
ambiente mesmerizado da sala de aula, em disciplinas como botânica, astrologia e geologia,
buscando uma ponte entre o ensino teórico e a riqueza da prática. Sua forma diferenciada de
lecionar lhe trouxe inimizades:
4310
[...] A comunidade local, entretanto insurge-se contra seu ensino laico e critico e contra as suas posições políticas; com os superiores está também em constante atrito, pois além de seu pensamento político, não respeita os programas, formenta protestos entre os alunos e ainda trabalha com a instrução popular. (GALLO, 1995b, p. 88-89).
Em 1880 surge a oportunidade perfeita para Robin, ao ser designado diretor de um
orfanato, encontrou a chance que buscava para desenvolver um método anarquista de
educação. O Orfanato de Prévost foi fundado em 1861 por Joseph-Gabriel Prévost(1793-
1875), um rico comerciante da cidade de Cempuis, membro da sociedade espírita de Paris, um
adepto das teorias de Saint Simon que , através de testamento, deixou a propriedade sob os
cuidados da prefeitura local, com disposições bem claras quanto às diretrizes a serem
respeitadas na educação dos órfãos: estudo laico, praticado por professores também laicos e
para crianças de ambos os sexos, crianças estas que deveriam freqüentar as aulas
conjuntamente. Estava criado o ambiente propício para a prática da educação integral.
Entre 1880 e 1894, o Orfanato de Prévost foi administrado por Paul Robin, e se pode
considerar esta a primeira experiência real de cunho anarquista na educação. Neste sentido,
Robin, contribui para a implantação da educação integral, objetivando a construção de um
novo tipo de sociedade, na qual fosse possível a formação total do homem; onde ele poderia
ter acesso à totalidade dos conhecimentos humanos, buscando um equilíbrio entre a
necessidade de constituir um ser individual e um ser social, buscando em sua experiência na
cidade de Cempuis um meio-termo entre a educação intelectual, manual e moral.
Floresta (2007) considera que Robin dedicou boa parte de sua vida à realização de
seu projeto de educação integral. No Orfanato de Prévost pode colocar em prática as idéias
que desenvolveu ao longo de sua vida como educador e pedagogo. Robin foi importante no
campo teórico libertário, pois desenvolveu uma prática pedagógica alternativa ao modelo
vigente na época, contribuindo para a fixação de uma pedagogia com perfil libertário.
A originalidade de Robin como pedagogo destaca-se nos seguintes aspectos: métodos e instrumentos pedagógicos; a co-educação; a convivência harmoniosa entre os membros do grupo; a importância do respeito à individualidade, ao desenvolvimento próprio da criança e o lugar concedido à ciência. O enfoque dado a essas questões é de extrema importância para o período, servindo de referencial para muitos educadores posteriores, não só anarquista, mas para todos aqueles que irão apoiar a crítica à educação tradicional (FLORESTA, 2007, p. 122).
4311
Freitas e Corrêia (1998) relatam que em Prévost, Robin exercitou a educação integral
e marcou a educação dos dois sexos, isto é, foi o precursor no que tange a autorizar meninos e
meninas estudarem na mesma sala de aula. Robin defendia que e educação deveria ser
responsável pelo desenvolvimento da todas as capacidades dos homens, seja na esfera física,
intelectual ou moral. Considera que na sociedade, a educação que estava enraizada era imoral
e anti-racional, uma verdadeira anti-educação. A proposta educacional de Robin dividia a
educação em fases: a primeira era chamada de ‘período espontâneo’, onde as crianças são
essencialmente consumidoras; e a segunda, ‘período dogmático’, quando a criança passa a
poder ser também produtora. Assim, em Prévost havia várias oficinas, como de sapateiro, de
costura, entre outras, para serem utilizadas em atividades práticas em um segundo período.
Figueiroa (2007) lembra que Robin acreditava que são as experiências práticas que devem
orientar a educação das crianças na primeira infância, de modo que qualquer conhecimento
teórico apresentado a elas será fruto de sua curiosidade e interesses advindos da experiência
na prática. Assim, esta primeira fase da educação centrava-se no caráter espontâneo que a
criança demonstraria pelas coisas. O educar nada impunha, simplesmente aproveitava o
interesse natural da criança para trabalhar atividades que tinham como objetivo sensibilizar os
sentidos do corpo humano, bem como os membros do corpo e conhecimentos gerais sobre as
coisas e os fatos. Assim, progressivamente:
[...] as atividades partem da individualidade para a coletividade, de forma que as crianças aprendam a se socializar de maneira sadia e que consigam desenvolver atividades em grupo. Essa fase inicial se encerra quando as crianças já possuem: um repertório básico de conhecimentos, condições de uma elaboração lógica do conhecimento e uma capacidade razoável de abstração (FIGUEIROA, 2007, p. 35).
Figueiroa (2007) coloca que a segunda fase da educação praticada por Robin em
Prévost é denominado de dogmática. Esta segunda fase da educação integral nada mais é do
que o aprendizado sistemático das diversas ciências. O ensino teórica ganha nova relevância
quando na adolescência, caracterizada como última fase da proposta de Robin, os jovens
participam das oficinas para desenvolver seu conhecimento prático. Os adolescentes de ambos
os sexos aprendiam os diferentes ofícios, da tapeçaria à costura, todos tinham oportunidade de
adquirir o conhecimento prático da manufatura, acompanhado de todos os subsídios teóricos.
Floresta (2007) evidência que nesta última fase combinavam-se o trabalho manual
com os trabalhos escolares. Tal fase durava três anos, com seis horas diárias destinadas a
4312
especialidade escolhida e o resto do tempo aplicado aos estudos clássicos. Frisa-se ainda que
Robin dedicava-se ao planejamento cuidadoso e minucioso de todas as atividades,
objetivando melhorar os métodos de ensino de forma que as crianças educadas em Prévost
não ficassem defasadas em relação às outras crianças educadas em colégios de renome.
Assim, quando se atingia a maturidade, as crianças iam continuar seus estudos em outros
colégios, evidenciando um rendimento muito bom.
Para dialogar com a forma pela qual as crianças aprendem em ambas as fases,
‘período espontâneo’ e ‘período dogmático’, Robin desenvolve, segundo Figueiroa (2007),
vários métodos, como jogos, atividades físicas, exercícios musicais, pequenas tarefas para
benefício da coletividade, entre outras coisas, de acordo com interesse que as crianças
apresentam. Ainda eram oferecidas para as crianças:
[...] na medida de seus próprios interesses, experiências práticas com diversos instrumentos chamados de “auxiliares dos sentidos”, como lupa, microscópio, telescópio, micrômetro, fotômetro, medidas de longitude com uso de fitas métricas etc. A idéia de Robin ao propor atividades práticas com esses instrumentos era permitir que as crianças tivessem sua curiosidade e criatividade estimuladas. Essa curiosidade proporcionada por tais instrumentos é o que permite a aplicação de um conhecimento teórico para a explicação dos fenômenos observados (FIGUEIROA, 2007, p. 32).
Gallo (1995a) chama a atenção ao fato de que as crianças passavam muito tempo ao
ar livre, praticando esportes. Tal educação não admitia que fossem realizadas provas e exames
como forma de classificação dos alunos, bem como não existiam castigos ou prêmios para
quem se destacasse. Os alunos mais destacados, ou seja, mais adiantados, auxiliavam os
outros, ou seja, praticavam a solidariedade com os outros.
Gallo (1995a) destaca que na parte prática, nas diversas oficinas, os adolescentes de
ambos os sexos aprendiam os diferentes ofícios, todos tinham oportunidade de adquirir o
conhecimento prático, acompanhado dos subsídios teóricos. Ao final do processo de instrução
via educação integral, o adolescente poderia fazer uma escolha entre os diferentes ofícios para
se especializar e se aprofundar.
Outra premissa pedagógica levantada por Robin era o ensino misto, onde crianças
tanto do sexo masculino como do sexo feminino, participavam de uma vivência constante.
Por último, o projeto de Robin defendia o ensino libertário, no sentido “da supressão
progressiva da autoridade em favor da liberdade e autonomia individuais, visto que o objetivo
4313
último dessa educação é formar homens livres que respeitem e amem a liberdade alheia”
(FLORESTA, 2007, p. 123).
Martins (2009) destaca que a educação integral preocupava-se ainda com a saúde e a
higiene das crianças. Tais crianças deveriam ter um vestuário de acordo com as normas
higiênicas, tomar com freqüência banhos e ter acompanhamento de seu desenvolvimento
físico. Outro aspecto da educação integral seria a educação intelectual, que deveria
desenvolver com equilíbrio todas as faculdades, tais como assimilação, produção, observação,
julgamento, memorização e imaginação. A educação integral também deveria desenvolver a
educação moral, que deve estar pautada na justiça e nas relações sociais. Outro aspecto
fundamental para a educação integral proposta por Robin era a educação literária, que deveria
ser desenvolvida por meio de quatro caminhos: ouvir, ler, falar e escrever. Tais etapas
estavam intimamente vinculadas umas com as outras.
Floresta (2007) considera que em Prévost as crianças eram incentivadas a
desenvolver o espírito científico, utilizando os recursos que estavam à sua disposição, como
os laboratórios, museus, etc., tanto durante o período de estudo como nas horas de folga.
Robin considerava que o relacionamento com tais recursos estimulava e motivava o
aprendizado espontâneo. Por isso deveria estar sempre disponível para as crianças. Não se
ensinava simplesmente como as máquinas funcionavam, mas estimulava-se a capacidade
inventiva e de pesquisa. A proposta pedagógica de Robin era ambiciosa, porque buscava a
combinação entre a imaginação, o senso prático e a memória. Nesse ínterim:
[...] os laboratórios, os museus, o teatro e os instrumentos mecânicos constituem um instrumental bastante eficaz. O aluno deve adquirir noções sólidas das ciências e das artes e isto não se pode dar, segundo ele, apenas através do ensino teórico. Não se tratar de privilegiar um conhecimento superficial, mas de possibilitar à criança a estruturação de noções elementares que mais tarde servirão de base para a escolha e desenvolvimento de uma especialização (FLORESTA, 2007, p. 130)
Floresta (2007) declara que para Robin, o período que as crianças passavam em
Prévost era apenas um estágio, devendo a educação continuar por toda a vida. Assim, a
experiência de Robin em Prévost colocou em prática o pensamento político-pedagógico de
Proudhon e Bakunin; definiu, no exercício diário escolar, uma crítica à autoridade, à
disciplina castradora, à hierarquia, à homogeneização dos indivíduos, ao individualismo, etc.
O objetivo de Robin era aniquilar falsas idéias, preconceitos e posturas criados pelo ensino
4314
oferecido pelo Estado ou pela Igreja, “buscando levar essas crianças a se tornarem
profissionais competentes, detentoras do saber científico e, ao mesmo tempo, seres
conscientes e autônomos, capazes de lutar por um processo social de construção da liberdade”
(FLORESTA, 2007, p. 133).
Martins (2009) considera Robin um intelectual que foi a expressão de seu tempo e
que podem ser observadas algumas características de sua proposta pedagógica, desenvolvida
em Prévost: a crença no racionalismo científico, a possibilidade de regeneração da espécie
humana, a visão internacionalista e a existência de uma sociedade igualitária. Ele influenciou
vários educadores, entre eles Ferrer y Guardia. Pode-se também mencionar que seu projeto de
educação integral procura lutar, com as armas do século XIX, contra a discriminação e a
desigualdade. Tais armas seriam o espírito científico e a esperança na regeneração humana.
Gallo (1995a) frisa que dentre todas as premissas da proposta pedagógica de Robin,
algumas geraram grande polêmica, como educação mista, com ambos os sexos e o ensino
racional e laico. Tais premissas geraram violentos ataques dos cristãos e conservadores, além
das autoridades escolares, sendo que Robin foi perseguido e exonerado do cargo de
administrador de Prévost em 1894:
Tal experiência, apesar do grande sucesso, suscitou muitos ataques, principalmente vindos de católicos e conservadores, que acusavam o sistema de co-educação dos sexos como ‘pornográfico’. Robin foi perseguido e, em 1894, cede às pressões, se demitindo de Cempuis após 14 anos. O exemplo de Robin inspirou outras várias experiências de educação libertária como: ‘La Ruche’, liderada por Sebastian Faure (1858-1942), e a Escola Moderna, inspirada por Francisco Ferrer y Guardia (1849-1909) (VARGAS, 2007, p. 97)
O Orfanato de Prévost perdeu assim o pedagogo que reescreveu a forma de se ver a
educação, o resultado de sua obra se fez perceber em outras experiências que se seguiram e
que até hoje estão lutando pela educação em uma perspectiva diferente, mais crítica e
emancipadora, fazendo assim um contraponto à sociedade embasada na educação alienadora e
perversa em si.
5 Considerações Finais
Percebeu-se que o anarquismo é uma teoria dos anarquistas, alicerçada na liberdade,
onde a produção e o consumo deveriam atender, ao mesmo tempo, às necessidades
4315
individuais e de todos. Contudo, frisa-se que o anarquismo deve ser considerado como um
princípio gerador, assumindo várias formas de interpretar a realidade e maneiras de ação,
conforme o momento e as condições históricas em que é vivido. Portanto, considerando-se o
princípio gerador, de Gallo, diz-se que o anarquismo não pode ser visto como uma ideologia
engessada, mas como uma forma de elucidar os inúmeros prismas que se desdobram no
pensamento anarquista.
O anarquismo debateu os problemas que assolavam a sociedade e buscou formas e
saídas possíveis, num período em que inúmeros autores tinham suas crenças arraigadas na
disciplina e no autoritarismo. A característica mais marcante de Prévost talvez tenha sido não
converter as pessoas a uma ideologia doutrinária fixa, engessada; preferiu a liberdade
individual como a melhor forma de desenvolver uma sociedade mais justa.
A batalha pela extinção do Estado e da Igreja, que para os anarquistas eram formas
de alienação, criou uma resistência por parte da classe dominante, levando os anarquistas à
opressão e à morte. Os constantes desentendimentos entre os anarquistas e a falta de uma
liderança nata, transformaram o pensamento anarquista em uma grande colcha de retalhos,
com várias divisões, muitas vezes desencontradas, no que tange à meta final do anarquismo
enquanto modo de nortear a sociedade.
Mesmo diante da pluralidade de prismas para se observar o anarquismo, um ponto
pode ser considerado elo de ligação entre os vários pensadores anarquista: a necessidade de
uma educação que não deveria distanciar as classes mais abastadas das menos abastadas, mas
que aproximasse estas classes. Uma educação que desenvolve o homem na sua totalidade: em
um sentido positivo da palavra, os aspectos físicos, intelectuais e morais, que contribuíssem
para a criação de uma consciência de cooperação e não de exploração.
Neste contexto, a experiência de Robin, no Orfanato de Prévost, deu vida à prática da
educação anarquista durante mais de uma década. Robin aplicou e aperfeiçoou uma novidade
metodológica de ensino; quebrou tabus para a época, com um ensino sem gratificações ou
castigos; a convivência entre os sexos em sala de aula; um ensino racional sem a adoração ao
divino; o desenvolvimento integral dos internos. Todas essas novidades instigaram críticas de
uma sociedade que não conseguiu enxergar com bons olhos a quebra de tantos tabus
educacionais. Robin, não via na religião a salvação e nem via no Estado o caminho para o
equilíbrio social; nem acreditava na divisão de classe; intitulava-se anarquista. Contudo, a
experiência ecoou de forma positiva e possibilitou a gerações futuras vislumbrar uma
4316
alternativa para a educação, uma mudança dos padrões estabelecidos, o que pode ser
percebido em trabalhos como a Escola Moderna de Ferrer y Guardia.
REFERÊNCIAS
BAKUNIN, Mikhail Aleksandrovitch et al. Educação libertária. Porto Alegre: Artes Medicas, 1989. COSTA, Caio Tulio; SANT’ANNA, Vanya. O que é o anarquismo. 5. ed. São Paulo: Brasiliense, 1981. DULLES, John W. F. Anarquistas e o comunismo no Brasil. Rio de janeiro: Nova fronteira, 1977. FIGUEIROA, Jonas N. Educação anarquista: conceitos e experiências de uma educação para a liberdade. 2007. 57 p. Monografia (Licenciatura em Pedagogia), Centro de Educação e Ciências Humanas, Universidade Federal de São Carlos, São Carlos/SP, 2007. Disponível em: <http://www.ufscar.br/~pedagogia/novo/files/tcc/tcc_turma_2004/249270.pdf> Acesso em: 30 maio. 2011. FLORESTA, Leila, Um projeto de educação integral: a experiência de Paul Robin em ‘Cempius’. Olhares & Trilhas , Uberlândia, ano VIII, n. 8, p, 121-134, 2007. FREITAS, Francisco Estigarribia de; CORRÊA, Guilherme Carlos. Encontro de educação libertária : textos. Santa Maria: UFSM, 1998. GALLO, Sílvio. Anarquismo: uma introdução filosófica e política. Rio de Janeiro: Ed. Achiamé, 2006. ______Educação anarquista: um paradigma para hoje. Piracicaba: Ed. Unimep, 1995a. ______Pedagogia do risco. Campinas: Papirus Editora, 1995b. JOHNSON, Allan G. Dicionário de sociologia: guia prático da linguagem sociológica. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1997. KASSICK, Clóvis N. Pedagogia libertária na história da educação brasileira. Revista HISTEDBR ,, Campinas, n .32, p.136-149, dez.2008. Disponível em: <http://www.histedbr.fae.unicamp.br/navegando/artigos_pdf/> Acesso em: 20 maio. 2011. MALATESTA, Errico. A anarquia. São Paulo: Nu-Sol; Rio de Janeiro: SOMA: Imaginário, 1999. MARTÍN LUENGO, Josefa et al. Pedagogia libertária: experiências hoje. São Paulo: Editora Imaginário, 2000.
4317
MARTINS, Angela M. S. A pedagogia libertária e a educação Integral. VIII Seminário Nacional de Estudos e Pesquisas – História, Sociedade e Educação no Brasil: história, educação e transformação: tendências e perspectivas. Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 30 de junho a 03 dse julho de 2009. Disponível em: <http://www.histedbr.fae.unicamp.br/acer_histedbr/seminario/seminario8/trabalhos.html> Acesso em: 30 maio. 2011. OITICICA, José. A doutrina anarquista ao alcance de todos. 2. ed. São Paulo: Econômica Ed, 1983. PASCAL, Maria Aparecida M. A pedagogia libertária: um resgate histórico. Congresso Internacional de Pedagogia Social, 2006. Disponível em: < http://www.proceedings.scielo.br/scielo.php?pid=MSC0000000092006000100032&script=sci_arttext> Acesso em: 20 maio. 2011. RODRIGUES, Edgar. O anarquismo na escola, no teatro, na poesia. Rio de Janeiro: Achiamé, 1992. ______Os libertários: idéias e experiências anárquicas. Petrópolis, RJ: Vozes, 1988.
SILVA, Benedicto; MIRANDA NETTO, Antônio Garcia de. Dicionário de ciências sociais. Rio de Janeiro: Editora da Fundação Getúlio Vargas, 1986. VARGAS, Francisco F. G. R. Exórdio para o estudo da pedagogia libertária em Rio Grande. Revista Didática Sistêmica, Rio Grande do Sul, v. 6, p. 81-106, jul./dez. 2007. Disponível em: <http://www.seer.furg.br/ojs/index.php/redsis/article/viewFile/1243/538> Acesso em: 29 maio. 2011. WALTER, Nicolas. Sobre o anarquismo. Rio de Janeiro: Achiamé, 2000.