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UMA ANTROPOLOGIA TEOLÓGICA? Excetuando o espaço relativamente pequeno ocupado pela reflexão teológica no interior de nosso universo cultural, é comum ler e ouvir observações críticas quanto ao sentimento e à validade de se abordar a questão envolvendo a realidade do ser humano no interior de um discurso teológico. Em seu interior, com certa freqüência, a dimensão religiosa é relegada a um segundo plano e até passa a ser identificada com estágios inferiores na evolução da humanidade. Apesar de todo o extraordinário desenvolvimento das ciências humanas, ainda é possível encontrar pessoas de elevado saber sustentando a idéia de que, mais dia menos dia, a ciência suplantará a religião ou então que somente as ciências exatas teriam condições de assegurar um saber realmente científico, merecedor de credibilidade. Pelo que diz respeito às ciências humanas, das quais faz parte a teologia há um elemento que, de fato, restringe o campo da certeza. Trata-se da indeterminação da liberdade no ser humano. Ele sempre pode responder negativamente às solicitações que lhe são feitas. Acrescente-se a isso sua imprevisibilidade, capaz de contradizer frontalmente as expectativas que sobre são depositadas Há, no entanto, uma outra razão para inspirar a postura de bloqueio em face de uma antropologia teológica: é o fato de que, em termos temáticos, a teologia deve ocupar-se de Deus e não, propriamente, do ser humano. Tomando como exemplo as escrituras sagradas da tradição judeu-cristã, elas constituem uma afirmação surpreendente da dignidade humana e um apelo no sentido de desencadear projetos e iniciativas visando levar o ser humano às maiores elevações. É minha preocupação, por conseguinte, mostrar que a dimensão religiosa, até mesmo independentemente da existência ou não de seu objeto (Deus, no caso), situa-se no coração da existência humana. Na experiência religiosa, o que está em jogo é o sentido da vida, questão maior e decisiva para todo ser humano. A relevância da dimensão religiosa, em termos de antropologia, prende-se justamente à questão do sentido. O ser humano, com efeito, não conseguiria viver com dignidade se não pudesse responder positivamente ao problema de saber se a vida vale ou não a pena ser vivida. Por tal questão as pessoas vivem ou morrem, afirmam a vida ou a negam pela autodestruição, cuja expressão mais radical é o suicídio. Com isso quero dizer que a dimensão religiosa, no que ela tem de mais autêntico, não responde a preocupações inspiradas na utilidade e na funcionalidade do cotidiano. Pelo contrário, ao levantar justamente as questões maiores e definitivas, ela costuma ser incômoda porque o ser humano é levado a espontaneamente a buscar as respostas mais imediatas, inspiradas na lei do menor esforço e alimentadas no principio do que é imediatamente útil e

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Page 1: Pretto.uma.Antropologia.teológica

UMA ANTROPOLOGIA TEOLÓGICA?

Excetuando o espaço relativamente pequeno ocupado pela reflexão teológica no interior de nosso universo cultural, é comum ler e ouvir observações críticas quanto ao sentimento e à validade de se abordar a questão envolvendo a realidade do ser humano no interior de um discurso teológico.

Em seu interior, com certa freqüência, a dimensão religiosa é relegada a um segundo plano e até passa a ser identificada com estágios inferiores na evolução da humanidade. Apesar de todo o extraordinário desenvolvimento das ciências humanas, ainda é possível encontrar pessoas de elevado saber sustentando a idéia de que, mais dia menos dia, a ciência suplantará a religião ou então que somente as ciências exatas teriam condições de assegurar um saber realmente científico, merecedor de credibilidade.

Pelo que diz respeito às ciências humanas, das quais faz parte a teologia há um elemento que, de fato, restringe o campo da certeza. Trata-se da indeterminação da liberdade no ser humano. Ele sempre pode responder negativamente às solicitações que lhe são feitas. Acrescente-se a isso sua imprevisibilidade, capaz de contradizer frontalmente as expectativas que sobre são depositadas

Há, no entanto, uma outra razão para inspirar a postura de bloqueio em face de uma antropologia teológica: é o fato de que, em termos temáticos, a teologia deve ocupar-se de Deus e não, propriamente, do ser humano. Tomando como exemplo as escrituras sagradas da tradição judeu-cristã, elas constituem uma afirmação surpreendente da dignidade humana e um apelo no sentido de desencadear projetos e iniciativas visando levar o ser humano às maiores elevações.

É minha preocupação, por conseguinte, mostrar que a dimensão religiosa, até mesmo independentemente da existência ou não de seu objeto (Deus, no caso), situa-se no coração da existência humana. Na experiência religiosa, o que está em jogo é o sentido da vida, questão maior e decisiva para todo ser humano.

A relevância da dimensão religiosa, em termos de antropologia, prende-se justamente à questão do sentido. O ser humano, com efeito, não conseguiria viver com dignidade se não pudesse responder positivamente ao problema de saber se a vida vale ou não a pena ser vivida. Por tal questão as pessoas vivem ou morrem, afirmam a vida ou a negam pela autodestruição, cuja expressão mais radical é o suicídio. Com isso quero dizer que a dimensão religiosa, no que ela tem de mais autêntico, não responde a preocupações inspiradas na utilidade e na funcionalidade do cotidiano.

Pelo contrário, ao levantar justamente as questões maiores e definitivas, ela costuma ser incômoda porque o ser humano é levado a espontaneamente a buscar as respostas mais imediatas, inspiradas na lei do menor esforço e alimentadas no principio do que é imediatamente útil e agradável. De certa forma, parece-me possível dizer que a dimensão religiosa exerce uma função reguladora e centralizadora de equilíbrio, situando o ser humano no cerne de sua vida.

Mas além desse primeiro dado, há que se pôr em destaque um outro, também relevante. Trata-se do universo simbólico que marca de forma essencial a existência humana. Há dimensões de realidade que não se encaixam em raciocínios bem elaborados e fundamentados de forma consistente. A experiência do inefável, daquilo que o ser humano vivencia intensamente sem, no entanto, poder expressar em palavras, constitui um dos elementos de maior elevação em sua vida. Toda vez que busca verbalizar a riqueza de suas experiências mais significativas, dá-se conta da grande pobreza de sua linguagem. Temo então algo que está além da realidade do ser humano e que integra um dado elementar da teoria do conhecimento: nenhuma verdade pode ser aprisionada em conceitos.

Trata-se do encontro com algo que foge infinitamente às capacidades humanas de produção e elaboração e que lhe advém na experiência gratificante da dádiva. Somente a metáfora, o símbolo, o mito, a linguagem lúdica, possibilitam alguma forma de aproximação. Temos aí nada menos que o cerne da experiência estética. E é exatamente ali, nesta forma singular de linguagem, que ocorrem o espírito poético e a dimensão religiosa. As pessoas que não vivenciam as dimensões enriquecedoras da fé deveriam pelo menos captar-lhe a sublime poesia.

A antropologia teológica seria a forma de expressar de maneira sistemática, tentando conciliar rigor científico e senso lúdico, os dados concernentes ao ser humano que emergem da experiência religiosa. Se for verdade que o ser humano revela algo de si mesmo em tudo o que diz e faz, há que se concluir que no interior

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de toda autêntica experiência religiosa vêm à tona dimensões humanas que passariam sob silêncio em outras experiências humanas.

Essa é a razão pela qual as várias ciências que têm o ser humano como objeto precisam proceder em suas investigações em clima de um fraterno diálogo interdisciplinar. Constitui temeridade e erro grave absolutizar experiências que, tomadas isoladamente, serão sempre fragmentárias. A abertura sem preconceitos é condição para que se possa ter do ser humano a compreensão mais profunda e mais abrangente.

No interior de tal perspectiva, a antropologia teológica revela-se não apenas uma disciplina que pode reivindicar legitimidade, mas uma disciplina necessária na exata medida em que se quer justamente uma visão profunda e abrangente do ser humano. Para isso exige-se uma mente aberta, capaz de acolher tudo aquilo que se revelar portador de alguma dimensão de verdade.

O papel da disciplina se faz mais importante ainda, em função da crise vivida em nosso mundo. As luzes dos néons que encantam a todos e os brilhos das novas tecnologias tem ofuscado demais nosso olhar e acabamos perdendo o sentido das coisas e da própria vida. No entanto, uma vida sem significado parece insuportável e, desse modo, muitos acabam aceitando sem quaisquer questionamentos e/ou criticidade os projetos superficiais e cínicos disponibilizados pelos meios de comunicação de massa, nas propagandas e em muitos discursos religiosos a nós oferecidos no mercado. Como mesmo assim, nos damos por insatisfeitos em nossos desejos mais profundos, o mercado reorienta cotidianamente o sentido e a direção das vidas humanas.

O mundo complexo no qual vivemos tem mudado com tanta velocidade que temos dificuldade em compreende-lo em seu funcionamento. Certamente o entendimento do que está ocorrendo no mundo, bem como a crítica à visão de ser humano veiculada por tal sociedade é parte imprescindível para a sua transformação.

Porém apenas o conhecimento e a teorização sobre “como” funciona a sociedade não basta para resgatar a vontade de mudança, a esperança antropológica. O sentido nasce não das teorias, mas de uma aposta fundamental, de um ato de fé, uma fé antropológica, necessária a todo ser humano, que o impulsiona para frente em seus projetos de vida. A aposta que nos conduz às ações modificadoras de nós mesmos e do mundo tem a ver com o que está à nossa frente, como horizonte, realidade que ainda não existe, mas na qual cremos viver melhor. A estrutura valorativa de toda a vida humana se baliza por testemunhas referenciais nas quais acreditamos, e que nos possibilitam experiências autênticas de encontro conosco mesmo, na nudez de nosso ser.

Parece-nos uma das tarefas da Antropologia Teológica o favorecimento da redescoberta da importância da gratuidade, encanto, da liberdade humana, como quesitos da construção da vida humana não num sistema, mas no amor. Por isso, a Teologia é vista aqui como uma reflexão crítica da sociedade, da Igreja e das nossas vidas a partir da fé, com vista a favorecer o discernimento entre o fetiche e o espírito, a desvendar as lógicas e os valores que movem os mecanismos de morte que nos rondam e a colaborar no reencontro dos motivos da nossa esperança.

Na Antropologia Teológica, procura-se focar o ser humano em sua multidimensionalidade:

a) alguém que pensa: a racionalidade é a primeira e mais tradicional forma de interpretação do ser humano; é definida como sendo a capacidade de interpretar a realidade, de captar-lhe o sentido e de articulá-lo através de idéias, conceitos, elaborando-os de forma lógica a se constituir um pensamento consistente.

b) alguém que trabalha: pelo trabalho o homem transforma a natureza e nessa atividade se distingue do animal porque sua ação é dirigida por um projeto. Pelo trabalho, o homem se auto-produz: desenvolve habilidades e imaginação; aprende a conhecer as forças da natureza; conhece suas forças e limites; relaciona-se com os companheiros; modifica-se

c) alguém que contempla: nossa sociedade se sustenta sobre dois pilares: razão e trabalho. Nela, as capacidades de pensar e agir escalonam os indivíduos em superiores/inferiores ou com maior/menor poder aquisitivo, o que impossibilita a crítica das injustiças sociais. No entanto, se somos seres profundamente desiguais a partir do que produzimos, somos profundamente iguais na abertura à dádiva, à gratuidade. Amor e amizade são experiências genuínas de gratuidade. A gratuidade é o reconhecimento de uma igualdade fundamental no valor e na dignidade. Ter um espírito de gratuidade significa olhar para a realidade em atitude contemplativa/ receptiva, como o olhar das crianças, poetas, artistas, das pessoas que vivem em estado de graça.

Assim, a discussão sobre o ser humano na Antropologia Teológica encontra-se para além de sua utilidade instrumental.