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Sem Opção Veículo: Exame - Caderno: Economia - Seção: Não Especificado - Assunto: Trabalho - Página: online - Publicação: 14/02/20 URL Original: https://exame.abril.com.br/revista-exame/burn-out/ Precisamos falar sobre burnout REVISTA EXAME Precisamos falar sobre burnout Metas, horas extras, pressão e uma cultura que faz da saúde mental um tabu são causas de esgotamento entre executivos, funcionários e empreendedores Por Marina Filippe , Murilo Bomfim access_time13 fev 2020, 10h05 - Publicado em 13 fev 2020, 05h50 more_horiz Burnout: As perdas econômicas e sociais são enormes — mas há soluções em curso Ilustração: Sergio Bergocce / (/) O trabalho pode ser gratificante, mas também sufocante — e não é de hoje. O personagem Carlitos, interpretado pelo britânico Charles Chaplin em um de seus mais marcantes filmes, trabalha na linha de produção de uma fábrica apertando peças metálicas. A pressão em seu setor aumenta: a mando da alta gestão, a velocidade na linha fica mais intensa. Com certa dificuldade, Carlitos acompanha o ritmo sob o olhar severo de seu gestor direto. Pouco tempo depois, novas ordens para aumentar a produtividade. Carlitos parece entrar numa espiral de ansiedade, acaba subindo na esteira e sendo levado para dentro da máquina. “Ele é louco”, grita um colega de trabalho. O episódio dá início a Tempos Modernos, filme lançado em 1936 que aborda situações cômicas de um universo recém-industrializado. Na época, a força global de trabalho sentia os impactos da Segunda Revolução Industrial. O contexto era de baixos salários, ambiente laboral precário e alto índice de desemprego — condições ideais para gerar a confusão mental vivida por Carlitos. Quase 100 anos mais tarde, a chamada Quarta Revolução Industrial promete uma intensa automatização do trabalho. A inteligência artificial e o apoio de robôs deveriam deixar mais tempo para as pessoas se dedicarem às tarefas analíticas e às habilidades humanas. A evolução nos hábitos de consumo também deveria nos levar a uma rotina mais saudável e flexível, com mais espaço para o ócio. Por ora, não é o que se vê. Os anos 2020 deverão ser marcados como aqueles que popularizaram o burnout, ou esgotamento pelo trabalho. O fenômeno é global — e o Brasil, infelizmente, é um dos destaques. No Japão, 70% da população economicamente ativa diz ter tido burnout. Em 2016, quase um quarto das empresas japonesas exigia que os funcionários cumprissem mais de 80 horas extras por mês, de acordo com o governo local. Em 2019, uma lei limitou as horas extras a 45 por mês. Nesse cenário, a

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Page 1: Precisamos falar sobre burnout - Rede Clipping · Partners, SAP e Qualtrics apontou que 60% dos americanos tiveram algum sintoma de doenças do trabalho em 2018 e, desses, 60% nunca

SemOpção

Veículo: Exame - Caderno: Economia - Seção: Não Especificado - Assunto:Trabalho - Página: online - Publicação: 14/02/20URL Original: https://exame.abril.com.br/revista-exame/burn-out/

Precisamos falar sobre burnoutREVISTA EXAME

Precisamos falar sobre burnoutMetas, horas extras, pressão e uma cultura que faz da saúde mental umtabu são causas de esgotamento entre executivos, funcionários eempreendedoresPor Marina Filippe, Murilo Bomfimaccess_time13 fev 2020, 10h05 - Publicado em 13 fev 2020, 05h50more_horiz

Burnout: As perdas econômicas e sociais são enormes — mas há soluções em curso Ilustração: Sergio Bergocce / (/)O trabalho pode ser gratificante, mas também sufocante — e não é de hoje. O personagem Carlitos, interpretado pelo britânicoCharles Chaplin em um de seus mais marcantes filmes, trabalha na linha de produção de uma fábrica apertando peçasmetálicas. A pressão em seu setor aumenta: a mando da alta gestão, a velocidade na linha fica mais intensa. Com certadificuldade, Carlitos acompanha o ritmo sob o olhar severo de seu gestor direto. Pouco tempo depois, novas ordens paraaumentar a produtividade. Carlitos parece entrar numa espiral de ansiedade, acaba subindo na esteira e sendo levado paradentro da máquina. “Ele é louco”, grita um colega de trabalho. O episódio dá início a Tempos Modernos, filme lançado em 1936que aborda situações cômicas de um universo recém-industrializado. Na época, a força global de trabalho sentia os impactos daSegunda Revolução Industrial. O contexto era de baixos salários, ambiente laboral precário e alto índice de desemprego —condições ideais para gerar a confusão mental vivida por Carlitos.Quase 100 anos mais tarde, a chamada Quarta Revolução Industrial promete uma intensa automatização do trabalho. Ainteligência artificial e o apoio de robôs deveriam deixar mais tempo para as pessoas se dedicarem às tarefas analíticas e àshabilidades humanas. A evolução nos hábitos de consumo também deveria nos levar a uma rotina mais saudável e flexível, commais espaço para o ócio. Por ora, não é o que se vê. Os anos 2020 deverão ser marcados como aqueles que popularizaram oburnout, ou esgotamento pelo trabalho.

O fenômeno é global — e o Brasil, infelizmente, é um dos destaques. No Japão, 70% da população economicamente ativa diz tertido burnout. Em 2016, quase um quarto das empresas japonesas exigia que os funcionários cumprissem mais de 80 horasextras por mês, de acordo com o governo local. Em 2019, uma lei limitou as horas extras a 45 por mês. Nesse cenário, a

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subsidiária japonesa da empresa de tecnologia Microsoft testou, por um mês, o fim de semana de três dias para 2.300funcionários. A produtividade aumentou 40%. A empresa pretende implementar o programa novamente, ainda sem datadefinida.Na China, terceiro país com maior incidência de burnout — atrás do Brasil —, é comum os funcionários do polo tecnológicotrabalharem das 9 às 21 horas durante seis dias por semana. A prática é defendida por grandes empresários, como Jack Ma,cofundador da varejista online Alibaba. Nos Estados Unidos, quarto país da lista produzida pela International Stress ManagementAssociation, 20% da população economicamente ativa sofreu burnout. Episódios de esgotamento são a ponta de lança de ummomento global de discussão sobre as formas de trabalho. Para Jeffrey Pfeffer, professor na universidade americana Stanford, éhora de um redesenho total (veja entrevista abaixo).

“É tanta realização com o trabalho que você perde o limite — só que o corpo tem um limite” | Foto: Germano Lüders

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Apesar de o termo já pipocar pelos escritórios, ser tema de palestras e motivo de afastamento do trabalho, só agora ascorporações começaram a quebrar o tabu e a lidar com a questão. Uma pesquisa da consultoria de benefícios Mercer Marshmostrou que projetos de saúde mental são prioridade em 2020: 30% das organizações querem implantar iniciativas e 46%afirmam já ter alguma prática implementada (veja quadro abaixo – Gestão da Saúde). Um estudo das empresas Mind SharePartners, SAP e Qualtrics apontou que 60% dos americanos tiveram algum sintoma de doenças do trabalho em 2018 e, desses,60% nunca comentaram sobre o ocorrido. “Mais do que oferecer serviços, as empresas precisam superar a dificuldade de falarsobre o estigma. Por outro lado, os executivos pensam que, ao tocar no assunto, vão evidenciar um problema”, afirma HelderValério, gerente de gestão de saúde da Mercer Marsh.Não há um consenso sobre a definição de burnout. Numa tradução livre, o termo quer dizer “queimar até o fim”, estandorelacionado a uma estafa física e mental por excesso de trabalho. Para Mario Louzã, psiquiatra e professor na Faculdade deMedicina da Universidade de São Paulo, o burnout é formado por um tripé. “É um casamento entre características dapersonalidade, situação de vida da pessoa e condições de trabalho, sendo este último o principal fator”, diz. Ainda não existemestudos consistentes para registrar o aumento de casos de burnout — até porque a síndrome só passará a existir oficialmenteem 2022, quando entrará em vigor a 11a edição da Classificação Internacional de Doenças (CID), que vai agregar o burnoutcomo “problema associado ao emprego ou desemprego”. No entanto, é claro para Louzã o aumento significativo na demanda deseus pacientes para tratamento de burnout. “Houve uma aceleração no ritmo de trabalho com a intensificação da tecnologia”,diz o psiquiatra. “Além disso, o maior acesso à informação e o avanço nos diagnósticos contribuem também para esse aumentono número de casos.”

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“Para mim, a crise serviu de aviso: vi que teria de mudar algumas coisas, mas não minha dedicação ao trabalho” | Foto:Germano Lüders

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Enquanto o burnout não é oficializado, as pesquisas que abordam a saúde mental do trabalhador costumam mensurar os níveisde estresse. Um estudo lançado pela consultoria Accenture em novembro avaliou um universo de mais de 2.000 funcionários noReino Unido. O resultado mostra que 69% dos entrevistados já foram impactados por algum tipo de problema relacionado asaúde mental. No Brasil, a consultoria Betânia Tanure Associados fez medições de três tipos de estresse: baixo (quando ofuncionário executa a tarefa com muita facilidade, sem prestar atenção, o que não contribui para a produtividade), construtivo(não nocivo e necessário para a motivação) e alto (este, sim, pode levar à síndrome de burnout).O estudo avaliou executivos individualmente, seus times e as empresas em que atuam. Foram 538 respondentes das 500maiores companhias brasileiras. Na comparação entre 2019 e 2018, houve aumento do estresse alto em todas as categorias. “Oponto crítico é o grau de incerteza presente nas organizações hoje”, diz Betânia, fundadora da consultoria, referindo-se aosnovos concorrentes e às lógicas de negócio inovadoras que ganharam força com a tecnologia.Apesar de haver profissões mais propensas ao desenvolvimento de um quadro de burnout — caso dos médicos e policiais —,não existe um perfil profissional específico para isso. Qualquer pessoa economicamente ativa pode ter uma crise. Os sintomassão igualmente diversos: existe uma gama ampla de sensações, que variam de acordo com a pessoa afetada.Para Sofia Esteves, por exemplo, a síndrome foi sorrateira. Fundadora do grupo Cia de Talentos, ela vivia uma fase intensa naempresa em 2016. Em determinado momento, passou a ter lapsos de memória recente: não era capaz de lembrar de conversasdo dia anterior, por exemplo. “Apesar de nunca sair tarde do escritório, eu passava o dia entrando e saindo de reuniões”, dizSofia. “Quando há novos estímulos constantemente, sem descanso, chega um momento que o cérebro não consegue maisprocessar as informações.” Depois de perceber as falhas na memória, a executiva fez consultas médicas, foi diagnosticada comburnout e se afastou do trabalho por 50 dias. No retorno, teve apoio de sessões de técnicas de atenção plena, conhecidascomo mindfulness, e diminuiu a agenda significativamente. “Cortar compromissos foi a parte mais difícil, mas foi importante

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aprender que não preciso participar de tudo e que, se eu estiver ausente, os processos vão continuar.”

Toque para ampliar.

Microsoft no Japão: a empresa testou o fim de semana de três dias durante um mês e, como resultado, obteve aumento naprodutividade dos funcionários | DivulgaçãoPessoalmente, Sofia não sentiu que o fato de ser mulher teve impacto no desenvolvimento do quadro. Mas homens e mulherescostumam exibir sintomas de burnout por motivos distintos. “Enquanto as mulheres conquistaram espaço no mercado detrabalho e ainda acumulam responsabilidades em casa, o machismo faz com que os homens não mostrem vulnerabilidades, oque também é um problema”, diz o consultor Vicente Picarelli, diretor da consultoria de capital humano que leva seusobrenome. Membro de conselhos de administração, Eduardo Terra sentiu na pele as pressões do trabalho na saúde mental dosexecutivos. “Em geral, o homem tem mais dificuldade de pedir ajuda: é a síndrome do super-homem”, diz.No caso de Terra, o burnout chegou numa semana especialmente atribulada, com voos domésticos longos, palestras e privaçãode sono. Entre os sintomas, confusão na fala e braços dormentes. “Além do excesso de trabalho, acabamos corrigindo do modoerrado, tomando mais cafeína para ficar acordado e descuidando da alimentação.” Como gosta de suas funções — sentimentomuito comum entre os pacientes com burnout —, Terra resolveu ser mais regrado em seus hábitos para manter o ritmo. Depoisde se recuperar da crise, há cerca de um ano e meio, o executivo deixou de ser sedentário, passou a seguir uma dieta saudávele perdeu 15 quilos. A agenda continua a mesma, com a diferença de que passou a planejar viagens longas com mais cuidado.

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Escritório da SAP em São Paulo: o presidente (ao centro) se reúne com funcionários para falar de saúde mental | LeandroFonseca

Toque para ampliar.Nem sempre uma alteração na agenda é suficiente para manter a saúde mental. Com uma carreira de mais de 20 anos nasáreas comercial, de marketing e de gestão de pessoas em empresas como Walmart e Grupo Pão de Açúcar, Sylvia Leão teve deadiantar uma mudança planejada na carreira. Chamada para liderar projetos importantes no Carrefour em 2015, ela encarou odesafio como a última etapa da vida profissional antes de passar a atuar como conselheira. Inicialmente, a ideia era ficar cincoanos na empresa, mas a síndrome de burnout, iniciada em 2018, abreviou o processo. “Eu estava tão envolvida e cheia dedesafios que demorei a perceber os sinais que o corpo me mandava”, diz.

“Aprendi que é preciso ler os sinais do corpo e cuidar deles, assim como fazemos com os sinais do negócio” | Foto: GermanoLüders

Além do cansaço intenso, Sylvia tinha uma sensação difícil de definir, mas que ela descreve como angústia. A saída foi retornar

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à psicanálise e reconhecer seus limites. Hoje, a executiva participa de cinco conselhos de administração e entende que essa é acarga ideal de intensidade de trabalho para ela. Se o funcionário pode rever seus processos laborais, a empresa tem papelfundamental na mudança. O bem-estar também evita gastos. No Brasil, o burnout custa para os empregadores cerca de 80bilhões de dólares ao ano. Nos Estados Unidos, o montante é de 300 bilhões de dólares.Para evitar os resultados negativos causados pelo estresse alto e pelo burnout, a empresa alemã de tecnologia SAP começouuma campanha global para acabar com o estigma de falar sobre saúde mental. Em maio, na conferência global anual daempresa em Orlando, nos Estados Unidos, um painel sobre saúde mental foi apresentado por Cynthia Germanotta, mãe dacantora e atriz Lady Gaga. Mãe e filha lançaram há oito anos uma fundação para combater o bullying e os problemas de saúdemental ocasionados pela prática. O interesse dos funcionários pelo tema foi tão grande que um comitê de saúde mental foicriado globalmente. No Brasil há várias práticas, como a execução de peças de comunicação escancarando o tema e apromoção de palestras com psicólogos.

“Enquanto eu produzia, era bem tratado. Quando precisei da empresa, virei apenas um número” | Foto: Germano Lüders

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Para promover uma mudança cultural, é preciso inserir a alta liderança nos debates e nas ações. Há seis anos, desde queassumiu a presidência da SAP no Brasil, Cristina Palmaka realiza o Café com a Cris, encontro mensal com uma dezena defuncionários que voluntariamente se inscrevem para debater assuntos como gestão e vendas. Inspirado nesse modelo, o Chácom a Cris, uma reunião para falar exclusivamente de saúde mental, teve início em agosto. Nos dois primeiros encontros apenasgestores puderam participar, e os seguintes foram abertos para todos.Os funcionários compartilham experiências e ideias de como criar um ambiente seguro, no qual falar de ansiedade e depressãonão seja um problema. “É comum que as pessoas tenham crises pessoais e no trabalho. Fomentar a resolução gera umambiente seguro, melhora o clima e os resultados”, diz Cristina. Com o objetivo de integrar funcionários e quebrar o tabu dasaúde mental, algumas companhias buscam palestras de espiritualidade, coaching e até teatro corporativo, baseado emconcepções de que cada pessoa assume um papel. A disputada budista monja Coen, autora de best-sellers e com mais de 2milhões de seguidores somados no YouTube e no Instagram, diz ter dobrado a quantidade de palestras sobre espiritualidade nascompanhias ao redor do Brasil nos últimos cinco anos. “As empresas precisam de funcionários emocional e espiritualmentesaudáveis para ter lucro. Os gestores se deram conta disso e me procuram cada vez mais”, afirma.Promover um ambiente seguro para tratar questões de saúde mental no trabalho abrange os sentimentos que nascem da portapara fora. Pessoas homossexuais, por exemplo, são cinco vezes mais propensas a tentar suicídio do que as heterossexuais.Entre os jovens negros o risco de cometer suicídio no Brasil é 45% maior do que o de jovens brancos. Na estratégia de quebrar oestigma, na SAP os grupos de diversidade são prioritários. Mas não é só nas grandes empresas que esse problema aparece. Naagência de publicidade Mutato, 27% dos profissionais se declaram negros, 64% são mulheres e 40% se declaram LGBTI+;mesmo assim, as pessoas desses grupos relataram se sentir mais vulneráveis e menosprezadas do que as outras. Depois disso,a empresa começou a promover palestras com psicólogos e sessões de ioga. Mas foi só em outubro de 2019 que o cofundador epresidente Andre Passamani percebeu a oportunidade de incentivar a terapia individual para os funcionários interessados.“Tenho 46 anos e, em minha juventude, saúde mental não era um assunto abordado.Apenas recentemente ações de prevenção foram mais estruturadas”, diz. Desde outubro todos os funcionários da Mutato podemfazer terapia online por meio do aplicativo da Zenklub, uma startup que cresce 15% ao mês. As sessões são custeadas pelaempresa e tiveram adesão de 30% dos funcionários. Apesar de as sessões serem confidenciais, os gestores conseguem saberem quais áreas da empresa as questões emocionais das pessoas estão relacionadas ao trabalho. “Pretendemos criar umhistórico, traçar novos planos e melhorar o clima interno”, diz Passamani.

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A exposição das doenças do trabalho também está atrelada às diferenças geracionais. Nos Estados Unidos, segundo um estudoda consultoria Deloitte, 84% da geração millennial (nascidos entre 1980 e 1995) diz ter experimentado a exaustão no trabalhoatual, em comparação com 77% de todos os entrevistados. Quase metade dos millennials diz que deixou um emprego porque sesentiu esgotada. Consultora de recursos humanos, Sofia Esteves, da Cia de Talentos, acredita que a falta de experiência podeter impacto nocivo sobre o trabalhador jovem. “O burnout ocorre por um efeito cumulativo, mas também tem relação com aquantidade de pressão que o trabalhador aguenta”, diz. “As gerações mais novas não têm o acúmulo, mas, em geral, tolerammenos pressão.”O quadro parece piorar quando o funcionário gosta do que faz. Foi o que aconteceu com Damião Silva, de 35 anos. Depois deentrar em uma fundação filantrópica, aos 18 anos, como monitor educacional, ele mostrou boa capacidade de gestão depessoas e teve sucessivas promoções. Com dez anos de casa, controlava uma equipe de cerca de 400 pessoas. “Eu chegava atrabalhar 12 horas por dia, além de dedicar outras 4 horas diárias a cursos de especialização”, diz. Demissões na organizaçãointensificaram ainda mais o ritmo.Quando percebeu sinais como dificuldade para dormir e dores de cabeça, Silva já tinha engordado 20 quilos. Uma troca nagestão piorou a situação: a nova chefe cobrava trabalho até nas férias. A persistência dos sintomas levou o profissional buscarajuda médica. Em 2018, ele foi diagnosticado com burnout, afastou-se do trabalho e, hoje, faz psicoterapia e tomamedicamentos, sendo acompanhado por psiquiatra e neurologista.

Agência de publicidade Mutato: funcionários fazem terapia online, oferecida como um benefício pela empresa | Germano Lüders

Se não tem ajudado a evitar o esgotamento por trabalho, a tecnologia pode ser uma aliada no diagnóstico e no tratamento. Em2016, o Hospital Albert Einstein estruturou um programa para cuidar da saúde de seus funcionários e dependentes por meio deuma clínica interna que pode atender cerca de 30.000 pessoas. Em 2018, o programa foi reestruturado para lidar também comquestões emocionais. “Um profissional feliz e saudável atende melhor seus pacientes”, diz Sidney Klajner, presidente doEinstein. Os funcionários passaram a ter, por exemplo, assistência jurídica e atendimento psicológico 24 horas por dia, pelotelefone, e acompanhamento após retornar por afastamento de burnout e estresse. Quando voltam, eles respondem a umquestionário de 50 perguntas. A intenção é que com essas respostas haja uma base de dados para, por meio de inteligênciaartificial, evitar sintomas negativos de saúde mental.Especialistas americanos, porém, afirmam que o uso efetivo da inteligência artificial na saúde deve acontecer somente depoisdos próximos cinco anos. O que se espera é que os dados sejam usados para diagnosticar sutilezas emocionais que passamdespercebidas mesmo para os médicos. Para os funcionários, executivos e empreendedores brasileiros, outra boa notícia podevir de uma retomada mais consistente da economia. A insegurança econômica, como alerta Pfeffer, da Stanford, é um grandegatilho de estresse. As respostas, como se vê, devem vir de cada um, das empresas, da ciência, da tecnologia, dos governos. Oalerta não é de hoje: foi dado por Chaplin há mais de 80 anos.

“A ÚNICA SOLUÇÃO É UM REDESENHO DO MODELO DE TRABALHO”Autor do livro Morrendo por um Salário aponta insegurança dos empregos como principal fator para gerar crisesde burnout | Murilo Bonfim

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Jeffrey Pfeffer: para o professor de Stanford, é preciso reformular a cultura laboral | DivulgaçãoEm 2022, a 11a edição da Classificação Internacional de Doenças passa a valer — e inclui a síndrome de burnout como umproblema ligado ao emprego e… ao desemprego. As tensões relacionadas à possibilidade de ficar sem trabalho são um dostemas tratados no livro Morrendo por um Salário, lançado por Jeffrey Pfeffer em 2018. Professor de comportamentoorganizacional da Escola de Negócios da Universidade de Stanford, Pfeffer é radical ao dizer que a única saída eficaz para contero avanço dos casos de burnout é um redesenho do modelo de trabalho atualmente em vigor. Ele falou a EXAME por telefone.Veja os melhores trechos da entrevista.Existem casos de burnout no passado — talvez desde a Primeira Revolução Industrial, quando as relaçõestrabalhistas não eram tão bem regulamentadas. Por que temos esse aumento de casos no século 21?Quando analiso o contexto de hoje e o contexto de épocas passadas, acredito que a mudança mais significativa seja ainsegurança econômica. Hoje, as taxas de desemprego estão altas em diversos países, há muita competitividade e as demissõessão iminentes. Isso produz um ambiente de muita tensão, propício para abalar a saúde do trabalhador. Além disso, temos osefeitos da “economia sob demanda”, com freelancers e terceirizados que vivem a insegurança de não saber quando terão opróximo trabalho.Que aspectos do ambiente corporativo são motores da síndrome de burnout?A saúde do empregado geralmente é afetada por uma série de decisões tomadas pelo empregador. Além da possibilidade dedemissão, o trabalhador pode ter dificuldade de equilibrar a vida pessoal com a profissional, ficar exposto a expedientes maislongos, à pressão pela produtividade e à pouca liberdade de decisão no ambiente de trabalho. Pesquisas mostram que oestresse ocupacional prolongado pode levar a doenças, como diversos tipos de câncer, para além da síndrome de burnout.Nesse sentido, as práticas adotadas por algumas empresas, como dar benefícios relacionados a psicoterapia eatividade física, parecem não ser suficientes.As pessoas podem até aderir a essas saídas, mas a única solução eficaz para preservar a saúde das pessoas é um redesenho domodelo de trabalho para criar ambientes profissionais saudáveis, que promovam a sustentabilidade humana. Isso passa, porexemplo, por um real compromisso da companhia com a mudança. Por vezes, é significativa a quantidade de trabalhodesnecessário executado por empregados. É um resultado de políticas de trabalho de longa data que, hoje, já não têm maispropósito. Muitas empresas não enxergam a necessidade de adaptar seus modelos de funcionamento, e acabam perdendo boasoportunidades de reduzir o estresse no trabalho.