florentino de carvalho_pensamento social de um anarquista

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ROGÉRIO H. Z. NASCIMENTO FLORENTINO DE CARVALHO pensamento social de um anarquista.

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  • ROGRIO H. Z. NASCIMENTO

    FLORENTINO DE CARVALHOpensamento social de um

    anarquista.

    achiamRi o de Janeiro

  • Dedica tria

    Dedico este trabalho a todos que, publicamente ou no anominatoda vida cotidiana, acreditam, sonham, fazem atos e poesias liber-tando seu esprito e provocando os outros e, sobretudo, lutam paraconcretiza!' o desejo da utopia. Com certeza estes j vivenciam WJlpouco a poesia. Dedico tambm aos combatentes "esquecidos",atropelados pela voragem dos tempos e da estupidez humana. Queseus sonhos libertrios se tornem vida; que seus esforos possamser conhecidos; que seus cantos pela fratemidade faam ecos 110profundo doser humano.

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    Agradecimen tos

    Este livro resultado de minha pesquisa do Mestrado em CinciasSociais, realizada entre os anos de 1993 a 1996. A partir do texto dadissertao fiz algumas modificaes visando melhorar a compreensodo texto pejo leitor. Mas o essencial da pesquisa foi preservado. De outrolado, a pesquisa referida no teria sido possvel sem a coloborao devrias pessoas e instituies a quem gostaria de registrar meus agradeci-mentos. Inicialmente agradeo ao CNPq por ter me conferido a bolsa queauxiliou a realizao da pesquisa. Agradeo tambm UFPB, ao CCHLAe Coordenao do Programa de Ps-Graduao em Sociologia, nas pes-soas dos professores Mauro Khoury e Jacob, dos funcionrios Chico eRamalho pelo apoio e incentivo nas atividades acadmicas e boa vontadetio cotidiano da vida nos corredores e sala de aula. A ADUFPB-JP, espe-cialmente ao professor Marco Montenegro e Clia por terem me auxi-liado com o uso dos computadores. No poderia esquecer dos colegas domestrado: Cabral, Maria do, Carmo, Dulce, Antonio, Rodoval, Regina,Val, Raimundo e Vnia que contriburam clareando as idias, nas refle-xes, sugerindo caminhos e levantando questes por demais relevantesno perodo de nossa convivncia. Todos foram excelentes companhias.Amizades que o tempo no vence. Snchez, orientador e amigo, por ter sedisposto a trabalhar com esta pesquisa, levantando questes e fazendocolocaes por demais oportunas, sugerindo procedimentos, apontandoinsuficincias, motivando e incentivando a caminhada. No Arquivo Na-cional, Stiro foi excelente colaborador. No Arquivo de Memria Oper-ria do IFCH da UFRJ agradeo Mnica. Na Biblioteca Municipal M-rio de Andrade, So Paulo, Mrcia, Olga e Toninho que tiverampacin-cia enorme comminhas buscas. No Arquivo Estadual de So Paulo, Csare demais companheiros me auxiliaram bastante na busca dos pronturiosdos anarquistas. No Arquivo Edgar Leuenroth, UNICAMP, Ema Franzonie Ftima foram timas facilitadoras das buscas nos arquivos. Por outrolado agradeo de corao a meu pai, Jos Severino do Nascimento (inmemoriam) que acompanhou todo o perodo da pesquisa, me auxiliandode modo mpar na execuo de minhas atividades. Minha me, Luzinete,sempre incetivando de todas as formas minha caminhada profissional. AJ, amada companheira de estrada, pela companhia e, muitas vezes, tersustentado barras sozinha por conta de minha ausncia. Aosmanos Goretti,Joelma e RomriopeJo apoio incondicional. No poderia esquecer Ramon,Rrami e Anarco, trs amores de minha vida que me enchem de entusias-mo pela vida e que, em muitos momentos, viram-se privados de minhapresena - e eu da deles - sem que entendessem o porqu. Tambm recm-chegada em nossas vidas, Ptala, um mimo s! Apesar da poucaidade, eles me ensinam coisas que jamais pensei descobrir.

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  • sUMRIo

    APRESENTAO / 9

    INTRODUO / 13

    Capitulo 1VIDA E OBRA DE FLORENTINO DE CARVALHO / 21

    A Vida / 21A Obra/ 32

    Captulo 2O BRASIL DO OOCIO DESTE SCW.O NA PERCEPO

    DE UM TRABALHADOR I 43A Natureza Classista da Repblica Brasileira no Inciodo Sculo XX / 44A Repblica dos Antagonismos Sociais / 48Aspectos Scioeconmicos do Brasil do Incio do Sculo XX / 51Violncia e Represso Policial no Brasil do Incio do Sculo XX / 56

    Captulo 3AS LUTAS E ATITUDES DOS TRABALHADORES BRASILEIROS

    DO OOCIO DO SCULO XX / 65 .-AoDireta Solitria e Ao Direta Solidria /65A Organizao dos Trabalhadores / 67Movimento Operrio e Movimento Anarquista / 70

    Captulo 4ANLISES CRTICAS DE FLORENTINO DE CARVALHO /75

    O Estado /75Duplo Carter do Estado / 75Estado Classista /78Estado Moderno: Poder Annimo / 81Estado, Religioso Estado / 85

    As Leis Estatais / 89O Militarismo / 94O Social-Democratismo e o Estado Socialista / 98

    Socialismo Democrtico: Nova Forma de Exploraoe Despotismo / 98

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    Candidatos Socialis tas,'Ano Nociva nMovimento Operrio / 102Estado e Sociedade: Fuso e Confuso / 108

    A Imprensa Burguesa, Escritores e Filsofos / 112Religio: Articulada aos Dominadores e Obstculoao Desenvobnento Social I 122Nacionalismo: Exclnsivismo, Religiosidade e Dominao / 125Trabalhadores, Companheiros e' o Sindicalismo / 129O Ensino, os Professores e a Escola Oficial / 134

    Captulo 5O ANARQUISMO DE FLORENTINO DE CARVALHO / 139

    Anarquismo sem Adjetivos / 139Destruam et Aedificabo: as Duas Teses do Anarquismo / J 44O Anarquismo como Processo Revolucionrio / 150A Anarquia como Nova Forma de Organizao Social / 152

    Captulo 6 "ASPECTOS GERAIS DA SOCIEDADE LIBERTARlAE OS MEIOS, PARA SEU ESTABELECIMENTO / 157'A Liberdade, a Solidariedade e as Manifestaes Pblicas / 158 'Ao e Propaganda / 162 . .A Violncia Revolucionria e a Imprensa Operria / 166Contra o Ensino Oficial: uma Educao Libertria / 169A Organizao de Trabalhadores e dos Excludos da Sociedade / 174

    CONSIDERAES FINAIS / 177

    BIBLIOGRAFIA/195

  • APRESENTAOTem algum sentido publicar e ler Wl1 livro sobre Florentino de Car-

    valho, pensamento social de um anarquista? Bem, eu no tenho dvidasa respeito dessa indagao. Os leitores no as tero, de modo algum, setiverem a coragem de, ao menos, iniciar a leitura.

    Certamente, fiquei surpreso quando Rogrio, o autor deste livro,anos atrs, solicitara-me uma indicao para pesquisar sobre oanarquismo. Era o primeiro pedido de orientao acadmica para dis-sertao de mestrado a mim feita. Rogrio estava a fim de descobriralguma coisa que tivesse ficado perdida sob a poeira do tempo. Sugerique estudasse a possibilidade de recuperar Da Escravido Liberdadede Florentino de Carvalho e tentasse reedit-lo, Mergulhou profundo erecuperou muito mais.

    Normalmente os orientandos de mestrado, e at de doutorado, quei-xam-se das dificuldades para encontrar fontes de pesquisa. No foi ocaso. Rogrio andou, escavou, garimpou e amealhou admirvel colet--nea de escritos de Florentino de Carvalho emjornais cratas e panfletosda poca. No tinha certeza eu de que fosse possvel. Mas foi. Espertezadele. Conseguiu porque tinha a conscincia de que "o pesquisador tem.que percorrer um longo percurso que esconde supresas, novidades, difi-culdades nl,exigindo perseverana, pacincia e ateno num trabalhosemelhante ao de garimpeiros. (. ..) vasculhar arquivos e bibliotecas; aliteratura especializada; colher depoimentos; verificar novas pistas; che-car informaes, enfim, uma imensido de tarefas incluindo a anlisedos dados, sistematizao dos temas e texto final. Contudo todo estepercurso proporciona ao pesquisador uma gama considervel de emo- 'es e satisfaes que s ele conhece nas devidas propores". Poucasvezes vi algum se dedicar ao trabalho com tanta. satisfao, co111tantaalegria, ,

    .A dissertao le Rogrio, agora livro, no se restringe a resgatar afigura deFlorentino. Este passa a ser o espelho no qual se reflete a ricae conturbada realidade social da poca. No contexto social se destaca aluta do movimento operrio de final do sculo XIX e inicio do XX.Dentro do movimento operrio h uma linha rubro-negra que enfeita eum grito libertrio que ecoa em todas as pginas do livro. Essa linha eesse grito procedem da pena e da garganta de Florentino, Rogrio sou-be, muit bem, ver, ouvir e transmitir as sensaes."

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    ,-Apesar de ter conseguido tanto, Rogrio, modestamente reconhece

    que "a riqueza de detalhes das reflexes desenvolvidas por Florentinode Carvalho em suas obras escapam ao presente trabalho. Sua concep-o de ser humano, seu pensamento ecolgico; sua critica ao esoterismo,

    - a outros anarquistas, ao marxismo em suas mais variadas verses e aoutras correntes filosficas; seu conhecimento e comentrios dos maisrepresentativos cientistas da poca, suas 'reflexes sobre a questo da. famlia, do amor e da mulher, seu mtodo sociolgico; sua proposta deunio da arte com a cincia; sua proposta de reconciliao entre traba-lho manual e intelectual, entre outras facetas mais do seu pensamento,no foram analisadas". Reconhecer isto no diminui o seu trabalho, aocontrrio, sugere novas pistas para a pesquisa desses temas tanto emFlorentino como em outros autores que ele prprio menciona: Adelinode Pinho, Mauricio de Medeiros, Angelina Soares, Maria Antonia Soa-res, Matilde Soares, pilar Soares, Efrm de Lima, Jos Oiticica, JooPenteado, Edgard Leuenroth, Polydoro Santos, Fernando Nazar, MariaLacerda de Moura", .

    O retrato do "mestre revoltado", como Florentino fora apelidado nofrontispcio da dissertao, pela vida e pela obra mostra um homempolifactico, polgrafo, polivalente e militante "Primitivo RaymundoSoares (cujo pseudnimo Florentino de Carvalho) adotou uma posturadecidida,finne e incisiva no movimento operrio. Tanto o foi que pode-mos encontrar no apenas nos documentos histricos, na literaturahistoriogrfica e depoimentos de antigos militantes anarquistas o teste-munho da envergadura deste tit da Anarquia". Esta a nova alcunhapara, esse homem no primeiro captulo do agora j livro.

    No captulo TI pode-se encontrar a anlise de um trabalhador sobre anatureza da sociedade brasileira. Tendo o cuidado de discorrer sobre osmais variados temas: a excluso social das minorias, o militarismo, aexplorao do trabalhador, a articulao poltica-religiosa, as deficin-cias da educao, a injustia,a funo das artes e da cultura, os privil-gios das classes dminantes, a violncia policial, etc. "No pensamentode Florentino de Carvalho encontramos. sempre a preocupao de arti-cular teoria com os problemas da realidade social envolvente. Seguindouma orientao comum aos anarquistas em geral, no se perdia .em in-terminveis reflexes tericas nem se deixava levar por insolveis dis-cusses filosficas distantes das dificuldades de vida da sociedade naqual vivia. De fato, salta aos olhos do leitor de seus artigos e livros a

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  • preocupao do autor em encontrar o equilbrio entre estudo e a realida-de social, entre conhecimento cientfico e prtica revolucionria, enfim,entre reflexo sistemtica e 'ao libertria".

    A resposta dos trabalhadores ante essa situao vem apresentada nocap, m. E no poderia ser outra que a ao direta, marca crata, porexcelncia, que caracteriza o perodo que poderamos chamar hericodo incio do movimento operrio, articulado em torno dos COB's (Con-gressos Operrios Brasileiros de 1906 e 1913).

    o captulo rv um pequeno tratado de sociologi.a e poltica cujossubttulos so: o Estado, a Lei,o militarismo, a arte e a poltica, anar-quismo versus socialismo, a funo da imprensa (meios de comunica-o), o papel da religio, o nacionalismo, questo sindical, a questoeducacional. Aqui a marca permanente a crtica demolidora, sustenta-da pelo lema proudhoniano "destruam et aedificabo", Demolio queter a sua contrapartida no captulo VI quando apresentar os princpiosde uma sociedade justa e solidria.

    O captulo V uma sntese do anarquismo como concebido porFlorentino. Anarquismo sem adejtivos, processo revolucionrio que apon-ta para uma nova forma de organizao social, a anarquia "estabelecidaem concepes igualitrias, em idias positivas e elevad= na justia,na harmonia e no amor, (esta nova sociedade) impulsionaria a culturahumana a 'propores gigantescas e a vida moral atingiria progressossuperiores as nossas previses '. A sociedade libertria est em sintoniacom as leis da natureza, pois nesta sociedade o trabalho produtivo sus-tenta a riqueza social, alm do que a moral baseia-se na dignidade, najustia, na igualdade e no amor". Sntese conceitual que servir de basee luz para a ao.

    O captulo VI pode ser considerado uma proposta? Por que no?Uma proposta que considera fundamentais a "modificao da estruturaeconmica e poltica da sociedade; abolio de todas as tiranias, explo-raes, guerras e autoridades governamentais. Para atingir estes objeti-vos deve-se agir orientados pela 'luz da justia, pela solidariedade,pelo amor' para a concretizao da sociedade crata, a organizao so-cial deve ser fundamentada na socializao do poder". Princpios; defato, gerais que se explicitaram no captulo anterior e que agora consti-tuem as linhas de ao: na frrea defesa da liberdade, no permanenteincentivo solidariedade, na incansvel ao e propaganda, no rduodesenvolvimento da imprensa operria e, principalmente, no indeclinvel

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  • incentivo educao libertria que "abrangia todos os aspectos da vidade relao e no se reduzia apenas aos conhecimentos tecnolgicos etcnicos. As greves, as organizaes proletrias, as comisses, os jor-nais e revistas operrias redundavam em experincias educativas. Emcada uma dessas atividades exigia-se unio, conjugao de esforos,solidariedade e demais predicados da sociabilidade. Todos estes fatoresso imprescindveis no processo revolucionrio, constituindo elemen-tos eminentemente educatvos. Desta maneira a educao possui con-tomos bastante amplos, estando em relao direta com os elementos delibertao e emancipao social. Por isso mesmo a educao deveria serobjeto de reflexo de todos os trabalhadores, devendo estes criar e di-fundir novos mtodos de instruo e educao".

    O fechamento do trabalho com a questo educacional relembra avelha preocupao do movimento operrio j nele presente desde ostempos da Primeira Internacional de que no se faz uma revoluo per-manente e duradoura se no houver educao das massas. Florentinotinha conscincia disso, no por acaso foi professor, diretor de umaes-cola moderna. em So Paulo. Rogrio tambm, no por acaso, dedica-se educao da presente gerao. Espero e almejo' que continue dedican-do-se educao das futuras.

    Sebastin SnchezCampina Grande, novembro de 1999

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  • lNTRODUAO

    o movimento operrio brasileiro do final do sculo xrx e inciodeste, tendo como referncia poltica o pensamento anarquista e anarco-sindicalista, foi bastante amplo e profundo quanto a suas lutas contra opanorama sociocultural vigente. Tal panorama envolvia desde uma ex-tenuante jornada de trabalho - chegando at 16 horas dirias -, pssi-mas condies de trabalho, passando tambm por outros aspectos pro-blemticos como a falta de segurana no trabalho, salrio de misria,aplicao de multas e de castigos corporais, enfim, superexplorao damo-de-obra, sendo ainda piores as condies das mulheres e das crian-as.

    Este movimento se construiu numa Crescente luta contra tais difi-culdades, conflitos de interesses e a conscincia de sua especificidadeno interior da sociedade brasileira. Atravs de seu movimento os traba-lhadores procuravam a transformao de uma sociedade injusta e desi-gual para uma livre, justa e igualitria. O caminho para se alcanar osobjetivos desejados era a organizao coletiva na luta para extirpar odonnio, a explorao e todo preconceito ensinado - e reproduzido -nas vrias instncias da sociedade como .escolas, fbricas, sindicatos,igrejas, nos costumes, atravs do culto ptria, etc.

    Para entender o porqu da adoo dos mtodos e estratgias utiliza-das por estes trabalhadores preciso compreender antes seus pressupos-tos poltico-filosficos. Assim temos que o modo anrquico de agir sed atravs da ao direta. Este tipo de ao impe uma postura ativa dosagentes sociais de modo a eliminar dispositivos de representao. Istosignifica dizer que so estes mesmos agentes os responsveis diretossobre o rumo dos assuntos de seus interesses. Encontramos aqui associa-dos a possibilidade de planejamento e execuo. Em outras palavras, os. agentes sociais no-elegem algum para pensar e agir por eles ou e111nome deles. Muito pelo contrrio, eles mesmos decidem o qu, como equando fazer, podendo at eleger algum - ou um grupo - com umamisso especfica a realizar e nunca com plenos poderes para decidirfazer, se quiser, o qu e quando quiser. Este tipo de ao nega a via deao indireta, como a parlamentar, representativa e governamental, porentender ser ela incentivo inao. Assim, vrias estratgias foram uti-lizad,s pelos anarquistas para atingir suas finalidades: a educao, o

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  • teatro, as comunidades agrria, a imprensa, a poesia, alem de outros,Atravs destes meios se procurou no s propagar os ideais cratas, mastambm concretizar, na experincia do cotidiano, o desejo da utopia.

    Na luta contra a explorao do trabalho pelo capital destacaram-seno movimento operrio vrios trabalhadores, tanto pelas idias e dscus-ses provocadas quanto pela disposio e atitudes tomadas no processodas lutas. A imprensa operria, atravs dos jornais, revistas, panfletos,documentos de encontros e resolues dos diversos congressos, tantono plano local como regional e nacional, registra muito bem.estes fatos.Atravs dela podemos encontrar diversas discusses e artigos por meiodos quais possvel conhecer com quem os anarquistas dialogavam ecom quais correntes do pensamento social se confrontavam e se identi-ficavam. Sem esquecer o fato destes documentos serem preciososindicativos para o pesquisador social tanto do nvel das discusses en-to existentes como dos temas abordados, as criticas e propostas levan-tadas, entre outros elementos.

    O movimento operrio, como foi constitudo no incio deste sculo,marcou poca tanto por denunciar uma organizao social fundada namisria e penria de muitos para o benefcio de poucos, como por lutarcontra uma realidade opressora. Discutindo com diversos representan-tes do pensamento social este movimento forjou um pensamento socialprprio. Investigar as idias bsicas deste movimento significa tambmconhecer mais uma poca pouco conhecida da sociedade brasileira ape-sar .dos estudos realizados por pesquisadores de inquestionvel compe-tncia.

    No embate travado pela militncia surgiram vrios nomes no movi-mento operrio, destacados nas atividades e energias empregadas tantona luta cotidiana como na construo de um pensamento social peculiarao movimento operrio. Adelino de Pinho, Mauricio de Medeiros, An-gelina Soares, Maria Antonia Soares, Matilde Soares, Pilar Soares, Efrmde Lima, Jos Oiticica, Joo Penteado, Edgard Leuenroth, PolydoroSan-tos, Fernando Nazar, Florentino de Carvalho, Maria Lacerda de Mouraentre outros so alguns dos personagens que participaram ativamentedeste movimento, marcando-o de forma singular e contribuindo com odebate das questes de sua poca.

    H um imenso leque de possibilidades e formas para uma aborda-gem deste movimento. Todas, com certeza, contribuem para um conhe-cimento mais amplo e mais profundo da histria e das idias ento existen-

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  • teso Desta forma, nos detemos na pessoa de Primitivo Raymundo Soa-res, ou Florentino de Carvalho como era conhecido. Isto porque ele foium colaborador enrgico no movimento dos trabalhadores, contribuin-do, de seu lado, na elaborao de um pensamento prprio e especficodos trabalhadores. Mas uma pergunta torna-se oportuna: como aconte-ceu a idia de empreender esta pesquisa?

    Em 1992 oCentro Acadmico de Cincias Sociais da UniversidadeFederal da Paraba promoveu uma semana do curso Cincias Sociais e,dentro da programao, convidamos o professor Sebstian SnchezMartn para ministrar um curso sobre pedagogia Iibertria por ter eleelaborado sua tese de doutorado sobre as iniciativas dos anarquistas bra-sileiros no mbito da educao. Desta maneira tomamos conhecimento,entre outros nomes, de Florentino de Carvalho.

    Terminada a graduao ingressamos no mestrado e - depois de con-cludos os crditos - ao chegar a poca de definir um projeto de pesqui-sa, ocorreu-nos a possibilidade de fazer a dissertao sobre o professoranarquista. Contatamos o professor Snchez que se animou com a idiadesta pesquisa. Iniciamos, assim, a busca de matrias, referncias bi-bliogrficas e depoimentos de militantes sobre Florentino de Carvalho.Antes disso, porm, reunimos o material bibliogrfico disponvel, D~pois fizemos duas viagens ao Sudeste brasileiro para pesquisar os arqui-vos e bibliotecas do Rio de Janeiro, So Paulo e Campinas; contatamospessoas na tentativa de encontrar familiares; contatamos o Liceu do Sa-grado Corao de Jesus, onde Florentino de Carvalho fez seus estudosprimrios, na esperana de encontrar algum dado sobre sua vida; enfim,uma peregrinao a vrios locais e encontros com as mais diferentespessoas, juntando o mximo possvel de material.

    Assim, visitamos, na cidade do Rio de Janeiro, a Biblioteca Nacio-nal, o Arquivo Nacional e o setor de Memria do Movimento Operrioexistente no Instituto de Filosofia e Cincias Humanas da UFRJ. Almdisso, entramos em contato com antigos militantes anarquistas C01110 .Ideal Peres e Edgar Rodrigues. Em So Paulo, visitamos a BibliotecaMunicipal Mrio de Andrade e o Arquivo do Estado de So Paulo; pro-curamos por possveis registros da passagem de Florentino de Carvalhono Liceu do Sagrado Corao de Jesus de Santos e de So Paulo, almde termos contatado outro antigo militante anarquista, Jaime Cuberos ..Em Campinas visitamos o Arquivo Edgard Leuenroth da UNlCM1P,

    No Rio de Janeiro no encontramos nenhum dado sobre Florentinode Carvalho. A Biblioteca Nacional tinha colocado pouco material

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    disposio dos pesquisadores, havendo muito material no catalogadosem que os pesquisadores tivessem acesso. No Arquivo Nacional nadafoi encontrado. No IFCH da UFRJ havia apenas um artigo de Florentinopublicado emA Voz do Trabalhador, presente na bibliografia deste tra-balho. Com os militantes anarquistas no obtivemos nenhum material,apenas a indicao de IdealPeres de ser So Paulo o lugar mais prov-vel para encontrar dados. Em So Paulo encontramos muitos artigos deFlorentino de Carvalho na Biblioteca Municipal tendo sido trabalhosa atarefa de procur-los nos microfilmes e depois copi-los. No entanto foibastante compensador. No Arquivo Estadual de So Paulo fomos exata-mente no dia de sua abertura a pesquisadores e familiares de desapareci-dos. Nele encontramos, na seo Arquivo do DEOPS - DepartamentoEstadual de Ordem Poltica e Social -, um pronturio individual deFlorentino de Carvalho de n0144. Este documento foi de grande valiapara .0 conhecimento de parte da sua trajetria de vida. Como este arqui-vo estava sendo aberto consulta naqueles dias, apresentaram-se algu-mas dificuldades extras: Era vedado o acesso aos pronturios sendo aprocura dos nomes feita por funcionrios do arquivo, fazendo-nos espe-rar longos perodos de tempo; a cpia do documento s era possvelcom microfilmagem, sem que eles dispusessem de venda de rolos dernicrofilmes, forando-nos a perder tempo em busca de locais de venda.

    Com Jaime Cuberos conseguimos, alm de seu depoimento, duasfotocpias dos dois primeiros livros de Florentino de Carvalho alm deoutros materiais. Fomos por ele atendidos com uma presteza impressio-nante. Procurou auxiliar-nos o mximo possvel. No Arquivo EdgardLeuenroth, a organizao e a conservao dos materiais impressionan-te. L pudemos encontrar diversos artigos logo na primeira viagem aCampinas. Contudo s nos foi possvel t-los na segunda viagem, e ain-

    . da assim por termos levado um gravador porttil, pois no havia mqui-na prpria para fotocopiar microfilmes. De fato aqui est registrada ape-nas parte d saga de um pesquisador atravs das bibliotecas e arquivos,em cidades desconhecidas e com tempo limitado para dar conta de umagrande seara de materiais. Foi um rduo trabalho, recompensado pelosachados e descobertas.

    Desta maneira, acumulamos cerca de 90 artigos de jornais e revis-tas, alm de seus dois primeiros livros Da Escravido Liberdade: aderrocada burguesa e o advento da igualdade social e A Guerra Civilde 1932 em So Paulo: soluo imediata dos grandes problemas sociais,

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  • publicados e.11927 e 1932 respectivamente. Estes dois livros e os ne-crolgios de A Plebe conseguimos graas colaborao de JaimeCuberos. A partir de ento inicimos uma anlise. do material, classifi-cando e sistematizando-o, .

    Participante ativo na imprensa operria, Florentino de Carvalho dis-cutiu em seus artigos e livros a problemtica social. Questes como aeducao, a situao da criana trabalhadora, o antimilitarismo, corren-tes do pensamento social e filosfico, o socialismo, as leis, o Estado, areligio, a imprensa e seu papel social, o sindicalismo, a sociedadenacio-nal e a mundial, entre muitas outras, foram por ele abordadas com com-petncia e profundidade admirvel. Estas reflexes, registradas em seuslivros e nos jornais e revistas operrias da poca, possibilitam uma an-lise da contribuio e da envergadura do pensamento e da ao desteterico e militante anarquista ao movimento dos trabalhadores. Pesquisaro pensamento e prtica de Florentino de Carvalho importante na medi-da em que o conhecimento destas idias nos permite no s saber daspotencialidades do movimento operrio de sua poca mas tambm teruma noo mais clara do alcance, possibilidades, dificuldades e limita-es deste movimento na perspectiva de um trabalhador e pensador queviveu e refletiu sobre os dilemas de sua poca. Dentro do movimentooperrio, os trabalhadores elaboraram um saber e um pensamento toricos quanto desconhecidos hoje em dia, tomando evidente a relevnciade pesquisas neste campo.

    Para orientar o processo da pesquisa levantamos algumas questes:quais os interlocutores de Florentino de Carvalho quando da elaboraodos artigos e livros? Quem so seus companheiros e adversrios demilitncia? Como se desenvolveu o embate entre Florentino de Carva-lho e seus adversrios? Havia algum tipo de discordncia de seus com-panheiros? Caso positivo, quais e em que nvel? Quais suas criticas scorrentes do pensamento social? Como Florentino de Carvalho se ca-racterizava dentro do movimento operrio? Como define o Brasil de suapoca? Quais temas abordados em seus artigos e livros? Como tratoutais temas? Havia algum tipo de proposta de nova sociedade em seupensamento? Caso positivo.rque tipo de sociedade nova props? Suasidias' tiveram repercusso na sociedade de seu tempo? Caso positivo,de que forma e em que nvel? Que pensadores sociais eram por ele co-nhecidos? De quais se aproximava e quais combatia? Florentino de.Car-valho se refere a uma moral anarquista? Caso positivo, de que modo?

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    Seu pensamento pode ser atualizado? Caso positivo, at que ponto? Es-tas foram as questes que nos propomos solucionar.

    e referencial terico foi construido a partir de algumas das obrasdos clssicos do anarquismo, a saber: o francs Pierre-Joseph Proudhon(1809-1865), o russo Mikhail Alexandrovitch Bakunin (1814-1876),outro russo Piort Kropotkin (1842-1921) e o italiano Errico Malatesta(1853-1932). Esta pesquisa foi realizada tomando como objeto de anli-se os artigos de jornais de Florentno de Carvalho, escritos na imprensaoperria, compreendendo um perodo cronolgico que vai de 1913 at1917, e, de maneira irregular, at 1933. .

    Para o livro, a grafia das citaes, quer dos artigos quer de textosdos livros, foi atualizada, visando manter s um nvel de linguagem.Foram utilizados, parcialmente, os dois primeiros livros. Coletado omaterial, empreendemos sua compilao, organizao e anlise, consi-derando a data de publicao, o tema, interlocutor ou interlocutores, orgo de expresso e, eventualmente, alguns outros indicadores. A an-lise considerou tambm, como no podia deixar de ser, o contexto s-cio-histrico no qual estava inserido Florentino de Carvalho - o Brasilda Primeira Repblica - ligado a uma corrente do'pensamento social-oanarquismo - como tambm a um movimento social - o movimentooperrio - sendo de fundamental importncia no se perder esta pers-pectiva.

    Este livro divide-se em seis captulos. Resgatamos o pensamento, aslutas e a trajetria de vida de um dos tericos e militantes anarquistas demaior envergadura da Amrica Latina.

    No primeiro captulo nos detemos na vida e obra de Florentino deCarvalho expondo 'Sua trajetria dentro da sociedade e do movimentodos trabalhadores, alm de um panorama breve de seu pensamentosciopoltico.

    No segundo captulo percebemos o Brasil do incio do sculo XXatravs do olhar de Florentino de Carvalho. Aqui podemos conhecer aperspectiva pela qual um trabalhador analisou uma fase da sociedadebrasileira, saltando aos olhos a natureza classista da repblica recm-inaugurada, constituindo uma repblica onde os antagonismos sociaiseram gritantes. Florentirto de Carvalho analisou tambm os aspectosscioeconmicos de sua sociedade e, por fim, a represso policial aomovimento dos trabalhadores.

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  • No terceiro captulo mostramos suas reflexes sobre o movimentodos trabalhadores e as suas lutas na sociedade brasileira do ncio dosculo. Os tipos de ao direta, os objetivos do movimento, a organiza-o dos trabalhadores e a relao entre movimento operrio e movimen-to anarquista.

    No quarto captulo ressaltado o pensamento critico de Florentinode Carvalho. Aqui vemos mais detidamente suas reflexes sebreos maisvariados segmentos sociais, instituies, valores e filosofias no s dasociedade brasileira, mas tambm da civilizao ocidental. Desta ma-neira o Estado, as leis, a poltica partidria, os polticos profissionais, asocial-democracia, o socialismo, a imprensa burguesa, a religio, o na-cionalismo, trabalhadores e companheiros, o sindicalismo, o ensino, osprofessores e a escola oficial so todos objetos de sua reflexo critica.

    No quinto captulo analisamos sua viso do anarquismo e sua posi-o particular dentro das correntes e tendncias do movimento anar-quista. Assim, o caracterizamos anarquista sem adjetivos como ele mes-mo se definia. Alm disto vemos nesta parte sua percepo particulardos ideais anarquistas, sua definio do anarquismo como um processorevolucionrio e, por fim, a Anarquia como nova forma de organizaosocial por ele preconizada e seu entendimento deste estado de sociedade.

    No sexto captulo so expostas suas propostas prticas de constru-o de uma sociedade anrquica. Assim, vemos as condies por eleapontadas para a realizao do sonho crata: a liberdade como elementoindispensvel para a Anarquia; a solidariedade como prtica fundamen-tal para a Anarquia; os atos, protestos e manifestaes pblicas por par-te dos trabalhadores como processo pedaggico de reconstruo e deaprendizado' de uma sociabilidade igualitria e fraterna; a formao degrupos revolucionrios; a autodefesa dos explorados e oprimidos; a edu-cao; a imprensa operria e a organizao dos trabalhadores e dos ex-cludos da sociedade hierarquizada.

    Por fim, na ltima parte fazemos algumas reflexes sobre o pensa-mento e a contribuio deixada por Florentino de Carvalho no s aomovimento operrio, mas, principalmente, ao pensamento social brasi-leiro. No se pretende estabelecer concluses taxativas e fechadas, oque no impede o estabelecimento de concluses parciais.

    A bibliografia divide-se em fontes primrias e secundrias. As pri-mrias dizem respeito exclusivamente aos artigos e livros escritos porFlorentino de Carvalho; as secundrias consistem na literatura utilizadaao longo da dissertao e no escritas por ele.

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  • 'Captulo 1

    VIDA E OBRA DE FLORENTINO DE CARVALHO

    A Vida,

    Florentino de Carvalho, como era conhecido no Brasil e fora dele,era o pseudnimo de Primitivo Raymundo Soares. Nascido em 3 de maiode 1883 em Campomanes, provncia de Oviedo, Espanha. Veio para o 'Brasil em 1889 com toda a' sua famlia, onde fixou residncia para oresto de sua vida. Seu pai chamava-se Jos Soares e sua me FransciscaAlves, conforme seu pronturio individual do DEOPS, no Arquivo Es-tadual de So Paulo. Estabelecida a famlia em So Paulo, seu pai ini-ciou atividade de comrcio. Na Espanha exercera o magistrio. De seulado, Primitivo iniciou e concluiu os estudos primrios no Liceu do Sa-,grado Corao de Jesus. Concluda esta fase, procurou continuar os es-,tudos tentando matricular-se numa escola normal. Como os recursos da 'famlia eram 'poucos, no conseguiu concretizar seu intento. Seu pai,catlico fervoroso, desejou, ento ,que seu filho ingressasse no semin-rio de Lorena, no intuito de torn-lo sacerdote, idia esta rejeitada pelorapaz.

    Por no conseguir continuar os estudos e por no lhe agradar a idiado pai de torn-lo sacerdote, Primitivo ingressa na Fora Pblica doEstado de So Paulo em 1898. Cedo foi promovido a cabo, recebendoelogios de seus superiores hierrquicos. Pretendendo dedicar-se vete-rinria, conseguiu transferncia para a enfermaria dos animais quandoainda estava no Corpo de Cavalaria, onde passou 10meses at ser trans-ferido para 10Batalho. '

    N ano de 1901, o entosargento PrimitivoRaymundo Soares, aoentrar numa livraria deparou-se COmum exemplar do livro A Conquistado Po do conhecido anarquista russo Piotr Kropotkin, Esta leitura cau-sou-lhe forte impacto, tanto que pediu baixa da Fora Pblica. Nascia,deste modo, o militante e terico anarquista conhecido no Brasil e Am-rica Latina. A propsito deste acontecimento interessante notar quevrias pessoas tomaram-se anarquistas desta maneira, entre elas JosOiticica, Fbio Luz e Jaime Cuberos.

    Ao dar baixa da milicia, Primitivo Raymundo Soares foi, juntamen-te com seu pai, morar em Santos, para trabalhar nas docas, dando incio

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  • sua militncia junto aos trabalhadores do porto. Sua frgil compleiofsica no lhe permitia, porm, suportar o enorme esforo fsico exigido.Passa, ento, a exercer o ofcio de tipgrafo. A partir da inicia seusestudos, como autodidata, em torno dos problemas sociais, amadure-cendo reflexes sobre causas e solues possveis s questes.

    Desde o inicio de sua militncia, Primitivo Raymundo Soares ado-tou uma postura decidida, firme e incisiva no movimento operrio. Tan-to assim que podemos encontrar no apenas nos documentoshistri-cos, na literatura historiogrfica e depoimentos de antigos militantesanarquistas o testemunho da envergadura deste tit da Anarquia; tam-bm o j citado Arquivo do DEOPS serve de testemunho quanto im-portncia das suas contribuies para o movimento operrio brasileirona medida em que registra os cuidados e a vigilncia cerrada da polciasopre sua pessoa. Este pronturio, apesar de ter perdido grande parte deseus documentos, conserva registros policiais com detalhes de acompa-nhamento dos passos dados por ele tanto na capital do estado de SoPaulo como em seu interior, .em outros estados e ainda fora do Brasil,' A'polcia o mantinha sob constante vigilncia, coletando informaes detodos os seus movimentos. Desta forma, sua participao em atividadessindicais, palestras, conferncias, comcios, viagens, movimentos deprotesto, greves e at mesmo seus artigos e livros eram conhecidos pe-los chefes de polcia que, atravs dos chamados "secretas," (policiaisespies), mantinham-se informados de todos os seus movimentos.

    O que sobrou de seu pronturio individual registra acontecimentosde vida entre os anos de 1898 at 1946. Registra, por exemplo, que noano de 1907 ele teve duas passagens pelas prises da polcia: uma em 10de outubro por publicao de manifesto anarquista, e outra em 10 dedezembro por porte de arma. Em 1908, tambm, h duas passagens pe-las prises de So Paulo: a primeira em 3 de setembro e a segunda em 25do mesmo ms, ambas pelo mesmo motivo: publicao de manifesto'anarquista. Em 1910, novamente o Arquivo do DEOPS registra duaspassagens do militante pelas prises de So Paulo: A primeira priso foia 11 de novembro por publicao de manifesto anarquista; a segundapriso foi a 20 de dezembro para ser deportado para a Argentina por',causa de seu envolvimento nas greves de Santos e cidades vizinhas. Omesmo relatrio policial, afirma, em outro trecho, ter, sido ele expulsoda Argentina por ser "anarquista perigoso". Isto aconteceu a 31 de de-zembro de 1910, o que no d nem um perodo de um ms. Vemos assim

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  • . ser este perodo muito pequeno para que Primitivo Raymundo Soaresempreendesse atividades nos sindicatos, em comcios, protestos, greves

    . e, alm disto tudo, ter fundado uma escola nos moldes do ensinoracionalsta. O que muito provavelmente aconteceu, foi uma fuga inici-al para a Argentina, ainda em 1910, temendo ser deportado para a Euro-pa, pois esta era a inteno da polcia paulista.

    Provavelmente neste perodo, sua estada pode ter sido bastante lon-ga naquele pas, dando-lhe tempo suficiente para empreender vrias aesjunto ao movimento dos trabalhadores argentinos. A partir destas aes,a polcia argentina comeou a persegui-Ia ao ponto de tentar deport-lodo pas. Temendo outra deportao, empreende fuga de volta ao Brasil.Porm, ao chegar aqui preso pela polcia paulista sendo em seguidadeportado para o pas de origem, mesmo que isto no acontecesse sem-pre, e com ele nunca tivesse acontecido. Como tinha chegado ao Brasilprocedente da Argentina, foi preso e deportado de volta. Ao desembar-car, e como tambm estava sendo procurado pela polcia de l, foi ime-diatamente preso e embarcado num navio para ser deportado paraa Eu-ropa.

    Apartir deste momento, os documentos existentes registram os acon-tecimentos que se sucedem. O navio procedente da Argentina, com des-tino Europa fez escala nas docas de Santos. Os trabalhadores destacidade ao tomarem conhecimento da presena de Primitivo a bordo, emum de seus pores, como prisioneiro a ser deportado para a Europa, nomedem esforos para libert-Ia; Desta forma, ao conseguirem provar terele tomado parte da Fora Pblica paulista nos idos da virada do sculo,conseguem resgat-Ia da deportao. A partir deste acontecimento ado-ta o pseudnimo de Florentino de Carvalho, com o qual ficar sendoconhecido em todo o Brasil e fora dele.

    Daqui por diante o trataremos pelo pseudnimo.Com base nestes dados, percebemos como era o cotidiano dos traba-

    lhadores. No caso de Florentino de Carvalho, em particular, os "secre-tas" da polcia, mantinham-no sob constante observao. H registrosde violao e reproduo de suas cartas, de contatos entre as delegaciasde polcia dentro e fora do Brasil com o objetivo de manterem um maore mais eficiente controle dos passos dados pelos trabalhadores que sedestacavam na luta social.

    De volta a Santos, Florentino de Carvalho integra novamente a lutalibertria de emancipao dos oprimidos. Rodrigues (181)registra que

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    Florentino de Carvalho, juntamente com Joo Perdigo Gutierrez, MiguelGarrido, Carlos Zabalo, este peruano, e Antonio Vidal, uruguaio, deramuma orientao nitidamente anarquista ao movimento dos trabalhado-res. As reivindicaes dos trabalhadores tomaram grandes propores,com as praticas de ao direta, como as greves e protestos', se espalhan-do por vrias categorias de trabalhadores, tomando-se mais e mais fre-qentes.

    Em julho de 1912 eclode uma onda de greves em Santos que seespalhou pelas cidades vizinhas. Nestas greves a ao policial foi a decostume no trato com os trabalhadores: invaso de domicilios, mesmo .noite, comespancamento de mulheres e crianas; arrasto do pai do seio da .farniliapara ser torturado, espancado, deportado ou assassinado. Na oca-sio Florentino de Carvalho foi preso e deportado juntamente com outrostrabalhadores dos quais Rodrigues (181) destaca Manuel Gonalves, Pri-mitivo Lopes, Miguel Garrido e Jos Vieiras. Esta deportao, comotodas as outras, foi por ele classificada como tendo sido, literalmente,um seqestro, pois tudo aconteceu, desde a deteno, aprisionamento eexpulso, sem que tenham passado por nenhuma instncia jurdica.

    Em fins do ano de 1912 Florentino retoma clandestinamente ao Bra-sil. Retoma a luta libertria, participando com brilho de vrias confern-cias, congressos, debates, excurses de propaganda e animando diver-sas polmicas com adversrios de idias e com companheiros anarquis-tas. Hbil argumentador, impressiona companheiros e adversrios aoexpor seu pensamento. Era difcil refut-io. Tanto assim que eie engros-sou as fileiras dos lutadores anarquistas trazendo alunos, conhecidos,seus sete irmos e irms dos dois casamentos de seu pai, a madrasta econquistando a simpatia do pai para a' causa da anarquia. A casa dafamlia Soares tomou-se, desta forma, ponto de encontro de libertriosonde ensaiava-se teatro, dava-se aulas de sociologia, de anarquismo,funcionando tambm como escola para crianas alm de ter sido umabrigo seguro-para companheiros fugidos das perseguies policiais.Rodrigues (184)registra ter sido a residncia dos Soares, em Santos, SoPaulo. ou no Rio de Janeiro, uma forte clula libertria, a maior famliatornada anarquista. Dona Paula Soares, sua madrasta, era bastante hos-pitaleira com anarquistas fugitivos, desempregados e companheiros semmoradias.

    A Federao Operaria Brasileira promoveu, a 18 de outubro de 1915,um meeting de protesto contra a guerra. Florentino de Carvalho desta-

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  • cou-se como um dos oradores mais empolgantes e envolventes. Esteevento aconteceu no Largo de So Francisco da ento capital federal-Rio de Janeiro. Os oradores revezavam-se nas escadarias da outroraEscola Politcnica, onde atualmente funciona o Instituto de Filosofia eCincias Sociais - IFCS - da UFRJ.

    No ano de 1916 prosseguiu em atividades de propaganda, orienta-o doutrinria e outras. Polemizou com o seu companheiro de ideal,Angelo Bandoni, sobre a ao anrquica junto aos sindicatos. Comba-teu arduamente a penetrao das idias dos socialistas democratas junto populao, em geral, e junto aos trabalhadores, em particular. O modopelo qual empreendia tal atividade era atravs de palestras, debates, con-ferncias, a discusso saudvel, e nunca a fora fsica para coibir a livreexpresso do pensamento. Para ele todos deveriam ter a possibilidade ea liberdade de expor seus pensamentos e idias.

    Contudo, a forma mais utilizada pelos seus adversrios para combat-10 era a calnia e a difamao. O objetivo das calnias era subtrair, emesmo anular, Suaascendncia junto populao. De seu lado, Florentinode Carvalho levava os autores dos artigos a situaes vexatrias ante osleitores, expondo a falsidade das acusaes e ao mesmo tempoos desa-fiava publicamente aprovarem suas acusaes e insinuaes ou ento ase retratarem publicamente. .

    Florentino de Carvalho teve participao ativa em vrias comissesformadas pelos trabalhadores: Comisso pr-Ensino Racionalista,objetivando a disseminao de escolas de orientao anarquista; Co-misso Contra a Explorao deMenores, denunciando as pssimas condi-es de trabalho das crianas, os maus tratos, as mutilaes, os espanca-mentos, os baixssimos salrios e demais infmias; Comisso Contra aLei de Expulso de Estrangeiros, denunciando no Brasil, e fora dele, seraqui a questo social caso de polcia, alm das rotinas de represso,espionagem, espancamentos; deportaes, assassinatos e tantas outrasvilanias sofridas e impostas aos trabalhadores pelo patronato e go-vernantes; Comisso de Agitao Popular, visando mobilizar a.popula-o para a ao direta; Comisso pr-Presos Polticos, denunciando osmaus tratos e irregularidades dos aprisionamentos detrabalhadores, comotambm sepropunha a auxiliar as famlias dos trabalhadores aprisiona- .dos, deportados ou desaparecidos; Comisso de Defesa Proletria, entreoutras.

    Esta ltima foi constituda durante as greves acontecidas em SoPaulo no ano de 1917. Esta comisso coordenava a ao dos sindicatos

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    e associaes dos trabalhadores no encaminhamento de' medidas, rei-vindicaes e rumos a serem tomados pela greve. Era constituda porEdgard Leuenroth, Rodolfo Felippe, Francisco Cianci, Antnio CandeiasDuarte, Gigi Damiani e Teodoro Monicelli.

    Alm destas comisses e de outras, Florentino de Carvalho teve par-ticipao bastante significativa em vrios grupos anarquistas com finsde organizao e orientao popular: Centro Libertrio, Juventude Anar-

    . quista e Aliana Anarquista, existentes em diferentes momentos histri-'cos.

    O ano de 1917 foi de grande efervescncia revolucionria no Brasile em vrias partes do mundo. Naquele perodo, o Brasil foi marcado poruma grande agitao revolucionria, tendo as associaes dos trabalha-dores organizado vrias greves por causa das pssimas condies devida e de.trabalho, da falta de liberdade de associao, das constantesviolncias policiais e demais caractersticas de uma organizao socialdesigual.

    Todo o Brasil era sacudido pelas aes revolucionrias dos traba-lhadores num processo que apontava uma greve geral. Vale salientarterem sido os acontecimentos de 1917 no Brasil livre de influncias daRevoluo Russa. Naquele ano as noticias chegadas ao Brasil sobre osacontecimentos revolucionrios da Rssia eram imprecisas e demora-das por causa da distncia e das dificuldades de comunicao da poca.Rodrigues (180) registra ter sido o movimento operrio brasileiro que,de fato, incentivou os revolucionrios russos enviando-lhes materiais depropaganda, auxlio financeiro e solidarizando-se com os ideaislibertrios do incio desta revoluo. Esta era uma prtica comum aomovimento internacional dos trabalhadores. Tambm em 1910 os tra-balhadores brasileiros enviaram auxilio financeiro e material aos revolu-cionrios mexicanos. A influncia russa no Brasil veio anos depois,notadamente a partir da fundao do Partido Comunista Brasileiro, em1922.

    So Paulo foi o epicentro das ondas de greves que fizeram tremer asestruturas da sociedade brasileira. Governantes e capitalistas se assom-braram ante os protestos dos trabalhadores. Estes, atravs da Comissode Defesa Proletria, num encontro com o governo estadual e com capi-talistas, intermediado por um grupo de jornalistas, enviaram suas rei-vindicaes, ante as quais tanto o governo, como os capitalistas se com-prometeram a adot-Ias. Tais reivindicaes tratavam tanto da liberta-

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  • o dos companheiros presos, da liberdade de reunio e associao C011"tra as represlias dos patres aos trabalhadores grevistas, contra otraba-lho de menores de 14 anos, contra o trabalho noturno das mulheres e dosmenores de 18 anos, como tambm de reivindicaes de aumento salari-al com prazo de 15 dias para a efetivao do pagamento, garantia detrabalho, jornada de oito horas e pagamento das horas extras. Consta-vam tambm da lista de reivindicaes exigncias especficas aos capi-talistas e ao governo. Aos primeiros, os trabalhadores dirigiam recla-mos para deter o aumento do custo de vida, enquanto que ao governoendereavam exigncias quanto ao cumprimento das liberdades pesso-ais e coletivas, como tambm pediam garantia de no violao do acor-do estabelecido no que dizia respeito, especificamente, s relaes tra-balhistas.

    Ao invs do cumprimento do acordo feito com os trabalhadores,governo e capitalistas mostraram suas faces traioeiras, agindo com arepresso policial, a qual seguia-se, como de costume, espancamentos,violaes de domiclios, saques s associaes proletrias, torturas, de-portaes, aprisionamentos, expulses de trabalhadores para regies'longnquas do interior do pais como, tambm para outros pases, e oassassinato. Nesta ocasio Florentino de Carvalho juntamente com An-tnio Nalipinski e Francisco Arouca foram presos e, sob a acusao deserem os "cabeas" da greve, foram postos no navio chamado Curvello,com vrios operrios, para 'serem deportados, ' "

    Altino Arantes, ento governador d estado de So Paulo, aprovei-tou-se da lei de exceo decretada por causa da declarao de guerra doBrasil Alemanha, para se vingar dos anarquistas. Em vrios artigos dojornal anarquista A Plebe (ver bibliografia) Florentino de Carvalho nar-ra sua odissia, junto com companheiros, pelas prises de So Paulo ede Santos at deportao. A polcia para impedir que os advogadosdos trabalhadores entrassem com habeas corpus, usava como ttica aperegrinao, com os trabalhadores, pelos postos policiais de So Paulosempre noite numa ambulncia para despistar. Quando foram presostiveram todos os seus pertences recolhidos pelos policiais, os quais nun-ca foram devolvidos.

    A priso de Florentino de Carvalho deu-se quando este andava pelasruas de So Paulo com o companheiro Evaristo Ferreira de Souza. Fo-ram abordados por agentes secretos da polcia que os levaram presos,iniciando, desta maneira, a sua peregrinao de priso em priso at deportao.

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    Na noite em que foram presos, foram transportados em ambulnciapara o posto policial de Vila Mariana, onde encontraram os companhei-ros Jose Fernandes, Jos Lopes Candeias, Antnio Nalepinski e um ope-rrio alemo. Neste posto foram todos fichados pela polcia. Do postopolicial, todos foram transportados, noite e tambm em ambulncia,para o posto policial de Vila Martins na cidade de Santos. L, Florentinode Carvalho foi trancado numa cela com Antnio Nalepinski, ficandoincomunicveis at serem embarcados. Receberam rpidas visitas ape-nas do' advogado Bias Bueno durante oito dias. Depois disso Florentinode Carvalho, Jos Fernandes, Jos Lopes e Zeferino Oliva foram trans-

    . portados, em automveis, para o cais onde encontraram os companhei-ros Virgilio Fidalgo, Jos Sarmiento e Francisco Ghicco, presos ao ten-tarem libert-los atravs de habeas corpus. Todos foram colocados nonavio Curvello, com destino que lhes era ignoradoe sem terem estabe-lecido contatos nem mesmo com seus familiares

    O "tratamento" recebido pelos prisioneiros foi de espancamentos,objetos pessoais roubados, mantidos seminus nas celas e submetidos auma pssima dieta alimentar. Algumas celas eram midas, glidas e semnenhuma ventilao; outras, com privadas em seu interior exalando odorptrido e com grades dispostas de maneira a permitir a entrada das in-tempries. A dieta, por outro lado, algumas vezes consistia em um pou-co de feijo mal cozido com carne podre e, no jantar e no caf da manh,uma caneca de "caf" com um pedao de po. Nestas prises Florentinode Carvalho adquiriu uma gastrite que lhe causava fortes dores. As pri-ses sofridas por ele no Brasil e na Argentina, os espancamentos e de-mais violncias policiais resultaram no mal que lhe atormentou a vidapor longos anos, terminando por ser a causa de sua morte.

    Os trabalhadores chegaram a formar uma comisso, em 1921, como objetivo de arrecadar recursos para auxiliar seu tratamento. EmA Piebe, n" 112, de 09/04/1921, saiu nota da redao, de Rodolfo Felippe,sobre seu pssimo estado de sade com votos de breve restabelecimento.Esta mesma nota declara vil' de tempos sua enfermidade. Em A Plebe, n'114, de 23/04/1921, tem incio a campanha de auxlio financeiro, desem-bocando na criao do "Comit pr-sade de Florentino de Carvalho",que deu maior agilidade ao movimento; promovendo festivais de solida-riedade e prestando contas populao atravs das colunas do jornalEsta campanha estendeu-se por sete meses, numa demonstrao inequivoca da solidariedade dos trabalhadores.

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  • Retomemos, contudo, os acontecimentos da deportao de 1917. Onavio Curvello saiu de Santos em 30 de outubro de 1917 levando comoprisioneiros em seus pores Florentino de Carvalho, Francisco Arouca,Antnio Nalepinski, Jos Femandes, Jos Lopes, Zeferino Oliva, VirglioFidalgo, Jos Sarmiento eFrancisco Ghicco. O Curvello passou por vriascidades do Brasil e do mundo. Em sua rota de deportao o referidonavio ancorou em Recife, capital do estado de Pemambuco no Nordestebrasileiro. Nesta cidade Florentino de Carvalho, Antnio Nalepinski eFrancisco Arouca fogem do navio com a ajuda da tripulao. Pormesta tentativa frustrada pois so recapturados pela polcia recifense,sendo levados delegacia onde so violentamente espancados. Florentinode Carvalho registra ter encontrado nas prises de Recife Antnio Silvino,famoso cangaceiro, cujas regalias e privilgios dentro da priso incluao comando dos funcionrios da priso.

    Ainda nas prises de Recife, os trs anarquistas receberam de traba-lhadores daquela cidade um exemplar do jornal A Plebe, alm de umauxlio financeiro. No dia seguinte foram embarcados no Avar comdestino a Nova Iorque passando antes pelas ilhas Barbados. Ao chega-rem quela cidade, encontraram um companheiro de idias de nomeCcero que se encontrava detido na imigrao desde o incio da guerrapor causa de suas idias pacifistas, intemacionalistas e anarquistas. Aindaem Nova Iorque receberam visitas de trabalhadores da Unio dos Ope-.rrios Industriais do Mundo, que tentaram desembarc-los a fim de quepudessem se estabelecer naquela cidade, sendo impedidos pelosgovemantes. Foi necessrio o uso de fora para embarcar Florentino de .Carvalho e Antnio Nalepinski no Avar para viagem de volta entocapital federal brasileira, o Rio de Janeiro. Francisco Arouca tinha fica-do internado no hospital da. imigrao, retomando ao Brasil em outronavio. O jornal Tribuna do Povo dos operrics recfeases no n 2, d10/03/18, registra a passagem de Francisco Arouca pela capitalpernambucana em sua viagem de retomo a So Paulo.

    Em sua viagem de volta ao Brasil, oAvar ancora em Belm, capitaldo estado do Par. Florentino de Carvalho e Antnio Nalepinski tenta-raro, pela' segunda vez, a fuga. Mas esta tentativa tambm fracassou umavez que a sentinela impediu a sada dos dois prisioneiros do navio, mes-mo como apelo da tripulao. Depois de Belm, o Avar ancora emRecife aonde os prisioneiros receberam a visita de companheiros oper-rios daquela cidade. A seguir o navio segue para o Rio de Janeiro. A

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  • terceira tentativa deu-se em janeiro de 1918 quando o Avar ancorou noRio d Janeiro. Auxiliados pela tripulao e por trabalhadores da cida-de, Florentino de Carvalho e Antnio Nalepinski. empreendem fuga bem.sucedida dando fim a um longo perodo de priso e peregrinao porvrios portos 'sem que nenhum destes tivessem aceito o' desembarquedos prisioneiros.

    Durante o perodo em que o Curvello e o Avar foram a residnciaforada destes anarquistas, eles no cessaram de propagar seus ideaisentre as tripulaes. As condies subumanas a que eram submetidos osmarinheiros provocaram indignao nos prisioneiros, resultando na in-tensificao e disseminao das idias anarquistas entre eles, Estes, porsua vez, foram rapidamente contagiados pelas novas idias de igualdadee justia social, iniciando por demonstrarem suas insatisfaes com ascondies de vida e de trabalho. Desta maneira chegaram a paralisar assuas atividades, uma vez, quando ainda estavam em Nova lorque e, ou-tra vez, quandode volta ao Rio de Janeiro. Nesta cidade, a tripulaonegou-se seguir para a zona de guerra antes de verem atendidas suasreivindicaes.

    De volta s terras brasileiras, Florentino de Carvalho empreendenovos esforos na luta social. No entanto era forado a constantes via-gens por causa das perseguies policiais, como tambm empreendiaperidicas viagens de propaganda pelo interior de vrios estados brasi-leiros. Viajava tambm para pases vizinhos para encontrar-se com anar-quistas daquelas localidades e colaborando ativamente com os movi-mentos operrios da Amrica Latina. Assim; estabeleceu contatos commovimentos operrios no.Uruguai, Argentina, alm de terem suas idiasalcanado outros pases do continente. Em suas viagens costumava fa-zer palestras, conferncias e debates sobre o ideal anarquista, comen-tando problemas de repercusso poca e questes internacionais. Almdissoarrecadava assinaturas para jornais operrios. .

    Em seu depoimento, Jaime Cubero, militante anarquista que convi-veu com conhecidos, alunos e familiares de Florentino de Carvalho,afirmou ter ele fundado vrias escolas por onde andava: no interior de .vrios estados brasileiros e mesmo fora do Brasil. Rodrigues (181) re-gistra ter sido ele fundador e professor da Escola Moderna do Brs e daEscola Nova na Moca, .ambas na capital paulista. Em outra obraRodrigues (184) registra a criao, em 1915, da Universidade Popularda Cultura Racional e Cientfica pelos professores Antnio C. Pimentel,

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    Saturnino Barbosa, Florentino de Carvalho e o Dr. Roberto Feij, advo-gado. Esta universidade localizava-se ao lado da j citada Escola Nova.Luizetto (155) afirma ter Florentino de Carvalho dirigido a Escola Mo-derna n 1 durante a ausncia de seu diretor, o professor Joo Penteado,no ano de 1917. Entretanto A Plebe, que noticiava a substituio dadireo da referida escola, s o faz ate 11 de agosto de 1917. pois naedio de nO 09 desta data registra o retomo do professor Joo Penteado direo daquela escola.

    As dcadas de 20 e 30 foram passadas. neste ritmo, alterando-se quan-do das freqentes crises que sofria do mal adquirido nas prises paulistas,gachas, argentinas e pelatruculncia dos militares. Freqentementevia-se obrigado a retirar-se para o interior do estado para poder repousare recobrar as energias. Seu pronturio policial menciona vrias viagensfeitas com esse objetivo.

    . Rodrigues (184) registra ter a famlia Soares estabelecido residnciano Rio de Janeiro no .ano de 1923. No ano seguinte Florentino de Carva-lho acometido novamente por prolongadas e constantes crises de gas-trite, forando-o a retirar-se de suas atividades at recuperao. Ro-drigues (184) registra tambm asua presena e de outros anarquistas deSo Paulo no Quarto Congresso Operrio Estadual do Rio Grande doSul nos anos 1926/27, poca em que encontravam-se fugitivos das per-seguies policiais promovidas pelo governo paulista. Data tambm de

    . 1927 o primeiro livro publicado por Florentino de Carvalho exatamentepor editora de Porto Alegre.

    Ainda no citado pronturio policial podemos identificar alguns de-talhes da vida de Florentino de Carvalho durante a dcada de 30. Emagosto de 1933 num artigo intitulado "Carta Aberta aos Trabalhadores"publicado provavelmente em A Plebe, e recortado por policiais e inclu-do no pronturio policial, ele intenta dar uma satisfao aos trabalhado-res esclarecendo o porqu de sua ausncia do movimento sindical. Defato, alm de comentar sua falta de vigor fisico para empreender as aesque antes fazia, Florentino de Carvalho tece algumas criticas quanto aorumo tomado pelos smdicatos a partir do incio da dcada. Rumo esteintimamente relacionado com as limitaes prprias do sindicalismoapontadas por ele anos antes. Neste artigo evidencia encontrarem-se ossindicatos em caminho totalmente oposto ao trilhado nas duas primeirasdcadas do sculo XX.

    Rodrigues (187) insere carta de Florentino de Carvalho, datada de17 de dezembro de 1946, de um lugarejo prximo cidade paulista de

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  • Marlia chamado Oriente. Nesta carta, em resposta a um companheirode nome Alexandre Pinto, ele informa acerca de suas atividades comoprofessor numa fazenda denominada Monte Alegre, distante 20km deOriente, acrescentando serem os ares do interior bons para o tratamentodo mal que o atormentava. Encerra a carta reafirmando seu ideal e o

    . '. desejo de corresponder-se com os antigos companheiros, nomeandoEdgard Leuenroth. Foi assim que, numa das crises mais violentas partede Marlia para So Paulo. Faleceu poucos dias depois, em 27 de marode 1947, firme e convicto de suas idias de liberdade e solidariedadeentre todos os seres humanos.

    A Obra

    o.estudo, a reflexo sistemtica, o conhecimento racional, enfim, acapacidade cognitiva foram utilizados por Florentino de Carvalho comoferramentas por excelncia na luta pela destruio do sistema de desi-gualdade e injustia social, como tambm no mpeto edificador de umasociedade libertria, igualitria e solidria, Ao longo de sua vida, esteveintimamente ligado imprensa operria, fazendo uma abordagem cui-dadosa e aprofundada das questes sociais. Seus artigos, escritos emvrios jornais e revistas operrias, tinham carter tanto critico, de com-bate e orientao doutrinria, como tambm, e por que no dizer, sobre-tudo educativo. No que se 'refere s criticas, seus artigos tomavam nos a direo das questes conjunturais, as questes de maior evidncianum determinado momento histrico, mas tambm eram crticas estru-turais organizao social na qual estavam assentadas todas as institui-es da sociedade brasileira.. No seu entender, a imprensa operria possibilitava aos trabalhado-res um salutar exercicio educativo de libertao, pois atravs dela ostrabalhadores podiam fazer escutar sua voz, suas opinies e seus pensa-mentos. A imprensa operria possibilitava a prtica da solidariedade, daliberdade, da denncia, da aprendizagem, sendo todos. estes fatoreseducativos por excelncia. Alm disso a imprensa dos trabalhadoresconsistia no veculo de transmisso do pensamento e das idias do pro-letariado, pois para a imprensa burguesa o mundo dos trabalhadorespassava muito distante. Data de 1912 um registro da primeira participa-. o de Florentino de Carvalho emjornal operrio. Rodrigues (181)docu-

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  • menta a contribuio dada por ele fundao do jornal santistaA Revol-ta. Em 1913, Florentino de CarvaJho funda o jornal paulistano Germinall,numa aluso ao romance social do escritor francs Emile 201a. O subt-tulo deste jornal era: "um jornal anarquista". Participou tambm na di-reo de outros jornais operrios como La Gu.erraSociale, em portugu-s e em italiano, escrevendo nestes dois idiomas. Posteriormenteintitulado apenas Guerra Sociale. Alm de ter colaborado no jornal APlebe, Florentino de Carvalho o dirigiu durante um curto perodo nasgreves de 1917, em So Paulo, quando Edgard Leuenroth, o fundador, eos demais diretores estavam presos. Na ocasio deu continuidade im-presso do jornal praticamente s at a libertao dosdiretores, comonos testemunhou Jaime Cubero. Usando vrios pseudnimos cuidou paraque o jornal no tivesse suas edies interrompidas.

    Colaborou tambm na direo de O Libertrio, rgo da "AlianaAnarquista". Colaborou com o jornal operrio recifenseA Hora Social;com o jornal operrio paulista Alba Rossa, escrito todo em italiano.Colaborou .com o jornal carioca A Vozdo Trabalhador, rgo do COB, .Congresso Operrio Brasileiro,

    Florentino de Carvalho participou da direo de revistas operriastais como A Rebelio, escrita em espanhol e em portugus, e A Obra,ambas de So Paulo. Colaborou com outras revistas operrias tais como,O Comentrio, Prometheu e Arte e Vida, as duas Ultimas dirigi das porseu sobrinho Arsnio Palcios, e com a revista carioca A Vida, da qualtivemos acesso a uma edio fac-similar,

    Alm de ter sido um constante e influente colaborador da imprensaoperria escreveu vrios livros nos quais expunha mais detidamente asanlises, reflexes, criticas, comentrios, sugestes, advertncias, orien-taes e propostas de reestruturao social. Rodrigues (184)cita os livrosescritos por Florentino de Carvalho, registrando terem-se perdido osoriginais de suas melhores produes tericas por causa da ao polici-al.omeote tivemos acesso as suas duas primeiras obras: A primeiraintitula-se Da Escrvido Liberdade: a derrocada burguesa e o ad-vento da igualdade social, editada em 1927. Alguns dos captulos foramescritos em 1923. A obra seguinte, escrita em 1932~chama-se: A GuerraCivil de 1932 em So Paulo. As outras obras so: Crise do Socialismo,Filosofia do Sindicalsmo, uma obra incompleta sobre a Revoluo Es-panhola de 1936-1939, Sntese de uma Filosofia Anarquista e Consti-tuio Socialista Libertria.

    ;'

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  • Seu primeiro livro, Da Escravido Liberdade, um verdadeirotratado de cincia social. Este livro estampa logo nas primeiras pginasa preocupao forte do autor, como em todo o movimento anarquista eanarcc-sndicaista, com a problemtica educacional dos trabalhadorese dos excludos da sociedade. Diz seguinte:

    "O socorro mais urgente deve ser prestado s faculdades psicolgicas dasmultides, a fim de que estejam altura dos grandes momentos histricos, detransio social, e aptos para a grande obra de regenerao humana" (94).

    o livro divide-se em quatropartes, Na primeira, intitulada "Colapsoda Civilizao Histrica", o autor, partindo de uma demonstrao dasituao social dos operrios do campo, da cidade, do mar, do trabalha-dor dos escritrios, sem esquecer do trabalhador infantil, faz um balan-o das doenas sociais justapondo a estas as de carter psicolgico; apssima dieta alimentar basead em alimentos muitas vezes envenena-dos; o trabalho excessivo, noturno, etc. Esta parte consiste numa viru-lenta crtica civilizao ociderttal em todos os seus aspectos: d cons-tituio das grandes metrpoles relao do europeu com o aborgene;da situao de novos prias, como ele denominou os inquilinos, substi-tutos dos antigos habitantes aos profissionais liberais; da intelectualidadeligada burguesia ao ensino oficial; do Estado e todas suas instituies,sobretudo o militarismo Igreja e todas as religies; do capitalismo .todos os imperialismos; enfim, a imprensa burguesa, o jornalista bur-gus, o professor, so todos submetidos ao crisol de suas reflexes einquiries,

    A segunda parte do livro, intitulada "A Luta Social" Florentino deCarvalho comea com o seguinte pensamento:

    "A luta social atual a evoluo de uma situao revolucionria para o 'esta-do normal da sociedade'," (94),

    Nesta parte analisa detidamente as idias polticas de Karl Marx eFrederic Engels, o bolchevismo, a idia da ditadura do proletariado; Lenine o Estado e a revoluo, Trotski, Buckarin, a experincia do socialismoestatal da Rssia; caracteriza o Estado socialista como sendo to sacroquanto as religies, particularmente o cristianismo catlico; as limita-es do sindicalismo, suas relaes com o capitalismo e marxismo embeneficio destes; o movimento internacional dos trabalhadores a partir

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  • da 1a Associao Internacional dos Trabalhadores fundada em setembrode 1864, em Londres, e seu desdobramento; o sindicalismo como alvodos autoritrios em sua volpia pelo poder entre outros temas mais,

    A terceira parte de seu livro, inttulada "Transio Subversiva" CO~mea com o seguinte pensamento:

    , "A evoluo e a revoluo s se realizam sob o influxo de novas correntesfilosficas"(94 ).

    Nesta parte Florentino de Carvalho submete a civilizao ocidentala um rigido escrutnio, procurando evidenciar as repercusses da filoso-fia na sua transformao. Trata tambm do movimento do proletariado,sua filosofia e doutrina em relao social-democracia, ao bolchevismoe ao anarquismo. Situa o pensamento anarquista na sociologia e na cin-cia poltica definindo-o como nica corrente do pensamento social a sernegativista empoltica. Num extenso captulo, oXXII, situa o anarquismo

    , no movimento operrio afirmando serem os trabalhadores os elementosdecisivos na luta social, apesar de no serem os nicos a empreenderemeste combate. Trata ainda da necessidade de novas formas de organiza-o dos trabalhadores na transformao social; da base destas organiza-es; das obras mais urgentes; dos anarquistas dentro destas organiza-

    , es; do porqu de afirmar-se anarquista entre outros temas. Expe seuentendimento do 'que venha a ser uma revoluo social, opondo seu pen-samento ao de Marx, Trotski e dos partidos polticos neles inspirados.

    Por fim, na quarta e ltima parte de seu livro, denominada "Perspec-tiva da Nova Civilizao", expe, com maestria e sobriedade, a penetra-o do anarquismo na cincia e na filosofia; as foras morais doanarquismo, suas bases e filosofia; a perspectiva anarquista da econo-mia numa sociedade libertria; como lidar, numa 6tica crata, com osatos anti-sociais; a educao oficial e o ensino racionalista; o trabalhomanual e intelectual como sendo harmnicos no anarquismo; definioda arte e sua relao com a cincia; trata de como se formou a civiliza-o ocidental a partir das civilizaes orientais: a egipcia antiga, ahelnica e a rabe; refere-se aos movimentos polticos e sociais; vatici-na a derrocada dos Estados socialistas, denominando-os de "flor de umdia"; evidencia a relevncia do pensamento anarquista, sustentando serele o guia seguro rumo a destinos mais felizes, negando qualquer idiateleolgica de fim da histria ouperfeio paradisaca aps a derrocada

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    I ,,'

  • do capitalismo. Esta ltima parte introduzida pelo autor com as se-guintes palavras:

    . "O futuro da Humanidade est dependendo de uma nova ordem morar' (94).

    Este , na verdade, um esboo .rpido e apressado de um livro quetrata dos mais variados temas do pensamento social. Como. vimos, osindicalismo, a educao, o militarismo, o nacionalismo, o socialismo,o marxismo e seus desdobramentos, a religio, a sociologia, a antropo-logia, a economia, a cincia poltica, a geografia, a filosofia, o capitalis-mo, o estatismo e tantos outros temas, como guerras.epidemias e traba-lho, so objetos da reflexo e analise de Florentino de Carvalho. So241 pginas de anlise detida sobre os mais variados aspectos da vida,sendo um livro, em muitos aspectos, ainda atual e um grande marco parao pensamento social brasileiro e, principalmente, para o pensamentodos trabalhadores uma vez ter sido seu autor, alm de professor, umoperrio. .

    Seu segundo livro de menor dimenso mas no deixa de ter granderelevncia no que se refere caracterizao de seu pensamento. Tam-bm, e sobretudo, por traduzir uma perspectiva operria dos aconteci-mentos de 1932 em So Paulo. Este livro, A Guerra Civil de ]932 emSo Paulo: soluo imediata dos grandes problemas sociais, consistenuma reflexo detida sobre os acontecimentos geradores da guerra civilde 32, seu desenvolvimento e desastroso desfecho, levantando, em se-guida, algumas propostas de soluo dos problemas sociais causadoresdaquela guerra civil. Este livro divide-se em cinco partes todas elas sub-divididas em captulos. A primeira parte intitulada "Surto e Desenvolvi-mento da 'Arrancada '" onde o autor detem-se especifi camente nosacontecimentos de 32, relacionando tais fatos Revoluo de 1930. Emseguida descreve como foi se constituindo a arrancada; os partidos eestados da federao-envolvidos; os motivos da arrancada e como sedeu O incio dos conflitos. Evidencia tambm ter havido uma mobilizaoquase que geral nos conflitos.

    "Num gesto unnime, digno de melhor causa, todos os clubes polticos, to-das as classes conservadoras, todas as empresas da lavoura, do comrcio e daindstria, todas as academias e escolas, todas as associaes de Medicina, Direi-to, Engenharia, de cultura cientfica, literria e artstica, inclusive do professora-do CII tlico, todas as igrejas catlicas, protestantes, espritas, teosficas,salvacionistas e manicas (I), todas as associaes de caridade, de socorro, to-

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  • dos os clubes esportistas, se entregaram de corpo e alma, com todos os recursosdisponveis, mobilizao dos exrcitos constitucionalistas e preparao febrilde todos os elementos de boca e de guerra." (95).

    Prossegue ele referindo-se a tantos outros segmentos sociais ade-rentes causa constitucionalista. A exceo deu-se com os trabalhado-res. "Somente o proletariado (e no todo) se mostrava reservado, indife-rente quela imponente manifestao de civismo". Registrado o desfe-cho desastroso para os paulistas dos acontecimentos de 1932, Florentinode Carvalho refere-se s perseguies aos sublevados promovida pelasforas federais. Nesta altura tratou de caracterizar o que foi, efetiva-mente, a Revoluo de 32 nas seguintes palavras: "O que aqui se deuno foi uma guerra civil, foi o sacrificio de inocentes". Disse isso refe-rindo-se ao total despreparo das tropas constitucionalistas. Em seguidarefere-se outra faceta da Revoluo de 32. Por trs de tantos alaridosde nacionalismos, de tantas algazarras, do tremular das bandeiras "seocultam misrias morais que, para o bem de todos, deviam estar luzdosol". Assim, trs quartos do contigente dos constitucionalistas eram depessoas que estavam ali para no perderem o po do dia-a-dia. Em outrocaptulo denuncia a feroz represso cada sobre os trabalhadores) os quaisse viam impedidos de manifestarem-se diante dos acontecimentos, aomesmo tempo em que o clero e partidrios desta ou daquela faco po-ltica tinham plena liberdade para faz-lo, Assiriala, em seguida, os ob-jetivos do.s constit.ucionalistas. Caracteriza, por fim, a relao daintelectualidade com. a guerra. .'

    A segunda parte do livro, denominada "Origem e Significao doMovimento", amplia o enfoque da anlise da situao do Brasil, procu-rando conhecer a problemtica social a partir de uma perspectiva hist-rica. Nesta anlise considera a formao tnica dos primeiros coloniza-dores, caracterizando, de um. lado, a natureza dos trabalhadores e, poroutro, a dos conqqistadores e dominadores; os sistemas .filosficosorientadores do pensamento das classes dirigentes, inspiradores das leise dos costumes das classes populares e liberais e, por fim, rever os acon-tecimentos revolucionrios das ltimas dcadas.

    O Brasil da repblica tem, na sua perspectiva, o mesmo carter vio-lento e dominador do Brasil da colnia e do Brasil do imprio ..A situa-o do trabalhador no.mudou de forma alguma com a repblica. Emseguida trata da campanha abolicionista evidenciando sua importncia

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  • nas lutas de emancipao ocorridas no "Cruzeiro do Sul", como deno-minava o Brasil. A campanha pela repblica foi iniciada por movimen-tos anteriores corno a Confederao do Equador, a Repblica Baiana e aRepblica. Gacha de Piratininga.

    Em captulo seguinte trata dos bandeirantes. Dedica um captulo umpouco mais longo para tratar das etnias constituintes do povo brasileiro,suas caractersticas e temperamento. Trata, depois, do advento da lutasocial no Brasil, assinalando o nome de alguns de seus mrtires: Ant-ruo Filgueira Vieytes, Manuel Gonalves, Casteliani, Inbiguez, NicoauParada, Nino Martins, PedroA Motta, Mattei e Antnio Varella. Noltimo captulo desta parte; evidencia a situao de So Paulo comosendo o local onde as contradies sociais tomaram-se mais aparentes,conduzindo esta capital aos conflitos que nela se deram. O industrialismoda capital paulistana trouxe consigo uma delimitao muito clara dasdesigualdades sociais, colaborando para a formao de um ambientepropcio a revoltas e sublevaes sociais.

    A terceira parte de seu livro, chamada "O Capitalismo Contra a Ci-vilizao", amplia ainda mais a perspectiva de anlise dos problemassociais procurando demonstrar o carter internacional das crises soci-ais; a deficincia prpria dos governos ao promoverem a igualdade, jus-tia e harmonia sociais; a natureza classista dos Estados e outras carac-tersticas do capitalismo. O trabalho no capitalismo um jugo para oprodutor pois ele se d sempre em prejuzo deste e em beneficio dosdominadores. Refere-se aplicao dos conhecimentos cientficos naorganizao do trabalho sob o capitalismo, advertindo que a cincia, aservio da dominao, significa agudizao de uma situao j precria,pois "a cincia a servio do capitalismo favorece aos industriais e preju-dica, em razo inversa, aos trabalhadores". Trata em seguida das medi-das propostas tanto por governistas, por oposicionistas do Estado e por"sedicentes [sic] revolucionrios" denominando-as de "medidas ilus-rias" pois no tocam nem de longe a raiz dos problemas sociais. Por fimevidencia, novamente, o carter c1assista do Estado sustentando sua ine-ficincia em solucionar as problemticas sociais (95).

    Trata ainda, nesta parte, da centralizao como fenmeno social a seestender em diversos aspectos da vida social sob o capitalismo. Neste'sentido aponta para a centralizao econmica, onde a figura do patrocederia lugar a um domnio coletivo. dos grandes conglomerados deempresas e dos grandes sindicatos. O Estado favorece no. apenas omonoplio econmico mas tambm de todos os aspectos da vida social

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  • e "vai encampando os servios pblicos, as indstrias privadas, mesmoos cabars" (95). Aqui ele no perde o fio do raciocnio para criticar ocarter altamente monopolizador dos Estados socialistas dizendo:

    "H quem veja na extorso estatal certa dose de socialismo ... J sabemos amisria de socialismo que isto significa" (95).

    A centralizao econmica desenvolve-se em duas direes: uma aonvel nacional e outra ntemaconal, fazendo aluse a grandes blocoseconmicos, No bojo deste processo os demais segmentes sociais tam-bm seriam arrastados. Desta maneira a religio tambm constitui alvoda unificao, passando a haver uma tendncia, terna da cada vez maisconcreta, da centralizao das religies a partir da busca de entrelaa- .mentes e de acordos baseados na identificao de pentes comuns aoscredos. Esta unificao tambm estende-se ao domnio da magistratura,abarcando as instncias poltica e jurdica dos Estados onde todos ospartidos da esquerda contribuem sobremaneira. Acrescent, aps ter re-ferido-se aos partidos:

    "Aplainadas assim as arestas que dificultam a estandardizao de toda a vidasocial e proscritos ipsofacto todos os valores morais da sociedade, a unidadereligiosa, poltica e industrial no estaria longe. da realizao".

    Advertindo em seguida:

    "Se se constitusse um tal regime, no seria fcil de prever o que adviria paraa humanidade" (95).

    Por fim, trata de perigo para a vida na Terra de modelo ocidentalde vida, mesmo com os avanos e descobertas cientficas proporciona-das pela modernidade. Por causa de seu carter belicoso e destrutivo, acivilizao ocidental reverteu os beneficios da cincia em perigo emi-nente para a manuteno da vida dos povos. E de nada valem as palavrasde paz, de desarmamento, os compromissos assinados per representan-tes de grandes e pequenas naes, pois "no passam de torneios deretrica diplomtica, de manobras solapadas, onde cada representan-te sua copiosamente para envolver e inutilizar os seus competidores",A ditadura militar, fascista eu socialista, constituem os marcos de s-culo XX, ao que seriam sucedidas por movimentos de emancipao so-ciaf(95).

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  • .Na quarta, .intitulada "As Doutrinas Sociais Modernas", o autor de-tm-se no positivismo de Augusto Comte, nas idias da social-democra-cia e no marxismo, O positivismo analisado enquanto filosofia-supor-.te da repblica brasileira ao lado do catolicismo. Isto porque o positivismoconsolidou-se como a religio da humanidade, renovando e dando maisflego ao catolicismo. No que diz respeito ao socialismo, o autor afirmater havido uma completa desorientao dos primeiros objetivos, compa-rando este desvio com o acontecido com o cristianismo original, passan-doa adotar uma atitude diametralmente oposta inicial. Em seguidatrata do socialismo francs, do socialismo alemo e do socialismo naRssia. Nas suas reflexes sobre o socialismo alemo, o autor elaboracriticas contundentes a Karl Marx e a Frederic Enge1smerecedoras doconhecimento dos estudiosos das cincias sociais. No ltimo captulodesta parte o autor detm-se exclusivamente sobre as idias daquelespensadores, criticando a idia da ditadura do proletariado, a tendncianacionalista do marxismo e a idia de um Estado marxista como formade transio para a sociedade igualitria.

    A quinta e ltima parte do livro, chamada "O'Nosso Postulado Soci-al- Problemas Sociais de Emergncia" - comea referindo-se a caracte-rsticas do povo brasileiro contrapondo-o ao europeu. O temperamentolatino fundiu-se com o indgena, tomando o brasileiro resistente ao quechamou de "germanizao", isto , hierarquizao social da populaobrasileira. O autor prope-se, nesta parte, a ser um intrprete das aspira-es da populao, ressaltando ser sua posio a de um homem livre einspirado no lema da Revoluo Francesa, a saber: Liberdade, Igualda-de e Fraternidade. Evidencia a localizao do homem dentro da nature-za, sendo um membro constitutivo desta e estando submetido s suasleis. O autor expressa ser o motivoprimeiro no qual se inspiraram todasas seitas, todas as classes, todos os partidos, enfim, todos os gruposcontrrios s desigualdades econmica, poltica e social, contrrios aosdespotismos, o ponto de partida de seu postulado. A seguir detalha onome e as respectivas influncias de movimentos histricos no seu pen-samento.

    Trata a seguir do processo revolucionrio caracterizando-o como decarter eminentemente popular - e no poltico - para ter a eficincianecessria banindo as causas dos males sociais. Segue diferenciando arevoluo poltica da revoluo social, evidenciando a necessidade dainexistncia de hierarquias e de autoridades no seio da revoluo socialpara um sentido realmente contrrio dominao. Referindo-se ne-

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  • cessidade de um organismo revolucionrio como eixo para o movimen-to social, afirma inexistir tal rgo, apontando, em seguida, o sindicatocomo sendo essencialmente utilitrio e corporativista, portanto intilcomo organismo revolucionrio. Assinala ele a emancipao social comosendo de carter eminentemente popular e no fruto de uma faco r~volucionria em particular .

    .Passa ento a levantar propostas de solues aos problemas sociais.Assim, aponta soluo para os problemas econmicos, soluo para aquesto religiosa, soluo para o problema da nacionalidade, soluopara O' problema da familia. Refere-se sua contemporaneidade comosendo caracterizada pelo choque entre as foras liberais e as foras rea-cionrias, resultando deste choque um considervel progresso espirituale social. Adverte, porem, os trabalhadores a no se iludirem com osacenos de emancipao social dados 'pelo governo ditatorial. Isto porcausa da natureza prpria dos governos. Em suas palavras:

    "Se, neste momento, o poder ditatorial age com demasiada energia contra amocidade aristocrtica e conservadora, amanh, com menos reticncias tomaratitudes idnticas em face dos revolucionrios extremistas ou dos proletriosquando estes lhe fizerem sombra ou quando no se sujeitarem sua ordem" (95).

    "Os partidos mais despticos surgem de ordinrio entre as van-guardas polticas e sociais". Isto se deu com o cristianismo, com ademocracia burguesa, com o fascismo e bolchevismo. O primeiro re-sultando no poder da tiara, a segunda numa plutocracia imperialista eos dois ltimos se corporificaram em "autocracias, que so bem a sn-tese de todas as formas e essncias da escravido universal". Questio-na as aspiraes dosconstitucionalistas e qual seria a sua filosofia, asua doutrina, o seu postulado, enfim, o seu programa. Assinala, ento,ter este movimento trs linhas bsicas lutando para conseguirem ahegemonia, Eram elas o fascismo ou a democracia norte-americana, asocial-democracia- da Segunda Internacional e, por ltimo, o Social-'Nacionalismo de Hitler (95).

    A seguir Florentino de Carvalho evidencia a contribuio de vrios.personagens na elaborao e constituio de um pensamento anarquis-ta. Desta maneira associa os esforos e contribuies intelectuais e pr-ticas de Leon Tolsti, de Pierre-Joseph Proudhon, de Mikhail Bakunin,de Elise Reclus, de Piotr Kropotkin, deMax Stimer, de Ibsen, de Tuker,de Mackay, de Barret, de Errico Malatesta, de Parsons, sem esquecer de

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  • registrar ter existido outras figuras de relevo no movimento anarquista,Conclui o livro com um "Apelo aos Revolucionrios", onde ressalta aineficincia, inutilidade e mesmo o carter nocivo da repblica para alibertao dos oprimidos da sociedade, evidenciando a situao do tra-balhador como sendo de continuada misria e explorao, Convoca ostrabalhadores a se prepararempara a batalha, lutando pela bandeira dasreivindicaes universais', Convoca os intelectuais a dedicarem seus co-nhecimentos e sua verve para ferir o despotismo, Convoca os soldadospara lutarem li favor da prpria libertao e dos demais oprimidos, Con-voca, por fim, os idealistas para concretizarem a "arrancada" da revolu-o social.

    Este , de fato, um apressado esboo do que trata Florentino de Car-valho nestas duas primeiras obras, por serem riqussimas na abordagemdos temas propostos, merecendo um estudo mais aprofundado. Trata-semesmo de obras-primas do pensamento social elaborado no Brasil e que,no obstante, mantm-se totalmente desconhecidas no apenas do estu-dioso das cincias sociais, mas tambm de grande parte do movimentoanarquista contemporneo. uma perda bastante significativa, pois odesconhecimento das contribuies intelectuais dos trabalhadores tomaa sua percepo um tanto distorcida, incompleta e, mutas vezes, equ-votada. Esta falta explica - um pouco - a concepo da historiografiaacadmica quanto aos primeiros passos do movimento dos trabalhado-res no Brasil. Da vermos, com freqncia, a referncia a este perodocomo sendo infantil, embrionrio ou termo de semelhante significao,

    Quanto s demais obras de Florentino de Carvalho, no foi possvelencontr-Ias. Contudo dirigiremos esforos neste sentido, uma vez tra-tar-se de produes intelectuais de um dos maiores personagens do pen-samento social produzido no Brasil. Jos Oiticica registra que, em con-versa com Florentino de Carvalho, este lhe falara terem os originais, deduas obras suas, nas quais expunha a sua mais elaborada produo te-rica, sidos tomados pela polcia, estando ele sem foras para reinici-Ias. Trata-se da Sntese de uma Filosofia Anarquista e Constituio So-, cialista Libertria, obras citadas no livro de 1932, A Guerra Civil de1932 em So Paulo.

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  • Captulo 2

    o BRASa DO lNCIO DESTE SCULONA PERCEPO DE UM TRABALHADOR

    . Florentino de Carvalho foi um observador atento da sociedade bra-sileira do final do sculo XIX e incio do XX, Presenciou os ltimossuspiros da monarquia, como tambm as euforias da implantao daRepblica, Contudo suas desconfianas 'com o novo regime poltico de- 'lineavam-se desde sua implantao. O fato de ter sido um dos criticasmais contundentes do positivismo confrnna esta assertiva. As criticaseram veiculadas atravs de conferncias, debates, palestras e, principal-mente, de seus artigos e livros. Apontou, por estes meios, as rachaduras,falhas e defeitos inerentes repblica 'brasileira uma vez que, como todosistema de governo, a repblica no eliminava as causas dos males edesigualdades sociais. Por outro lado, a situao social do Brasil favore-ceu a penetrao do anarquismo no movimento operrio. Exemplo disso.temos nas medidas violentas do patronato e govemantes contra os traba-lhadores como uma das causas da difuso do' movimento paredista de1917, Em artigo de 1915 ele j apontava algumas aes do governobrasileiro como consistindo num abalo das estruturas oligrquicas e par-tidrias, resultando numa abertura de campo iniciativa popular e, as-sim, possibilitando um enfraquecimento das "hostes opressoras".

    No presente captulo trataremos particularmente da caracterizaoda sociedade brasileira feita por Florentillo de Carvalho. Esta caracteri-zao deu-se a partir de quatro aspectos:

    1. Evidenciando a natureza classista da repblica brasileira;2. Apresentando a realidade social na qual encontravam-se os traba-

    lhadores como sendo fundamentada em contrastes;3. Delineando aspectos scioeconmicos da sociedade brasileira; e4. Registrando as diversas formas de manifestao da violncia pa-

    tronal e estatal, desde as mais brutais torturas e assassinatos, at s for-mas mais sutis.

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  • A Natureza Classista da Repblica Brasileirano Incio do Sculo XX

    A repblica brasileira, em sua origem e em todo o processo de con-solidao, teve em Florentino de Carvalho um adversrio perspicaz. Eleno poupou nem economizou criticas, comentrios e apelos para suaextino a partir da iniciativa popular, edificando uma nova organiza-o social sobre as ruinas do modo de vida fundado no esplio. Suacritica comea mesmo com a abolio da escravido, marco dodeclnioda monarquia brasileira. De inicio sustenta no ter sido proclamada aabolio por causa de algum pendor altrusta da realeza brasileira. An-tes muito pelo contrrio, ela aconteceu porque a sua permanncia seria,de fato, um prejuzo para os donos do poder econmico uma vez estarocorrendo ao nvel mundial uma redefinio na forma do capitalismo. Osalariado, ento, apresentava-se como uma maior garantia de maiores emais expressivos lucros. Na realidade no houve abolio daescravi-do, mas sim uma expanso desta, pois no mais apenas os negros eramescravos. Agora tambm eram escravos os ndios, os brancos e tantosquantos no possussem capital para explorar seus semelhantes.

    Preocupado com a questo de uma moral condizente com os princ-pios de sociabilidade, Florentino de Carvalho acusava a repblica devazio moral. A repblica no apenas conservou toda a estrutura de espo-liao existente na monarquia como tambm aperfeioou as formas deexplorao, ressaltando uma situao j precria, redobrando as repres-sese violncias. Todo o princpio da autoridade, como tambm o dapropriedade, mantinha-se intato na liberal Repblica do Brasil, perma-necendo a populao trabalhadora escrava e submetida a uma pssimacondio de vida onde a penria, a angstia, a necessidade, a dor, amisria tornavam cinza os horizontes dos trabalhadores. Esta a razopela qual Florentino de Carvalho- evidencia a parcialidade do Estado notrato das questes sociais. A repblica brasileira, "partindo do princpioviolento e imoral da propriedade privada e da hierarquia", submetia apopulao ao domnio dos donos do poder, negando-lhe todos os pendo-res da sociabilidade e da moralidade. Isto porque, dizia, a moral da rep-blica no era "resultante da igualdade de condies sociais, da autono-mia individual, dos instintos de sociabilidade, da cincia, da justia e darazo", acrescentando ser ela "anti-social.iantimoral, em todos os seusefeitos" (62).

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  • Florentino de Carvalho denunciava existir articulao do patronatocom a imprensa burguesa, polticos, fazendeiros, padres e policia, tantopara concretizar uma explorao mais acentuada como para um maiorcontrole e represso dos protestos e mpetos de emancipao dos traba-lhadores. A repblica brasileira oferecia as condies ideais para a ins-talao em seu territrio de estrangeiros capitalistas col!).inteno d