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Preparado para o II Seminário Discente da Pós-Graduação em Ciência Política da USP Mesa: Federalismo e regras eleitorais (26/04/2012) Escolha de sistemas eleitorais e jogos ocultos: o caso brasileiro da constituinte de 1987-88. Sergio Simoni Junior (USP; CEM/Cebrap) Patrick Cunha Silva (USP; CEM/Cebrap) 23 a 27 de abril de 2012

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Preparado para o II Seminário Discente da Pós-Graduação em Ciência Política da USP

Mesa: Federalismo e regras eleitorais (26/04/2012)

Escolha de sistemas eleitorais e jogos ocultos:

o caso brasileiro da constituinte de 1987-88.

Sergio Simoni Junior (USP; CEM/Cebrap)

Patrick Cunha Silva (USP; CEM/Cebrap)

23 a 27 de abril de 2012

2

“o voto distrital é quase um fato consumado”

Ulysses Guimarães à Revista Veja em 4/2/1987

Introdução

O presente texto discute a escolha do sistema eleitoral (SE) brasileiro, a

representação proporcional (RP) de lista aberta, na Assembléia Nacional Constituinte

(ANC) de 1987-88, à luz de teorias correntes sobre essa temática.

Existe um considerável corpo de produção teórica e empírica voltada para

explicar decisões sobre a regra eleitoral. Não faltam motivações e justificações positivas

e normativas: de um lado, trata-se de um caso importante para formulações de teorias

institucionais e de teorias das instituições (Diermeier e Krehbiel, 2003); de outro, o

arranjo institucional representa o núcleo do princípio da democracia representativo.

Estudos empíricos, seja de caso seja comparativos, ganharam novo fôlego nos

últimos anos, no bojo da “3ª onda” de democratização, especialmente tendo como

objeto a região do Leste Europeu. Curiosamente, não existem estudos sistemáticos

voltados para o Brasil. Essa ausência se torna ainda mais importante se se nota que a lei

eleitoral brasileira é, desde os anos 90, constantemente alvo de críticas da literatura

especializada (como exemplo, Mainwaring 1999; Lamounier 1992; Ames 2003) e de

propostas de reforma no Congresso Nacional. Afinal, como e por que, no “momento

crítico” da ANC, não houve alteração do sistema eleitoral brasileiro?

Note-se que a pergunta contém um viés proposital, qual seja, argumentamos que

a manutenção da RP não foi esperada ou fortuita. Os estudos que fizeram considerações,

sempre de modo lateral, ao comportamento constituinte neste tema, realizaram o

diagnóstico de que o sistema proporcional se manteve sem grandes dificuldades. Como

exemplo, tem-se Lamounier e Souza (1991), Mainwaring (1991) e Nicolau (2007). As

razões variariam da existência de uma “coalizão contraditória” composta por “políticos

clientelistas [...], pequenos partidos de esquerda [...], e um grande grupo intermediário

composto por aqueles que acima de tudo rejeitam as regulações draconianas do passado

autoritário” (Lamounier e Souza 1991: 334) ao interesse dos constituintes individuais

em manter a “fraqueza” dos partidos, protegendo seus interesses individuais de qualquer

futura interferência coletiva (Mainwaring 1991:53).

Nossa explicação rejeita essas assertivas. Procuramos mostrar que a decisão do

sistema eleitoral não foi consensual e não cabe em explicações triviais. A representação

proporcional não passou incólume pelo debate constituinte, a ponto de ter sido preterida

3

pelos constituintes nas fases iniciais de trabalho, tendo derrotado o sistema distrital

misto apenas às portas do texto ser enviado ao plenário. Nos momentos pré-

constituintes, criou-se uma expectativa de que o sistema proporcional seria alterado:

uma pesquisa da revista VEJA com a maioria dos constituintes apontou que 63% deles

era favorável a alguma forma de sistema majoritário. Além disso, como exposto na

epígrafe deste artigo, Ulysses Guimarães declarou, na mesma publicação, que “o voto

distrital é quase um fato consumado” (Veja, nº 961, 4-2-1987, p.25).

Para além dessa contribuição empírica, voltada para o caso brasileiro, a intenção

aqui é fornecer também uma contribuição teórica. Após fazer a revisão de alguns

modelos explicativos de escolha de sistema eleitoral, os subsídios empíricos levantados

por esse estudo de caso nos possibilitam propor a incorporação de um conceito chave

que não tem sido destacado nas teorias: trata-se da existência de jogos ocultos, ou seja,

da influência exercida por fatores contextuais (ações e decisões em outras arenas) nas

preferências expressas dos atores sobre o objeto em estudo (Tsebelis, 1998).

A interpretação proposta aponta que parlamentares que tinham interesse na

reforma do sistema eleitoral, visando diminuir sua proporcionalidade, apoiaram a

manutenção da RP, ambicionando uma troca de apoio na decisão sobre o sistema de

governo. Parlamentares com preferências institucionais reformistas optaram por

diminuir resistências à adoção do parlamentarismo, por meio da manutenção do status

quo na regra eleitoral. O argumento é de que houve um jogo oculto entre ambas arenas

decisórias, e que para compreender a escolha do sistema eleitoral brasileiro em 1987-88

faz-se necessária a incorporação de um jogo correlato.

O texto é dividido da seguinte maneira: na primeira parte, apresentamos um

breve apanhado teórico sobre a importância, tanto empírica, quanto normativa, da

instituição do sistema eleitoral, e algumas das controvérsias envolvidas; em seguida,

discutimos algumas das principais teorias de escolha de sistema eleitoral, visualizando

como as variáveis elencadas contribuem para se analisar nosso objeto empírico, que é

apresentando na quarta seção. Depois, apresentamos e exploramos a noção de jogos

ocultos de Tsebelis (1998), para em seguida concluir com observações gerais.

1- Sistemas eleitorais e seus efeitos

É sabido, na Ciência Política, que o método empregado para a conversão de

votos em cadeiras produz efeitos diversos no sistema político. Nesta seção,

4

apresentaremos algumas destas consequências. A exposição seguirá a divisão das duas

“grandes famílias” (Nicolau, 2004: 11) do sistema eleitoral: o sistema majoritário e o

sistema proporcional.

O sistema majoritário (single member plurality) é caracterizado pela divisão do

eleitorado pelo número de cadeiras em disputa, o que resulta em circunscrições

territoriais contendo um número semelhante de eleitores em cada. Estas circunscrições

são chamadas de distritos eleitorais e o candidato que obtém maioria simples dos votos

é eleito. Entre os países que empregam este tipo de sistema estão o Reino Unido e os

Estados Unidos.

Nos sistemas que adotam a representação proporcional (RP), os distritos

eleitorais costumam ter dimensões maiores, podendo abarcar, no limite, o país inteiro1.

Característica deste tipo de sistema é a elevada magnitude dos distritos. O que é

justificável, pois a proporcionalidade do sistema está estritamente ligada ao número de

cadeiras em disputa no distrito. Outras características importantes para a

proporcionalidade são a existência (ou não) da cláusula de barreira e a fórmula para

conversão de votos em cadeiras. Uma grande variedade de países utiliza a RP, entre eles

pode-se destacar a Bélgica, a Itália e a Holanda2.

Entre os impactos atribuídos aos sistemas eleitorais, três são comumente

levantados quanto se discute a mudança do sistema eleitoral: efeitos sobre o sistema

partidário, sobre a governabilidade e sobre a representatividade. No que diz respeito a

estes dois últimos, é possível assinalar o sistema majoritário como o que é,

normalmente, identificado como o método que mais facilita a governabilidade, enquanto

a RP é apontada como o modo de garantir maior representatividade. Tendo em vista esta

dicotomia entre estes dois efeitos, eles serão tratados em conjunto. Assim, iniciaremos a

discussão sobre os efeitos que incidem aos sistemas partidários.

Os efeitos causados pelos sistemas eleitorais no sistema partidário são

amplamente difundidos pela literatura desde o seminal estudo de Duverger (1987). O

autor cunhou duas proposições que receberam, posteriormente, a alcunha de “Leis”.

Estas leis preconizam que i) sistemas majoritários de turno único tendem a favorecer o

bipartidarismo; e que ii) sistemas majoritários de dois turnos ou de RP tendem a

1 Israel e Holanda são exemplos.

2 Tanto o sistema majoritário como a representação proporcional possuem inúmeras variações. Aqui trataremos os sistemas de forma genérica. Para uma descrição sobre as diversas formas que estes sistemas podem assumir ver: Nicolau (2004)

5

favorecer o multipartidarismo. As razões destas tendências estariam nos efeitos

mecânico e psicológico que os sistemas eleitorais produzem.

Os efeitos mecânicos são causados pelas fórmulas de conversão de votos em

cadeiras que tendem a favorecer, mesmos em sistema de RP, os maiores partidos. Ao

perceber este favorecimento, eleitores e dirigentes partidários agem estrategicamente.

Eleitores mudam de preferência para evitar desperdício do voto em um candidato que

não terá chances de vitória, buscando barrar um pleiteante menos preferido; por sua vez,

dirigentes partidários procurando maximizar as chances de seus partidos fazem

coligações ou apóiam outros partidos com maiores chances de vitória visando alguma

recompensa futura. Deste modo, eleitores e dirigentes colaboram para diminuir as

opções disponíveis ao longo do tempo. Duverger chamou este efeito de psicológico.

Por sua vez, a questão que envolve o debate sobre os efeitos à governabilidade e

à representatividade perpassa a literatura de Ciência Política ao menos desde o século

XIX quando a representação proporcional foi inventada3.

O principal ponto dos defensores do sistema majoritário seria que a RP fraciona

o poder em muitas unidades diferentes, ou seja, um número grande de partidos recebe

representação no parlamento e isso impossibilita a produção de uma maioria estável

para governar. Este efeito seria mais grave em sistemas parlamentaristas, uma vez que a

formação e a manutenção do governo estão ligadas diretamente ao apoio do poder

legislativo. No caso de sistemas presidencialistas, apesar do efeito mais brando, não

deixa de ser importante: a necessidade constante de negociação com os demais partidos

pode levar o sistema político a crises de paralisia. Diversos autores mobilizaram estes

argumentos. No debate político nacional, podemos citar, por exemplo, Franco (1965:

169-70), que critica a adoção da RP como forma de enfraquecer o presidente na

democracia de 1946.

Outra crítica feita à RP é a que a formação de governos minoritários prejudica os

desejos dos eleitores, em razão da necessidade destes governos realizarem acordos com

outros partidos para governar. Está critica é forte em países presidencialistas e é

fartamente observada na literatura sobre o golpe de 1964. Alguns autores, como Soares

(1971), apontam, como razão do golpe, um descompasso entre um Executivo

3 Conferir o capítulo 3 de Pitkin (1967) para um exame do debate sobre os efeitos da RP no século XIX.

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progressista e um Legislativo conservador o que, juntamente como a radicalização das

questões políticas, teriam levado à dissolução do regime democrático4.

Ainda neste conjunto de críticas à RP é possível argumentar que sistemas

proporcionais dificultam a accountability do sistema político (Arato 2002; Shugart e

Carey 1992; Powell e Whitten 1993). O motivo seria que a necessidade do governo

realizar coalizões para se tornar majoritário transformaria a atribuição de

responsabilidade por parte do eleitor uma tarefa complicada. O eleitor, desta forma, não

teria uma correspondência óbvia entre a ação e o seu responsável, dificultando a faceta

retrospectiva do voto.

Por sua vez, o principal argumento dos que defendem a RP é que a

representação, antes de ser uma questão de governabilidade, é uma questão de justiça

(Urbinati 2006; Santos 1987; Amy 2002). A RP seria o único sistema que pode cumprir

este critério, pois seria o único capaz de dar voz a grupos minoritário da população e,

por não adotar um critério territorial para definir o distrito eleitoral5 possibilitaria a

representação de grupos que estão espacialmente dispersos por todo o território. O

ponto central é que a representação não deve ser vista como uma concessão de um

benefício das maiorias às minorias, mas como uma condição que, se não cumprida,

torna o sistema político injusto (Urbinati 2006: 41).

Alguns autores apontam que determinados sistemas eleitorais são mais

adequados que outros tendo em visto o contexto político-institucional. Elster (2008), por

exemplo, afirma que a RP é desejável como mecanismo de seleção para membros de

Assembléias Constituintes devido ao fato de atuar como um espelho da diversidade

social, possibilitando a formações de crenças racionais por meio da maior quantidade de

informação trazida pela heterogeneidade dos constituintes.

Amy (2002) argumenta, contra a noção de instabilidade dos sistemas de RP, que

sistemas majoritários podem levar a mudanças radicais da política a depender de quem

vence as eleições. O autor oferece como exemplo as mudanças de taxação durante os

anos 1970 no Reino Unido que variavam a depender do partido do Primeiro Ministro, o

que levou comunidades de empresários britânicos a preferirem a RP, por esta produzir

mudanças políticas mais graduais (Amy 2002: 197). Portanto, se por um lado a RP

4 Santos (2003) critica esse argumento afirmando não ser possível atribuir a representação proporcional as causas da crise de 1964. 5 É verdade que o território continua sendo o que determina a representação, exceto em Israel e na Holanda. O que os autores argumentam é que ao empregar distritos maiores a representação proporcional não impede que grupos espacialmente dispersos consigam representação.

7

obriga a negociações para a feitura de políticas, o que pode levar à instabilidade do

sistema político, o sistema majoritário pode causar instabilidades semelhantes ao

produzir mudanças radicais em políticas chaves para o bem-estar da população.

Outro argumento sustentado é que a RP aumenta o caráter político da população

ao adicionar substância às campanhas políticas. Isto ocorria em razão da introdução de

pontos de vistas diversos na arena política visando à representação no parlamento.

(Amy 2002: Cap.3).

Conforme veremos em seções abaixo, essas considerações teóricas são levadas

em conta nos modelos explicativos nas escolhas dos sistemas eleitorais. Argumentos

baseados no auto-interesse e em julgamentos normativos apontam para as

consequências acima levantadas.

2- Teorias de escolhas do sistema eleitoral

Muitas teorias explicativas foram formuladas buscando-se compreender a

escolha dos sistemas eleitorais. Almeja-se aqui apenas um mapeamento de alguns

modelos, com objetivo dúplice: levantar abordagens e conceitos úteis para o nosso

objeto empírico, e, em seções seguintes, chamar atenção para a ausência e os ganhos

heurísticos de incorporação da noção de “jogos ocultos” para as teorias sobre mudanças

de sistema eleitoral.

As transições do Leste Europeu, com a queda do mundo soviético, trouxeram

novo fôlego ao estudo de escolha do sistema eleitoral, com a produção de numerosos

trabalhos empíricos e teóricos. Ao mesmo tempo, trabalhos voltados para reformas

recentes na Europa Ocidental também se fizeram presentes, assim como releituras de

objetos e explicações clássicas, como a introdução da representação proporcional em

alguns países europeus no começo do século XX. Cabe ressaltar, entretanto, a ausência

do caso brasileiro na literatura internacional (e também nacional). A título de ilustração,

na coletânea (Handbook) de Colomer (2004) sobre escolha de sistema eleitoral ao redor

do mundo, encontra-se o texto de Nicolau (2004, cap. 4) sobre o caso brasileiro. No

entanto, a seção do autor é dedicada a explicar o funcionamento de nossas regras

eleitorais, e não se volta para analisar ou expor sua escolha, seja na Constituinte de 87-

88, seja em outro momento. A democratização recente do país, as críticas acadêmicas

constantes ao nosso sistema eleitoral e as constantes propostas de reforma no Congresso

Nacional reforçam a importância dessa ausência.

8

O sistema eleitoral, como argumentou Tsebelis (1998), é uma instituição

distributiva, ou seja, divide, desigualmente, os ganhos e perdas dos atores políticos. A

contraposição teórica é feita com uma instituição eficiente, que melhora a posição de

todos os participantes. O caráter distributivo do sistema eleitoral já indica que os atores

envolvidos na sua deliberação tendem a ter preferências conflitantes. Bawn (1993: 966)

afirma que “there will be disagreement about the choice of institutions whenever there

is disagreement about the policies those institutions will produce”. Além disso, é

também sabido que uma vez instituída, as regras eleitorais, como outras instituições,

adquirem certo viés de estabilidade, devido aos custos de transação impostos sobre sua

mudança. (cf. Pierson, 2004).

No âmbito do neo-institucionalismo, algumas abordagens foram desenvolvidas

visando estudar a escolha das instituições de um ponto de vista endógeno (cf. Rezende,

2009). Para o caso das instituições eleitorais, essa posição epistemológica apresenta um

ponto crucial: desde as famosas “leis” de Duverger, o sistema eleitoral aparece nas

análises tradicionalmente como uma variável independente. No entanto, no caso ora em

tela, trata-se de inverter essa posição: os arranjos eleitorais agora são a variável de

interesse6.

A discussão sobre as teorias de sistema eleitoral será guiada pelo levantamento e

classificação de Benoit (2004; 2007). O autor propõe duas grandes divisões: as que

focam diretamente nos atores, e as que assinalam fatores estruturais. Dentro da primeira,

Benoit (2004; 2007) distingue entre as “self-interest derived preference explanations” e

as “general interest derived preference explanations”. Note que ambas são preferências

derivadas, ou seja, a atenção dos atores não está voltada para as disposições do sistema

eleitoral em si, mas sim sobre os efeitos que ele traz para outros aspectos políticos.

Tsebelis (1998) chama essa situação de jogo em dois níveis. A baseada no “auto-

interesse” diz respeito aos pressupostos tradicionais da teoria da escolha racional, que

enxerga a definição sobre as regras eleitorais como um jogo de barganha entre os atores

envolvidos. A segunda, voltada para um “interesse geral”, incorpora preferências

normativas às motivações dos atores, relativas aos princípios políticos incorporados nos

sistemas eleitorais. Certamente, uma abordagem empírica pode combinar ambos os

enfoques, incorporando as intenções normativas ao auto-interesse dos atores. Quanto às

6 Cabe notar que um dos pontos destacados pela literatura é justamente o fato de que o sistema partidário influencia na definição do tipo de sistema eleitoral, o que consiste, nas palavras de Colomor (2005), colocar as leis de Duverger de “cabeça para baixo”.

9

abordagens estruturais ou contextuais, dizem respeito a outras esferas sociais, como a

influência do mercado econômico, a fatores culturais e ideacionais, e à importância da

história (path-dependence).

O nosso foco analítico e teórico cairá sobre o primeiro tipo de modelo, o que

versa sobre as preferências auto-interessadas dos atores políticos. Quanto às abordagens

estruturais, podemos assinalar inicialmente alguns pontos que podem ser levantados

para a compreensão do caso brasileiro.

Argumentos baseados na história podem assumir duas feições: de um lado, em

momentos de transição do autoritarismo para democracia, Benoit (2004; 2007) afirma

que o sistema eleitoral adotado no regime democrático anterior pode servir como um

“ponto focal” para as deliberações atuais. Como exemplo, Ricci (2006), discutindo o

caso italiano, afirma que a escolha da regra eleitoral pela constituinte em 1948 foi

pautada pela lei pré-fascista de 1919. Além disso, esse retorno às instituições anteriores

pode ser visto como uma consequência da rejeição do “entulho autoritário”, para usar

uma expressão da redemocratização brasileira dos anos 80. A análise do caso brasileiro

por meio dessa abordagem deve levar em conta um aspecto crucial: o regime autoritário

permitiu eleições para todos os cargos legislativos durante sua vigência, com relativa

competição efetiva com a oposição a partir de 1974. Para a câmara dos deputados, o

sistema adotado era a representação proporcional. No entanto, é sabido que o regime

militar buscou, principalmente no seu ocaso, instituir um modelo eleitoral misto,

majoritário e proporcional (cf. Porto, 2002). Logo, não fica claro qual é a direção da

escolha eleitoral teoricamente postulada para a constituinte de 87-88 por explicações

baseadas na rejeição das instituições do período ditatorial, ou no retorno a um sistema

eleitoral vigente anteriormente.

A análise estrutural-histórica também é utilizada com o conceito de path-

dependency. Aqui, o argumento é o de que decisões e escolhas sobre o sistema eleitoral

são constrangidas pelo sistema vigente, e que o custo de uma mudança são crescente em

escala (cf. Marenco, 2006). Ademais, Colomer (2005: 18), defende haver uma tendência

histórica em prol da adoção da RP: “the effective number of parties tends to increase in

the long term, under whatever electoral systems, thus creating further pressures in favor

of introducing or maintaining PR”.

Isto posto, pode-se argumentar que a questão que estamos debatendo, qual seja,

os motivos da “não-alteração” do sistema eleitoral na constituinte de 87-88, seria

teoricamente desnecessária, dados argumentos baseados em path-dependency do objeto

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em questão e em tendências históricas. No entanto, conforme veremos na descrição do

caso, a polarização não se deu entre os pólos majoritário e proporcional, mas sim entre o

proporcional puro e o misto. Assim, de fato, a trajetória do dispositivo eleitoral

brasileiro (proporcional desde o código de 1932) poderia ter de fato restringido o leque

de opções possíveis de escolha para os reformistas. No entanto, isso não significa que

não havia diferentes propostas em disputa, exemplificado pelo embate efetivo que de

fato ocorreu entre os proponentes do sistema misto e os defensores do status quo.

Outros argumentos estruturais que podem ser utilizados para se pensar o caso

brasileiro são a influência das ideias e cultura políticas, e a influência de especialistas

(cf. Flinders, 2010). O Brasil adota o princípio geral da RP desde os anos 30, de modo

que se deveria esperar que os valores embutidos na proporcionalidade fizessem parte da

“cultura política” nacional. No entanto, Nicolau (2002: 224) intui que a população

entende o funcionamento das eleições legislativas proporcionais como se fossem

majoritárias, no sentido de que são eleitos os candidatos mais votados. Além disso,

Lamounier e Souza (1991: 330-333) apresentam resultados de pesquisa de opinião com

a elite e com as massas em períodos próximos à Constituinte nos quais o apoio a um

sistema eleitoral misto atinge 55% e 66%, respectivamente. Neste sentido, não existem

evidências de que a manutenção da RP seja também embasada no imaginário político

nacional.

Benoit (2004, 2007) também assinala a possível influência de especialistas e

experts na definição dos sistemas eleitorais. A despeito desse argumento se basear em

um ator, ele se situa na parte de explicações contextuais, pois é de se esperar que os

comportamentos e as preferências dos especialistas seja diverso dos dos políticos.

Ademais, a decisão desses atores é, na grande maioria dos casos, uma sugestão para a

deliberação efetiva dos políticos. Anteriormente à instalação da Constituinte Brasileira

em fevereiro de 87, um grupo de “notáveis”, de variadas origens, especialidades e

matizes políticas, constituíram uma comissão objetivando a preparação de um texto-

base para a deliberação dos parlamentares. Tal grupo ficou conhecido como “Comissão

Afonso Arinos”, nome de um de seus integrantes. No que se refere ao dispositivo

eleitoral, Lamounier (2008: 26-7), um dos participantes da comissão e ligado aos

assuntos político-institucionais, afirma que “por convicção pessoal (...) eu me inclinei

para modelos conceitualmente semelhantes aos da Alemanha. (...) Na parte eleitoral

adaptei a primeira experiência alemã do após-guerra, posteriormente modificada”.

11

Logo, a proposta da Comissão para os trabalhos constituintes sugeria a reforma em prol

do sistema misto.

Em síntese, os argumentos baseados em fatores “estruturais”, quando aplicados

para o caso brasileiro, não tornam teoricamente trivial a manutenção do sistema

proporcional. Passemos agora para explicações baseadas em atores.

O outro conjunto de argumentos, centrado em atores auto-interessados, divide-se

em: office-seeking, policy-seeking e o que ressalta ganhos pessoais de determinados

agentes. O primeiro diz respeito a políticos e partidos que prezam, sobretudo, a posse de

cargos políticos. Trata-se da visão mais usual que se pode fazer das motivações dos

atores na escolha do sistema eleitoral: a escolha do sistema majoritário ou proporcional,

por exemplo, é determinada pela expectativa de ganho de cadeiras próprias em cada um

desse sistema. De modo geral, e sem entrar em pormenores, partidos maiores preferem o

primeiro tipo, os menores, o segundo. Segundo Benoit (2004, 2007), em contextos de

transição política, a incerteza sobre o futuro tende a ser grande7, aumentando a

importância da dimensão office-seeking nos determinantes das preferências dos atores

políticos sobre sistema eleitoral. O raciocínio é intuitivo: como não se tem certeza sobre

as demais instituições políticas a ser escolhidas, nem sobre o número e as similaridades

e diferenças ideológicas das demais forças partidárias, os partidos preferem maximizar a

expectativa de conquistas de cadeiras próprias, antes que outras considerações.

Shvetsova (2003) busca construir um modelo formal que destaca a incerteza

futura (do número de partidos competidores e das preferências dos eleitores) sobre as

deliberações da lei eleitoral e afirma que “sufficient degree of societal uncertainty is a

necessary condition for a meaningful institutional change” (Shvetsova, 2003: 208). Ou

seja, o contrafactual teórico da autora é: enquanto a certeza sobre o futuro da

competição partidário-eleitoral for grande, não é esperada uma mudança do sistema

eleitoral.

Shvetsova (2003) peca, no entanto, ao não levar em conta o aspecto “ofensivo”

da ação dos partidos. O argumento defensivo, apresentado pela autora, reforça o lado da

ameaça futura que podem sofrer os mandatários do presente quando da alteração

institucional. O ponto omitido consiste na possibilidade teórica de se ganhar ainda mais

com a mudança do sistema eleitoral. Partidos com número suficiente de parlamentares

para alterar a lei eleitoral, logo, partidos que foram “beneficiados” pelo sistema vigente,

7 Andrews e Jackman (2005) também assinalam a importância da incerteza.

12

podem agir dessa forma visando aumentar ainda mais sua expectativa futura de ganhos

de cadeiras. Benoit (2004) considera essa possibilidade no seu modelo de escolha

eleitoral, e Tsebelis (1998) afirma que diferenças no grau de informação sobre a

distribuição de forças e recursos têm impacto para o tipo de instituição a emergir:

eficientes e distributivas. Um alto grau de certeza pode gerar mudanças institucionais,

visando consolidar a posição dos dominantes no poder.

O quadro partidário da ANC 1987-88 era, à primeira vista, fortemente

concentrado em poucos partidos. O PMDB tinha mais de 50% das cadeiras, e o PFL

quase 25%. Portanto, alterações eleitorais visando um caráter mais majoritário poderiam

ser esperadas. Dois pontos atuam contra essa proposição: o primeiro é a

heterogeneidade interna do PMDB; o segundo é a possível perda de “capital” eleitoral

que o partido iria sofrer com o desgaste do governo Sarney. Fleischer (1988) mostrou

que muitos membros do PMDB à época eram da constituinte eram egressos da Arena.

Por características históricas e político-institucionais, o partido era considerado uma

frente ampla, composta de muitas facções. Portanto, deve-se considerar a possibilidade

de existir preferências internas divergentes nos partidos. Quanto ao segundo ponto, o

fracasso do plano Cruzado e as dificuldades do governo Sarney poderiam impactar

negativamente a imagem de congressistas do PMDB nos seus desempenhos em pleitos

futuros.

Um dos índices que mensura a adesão do eleitorado à sigla partidária é a

identificação partidária. Carreirão e Kinzo (2004) mostram uma série temporal nacional

de dados de identificação partidária na Nova República. O ano mais longínquo coberto

pelos autores é 1989. Nele, o PMDB é o partido com maior porcentagem de eleitores

identificados, posição que manteve até 1999. Pode-se considerar também os resultados

eleitorais de 1988 como proxy de força da legenda partidária. Nesse caso, as disputas

municipais não trouxeram bons presságios para o partido: se em 1985 tinha conquistado

19 capitas, em 1988 foram apenas 4.

No entanto, não é direta a ligação entre maior ou menor influência da imagem

partidária sobre o desempenho eleitoral do candidato legislativo e preferência sobre

sistema majoritário, misto ou proporcional. O que pode ser afirmado é que eleições

majoritárias favorecem grandes concorrentes, seja o adjetivo “grande” referido a

partidos ou a nomes individuais. E, devido à história partidária de então, tanto o PMDB

quanto o PFL provavelmente teriam os candidatos locais mais fortes. Logo, seria de se

esperar um esforço desses partidos em reformar a representação proporcional vigente.

13

Quanto aos demais partidos principais, pode-se dizer que: (1) PT e PDT, como eram à

época pequenas agremiações, tenderiam a apoiar a proporcionalidade; (2) a posição do

PDS é mais ambígua, pois passava por uma tendência de declínio eleitoral (era o partido

egresso do regime em decadência), mas, possuía máquinas partidárias locais herdeiras

do ex-maior partido do Ocidente, facilitadoras em ganhar cadeiras em regras

majoritárias.

A corrente que ressalta atores policy-seeking afirma que eles se preocupam antes

com os resultados de políticas engendrados pelo sistema eleitoral do que com a

maximização de suas próprias cadeiras. Assim, os partidos buscam averiguar a provável

distribuição de forças políticas determinada pelas características da regra eleitoral, e

escolher aquela que mais se aproxima das suas posições ideológicas8.

Essa interessante abordagem mostra-se mais adequada quando as configurações

ideológicas partidárias estão mais estáveis, assim como a distribuição de suas forças

eleitorais. No Brasil do final da transição pode-se dizer que essas exigências eram

residualmente cumpridas. Ademais, e principalmente, os dois maiores partidos, PMDB

e PFL eram aliados no governo federal, não tendo incentivos diretos para buscar

propostas eleitorais prejudiciais uns aos outros.

Benoit (2004, 2007) assinala a importância que pode assumir a ação de certos

atores específicos na configuração do sistema eleitoral. Esse ponto pode encontrar

aplicação direta no caso brasileiro: como se sabe, o então presidente José Sarney foi um

ator com muita importância sobre no comportamento dos constituintes. No que tange às

escolhas institucionais, é constantemente ressaltado que as intervenções do presidente

foram determinantes na definição do sistema de governo, em favor da manutenção do

presidencialismo. A aplicação dessa hipótese nas escolhas sobre sistema eleitoral é

menos comum e mais indireta, no entanto, Ames (2003: 47-8) apresenta indicações de

que também nessa área as propostas institucionais reformistas foram prejudicadas pela

atuação do presidente da República.

Por último, as “preferências derivadas de interesse geral”. Aqui, os interesses

dos atores abarcam avaliações sobre os pressupostos e as esperadas consequências

8 Bawn (1993) utiliza esse pressuposto para analisar o caso da Alemanha do pós-guerra. A autora explica o apoio do SPD (Partido Social-Democrata) ao sistema misto em 1953, em detrimento do majoritário, como meio de diminuir a expectativa de ganhos de cadeiras de seu rival CDU (Partido da Democracia Cristã), mesmo isso implicando perdas para si próprio. O raciocínio do partido baseava-se na probabilidade da primeira expectativa ser maior que a segunda.

14

normativas das configurações institucionais. No nosso caso de análise, duas dimensões

fazem-se importantes: a governabilidade e a representatividade.

É de se imaginar que preocupações desse nível exerceram papel na constituinte

brasileira de 1987-88. A título de exemplo, podemos elencar alguns pronunciamentos

nas audiências públicas. Maurício Campos, representante do PFL, afirma que “um

sistema distrital de eleição fortalece oligarquias locais” (ANC, Atas de Comissões –

Subcomissão do Sistema Partidário e Eleitoral, p. 45); já o constituinte Joaquim

Bevilacqua (PTB), ao defender o sistema misto, declara que: “através do voto

proporcional teremos representatividade, (...) e, através do sistema majoritário, teremos

uma representação mais forte”. (Atas da Comissão de Sistematização, 1-9-1987, p. 434)

O objetivo desta seção foi elencar variáveis explicativas ressaltadas por teorias

de escolha de sistema eleitoral, chamando atenção para sua possível aplicação para o

caso brasileiro de 87-88. Buscamos mostrar que, em grande medida, elas prescreveriam

a reforma eleitoral brasileira na Constituinte de 1987-88, passando de um sistema

proporcional para outro com algumas feições mais majoritárias.

Em seções seguintes, apresentaremos a noção de jogos ocultos, e de que forma

ela pode ser utilizada para se pensar nosso objeto empírico e ser incorporada nos

modelos de escolha de sistema eleitoral.

3- A trajetória do Sistema Eleitoral na ANC 87-88l9

Inicialmente, cabe uma descrição do funcionamento interno da ANC de 1987-8.

Diferente das Assembléias Constituintes anteriores, a de 1987-8 não adotou nenhum

anteprojeto como base de seus trabalhos10. A opção dos constituintes foi por uma

estrutura descentralizada, organizada a partir de oito Comissões Temáticas divididas,

cada uma, em três subcomissões. Cada subcomissão ficou encarregada de escrever um

anteprojeto que deveria ser encaminhado a Comissão Temática, na qual os três textos

seriam analisados e sistematizados produzindo um só anteprojeto por Comissão que, por

sua vez, seria encaminhado a Comissão de Sistematização (CS). A CS ficaria com a

tarefa de organizar os oito anteprojetos temáticos em apenas um projeto de Constituição

9 Esta seção é uma versão condensada do nosso trabalho anterior Simoni Jr., Silva e Souza (2009). Serão expostos apenas os principais argumentos, pontuando os momentos chaves da discussão. 10 É verdade que o Presidente Sarney encomendou um texto base a uma comissão de notáveis, a Comissão Affonso Arinos, em 1985 com o intuito de que os trabalhos constituintes fossem realizados tendo em base o produto das deliberações desta comissão. Contudo, os constituintes logo no início dos trabalhos rejeitaram a opção de deliberar com base em um anteprojeto.

15

a ser apreciado, em dois turnos, no plenário. Deste modo, todos os dispositivos

constitucionais poderiam passar por até quatro instâncias de decisão.

A trajetória da escolha da RP teve inicio na Subcomissão do Sistema Eleitoral

que teve como presidente Israel Pinheiro Filho (PMDB) e como relator Francisco Rossi

(PTB). A escolha do método de seleção dos parlamentares da Câmara Baixa foi o tema

que mais mobilizou a atenção dos constituintes que integravam esta Subcomissão.

Exemplo é o fato de que durante as audiências públicas todos os palestrantes ouvidos

defenderam a RP ou algum tipo de sistema misto.

Merece destaque o caráter conflitivo da matéria nesta arena. Diferente do que

ocorreu em estágios mais avançados, como no plenário, não havia uma maioria que

apoiasse uma das opções de sistema eleitoral. Isto é, os constituintes se dividiram entre

os que apoiavam a RP e os que preferiam um sistema misto.

Os argumentos mobilizados em defesa do sistema misto versavam sobre o

combate a corrupção eleitoral, o barateamento do custo das eleições, o impedimento de

disputa intrapartidária e a contemplação do melhor dos dois mundos: a RP permitiria

uma representação à minoria, enquanto o sistema majoritário aumentaria o controle dos

partidos sobre os parlamentares. Como se pode observar, exceção feita ao último

argumento, todas as defesas ressaltavam pontos, normalmente, associados aos sistemas

majoritários. Este fato corrobora as expectativas do período pré-constituinte, quando

Ulysses Guimarães (PMDB) chegou a declarar à Veja que “o voto distrital é quase um

fato consumado” (Revista Veja nª 961, 4/2/1987:25). Fato notável é que alguns

argumentos mobilizados em defesa da RP eram os mesmos, por exemplo, que a RP

favorece o controle do partido sobre os políticos e que esse sistema diminui a influência

do poder econômico na eleição (Simoni, Silva e Souza 2009: 180). Contudo, uma

diferença no uso deste último argumento é que os defensores da RP o mobilizavam para

enfatizar as preocupações sobre a representação de minorias no parlamento11.

Em razão do intenso debate entre os constituintes, o dispositivo do anteprojeto,

que contemplava o sistema misto foi posto em votação. O resultado foi um empate, o

que obrigou o presidente da Subcomissão, Israel Pinheiro Filho (PMDB), a votar uma

segunda vez para desempatar a questão.

11 Podemos notar esse argumento na justificativa da emenda 4ª0103-1 de Lídice da Mata (PC do B) que pedia a alteração do texto do anteprojeto em favor da RP.

16

Tabela 1 Votação da EMENDA 4ª0003-4 de Paulo Delgado que dispunha sobre

a adoção da RP. Partido SIM NÃO PMDB 4 8* PFL 3 2 PDT 1 0 PTB 0 1 PT 1 0 PC do B 1 0 TOTAL 10 11

Fonte: Elaboração própria utilizando os diários da ANC.

A tabela 1 mostra o resultado da votação. Nota-se que não houve uma clivagem

direita – esquerda, nem mesmo uma coesão partidária dos dois maiores partidos da

ANC. Isto sinaliza que o sistema eleitoral não era um tópico que gerava uma divisão

ideológica entre os partidos e, mais ainda, que fosse uma questão fechada dentro das

agremiações partidárias. Podemos inferir, ao menos para esta arena, que cada

parlamentar optou pelo sistema que considerava melhor. Deste modo, o anteprojeto da

Subcomissão do Sistema Eleitoral foi enviado para a Comissão da Organização

Eleitoral, Partidária e Garantias Institucionais contendo como dispositivo para a escolha

dos parlamentares da Câmara Baixa o sistema misto.

Na segunda fase de deliberação, a opção pelo sistema misto foi aclamada pelo

relator da Comissão, Prisco Vianna (PMDB), como uma das mais importantes e

fundamentais inovações que a ANC poderia realizar. O contentamento do relator é

tamanho que chega a defender a adoção do sistema para a escolha dos vereadores em

municípios com eleitorado maior que um milhão. Vianna emprega, no relatório sobre os

anteprojetos das subcomissões, argumentos parecidos com que foram utilizados pelos

defensores do sistema misto na Subcomissão. Exemplos são: que o sistema misto

elimina a disputa entre companheiros do mesmo partido; que o poder econômico

influenciaria menos nas eleições; e que favorece a fiscalização dos políticos por parte

dos eleitores, o que equivale a dizer, no linguajar da Ciência Política, que o sistema

distrital misto favorece a accountability.

No entanto, apesar dos elogios do relator, a adoção desta regra eleitoral não era

de natureza consensual dentro da Comissão. Diversos constituintes apresentaram

emendas ao anteprojeto requerendo que este fosse modificado em prol da RP. O

presidente da Comissão, o constituinte Jarbas Passarinho (PDS), entendendo o caráter

* Israel Pinheiro Filho (PMDB) votou duas vezes para desempatar a questão.

17

divisivo da questão, colocou em votação, em bloco, as emendas que demandavam a

adoção da RP. A tabela 2 apresenta o resultado da votação.

Tabela 2

Votação em bloco das EMENDAS que propunham RP

Partido SIM NÃO PMDB 11 23 PFL 7 6 PDS 1 3 PDT 1 2 PTB 0 2 PT 2 0 PC do B 1 0

TOTAL 23 36 Fonte: Elaboração própria utilizando os diários da ANC.

Apesar do apoio recebido pela RP, o sistema misto contou com o apoio da

maioria dos constituintes membros desta Comissão. Assim, foi encaminhado para a

Comissão de Sistematização o anteprojeto que contemplava o sistema misto como

método de conversão de votos em cadeiras para a Câmara Baixa.

Antes de apresentarmos os debates no interior da CS, cabe pontuar que, além de

ser objeto da Subcomissão do Sistema Eleitoral, o dispositivo aqui estudado foi

deliberado também na Subcomissão do Poder Legislativo.

Não obstante, o tema do sistema eleitoral não foi alvo de acalorados debates no

interior desta Subcomissão. Exemplo é a omissão feita no texto do anteprojeto do

relator ao tratar sobre como a Câmara dos Deputados deveria ser composta12. Tal lacuna

motivou os constituintes a apresentarem emendas e manifestarem suas opiniões sobre

qual sistema deveria ser adotado. Foram apresentadas nove emendas das quais duas

pediam a inclusão do sistema majoritário e outras sete a inclusão do sistema

proporcional. Em vista a essas emendas o relator, José Jorge (PFL), incluiu na segunda

versão do seu anteprojeto a RP como método de seleção dos deputados. Esta opção não

foi questionada pelos demais constituintes da Subcomissão e foi encaminhada a

Comissão dos Poderes e Sistema de Governo, na qual foi uma no issue. Ou seja, não foi

debatida e o anteprojeto da Comissão foi encaminhado a CS dispondo como sistema

eleitoral a RP.

A Comissão de Sistematização foi contemplada como principal arena decisória

da ANC. Sua tarefa era de compatibilizar os anteprojetos das Comissões Temáticas em

12 Ao tratar de como o Senado era composto o relator faz alusão ao sistema eleitoral que deveria ser empregado. No caso, o sistema majoritário de maioria simples.

18

um só projeto de Constituição a ser encaminhado ao Plenário da ANC. O texto por ela

elaborado adquiria o caráter de status quo, isto é, para ser alterado pelo Plenário seria

necessária maioria absoluta dos votos, 280 votos, daí sua força. (Coelho 1988). E, o

mais importante para nossos propósitos, alguns autores, como Gomes (2006, 202-3),

afirmam que existia um viés progressista/reformista na Comissão, vis-à-vis o plenário.

Os projetos formulados pela CS culminariam, por exemplo, na formação do bloco

conhecido como “Centrão”, que buscou moderar o conteúdo da carta constitucional.

Os debates nessa arena são crucias para a interpretação que propomos sobre a

manutenção da RP. A questão da escolha do sistema eleitoral passou a ser posta em

termos de governabilidade X representatividade, além de ser vinculada com a questão

do sistema de governo.

De um lado, parecia existir uma associação nos argumentos dos parlamentares

entre a necessidade de algum tipo de sistema majoritário, mesmo que misto, caso fosse

adotado o parlamentarismo13; enquanto, de outro lado passaram a se tornar claras as

preocupações dos menores partidos com a possível aprovação de algum sistema que

dificultasse sua eleição. Parlamentares da esquerda, principalmente, argumentavam que

caso fosse aprovado um sistema misto os candidatos populares teriam maiores

dificuldade de se eleger, visto que o quociente eleitoral dobraria na parte proporcional

do sistema.

Entre os argumentos em defesa da RP é possível verificar no discurso de alguns

constituintes a famosa metáfora do parlamento como um espelho, e que a RP produziria

tal resultado. Este tipo de defesa é encontrado no discurso do então líder do PT, José

Genoíno “a representação proporcional é o contrário [do sistema misto], ou seja, tem

que representar um espelho na conformação político-ideológica da sociedade” (Atas da

Comissão de Sistematização, 01/09/1987, p.435). Não obstante, muitas das defesas ao

sistema misto partiam do mesmo princípio, ou seja, da representatividade. Um dos

argumentos mais fortes nesse sentido foi apresentado por Israel Pinheiro Filho (PMDB)

que criticava o sistema proporcional por permitir, no seu entender, a eleição de

candidatos que nunca foram aos distritos eleitorais. Segundo o constituinte, este era um

exemplo da predominância econômica nas eleições, característica que o sistema misto

poderia ajudar a combater. Outro argumento mobilizado pelos defensores do sistema

13 Podemos ver a existência deste tipo de argumento no discurso que o constituinte Jorge Hage faz tentando desvincular a necessidade da adoção do sistema distrital misto caso fosse aprovado o parlamentarismo (Atas da Comissão de Sistematização, 17/09/1987, p. 669).

19

misto era que ele poderia ajudar a melhorar a governabilidade, garantido a estabilidade

do sistema político, pois o sistema misto daria maior controle aos líderes partidários.

Ponto que os defensores da RP criticavam. Para eles a introdução de qualquer tipo de

sistema majoritário poderia ocasionar um déficit de representação, o que poderia afetar

o funcionamento do sistema político.

Em vista a este conflito e possível impasse que se desenhava, Israel Pinheiro

Filho (PMDB) sugeriu ao relator da CS Bernardo Cabral (PMDB), que havia dado

parecer favorável ao sistema distrital misto em seu anteprojeto, que deixasse a decisão

acerca do sistema eleitoral para legislação ordinária a ser decidida no ano seguinte.

Cabral adotou a sugestão e em seu segundo substitutivo, Cabral II, não houve menção a

um sistema eleitoral especifico, apenas que ele seria determinado por lei complementar.

Entretanto, a questão não estava encerrada. No dia 5 de novembro de 1987 foi

posta em votação a emenda de Brandão Monteiro (PDT) e Enoc Vieira (PFL) que pedia

a adoção da RP como meio para seleção dos deputados federais.

Tabela 3

Votação da EMENDA nº ES – 33684-3 de Brandão Monteiro e Enoc Vieira

Partido SIM NÃO ABSTENÇÕES PMDB 31 14 3 PFL 17 7 0 PDS 1 5 0 PDT 3 0 0 PTB 2 1 0 PT 2 0 0 PL 1 0 0 PDC 1 0 0 PC do B 1 0 0 PSB 1 0 0 PCB 1 0 0

TOTAL 61 27 3 Fonte: Elaboração própria utilizando os diários da ANC.

Como pode ser observado, a RP foi aprovada obtendo apoio dos pequenos

partidos e da maioria do PFL e do PMDB. O único partido que votou majoritariamente

contra a RP foi o PDS, o que pode estar ligado a sua origem histórica, ou seja, ao seu

passado como Arena, quando em diversos momentos propôs a adoção do sistema

majoritário (Porto 2002: 337).

20

Cabe apontar que antes das votações o constituinte Antonio Mariz (PMDB) ao

argumentar a favor da RP afirmou que não há ligação lógica entre parlamentarismo e

sistema distrital e que sustentar tal argumento seria um equívoco. Ou seja, o constituinte

esforça-se em desvincular a necessidade da aprovação do sistema misto caso seja

aprovado o sistema parlamentarista. Ao argumentar contra a emenda, Egídio Ferreira

Lima (PMDB) faz coro à desvinculação entre o sistema de governo e o sistema eleitoral.

Na opinião do constituinte havia uma confusão instalada na Casa em razão do

parlamentarismo e do sistema majoritário terem nascido ao mesmo tempo na Inglaterra,

entretanto esta relação seria inexistente. Neste sentido, Egídio Lima afirma que defende

que o SE seja deixado para legislação complementar a fim de que não se perca o foco

do que é fundamental: a decisão sobre o sistema de governo (Atas da Comissão de

Sistematização, 05/11/1988, p. 1043-1046).

Assim, o projeto de Constituição foi encaminhado ao Plenário consagrando a

RP. No Plenário houve duas votações que versaram sobre o sistema eleitoral. A

primeira objetivava que o sistema fosse o distrital misto e foi rejeitada pela maioria dos

presentes no Plenário (Sim 142; Não 340), a segunda pedia que o sistema eleitoral fosse

matéria de legislação complementar, assim como estava no Cabral II, e também foi

derrotada por 143 votos a favor contra 323 votos contrários. Novamente, antes destas

votações alguns constituintes levantaram argumentos tentando desvincular a

necessidade da adoção de um sistema distrital caso a opção do sistema de governo fosse

pelo parlamentarismo. Entre os constituintes que defenderam a RP estava o relator

Bernardo Cabral. É importante notar que nem em Cabral 1, nem em Cabral 2 o relator

havia preferido a RP, no entanto, no plenário, Cabral arguiu em favor da RP defendendo

a desvinculação entre o sistema de governo e o sistema eleitoral (Diários da ANC, 1988,

nº205: 92).

O fluxograma abaixo sintetiza esta trajetória que contamos sinalizando em cada

uma das esferas que o sistema foi tratado a forma preferida pelos seus membros.

21

Fluxograma 1 – Trajetória da escolha do Sistema Eleitoral na ANC 1987-8

4- Jogos ocultos e a escolha do Sistema Eleitoral.

Para interpretação do caso brasileiro, bem como visando oferecer contribuições

teóricas para a literatura de escolha de sistema eleitoral, introduzimos aqui a noção de

“jogos ocultos”, tal como apresenta por Tsebelis (1998). A idéia de jogos ocultos se

enquadra no arcabouço mais geral da teoria da escolha racional, e da teoria dos jogos

mais especificamente. O autor busca formular um modelo teórico que seja capaz de

explicar (ou compreender) escolhas políticas aparentemente sub-ótimas, ou seja, cursos

de ações tomados pelos atores em determinado jogo que não são os mais adequados,

numa análise convencional. O advérbio “aparentemente” já denota o ponto a ser

levantado por Tsebelis: as decisões dos atores deixariam de ser vistas como sub-ótimas

ao se incorporar na análise outros jogos ou arenas nos quais os atores estariam

envolvidos. Os jogos ocultos são de dois tipos: múltiplas arenas ou mudanças nas

regras. No primeiro caso, os atores estão envolvidos em jogos correlatos, de modo que

resultados em uma arena influenciam as recompensas das estratégias em outra. No

segundo caso, os atores buscam mudar as regras de interação do jogo em que estão

interagindo. Trata-se de um projeto de inovação institucional.

Do ponto de vista técnico, o autor destaca dois pontos de seu modelo: a

cardinalidade das recompensas (payoffs) e a possibilidade de estratégias contingentes

e/ou jogos iterativos. Ambos estão relacionados. No que diz respeito ao primeiro,

Tsebelis (1998) busca marcar que não é a ordem dos payoffs que importa, mas sim sua

22

grandeza. Além disso, essa magnitude dos payoffs é variável. A possibilidade de

variação é dada pela estratégia contingente e pelos jogos iterativos. A primeira

considera atores envolvidos em múltiplos jogos, nos quais o comportamento e os

resultados são mutuamente influenciáveis. O segundo considera jogos repetidos no

tempo. Os payoffs variam aqui devido à possibilidade de comunicação, promessas e

ameaças críveis, castigos, etc.

A abordagem de Tsebelis busca introduzir o contexto político nos modelos

teóricos de escolha racional. O uso de sua teoria que pretendemos fazer é substantivo,

antes que técnico: não buscamos modelar a escolha de sistema eleitoral, mas sim trazer

subsídios para introduzir um ponto pouco explorado nas teorias que se dedicam a esse

objeto. Trata-se da possibilidade de se pensar a decisão sobre as regras eleitorais como

imersa em outras arenas políticas, passíveis de influenciar o comportamento dos atores

na escolha do sistema eleitoral. O nosso objeto é um projeto institucional, de mudança

da lei eleitoral, no entanto, utilizamos a perspectiva do jogo em múltiplas arenas para

compreendê-lo. Assim, representa um uso inovador também do ponto de vista da

abordagem de Tsebelis.

No caso que estamos tratando, da escolha da regra eleitoral na constituinte

brasileira em 87-88, defendemos a hipótese de que o jogo que definiu essa decisão foi

influenciado por outro jogo, a saber, a escolha do sistema de governo.

Ambas as arenas dizem respeito às instituições políticas básicas e essenciais, nas

quais os políticos e partidos não tendem a ser indiferentes. O status quo à época da

constituinte era a representação proporcional e o presidencialismo. Durante a

deliberação da Carta Magna, duas propostas de reforma tornaram-se viáveis: o sistema

eleitoral misto, a la modelo alemão, e o parlamentarismo.

Como aqui o objeto são decisões sobre instituições, as trocas de apoio e os

logrollings adquirem outra dimensão: “como a expectativa de vida das instituições é

muito maior do que a das políticas públicas, tanto as conseqüências de uma escolha

institucional como a incerteza que a cerca são elementos muito mais importantes no

cálculo” (Tsebelis, 1998: 102). Assim, alterações nas preferências expressas dos atores

sobre arcabouços institucionais não são decisões triviais.

A interpretação que oferecemos em outro texto (Simoni Jr., Silva e Souza,

2009), e que retomamos aqui, é a de que atores que presumivelmente estariam

interessados em propor modificações no SE vigente, no sentido de acentuar um caráter

mais majoritário, modificaram suas preferências reveladas, aceitando a

23

proporcionalidade. Os interesses destes era angariar maior apoio à proposta de reforma

do sistema de governo, de presidencialismo para parlamentarismo.

De todo o trâmite interno sofrido pelos textos constitucionais, a arena da

Comissão de Sistematização (CS) é a mais importante para a explicação que oferecemos

sobre a escolha do sistema eleitoral. Ela era composta pelos relatores das 24

subcomissões temáticas e pelos presidentes e relatores das 8 comissões temáticas, além

de outros membros próprios. As estratégias de indicação dos líderes dos partidos,

notadamente Mário Covas do PMDB, resultaram, segundo a interpretação corrente

(Jobim, 1994; Gomes, 2006), em uma composição enviesada da CS, em favor dos

membros com posições mais à esquerda ou centro-esquerda no espectro político, e mais

reformistas nas questões institucionais.

As diversas contendas políticas entre a Sistematização e o plenário, travadas

sobre as propostas elaboradas, não foram suficientes para contemplar as preferências de

grupos conservadores, que se juntariam numa “coalizão de veto” para reformar o

Regimento Interno e alterar o projeto da CS (agrupamento que ficou conhecido como

Centrão) (Freitas, Moura e Medeiros, 2009; Lopes, 2009).

O caminho sofrido pela definição do sistema eleitoral, desse ponto de vista, foi o

inverso do que se esperava. As decisões da Subcomissão do sistema partidário e

eleitoral e da Comissão da Organização Eleitoral, Partidária e Garantia das Instituições

foram a favor do sistema misto. A decisão na CS, ao contrário, contemplou a RP. Esse

resultado é ainda mais surpreendente se se considera, também, que nas instâncias

inferiores da ANC parlamentares do “baixo clero”, isso é, políticos que não tinham

posição proeminente na estrutura partidária, eram mais numerosos que na CS, onde as

grandes lideranças do Congresso dominavam. Como em eleições majoritárias a posição

das lideranças sobre as nomeações de candidaturas tende a ser mais forte, seria de se

esperar que as arenas da Subcomissão e da Comissão eleitoral fossem mais relutantes a

um sistema majoritário ou misto.

Assim, para entender a decisão da CS sobre a manutenção da representação

proporcional, propomos que se deve incorporar as deliberações sobre o sistema de

governo, e analisar as estratégias dos atores por meio da noção de “jogo oculto”. Os

reformistas das estruturas institucionais decidiram concentrar esforços na alteração do

sistema de governo, de presidencialismo para parlamentarismo e, como parte dessa

estratégia, consentiram em manter a representação proporcional. O fulcro da questão

24

estava em conseguir apoio de pequenos partidos e parlamentares do “baixo clero” para o

projeto parlamentarista.

No que se refere ao sistema de governo, Lopes (2009) mostra as dificuldades

que ambas as correntes, parlamentaristas e presidencialistas, tinham de construir

maiorias em favor de suas propostas. Nenhum grupo político, como a Sistematização e

o Centrão, lançou texto base para votação, e nem PMDB nem PFL fecharam questão.

Os defensores de ambos os sistemas sabiam que não possuíam maioria garantida. Nossa

interpretação é que constituintes parlamentaristas relegaram ao segundo plano a

definição sobre sistema eleitoral, visando diminuir resistências à adoção do

parlamentarismo. Conforme indica Lopes (2009, 90) “o regime de governo foi, dentre

os ingredientes da ordem política, o que mais empolgou a Assembléia, gerando 259

intervenções em plenário, (...) ao passo que o sistema eleitoral foi objeto de 50

discursos”.

Nos debates da Constituinte, Pimenta da Veiga (PMDB-MG), um dos líderes

reformistas do PMDB que não aderiu à estratégia traçada acima, expressa o que seria as

preferências “sinceras” de um grupo de parlamentares:

“Quero chamar a atenção para o fato de que será profundamente difícil o

parlamentarismo estabilizar-se em nosso País, com um sistema eleitoral incorreto e

defasado. Lembro aos pequenos partidos, que com tanto ardor se voltam contra a

possibilidade do voto distrital misto, que talvez estejam cometendo um erro censurável

e indesculpável, ao se colocarem entre posições extremas: o voto proporcional e o voto

distrital”. (Diários da ANC, 1988, nº205: 95)

A análise das votações sobre emendas em ambas as questões na CS mostra que

um número considerável de parlamentares reformistas endossou a proporcionalidade no

sistema eleitoral, dentre eles, Fernando Henrique Cardoso (PMDB-SP) e Afonso Arinos

(PFL-RJ). (Simoni Jr., Silva e Souza: 197).

Logo, a proposta de parlamentares reformistas era de alterar os payoffs de

constituintes indiferentes ou quase indiferentes ao tipo de sistema de governo em prol

do parlamentarismo, por meio da garantia da manutenção da representação

proporcional, instituição mais cara aos interesses de parlamentares do baixo-clero.

Têm-se então dois jogos ocultos ocorrendo em duas arenas: sistema de governo

e sistema eleitoral na Comissão de Sistematização, e ambas decisões no plenário.

Reformistas sabiam que poderiam ganhar as duas propostas na primeira arena, mas não

25

estavam certos na segunda. Então, por uma questão de prioridade, buscaram um

compromisso com parlamentares do baixo-clero e/ou partidos pequenos. Trata-se de

uma estratégia contingente, com objetivos de mudanças de recompensas.

Do ponto de vista formal, utilizando de raciocínios tanto indutivos (com base

nos debates da constituinte), quanto dedutivos, pode-se dizer que:

(1) Líderes parlamentaristas do PMDB e PFL (reformistas institucionais) A) Parlamentarismo > Presidencialismo; B) Misto > Proporcional

(2) Líderes presidencialistas do PMDB e PFL (conservadores institucionais)

A) Parlamentarismo < Presidencialismo; B) Misto > ou = Proporcional

(3) “Baixo clero” do PMDB e PFL e alguns pequenos partidos (sem clara

preferência sobre sistema de governo) A) Parlamentarismo = Presidencialismo; B) Misto < Proporcional

Nossa hipótese defende que a primeira inequação de (1) é maior que a segunda,

o que os levou a não agir com suas preferências sinceras na votação da emenda

“Brandão Monteiro”, que institui a proporcionalidade. A intenção era fazer pender a

igualdade (A) de (3) em prol do parlamentarismo.

Se essa estratégia se mostrou eficaz na Sistematização, mantendo o

parlamentarismo, não foi suficiente no plenário, pois a emenda presidencialista foi

aprovada em março de 88, com 61% de votos favoráveis.

Para finalizar, alguns dos autores discutidos acima, nas teorias de escolha de

sistema eleitoral, em determinados momentos assinalam a possibilidade de se utilizar a

noção de jogos ocultos para formular modelos de escolha de sistema eleitoral. Benoit

(2004: 385), por exemplo, ao discutir possíveis ausências de seu modelo teórico, afirma

que

“the single-institution focus may yield only a partial picture, since bargains and even

strategic preferences during bargaining may occur in the context of a larger institutional

package, especially simultaneous negotiations about the executive structure” Benoit

(2004: 385).

Assim, nossa proposta caminha nesse sentido, de incorporar o contexto político à

decisão sobre sistema eleitoral.

26

5- Considerações Finais

Este texto procurou analisar a escolha do sistema eleitoral brasileiro, na

Assembléia Nacional Constituinte de 1987-88, buscando preencher um objetivo

dúplice: incorporar um caso pouco estudado pela literatura internacional, e propor a

incorporação de um conceito teórico pouco utilizado pelos modelos explicativos: a

noção de jogos ocultos.

Mostramos que a manutenção da representação proporcional não foi uma

decisão sem conflito, antes, esteve no fulcro das decisões mais importantes tomadas

pela Constituinte. Nosso argumento é o de que parlamentares que desejavam reformas

nas instituições políticas estavam inseridos num “jogo oculto”: as arenas do sistema

eleitoral estavam relacionadas às decisões sobre o sistema de governo, e a estratégia

adotada resultou na subordinação da primeira decisão sobre a outra.

Para finalizar, levantamos a possibilidade desse arcabouço teórico gerar novas

interpretações em demais decisões sobre o formato do sistema eleitoral, seja no Brasil,

seja em outros lugares, e também em outros contextos decisórios, notadamente numa

assembléia legislativa ordinária.

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