principais contributos da união europeia e do conselho da europa

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32 DEBATER A EUROPA Periódico do CIEDA e do CIEJD, em parceria com GPE, RCE e o CEIS20. N.4 Janeiro/Junho 2011 – Semestral ISSN 1647-6336 Disponível em: http://www.europe-direct-aveiro.aeva.eu/debatereuropa/ Principais contributos da União Europeia e do Conselho da Europa em matéria de não discriminação Dulce Lopes Assistente da Faculdade de Direito Universidade de Coimbra Resumo Procede-se neste estudo a uma análise das mais relevantes iniciativas político- legislativas e decisões judiciais em matéria de igualdade e não discriminação tomadas no âmbito da União Europeia e do Conselho da Europa,já que são estes os principais intérpretes de uma consciência jurídica europeia, ainda em formação, mas na qual aqueles princípios se encontram incluídos. Palavras chave: igualdade, não discriminação, União Europeia, Conselho da Europa, Convenção Europeia dos Direitos do Homem Abstract:The study focuses the key political and legislative initiatives and case law of the European Union and the Council of Europe concerning the principles of equality and non-discrimination. These are indeed the main interpreters of a developing European legal conscience, in which those principles are included. Keywords: equality, non discrimination, European Union, European Council, European Convention on Human Rights

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Page 1: Principais contributos da União Europeia e do Conselho da Europa

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DEBATER A EUROPA Periódico do CIEDA e do CIEJD, em parceria com GPE, RCE e o CEIS20. N.4 Janeiro/Junho 2011 – Semestral ISSN 1647-6336 Disponível em: http://www.europe-direct-aveiro.aeva.eu/debatereuropa/

Principais contributos da União Europeia e do

Conselho da Europa em matéria de não

discriminação

Dulce Lopes

Assistente da Faculdade de Direito

Universidade de Coimbra

Resumo

Procede-se neste estudo a uma análise das mais relevantes iniciativas político-

legislativas e decisões judiciais em matéria de igualdade e não discriminação tomadas

no âmbito da União Europeia e do Conselho da Europa,já que são estes os principais

intérpretes de uma consciência jurídica europeia, ainda em formação, mas na qual

aqueles princípios se encontram incluídos.

Palavras chave: igualdade, não discriminação, União Europeia, Conselho da Europa,

Convenção Europeia dos Direitos do Homem

Abstract:The study focuses the key political and legislative initiatives and case law of

the European Union and the Council of Europe concerning the principles of equality

and non-discrimination. These are indeed the main interpreters of a developing

European legal conscience, in which those principles are included.

Keywords: equality, non discrimination, European Union, European Council, European

Convention on Human Rights

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1.Introdução

O princípio da não discriminação, dada a sua jusfundamentalidade, tem vindo a

afirmar-se como um dos princípios estruturantes da protecção dos direitos do Homem.

No âmbito europeu, os principais obreiros desta tendência têm sido, como seria de

esperar, o Conselho da Europa e a União Europeia.

O primeiro porque tem por missão “realizar uma união mais estreita entre os

seus Membros, a fim de salvaguardar e de promover os ideais e os princípios que são o

seu património comum” [artigo 1.º, alínea a) do Estatuto do Conselho da Europa],

incluindo todo um aparato institucional para garantia do cumprimento de um dos seus

principais feitos: a Convenção Europeia para a Protecção dos Direitos do Homem e das

Liberdades Fundamentais, doravante Convenção Europeia dos Direitos do Homem. A

segunda porque foi avançando, progressiva e decisivamente, para uma Comunidade de

Direito1 – ou, mesmo, para uma Comunidade de Direitos Fundamentais2 –, pela

sujeição de todas as suas políticas e acções ao crivo dos princípios gerais de direito da

União Europeia e dos direitos fundamentais por ela amplamente reconhecidos.

É sobre esta dualidade que nos debruçaremos, de modo a colocar em evidência

as relações que se entretecem entre estes dois garantes da “ordem pública” europeia,

tendo como pano de fundo o princípio da não discriminação.

É certo que a concretização deste princípio envolve outros actores de direito

internacional, sejam eles organizações internacionais, Estados, organizações não

governamentais eindivíduos (de cuja iniciativa depende, a mais das vezes, a perseguição

de situações discriminatórias). Estes actores encontram-se enredados em complexas

teias de influências recíprocas marcadas ora pela tensão ora pela complementaridade

funcional, como é típico dos sistemas multinível assentes na partilha de valores e na

interligação de fontes de direito3.

1 Na formulação do Acórdão Partido Ecologista os Verdes contra Parlamento Europeu, de 23

de Abril de 1986, proferido no proc. 294/83. 2 Já neste sentido, cfr. BOGDANDY, Armin von - The European Union as a Human Rights

Organisation? European Rights and the Core of the European Union”, Common Market Law Review, N.º 37 (2000), p. 1307-1338, e idem - Comunità di diritti fondamentali come meta dell’integrazione? I diritti fondamentali e la natura dell’Unione Europea, Diritto Pubblico, n.º 3, 2001, p. 849-899.

3 Um dos domínios em que esta interligação é evidente é o da luta contra o terrorismo, que, por seu turno, é influenciada e influencia decisivamente os contornos do direito anti-discriminatório, desde logo porque os métodos em que assenta aquela luta assentam, muitas vezes, num ethnic profiling ou numa discriminação por “presunção” (cfr. MOECKLI, Daniel - Human Rights and Non-Discrimination in the “War on Terror”, Oxford: Oxford University Press, 2008). Neste âmbito, a complementaridade e acção conjugada das várias instâncias internacionais tem vindo a ser mediada pela especifidade e

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Simplificaremos, no entanto, esta intrincada malha internormativa, incidindo a

nossa atenção sobre as evoluções ocorridas no âmbito do Conselho da Europa (em

especial na Convenção Europeia dos Direitos do Direito do Homem) e da União

Europeia em matéria de não discriminação, e sobre o modo como tais evoluções se têm

vindo a condicionar (prejudicar ou complementar) mutuamente.

2. Principais impulsos em matéria de não discriminação

a. Na União Europeia

O princípio da não discriminação conheceu consagrações explícitas, mas

parcelares, no Tratado de Roma, precisamente nos domínios que mais influência

distorçora tinham no mercado de trabalho (a discriminação em razão da nacionalidade e

a discriminação entre trabalhadores dos sexos feminino e masculino, em matéria de

remuneração).

Cedo, porém, o relevo deste princípio foi ampliado e aprofundado, seja em

virtude de alterações e inovações legislativas, ocorridas tanto no direito primário, como

no direito secundário da União, seja em virtude de proclamações políticas advindas das

Instituições e órgãos da União e dos seus Estados-membros, seja ainda em virtude de

uma activa, e muitas vezes activista, jurisprudência do Tribunal de Justiça da União

Europeia4.

originalidade de cada um dos seus níveis de regulamentação e actuação, sobretudo no que se refere aos standards de direitos fundamentais nelas vigentes. Para uma análise desta questão, cfr. Dulce Lopes – Direito Administrativo das Organizações Internacionais, in Tratado de Direito Administrativo Especial, OTERO, Paulo/ GONÇALVES, Pedro (coord.), Vol. III, Coimbra: Almedina, 2010, em especial p. 132-149, e, ainda, BARTOLONI, Eugenia - Articolazione delle competenze e tutela dei diritti fondamentali nelle misure UE contro il terrorismo”, Il Diritto dell’Unione Europea, n.º 1 (2009), p. 47-75; e VAN ROSSEM, Jan Willem - Interaction between EU law in the light of Intertanko and Kadi: the dilemma of norms binding the Member States but not the Community, Netherlands Yearbook of International Law, Vol. XL (2009), p. 183-227.

4 Estas correspondem, grosso modo, às formas de revelação dos direitos fundamentais na União Europeia, na categorização proposta por DUARTE, Maria Luísa - A União Europeia e os Direitos Fundamentais – métodos de protecção, in Portugal-Brasil Ano 2000, Studia Iuridica 40, Coimbra: Coimbra Editora, 1999, p. 27 e ss.

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Ao nível legislativo, foram aprovadas duas grandes vagas de directivas5, que

acompanharam as mutações ocorridas nos Tratados e na jurisprudência do Tribunal de

Justiça. A primeira vaga, iniciada por altura do célebre Acórdão Defrenne II – Acórdão

Gabrielle Defrenne contra Societé Anonyme de Navigation Aérienne Sabena, de 8 de

Abril de 1976, proferido no proc. 43/75, no qual o Tribunal de Justiça reconheceu que o

então artigo 119.º, além de uma finalidade económica, visava também objectivos sociais

e detinha efeito directo –, compreende as Directivas adoptadas entre os anos setenta e

oitenta no domínio do direito do trabalho e da segurança social, mas apenas no que se

refere ao princípio da não discriminação em razão do sexo, único que encontrava no

Tratado uma base normativa expressa6.

A segunda vaga, potenciada pela importância axial que o Tratado de

Amesterdão deferiu ao princípio da igualdade e da não discriminação – em particular

pela introdução de uma cláusula geral anti-discriminatória (o artigo 13.º)7 –,

5 Apesar de ser o instrumento privilegiado no domínio da igualdade e não discriminação, porque

é o acto mais vocacionado para enquadrar áreas em que os Estados mantêm relevantes possibilidades de regulação, tal não significa que a Directiva seja o único instrumento jurídico vinculativo neste domínio. Para além da inestimável função dos Regulamentos em matéria de livre circulação, as Decisões têm tido igualmente um papel relevante em matéria de não discriminação (veja-se a Decisão n.º 771/2006/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 17 de Maio de 2006, que institui o Ano Europeu da Igualdade de Oportunidades para Todos (2007) — Para uma Sociedade Justa).

. 6 O mote inicial dado pela Directiva 75/117/CEE do Conselho, de 10 de Fevereiro de 1975, relativa à aproximação das legislações dos Estados-Membros no que se refere à aplicação do princípio da igualdade de remuneração entre os trabalhadores masculinos e femininos, cedo foi seguido por outras Directivas, tais como a Directiva 76/207/CEE do Conselho, de 9 de Fevereiro de 1976, relativa à concretização do princípio da igualdade de tratamento entre homens e mulheres no que se refere ao acesso ao emprego, à formação e promoção profissionais e às condições de trabalho e a Directiva 79/7/CEE do Conselho de 19 de Dezembro de 1978, relativa à realização progressiva do princípio da igualdade de tratamento entre homens e mulheres em matéria de segurança social. Nos anos oitenta, o princípio da igualdade e não discriminação foi concretizado relativamente a domínios menos consensuais, como o demonstra a Directiva 86/613/CEE do Conselho de 11 de Dezembro de 1986 relativa à aplicação do princípio da igualdade de tratamento entre homens e mulheres que exerçam uma actividade independente incluindo a actividade agrícola, bem como à protecção da maternidade�e a Directiva 86/378/CEE do Conselho de 24 de Julho de 1986 relativa à aplicação do princípio da igualdade de tratamento entre homens e mulheres aos regimes profissionais de segurança social.

7 O Tratado de Amesterdão introduziu igualmente alterações ao então artigo 141.º do Tratado de Roma, passando a incentivar o estabelecimento de acções positivas em matéria laboral, para promover a igualdade entre os sexos. A abordagem do Tratado de Roma posteriormente ao Tratado de Amesterdão, quanto à temática da igualdade passou a ser também mais sistemática, uma vez que vários artigos lhe passaram a fazer referência, desde logo o artigo 2.º erigiu como tarefa fundamental da Comunidade a promoção da igualdade entre homens e mulheres, o artigo 3.º, n.º 2 inscreveu este princípio como uma política horizontal que deveria permear todas as acções desenvolvidas pela Comunidade, o artigo 13.º autorizou o Conselho, actuando por unanimidade, a tomar medidas de combate a várias formas de discriminação, e, por fim, o artigo 137.º estabeleceu que a Comunidade apoiará as acções desenvolvidas pelos Estados membros relativamente ao princípio da igualdade de tratamento no mercado de trabalho. Para BELL, Mark - Equality and diversity: anti-discrimination law after Amsterdam, in Social Law and Policy in an evolving European Union, SHAW, Jo (ed.), Oxford: Hart Publishing, 2000, “article 13 is a breath of fresh air for anti-discrimination law, moving the discussion onto the substantive questions

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correspondeu, inicialmente8, ao pacote legislativo composto pela Directiva 2000/78/CE

do Conselho, de 27 de Novembro de 2000, estabelecendo um quadro geral da igualdade

de tratamento no emprego e na actividade profissional que abrange a discriminação em

razão da religião ou das convicções, de deficiência, da idade ou da orientação sexual e

pela Directiva 2000/43/CE do Conselho, de 29 de Junho de 2000, que aplica o princípio

da igualdade de tratamento entre as pessoas, sem distinção de origem racial ou étnica.

O facto de o princípio da não discriminação em razão do sexo não ter sido

coberto por este conjunto de medidas foi prontamente criticado por passar a ser

aplicável a esta causa anti-discriminatória – até então era a “menina dos olhos” das

Instituições comunitárias – um tratamento de desfavor relativamente a outras, em

especial relativamente à origem racial ou étnica9. Para tentar colmatar esta

incongruência interna do sistema de protecção dos direitos fundamentais da União,

foram aprovadas as Directivas 2004/113/CE do Conselho, de 13 de Dezembro de 2004,

que aplica o princípio de igualdade de tratamento entre homens e mulheres no acesso a

bens e serviços e seu fornecimento, e 2006/54/CE do Parlamento Europeu e do

Conselho, de 5 de Julho de 2006, relativa à aplicação do princípio da igualdade de

oportunidades e igualdade de tratamento entre homens e mulheres em domínios ligados

ao emprego e à actividade profissional (reformulação)10.

surrounding how the EU can effectively contribute to the promotion of equal treatment”. Para uma apreciação das alterações operadas com Amesterdão cfr. TOBLER, Christa - Sex equality law under the Treaty of Amsterdam, European Journal of Law Reform, vol. 2, n.º 1, 2000, p. 135 e ss. 8 Não deve, porém, olvidar-se o papel que nos anos noventa teve a clarificação das questões relacionadas com o ónus da prova, trazida pela Directiva 97/80/CE do Conselho, de 15 de Dezembro de 1997, relativa ao ónus da prova nos casos de discriminação baseada no sexo as áreas, incluindo o emprego, o trabalho e a remuneração, e a regulação das questões parentais, pela Directiva 92/85/CEE do Conselho de 19 de Outubro de 1992, relativa à implementação de medidas destinadas a promover a melhoria da segurança e da saúde das trabalhadoras grávidas, puérperas ou lactantes no trabalho, alterada pela Directiva 2007/30/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de Junho de 2007, e pela Directiva 96/34/CE do Conselho de 3 de Junho de 1996, relativa ao Acordo-quadro sobre a licença parental celebrado pela UNICE, pelo CEEP e pela CES, alterada pela Directiva 97/75/CE do Conselho, de 15 de Dezembro de 1997 (e que será revogada, a partir de 8 de Março de 2012, pela Directiva 2010/18/UE do Conselho, de 8 de Março de 2010).

9 Cfr. LOPES, Dulce / SILVA, Lucinda Dias da - Xadrez Policromo: A Directiva 2000/43/CE do Conselho e o Princípio da Não Discriminação em Razão da Raça e Origem Étnica, in Estudos Dedicados ao Prof. Doutor Mário Júlio de Almeida Costa, Gomes/ Júlio (coord.), Lisboa: Universidade Católica Editora, 2002.

10 Ainda assim, em comparação com a Directiva relativa a origem racial e étnica, estas Directivas têm um âmbito material mais limitado, por não abrangerem áreas como as da educação e comunicação social. Cfr., neste sentido, MASSELOT, Annick - The State of Gender Equality Law in the European Union - European Law Journal, Vol. 13, N.º 2 (2007), p. 152–168. Mais recentemente, foi ainda aprovada a Directiva 2010/41/UE do Parlamento Europeu e do Conselho de 7 de Julho de 2010, relativa à aplicação do princípio da igualdade de tratamento entre homens e mulheres que exerçam uma actividade independente e que revoga a Directiva 86/613/CEE do Conselho.

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Continua, ainda assim, a haver uma nítida discrepância entre o tratamento

dispensado à discriminação em função da origem racial e étnica e o tratamento deferido

aos demais motivos discriminatórios,por a proposta de Directiva apresentada pela

Comissão em 2008, que aplicaria o princípio da igualdade de tratamento entre as

pessoas, independentemente da sua religião ou crença, deficiência, idade ou orientação

sexual [COM(2008) 426 final, 2008/0140 (CNS)], não ter conseguido obter o

necessário consenso no Conselho11.

Descontado o âmbito de protecção diferenciado facultado a cada um dos

critérios suspeitos, estas Directivas constituem, indubitavelmente, um marco na

definição dos tipos de comportamento discriminatório.

Aceitando o legado da distinção legislativa, mas sobretudo jurisdicional, entre

discriminação directa e discriminação indirecta – isto é, entre distinções que afectam

exclusivamente, seja ostensiva seja encapotadamente, os membros do grupo

desfavorecido e distinções que têm um impacte diferenciado e desvantajoso para um

determinado grupo de pessoas não obstante se escudarem num critério ou prática

aparentemente neutra–, as Directivas mais recentes inovam substancialmente ao

considerar o assédio (e, em matéria de género, o assédio sexual) e as meras instruções

com conteúdo discriminatório, como comportamentos materialmente discriminatórios12.

Com o Tratado de Lisboa, é na Carta dos Direitos Fundamentais da União

Europeia que se têm centrado as maiores atenções, não obstante ser vasta a panóplia de

disposições que, no Tratado da União Europeia (TUE) e no Tratado sobre o

Funcionamento da União Europeia (TFUE), se debruçam sobre os princípios da

igualdade e da não discriminação13.

11 Para uma análise desta proposta de Directiva, que permitiria atenuar a “hierarquia” existente

entre critérios suspeitos e forneceria uma base de descolagem para a revisão das legislações internas, cfr. BELL, Mark - Advancing EU Anti-Discrimination Law: the European Commission’s 2008 Proposal for a New Directive, The Equal Rights Review, Vol. III (2009), p. 7-18. No entanto, já obteve consenso em sede do Conselho a adopção da Decisão-Quadro 2008/913/JAI, de 28 de Novembro de 2008, relativa à luta por via do direito penal contra certas formas e manifestações de racismo e xenofobia, e pela qual os Estados devem criminalizar condutas tais como as de incitação pública à violência ou ao ódio dirigido contra um grupo de pessoas ou um membro de um desses grupos, definido com base na raça, cor da pele, ascendência, religião ou crença religiosa ou origem nacional ou étnica, a difusão, por qualquer meio, de texto, imagens ou outro material com conteúdo racista ou xenófobo e a apologia, negação ou banalização grosseira públicas dos crimes de genocídio ou contra a humanidade e crimes de guerra, quando esses comportamentos forem de natureza a incitar à violência ou ódio contra esse grupo ou os seus membros.

12 Cfr., para uma explanação destes conceitos, HEPPLE, Bob – Equality: the New Legal Framework, Oxford: Hart Publishing, 2011, p. 53 e ss. 13 O princípio da igualdade mencionado no preâmbulo do TUE corresponde a um princípio fundamental que se inspira no “no património cultural, religioso e humanista da Europa” e dá corpo a um dos valores basilares em que repousa a União (artigo 2.º do TUE, que tenta decantar uma ordem de valores europeia) Em consequência, o artigo 3.º, n.º 3 do TUE integra nos grandes objectivos da União o

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A Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, à qual passou a ser

reconhecido valor jurídico idêntico aos Tratados – muito embora os não integre

formalmente (cfr. artigo 6.º, n.º 1 do TUE) –, dedica um Título, o terceiro, à temática da

igualdade. Nesta enquadratanto a dimensão originária e formal deste princípio (a

igualdade perante a lei), como os seus desenvolvimentos subsequentes (o princípio da

não discriminação e a admissibilidade de acções positivas) e, ainda, as suas tendências

mais recentes (o respeito pela diversidade, cultural religiosa e linguística, os direitos das

crianças, o direito das pessoas idosas e a integração das pessoas com deficiência).

Mas já antes do Tratado de Lisboa, a Carta era já uma constante na

jurisprudência do Tribunal de Justiça, sendo mobilizada como um indispensável apoio

heurístico na interpretação e concretização do Direito da União, em paralelo com a

utilização que dela era feita nos considerandos preambulares dos actos de direito

derivado comunitário14. Do mesmo modo era-lhe feita referência na jurisprudência do

Tribunal Europeu dos Direitos do Homem15 e de alguns órgãos jurisdicionais

nacionais16.O que levava que se considerasse que, não obstante o propósito

essencialmente codificador da Carta, a mesma viria a estabilizar o quadro de valorações

respeito pelos princípios da igualdade e da não discriminação, para concluir que “em todas as suas actividades, a União respeita o princípio da igualdade dos seus cidadãos, que beneficiam de igual atenção por parte das suas instituições, órgãos e organismos” (artigo 9.º do TUE). Também os artigos 8.º e 10.º do TFUE consideram como objectivos transversais a todas as competências da Comunidade a igualdade entre os sexos e a não discriminação em razão do sexo, raça ou origem étnica, religião ou crença, deficiência, idade ou orientação sexual. Mas outras são as normas do TFUE das quais se retira expressamente o relevo destes princípios: o artigo 17.º que, na parte sobre não discriminação e cidadania da União, proibe toda e qualquer discriminação em razão da nacionalidade, acompanhado do artigo 18.º que permite a tomar as medidas necessárias para combater a discriminação em razão do sexo, raça ou origem étnica, religião ou crença, deficiência, idade ou orientação sexual; o artigo 45.º, n.º 1, quanto à livre circulação dos trabalhadores, sem rasto de qualquer discriminação em razão da nacionalidade; o artigo 153.º, n.º 1, alínea i) em matéria de política social, no que se refere à igualdade entre homens e mulheres quanto às oportunidades no mercado de trabalho e ao tratamento no trabalho e o artigo 157.º quanto à igualdade de remuneração entre trabalhadores masculinos e femininos. No âmbito da actuação no âmbito internacional da União, há a considerar especialmente o artigo 21.º, n.º 1 do TUE do qual decorre que a acção externa da União “assenta nos princípios que presidiram à sua criação, desenvolvimento e alargamento, e que é seu objectivo promover em todo o mundo”, nos quais integra o princípio da igualdade, e o artigo 214.º, n.º 2, do TFUE relativo ao desenvolvimento de acções humanitárias de acordo com os princípios da imparcialidade, neutralidade e não discriminação.

14 Tendência que se manifestou inicialmente no Acórdão max.mobil Telekommunikation Service GmbH contra Comissão do Tribunal de Primeira Instância, de 30 de Janeiro de 2002, proferido no proc. T-54/99.

15 Inicialmente nos votos de vencido (cfr. Acórdão Hatton e o. contra Reino Unido, de 2 de Outubro de 2001, queixa n.º 36022/97), e rapidamente no corpo das decisões judiciais, na parte dos textos internacionais relevantes (cfr. o Acórdão I. contra Reino Unido, de 11 de Julho de 2002, queixa n.º 25680/94, e o Acórdão Goodwin, da mesma data, queixa n.º 28957/95, relativamente à capacidade matrimonial de pessoas transexuais).

16 Entre nós, cfr. o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 90/01, de 13 de Março de 2001, proferido no processo nº 373-B/99, que apesar de não apreciar a questão da vinculatividade da Carta, conclui apenas que dela não decorre a desnecessidade de constituição de mandatário judicial

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da jurisdição comunitária e a ter um efeito de irradiação nos demais âmbitos de

protecção dos direitos fundamentais17, o que se veio a confirmar.

Actualmente, apesar de a Carta ter passado a integrar o bloco de juridicidade da

União, os limites materiais (veja-se o artigo 52.º da Carta, no seguimento do artigo 6.º,

n.º 1 do TUE) e espaciais (veja-se a posição assumida pelo Reino Unido, Polónia e

República Checa) que lhe são apontadoscolocam entraves a que desempenhe um papel

assaz diverso daquele que anteriormente era já chamada a desempenhar18. Se assim

acontece em geral, pensamos que o domínio emque a Carta dos Direitos Fundamentais

pode desempenhar um papel autónomo e inovadoré, precisamente, o da não

discriminação, não só por o artigo21.º da Carta integraruma enunciação meramente

exemplificativa dos critérios suspeitos, mas igualmente por a sua formulação ser

incondicional, ou seja independente da manifestação unânime de vontade no Conselho

(ao contrário do que sucede no artigo 19.º, n.º 1, do TFUE)19.

Não obstante a ascenção da Carta a um nível legislativo, é de anotar, no âmbito

político, o labor que tem sido desenvolvido pelas Instituições Comunitárias, maxime

pelo Parlamento Europeu, na aprovação de Resoluções, Declarações e outros actos

que,ainda que desprovidas de força vinculativa, têm tido particular relevância no

desenvolvimento do direito anti-discriminatório da União, na medida em que

anteciparam ou contribuiram para a adopção de algumas das suas soluções

legislativasou porque permitiram a criação de consensos necessários para o efeito20.

17 Segundo juízo de RAMOS, R. M. Moura - A Carta dos Direitos Fundamentais da União

Europeia e a protecção dos Direitos Fundamentais, Cuadernos Europeos de Deusto, n.º 25 (2000), p. 161 e ss.

18 De acordo com DENMAN, Daniel - The Charter of Fundamental Rights -, European Human Rights Law Review, n.º 4 (2010), p. 349-359, as provisões da Carta não resultam de um “vacuum”, mas reflectem a maneira pela qual o direito da União sempre protegeu os direitos humanos. Identicamente GIANFRANCESCO, Eduardo - Some Considerations on the juridical value of the Charter of fundamental rights before and after the Lisbon Treaty [em linha] (2008), [consulta em 14 de Fevereiro de 2010], disponível em: http://www.forumcostituzionale.it/site/images/stories/pdf/documenti_forum/paper/0140_gianfrancesco.pdf.

19 Em sentido concordante, SILVEIRA, Alessandra - Implicações nos litígios entre particulares resultantes da horizontalidade dos princípios gerais/direitos fundamentais protegidos pela União Europeia, Cadernos de Direito Privado, n.º 23, Outubro/Dezembro (2010), p. 3-21, para quem a força juridicamente vinculativa da carta reequaciona a ausência de efeitos directo horizontal de normas constantes de directivas que concretizam direitos fundamentais.

20 É esta também a posição de HERVEY, Tamara K. - Putting Europe’s house in order: racism, race discrimination and xenophobia after the Treaty of Amsterdam, in Legal Issues of the Amsterdam Treaty, O’KEEFE, David / TWOMEY, Patrick (eds.), Oxford: Hart Publishing, 1999, p. 339, para quem “Measures of soft law and proposals for future action may become “solutions looking for problems”, and may have the effect of defining the problem in their own terms”.

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Mais recentemente, para promover a visibilidade das políticas da União em

matéria de direitos fundamentais e a monitorização da sua execução, foi instituída, na

esfera administrativa da União, a Agência dos Direitos Fundamentais da União

Europeiae o Instituto Europeu para a Igualdade de Género21, que pretendem servir de

forum e laboratório para o desenvolvimento e concretização de boas práticas nestes

domínios.

Mas é em virtude do trabalho desenvolvido pelo Tribunal de Justiça (antes da

Comunidade e agora da União Europeia) que o princípio da não discriminação mais tem

sido aprofundado e enriquecido. Num primeiro momento, a jurisprudência do Tribunal

centrou-se na protecção das necessidades particulares das mulheres trabalhadoras, em

razão de características que lhes são específicas e incomparáveis, como o denunciam,

entre outros, os acórdãos Marshall e Hofmann22. E foi assim que o tratamento

diferenciado de um trabalhador do sexo feminino em razão da sua gravidez passou a

constituir uma discriminação directa em razão do sexo, não obstante poder não se dever

a uma prática declarada23.Mas foi também desta forma que se passaram a eliminar

diferenciações cujo resultado favorecia tradicionalmente o sexo feminino, o que sucede

em matéria de atribuição de pensões (cfr. os Acórdãos Comissão das Comunidades

Europeias/República Helénica, de 26 de Março de 2009, proc. C-559/07, e Pensions-

versicherungsanstalt/Christine Kleist, de 18 de Novembro de 2010, proc. C-356/09), de

dispensa laboral (Acórdão Pedro Manuel Roca Álvarez, de 30 de Setembro de 2010,

proc. C-104/09) e de prémios de seguro (Acórdão Association belge des

Consommateurs e o. Contra Conselho, de 1 de Março de 2011,proc. C-236/09).

21 Criados respectivamente pelo Regulamento (CE) do Conselho n.º 168/2007 de 15 de Fevereiro

de 2007, e pelo Regulamento (CE) do Parlamento Europeu e do Conselho n.º 1922/2006, de 20 de Dezembro de 2006.

22 Acórdãos M. H. Marshall contra Southampton and South-West Hampshire Area Health Authority (Teaching), de 26 de Fevereiro de 1986, proc. 152/84 e Ulrich Hofmann contre Barmer Ersatzkasse, de 12 de Julho de 1984, proc. 184/83.

23 Cfr. Acórdãos Carole Louise Webb contra EMO Air Cargo (U.K.) Ltd., de 14 de Julho de 1994, proc. C-32/93, Elisabeth Johanna Pacifica Dekker contra Stichting Vermingscentrum voor Jong Volwassenen (VJV-Centrum Plus), de 8 de novembro de 1990, proc. C-177/88, e Dita Danosa/LKB Līzings SIA, de 11 de Novembro de 2010, proc. C-232/09, no qual se considera que a possibilidade de despedimento de um membro da direcção de uma sociedade de capitais sem restrições a pessoas grávidas, é inadmissível quer a pessoa interessada tenha a qualidade de «trabalhadora grávida» na acepção desta directiva 92/85/CEE, quer o não tenha, já que será sempre uma discriminação em razão do sexo, de acordo com a Directiva 76/207/CEE. Dúvidas se colocam, no entanto, sobre a extensão temporal da protecção deferida às mulheres em razão da gravidez, nos casos em que dela resulte uma mais ampla incapacidade para o trabalho (Acórdão Handels - og Kontorfunktionaerernes Forbund i Danmark, (em nome de Birthe Vibeke Hertz) contra Dansk Arbejdsgiverforening, de 8 de Novembro de 1990, proc. C-179/88) ou no caso fracturante da fertilização in vitro (Acórdão Sabine Mayr contra Bäckerei und Konditorei Gerhard Flöckner OHG., de 26 de Fevereiro de 2008, proc. C-506/06).

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41

A estaabordagem directa do princípio da não discriminaçãoo Tribunal agregou a

aplicação dos pressupostos da discriminação indirecta, adoptando uma visão finalista

que dá um novo realce ao momento do resultado (a situação discriminatória), e não

apenas ao momento inicial da diferenciação de tratamento.

Esta temática foi inicialmente aflorada a nível jurisprudencial no acórdão

Defrenne II,mas foi relativamente às situações de trabalho a tempo parcial que foram

dominantemente exploradas as situações de discriminação indirecta. Ao ponto de o

próprio critério trabalho a tempo parcial ser considerado, por alguns, como um critério

autonomamente suspeito24.

Foi também a propósito desta modalidade de discriminação que o Tribunal teve

a oportunidade de desenvolver o seu raciocínio sobre a repartição do ónus da prova, que

valerá genericamente para todos os fenómenos de discriminação. De acordo com o

Tribunal de Justiça, uma vez provada, pela parte demandante, a existência de indícios

de um comportamento discriminatório, incumbirá à parte demandada a prova da

inexistência ou do carácter incerto de tais indícios ou, em alternativa, de que o facto que

a eles se associa não reveste a natureza de prática discriminatória25. Ou seja, assiste à

parte demandada a possibilidade de proceder à prova de que a desvantagem existente se

justifica por um objectivo legítimo e de que os meios utilizados para o atingir obedecem

aos requisitos da adequação, necessidade, de acordo com o princípio da

proporcionalidade26. Nem sempre, porém, se exige que estas justificações sejam

aduzidas com o mesmo grau de intensidade e completude, já que o Tribunal vem uma

24 ELLIS, Evelyn – EU Anti-Discrimination Law, Oxford: Oxford University Press, 2005, p. 29.

Recentemente, cfr. o Acórdão Istituto Nazionale della previdenza soziale (INPS) Tiziana Bruno, Massimo Pettini Daniela Lotti, Clara Matteuci, de 10 de Junho de 2010, proc. apensos C-395/08 e C-396/08.

25 Cfr., por todos, o Acórdão Federação dos empregados de comércio e de escritório alemã contra a Confederação Patronal alemã, em representação da empresa Danfoss, de 17 de Outubro de 1989, proc. 109/88, o Acórdão Drª Pamela Mary Enderby contra Frenchay Health Authority e Secretary of State for Health, de 27 de Outubro de 1993, proc. C-127/92, e o Acórdão Sindicato dos trabalhadores semi-qualificados da Dinamarca contra a Confederação da Indústria dinamarquesa, em representação da Royal Copenhagen, de 31 de Maio de 1995, proc. C-400/93.

Há diferenças, no entanto, entre a demonstração da existência de indícios fortes de uma discriminação directa (que apela, na grande maioria das situações, para uma análise comparativa entre situações individuais) e de uma discriminação indirecta [que apela, em regra, para a mobilização de dados estatísticos ou de outros, que revelem, por exemplo, “uma diferença menos importante mas persistente e relativamente constante durante um longo período entre trabalhadores masculinos e trabalhadores femininos” (Acórdão Regina contra Secretary of State for Employment ex parte: Nicole Seymour-Smith e Laura Perez, de 9 de Fevereiro de 1999, proc. C-167/97)].

26 O marco essencial no que se refere à mobilização do princípio da proporcionalidade em matéria de não discriminação continua ainda hoje a ser o Acórdão Bilka-Kaufhaus GmbH contra Karin Weber von Hartz, de 13 de Maio de 1986, proc. 170/84.

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42

lata margem de apreciação quanto à natureza e modalidades das medidas a implementar

em domínios de política social27.

A aplicação destes conceitos e instrumentos no âmbito da panóplia critérios

suspeitos acolhidos pelo Direito da União Europeia, tem feito o direito anti-

discriminatório desta conhecer muitos avanços, mas também alguns revezes.

No Acórdão P. contra S. e Cornwall County Council, de 30 de Abril de 1996,

(proc. C-13/94), foi instado a decidir se um despedimento baseado numa mudança de

sexo, pode ou não ser considerado como discriminação sexual. Solicitado pelo

Advogado Geral Tesauro a tomar uma decisão que, face ao evoluir do entendimento da

identidade sexual humana, reconhecesse “a irrelevância do factor sexo no que diz

respeito às regras que regem as relações sociais”, entendeu que o direito fundamental a

não ser discriminado, não pode reduzir-se à mera pertença a um ou outro sexo, mas tem

“por finalidade aplicar-se às discriminações que têm a sua origem (...) na mudança de

sexo”.No AcórdãoKB contra National Health Service Pensions Agency, de 7 de Janeiro

de 2004,(proc. C-117/01)avançou ainda mais o Tribunal ao considerar que, apesar de o

direito a casar não estar incluído no leque de competências do direito comunitário, o

facto de este constituir uma condição necessária para o acesso a determinadas

prestações (subsídio de viuvez) e de não ser reconhecido aos transexuais, gerava uma

situação discriminatória.

Contudo, no Acórdão Grant28, o Tribunal assumiu uma política de contenção,

apelando às limitações do direito comunitário no seu estado actual, para não considerar

o tratamento diferenciado dispensado a uma mulher lésbica como discriminatório29.

Mais recentemente, no Acórdão Tadao Maruko, o Tribunal alterou os pressupostos da

sua apreciação, tendo considerado que a não concessão a um parceiro homossexual

sobrevivo de um benefício reconhecido ao conjuge sobrevivo montava numa situação

discriminatória, por ter aceiteque a união de facto, sem ser idêntica ao casamento,

27 Acórdão Comissão das Comunidades Europeias contra Reino da Bélgica, de 7 de Maio de

1991, proc. C-229/89. Para maiores desenvolvimentos, cfr. LOPES, Dulce - Princípio da Não Discriminação em Razão do Sexo na Ordem Jurídica Comunitária, Temas de Integração, N.º 8, 2.º Semestre (1999).

28 Lisa Jacqueline Grant contra South-West Trains Ltd,. de 17 de Fevereiro de 1998, proc. C-249/96.

29 Posição esta que o Tribunal endossou no âmbito das relações de trabalho na União, no Acórdão D. E Suécia contra Conselho, de 13 de Maio de 2001, processos apensos C-122/99 P e C-125/99 P.

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43

coloca as pessoas do mesmo sexo numa situação comparável à dos cônjuges no que

respeita à prestação de sobrevivência em causa no processo principal30.

Relativamente à discriminação em razão da origem étnica e racial, apurou o

Tribunal que o facto de uma entidade patronal declarar, publicamente, que não

contratará trabalhadores assalariados de certa origem étnica ou racial constitui uma

discriminação directa a nível da contratação, dado que tais declarações podem dissuadir

seriamente certos candidatos de apresentarem a sua candidatura. E fê-lo

independentemente de existir, em concreto, uma vítima dessa discriminação, uma vez

que se tratava de uma situação ostensiva de discriminação directa31.

No âmbito da discriminação por incapacidade, depois de um começo

titubeante32, oTribunal de Justiça da União apurou o conceito de discriminaçãopor

associação, reconhecendo, na prática, o papel relativo e relacional que se alia aos

fenómenos discriminatórios. Foi, efectivamente, no Acórdão S. Coleman contra

Attridge Law e Steve Law, de 17 de Julho de 2008 (processo C�303/06), que o Tribunal

considerou que as situações de discriminação directa e de assédio de que é vítima um

trabalhador, que não é portador de deficiência, mas que estão ligadas à deficiência de

um filho ao qual presta o essencial dos cuidados de que o mesmo carece, são

irremediavelmente discriminatórias33.

Mas é no âmbito da discriminação em razão da idade que maiores avanços se

têm verificado. No Acórdão Mangoldficou expresso que o direito da União e,

designadamente, o artigo 6.°, n.° 1, da Directiva 2000/78/CE, deveriam ser

interpretados no sentido de que se opõem a uma regulamentação nacional que autoriza,

sem restrições,a celebração de contratos de trabalho a termo, quando o trabalhador

30 Acórdão Tadao Maruko contra Versorgungsanstalt der deutschen Bühnen, de 1 de Abril de

2008, proc. C�267/06. Para maiores desenvolvimentos cfr. o comentário a este Acórdão por TOBLER, Christa e WAALDIJK, Kees - Common Market Law Review, Vol. 46 (2009), p. 723-746. Espera-se, actualmente, uma decisão no processo C-147/08, Jürgen Römer contra Freie und Hansestadt Hamburg, tendo-se já o Advogado Geral NIILO JÄÄSKINEN pronunciado pela existência de discriminação em razão da orientação sexual também neste caso.

31 Acórdão Centrum voor gelijkheid van kansen en voor racismebestrijding contra Firma Feryn NV, de 10 de Julho de 2008, proc. C�54/07. Ainda assim, o Tribunal de Justiça admitiu, um pouco ironicamente, a possibilidade de justificação de tal prática discriminatória, posto que a empresa demonstrasse que a prática real de contratação da empresa não corresponde a essas declarações.

32 No Acórdão Chacón Navas contra Eurest Colectividades SA, de 11 de Julho de 2006, proc. C-13/05, o Tribunal considerou que uma pessoa que foi despedida pela sua entidade patronal exclusivamente por motivo de doença não está abrangida pelo quadro geral estabelecido com vista a lutar contra a discriminação com base em deficiência pela Directiva 2000/78, uma vez que se trata de conceitos diversos.

33 Para maiores desenvolvimentos cfr. o comentário a este Acórdão por WADDINGTON, Lisa - Common Market Law Review, Vol. 46 (2009), p. 665-681.

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44

tenha atingido a idade de 52 anos. Deste acórdão resultaram duas indicações preciosas

sobre o relevo crescente do direito anti-discriminatório da União: por um lado, foi

aplicado um teste de justificação estrito às situações de discriminação em razão da

idade, não obstante o enraizamento destas distinções no mercado de trabalho; por outro,

foi decidido que o não esgotamento do prazo de transposição da Directiva 2000/78/CE,

não prejudica a aplicação do princípio da não discriminação, pois este encontra a sua

origem em diversos instrumentos internacionais e nas tradições constitucionais comuns

aos Estados�Membros34.

Estas indicações tiveram a sua epítome no AcórdãoKücükdeveci35, no qual o

Tribunal considerou que um regime jurídico que, para efeitos de determinação do prazo

do aviso prévio de despedimento, não contabiliza o tempo de trabalho prestado pelo

trabalhador antes de este completar 25 anos de idade, viola a proibição comunitária da

discriminação em razão da idade. De novo, considerou que esta proibição se funda num

princípio geral do direito da União, de que a Directiva é uma mera concretização,

apelando expressamente para a Carta e para o seu valor jurídico à luz dos Tratados. O

que significa que o crivo decisivo do princípio da igualdade reside no artigo 6.º do TUE,

isto é, nos critérios e instrumentos de decantação dos princípios gerais de direito da

União, e não nos instrumentos de direito derivado que os concretizem36.

34 Acórdão Werner Mangold contra Rüdiger Helm, de 22 de Novembro de 2005, proc.

C�144/04. Cfr. SCHMIDT, Marlene - The Principle of Non-discrimination in Respect of Age: Dimensions of the ECJ’s Mangold Judgment, German Law Journal [em linha] Vol. 7, n.º 5 (2005), p. 505-524 [consulta em 10 de Janeiro de 2011], disponível no endereço http://www.germanlawjournal.com/index.php?pageID=11&artID=728. Não obstante as reacções levantadas por esta Decisão, o Tribunal Constitucional Alemão pronunciou-se já no sentido de que o mesmo não foi além das competências reconhecidas à União (BVerfG, 2 BvR 2661/06 vom 6.7.2010, Absatz-Nr. (1 - 116), disponível no endereço: http://www.bundesverfassungsgericht.de/entscheidungen/rs20100706_2bvr266106.html, ainda que tenha consequências visíveis na definição das políticas públicas estaduais

35 Acórdão Seda Kücükdeveci contra Swedex GmbH & Co. KG, de 19 de Janeiro de 2010, proc. C-555/07. Entre o Acórdão Mangold e este Acórdão Kücükdeveci, a posição assumida pelo Tribunal foi de alguma cautela, ao admitir uma ampla margem de apreciação dos Estados em matéria de política social no que se refere às motivações de disposições diferenciadoras [cfr. Acórdão do Félix Palacios de la Villa contra Corte fiel Servicios SA, de 16 de Outubro de 2007, proc. C-411/05 e Acórdão The Queen, a pedido de: The Incorporated Trustees of the National Council on Ageing (Age Concern England) contra Secretary of State for Business, Enterprise and Regulatory Reform, de 5 de Março de 2009, proc. C�388/07]. Ainda assim, David Hütter contra Technische Universität Graz, no Acórdão de 18 de Junho de 2009, proc. C-88/08, não obstante se continuar a reconhecer aquela margem de apreciação, o Tribunal entrou na análise das medidas diferenciadoras, considerando, em concreto, inadequada e excessiva a não contabilização da experiência profissional adquirida antes dos 18 anos de idade para efeitos da determinação do escalão em que são colocados os trabalhadores da função pública de um Estado�Membro.

36 De acordo com este artigo e com jurisprudência do Tribunal de Justiça, os direitos fundamentais são parte integrante dos princípios gerais de direito, conceito que se inspira nas tradições constitucionais comuns aos Estados-Membros e nas indicações fornecidas pelos instrumentos

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45

Mas a esta consideração junta o Tribunal um novo nível de análise: o da

determinação dos efeitos das normas comunitárias. É que, se continua a recusar, a

outrance, o efeito directo horizontal das Directivas, não deixa de reconhecer que, no

âmbito de um “litígio entre particulares, cabe ao órgão jurisdicional nacional garantir a

observância do princípio da não discriminação em razão da idade, como concretizado

pela Directiva 2000/78, devendo afastar, quando necessário, as disposições contrárias da

legislação nacional”. Pronuncia-se, assim, pela eficácia horizontal do princípio da

igualdade, enquanto princípio geral da União, mas, na medida em que este princípio,

pela sua indeterminação, pode conhecer múltiplas concretizações, liga-o à específica

densificação legislativa que conheceu na Directiva pertinente. Resumidamente, na

apreciação de Alessandra SILVEIRA, “atribui-se à Directiva 2000/78 uma invocabilidade

reforçada nos litígios entre particulares”, sendo, em última análise “o conteúdo da

directiva a determinar a inaplicabilidade do direito nacional incompatível com o

princípio geral que ela concretiza”37.

Esta menção aos critérios suspeitos não ficaria completa sem uma referência a

uma cláusula anti-discriminatória que acompanha existencialmente o direito da União

Europeia: a não discriminação em razão da nacionalidade.

Este critério suspeito tem no direito da União uma configuração específica, uma

vez que, ao contrário dos demais critérios analisados cuja função includente é visível

(por se aplicarem a todas as pessoas que sejam submetidas a situações de

discriminação), assenta numa diferenciação de princípio: entre os nacionais e os outros

(os não nacionais). A nacionalidade de um dos países da União e, bem assim, o estatuto

que se lhe encontra acoplado, o da Cidadania da União Europeia, são inerentemente

internacionais relativos à protecção dos direitos do homem, em especial pela Convenção Europeia dos Direitos do Homem (cfr. designadamente, os Acórdãos ERT de 18 de Junho de 1991, proc. C�260/89, Roquette Frères, de 22 de Outubro de 2002, proc. C�94/00). Para maiores desenvolvimentos, cfr. KELLER, Hellen e SCHNELL, Christina - International Human Rights Standards in the EU – a Tightrope Walk between Reception and Parochialism?, Schweizerische Zeitschrift fuer internationales und europaeisches Recht, Ano 20, N.º 1, 2010, p. 3-37.

Esta referência ganhou, com o Tratado de Lisboa, foros de lei, já que, de acordo com a Carta dos Direitos Fundamentais da União (artigo 52.º, n.º 3), sempre que a ela contenha direitos correspondentes aos direitos garantidos pela Convenção Europeia, o sentido e o âmbito desses direitos são iguais aos conferidos por essa Convenção. PANUNZIO, S. P. - I diritti fondamentali e le Corti in Europa, Editore Jovene, 2005, p. 73-74, considera que aquele protocolo e a Carta trouxeram consigo uma aproximação sensível entre o princípio da não discriminação em ambas as sedes.

37 SILVEIRA, Alessandra - “Implicações…”, p. 6 (nota de rodapé 19). Para maiores desenvolvimentos, cfr. WIESBROCK, Anja - Case Note: Case C-555/07, Kücükdeveci v. Swedex, Judgment of the Court (Grand Chamber) of 19 January 2010, German Law Journal, [em linha], Vol. 11, n.º 5, 2010, p. 539-549 [consulta em 10 de Janeiro de 2011], disponível no endereço http://www.germanlawjournal.com/index.php?pageID=11&artID=1255.

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46

exclusivos e excludentes, pois colocam à margem do gozo de um conjunto amplo de

direitos todos aqueles que não ostentam determinadas características pessoais

(precisamente aquelas que determinam a aquisição do estatuto de cidadania). O que

significa que a análise de alegações de discriminação não deverá ser procurada no

binómio nacionais/não nacionais38, mas antes no cotejo da posição entre nacionais de

um Estado-membro e nacionais de outro ou dos demais Estados-membros.

E é neste âmbito que o princípio da não discriminação, potenciado em particular

pelo estatuto fundamental da Cidadania da União, tem vindo a conhecer concretizações

de relevo, seja pelo alargamento do âmbito dos direitos reconhecidos pelo Tratado39,

seja pelo reconhecimento dos mesmos a um leque de sujeitos diverso do inicialmente

pensado40. No entanto, tal não inviabiliza que, em determinadas circunstâncias, o gozo

de direitos por nacionais seja feito depender do critério adicional da residência no país

de acolhimento41.

Quanto à adopção de acções positivas, isto é, de medidas que visam, de forma

activa, promover uma efectiva igualdade de oportunidades, o Tribunal de Justiça veio,

por várias vezes, cimentar a sua posição, admitindo os sistemas de preferências que, em

igualdade de qualificações, estabelecem uma prevalência que beneficie os membros do

grupo sub-representado, mas desde que esta não seja absoluta e incondicional,

38 Não obstante, a relação entre nacionais e não nacionais que detenham especiais relações com a

União Europeia é de equiparação, o mais lata possível, dos direitos reconhecidos aos nacionais (cfr. conclusões do Conselho Europeu de Tampere de 15 e 16 de Outubro de 1999 e Directiva n.º 2003/109/CE, do Conselho, de 25 de Novembro de 2003, relativa ao estatuto dos nacionais de países terceiros que são residentes de longa duração). Ainda assim, há alguns condicionamentos ou limitações relevantes a essa tendencial equiparação, desde logo a possibilidade de os Estados-membros poderem ainda exigir o preenchimento de condições de integração de acordo com o direito nacional, a possibilidade de limitação de direitos sociais a um padrão mínimo e a ausência de direitos de participação política ao nível local e comunitário por parte dos não nacionais. Para uma análise, com particular interesse, destas questões, cfr. MARTINS, Ana Maria Guerra - A Igualdade e a Não Discriminação dos Nacionais de Estados Terceiros Legalmente Residentes na União Europeia – Da Origem na Integração Económica ao Fundamento da Dignidade do Ser Humano, Coimbra: Almedina, 2010.

39 Cfr. os Acórdãos Martinez Sala contra Freistaat Bayern, de 12 de Maio de 1998, proc. C-85/96, e Grzelczyk contra Centre Public d’Aide Sociale d’Ottignes-Louvain-la-Neuve, de 20 de Setembro de 2001, proc. C-184/99.

40 Cfr. os Acórdãos Baumbast e R contra Secretary of State for the Home Department, de 17 de Setembro de 2002, proc. C-413/99, e Kunqian Catherine Zhu e Man Lavette Chen contra Secretary of State for the Home Department, de 19 de Outubro de 2004, proc. C-200/02.

41 Acórdão Michel Trojani contra Centre public d'aide sociale de Bruxelles (CPAS), de 7 de Setembro de 2004, proc. C-456/02, e Acórdão Marc Michel Josemans contra Burgemeester van Maastricht, 16 de Dezembro de 2010, proc. C�137/09, no qual o Tribunal considerou que o proprietário de uma coffeeshop, no qual se comercializam estupefacientes não pode invocar as liberdades comunitárias e o princípio da não discriminação da nacionalidade para se opor a uma regulamentação municipal, que proíbe a admissão de pessoas não residentes nos Países Baixos nesses estabelecimentos, uma vez que esta condição é adequada e necessária para a obtenção do desiderato de luta contra o turismo da droga. Cfr. WHITE, Robin CA - Free Movement, Equal Tratment and Citizenship of the Union, International and Comparative Law Quarterly, Vol. 54, Outubro (2005), p. 885-906.

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47

permitindo a tomada em consideração de critérios particulares e pessoais de todos os

candidatos42.Já quanto aos apoios de ordem social acordados pelos Estados membros,

devem estes ter em consideração as exigências decorrentes do princípio da igualdade,

ainda que não necessariamente de forma paritária43.

b.No Conselho da Europa

O Conselho da Europa tem como missão cimeira a promoção do respeito pelos

Direitos do Homem, inclusive o direito à não discriminação. O aparato que o Conselho

da Europa tem predisposto para o efeito é assinalável, pois, para além da actividade do

Comité de Ministros e da Assembleia Parlamentar, há que ter em linha de conta o labor

do Comissário para os Direitos Humanos e o da Comissão Europeia contra o Racismo e

a Intolerância, cujas Recomendações têm contribuido para a conformação do direito

anti-discriminatório na Europa.

O papel decisivo neste domínio, como em muitos outros, tem, no entanto, cabido

à Convenção Europeia dos Direitos do Homem e ao respectivo Tribunal, sendo sobre

estes que doravante nos debruçaremos44.

Dispõe o artigo 14.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem que “o

gozo dos direitos e liberdades reconhecidos na presente Convenção deve ser

assegurado sem quaisquer distinções, tais como as fundadas no sexo, raça, cor, língua,

religião, opiniões políticas ou outras, a origem nacional ou social, a pertença a uma

minoria nacional, a riqueza, o nascimento ou qualquer outra situação”.

42 Neste sentido, cfr. os Acórdãos Eckhard Kalanke contra Freie Hansestadt Bremen, de 17 de

Outubro de 1995, proc. C-450/93, Helmut Marschall contra Land Nordrhein-Westfalen, de 11 de Novembro de 1997, proc. C-409/95, Katharina Abrahamsson e o. contra Elisabet Forelqvist, de 6 de Julho de 2000, proc. C-407/98, e Badeck e. o. contra Hessische Ministerpräsident, Landesanwalt beim Staatsgerichtshof des Landes Hessen, de 28 de Março de 2000, proc. C-158/97. Contestando uma previsível transposição desta jurisprudência para os outros critérios de discriminação, WADDINGTON, Lisa

e BELL, Mark - More equal than others: distinguishing European Union Equality Directives, Common Market Law Review, Vol. 38, N,º 3, (2001) p. 603, notam que poderiam ficar fora do critério contruido pelo Tribunal medidas existentes em vários Estados-membros exclusivamente destinadas a pessoas de uma origem étnica específica, ou que estabelecem quotas obrigatórias para pessoas com deficiências. No entanto, algumas áreas privilegiadas para o estabelecimento de quotas – como a política – encontram-se excluídas do âmbito do direito da União [cfr. KAPOTAS, Panos - Gender Quotas in Politics, European Law Journal, Vol. 16, n.º 1, (2010), p. 29-46].

43 No Acórdão Dioikitiko Efeteio Thessalonikis contra Grécia, de 16 de Setembro de 2010, proc. C-149/10, entendeu o Tribunal que este princípio impõe ao legislador nacional que ponha em prática um regime de licença parental que, em função da situação existente no Estado-Membro em causa, assegure aos pais de gémeos um tratamento que tenha devidamente em conta as suas necessidades particulares, mas sem que tenha de reconhecer um número de licenças parentais igual ao número de filhos nascidos.

44 Para maiores desenvolvimentos sobre a juriprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, cfr. o nosso artigo - A jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem vista à luz do Princípio da Não Discriminação, Revista Julgar, n.º 14 (2011), no prelo.

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48

Tendo como pano de fundo o conceito plurisignificativo de igualdade, que,

numa teorização genericamente aceite, tem vindo a ser desdobrado em três dimensões

distintas – a proibição do arbítrio, a obrigação de diferenciação e a proibição de

discriminação – situa-se a Convenção no âmbito desta última, precisamente aquela que,

em face da gravidade e insidiosidade dos critérios suspeitos, coloca em causa a própria

dignidade da pessoa humana. Dentro do mecanismo disposto na Convenção, o artigo

14.º não tem existência independente, na medida em que deve ligar-se a um dos direitos

ou liberdades previstos na Convenção ou seus Protocolos, ainda que lhes imprima um

específico e insubstituível sentido normativo45.Do mesmo modo, quando seja alegada a

violação de um direito substancial da Convenção, individualmente ou em ligação com o

artigo 14.º, entende tradicionalmente o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem que

não tem de considerar o caso de acordo com o disposto no artigo 14.º, excepto se a

situação for de clara desigualdade de tratamento [cfr. Acórdão Dudgeon c. Reino Unido,

de 22 de Outubro de 1981 (queixa n.º 7525/76)] ou quando o pedido se referir,

sobretudo, a uma situação de tratamento discriminatório [cfr. Acórdão Brauer c.

Alemanha, de 28 de Maio de 2009 (queixa n.º 3545/04)].

Estas limitações não têm impedido, porém, que o Tribunal Europeu dos Direitos

do Homem tenha vindo, na opinião de Jean-François RENUCCI, que compartilhamos, a

transformar a obrigação negativa de não discriminar que impende sobre os Estados,

numa obrigação positiva e forte, de assegurar o respeito pelo princípio da igualdade nas

várias esferas da vida social46.

Este trajecto jurisprudencial encontrou no Protocolo n.º 12 um aliado

potencialmente precioso, ainda que, por ora, pouco operativo47. Este Protocolo

representa, em definitivo, a autonomização dos princípio da igualdade e da não

45 Tal não impede que o artigo 14.º possa ser mobilizado isoladamente para firmar uma violação

à Convenção Europeia dos Direitos do Homem. Basta, para o efeito, que o reconhecimento do direito em causa não seja exigido pela Convenção (isto é, que não se inclua no âmbito normativo de um dos direitos ou liberdades nela previstos) mas que, tendo sido reconhecido pelo Estado no seu direito interno, tal tenha ocorrido em moldes discriminatórios, como, aliás, foi decidido já decidido pelo Tribunal, no Acórdão Regime Linguístico do Ensino na Bélgica, de 23 de Julho de 1968 (queixas n.º 1474/62, 1677/62, 1691/62, 1769/63, 1994/63 e 2126/64)

46 RENUCCI, Jean-François - Droit Européen des Droits de L’Homme – Contentieux Européen, 4.ª ed., Paris: LGDJ, 2010, p. 84.

47 Este Protocolo apenas foi ratificado por 17 Estados (muitos deles Partes Contratantes recentes do Conselho da Europa), estando apenas em vigor nestes. Cfr. lista disponível em http://conventions.coe.int/Treaty/Commun/ChercheSig.asp?NT=177&CM=8&DF=10/31/2008&CL=ENG, acesso em 5 de Fevereiro de 2011. Portugal assinou o Protocolo n.º 12, mas ainda não procedeu à sua ratificação. O primeiro Acórdão tomado com base no protocolo data de 2009 [cfr. Acórdão Sejdic e Finci contra Bosnia e Herzgovina, de 22 de Dezembro de 2009 (queixas n.º 27996/06 e 34836/06)].

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49

discriminação no acervo da Convenção, de modo a permitir o seu escrutínio

relativamente a direitos ou liberdades reconhecidas no direito interno dos Estados-

membros, mas que vão além do âmbito normativo da Convenção.

Centrando-nos no Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, a evolução da sua

jurisprudência tem vindo a fazer-se, decisivamente, no sentido da ampliação das

virtualidades do princípio da não discriminação e da individualização do fenómeno,

menos óbvio, mas frequente, da discriminação indirecta.

Podemos mesmo situar os primórdios desta individualização no Acórdão Hugh

Jordan contra Reino Unido, de 4 de Maio de 2001 (queixa n.º 24746/94), nos termos do

qual “where a general policy or measure has disproportionately prejudicial effects on a

particular group, it is not excluded that this may be considered as discriminatory

notwithstanding that it is not specifically aimed or directed at that group.”48. Mas foi no

Acórdão Nachovae. o. contra Bulgária, de6 de Julho de 2005 (queixas n.º 43577/98 e

43579/98) e em acórdãos posteriores tirados na sequência da comportamentos e

regulamentações discriminatórias em função da origem étnica, que o Tribunal

desenvolveuo seu entendimento do fenómeno da discriminação indirecta.

Desta evolução resultaram diferenças sensíveis no modo pelo qual o Tribunal

analisa os fenómenos de discriminação, uma vez que a detecção de uma eventual

diferenciação de tratamento deixa de repousar tão-só na análise comparativa concreta

entre dois indivíduos que se encontrem em situações relevantemente similares49, para

passar a referir-se a uma comparação entre grupos. Desta comparação, avançada pelo

queixoso, deve resultar, para que se afirme, prima facie, uma actuação discriminatória,

que a disposição, critério ou prática aparentemente neutra afecta, em regra, uma

proporção consideravelmente mais elevada de pessoas pertencentes a um determinado

grupo que ostenta ou comunga determinadas características (suspeitas). No entanto, não

é imprescindível que esta afectação seja demonstrada por evidências estatísticas, tendo

o Tribunal passado a admitir outros elementos de prova para afirmar situações de

discriminação indirecta, sem, contudo, os individualizar [cfr. Acórdão ORŠUŠ e. o.

contra Croácia, de 16 de Março de 2010 (queixa n.º 15766/03)].

Afirmada uma situação de discriminação – directa ou indirecta – compete à

entidade demandada a adução de uma justificação: a de que a medida que, numa

48 Cfr., na mesma linha, o Acórdão Hoogendjik contra os Países Baixos, de 6 de Janeiro de 2005

(queixa n.º 58641/00). 49 Cfr. o Acórdão Fredin contra Suécia, de 22 de Janeiro de 1991 (29/1989/189/249) e o

Acórdão Paulik contra Eslováquia, de 10 de Outubro de 2006 (queixa n.º 10699/05).

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50

primeira linha, se apresenta como discriminatória, prossegue um fim legítimo,

respeitando umarazoável relação de proporcionalidadecom aquele fim50.

Ora, se o Tribunal censura apenas os fins eleitos pelos Estados em situações de

clara irracionalidade ou insidiosidade das medidas adoptadas51 – reconhecendo, nas

demais situações, a licitude da definição mais ou menos ampla, pelos Estados, das suas

próprias políticas –, já coloca um nível de exigência mais elevado na aferição da

proporcionalidade das medidas adoptadas pelos Estados.

Efectivamente, situações há em que o Tribunal sopesa, de forma completa das

circunstâncias de facto e de direito nela co-envolvidas, pronunciando-se pela

desnecessidade da medida em face do fim legítimo prosseguido [cfr., recentemente, o

Acórdão Glor c. Suíça, de 30 de Abril de 2009 (queixa n.º 13444/04), em que o

Tribunal censurou o Estado Suíço, por não prever alternativas ao serviço militar ou civil

no caso de pessoas com um grau de incapacidade elevado] ou pela ausência de uma

“justa medida” ou de adequada ponderação entre a acção adoptada e o direito violado

[cfr., também recentemente, o Acórdão Alajos Kiss c. Hungria, de 20 de Maio de 2010

(queixa n.º 38832/06), no qual o Tribunal considerou que a indução automática da

incapacidade de voto de uma situação de tutela legal violava o direito à não

discriminação, em articulação com o artigo 3.º do Protocolo n.º 1 à Convenção, por o

Estado Húngaro não ter demonstado que ponderou os interesses em presença e analisou

a proporcionalidade daquela restrição legal].

Este núcleo de situações em que há lugar a uma intervenção vigorosa do

Tribunal correspondem, em regra, àquelas em que um juízo estrito de proporcionalidade

é demandado tanto em razão da particular natureza insidiosa dos critérios suspeitos

(designadamente o género, a origem étnica, a nacionalidade, o estatuto familiar e

marital, a orientação sexual e a incapacidade) como em função da elevada

fundamentalidade e grau de restrição dos direitos violados, como ainda em razão do

50 Em consequência, na falta de prova trazida pelo Estado demandado, considerar-se-á assente a existência de uma situação discriminatória, como expresso no Acórdão Stoica contra Roménia, de 4 de Março de 2008 (queixa n.º 42722/02), segundo o qual, em face de uma situação de maus tratos relativamente a uma criança de etnia Roma, ocorridos já na presença da polícia, o Tribunal considerou que cumpria às autoridades provar que o incidente foi racialmente neutral, o que não foi feito no caso.

51 Cfr. o Acórdão Chassagnou e. o. contra França, de 29 de Abril de 1999 (queixas n.º 25088/94, 28331/95 e 28443/95) e, em particular, o Acórdão Timishev c. Rússia, de 13 de Dezembro de 2005 (queixa n.º 55762/00), no qual se discutia a proibição de entrada de um nacional checheno numa República da Federação Russa por um determinado checkpoint, motivando-se os oficiais de fronteira na existência de uma instrução oral para o efeito. No que se refere à justificação do tratamento discriminatório a que o queixoso foi votado, considerou o Tribunal não ter sido este fundado na legislação policial, encontrando-se desprovido de base legal, pelo que se tornava desnecessário apurar sequer se a restrição era necessária.

Page 20: Principais contributos da União Europeia e do Conselho da Europa

51

domínio de política social e económica que está em causa (normalmente, um domínio

em que não sejam tocados os fundamentos essenciais do Estado e da sociedade)52.

Noutras situações, porém, a averiguação do princípio da proporcionalidade dá

lugar a um juízo de censura pouco preciso e, normalmente, não conclusivo do Tribunal,

que, ao reconhecer uma ampla margem de apreciação aos Estados, controlará apenas

situações nas quais a medida carece de qualquer fundamento razoável [cfr. o

AcórdãoRasmussen contra Dinamarca, de 28 de Novembro de 1984, (queixa n.º

8777/79), em que o Tribunal entendeu que uma medida que vedava apenas ao marido a

contestação da filiação de uma criança nascida na constância do casamento não era

desproporcional, por ainda se inscrever na “margem de apreciação” dos Estados-

membros, margem essa variável em função de uma série de circunstâncias, e por se

referir a um domínio controverso onde não havia uma linha definida comum nos vários

Estados-membros].

Especificamente quanto aos critérios suspeitos sobre os quais se tem debruçado

o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, assinale-se que os mesmos não se cingem

aos expressamente referidos no artigo 14.º da Convenção (e reproduzidos no artigo 1.º,

n.º 1, do Protocolo n.º 12). O Tribunal tem, efectivamente, considerado discriminatórias

outras medidas ou práticas que têm como elementos desencadeadores critérios não

tipificados (em regra, nem sequer cogitados aquando da adopção da Convenção), tais

como os do estatuto familiar e matrimonial, a orientação sexual e a incapacidade53.

Mais, tem considerado que estes critérios suspeitos são merecedores de um grau

de escrutínio apertado, não obstante algumas hesitações em matéria de orientação

52 GERARDS, Janette - Discrimination Grounds, in Materials And Text On National, Supranational And International Non-Discrimination Law - Ius Commune Casebooks for the Common Law of Europe, SCHIEK, Dagmar/ WADDINGTON, Lisa/ BELL, Mark (eds.), Oxford: Hart Publishing, 2007, p. 38-39.

53 Há, no entanto, outros critérios relevantes, tais como a residência [Acórdão Darby contra Suécia, de 24 de Setembro de 1990 (queixa n.º 11581/85), no que se refere a reduções de impostos e à isenção de pagamento de taxas eclesiásticas aplicáveis apenas aos residentes nesse país], e a situação profissional [Acórdão Sidabras e Džiautas contra Lituânia, de 27 de Julho de 2004 (queixas n.º 55480/00 e 59330/00), que respeita à impossibilidade de trabalhar no sector público e em vários sectores público-privados de 1999 a 2009, por os requerentes terem sido ex-agentes do KGB]. Relativamente ao estatuto familiar e matrimonial, já no Acórdão Marckx contra Bélgica, de 13 de Junho de 1979 (queixa n.º 6833/74), no qual se contestavam disposições do Código Civil Belga sobre o modo de estabelecimento da filiação “ilegítima”, o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem entendeu que o estatuto familiar era um critério suspeito e que o artigo 8.º da Convenção dizia respeito tanto às famílias legítimas como ilegítimas. Este entendimento do Tribunal foi confirmado em múltiplas situações, tendo este apelado para o carácter evolutivo dos direitos reconhecidos na Convenção e para o facto de esta ser um “instrumento vivo” que deve ser interpretado de forma actualista, para, deste modo, excluir a relevância jurídica das diferenciações, rectius discriminações, fundadas na distinção entre filhos legítimos e ilegítimos, entre filhos biológicos e adoptados ou em distinções similares.

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52

sexual, quanto à possibilidade de adopção por homossexuaise ao binómio união de facto

homossexual/casamento54.

No que diz respeito aos critérios previstos no artigo 14.º, o Tribunal Europeu dos

Direitos do Homem tem-se vindo a debruçar amiúde sobre as distinções motivadas pelo

factor sexo. Um dos marcos iniciais nesta matéria é representado pelo Acórdão

Abdulazis, Cabales e Balkandi contra Reino Unido, de 28 de Maio de 1985 (queixas n.º

9214/80, 9473/81 e 9474/81), no qual a privação ou ameaça de privação do convívio de

estrangeiras legalmente residentes nesse país com os seus companheiros não britânicos

foi considerada discriminatória em razão do sexo, tendo em vista o respeito pela vida

familiar (artigos 14.º e 8.º). Mascedo a jurisprudência do Tribunal Europeu cobriu novas

dimensões da vida em sociedade, tendo vindo a concluir paulatinamente pela

ilegitimidade, em regra, da reserva de prestações sociais a sujeitos de apenas um dos

sexos (muitas vezes o feminino)55 e pela impossibilidade de manutenção das limitações

legais que afectam os transexuais56.Porém, no Acórdão Stec e o. contra Reino Unido, de

12 de Abril de 2006 (queixas n.º 65731/01 e 65900/01), o Tribunal, não obstante a

evolução ocorrida nas condições sociais e económicas, continuou a considerar

admissível a manutenção de “medidas protectoras” que fixam uma idade diferenciada

de reforma e de aquisição de pensões aos homens e às mulheres.

54 Quanto à adopção, é relevante o cotejo da evolução jurisprudencial ocorrida entre os

Acórdãos Fretté contra França, de 22 de Fevereiro de 2002 (queixa n.º 36515/97), no qual o Tribunal considerou não violar o artigo 8.º da Convenção (por ligação com o artigo 14.º), a rejeição de um pedido de adopção por uma pessoa homossexual, e o acórdão E.B. c. França de 22 de Janeiro de 2008 (queixa n.º 43546/02), no qual chegou a uma solução inversa, tendo considerado discriminatória a própria consideração e menção da orientação sexual como fundamento para a decisão de não adopção. Quanto ao segundo núcleo de questões, o Tribunal considera em princípio discriminatório denegar aos casais homosexuais, por esse facto, os privilégios e direitos legalmente reconhecidos às pessoas casadas, uma vez que, apesar de a defesa do modelo de família tradicional ser um objectivo legítimo, não deixa de ter de se analisar se os meios para o conseguir são proporcionais, sobretudo em matérias em que, como a presente, a margem de apreciação dos estados deve ser reduzida [acórdão Karner contra Áustria, de 24 de Outubro de 2003 (queixa n.º 40016/98)]. No entanto, idêntico raciocínio não se aplica à possibilidade de contrair casamento, tendo o Tribunal reconhecido, neste domínio específico, que as enraízadas conotações sociais e culturais do instituto do casamento, que diferem de país para país, justificam a manutenção de uma ampla margem de apreciação estatal e, bem assim, impedem a ingerência da Convenção e do seu Tribunal [Acórdão Schalk e Kopf contra Áustria, de 24 de Junho de 2010 (queixa n.º 30141/04)].

55 Cfr., entre outros, o Acórdão Willis contra Reino Unido (queixa n.º 36042/97), que confirma que o não auferimento, por parte de um homem viúvo, de benefícios financeiros equivalentes aos que seriam pagos a uma viúva nas mesmas condições, equivalia a uma situação discriminatória, por a recusa de atribuição dos benefícios solicitados se basear exclusivamente no facto de o requente ser um homem.

56 Cfr. o Acórdão Goodwin contra Reino Unido, de 11 de Julho de 2002 (queixa n.º 28957/95), no qual o Tribunal reverte a linha jurisprudencial por si acolhida inicialmenre no Acórdão Rees contra Reino Unido, de 17 de Outubro de 1986 (queixa n.º 9532/81).

Page 22: Principais contributos da União Europeia e do Conselho da Europa

53

Quanto às medidas diferenciadoras ligadas à origem étnica – conceito amplo e

rico que integra e modela a noção de raça prevista no artigo 14.º –, o Tribunal, em

estreita ligação com a Comissão Europeia contra o Racismo e a Intolerância, em cujas

Recomendações e Relatórios repousa, considera que as mesmas merecem redobrada

atenção e combate e, bem assim, um grau mais elevado de escrutínio judicial [cfr.

Acórdão Timishevcontra Rússia, de 13 de Dezembro de 2005 (queixa n.º 55762/00)].

Uma das áreas em que a jurisprudência do Tribunal tem sido mais profícua tem sido o

do direito ao ensino, no âmbito do qual o Tribunal tem considerado que a criação de

escolas ou turmas especiais para a colocação dos alunos Roma é discriminatória, salvo

se acompanhada de uma justificação muito ponderosa que tenha como objectivo a

promoção efectiva da integração dos mesmos57.

Por seu turno, a origem nacional, apesar de tocar no núcleo essencial das

atribuições essenciais dos Estados, não deixa de ser temperada por especiais exigências

provindas do Direito Europeu dos Direitos do Homem, tais como as dispostas no

AcórdãoGaygusuz contra Áustria, de 16 de Setembro de 1996 (queixa n.º 17371/90).

Estava em causa, neste aresto, a apreciação de uma ajuda de emergência apenas

acessível a quem tivesse nacionalidade austríaca. O Governo austríaco entendia que o

complemento de emergência não cabia no âmbito do Protocolo n.º 1, apesar de apenas

ser pago a quem tivesse contribuído para os sistemas de segurança social, fundando-se

numa responsabilidade especial do Estado para com os seus nacionais, de modo a

assegurar-lhes condições mínimas de existência. O Tribunal, por seu turno, considerou

que, apesar da margem de apreciação de que gozavam os Estados para determinar se

havia justificação para o tratamento desigualitário, esta apenas poderia repousar em

motivos suficientemente ponderosos para justificar uma diferença baseada

exclusivamente na nacionalidade, o que não sucedia no caso58.

As diferenciações fundadas em motivos religiosos têm, ao contrário das demais,

sido submetidas a critérios de controlo díspares.Acolhendo a apreciação feita por

Vincent COUSSIRAT-COUSTERE, a jurisprudência do Tribunal é atravessada por

57 Cfr. os Acórdãos D. H. e o. c. República Checa, de 13 de Novembro de 2007 (queixa n.º

57325/00), Sampanis e outros contra Grécia, de 5 de Junho de 2008 (queixa n.º 32526/05) e ORŠUŠ e. o. contra Croácia, de 16 de Março de 2010 (queixa n.º 15766/03). Sobre esta temática, cfr. O’CONNEL, Rory - Substantive Equality in the European Court of Human Rights, Michigan Law Review First Impressions, Vol. 107, N.º 129 (2009), p. 129-133.

58 Nesta mesma linha, de aplicação de um escrutínio estrito às situações de discriminação em função da nacionalidade, cfr. o Acórdão Andrejeva contra Letónia, de 18 de Fevereiro de 2009 (queixa n.º 55707/00), o Acórdão Weller contra Hungria, de 31 de Março de 2009 (queixa n.º 44399/05) e o Acórdão Tănase contra Moldávia, de 27 de Abril de 2010 (queixa n.º 07/08).

Page 23: Principais contributos da União Europeia e do Conselho da Europa

54

correntes contraditórias: de um lado o reconhecimento do pluralismo religioso e, do

outro, a possibilidade de restrição à liberdade individual de manifestar a sua religião,

quando tal seja necessário à manutenção da paz social59. Em qualquer dos casos, o

recurso ao artigo 14.º tem sido mobilizado com muita (diríamos excessiva) parcimónia,

centrando-se o Tribunal na apreciação do princípio da proporcionalidade de acordo com

os critérios dispostos, sobretudo, no artigo 9.º da Convenção Europeia dos Direitos do

Homem.

O acórdão emblemático, neste domínio, é o Acórdão Leyla Sahin contra

Turquia, de 10 de Novembro de 2005 [(queixa n.º 44774/98),cujas conclusões foram

mais tarde retomadas no Acórdão Kervanci e Dogru contra França, de 4 de Dezembro

de 2008 (queixas n.º 31645/04 e 27058/05)], sobre a utilização do véu islâmico nas

Universidades, no âmbito do qual o Tribunal não considerou, sequer, estar em causa

uma questão de discriminação, mas apenas uma restrição (legítima) a um direito

reconhecido na Convenção60. Mais recentemente, no Acórdão Lautsi e o. contra Itália,

de 18 de Março de 2008 (queixa n.º 30814/06), o Tribunal excluiu a relevância das

alegações de discriminação sobre a afixação de crucifixos nas escolas públicas, tendo

concluído pela sua legitimidade à luz da Convenção, por esta temática se incluir na

margem de apreciação que assiste aos Estados (ainda que, enigmaticamente, tenha

compreendido que a presença de crucifixos nas salas de aula possa ser vista pelos

alunos comprometidos com o secularismo como uma infracção ao seus direitos)61.

Por seu turno, as acções positivas têm vindo a ser admitidas em alguns textos

convencionais, como a Carta Europeia sobre as Línguas Regionais ou Minoritárias, de

1992, e a Convenção Quadro para a Protecção das Minorias Nacionais, de 1995, e em

actos unilaterais, como a Recomendação de Política Geral n.º8da Comissão Europeia

contra o Racismo e a Intolerânciasobre como lutar contra o racismo enquanto

combatendo o terrorismo. No quadro da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, é

o Protocolo n.º 12 que dá um passo significativo nesta matéria, ainda que apenas

59 COUSSIRAT-COUSTERE, Vincent - La manifestation de sa religion vue de Strasbourg - La

jurisprudence de la Cour Européenne des droits de l’homme - Manifester sa Religion, Droits et Limites, DUARTE, Bernardette (ed.), Paris: L’Harmatann, 2011, p. 18.

60 Ainda assim, no Acórdão Ahmet Arslan e. o. contra Turquia, de 23 de Fevereiro de 2010 (queixa n.º 41135/98)], o Tribunal assumiu uma posição com contornos distintos, considerando inadmissível a proibição de utilização de certas vestes religiosas no espaço público.

61 Cfr., ainda, o Acórdão The Canea Catholic Church contra Grécia, de 16 de Dezembro de 1997 (143/1996/762/963), o Acórdão Ase of Barankevich contra Rússia, de 26 de Julho de 2007 (queixa n.º 10519/03) e o Acórdão Relligionsgemeinschaft der Zeugen Jehovas e. o. contra Áustria, de 31 de Julho de 2008 (queixa n.º 40825/98).

Page 24: Principais contributos da União Europeia e do Conselho da Europa

55

admita estas acções se forem adequadas e proporcionais ao objectivo a prosseguir – sob

pena de se converterem num instrumento de acentuação de desigualdades e não da sua

correcção – e não foremimpostas directamente a privados62.

Ainda assim, a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem tem

vindo a apurar o conceito de obrigações positivas63, enquanto obrigação de

disponibilização de recursos aos indivíduos, para que dessa forma se previnam ou

reajam contra possíveis violações dos seus direitos, ainda que cometidas por terceiros.

Os Estados são, assim, responsáveis, em algumas situações – sobretudo de não

discriminação – não só por violarem por acção os direitos reconhecidos pela

Convenção, mas também por não terem criado condições para o seu gozo,

nomeadamente assegurando que terceiros não os coloquem em causa64.

3. Pontos de contacto entre os Direitos Anti-Discriminatórios da União

Europeia e do Conselho da Europa

Feita a breve análise aos contornos mais vincados dos direitos anti-

discriminatórios da União Europeia e do Conselho da Europa, é tempo de procedermos

ao cotejo dos seus principais pontos de encontro, mas também dos seus espaços de

desencontro.

Efectivamente, em qualquer um dos casos, o tratamento e análise dos fenómenos

alegadamente discriminatórios é feito tendo por base critérios autónomos, depurados de

acordo com a caracterização e função de cada uma daquelas Instâncias Internacionais,

do que resulta a possibilidade de a apreciação de questões similares ter desfechos

distintos em ambas as sedes.

É o que sucede, por exemplo, quanto às diferenciações etárias no acesso a

prestações sociais entre pessoas de sexos diferentes. Se esta é uma matéria em que o

Tribunal de Justiça tem assumido uma posição de algum activismo, recusando a

62 As únicas situações nas quais as acções em causa podem beneficiar de efeito directo

horizontal, de acordo com o relatório explicativo ao Protocolo n.º 12, são aquelas incluídas num contexto regulatório de direito público, no qual o Estado assume especiais responsabilidades, como sucede no acesso ao trabalho ou a determinados bens e serviços. 63 Cfr. o relevante estudo de MOWBRAY, Alastair L - The Development of Positive Obligations under the European Convention on Human Rights by the European Court of Human Rights, Oxford: Hart Publishing, 2004.

64 Julgamos particularmente impressivo o Acórdão Connors contra Reino Unido de 27 de Maio de 2004 (queixa n.º 66746/01), no qual, o Tribunal considerou violadora do artigo 8.º (ainda que sem o aliar ao artigo 14.º) a cessação de uma medidade apoio positivo a uma minoria (disponibilização de espaços para as comunidades nómadas), por considerar que aquela cessação colocava consideráveis obstáculos à possibilidade destes prosseguirem um estilo de vida nómada, ao mesmo tempo que excluíam de protecção os que decidiam adoptar um estilo de vida mais sedentário.

Page 25: Principais contributos da União Europeia e do Conselho da Europa

56

introdução ou manutenção de tais distinções[Acórdãos do Tribunal de Justiça de 26 de

Março de 2009, Comissão das Comunidades Europeias/República Helénica, proc. C-

559/07, e de 18 de Novembro de 2010, Pensions-versicherungsanstalt/Christine Kleist,

proc. C-356/09], já o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem tem mantido uma

posição mais contida, ainda que reconheça – mas sem daí tirar ilações – que evolução

ocorrida nas condições sociais e económicas pode justificar uma partificação das regras

aplicáveis a ambos os sexos[cfr. Acórdão Stec e o. contra Reino Unido, de 12 de Abril

de 2006 (queixas n.º 65731/01 e 65900/01)].

Do mesmo modo, critérios suspeitos há que merecem atenção distinta em cada

uma destas sedes: pense-se na especificidade da não discriminação em razão da

nacionalidade no âmbito da União Europeia e no relevo particular que o critério religião

assume na economia da Convenção e na jurisprudência do Tribunal Europeu dos

Direitos do Homem65.

Na grande maioria das situações, porém, a evolução deu-se no sentido de um

ajustamento recíproco das pronúncias de cada um destes órgãos jurisdicionais,

sobretudo em matérias fracturantes como as de discriminação das pessoas transsexuais

e, mais recentemente, das de discriminação em razão da orientação sexual. Do mesmo

modo, o relevo que tem sido deferidoa critérios suspeitos como os da origem étnica e

incapacidade denotam uma aproximação dos pressupostos e termos de intervenção dos

direitos anti-discriminatórios da União Europeia e do Conselho da Europa.

Não obstante esta aproximação, diferenças persistem. Vejamos quais, a

pinceladas largas.

O âmbito de relevânciado direito anti-discriminatório é distinto em ambos os

casos, uma vez que se circunscreve, no plano da União Europeia, às competências que a

esta são reconhecidas66, enquanto que, no plano da Convenção Europeia dos Direitos do

Homem (artigo 14.º), se reporta aos direitos específicos nela reconhecidos. É certo que,

com a aplicação do Protocolo n.º 12,a não coincidência entre o tipo de situações que

65 Relevo particular este que resulta não apenas da metodologia seguida pelo Tribunal (que não

faz apelo, em regra, à dogmática da não discriminação), mas igualmente dos domínios em que o mesmo tem relevado (domínios estes que, em grande medida, se encontra furtados ao âmbito de competência da União Europeia).

66 O Tribunal de Justiça da União já recusou expressamente a apreciação de questões que, embora possam assumir relevo no âmbito mais amplo da protecção dos direitos fundamentais no contexto europeu, não se integram no domínio de atribuições assinaladas ao direito comunitário. Neste sentido, cfr. o Acórdão Society for the protection of unborn children Ireland Ltd contra Stephen Grogan e o., de 4 de Outubro de 1991, proferido no proc. C-159/90, o Acórdão Processo Penal contra Gianfranco Perfili, de 1 de Fevereiro de 1996, proferido no proc. C-177/94; e o Acórdão Friedrich Kremzow contra Republik Österreich, de 29 de Maio de 1997 proferido no proc. C-299/95.

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57

chamam à colação o princípio da não discriminação cessa, uma vez que este princípio

passa a deter o campo de aplicação necessário para salvaguardar os direitos que possam

ser afectados pela Parte Contratante visada, estatuto a que poderá, a breve trecho, aceder

a União Europeia.

Ainda assim, não se nos avizinha que, com esta adesão67, o controlo judicial do

princípio da não discriminação pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem venha a

ser feito em moldes substancialmente distintos daquele que tem vindo a ser levado a

cabo até ao momento, por muito que passe a incidir directamente sobre as medidas

adoptadas pelas Instituições e órgãos da União e não sobre a sua aplicação pelos

Estados-membros68.

Efectivamente, a relação discursiva entabulada entre o Tribunal de Justiça da

União e o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, converteu-os em tecelões de uma

intrincada rede internormativa69, cujo resultado tem sido, como vimos, o da

aproximação do conteúdo e efeitos dos direitos nelas reconhecidos, com efeitos

positívos nítidos para a protecção dos dos destinatários últimos de qualquer uma destas

ordens jurídicas: os indivíduos.

67 Na sequência da entrada em vigor do Protocolo n.º 14 à Convenção Europeia dos Direitos do

Homem (artigo 17.º, que altera o artigo 59.º da Convenção), a União Europeia pode ser parte na mesma. Do mesmo passo, o TUE pós-Lisboa passou a incluir uma base expressa para a adesão da União Europeia à Convenção (artigo 6.º, n.º 2), dando corpo às exigências delineadas pelo Tribunal de Justiça para o efeito (Parecer 2/94, de 28 de Março de 1996).

68 No presente momento, o controlo feito pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem ao Direito da União Europeia é indirecto e parcelar, pois incide apenas sobre a tarefa de concretização, pelos Estados-membros da União (que também são partes na Convenção Europeia dos Direitos do Homem), daquele direito. Foi com o Acórdão Matthews contra Reino Unido, de 18 de Fevereiro de 1999 (queixa n.º 24833/94) que o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem firmou a posição de que a invocação do cumprimento de obrigações internacionais por parte dos Estados contratantes, maxime, decorrentes do direito comunitário não poderiam justificar a sua subtracção ao cumprimento das obrigações e a sujeição aos mecanismos de controlo instituídos pela Convenção, sob pena de tal justificação se converter num mecanismo de ilisão das obrigações que esta impõe. No Acórdão Bosphorus o Tribunal considerou-se competente para analisar actos de Estados que pusessem em marcha obrigações directamente aplicáveis da União, ainda que tenha avançado uma «presunção da protecção equivalente» entre o Direito da União e o da Convenção em matéria de protecção dos direitos fundamentais [Acórdão Bosphorus Hava Yollari Turizm ve Ticaret Anonim Sirketi (Bosphorus Airways) contra Irlanda, de 30 de Junho de 2005 (queixa n.º 45036/98)]. Para uma análise destes e de outros arestos relevantes, cfr. LOCK, Tobias - Beyond Bosphorus: The European Court of Human Rights’ Case Law on the Responsibility of Member States of International Organisations under the European Convention on Human Rights, Human Rights Law Review, Vol. 10, N.º 3, (2010), p. 529-545

69 Sobre os contornos desta rede, cfr., entre nós, DUARTE, Maria Luísa - União Europeia e Direitos Fundamentais: no Espaço da Internormatividade, Lisboa: AAFDL, 2006; MADURO, Miguel Poiares - A Constituição Plural. Constitucionalismo e União Europeia, Lisboa: Principia, 2006; CANOTILHO, José Joaquim Gomes – Estado de Direito e Internormatividade, Direito da União Europeia e Transnacionalidade, Alessandra Silveira (coord.), Lisboa: Quid Iuris, 2010, p. 171-185; e PACHECO, Maria de Fátima de Castro Tavares Monteiro - O Sistema de Protecção dos Direitos Fundamentais na União Europeia – Entre a Autonomia e o Compromisso, Revista Julgar, N.º 14, 2011, no prelo.

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Este diálogo, organizado processual e orgânicamente num cenário pós-adesão,

sairáreforçado em virtude doelevado número de questões que serão suscitadas perante o

Tribunal Europeu, sobretudo em matéria de não discriminação em razão do género (área

na qual o Tribunal de Justiça tem sido reconhecidamente mais competente)70, mas não

deixará o Tribunal Europeu de tomar em consideração as características particulares do

direito da União Europeia (na terminologia do protocolo n,º 8 relativo ao n.º 2 do artigo

6.º do TUE) ou de lançar mão, em alguns hard cases, do critério da margem de

apreciação própria dos órgãos competentes da União (à semelhança do que faz com os

Estados).

Se esta metodologia judicial de controlo do princípio da não discriminação é

relevante, a coordenação dos demais mecanismos de defesa contra comportamentos

discriminatórios no âmbito da União e do Conselho da Europa, quando actuam em

domínios sobrepostos, é também valiosa.

Autores há que questionam se os próprios mecanismos institucionais destas duas

Instituições não serão verdadeiramente complementares, na medida em que a viado

reenvio prejudicial, não admitida no âmbito da Convenção Europeia dos Direitos do

Homem como forma de diálogo entre juiz internacional e juizes nacionais, pode

determinar, por via dos princípios gerais do direito da União, um acréscimo do respeito

pelo direito da Convenção e a reparação da violação antes de se encontrarem esgotadas

as vias de recurso71. Da mesma forma, a existência da via processual da acção por

incumprimento – que tem sido mobilizada para constatar situações de não transposição

ou transposição deficiente das Directivas sobre não discriminação72 – ao mesmo tempo

que reforça o carácter legislativo do direito antidiscriminatório da União, previne ou

reduz a ocorrência de litígios sobre a aplicação deste mesmo direito.

70 Cfr. BESSON, Samantha - Gender Discrimination under EU and ECHR Law: Never Shall the

Twain Meet?, Human Rights Law Review Vol. 8, N.º 4 (2008), p. 647-682. MASSELOT, Annick - The State of Gender Equality Law in the European Union, European Law Journal, Vol. 13, N.º 2 (2007), pp. 152–168, considera que a adesão à Convenção Europeia dos Direitos do Homem pode vir a causar prejuízo ao direito à não discriminação em razão do sexo, por o entendimento do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem sobre igualdade de género ser mais fraco do que o adoptado pelo Tribunal de Justiça, ainda que considere que a adesão ao Protocolo 12.º pode contribuir para uma aproximação das duas jurisprudências.

71 ZAMPINI, Florence - La Cour de Justice des Communautés européennes, gardienne des droits fondamentaux «dans le cadre du droit communautaire», Revue Trimestrielle de Droit Européen, N.º 4, (1999) p. 659 a 707.

72 Cfr., apenas a título de exemplo, o Acórdão Comissão das Comunidades Europeias contra República da Finlândia, de 24 de Fevereiro de 2005, proferido no proc. C-327/04, na qual este Estado foi condenado por não transpor a Directiva 2000/43.

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Vice versa, no mecanismo da Convenção, os particulares podem recorrer mais

amplamente a uma jurisdição internacional, não obstante a ampliação do acesso ao

Tribunal de Justiça trazida pelo Tratado de Lisboa73.Ainda assim, a necessidade de

coordenação entre estes dois sistemas é nítida, pois assentam em aproximações

distintas: uma – a Convenção Europeia dos Direitos do Homem – centra-se relações

entre indivíduos e os Poderes Públicos; a outra – o da União Europeia – alarga-se a a

domínios em que em causa estão, directamente, relações entre privados74. Alargamento

este potenciado agora pelo entendimento expresso no Acórdão Kücükdevecisobre o

efeito directo dos princípios gerais de direito, como o da não discriminação[Acórdão

Seda Kücükdeveci contra Swedex GmbH & Co. KG, de 19 de Janeiro de 2010, proc. C-

555/07].

Também no que se refere aos métodos político-administrativos, apesar de haver

quem tema que a criação de uma Agência dos Direitos Fundamentais da União possa

conduzir ao enfraquecimento do sistema de protecção dos direitos humanos, a

aproximação seguida tem sido a da coordenação e complementaridade de intervenções,

como o demonstra o Acordo de Cooperação publicado no Jornal Oficial L 186/7, de 15

de Julho de 2008, que aponta para a tomada de iniciativas comuns e para a troca de

informações75.

O que significa que embora a adesão da União Europeia à Convenção Europeia

dos Direitos do Homem possa contribuir para uma relação mais clara e ordenada entre

estes dois níveis de regulamentação internacional76, tal não dispensará ajustamentos

73 Cfr. o artigo 263.º do TFUE que passou a reconhecer legitimidade nos recursos de anulação a

qualquer pessoa singular e colectiva actos regulamentares que lhe digam directamente respeito e não necessitem de medidas de execução. No âmbito da política externa e de segurança comum foram igualmente alargadas as possibilidades de pronúncia do Tribunal de Justiça para defesa contra medidas restritivas dirigidas contra pessoas singulares e colectivas (artigos 40.º do TUE e 275.º do TFUE).

74 BECO, Gauthier de - Le Protocole nº 12 à la Convention Européenne des Droits de L’Homme, Revue Trimmestrielle des Droits de L’Homme, Vol. 83 (2010), p. 613.

75 SCHUTTER, Olivier de - The two Europes of Human Rights: the Emerging Division of Tasks between the Council of Europe and the European Union in promoting Human Rights in Europe - Columbia Journal of European Law, N.º 14 (2008), p. 509.

76 As vozes apontam dominantemente no sentido favorável à adesão. Impressivamente, entre nós, cfr. DUARTE, Maria Luísa “O Direito da União Europeia e o Direito Europeu dos Direitos do Homem – Uma Defesa do “Triângulo Judiciário Europeu”, in Estudos de Direito da União e das Comunidades Europeias, Vol. II, Coimbra: Coimbra Editora, 2006, p. 205-236. Mas continua a haver vozes dissonantes como a de MARCIALI, Sébastian - Les rapports entre les systémes européens de protection des droits fondamentaux, in Les Droits Fondamentaux dans L’Union Européenne – Dans le sillage de la Constitution Européenne, Joel Rideau (ed.), Bruylant: Bruxelles, 2010, p. 345-377, que se pergunta sobre a utilidade de adesão à Convenção, se se encontra firmada uma lógica de equilíbrio e compromisso, reforçada pela equivalência da protecção dada pela Carta dos Direitos Fundamentais. Para este autor, a adesão pode mesmo trazer a lógica oposta, da confrontação directa.

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recíprocos a outros níveis, designadamente legislativos, para que se garanta um efectivo

espaço europeu de não discriminação 77.

4. Conclusão

Pensamos não ser demasiado temerário afirmar que a consolidação de um direito

anti-discriminatório europeu tem sido um resultado tanto da partilha de um ideário

comum, como da mobilização de conceitos operativos similares: o primeiro

encontrando o seu cerne no Conselho da Europe, por intermédio da Convenção

Europeia dos Direitos do Homem, os segundos – repousando, maxime, na distinção

entre discriminação directa e indirecta –, encontrando a sua teorização no Direito da

União Europeia78.

Estas duas Instâncias têm, efectivamente, vindo a unir esforços, cada uma nos

seus espaços de influência, para garantir uma efectiva protecção contra a discriminação.

É certo que algumas diferenças subsistem, tanto na aplicação dos catálogos anti-

discriminatórios, como na configuração mais ampla de cada um daqueles sistemas

jurídicos; divergências estas que, se podem ser atenuadas pela adesão da União à

Convenção Europeia dos Direitos do Homem, nunca serão anuladas, dado a vocação

específica e irrepetível de cada uma destas Organizações.

77 SCHUTTER, Olivier de - L’adhésion de l’Union Européenne à la Convention Européenne des

droits de l’homme: feuille de route de la négociation”, Revue Trimestrielle des Droits de L’Homme, Ano 21, n.º 83 (2010), p. 535-571, considera que a adesão que em tempos poderia ter sido vital, não se tornou supérfula, pois continua a ser necessária à coerência do sistema europeu de protecção dos direitos fundamentais, para limitar o risco de interpretação divergente das duas jurisdições na interpretação das exigências dos direitos fundamentais. No entanto, segundo o autor, não basta a adesão à Convenção sendo justificado que a adesão se fizesse inicialmente à Carta Social Europeia ou, mesmo, a outros instrumentos convencionais do Conselho da Europa.

78 Discordamos, por isso, de HARPAZ, Guy - The European Court of Justice and its Relation with the European Court of Human Rights: the Quest for Enhanced Reliance, Coherence and Legitimacy, Common Market Law Review, Vol. 46, N.º 3 (2009), p. 121, para quem em matéria de direitos do Homem, tem sido o Tribunal Europeu a apresentar uma metodologia mais precisa, já que em matéria de não discriminação é o Tribunal de Justiça que tem tradicionalmente apresentado uma argumentação mais firme para suportar as suas decisões.