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PRECIPÍCIO DE FAETONTE Ópera que se representou no Teatro do Bairro Alto de Lisboa, no mês de Janeiro de I738.

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PRECIPÍCIO DE FAETONTE

Ópera que se representou no Teatro do Bairro Alto de Lisboa, no mês de Janeiro de I738.

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ARGUMENTO

Tages, irmão de Tirreno, rei de Itália, usurpa este reino, o qual pertence a Egéria, ninfa do Erídano e filha de Tirreno. Faetonte, filho do Sol e reputado por filho de um pastor de Tessália, vendo o retrato de Egéria, rendido lhe tributa o seu amor; e, para melhor o dar a conhecer a Egéria, sai de Tessália e se ocupa na Itália em acções do agrado desta ninfa; por cuja causa sai de Tessália o mágico Fíton em seguimento de Faetonte, para o desviar deste amor, porquanto ainda neste tempo ignorava Faetonte o seu verdadeiro pai, e Fíton lhe receava a ruína, quando o chegasse a conhecer. Estabelecido Fae-tonte nos agrados de Egéria, esta, para restaurar o reino pelas acções daqueles que a pretendiam, para este fim usa ocultamente prometer a mão de esposa a Mecenas e a Faetonte, em que consistem os maiores lances desta história. − Albano, príncipe de Ligúria, pretende ser esposo de Ismene, filha de Tages. Este, quando Faetonte se declara filho do Sol, o pretende para esposo de Ismene e para o de Egéria a Albano, os quais fingidamente se declaram amantes com a ferida dos zelos. Aparece Apolo e declara a Faetonte por seu filho. Este lhe pede faculdade para girar na carroça do Sol. Resiste Apolo; porém, instando Faetonte, lho concede, e este, depois, à vista de Egéria, se vê precipitado no Erídano. − O mais se verá no contexto da história.

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INTERLOCUTORES

Faetonte, filho do Sol; Albano, príncipe da Ligúria; Mecenas; Tages, rei; Fíton, barbas, mágico; Chichisbéu, criado de Faetonte; Egéria, primeira dama, sobrinha de Tages; Ismene, segunda dama, filha de Tages; Chirinola, criada de Egéria.

CENAS DO I ACTO

I - Bosque frondoso nas ribeiras do rio Erídano. II - Sala.

III - Câmera.

CENAS DO II ACTO

I - Sala. II - Selva.

1I1 - Gabinete bem adornado. IV - Templo de Himeneu.

CENAS DO III ACTO

I -Câmera. II - Sala.

III - Bosque, como no princípio.

PARTE I

CENA I

Bosque frondoso nas ribeiras do rio Erídano. Enquanto Faetonte canta o seguinte recitado, irá saindo Egéria em uma concha tirada por dous delfins.

RECITADO

Faet. Egéria peregrina, do sagrado Erídano ninfa bela, deixa o cerúleo, errante, trono vago, em que habitas deidade;

que, se águas procuras em tais mágoas, vem a meus olhos, que também tem águas.

Canta o coro

Alenta, respira, galhardo pastor, pois vês que a teu rogo,

partido o cristal, se abrasam as águas em fogo de amor.

Faet. Se da itálica esfera tutelar divindade te apelidas,

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COLECÇÁO DE CLÁSSICOS SÁ DA COSTA

OBRAS COMPLETAS DE A. JOSÉ DA SILVA

ampara um peregrino que a teu sacro Erídano sacrifica outro rio em seu pranto. Oh, quanto temo que, unido o sacrifício à divindade,

se inunde o Orbe em líquida impiedade!

CORO

Alenta, respira, galhardo pastor, &c.

Faet. Outra vez e mil vezes te busco impaciente,

por ver se rigoroso meu destino nos influxos brilhantes de teus raios acha seguro asilo, e o passo errante de um ânimo constante encaminha propícia, por que vejas

que idólatra numera em vagos giros tantos os votos, quantos os suspiros.

CORO

Alenta, respira, galhardo pastor, &c.

A esta última cláusula do coro, desembarca Egéria e canta a seguinte ária e

RECITADO

Um peregrino afecto me ocupa o coração, quando inquieto.

Nem as águas do mar ou meus suspiros, surcando em dous mil giros, me deixam respirar, porque em meu peito me abrasa o cego ardor de amor perfeito.

ÁRIA

Não sei que novo afecto sinto no amante peito; só sei que o seu efeito me obriga a te adorar.

Do teu doce atractivo já sente o amante peito; e à vida não compete gosto mais singular.

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Egéria. Errante peregrino, a cuja vista comovido, o Erídano divide o cristal de suas águas, para multiplicar a

tua forma nos seus espelhos, que incógnito atractivo ocultas em ti, pois até eu, como deidade destas águas, te estou amando, sem saber a causa por que te quero?

Faetonte. Não sei, Egéria; não sei. Pergunta aos astros, de cujos influxos se originam as simpatias. Só sei que haverá três dias que oculto me tens neste frondoso bosque, verdes obeliscos do Erídano, mais como foragido, que como habitante.

Egéria. Também sabes que em todo esse tempo não mereceram os meus agrados arrancar do profundo silêncio de teu peito quem és e a causa de tua peregrinação. Faetonte. Não sei mais de mim, que ser um pastor, com espíritos tão altamente nascidos, que intentam competir com os deuses mais brilhantes do firmamento.

Egéria. Como podem em um pastor caber tão altos pensamentos?

Faetonte. Porque a alma que me anima ou não é deste corpo, ou este corpo não é daquela alma.

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Egéria. Dize-me, ao menos, o teu nome e a tua pátria.

Faetonte. Faetonte é o meu nome, e a minha ... Egéria. Espera! Faetonte te chamas?! Ai de mim!

(À parte). Faetonte. Que tens, Egéria? Assustou-te o meu

nome? Egéria. Sim, Faetonte; pois, ao ouvi-lo pronunciar,

me senti abrasar em um vivo incêndio. Faetonte. Enfim, Senhora, para que te obedeça

em tudo, Tessália é a minha pátria. Egéria. E porque dela te apartaste? Faetonte. Ai de mim! Quem pudera declarar-se! (À

parte). Egéria. Emudeces?

Faetonte. Como queres se contivesse em Tessália um coração que não cabe em todo o mundo, pois só nas etéreas regiões terá limite a minha ambição?

Egéria. Agora entendo, Faetonte, que algum propício númen te conduziu a Itália, para seres ven-turoso instrumento das minhas ideias; pois só o teu valor e a tua ambição poderão suspender a roda de minha infausta fortuna. Faetonte. Pois em que te dilatas? Propõe, galharda ninfa, que a teu respeito, se necessário for, roubarei as luzes ao Sol, a Neptuno o tridente e os raios a Júpiter, para que com raios, tridente e luzes possa triunfar do Sol, do Mar e do Empíreo.

Egéria. Já que a altivez de teus pensamentos me persuade a minha ventura, sabe que eu sou a infeliz Egéria, filha de Tirreno, rei que foi desta região; o qual, deixando-me pupila debaixo da tutela de Tages, seu irmão e meu tio, este tiranamente me tem usurpado o ceptro, intentando perpetuar a minha coroa

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na sua descendência, fazendo com que Ismene, sua filha, seja herdeira de minha fortuna, casando-a com Albano, seu sobrinho, príncipe da Ligúria. Ah, cruel Albano! Ah falso amante! (À parte). Faetonte. Que sofram os deuses semelhantes injustiças!

Egéria. Albano, pois, com as armas da Ligúria intenta segurar o trono de Ismene; e assim, desvalida e sem amparo, consinto esta violência, este atentado e esta injúria, até que o teu valor, animado de tão altos espíritos, saiba segurar-me o trono que me usurpa uma tirana, para que ambos consigamos: eu, a minha coroa, e tu a minha mão.

Faetonte. Pois eu, Egéria, hei-de ser rei de Itália? Egéria. Cuidei que perguntavas se havias de ser

meu esposo. Faetonte. Sem o carácter de rei, teu esposo como

poderei ser? Egéria. Sim, poderias, pela violência com que me

atrai o teu nome e a tua pessoa; e, pois da minha parte está o amor, esteja da tua a fortuna.

Faetonte. E para que a tua se estabeleça, discorramos o meio para a conseguires.

Egéria. Não acho outro mais eficaz que seres tu homicida de Ismene e eu de Albano, para que de uma vez se cortem as esperanças de reverdecer o laurel nas suas cabeças; pois, extinta assim a estirpe real, por força me aclamarão princesa hereditária.

Faetonte. Não seria melhor que Albano ficasse ao arbítrio de minhas iras, e Ismene ao das tuas, para que na igualdade dos sexos ficasse sem perigo a resolução?

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Egéria. Não, porque se não há-de presumir que uma mulher haja de ser homicida de um homem; e assim, no maior disfarce se encobrirá o maior veneno; e, pois nesta quinta, vizinha ao Erídano*, vive EI-Rei, a ela te encaminha, aonde espero introduzir-te. Mas ai, Faetonte! Não sei se me saberás corresponder!

Faetonte. Não sabes que a infidelidade não cabe em meu peito? E, se me não acreditas, sede-me testemunhas vós, Padre Erídano; vós, cerúleas ninfas, que nesses pélagos habitais, de que jamais serei infiel a Egéria; e, se o for, permiti que sejam as vossas águas os fiscais do meu delito.

Egéria. Basta, Faetonte; mas só te advirto que hás-de ser o homicida de Ismene.

Faetonte. Para que me lembras essa circunstância? Egéria. Para que não aches desculpa na sua for-

mosura. Faetonte. A que eu adoro é objecto tão peregrino,

que não admite hospedar-se em meu peito outra qualquer beleza; e assim, a de Ismene não poderá ser rémora de meu impulso.

Egéria. Não me desvaneças com afectados pe- ríodos.

Faetonte. Que mal entendes aonde se dirigem os meus suspiros! (À parte). Mas também adverte que hás-de ser homicida de Albano.

Egéria. Para que me ratificas o que eu sei? Faetonte. Não sei o para quê; só sei que Albano

é príncipe e poderoso; e tu desvalida e sem amparo.

* Vizinha ao Erídano − vizinha do Erídano (Pó).

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Egéria. Só no teu braço seguro a minha fortuna. Faetonte. Pois Egéria, a emprender*. Egéria. Pois, Faetonte, a conseguir! Mas lembro-te

outra vez que hás-de ser monarca de Itália e que Ismene é formosa. Cinge a coroa nos olhos, para que sejas Cupido da tua ambição, e não do teu amor.

Cantam Egéria e Faetonte a seguinte

ÁRIA A DUO

Egéria. Se acaso a formosura

o golpe te suspende, na suspensão atende à glória do reinar.

Faetonte. À cópia que idolatro tributo extremo tal, que só no original me posso retratar.

Egéria. Oh! Peço-te não sejas a tanta fé traidor!

Faetonte. Oh, rogo-te que creias as veras deste amor.

Ambos. Que afecto tão constante mudável não será.

Egéria. Na fé que me prometes sossega o meu cuidado.

Faetonte. O meu amor prostrado fiel será contigo. * Emprender − empreender.

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Ambos. Pois vê com segurança no bem, que amante sigo, a glória que terá. (Vai-se Egéria).

Dentro. Por aqui foi. Segui-o todos. Faetonte. Que rumor será este? Será conveniente

ocultar-me.

Esconde-se Faetonte e sai Fíton com um livro na mão, que ao depois o lançará no chão, e se despe

Fíton. Aonde achará refúgio um infeliz? Despojar-me quero desta recopilada ciência, que, inútil, me não ampara; e, para que mais disfarçado possa escapar deste bárbaro furor, será preciso mudar de traje; e, ainda que me prendam, dizendo que não sou quem buscam, deixarei ao menos vacilante o seu intento. Ó ciências, até quando deixareis de ser perseguidas!

Dentro. Vamos ao Erídano. Fíton. Ó tu, frondoso bosque, sê propício refúgio de

um desgraçado, ocultando-me em teu verde labirinto. Mas quem está aqui?

Ao ir esconder-se, encontra-se com Faetonte

Faetonte. Que vejo! Tu não és Fíton? Fíton. Faetonte, é possível que te encontre?

Faetonte. Não te deixei em Tessália? Fíton. Sim; mas, como soube que precipitadamente vinhas a Itália a buscar o original daquela cópia que casualmente veio às tuas mãos, foi preciso seguir-te, para que te não arruinassem os teus pensamentos. Oh! Nunca te eu dissera que em Itália habitava essa formosura!

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Faetonte. Pois, já que estamos em Itália, porque me não declaras quem é essa soberana beleza? Para que me ocultas o original de tão bela cópia, quando vês que, vagando por estas regiões, venho louco amante a ver se encontro o ídolo que adoro em sombras e me abrasa em chamas?

Fíton. Faetonte, convém à tua conservação o ignorares de quem é o retrato; pois tenho alcançado pelas minhas ciências mágicas e astrológicas que o original dessa cópia há-de ser a causa do teu precipício; e, se longe do perigo te recatei o dizer-to, agora, que estás perto do dano, como to poderei declarar?

Faetonte. Como? Desta sorte: arrancando-te do peito o coração, já que não posso o segredo que me ocultas.

Luta Faetonte com Fíton

Fíton. Louco mancebo, que fazes? Dentro. Cercai todos esse bosque. Fíton. Espera; não queiras que ambos aqui pereçamos,

pois sei que esta tropa vem para nos prender. Com este engano estorvarei o seu furor. (À parte). Faetonte. Deixo-te com vida, para em melhor ocasião saber a causa de meu precipício. Anda! (Vai-se).

Fíton. Vamos, que, por mais que te empenhes, o não hás-de saber. (Vai-se).

Sai Chichisbéu

Chichisbéu. Ora sou bem asno! Mas não tenho vergonha de o dizer! Que venha eu palmilhando,

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desde Tessália até aqui, atrás de um louco ou de um

Faetonte, que tudo é o mesmo! E o pior é que me desencontrei dele e ando perdido pelo moço! Que há-de fazer o pobre Chichisbéu, posto no centro de Itália, sem saber aqui aonde são as casas locandas e, o que mais é, sem quatrim*? O que me val é ser eu Chichisbéu, que terei entrada franca em toda a casa. Mas que é isto que ali está? Ora vejamos. Oh! É um vestido que está despido. Ora sabia Deus que já este meu estava por um fio. Se me chegará? Vejamos. Belo! Justamente! Alguma alma algebibista** se compadeceu da minha piranguice. Olá! Temos mais um livro?! Não há dúvida: é livro! E é de razão que o veja. Ora bem dizem que em Itália nascem os livros, como nascem as malvas! Vejamos se achamos nele alguma cousa, pois dizem que tudo se acha nos livros. (Assenta-se e começa a folhear o livro). Abramos e vejamos o que contém. Liber astrolomágico. Irra! Mágico! Passa fora! Vejam lá que matéria tão peçonhenta contém o tal livrinho! Libera me***! Ora ainda assim, salva a consciência, vamos vendo o Index rerum notabilium****. Capítulo primeiro, de fisionomia, quod est narigorum confrontatio. Isto há-de ser galante. Capítulo segundo, de Nigromantia. Isto é cousa de negros. Negra ciência é esta! Eu não quero ver mais, que se me vão arrepiando os cabelos.

* Quatrim (no texto, quatrini) − antiga moeda, de pouco valor. − Sem quatrim − sem vintém.

** Algebibista (por algibebista) − de algibebe (ne-gociante de fatos feitos) − é neologismo.

*** Libera me − livra-me; «livra!». **** lndex rerum notabilium − índice (ou rol) das coisas

notáveis.

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Vão saindo por detrás de Chichisbéu Mecenas e os soldados

Mecenas. Aquele sem dúvida é o nigromântico que buscamos. Vamos de manso e levemo-lo preso, com o rosto tapado para que nos não ofenda com algum encanto. Chichisbéu. E o diabinho me está dizendo que torne outra vez a abrir o livro. Fora, tentação! Não sei se consinta nela.

Chegam os soldados, tapam o rosto a Chichisbéu e o vão levando

Mecenas. Levem-no depressa. Chichisbéu. Eu o dissera! Fugite*, encantadores! Que me

quereis? Não me fecheis os olhos, que ainda não estou para morrer.

Mecenas. Cale-se aí! Levem também esse livro. Chichisbéu. Desta ninguém se livra. Mecenas. Vamos, vamos!

Chichisbéu. Para onde? Para o Inferno? Mecenas. Lá o verá. Chichisbéu. Lá o verei, se me destaparem os olhos. (Vão-

se).

CENA II

Sala. Sai Albano

Albano. Quando, ó bela Aurora, hás-de amanhecer risonha e alegre a um extremoso amante, para

* Fugite − fugi.

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que nas delícias de Ismene se acabem as minhas esperanças? Mas que diria Egéria da minha ingratidão? Razão tem. Fui-lhe ingrato; mas como podia não ser, se amor e ambição venceram a minha constância, se é que era constância, constância que se mudou?

Sai Egéria

Egéria. Dizem-me, Albano, que a mão de Ismene te sublima hoje ao trono de Itália; e assim, como mais interessada nos teus triunfos, venho a dar-te os parabéns de tanta fortuna.

Albano. Que hás-de responder, ingrato coração? (À parte).

Egéria. Quem já poderá resistir a teu poder? Se aos domínios de Ligúria unes as províncias do Erídano, que inimigo te poderá resistir? Como serão copiosos os teus exércitos! Trata de erigir templos à tua fortuna e altares à tua bela esposa, por não seres ingrato; porque a ingratidão, ó Albano, é uma mancha que deslustra o peito mais soberano.

Albano. Bem entendo a Egéria; vou-me sem responder-lhe. (À parte. Quer ir-se).

Egéria. Que é isso? Te vás* sem responder-me?! Já te desvanece o futuro domínio? Repara ao menos que para o respeito, ainda que sou desvalida, sou filha de Tirreno, monarca que foi desta região.

Albano. Egéria, em mim não é desatenção este retiro; é compadecer-me da tua desgraça.

Egéria. Bem o mostras, fomentando a minha ruína, por entronizar uma tirana. Dize, ingrato:

* Te vás (vais) − isto é, vais-te.

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não prometeste defender a minha justiça, ou ao menos fazer-me princesa de Ligúria?

Albano. Assim é; mas não sei se te diga que ... Egéria. Que hás-de dizer, ingrato? Sabe que já não

necessito dos teus favores, pois a piedade de Anitrite me fez ninfa do Erídano, aonde espero triunfar de um tirano, que me usurpa a coroa, e de um falso amante, que cruel me ofende.

Albano. Pois, Egéria, se já como deidade te vás imortalizando, não necessitarás de meus auxílios.

Egéria. Mas tu necessitarás de minhas piedades. Albano. Eu de tuas piedades? De que sorte?

Sai El-Rei Tages

Rei. Albano, aqui se me avisa que Fíton, aquele célebre mágico de Tessália, se acha nesta província. Dei ordem que mo trouxessem de qualquer parte onde esteja, para que dele saiba os ocultos segredos que importam à minha coroa, para que assim, com mais sossego, possa completar o teu himeneu.

Albano. O teu preceito, Senhor, é a minha vontade. Egéria. Permitam os deuses fazer propícias as tuas

ideias. Rei. Sim, farão, pois os tenho gratos com repetidas

vítimas. Egéria. A melhor vítima é sacrificar a razão nas aras da Justiça.

Rei. Não entendo. Egéria. Pois para que me entendas, me explicarei

melhor. Bem sabes, invicto Tages, que nasci hereditária princesa de Itália, como única filha de Tirreno, que foi monarca desta mesma Itália. Tu, Senhor,

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me tens usurpado o reino, com o pretexto de seres irmão de meu pai, cousa que nenhum direito o permite.

Rei. Egéria, eu estou bem informado que, como irmão de Tirreno, devo preferir-te, pois tenho a qualidade de varão; e outra vez não tornes a propor-me semelhante ideia, que disputar com os reis é crime de lesa-majestade.

Egéria. Esse é o privilégio da razão, que pode entrar no mais iníquo tribunal.

Rei. Está bem.

Sai Mecenas com Chichisbéu e soldados

Chichisbéu. Ora, Senhor, basta já de cabra-cega. (Descobrem-no).

Mecenas. Este que vês, Senhor, é o nigromântico Fíton, que junto às margens do Erídano o achámos, e segundo as confrontações do traje tessálico e este livro de mágica com caracteres gregos, que na mão tem, me persuade ser o próprio que buscamos.

Chichisbéu. Isto sem dúvida é algum palácio encantado! Esta gente será cousa fingida? Vejam lá o livrinho de que casta é! (À parte).

Rei. Fíton, vem a meus braços. Não temas, que em Itália terás melhor fortuna que na Grécia.

Chichisbéu. Assim sou eu asno, que lhe responda! Bem sei que tudo isto é aparente. (À parte).

Rei. Não respondes? Albano. Adverte que é El-Rei. Chichisbéu. Sim, Rei por encantamento, que é o mesmo

que cousa nenhuma. (À parte). Rei. Se não respondes, te mandarei justiçar. Chichisbéu. Todavia, a mágica deve ser negra.

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OBRAS COMPLETAS DE A. JOSÉ DA SILVA

Eu lhe respondo, porque aos reis ainda em sombras se lhe deve respeito. (À parte).

Rei. Que dizes, Fíton? Chichisbéu. Senhor, que não sou Fíton! Sou um pobre

Chichisbéu, criado de outro pobre, mais pobre do que eu, pois tem obrigação de sustentar-se a si e a mim.

Rei. Não te encubras, que, se por algum delito te ausentaste de Tessália, aqui te não podem ofender as suas leis; e, pois tenho a fortuna de possuir-te em meu reino, te espero honrar, como merece a tua sabedoria.

Chichisbéu. Que sabedoria, Senhor? Eu sou um idiota. Vossa Majestade não me quer entender? Pois acha que se eu fora mágico quà mágico, que me havia deixar prender?

Mecenas. Da sorte que te prendi, não podias usar das tuas mágicas.

Chichisbéu. Poderia adevinhar e não estar naquele sítio. Mecenas. A mágica não adevinha o futuro. Chichisbéu. Mas podia adevinhar isto que me sucede de

presente. Albano. Sempre foi próprio dos homens doutos negarem

o que sabem. Rei. É o maior homem do Mundo. Chichisbéu. O certo é que o ponto está em dizerem que

um homem é sábio, que à força o há-de ser, ainda que seja um padaço* de asno. (À parte).

Rei. Fíton, tem entendido que estou bastantemente capacitado de quem és; e assim, saberás que

* Padaço − é forma popular de pedaço.

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há três noites que em sonhos se me representa que um mancebo, filho do Sol, habita oculto em Itália. Tomara me declarasses aonde está, para que, como filho de ApoIo, lhe consagre os cultos que se lhe devem.

Egéria. Filho do Sol! Quem será? (À parte). Chichisbéu. Isso está muito bem; mas, se eu não sou

adevinhão, como posso dizer aonde está esse senhor, filho do Sol? E demais, Senhor, que tenho para mim que isso foi sonho.

Rei. Ainda assim, é tão repetida esta visão, que me persuade não ser erro da fantasia.

Chichisbéu. Pois, Senhor, não é erro crassíssimo entender que o Sol tem filho? Bem sei que, pela regra* do Sal, Sol, ac mugil, que o Sol é masculino, e nem por isso se segue que tenha filho, porque Musa, Musae, é feminino, e, contudo as musas são castas. Ergo &c. Não sei se me explico!

Rei. Já isso é teima. Tem entendido que mo hás-de dizer, aliás se acabará com a tua vida a tua ciência. (Vai-se).

Albano. Homem, vê lá em que te metes; trata de fazer a vontade a El-Rei. (Vai-se).

Chichisbéu. Há semelhante entaladura! Querer Sua Majestade à força que eu seja feiticeiro! E, dado caso que o fora, eu porventura sou cá a roda dos enjeitados para saber dos filhos alheios? Ah, Senhor! Vossa Senhoria desengane a El-Rei que eu isto de mágica não sei por onde ela corre.

* Regra do Sal, Sol ac Mugil (sal, sol, mugem) − Refere-se o autor a uma regra da Gramática Latina do Pe. Manuel Álvares, em que aquelas palavras exemplificam substantivos do género masculino.

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OBRAS COMPLETAS DE A. JOSÉ DA SILVA

Mecenas. Fíton, acho que essa repetida negação é já imprudência. Todos sabemos quem és; e, pois a sorte te conduziu a este país, a tua ciência há-de ser o meio da nossa tranquilidade, porque Egéria, esta princesa que vês, vive espoliada do trono de seu pai, pelas violências de EI-Rei, que intenta entronizar a filha, casando-a com Albano, príncipe de Ligúria. Mas isto é escusado dizer-to, pois tu, como mágico, o não hás-de ignorar.

Chichisbéu. Não me diga nada. Então verá se eu sei alguma cousa.

Egéria. Que intentas, Mecenas? Mecenas. Comunicar a Fíton os nossos intentos, para que

possamos triunfar, ainda que seja màgicamente. Egéria. E tens a certeza que todos os mágicos são fiéis e

leais? Mecenas. Não; mas, como eles tudo alcançam pela sua

ciência, não ignorará o pacto que temos celebrado de restituir-te o trono de teu pai, com a fortuna de ser eu teu esposo.

Egéria. Pois, Fíton, se a tua ciência tudo alcança, peço-te que a empenhes toda, para que consiga a coroa que me usurpa a ambição de El-Rei, meu tio. Favorece os intentos de Mecenas; pois, conseguindo a fortuna que espero, te prometo ser agradecida. (Vai-se).

Chichisbéu. Senhor Mecenas, com quem esteve falando agora aquela Senhora Egéria, que por nome não perca?

Mecenas. Contigo. Chichisbéu. Comigo?! É boa teima! Pois acha Vossa

Senhoria que, se eu pudera dar coroas, que

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as não tomara para mim, por não estar às ordens de ninguém? Mecenas. Deixa loucuras! Bem vês o empenho em que estou de coroar a Egéria. Patrocina os meus desígnios, que do seu bom êxito pende toda a minha fortuna; pois te confesso, Fíton, que ardo em um vivo incêndio de amor, e cego intento emprender por Egéria as maiores dificuldades.

Chichisbéu. Aí vai parar tudo! Já me a mim admirava que o tramposo do rapaz não havia meter a sua colherada!

Canta Mecenas a seguinte

ÁRIA

Naquela deidade galharda, que viste, consiste

de minha ventura a glória feliz.

Se a sorte me nega fortuna tão bela, sem ela

serei desgraçado, serei infeliz. (Vai-se).

Chichisbéu. Isto já vai de foz em fora! Eu entendo que isto é realidade pura e não mágica sonhada; e o pior é que eu sou o que faço na oração e cuidam que sou mágico! Em negra hora apanhei o tal vestido e o tal livrinho! Mas, ainda assim, devo muito a todos, pois um me descobre o seu peito, outro me vomita o seu bucho; e eu com tanta cousa estou para rebentar.

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OBRAS COMPLETAS DE A. JOSÉ DA SILVA

Saem Faetonte e Fíton

Faetonte. Ainda não creio que me veja habitar em palácios! Quanto me agradam estes mármores! Quanto me recreia esta magnificência! Parece que nestas altas torres habitam os meus pensamentos; nestes edifícios se elevam os meus espíritos! Estes pórticos são polidos espelhos de minha ambição; estas colunas talvez se erigiram para nelas se colo-carem os meus triunfos!

Fíton. Não gastes o tempo em aéreos pensamentos, quando sabes que és filho de um pastor.

Faetonte. Também Apolo foi pastor de Admeto*. Nada me injurias com isso.

Fíton. Oh, quem pudera declarar-te quem és! Reprime esse génio; não busques essa cópia, torno-te a recomendar; pois mal sabes a ruína que te espera, Faetonte.

Chichisbéu. Faetonte disse?! Ai, que ali está meu amo! Pois, por vida minha, que hei-de magicar com ele. Faetonte. Já que me não queres dizer o que te pergunto, recorrerei a outro mágico que me disse agora Egéria habitava em palácio, e ele me informará quem é o adorado enigma que adoro. Mas aquele é, segundo os sinais que me deu Egéria. Chichisbéu. Ele comigo.

Faetonte. Ó tu, sábio portento da nigromância, compadece-te de um peregrino, que, inflamado de amor, procura o original de uma cópia, que ...

* Admeto − foi rei na Tessália. Apolo apascentou-lhe os rebanhos.

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Chichisbéu. Que achaste em Tessália, que te disseram estava em Itália; que vens em cata dela. Não é isto, Faetonte?

Faetonte. Que ouço! Nada ignora. Fíton, que te parece? Fíton. Quase que me confundo. Faetonte. Pois dize-me: de quem é este retrato? (Mostra

o retrato). Chichisbéu. Vidoamus*. Queres que to diga? Mas ao

depois talvez que te arrependas. Fíton. Não lho digas, se achas que lhe pode suceder

algum dano. Faetonte. Deixa-me, cruel; que dano pode causar a

formosura? Chichisbéu. Que dano? Muito grande; porque há

formosuras danadas! Olha: uma mulher formosa** por força há-de ser presumida; da presunção segue-se o ser tola; da tolice o fazer asneiras; das asneiras o dar couces; quem dá couces, tem mataduras. Com que, Senhor, quem albardar uma formosura, há-de aturar o ser raivosa, zelosa, comi-chosa, pedinchona, desvanecida; pois, se tiver acidentes da madre, ainda são outros quinhentos.

Faetonte. Se tudo isso são efeitos da formosura, nada temo, tendo tão soberana causa; dize-me: não me tenhas suspenso.

Chichisbéu. Com efeito queres que te diga de quem é o retrato?

Faetonte. Dize.

* Vidoamus (por videamus) − vejamos. ** Uma mulher formosa − Nesta fala há uma espécie de

polissilogismo. − Vide Vol. III, Labirinto de Creta, pág. 117·

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OBRAS COMPLETAS DE A. JOSÉ DA SILV A Chichisbéu. Ao depois não te arrependas ... Faetonte. Dize, que me não hei-de arrepender; de

quem é? Chichisbéu. É de uma mulher. Faetonte. Mas que mulher é essa, e aonde está? Chichisbéu. Está pintada em cobre. Não a vê? Faetonte. Isso é a pintura. Chichisbéu. Sim, a pintura; pois que pergunta vossa

mercê? Faetonte. De quem é o retrato? Chichisbéu. Parece-me que é de Apeles; ou eu me

enganarei. Faetonte. Já me desesperas! Dize-me e desengana-me

já qual é o original deste retrato. Chichisbéu. Isso é outra cousa! Já me retrato; e, para

lho dizer com mais certeza, deixe-me ver nos meus alfarrábios.

Folheando Chichisbéu o livro, canta a seguinte

ÁRIA

Vagos espíritos do negro Cocito*,

respondei-me já por mágica, mégica, mígica, quem é de Faetonte a bela fregona**. Seu pai, seu avô

quem é, quem será?

* Cocito − rio dos Infernos. ** Fregona − criada.

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Que a fúria sòmente do abismo fervente de uma mulher saber poderá.

Fíton. Senhor, agora reparo! Aquele é o meu livro e o meu vestido! Este homem deve ser algum velhaco.

Faetonte. Assim me parece. Já sei que és um fingido ignorante.

Chichisbéu. Sabes mais do que eu. Fíton. Quem te deu esse livro? Chichisbéu. Ninguém, porque o achei. Faetonte. Pois como insolente me pretendias enganar? Chichisbéu. Venha cá! Tão louquinho está, que me não

conhece? Não vê que sou Chichisbéu? Faetonte. Agora reparo! Chichisbéu, é possível que te

vejo? Chichisbéu. O ver-me é o menos, que isso fará quem não

for cego. O achar-me feito mágico é o mais. Faetonte. Como é isso? Conta-me. Chichisbéu. Depois que de Tessália partimos atrás do

original daquele maldito retrato, chegámos a Itália, quando, em duas palhetadas, embrenhando-se vossa mercê pelos bosques do Erídano, o perdi de vista, sem que a furoa da diligência o pudesse desencovar. Nesta sofrogicidade* andava, quando palavras não eram ditas, porque eu não dizia palavra,

* Sofrogicidade (= sofregocidade, em vez de sofreguidade) − sofreguidão.

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OBRAS COMPLETAS DE A. JOSÉ DA SILVA

eis que acho este vestido e este livro. Eis que, apenas eu o abri, eis que me prendem e me presentam a El-Rei em pessoa, afirmando que eu era Fíton, aquele mágico de Tessália que eu nunca vi; e, por mais que me desempulhei*, não foi possível tirar-lhe dos cascos que eu era Fíton.

Fíton. Mais seguro estou agora, disfarçado em Chichisbéu. (À parte).

Faetonte. Já que tens essa fortuna, vai vivendo com o tempo.

Chichisbéu. Isso sim; mas, se me pedirem que faça alguma mágica, como há-de ser, se eu sou desasado para isto de pactos?

Fíton. Não tenha medo disso, que fará quanto quiser. Chichisbéu. Ah, Senhor! Quem é este lapuz, que também

se quer meter em réstea mágica? Faetonte. É um criado que tomei na tua falta. Chichisbéu. Pois você me segura que hei-de fazer

mágicas? Fíton. Parece-me que sim; que quem tem esse livro faz

quanto quer. Chichisbéu. Contudo isso não é possível adivinhar quem

é um filho do Sol, que em Itália habita e diz El-Rei que lho hei-de dizer, porque ele o sonhou, e que, se não, me há-de separar a alma do corpo.

Faetonte. Filho do Sol?! Fíton. Como se altera Faetonte! (À parte). Faetonte. Chichisbéu, em todo o caso tu hás-de dizer a El-

Rei que eu sou o filho do Sol, para com esse pretexto completar as minhas ideias.

* Desempulhar-se − livrar-se de pulhas (gracejos).

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Fíton. Ai de mim, que Faetonte procura a sua ruína! (À parte).

Chichisbéu. E se depois aparecer o verdadeiro filho do Sol e me apanharem na mentira?

Faetonte. Nunca tal sucederá, porque não há filho do Sol; e, se o há, serei eu, pelo elevado espírito que me anima.

Chichisbéu. Se vossa mercê tivera os cabelos louros, ainda, ainda!

Fíton. Que intentas? Não sabes que é sacrilégio apropriar-te a ti a dignidade de filho do Sol, e que Apolo, irritado, pode castigar-te e a quem para isso concorrer?

Chichisbéu. É verdade que eu sou o concorrente! Não temos nada feito.

Faetonte. Deixa-me, infame estorvo de minhas felicidades! Que tens tu que me arruine? Homem, dize que eu sou o filho do Sol.

Chichisbéu. Se és um filho das ervas, como queres ser filho do Sol?

Faetonte. Adverte que nisso te faço um grande favor; porque tu ou hás-de dizer quem é o filho do Sol, ou te hão-de matar!

Chichisbéu. Essa razão concluiu-me. Vossa mercê é o filho do Sol, e tenho dito. Constituo te filium Solis*.

Fíton. Oh, violento poder dos fados! Quem pode resistir a teus impérios? (À parte).

Faetonte. Não sabes quanto estimo esta ocasião, para que assim possa frequentar sem perigo este

* Constituo te tilium Solis − nomeio-te filho do Sol.

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palácio, e servir aos desígnios de Egéria, uma princesa... Chichisbéu. Sim, Senhor, uma princesa filha de quem

Deus tem, esporiada* do trono. Não é assim? Faetonte. Muito sabes. Chichisbéu. Não vê que sou mágico? Pois ainda sei

mais. Faetonte. Dize. Chichisbéu. Não posso, que está sub sigillo magicali**. Faetonte. Nada me importa saber mais que o belo

original deste retrato, pois quanto intento é para ver se descubro este encanto de amor.

Canta Faetonte a seguinte

ÁRIA

Nas pupilas de meus olhos o meu bem hei-de buscar

e verei se posso achar entre a cópia de meu pranto desta cópia o exemplar.

Se te encontro, objecto amado, acharás nesta alma amante

um morrer a cada instante, um viver por te adorar. (Vai-se).

Fíton. Vai-te, errado mancebo, que algum dia te pesará do engano que intentas fabricar. (À parte).

Chichisbéu. Ó você?

* Esporiada (=esporeada) − espoliada. ** Sub sigillo magicali − sob segredo mágico.

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Fíton. Que diz? Chichisbéu. Não diga a ninguém que eu sou mágico.

Entendeu-me? Fíton. Bem entendo; mas eu farei com que te tenham

por mágico, exercitando na tua pessoa vários encantos, para que fiquem na certeza de que és o Fíton que buscam, e eu livre de chegar às mãos de El-Rei. (Vai-se).

Sai Chirinola

Chirinola. Venho pé antepé a ver este mágico, que tem alvoraçado* todo este palácio, e é cousa que nunca vi em minha vida.

Chichisbéu. Que estará espreitando aquela moça? Ó menina, procura alguma cousa?

Chirinola. Vinha a ver um mágico que está em palácio. Chichisbéu. E para quê? Chirinola. Só por ver como é a cara de um feiticeiro. Chichisbéu. É como esta que vossa mercê está vendo. Chirinola. Pois vossa mercê mesmo é o feiticeiro? Chichisbéu. Para servir ao Diabo e a vossa mercê, que

tudo é um. Chirinola. Ai! Chegue-se para lá, que se me arrepiam

os cabelos! Chichisbéu. De que te assustas? Que cuidas tu que é

ser mágico?

* Alvoraçado − é forma popular de alvoroçado.

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Chirinola. Com licença de vossa mercê, dizem que é gente que fala com o Diabo.

Chichisbéu. Esses são outros, que eu cá não falo com o Diabo; o Diabo é que fala comigo.

Chirinola. Isso tudo vem a ser mesmo. Chichisbéu. E a ti que se te dá disso? Tomaras tu que

um mágico desses te amasse! Então verias... Não digo nada! Chirinola. Deus me livre! Chichisbéu. Queres tu que eu seja teu Chichisbéu?

Zombaria fora. Chirinola. Para quê? Não jure, que bem lho creio. Chichisbéu. Hei-de ser o mais fino Chichisbéu que há-

de haver em toda a Itália. Chirinola. Vá-se daí, que é um feiticeiro! Chichisbéu. Feiticeira és tu, que me tens enfeitiçado. Chirinola. Só de uma sorte me poderá render. Chichisbéu. Como? Chirinola. Renunciando o pacto e depondo a mágica. Chichisbéu. Se nisso consiste, já renuncio, não só o

pacto, mas tudo que te possa dar pena, pois só quero que voe o meu amor à esfera dos teus olhos.

Chirinola. Estamos justos; porém veja lá o que faz! Agora o apurarei. (À parte). Ora dize: como me chamo eu?

Chichisbéu. Se eu já não sou feiticeiro, como posso adevinhar o teu nome? Está galante a Chirinola!

Chirinola. Não temos nada feito. Vá-se daí, que ainda é quem dantes era.

Chichisbéu. Porquê?

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Chirinola. Disse-lhe que me adevinhasse o nome, e mo

escarrou na bochecha. Chichisbéu. Eu, o teu nome?! De que sorte? Chirinola. Não disse Chirinola? Que mais havia de

dizer? Chichisbéu. Pois tu te chamas Chirinola?! Chirinola. Sim, Senhor; faça-se de novas. Chichisbéu. Ó Chirinola, em chirinola* me torne eu, se

eu sabia que tu te chamavas Chirinola. Chirinola. Pois para que disse Chirinola? Chichisbéu. Nunca se viu um lapsus nominis**? Se

havia de dizer charamela, disse chirinola. Chirinola. Ora admito a desculpa, mas não lhe suceda

outra. Chichisbéu. Qual outra? Eu quero mais encanto, que essa

beleza, nem mais adevinhar que os teus pensamentos, nem mais pacto que esse cisne de Vénus, de cujas asas formou Cupido as suas, de cujas penas armou as setas para ferir e para voar? Teu Chichisbéu hei-de ser; e, se o não for, não seja embora*** .

Chirinola. Veja lá o que diz; olhe bem para mim! Chichisbéu. Tenho dito.

Imediatamente lhe cresce o nariz a Chichisbéu, com desformidade

Chirinola. Ai que nariz! Isto atura-se? Há homem mais mentiroso?

* Chirinola − armadilha. − Repare-se no trocadilho. ** Lapsus nominis − engano de nome. *** E mbora − em boa hora.

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ÁRIA

Se quer adorar-me, da mágica fuja; se quer desprezar-me, fará o que quiser, que é muito senhor do senhor seu nariz.

Bem sabe não gosto de feitiçarias, que são rapazias,

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Canta Chirinola a seguinte

Chichisbéu. Que fiz eu? Que nariz? Explica-te; não fales pelos narizes.

Chirinola. Como queres que creia, se ao mesmo tempo que dizes não hás-de ser mágico, sacas por um nariz tamanho como hoje e amanhã?

Chichisbéu. É verdade! Cresceu-me o nariz! Há caso igual? Ó Chirinola, este não é o meu nariz, e nisto podes assentar.

Chirinola. Vá-se daí, embusteiro, mágico, feiticeiro! Chichisbéu. Filha do meu coração, eu estou inocente.

Verdade é que me rebentou este nariz à flor da cara; mas eu não concorri para isso.

Chirinola. Não? Fui eu? Chichisbéu. Vê tu não seja isto algum leicenço! Chirinola. É nariz em nariz. Chichisbéu. Tu tens razão; é forte penca! Chirinola. Arre lá! Com nariz mais da marca? Isso não

se atura! Ande; vá-se, antes que lhe chegue aos narizes.

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que estalam num trás, e estão por um triz. (Vai-se).

Chichisbéu. Viu-se nariz mais intrometido do que este meu? E que por amor dele vá Chirinola ventando por aí fora! Isto deve ser contágio do tal livrinho. Arre, com tal nariz! Mas aonde está ele? (Esconde-se-lhe o nariz). Sumiu-se? Sem dúvida foi o nariz atrás de Chirinola, a pedir-lhe bom quartel; mas eu vou a pedir-lhe as alvíssaras: Ó Chirinola, espera, que já estou desnarigado. (Vai-se).

CENA III

Câmera, em que haverá um bufete e sobre este uma vela acesa; e haverá mais uma cadeira. Saem Ismene e Albano, e

este não passará do bastidor

Ismene. Basta até aqui, Albano. Albano. Limitada esfera para tanto Sol. Ismene. É estilo do decoro e da política pôr limites à

entrada dos esposos, aonde habitam as esposas; e assim, já sabes que aqui não podes estar, e é preciso retirar-te.

Albano. Poderia, se o nosso himeneu voara mais acelerado.

Ismene. Não basta a certeza da posse para suavizar o martírio da esperança?

Albano. Não, Ismene, que toda a posse é duvidosa, que tem a esperança por fiadora.

Ismene. Quando eu e El-Rei a abonamos, seguro podes estar.

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Albano. Pois, Senhora, já que não tenho licença para me dilatar, neste papel verás a causa de meu tormento.

Vai-se Albano, dando um papel a Ismene, e esta assenta-se a lê-lo, e sai ao bastidor Egéria e Faetonte com um

punhal na mão, e Ismene estará de sorte que lhe não veja o rostro

Egéria. Chegou o tempo da nossa vingança. Ali tens a Ismene; a ocasião é oportuna. Esgrime o valeroso braço, pois para te coroares necessitas da púrpura daquele sangue. (Vai-se).

Faetonte. Estou imóvel, pois parece espécie de cobardia matar uma mulher.

Ismene. Enigmas me parecem as cifras de Albano; quero repeli-las para as compreender melhor.

Faetonte. Mas em que reparo, se muitas vezes a tirania é o primeiro degrau para subir ao trono?

Ismene. Senhora (diz Albano aqui), este excesso de El-Rei em procurar o filho do Sol me persuade que, achando-o, quererá dar-lhe a glória de teu esposo, para divinizar com um filho de Apolo a sua descendência. Quem será este filho do Sol?

Faetonte. Não pareça a dilação cobardia; triunfe Egéria.

Ismene. Diz mais. E temo, Senhora, que este filho do Sol, usurpando-me a fortuna de teu himeneu, seja instrumento da minha morte, tirando-me a vida.

Faetonte. Morre, infeliz ... (Sai).

Ao ir levantar o braço para ferir a Ismene, a vê e se suspende, e ela se levanta

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Ismene. Ai de mim! Como, traidor, assim ... Faetonte. Que é o que vejo? Não é este o belo original

da cópia que adoro? Imóvel estou! (Deixa cair o punhal). Ismene. Olá! Acudi, que um traidor... Faetonte. Suspende a voz, Ismene; não digas traidor;

amante, sim. Ismene. Com um punhal... Faetonte. Achou a oculta causa de seu incêndio. Ismene. Intenta tirar-me a vida. Faetonte. Sem ela estou, vendo tão infeliz acaso; pois te

afirmo que te não podia ofender. Ismene. Mas intentavas matar-me? Faetonte. Sim; mas, tanto que te vi, me suspendeu o

braço o afecto com que te adoro. Ismene. Tu adorar-me?! Queres com uma ofensa

apadrinhar um delito? Acudi todos, antes que o traidor se ausente!

Faetonte. Senhora, que intentas? Dentro. Acudamos ao quarto da princesa. Faetonte. Ai de mim, que é infalível a minha ruína! Bem

o disse Fíton! Aonde me esconderei? (Quer esconder-se). Ismene. Espera, traidor, que te não hás-de ausentar; que

também tenho valor para te suspender.

Ismene pega em Faetonte, e este intenta, lutando, tirar-se das mãos dela

Faetonte. Não me sejas duas vezes homicida; deixa-me ao menos ausentar.

Ismene. Sem castigo não hás-de ficar. Faetonte. Oh, quem dissera que me abrace Ismene e que

eu fuja de seus braços! Deixa-me, Ismene.

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Dentro. Aqui são as vozes. Faetonte. Não há mais remédio que apagar a luz. (Apaga

a luz). Ismene. Que fazes? Faetonte. Fugir de ti, para buscar-te outra vez. (Vai-se).

Saem Albano, Egéria e um criado com luz

Albano. Que tens, Ismene? Quem te motiva a dar vozes? Egéria. Que te sucedeu? Ai de mim, que se frustrou o

meu intento! (À parte). Ismene. Encontraste acaso um traidor, que bárbara e

aleivosamente me quis tirar a vida? Albano. Quem seria o atrevido que concebeu tão horrível

pensamento? Egéria. Ainda não creio que estás com vida. Albano. E para onde fugiu? Ismene. Não sei, porque apagou a luz, para com as

sombras se encobrir melhor. Busca-o, Albano, que o traidor não poderá estar longe, e castiga a sua temeridade.

Egéria. Ai, infeliz Faetonte! (À parte). Albano. Eu vou a buscá-lo; verás como vingo a tua

ofensa. Egéria. Aonde vás, ingrato? Tanta fineza te merece

Ismene, para expores a tua vida à desesperação de um infiel agressor?

Albano. Não sabes que sou amante e esposo? Deixa-me, Egéria!

Ismene. Vai; não te dilates. Egéria. E a sua vida? Ismene. Os deuses a defenderão.

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Egéria. Para que é buscar remédios extraordinánários, quando sem esse recurso o podemos evitar? Assim darei tempo para que fuja Faetonte. (À parte).

Albano. Que tens com a minha vida? Não me detenhas.

Egéria. A palavra que me deste de ser meu esposo. Albano. Palavra de esposo? Egéria. Sim. Albano. Ismene, Egéria delira; eu vou castigar ao

traidor. Ismene. Espera; averiguemos isso, que as ofensas da

alma devem preferir às do corpo. Albano. Vê que o traidor se pode ausentar; e, para que

vejas que Egéria se alucina, verás na minha fineza convencido o seu engano.

Canta Albano o seguinte recitado, e depois com Egéria e Ismene a ária a 3

RECITADO

Donde te esconderás de meus furores, fementido traidor? Mas não te ocultes,

que, ainda que te sepultes nas côncavas cavernas desse abismo, e em triste paroxismo entre as sombras do Averno te disfarces, lá mesmo encontrarás o teu castigo,

ó pérfido inimigo, por não creres com bárbara impiedade ser incapaz da morte a Divindade.

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OBRAS COMPLETAS DE A. JOSÉ DA SILVA

ÁRIA A 3

Albano. Na minha vingança, Ismene, verás meu fino querer. Egéria. Espera, suspende, cruel, que a mudança me chega a ofender. Ismene. Valente, castiga a mão que meu sangue intentava verter. Egéria. Firmeza

} te peço. Ismene. Vingança Albano. Firmeza e vingança Egéria. Firmeza

} em meu peito. Ismene. Vingança Todos. Sòmente acharás. Albano. De amor inflamado, Ismene. De ardor abrasada, Egéria. De horror congelada, Todos. Minha alma verás.

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PARTE II

CENA I

Sala. Sai Albano

Albano. Não é possível aparecer o traidor, sem que tenha omitido o meu cuidado toda a diligência, como poderia entrar este inimigo e sair, sem ser visto de ninguém.

Sai Chichisbéu

Chichisbéu. Donde estará este Faetonte, que não é possível atinar com ele? Eis aqui para quando um homem havia ser feiticeiro.

Albano. Fíton! Chichisbéu. Que manda Vossa Alteza muito serenada? Albano. Que me declares quem foi o traidor que quis

ofender a Ismene esta noite; e já neste diamante te anticipo o prémio de tua ciência. (Dá-lhe um anel).

Chichisbéu. Aceito o diamante, porque me serve cá para certa cousa de minha ciência, desfeito em vinagre. Pois que diz Vossa Alteza?

Albano. Saber quem foi o traidor de Ismene, que a quis matar esta noite.

Chichisbéu. A que horas? Albano. Seriam dez.

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OBRAS COMPLETAS DE A. JOSÉ DA SILVA

Chichisbéu. Fazia luar, ou escuro? Albano. Não reparei. Chichisbéu. Nem eu; mas sem essa circunstância

passaremos. E diga-me mais: o traidor chegou a ferir a Ismene?

Albano. Não, porque acudi a defendê-la. Chichisbéu. Pois saiba Vossa Alteza que a não matou e

que viva está. Quer saber mais alguma cousa? Albano. Quem é o traidor é que me importa saber, e

aonde está. Chichisbéu. Sabe Vossa Alteza por onde ele iria? Albano. Se eu o soubera, não to perguntara. Chichisbéu. Pois também eu lho não perguntara, se o

soubera. Albano. A ti nada te é oculto, pois no volume dos

astros lês todos os sucessos do Mundo. Chichisbéu. Isso assim é, mas é com óculos. Albano. Não me entretenhas com frívolas desculpas.

Eu estou empenhado a que me digas o que te pergunto; quando não, aqui ficarás sepultado.

Chichisbéu. Não me ameace, que por mal ainda é pior! Olhe, Senhor! Se quer saber quem é o traidor, vá ao bosque do Erídano e o primeiro homem que aí encontrar, esse é! Porém, segredo no caso, porque eu cá não sou homem de mexericos.

Albano. Pois, Fíton, se acho certo o que me dizes, ainda será maior o meu agradecimento. (Vai-se).

Chichisbéu. Vai-te cos diabos, pois só por me ver livre daquela sanguixuga, lhe disse que estava no Erídano! Não me lembrou dizer-lhe que estava nos quintos infernos, por ver se o ia lá buscar.

Saem El-Rei e Mecenas

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Rei. Fíton? Chichisbéu. Avie-se! Outra impurração temos. (À

parte). Rei. A tua ciência nesta ocasião só me pode livrar de

um empenho. Quem foi o que a Ismene... Chichisbéu. Quis matar esta noite, seriam dez horas?

Já disse a Albano que fosse ao Erídano, que lá o acharia. Rei. Prodigioso homem! Vem cá, Fíton! Se eras tão

insigne mágico, para que mo negavas? Chichisbéu. Por não ter* aplausos; pois sou tão

inimigo de rompantes laudatórios, que por isso fugi de Tessália.

Mecenas. Até nisso mostra que é verdadeiro sábio. Rei. E como estamos do filho do Sol? Chichisbéu. Já o tenho quase descoberto até o pescoço;

falta-me só ver-lhe a cara, para o conhecer. Rei. Pois quem te impede o seu total conhecimento? Chichisbéu. Os vapores crassos da terra, que estão

escurecendo o brilhante dos astros; mas, apesar de tudo, hei-de trazê-lo aqui pelos cabelos, sob pena de enforcar os livros.

Mecenas. Senhor, lembro a Vossa Majestade que Albano pretendeu algum dia a Egéria esposa, e não sei se o traidor seria...

Rei. Cala-te, Mecenas! Bem te percebo. Albano é príncipe; e, quando o não fosse, mais interesse acharia em Ismene, que em Egéria. (Vai-se).

Mecenas. El-Rei muito confia em Albano; e as minhas ideias muito se retardam na execução, por

* Por não ter − para não ter.

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não achar a oportunidade que desejo. Ai, Egéria, que a tua infelicidade me suspende o arrojo e me esconde a ocasião! Mas só tu, ó Fíton, compadecendo-te do meu amor, podes remediar o meu empenho. Que me respondes, Fíton? Fíton, não ouves? Arrebatado em êxtasis está. Fíton?

Chichisbéu. Não me deixará, Senhor Mecenas, que estava agora ideando aquilo que Vossa Senhoria me recomendou acerca da Senhora Egéria, e o tinha já quase concluído, se me não chama?

Mecenas. Até nisso sou infeliz; mas basta-me, para alentar a minha esperança, saber que te não esqueces da minha pretensão. Mas só te digo que desejara que Albano caísse do valimento, por não conseguir o himeneu que pretende, e unir maior poder ao meu contrário.

Chichisbéu. Tudo bem se fará.

Sai Chirinola ao bastidor e Mecenas a vê Chirinola. Graças a Deus, que já achei este Mecenas!

Tomara falar-lhe só por só, sem que me visse o meu Chischibéu. Cé!

Mecenas. Que me quererá aquela criada? Fíton, retira-te, que importa ficar só. Depois falaremos.

Chichisbéu. Também, se não falarmos, importa pouco. Mas eu quero espreitar o que isto é. (À parte e esconde-se).

Mecenas. Que há de novo, Chirinola? Chirinola. Egéria te avisa que Albano e Ismene se

acham divertindo em uma caçada, nas ribeiras do Erídano; que observes os seus movimentos, que pode ser aches alguma ocasião para o intento.

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Mecenas. Dize-lhe que a reposta é a obediência com que executo os seus preceitos. (Vai-se).

Chichisbéu. Temos a Chirinola feita alcoviteira! Chirinola. Eu não sei quando se aquietarão estes

Senhores! Chichisbéu. Quando não houverem alcoviteiras. (Sai). Chirinola. Fale claro e não me dê remoques. Chichisbéu. Ora não fiava de ti que tivesses tão baixo

ofício, sendo tu a primeira terceira que eu vi tão destemperada nessa matéria!

Chirinola. E quem to disse? Chichisbéu. É boa pergunta essa! A um mágico não se

pergunta quem lho disse. Chirinola. Perdoe, que cuidava que já não era mágico. Chichisbéu. Ai, que me não lembrava da promessa que te

fiz! Estou zombando; eu não sei nada. Chirinola. Logo não sou alcoviteira! Chichisbéu. Qual alcoviteira? Chirinola. Bem se conhece o remendo que não é do

mesmo pano. Chichisbéu. Ah, Chirinola! Sabe Deus as linhas com que

cada um se cose! Deixemos galantarias amatórias e falemos em cousas sisudas.

Chirinola. Pois que há de novo? Chichisbéu. O meu amor. Chirinola. Pois isso já não é velho? Chichisbéu. Não vês que os velhos são duas vezes

meninos? Chirinola. Pois que quer o menino? Chichisbéu. Quer nanar. Chirinola. Pois busque quem o embale.

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Chichisbéu. Sempre me andas embalando com esse rigor! Não vês que sou teu Chichisbéu, a quem se devem os carinhos de jure*, e porta franca os agrados?

Chirinola. Ainda mais carinhos, ainda mais agrados dos que lhe eu faço?

Chichisbéu. Isso sim; mas ... Chirinola. Mas quê? Diga: mas quê? Chichisbéu. A mim me tinham dito (muito se mente

neste mundo!) que os Chichisbéus abraçavam as suas Chichisboas**; que eram duas almas num corpo; o que um queria, outro queria; que a fé amante era inviolável; a assistência contínua; o cuidado frequente; e que estavam olhando um para o outro sempre sem pestanejar. E, no cabo, nada disto acho em Itália! Que será?

Chirinola. Estás muito alheio no caso. Chichisbéu. Agora. Eu estou muito bem certo nas leis do

Chichisbeato***. Chirinola. Nada sabe senão ter atrevidos pensamentos!

Não sabe que um Chichisbéu há-de querer com tão casto amor, que não há-de passar os limites da política?

Chichisbéu. Filha, isso de amor platónico é coisa ideada, que não existe in rerum natura; é uma capa que se deita sobre os olhos de Cupido, para o cegar mais e para cegar também aos circunstantes. E não me puxes tu pela língua, que eu direi o que sinto nessa matéria.

* De jure − por direito. ** Chichisboas − é feminino cómico de Chichisbéus. *** Chichisbeato − é outro neologismo cómico, formado de Chichisbéu.

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Canta Chichisbéu a seguinte

ÁRIA

Cara mia*, cara, cara, per te il mio cor trafitto**, smarrito***, sbigottito, il dardo senti d' amor.

Moriró, má qual Fenice, che nel fuoco suo Felice più bella rivive allor. (Vai-se).

* Cara mia... − Esta ária, não sabemos se original, se recolhida dalgum escritor italiano, lê-se assim, um tanto estropiada, na edição:

Cara mia, cara, cara, per te il mio cor trafitto, smarrito, sbigurrito, il dardo senti d'amor. Moriró, má qual Fenice che nel fuoco suo felice più bella revive allor.

** Trafitto − trespassado. *** Smarrito − confuso. – Sbigottito − perturbado.

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CENA II

Selva. Saem Egéria e Faetonte

Egéria. Quanto, Faetonte, sinto se malograsse tão bem premeditada acção!

Faetonte. Bem vês, Egéria, como obedeço aos teus preceitos e como desempenho a minha palavra. Falta cumprires da tua parte com a morte de Albano.

Egéria. Ainda não falta o tempo: cuidemos primeiro em salvar a tua vida, pois é certo que de Ismene foste visto e se fazem diligências para te prenderem. E assim, será preciso que seja outra vez este bosque do Erídano verde asilo de tua pessoa.

Faetonte. Ai de mim, que mais sinto o cruel desterro, que perder a própria vida, pois quisera que Ismene me visse mil vezes traidor!

Egéria. Para que é tão inútil acção? Faetonte. Para executar a minha fineza nos contínuos

sacrifícios à tua formosura. Egéria. Muito te devo. Dentro. Ao bosque, à selva! Tó, Tó! Egéria. Mas ali vem Ismene! Põe em execução o teu

intento, que eu me retiro e, oculta neste arvoredo, estarei observando o teu valor [Assim fingirei que o vejo, para que se alente na execução! (À parte)], que uma coisa é desejar a morte, outra vê-la executar. (Vai-se).

Faetonte. Espera, Egéria. Mas, ai de mim! Quem se viu em maior consternação? Pois esperar Egéria pela morte de Ismene, Ismene, aquele soberano ídolo de amor, cuja c6pia adorei primeiro que o seu original! Ver-me Egéria agressor e ver eu a Ismene

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Chirinola. Seja o que for, isto é o que cá se usa. Chichisbéu. Vamos com a moda, que do mal o menos. Chirinola. Isso me parece bem. Chichisbéu. Pois ouve e verás se sou Chichisbéu de

verdade.

Chirinola. É o mais galante Chichisbéu que tenho visto! (Vai-se).

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amante! Oh, que intricado labirinto de amor! Mas ela já vem chegando, e eu, para satisfazer a ambos os empenhos, fingirei que me desencontro e, no entanto, gozarão os olhos por entre estas ramas o belo sol que me abrasa. (Esconde-se).

Saem Ismene com arco e setas, e alguns monteiros

Ismene. Ali se moveram ramos. Sem dúvida que ali se embrenhou a fera. Espera, veloz jeroglífico* do vento, que eu com esta seta te suspenderei a fuga.

Atira uma seta e dá em Faetonte, que cai atravessado

com ela aos pés de Ismene

Faetonte. Ai de mim, tirana, que me mataste! Ismene. Que vejo! Ai, infeliz, que cuidei eras a fera que

vinha seguindo! Levanta-te, homem, que as minhas piedades farão menos horrível a tragédia deste acaso. (Levanta-o).

Faetonte. Com tão feliz remédio será ditosa a minha morte. Perdoe Egéria, que a ocasião não permite atenções. (À parte).

Ismene. Aonde foi a ferida? Faetonte. No peito. Ismene. E é penetrante? Faetonte. Chegou-me ao coração. Ismene. Ao coração? Se assim fora, não estarias com

vida.

* Jeroglífico (por jeroglifo) − Assim se designa cada um dos caracteres da escrita dos antigos Egípcios. Aqui significa enigma.

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Faetonte. Esse é o privilégio do teu golpe, que imortaliza a mesma morte.

Ismene. Agora vejo que estás mortal, pois que deliras. Levai este homem, e de sua ferida o remédio correrá por minha conta.

Quer Ismene ir-se, e Faetonte a detém e canta a seguinte

ÁRIA

Deixa que eu morra desta ferida, que é melhor vida morrer por ti.

Se me desejas da morte isento, não te retires, pois só me alento com ver-te aqui. (Cai).

Ismene. Levai, levai esse homem, que me horroriza ver tanto sangue. (Vai-se).

Saem por uma parte Albano e da outra logo depois Mecenas, Fíton e Chichisbéu

Albano. Esperai! Que homem é esse? Quem o feriu? Monteiro. Ismene, com uma seta. Albano. Sem dúvida que este é o traidor que quis matar a

Ismene, pois é o primeiro homem que encontro nos bosques do Erídano, como me disse

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Fíton. E, pelo conhecer, Ismene, valerosa, se quis vingar pelas suas mãos.

Faetonte. Ai de mim! Espera; não te vás, tirana roubadora da minha vida, pois com a minha morte não extingues o ardor em que me abraso. (Levantando-se).

Albano. Ainda fulminas vinganças, infame, traidor? Mas, se semivivo te deixou a piedade de Ismene, a minha vingança te acabará de uma vez.

Puxa por um punhal, e saem Mecenas, Fíton e Chichisbéu

Faetonte. Ainda que exangue me vês, sabe que tenho espíritos para supeditar∗ o teu arrojo! Larga o punhal e vem a meus braços.

Chichisbéu. Em grande perigo está Faetonte! O engano me valha. Suspende o braço, sacrílego Albano! Mecenas, este é o filho do Sol, por quem tanto suspira El-Rei.

Mecenas. Que dizes? Albano. Este não é o filho do Sol; é o traidor de Ismene e

nele quero completar o resto da vingança que deixou Ismene principiada**.

Chichisbéu. Ora não o saberei eu?! E, se não, pergunte-lhe e verá o que ele diz.

Faetonte. Deixa, Fíton, pois lhe val a sua ignorância, para que Apolo, como a sacrílego, o não castigue com seus raios.

* Supeditar − vencer. * * Que deixou Ismene principiada − que Ismene deixou

principiada.

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Fiton. Não há mais remédio que obedecer aos fados, para que não perca Faetonte a vida; e, para maior evidência de que ele é o filho do Sol, fará Apolo que se movam estas árvores, mudando o sítio em que habitam.

Movem-se as árvores de uma parte para a outra

Todos. Prodigioso sucesso! Faetonte. Grande mágico é Fíton! (À parte). Chichisbéu. Se eu soubera fazer disto, dava duas figas na

inveja! (À parte). Mecenas. Que mais evidência queremos? Vem, venerado

filho do Sol, a enobrecer esta região. Albano. Fíton, Senhor, é o culpado no meu excesso, pois

me disse que o primeiro homem que encontrasse nos bosques do Erídano, que esse era o traidor, que quis matar a Ismene; e, como foste o primeiro que encontrei e o ver-te ferido por Ismene, me persuadi que eras o traidor; e assim, desculpa o meu atrevimento, pois só Fíton por enganar-me merece o castigo.

Chichisbéu. Não nego que eu disse que o primeiro homem que encontrasse era o traidor; porém Faetonte, que assim se chama este Senhor, filho do Sol, não é [senão] semideus. Logo, não o enganei.

Faetonte. E o ferir-me Ismene foi uma casualidade. Mecenas. Vamos, Senhores; não dilatemos o dar a El-Rei

este prazer. Vem, esclarecido Faetonte. (Vai-se). Faetonte. Bom princípio levam os meus intentos. (Vai-

se).

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Albano. Vou sem alma, pois temo neste filho do Sol o

eclipse do meu amor. (Vai-se). Fíton. Oh, quanto em vão pretende a prudência humana

suspender o movimento das estrelas! (Vai-se). Chichisbéu. Ora vejam as cousas deste mundo como são,

pois eu, sendo um asno em pessoa, estou feito sátrapa em carne, e Faetonte, sendo um ninguém, lá vai a ser venerado como filho do Sol! Se isto não parar em alguma destampação, temos vida para cem anos.

Sai Egéria

Egéria. Cuidadosa venho, sem saber se Faetonte executaria o intento. Mas ali está Fíton. Ele me informará. Fíton, vem a tirar-me de uma dúvida.

Chichisbéu. Não posso, Senhora, que anda tudo revolto com o novo sucesso que agora aconteceu. (Vai-se).

Egéria. Que sucesso? Espera. Mais confusa estou! Mas quem duvida que será a morte de Ismene? Porém, que vejo! Alvíssaras, coração! Todo este prado está inundado de sangue. Não pode haver mais seguro indício, pois haver sangue no lugar, aonde deixei a Faetonte, e Ismene; dizer-me Fíton acelerado que andava tudo revolto com um novo sucesso, que pode ser senão o que imagino? Oh, valeroso Faetonte! Oh, extremoso amante! Só o teu valor me podia coroar de triunfos.

Sai Chirinola.

Chirinola. Senhora, que será isto? Todo este prado cheio de sangue, e ali encontrar a Albano

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ÁRIA Verdes louros do Erídano, só assim no sólio ufano desse sangue matizados vós me haveis de coroar.

Mas, ó tu, ditoso amante, que por mim penando vás, a teu peito fiel, constante Eu prometo libertar (Vai-se).

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pálido, como sobressaltado, e Mecenas, que levaram um homem como preso?

Egéria. Viste que homem era? Chirinola. Não o pude distinguir, por ir cercado de muita

gente. Egéria. Ai de mim que será Faetonte! Sem dúvida que,

morta Ismene, não poderia escapar! Chirinola. Pois, Senhora, que seria isto? Egéria. Uma felicidade e uma desgraça ao mesmo

tempo. Aquele que viste ir preso era (ai de mim!) o mais extremoso amante que me adorava, chegando a tanto a sua fineza, que chegou a dar a morte a Ismene, cujo sangue é este que matiza este prado.

Chirinola. Ora já se acabaram os teus cuidados à custa do sangue alheio.

Egéria. As armas da justiça são mui poderosas. Chirinola. Agora, Senhora, que te vês sem oposição no

trono, lembra-te da minha lealdade. Egéria. Ainda não creio esta fortuna. Oh, ambição de

reinar, a quanto obrigas! Oh, cego amor, a quanto te deliberas!

Canta Egéria a seguinte

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CENA III

Gabinete bem adornado. Saem Faetonte e Chichisbéu

Chichisbéu. Ora senhor filho do Sol, seja-lhe muito parabém a vossa semideidade*, pois que se vê palaciego, venerado dos grandes, adorado dos pequenos e apetecido das damas. Agora peço-lhe que, já que o Senhor seu pai é o produtor do ouro de vinte e quatro quilates, que reparta comigo dos seus minerais; quando não, hei-de pô-lo no olho da rua, como quem é.

Faetonte. Bem sei, Chichisbéu, que essa epiqueia** com que me falas é uma rigorosa crítica de meu nascimento; mas, se o nascer nobre é acaso da fortuna, com o meu valor e a tua indústria emendarei esse acaso.

Chichisbéu. E como estás da ferida? Faetonte. Quase são, à força de activos remédios. Chichisbéu. E quem te feriu? Faetonte. Ismene, casualmente, com uma seta, que para

um bruto a despediu do arco. Chichisbéu. Andar, nunca errou o tiro! Faetonte. E mais sentira, se o errara. Chichisbéu. Não entendo essa filosofia. Faetonte. Porque Ismene é o belo original daquela cópia

que de Tessália me trouxe em frenético delírio.

* Semideidade − neologismo de tratamento, com fins cómicos.

** Epiqueia − moderação. - Aqui, há ironia.

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Chichisbéu. Ismene mesma? Faetonte. Ismene, porque aquela beleza só de um ânimo

real poderia ser adorno. Chichisbéu. Caro te custou o achá-la, pois zombando,

zombando, te ia custando a vida. Faetonte. Também o não achá-la me custaria o mesmo. Chichisbéu. Que pretendes agora, depois de filiado na

casa do Sol? Faetonte. Escusada pergunta, quando sabes os extremos

que fiz por Ismene, quando pintada, pois quem tão finamente adorou as suas sombras, como deixará de idolatrar o claro de suas luzes?

Chichisbéu. Eu o creio; mas contudo não falta quem diga que uma mulher é melhor pintada que viva; pois o pincel é como o solimão*, que mata os defeitos.

Faetonte. Em Ismene tudo são perfeições. Chichisbéu. Com quê, Egéria já lá vai cos diabos! Faetonte. Não tem que se ofender Egéria, pois primeiro

adorei a Ismene. Chichisbéu. Na verdade que, se souberas o que há na

matéria entre Egéria e Mecenas, que há mais tempo que a havias ter repudiado.

Faetonte. Conta-me, para que possa coonestar o meu desvio.

Chichisbéu. Senhor, eu não sou de mexiricos. Nessa certeza, saiba vossa mercê que Egéria fez a Mecenas escrito de casamento ou cousa que o valha, e se lhe mete na cabeça que há-de pôr a Egéria no

* Solimão − sublimado corrosivo.

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trono. E não deixam de ter seus colóquios amatórios. Faetonte. Quem to disse? Chichisbéu. Eu, que o ouvi com estes olhos. E

pretenderam que eu desse algum socorro mágico na matéria. Com quê, Senhor, isto anda mui solapado e combalido. Faze o teu negócio, gema quem gemer; já estás feito filho do Sol e como tal podes casar aonde puseres o dedo meminho*.

Faetonte. Não sabes quanto estimo essa falsidade de Egéria, para que sem escrúpulos da constância possa livremente pretender a Ismene?

Chichisbéu. Sim, Senhor; Ismene e mais Ismene, que o mais é carvão de sacaria.

Sai Ismene

Ismene. Cuidadosa da tua saúde, venho expressar-te o quanto estimarei a tua melhora, para que no alívio da queixa se mitigue o pesar de ser eu a causa da tua moléstia.

Faetonte. De melhor vontade recebera os parabéns da ferida que os da melhora, pois, morrendo aos golpes da tua seta, acharias no sacrifício da minha vida os cultos de quem te adora como deidade. Oh, quantas vezes, Ismene, abomino a arte que inventou antídotos para curar-me, pois quisera no mortal da ferida imortalizar a minha fineza!

Ismene. Bem instruído estás nas lisonjas da corte; mas, como esses afectos são mais efeitos do entendimento que da vontade, te agradarão mais os

* Meminho (= meiminho) − mínimo.

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elogios que a correspondência; e, pois satisfeita vou, vendo-te convalecido, permite-me que me retire. (Quer ir-se).

Faetonte. Não te vás, sem que primeiro te informes de outra enfermidade maior que padeço; que, se piedosa te ostentas com os males do corpo, será razão que propícia te encontre no mal que minha alma padece.

Chichisbéu. Aquele mal de alma, como cousa oculta, só a mim me pertencia dizê-lo, a quem toca revelar os segredos animais; porém, diga o Senhor Faetonte, que enfim, mais sabe o tolo no seu que o discreto no alheio.

Faetonte. Haverá um ano, formosa Ismene, que te vi, ou para melhor dizer, que ceguei de te ver; e, assim como o íman procura o ferro, o heliotrópio o Sol e o fogo o ar, assim desde Tessália, onde te admirei, a procurar-te veio o meu afecto duas vezes peregrino. Deixo de encarecer-te os desvelos, os cuidados e os suspiros que me motivaste, por te não horrorizar a tragédia do meu tormento.

Ismene. Se nunca fui a Tessália, como nela me podias ver?

Faetonte. Neste retrato. (Mostra o retrato). Chichisbéu. Eu sou muito boa testimunha*, e mais por

sinal que o viu em jejum, e logo ficou não sei como. Ismene. E de que sorte veio a teu poder? Faetonte. Achando-o nas ribeiras do mar, entre os

fragmentos de um naufrágio.

* Testimunha − é forma popular de testemunha.

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Chichisbéu. Ah, Senhor, peça perdão a Sua Alteza de achar o seu retrato na praia, que não é lugar decente.

Ismene. Ai de mim, que este é o meu retrato, que se enviou ao príncipe de Rodes, que infeliz naufragou com ele, vindo-me receber por esposa! (À parte).

Faetonte. Te enternece* ver o teu retrato, ou de ouvir os meus suspiros?

Ismene. De ambas as cousas: o retrato, pelo ver sem dono; e os teus suspiros, por inúteis.

Faetonte. Se eu possuo o retrato, como não tem dono? Chichisbéu. Isso assim é, pela regra do uso capiam**; e

de serem inúteis os suspiros, também pudera dizer alguma cousa pelo direito de terceiro; porém acho que Vossa Alteza não há-de desprezar um filho do Sol legítimo, que só por ter por avô de seus filhos ao olho do Sol, pudera dar os olhos da cara.

Ismene. Para que tanto te empenhas por Faetonte? Chichisbéu. Porque a Apolo, seu pai, devo o que sei,

por ser o mestre em artes mágicas e astrológicas. Ismene. Faetonte, tarde chegaram aos meus ouvidos os

teus suspiros, pois já sou de Albano. Faetonte. Para que me desenganas, cruel? Deixa ao

menos manter-se a minha esperança na vaidade de que posso merecer os teus agrados.

* Te enternece − isto é, enternece-te. ** Uso capiam (isto é, usu capiam) − tomá-lo-ei

com o uso.

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Chichisbéu. Aí vem El-Rei. Ismene. Estimo, por atalhar os seus discursos. (À

parte).

Sai El-Rei

Rei. Ditosa Itália! Ditoso Monarca, que tem a fortuna de possuir o filho do Sol nos âmbitos do seu domínio! Permite, pois, que prostrado a teus pés consagre a teu respeito repetidas venerações. (Faz que ajoelha).

Faetonte. Senhor, Vossa Majestade não deve estar dessa sorte; os meus braços serão o trono donde melhor se coloque a tua soberania.

Rei. Galhardo aspecto! Vês, Fíton, que o que sonhei não foi erro da fantasia?

Chichisbéu. É que Vossa Majestade sabe mais dormindo que acordado.

Rei. Mas sempre te agradeço o seres tu o ditoso instrumento do bem que possuo.

Chichisbéu. Pois na verdade que bem me custou a dar com ele.

Rei. Resta agora que me descubras o agressor de Ismene.

Chichisbéu. Paulatim*! Não vai a estafar... Rei. Suponho, Faetonte, que já terás relevado a

Ismene a casualidade de ferir-te no bosque; e, para que com uma acção satisfaça a dous empenhos, vem comigo ao templo de Himeneu, donde depois de sacrificar a Apolo, grato ao benefício de permitir habite comigo um filho seu, assistirás aos desposó-

* Paulatim − devagar.

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rios de Ismene com Albano, para que com teu influxo seja sempre fausto, sempre ditoso o seu Himeneu.

Faetonte. Que ouço? Ai, infeliz! (À parte). Chichisbéu. Lá vai quanto Marta fiou! (À parte). Rei. Vem, Faetonte. Faetonte. Senhor ... Ismene ... 0 Himeneu ... poderia ...

porque ... Não sei o que digo. (À parte). Rei. Que tens? Que te perturba! Chichisbéu. Não repare Vossa Majestade, que todos os

filhos do Sol mastigam as palavras e engolem os conceitos. Quer dizer que se podia dilatar o casamento, porque ainda se acha mal convalecido e lhe tremem tanto as pernas, que não pode dar uma passada.

Rei. Perto fica o templo. Pois convém não dilatar, antes que outro traidor impulso intente malograr as minhas ideias. Vem, Senhor. (Vai-se)..

Faetonte. É preciso obedecer. Ismene, lembra-te de mim. (Vai-se).

Chichisbéu. Ande, Senhor, que honra e proveito não cabe num saco. (Vai-se).

Ismene. Que tarde vieste, filho do Sol, outra vez torno a dizer, e que acelerado voas, Himeneu de Albano! A pressa de um e a tardança de outro são hoje os incentivos da minha mágoa.

Saem Egéria e Chirinola, de sorte que não veja a Ismene

Chirinola. Senhora, recolhamo-nos depressa ao teu quarto, para que se não suspeite em nós alguma traição. Quando Faetonte confesse o delito, daremos a nossa quartada, dizendo que estivemos em casa.

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Egéria. Pois anda, que até não saber de Faetonte não sossegará o meu coração; e, pois já o Céu me vingou desta tirana, de seu sangue esmaltarei a minha coroa. Mas que é o que vejo? Ai de mim! (Vê a Ismene).

Chirinola. O quê! O quê, Senhora? É verdade! À que de El-Rei, não fui eu! Não fui eu, Ismene!

Egéria. O alento me falta; Ismene, não crimines a minha inocência, porque Faetonte ... mas ai de mim! (Desmaia-se).

Ismene. Que é isto? Que perturbação é esta? Egéria, torna em ti. Dize tu: que foi isto? (Para Chirinola).

Chirinola. Tomara-me desmaiar; mas não posso. Ismene. Há confusão semelhante! De que te assombras?

Sou alguma fantasma? Chirinola. Espere, que já vou perdendo o medo. Pois

Vossa Alteza é mesmo Vossa Alteza? Ismene. Pois quem hei-de ser? Chirinola. Deixe-me apalpar. Ismene. Para quê? Chirinola. Com quê, Vossa Alteza não morreu? Ismene. Não me vês? Chirinola. Bem vejo; mas não sei se é alguma cousa do

outro Mundo. Ismene. Deixa despropósitos; acudamos a Egéria. Egéria?

Egéria? Egéria. Perdoa-me, Ismene, que eu fui ... Chirinola. Ai, que se declara! Senhora, Senhora, que não

é morta a Senhora Ismene; não a matou o javali na caça, como disseram! Não tenha susto.

Egéria. Ai de mim! Que horrível fantasia! (Levanta-se). Ismene. Que foi isto, Egéria? Que enigma é este?

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Chirinola. É o que eu disse, Senhora, pois nos afirmaram que um javali despedaçara a Vossa Alteza, que Júpiter guarde, e por sinal nos mostraram o sangue. Nós, espavoridas, inventando outra vez a moda do arripiado*, viemos correndo a bom correr, para talhar um par de choradeiras; quando, de repente, a vimos a Vossa Alteza; e, como somos medrosas, cuidámos que era uma cadávera**.

Egéria. Bem remediou! (A parte). Ismene, dá-me um abraço, que a tua morte muito me tem custado; e, porque o susto ainda me ocupa muita parte dos sentidos, permite que me retire. (Vai-se).

Chirinola. Arre lá com a mentirinha, que nos ia dando na cabeça! (Vai-se).

Ismene. Que enigmas serão estes? Egéria assustada; imaginar-me defunta; pedindo-me perdão e que a não crimine! Não sei o que conjecture! Mas ai, infeliz, que aqueles sustos e aquelas palavras, ainda que mal explicadas, dizem muito! Oh, sede de reinar, quão ímpia e sacrílega é a tua ambição! Que máquinas não inventas! Que tiranias não executas!

Canta Ismene a seguinte

ÁRIA

Ditosa pastorinha, que alegre em verde prado,

* Arripiado (= arrepiado) − «Diz-se da ave a que o tiro do caçador arrancou algumas penas e que, subindo verticalmente, fecha as asas e cai». (Dicionário de Morais).

** Cadávera − é feminino cômico de cadáver.

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só cuida no seu gado ao som da melodia, que inspira a rude frauta do amante seu pastor,

políticas não usa, nem máximas inventa; ufana, se contenta das flores que tributa à fé de um casto amor. (Vai-se)

CENA IV

Templo de Himeneu, em cujo simulacro se verá uma teia incendida. Saem Chichisbéu e Chirinola

Chichisbéu. Anda depressa, se queres ver o noivado, antes que se intupa o templo de gente.

Chirinola. Há-de ter muito que ver, pois dizem que o filho do Sol também assiste muito bizarro.

Chichisbéu. Põe-te aí e daí te não bulas. Chirinola. Sim, Senhor; mas a mim me consta que

você ainda é um refinado mágico e que anda adevinhando o feito e o por fazer.

Chichisbéu. Se eu estivera mais devagar, eu te dissera por onde o gato vai às filhozes.

Chirinola. Eu bem sei por onde vai. Chichisbéu. Por onde? Chirinola. Pela trapeira. Chichisbéu. Pela tripeira* hás-de dizer, pois tudo

quanto faço é por amor da tripa. Ah, Chirinola, que

* Tripeira − faz trocadilho com a palavra trapeira, da fala de Chirinola.

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bela ocasião para nos casarmos! Olha! Não te faz cócegas ver ali o deus dos casamentos com a sua luminária ateada na chaminé de Cupido, em cujo fogo salvage se abrasam os miseráveis do jugo amatório? Dize; não tenhas vergonha.

Chirinola. Você tem a culpa de não ter o que deseja, pois, se não fora feiticeiro, casáramos agora.

Chichisbéu. Ainda crês que sou desses? Chirinola. Eu sou alguma tola? Não vês que quem o

Demo toma, sempre lhe fica um jeito? Chichisbéu. Eu não sei que jeito hei-de dar a isto. Se lhe

declaro a tratada, perde-se Faetonte; se me calo, perco a Chirinola e esta ocasião, que ainda é mais calva que Chirinola. (À parte).

Chirinola. Que diz? Ficou pasmado? Chichisbéu. Bem sei que quem quer bem diz do que

sabe, dá do que tem; mas tu hás-de guardar um segredo, daqueles de maço e mona*, e então saberás cousas, ainda que sonhadas, nunca vistas.

Chirinola. Isso corre por minha conta; pois que é? Chichisbéu. É um segredo. Chirinola. Dize-o. Chichisbéu. Não to posso dizer, pois só eu o sei, e mais

certa pessoa; e, se tu o souberes, já não é segredo; porque, passando de dous, acabou-se o segredo.

Chirinola. Pois dize-mo, sem ser em segredo. Chichisbéu. Então que fineza te faço eu em dizer uma

cousa que não é de segredo?

* De maço e mona − que andam sempre juntos.

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Chirinola. Pois de que sorte o hei-de saber? Chichisbéu. De nenhuma; pois, não sabendo tu o

segredo, vens a saber que há segredo, que é o que te basta. Chi,inola. Vá-se daí; você é o que se preza de amante?

Você é Chichisbéu? É uma bala.

Canta Chirinola a seguinte

ÁRIA

Se não fias de mim o segredo, eu do teu amor me não quero fiar; que se não pode dar confiança

em quem desconfia seu peito mostrar. Fia, pois, se não queres que desconfie

do pouco que fias de mim te fiar; porque na fiança daquele segredo fiada confio os extremos de amar.

Chichisbéu. Abalemos daqui, que para este lugar vem correndo muita gente. (Retiram-se a um lado).

Saem Faetonte e Fíton

Faetonte. Fíton, sabe que eu estou quase desesperado. Albano e Ismene hoje se desposam; e eu, se tal chego a ver, morrerei infalivelmente; e se por evitar os meus precipícios, tanto me recataste dizer que era de Ismene aquele retrato, agora, que o sei e que o não ser minha me há-de custar a vida, remedeia a minha mágoa no infalível de minha morte. (Vai-se).

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Fíton. Dos dous males o menor se há-de eleger; e, pois

dizem que o sábio domina os astros, verei se posso emendar com um precipício outro precipício. (À parte).

Chichisbéu. Anda cá tu, que ainda não tens nome nesta história. Como te chamam?

Fíton. Chichisbéu. Chichisbéu. Chichisbéu sou eu desta menina. Fíton. Pois eu o sou de meu amo. Chichisbéu. E ele que te queria, que te esteve falando

com braços, olhos e nariz, mui afrossurado? Fíton. Vossa mercê, como é mágico, não necessita que

lho diga. Chichisbéu. Eu já disso não sei nada, que esta menina me

deu* anacardina para só me lembrar dela. Chirinola. Aquilo é galantaria. Chichisbéu. Não é; que falo em meus cinco sentidos. Chirinola. Estás colhido. Chichisbéu. Não estou colhido. Chirinola. Estás; pois, se dizes que te dei anacardina,

como ainda tens** todos os cinco sentidos, que, se assim fora, havias perder um deles?

Fíton. Tem razão. Chichisbéu. Mas falta-lhe a justiça, porque eu por meus

pecados tinha seis sentidos, não menos; os cinco já se sabe.

* Me deu − isto é, deu-me. − Anacardina − conserva de mancárdio (maçã de acaju), cujo fruto dá um óleo cáustico.

** Como ainda tens − como tens ainda.

Canta o Coro

Na teia luzente do sacro Himeneu se acenda brilhante o raio flamante do filho do Sol.

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Vão saindo El-Rei, Faetonte, Mecenas, Ismene e Albano coroados de flores.

Chirinola. E o outro qual é? Chichisbéu. É o que tenho em ti. Chirinola. Mas qual deles perdeste por amor de mim? Chichisbéu. Perdi o ver; mas tu és tal, que não fazes

carreira a cego. Fíton. Menina, o Senhor Fíton se está disfarçando, que

ele é mágico como ninguém. Chichisbéu. Mágico será ele, e, se não fora ... Mas eles

lá vem; tu me pagarás.

Rei. Aquela ardente teia que ilumina o sacro Himeneu seja imortalizada com as luzes de Apolo, para que sempre clara a minha descendência, consiga perpétua duração apesar dos estragos do tempo.

Albano. Propício amor, já puseste limite a minhas esperanças.

Faetonte. Já me vai faltando a paciência, para tolerar este violento rigor do fado. (À parte).

Ismene. Faetonte não aparta os olhos de mim. (À parte).

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Chichisbéu. Olha; aprende bem, Chirinola, as ceremónias matrimoniais, para quando chegar a nossa ocasião.

Rei. Ismene, reconhece a Albano, príncipe de Ligúria, por teu esposo, e naquela sagrada teia de Himeneu, que em brilhante pira ao Céu se dirige, abrasa o teu coração no reverente amor conjugal, a quem prosperem os deuses e felicitem os fados.

Ismene. Sem uso do alvedrio me conduz a este templo o teu preceito, como vítima de Himeneu.

Faetonte. Vai-se concluindo a minha vida; mas eu morrerei mais nobremente. (À parte para Fíton).

Fíton. Espera; não te sebressaltes. Chichisbéu. Casamento no meio da galhofa nunca tal vi! Albano. Princesa, já que a sorte me destinou tão alta

fortuna, firma com a tua mão o decreto do propício fado, que reverente a receberei com ambas para maior segurança da minha felicidade. (Quer dar a mão).

Faetonte. Espera, ai de mim! Fíton. Repara e vê. (Apaga-se a luz do Himeneu). Albano. Que dizes, Faetonte? Faetonte. Que vejas a luz de Himeneu, que ao dares a

mão a Ismene, se extinguiu. Rei. Infausto presságio! Suspenda-se o Himeneu, pois a

sua deidade, ocultando a luz, nos avisa de alguma fatal ruína. Faetonte. É caso nunca visto! Mecenas. E nele se encerra prodígio grande. Albano. Se Himeneu ocultou a chama, é porque sobrava

a de meu amor, em cuja presença não podia luzir a sua, bem como as estrelas à vista do Sol;

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e assim, permite, Senhor, que, desprezado este, que imaginas presságio, se efeitue* o nosso himeneu.

Rei. Sofísticos fundamentos não podem prevalecer a tão extraordinário acontecimento, até que Fíton nos declare a causa de extinguir-se aquela luz.

Faetonte. Diga Fíton. Chichisbéu. Sou chamado a conselho. Albano. Da tua sentença pende a minha vida. (À parte

para Chichisbéu). Rei. Dize, Fíton: por que motivo se apagaria aquela luz? Chichisbéu. Porque se acabou a torcida. Faetonte. Responde sério e vê lá o que fazes. (À parte

para Chichisbéu). Albano. Fíton com aquela galantaria vem a dizer que foi

casualidade e não misteriosa a extinção daquela luz. Chichisbéu. Tal não digo e eu não sou tão escuro que

necessite de pai-velho** para comentar-me. Respondi assim, porque não quero dizer que o deus Apolo, pai das luzes, não leva a bem este matrimónio, e a razão disto eu a direi a Sua Majestade, só por só, no seu gabinete.

Ismene. Há enleio semelhante! Faetonte. Viva a minha esperança! (À parte). Rei. Vês, Albano, que não foi sem mistério? E, pois

devemos obedecer ainda ao mínimo aceno dos deuses, já não pode Ismene ser tua, pois que

* Efeitue − efectue. ** Pai-velho − Diz-se das traduções literais dos clássicos

gregos e latinos. − É o chamado burro.

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Himeneu esconde a luz, para sepultar em sombras o teu desejo.

Canta Albano a seguinte ária e

RECITADO

Oh, infeliz, oh, triste sem alívio, mísero amante, como sem Ismene

viverei? Morrerei ao duro golpe da sentença cruel, que me separa aquela alma sublime deste corpo, cuja união amor ligou constante. Oh, Júpiter piedoso, dessa esfera

o trissulco furor de teu incêndio contra um peito infeliz fulmina ingente, que, para provocar os teus furores, incentivo não há mais adequado que nascer infeliz um desgraçado.

ÁRIA

CORO

Na teia luzente do sacro Himeneu se acenda brilhante o raio flamante do filho do Sol.

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Irado e languente, frenético e amante, Ó injusta deidade, da tua impiedade a Jove supremo me quero queixar.

Se a luz me usurpaste do sacro Himeneu, cruel te enganaste, que em chama mais pura minha alma constante se sente abrasar. (Vai-se).

1I

Chichisbéu. Parece que lhe ardeu a jeropiga! (À parte). Rei. Deuses soberanos, em que pode ofender-vos o

himeneu de Albano, para que me priveis da glória deste dia? Mas quem pode compreender as vossas altas disposições? Vem, Faetonte, a sacrificar, como disse, a Apolo teu pai, não só para gratificar a tua vinda, mas também para aplacar a sua indignação, repetindo o mesmo coro, para que a lembrança da culpa seja incentivo da piedade.

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PARTE III

CENA I

Câmera. Saem Faetonte e Fíton

Faetonte. Vem, Fiton, a meus braços, pois à tua ciência devo a vida que respiro, que, se não extinguias aquela luz em Himeneu, em cinzas me reduziria a sua chama.

Fiton. Faetonte, agora que de todo tens superado o violento furor dos fados e te vês nesta prosperidade, isento do grande dano que te esperava, te declararei o que tantas vezes recusei dizer-te. Sabe que tu és na realidade o verdadeiro filho do Sol e de Clímene, aquela infausta beleza que, exposta aos rigores de Diana, entre os montes habita como fera.

Faetonte. Ai de mim! Que sempre hás-de ser cruel para comigo, pois ao mesmo tempo confundes a delícia de um prazer com o rigor de um pesar!

Fíton. E assim, releva-me o não haver-te comunicado há mais tempo este segredo; porque, como estava decretado dos fados que, a saberes tu quem eras, essa ciência havia de ser o teu precipício por causa de uma formosura, por isso te ocultei este desengano; porém, agora que suponho triunfas de seus decretos, razão é que triunfes também do meu silêncio.

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Faetonte. Puderas dizer-mo em tempo, que mais to agradecesse; mas sempre estimo saber cujo filho sou*, se bem nada me dizes de novo, pois a altivez de meus pensamentos não poderia ter menos progenitor. Eu te relevo o roubo que me fizeste, do tempo que ignorei a glória de me jactar filho do Sol.

Fíton. Era preciso obedecer ao influxo dos astros. Faetonte. Não creias nessas quimeras. De meus sucessos

podes coligir o quão errada é a judiciária especulação das estrelas, cuja ciência tanto veneras. Mas retira-te, que ai vem Egéria.

Fíton. Eu te obedeço. (Vai-se).

Sai Egéria

Egéria. Para quê, Faetonte, me ocultavam quem eras? Bem me parecia a mim que o teu brioso alento tinha mais soberana origem.

Faetonte. Quis ocultar quem era, para que o amor preferisse ao respeito, na tua inclinação.

Egéria. Se essa brilhante deidade quase imortaliza a vida, que temes, que não acabas de executar a morte de Ismene, pois já por duas vezes deixaste burlada a minha expectativa?

Faetonte. Como sei que Mecenas tem a mesma incumbência, já não poderei executar os teus desígnios.

Egéria. Verdade é que Mecenas, compadecido da minha desgraça, intentou restituir-me ao trono de meus pais; mas não sei em que te possa ofender a sua piedade.

* Cujo filho sou − de quem sou filho.

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Faetonte. Em ser piedade; pois é certo que esta só reside em um coração puramente fino.

Egéria. Se da sua parte está o amor, da minha estará a constância com que te adoro; porém cuido, Faetonte, que esse afectado ciúme se origina de algum motivo oculto.

Faetonte. Oculto motivo é; pois, se eu dissera que também reservas a vida de Albano não sei para que fim, talvez não acharás afectado o meu ciúme.

Egéria. Para que vejas que não estimo a vida de Albano, mudemos de sistema, como ao princípio pretendias: sê tu homicida de Albano, que eu o serei de Ismene, para que na igualdade dos sexos fique sem perigo a resolução; e dessa sorte, nem a formosura de Ismene te suspenderá o golpe, nem a vida de Albano a zelos te incitará.

Faetonte. Para cabal satisfação de meus zelos, tu mesma hás-de ser homicida de Albano; aliás, entenderei que a piedade te retira o braço e o amor te suspende o golpe.

Egéria. O mesmo posso eu dizer de Ismene para contigo. Faetonte. Para desvanecer essa suspeita, basta intentar o

golpe duas vezes, ainda que de nenhuma se conseguisse; e assim, não tens que te eximir que Albano fica ao arbítrio de tuas iras. Assim segurarei a vida de Ismene. (À parte).

Saem El-Rei e Chichisbéu

Rei. Basta que essa foi a causa por que se extinguiu a luz do Himeneu!

Chichisbéu. Sim, Senhor, que é vontade de Apolo que seu filho Faetonte seja genro de Vossa Majestade e a Senhora

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Ismene nora, e Vossa Majestade sogro de Faetonte e este marido da dita Senhora.

Rei. Faetonte, como o obedecer aos deuses é primária obrigação de um monarca, mal poderei resistir aos mudos preceitos de Apolo, teu pai; pois é sua vontade que Ismene seja tua esposa, e não de Albano, por cuja causa usurpou a luz no seu Himeneu.

Chichisbéu. Do que não há a menor dúvida, attento secreto magicali*. (À parte).

Egéria. Ai, infeliz, que ouço? Faetonte. Ai, feliz, que ouvi? Rei. E pois tu, como filho de Apolo, estás mais obrigado

a obedecer-lhe, entendo te sujeitarás ao seu império. Bem conheço que em Ismene faltam méritos para ser esposa de um filho do Sol; porém uma cega obediência não repara em qualidades.

Chichisbéu. Pois que lhe há-de fazer, se é vontade do Senhor seu Pai? Feche os olhos e diga que sim, que nos aceitar vai o ganho. (À parte, para Faetonte) .

Rei. Que dizes, Faetonte? Faetonte. Que hei-de responder, ouvindo-me Egéria? (À

parte). Rei. Emudeces?! Chichisbéu. É vergonhoso, em lhe falando em casar.

Diga, Senhor; que, se as belezas são deidades, Ismene em nada o desmerece.

Egéria. Muito me agrava Faetonte naquele silêncio. (À parte).

* Attento secreto magicali − Tendo em atenção o segredo mágico.

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Faetonte. Bem sei que a formosura de Ismene é digna do mesmo Júpiter, pois Europa, Dánae e Leda* não tiveram mais belas perfeições; porém... Há desgraça semelhante! (À parte).

Chichisbéu. Porém, quê? Que diabo! Está balbuciente? A culpa tenho eu. (À parte).

Rei. Que resolves, Faetonte? Chichisbéu. Senhor, não tem que resolver, porque ele

nesta matéria não tem voto. Eu sou o que hei-de dar a resolução; e assim, digo a Vossa Majestade que ele quer e requer que se faça logo, e já, o casamento; e eu, que entro a fazer o requerimento, certo é que tenho muita razão para o saber.

Rei. Assim o entendo, e da boa índole de Faetonte outra cousa se não podia esperar; e, para que satisfaça à pretensão de Egéria, supondo que tem algum domínio à herança desta monarquia, quero que case com Albano, pois com o principado de Ligúria, fica, ainda que não em tudo, em parte satisfeita a sua queixa.

Egéria. Ainda que Vossa Majestade pudera repartir os domínios de Ligúria, não poderá contrastar o alvedrio de Albano, que, adorando a Ismene, o considero agora, sobre amante, zeloso.

Rei. Quando o não vença a razão, o convencerá a violência. Vem, Fíton, que importa comunicar-te matérias de importância. (Vai-se).

Chichisbéu. Valha-me Deus! Tomara ser privado de ser privado**. (Vai-se).

* Europa, Dánae, Leda − foram amantes de ]úpiter. ** Privado − Repare-se no trocadilho entre privado

(proibido) e privado (íntimo, favorito).

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Faetonte. Egéria, a que mais pode aspirar o teu desejo? Já conseguiste o himeneu de Albano: serás princesa de Ligúria e com as armas de teu esposo poderás restaurar a tua coroa.

Egéria. Sendo tu o monarca e auxiliado dos raios de Apolo, que exército te resistirá? Pois, para ficar vencido, basta ter por contrário ao Sol.

Faetonte. Se assim fosse, eu me deixara vencer, só para que tu triunfasses.

Canta Faetonte a seguinte

ARIA

Sereia encantadora afaga o navegante, que, intrépido e nadante, fugindo do seu canto intenta triunfar.

Repara que a beleza contém tal harmonia, que em doce melodia obriga a naufragar. (Vai-se).

Egéria. Que afectadas finezas! Ah, tirano amante, que o teu génio ambiciosamente elevado te fará esquecer do meu amor!

Sai Albano

Albano. Quem me dera saber o que terá revelado Fíton acerca da extinção daquela luz de meu infeliz himeneu, pois, pendente o coração da sua reposta, nem bem vivo nem bem morto está!

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Egéria. Vês, Albano, como os deuses castigam a um perjuro, a um falso e a um traidor amante!

Albano. Ignoro o que dizes. Egéria. Pois sabe, para que o não ignores: Declarou Fíton

que a extinção daquela luz era um mudo império de Apolo, insinuando ser sua vontade que Faetonte se desposasse com Ismene; no que El-Rei conveio, por não desobedecer à insinuação de um deus.

Albano. Imortal devo de ser, pois não rendo a vida a golpe tão cruel.

Egéria. Se soubera que havia de ser tão penosa para ti esta notícia, não ta dera; e assim, escusarei de dizer-te que infalivelmente Faetonte se desposa com Ismene, e tu ficas excluído da glória de possuir sua beleza.

Albano. Vençam os acertos da prudência as violências de um pesar (À parte). Não sabes, Egéria, o quanto estimo essa mudança de meu himeneu, para que, desenganado das inconstâncias da fortuna, em que até agora naufraguei, possa tomar o norte que perdi. A teus pés, Egéria, se prostra a minha culpa; não quero acumular desculpas ao delito, por não dificultar o perdão. (Ajoelha).

Egéria. Que fazes, Albano? Albano. Revalidar o primeiro voto que consagrei nas aras

de teu amor. Egéria. Ainda que pudera vingar-me de teu aleivoso

proceder, quero ser extremosa contigo; pois, se não houvera ingratidões, não haveriam* finezas. Assim convém para os meus intentos. (À parte).

* Haveriam − haveria.

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Albano. Pois, Egéria, se a tua piedade me ampara, eu te prometo preparar-te o trono, atropelando todas as dificuldades. Morra Faetonte!

Dentro. Viva Faetonte! Egéria. Morra Faetonte e também Ismene!

Dentro. Viva Ismene! Egéria. Que encontrados ecos respondem às nossas

ideias? Dentro. Viva Faetonte, viva Ismene!

Sai Chirinola

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Chirinola. Senhora, que está tudo alvoroçado com danças, coros e bailes, aplaudindo o novo esposo de Ismene, que dizem é um filho do Sol, que eu por sinal vi junto com Ismene, tão resplandecente, que era uma cousa nunca vista. Ai, Senhora! Espere para o ver, que ele para cá vinha caminhando.

Egéria. Por isso mesmo irei mais depressa. Oh, cruel pesar, não sejas usurpador de minha vida, enquanto a fortuna me não facilita o meio da vingança! (Vai-se).

Chirinola. Vamos; vamos, Senhora, depressa. (Vai-se). Albano. Haverá homem mais infeliz? Para quê, injustas

deidades, vos empenhastes a fazer-me ditoso, se, depois que me elevei ao auge de tanta ventura, me havíeis de despenhar do bem que cheguei a possuir? Mas tu, ó cruel monarca, se me usurpaste a ventura com a esposa injustamente, eu justamente te arrancarei com o ceptro a ambição; porque a justiça de Egéria me dará armas para triunfar da tua crueldade.

Sai Ismene

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Ismene. Confusa e vacilante no proceloso mar de tantas variedades, até me falta norte para navegar, segura, na perigosa carreira de tão inopinados sucessos. Mas quem está aqui?

Albano. Quem há-de ser? É uma sombra de Albano, que se vê já privado de toda a luz, depois que perdeu o sol de tua formosura.

Ismene. Pois, se és sombra, como não desapareces? Que com os resplendores do Sol fogem as sombras.

Albano. Já sei, tirana, que como ave do Sol te queres eternizar nas luzes; mas não é razão que religiosamente negues o teu coração a Cupido, para fazer dele sacrifício a Apolo.

lsmene. Que queres, Albano, que te responda, se um pai, um monarca e uma divindade são triplicados vínculos que me prendem o alvedrio? Supõe que nunca me viste; supõe-me a mais cruel, a mais tirana fera das hircanas* brenhas, para que troques em ódio o que foi amor.

Albano. Amor que foi, sempre é, pois não tem mais que um tempo e por isso se pinta menino.

Sai Faetonte

Faetonte. Galharda Ismene, não pode chegar a mais o excesso a que se sublima a minha fortuna, do que a ver-me coroado com as verdes ramas da esperança de possuir-te.

Albano. Há tormento mais cruel! Sem dúvida, Faetonte, que ainda te não posso encarecer o quanto te venera toda a Itália.

* Hircanas − da Hircânia.

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Faetonte. Já sei, Albano; porém adverte, Ismene, que menos estimo nascer filho do Sol, que renascer na esfera de teus braços.

Albano. Se nos meus domínios te possuíra, verias arder toda a Ligúria em maiores demonstrações de prazer.

Faetonte. Eu o reconheço. Bem quisera, Ismene, mostrar-te que aquela seta com que me atravessaste o peito te deu amor para ferir-me, cuja cicatriz será o mais vivo sigilo, que eterno acredite a eficácia de meu querer.

Albano. Eu desespero! (À parte). Porém, Faetonte, para reconheceres o meu afecto...

Faetonte. Deixa-me, Albano, que estás importuno. Albano. Pois cala-te, Faetonte, que estás insuportável. Faetonte. Se te pesa de ouvir-me, retira-te e deixa-me

significar à minha bela Ismene os extremos com que a idolatro.

Albano. Nem posso deixar-te, nem posso ouvir-te. Bem sei que um supremo númen te destinou esta fortuna; mas não ignoras que adorei a Ismene com atenções de esposo, e o ciúme é um monstro insofrível.

Faetonte. Pois, Albano, que remédio senão sacrificar a vontade ao império dos deuses? Bem sei que te sobram motivos para a tua mágoa; porém sentirás agora o mesmo mal que eu padeci.

Albano. O mesmo não; que, se o padeceste, foi em tempo que não tinhas alcançado os favores de Ismene, e mal pode ser o sentimento que hoje me penaliza igual à aflição que te arrastava antes de favorecido; que então sentias como zeloso preten-

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dente, e eu padeço hoje como zeloso desesperado. Faetonte. Se desesperaste, já te não fica mais que esperar. Albano. Enganas-te, Faetonte, que ainda me fica a

esperança de saber o meu valor castigar a causa da minha desesperação.

Faetonte. Pois tu tens ousadia para te opor a um filho do Sol?

Albano. Ainda contra o mesmo Sol se há-de animar a minha arrogante temeridade, porque a cegueira com que os zelos me alucinam me não dá lugar para ver as impossibilidades que empreendo.

Faetonte. Bárbaro, verás no poder de meu braço o castigo que merece a tua ousadia arrogante. (Empunham as espadas).

Ismene. Que intentas, Faetonte? Albano, que fazes? Albano. Perder a vida; que, se em te perder fico sem

alma, bem é que quem tiranamente me usurpa a alma, seja violento verdugo que me tire a vida.

Ismene. Acudam todos, que se matam! Dentro. No quarto da princesa é a pendência.

Saem El-Rei e soldados

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Albano. Uma paixão cega não pode atender a respeitos, quando só respeita o desafogo que intenta conseguir na vingança; e assim...

Rei. Não pretendas corar com aparentes desculpas o teu delito, que nenhuma satisfação pode condecorar a tão grande culpa. Perdoe Albano, que primeiro está a ansiosa ambição, com que intento divinizar a minha régia estirpe. (À parte).

Albano. Não imagines, tirano monarca, que pretendo acumular desculpas à temeridade, em que me empenhei; que o meu intento só se encaminha a significar-te a razão que tenho para castigar as sem-razões com que me usurpas a vida, na esposa que me negas.

Rei. Pois tu, Albano, empenhas-te, contrariando irreligiosamente os divinos decretos?!

Albano. Sim; que decretos injustos, nem são divinos, nem decretos; porque nenhum decreto sem justiça pode violentar a liberdade dos alvedrios. E, se eu adoro a Ismene com tão fino extremo, que sendo em nós duas as vontades, é único o querer, como me queres tu persuadir que os deuses pretendem constranger duas vontades, as quais reciproca-mente uniu o amor?

Rei. Albano, Faetonte, que atrevimento é este? Assim se ultraja o meu decoro? Suspendei o furor da vossa indignação!

Faetonte. Senhor, Albano me provocou, de sorte que com precipitada arrogância cheguei a profanar a imunidade do palácio, sem atender...

Rei. Pois tu, Albano, sem atenção ao meu respeito, sem temor das minhas iras, tiveste ousadia para romper em tão inopinado insulto?!

172

Canta Albano o seguinte

RECITADO

Se me negas o bem, que fino adoro, aonde recorrerei, senão ao forte valor que há em meu peito? Se nele mais perfeito tenho o rancor seguro e o castigo,

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por que vingue dos zelos a violência, que este falso traidor, este inimigo originam em minha alma, levando-me com bárbara indecência em Ismene divina a cara vida? Sinta, pois, (ai de mim!) minha vingança quem a vida me usurpa em tal mudança.

Faetonte. Todos.

Da tua mudança, Aos Céus pedirei socorro, clemência em mal tão fatal. (Vão-se).

CENA II

Sala. Sai Chirinola ÁRIA A 4

Albano. Os deuses não podem dous finos afectos, que amor vinculou, jamais separar.

Rei. Se os deuses o querem, quem o há-de estorvar?

Albano. Amor, que os uniu, que os quer conservar.

Faetonte. Amor é mudável; tal não pode obrar.

Albano. Que dizes, Ismene, a tanto pesar?

Ismene. A tantos decretos não posso faltar.

Albano. Se a vida me falta na tua mudança, que posso esperar?

Ismene. A tantos decretos não posso faltar.

Albano. Se a vida me falta na tua mudança, que posso esperar?

Albano. Se estou

{padecendo Todos. Sofrer

do fado a violência dos zelos o mal.

Albano. Do injusto decreto, Rei. Da iníqua sentença, Ismene. Da minha esquivança,

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Chirinola. Valha-me amor e a deusa da curiosidade (se é que há curiosidade nos deuses!). Que tenha eu paciência, para suportar há tanto tempo um apetite disto a que chamam querer saber o que se passa e que passe sem fazer aquelas extraordinárias diligências, que todas costumamos, para sacar assim do bucho a Fíton este segredo, que tanto me oculta! Tomara já apanhá-lo, que o hei-de fazer vomitar logo, pá pé, tudo quanto sabe.

Sai Chichisbéu

Chichisbéu. É boa esta! Está Faetonte, por amor de mim, entronizado, logrando de assento os agrados de Ismene, e eu por amor dele estou de asa caída nos favores de Chirinola! É desgraça não poder voar a minha esperança à esfera de sua aceitação!

Chirinola. Ele cá vem! Darei satisfação à minha curiosidade.

Chichisbéu. Faetonte, como digo, está assando castanhas no assador da correspondência; eu estou sofrendo os estouros nas brasas dos desprezos. Estou ardendo!

Chirinola. Senhor Fíton?

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Chichisbéu. Senhora Chirinola? Chirinola. Vossa mercê deve andar mui ocupado com a

fadiga da sua privança; pois já há tanto tempo que me privou da sua vista!

Chichisbéu. Grandes são os negócios que eu e El-Rei temos por ora entre mãos; porém nunca estes serão bastantes, para dar de mão à lambuje dos teus favores; e para que vejas que não é a privança a que me faz esquecer de ti, já não quero ser privado de El-Rei mas só teu, minha Chirinola!

Chirinola. Meu porquê? Chichisbéu. Porque na minha estimação és a mais célebre

privada∗ para um privado. Chirinola. Guarde-se para lá, que não creio palavras

lisonjeiras! Não venha zombar da gente. Chichisbéu. Se eu amo deveras, como posso falar

zombando? Chirinola. Pois, se ama deveras, diga-me: por onde andou,

que há tanto tempo que me não vê? É Chichisbéu e falta às condições da Chichisbetice∗∗! Chichisbéu. Não foi por minha culpa.

Chirinola. Pois de quem? Chichisbéu. De El-Rei, que andamos consultando vários

negócios pertencentes às razões de estado. Chirinola. Estado de quê? Chichisbéu. Estado de Ismene. Não sabes que já se não

desposa com Albano? Chirinola. Pois com quem?

OBRAS COMPLETAS DE A. JOSÉ DA SILVA Chichisbéu. Com Faetonte; sobre isso é que eu empenhei a

eficácia da minha ciência; e, ainda que me suou o topete, li no volume dos astros que ela havia de ser sua; porque a extinção da teia de Himeneu não foi por lhe roerem os ratos a trocida∗, ou por lhe chuparem os morcegos o azeite.

Chirinola. Pois que foi? Chichisbéu. Foi uma muda insinuação com que o délfico

planeta quis mostrar que o Senhor Faetonte havia de ser o legítimo marido da Senhora Ismene, e a Senhora Ismene a legítima mulher do Senhor Faetonte; mas com tal pacto e condição, que Sua Majestade havia de dar o reino, para legitimar este matrimónio.

Chirinola. Com quê, vossa mercê foi o que decifrou esse enigma?

Chichisbéu. Eu fui o legítimo decifrante, porque nas cifras desse cerúleo globo li as justas causas que havia, para assim se dispor; e também vejo as bastardas desculpas com que tu enjeitas o meu amor e me tens feito andar com a cabeça à roda, considerando na causa dos teus repúdios.

Chirinola. Qual amor, nem que alforges de lã preta? Eu não quero nada com mágicos.

Sai Mecenas ao bastidor

* Privada − Atente-se no trocadilho privada − privado, em

que a primeira palavra tem, além disso, duplo sentido. ** Chichisbetice − é outro neologismo cómico.

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Mecenas. Que não possa eu alcançar de Fíton alguma insinuação que, facilitando os meus desígnios, segure as esperanças de possuir com Egéria o

∗Trocida – torcida.

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ceptro que pretendo! Mas ele aqui está com Chirinola! Esperarei que se vá. (Fica ao bastidor).

Chirinola. Não quero nada com feiticeiros.

Sai Ismene ao bastidor Ismene. Aonde achará uma desgraçada alívio às suas

aflições? Mas aqui está Chirinola com Fíton! Eu me retrio. (Fica ao bastidor).

Chichisbéu. Chirinola, eu não sou feiticeiro. Chirinola. Porquê? Chichisbéu. Porque não sou mágico. Chirinola. Se não é mágico, como decifrou tanto enigma? Chichisbéu. Aí é que está enigmática a minha desventura. Chirinola. Declare-se. Chichisbéu. Não posso. Chirinola. Porquê? Chichisbéu. Porque é segredo, e temo... Chirinola. Que teme? Chichisbéu. Que dês com a língua nos dentes, e me tirem

as ganas de comer. Chirinola. Não me fale por entre dentes, que eu não

entendo equívocas. Chichisbéu. Eu vomito-lhe o segredo aos bocadinhos, que

já não posso aturar a purga dos desprezos! (À parte). Chirinola. Não quer abrir a boca para falar? Pois feche os

olhos, para nunca mais me ver. Chichisbéu. Espera, Chirinola; não vires as costas à minha

esperança; deixa navegar a nau de meu carinho no mar da tua correspondência, que eu prometo descarregar na falua de teus ouvidos a comis-

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são deste segredo, ainda que beba o salgado trago da morte. Chirinola. Pois dize, meu rico Fíton, que eu te prometo dar

um bom refresco e segurar o teu amor com as amarras de meus braços.

Chichisbéu. Quem não dará à costa no mar daqueles braços! Adeus, segredo! Boa viagem, que, enjoado nas ondas dos favores, vomito as tripas. Pois alto, Chichisbéu! Desembucha, e padeça quem padecer, que primeiro está o salvamento do teu amor, do que o bom sucesso de Faetonte: In aequali periculo debet quis sibi prius consulere*.

Chirinola. Que diz, senhor Fíton? Chichisbéu. Eu não sou seu Fíton, Chirinola! Sou

semicriado** daquele que se quer fazer semideus. Não sou mágico, filha; porque nunca adevinhei mais que os teus pensamentos.

Ismene. Ai, Albano, que não foram sem causa as tuas desconfianças!

Mecenas. Pode haver mais estranho sucesso! Chirinola. Para que disseste que era filho do Sol? Chichisbéu. Para que El-Rei me não tirasse a vida, que

ateimou*** em dizer que havia descobrir o filho do Sol. Mecenas. Não ouço mais; vou dar parte a El-Rei, para que

castigue este insulto. Chirinola. Para que disseste da extinção da luz de

Himeneu? * In aequali periculo – tradução: em idêntico perigo, deve cada um

consultar-se primeiro. ** Semicriado − meio criado. *** Ateimar – é forma popular de teimar.

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Ambos E trejure (o). Que leve o Diabo quem mágico é. Chirinola Se juras, já sei... Chichisbéu Pois crê, que jurei. Ambos Não ser feiticeiro quem não adevinha; bem claro se vê (Vai-se Chichisbéu).

ÁRIA A DUO

Chichisbéu Se cuidas que posso da Mágica usar, te enganas, menina, que eu disso não sei. Chirinola Não creio esse engano. Chichisbéu Bem me podes crer. Chirinola Sabendo outra cousa, isso não farei. Chichisbéu Eu falo verdade. Chirinola Não fala, insolente! Você mente! Chichisbéu Não minto, não, não. Chirinola Pois jure. Chichisbéu Eu juro, 180

Cantam Chichisbéu e Chirinola a seguinte

Chichisbéu. Porque Faetonte quis que atiçasse a El-Rei, para se não apagar a luz da sua esperança; pois também queria acender no casamento da Senhora Ismene a sua luz.

Chirinola. Faetonte não ama a Egéria? Chichisbéu. Foi antes de ver a Ismene; que, ao depois,

ficou Egéria a perder de vista. Chirinola. E quem é este Faetonte? Chichisbéu. É um pastor assim chamado, filho de um

homem que nunca ouvi nomear e de uma mulher que habita entre as feras de Diana.

Chirinola. Vai-te embora, que és um refinado mágico. Chichisbéu. Ó filha, se me não crês, aqui com toda a

solenidade o jurarei. Ismene. Espera, Chirinola, que tu hás-de ser o ditoso

instrumento das minhas felicidades. Chirinola. Eu, Senhora? De que sorte?

Sai Albano ao bastidor

Albano. Aonde achará um infeliz refrigério para lenitivo do mal que o penaliza, se para qualquer parte que caminha, corre para o maltratar com acelerados passos a sua desgraça? Mas aqui está Ismene! Ah, ingrata! Retiro-me, que não quero ver, tão cara a cara, a causa das minhas aflições.

Ismene. Não negues; já sei que não é Fíton; é Chichisbéu.

Chirinola. Meus pecados! Lá vai o segredo cos diabos! Pois Vossa Alteza mesmo ouviu tudo da mesma sorte? Ai, desgraçada de mim!

Ismene. Tudo ouvi. Chirinola. Ora diga-me, Senhora: e que Faetonte não era

filho do Sol? Albano. Que ouço! Alma, respira, que já não é

dificultosa a tua felicidade. Ismene. Também ouvi isso, não há dúvida. Chirinola. Senhora, veja por sua vida, se ouviu, que eu

não quero ficar em má conta com Chichisbéu.

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Ismene. Dize, que eu te empenho a minha real palavra, para apadrinhar a Chichisbéu.

Chirinola. Assim foi, Senhora; mas veja não me engane, que, se o não ouviu, eu não quero faltar ao segredo; porque, ainda que rapariga, não sou cá de mexericos; isso não!

Ismene. Descansa! Tu hás-de dar a El-Rei esta notícia e a Albano, para que com tão feliz anúncio alente a sua amorosa pretensão.

Sai Albano

Albano. Albano, Senhora, já a teus pés com reverente acatamento quer gratificar a felicidade de se ver favorecido na tua lembrança.

Ismene. Vai, Chirinola, noticiar a El-Rei este desengano. Chirinola. Ui, Senhora! Vossa Alteza não sabe que

Chichisbéu me recomendou tanto o segredo? E então que conta posso eu dar de mim, se o souber El-Rei e todo o Mundo? Oh, curiosidade, em que aflições me meteste! (Vai-se).

Ismene. Vai e não te dilates. Ai, Albano, e que pouco conheces o júbilo que em meu peito amante causou este feliz desengano!

Albano. Eu o reconheço, pois sempre na balança de minha estimação soube contrapesar os requintes a que se sublimaram os quilates de teu fino amor. Por isso, senti com tão veemente desgosto o duro golpe, que com injusta violência quis cortar o estreito vínculo com que Cupido nos uniu os corações; mas agora, que me considero outra vez unido ao bem de quem me supunha separado, com con-

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tínuos agradecimentos corresponderei a tão sucessivos favores.

Ismene. Na minha firmeza acharás eterna a lealdade com que constante te adorei.

Albano. Nela eterniza amor a glória de suas felicidades.

Canta Albano a seguinte

ÁRIA

Ismene querida, meu belo portento, não mudes de intento; pois mágoa seria que chegue a morrer

quem morre de amor. Na tua lembrança

só viva a memória da célebre glória, que causa um favor. (Vai-se).

Ismene. Que é isto que por mim passa? Albano, por um casual acidente, ficou sentindo o duro golpe de minha aparente mudança; Faetonte, com cautelosos enganos, pretendia separar os estreitos vínculos com que amor nos enlaçou os afectos, ao mesmo tempo que com recíprocas finezas se corresponde com Egéria! Oh, queira amor não sejam maiores os fingimentos de Faetonte, para eu não ter mais impossibilidades que vencer no himeneu de Albano!

Sai Faetonte

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Faetonte. Que tens, adorada Ismene? Se Albano te ocasionou algum motivo de sentimento, faze-me participante da queixa, que logo com a sua morte verás satisfeita a tua pena.

Ismene. As minhas penas, Faetonte, nascem das penas que me dás; não voes tão alto, que logo a minha desgraça abaterá as asas com que ligeira corre, para dificultar as minhas felicidades.

Faetonte. Não te entendo, Ismene. Ismene. Pois bem me entendo, Faetonte; e torno-te a

advertir que o muito voar não é meio eficaz para subir, mas motivo infalível para um ambicioso se abater. (Vai-se).

Faetonte. Ai de mim, que as palavras de Ismene infundiram em meu tímido coração, não sei que oculto veneno, que parece não cabe já dentro em meu peito, e quer de mim sair, por não se achar bem comigo! Mas eu em Ismene apurarei as confusões deste enigma. Espera, Ismene.

Sai Egéria

Egéria. Que há-de esperar, falso, traidor amante, que,

esquecido ao juramento que fizeste, de defender a minha causa, sem causa nem motivo que possa condecorar a tua infidelidade, buscas a Ismene, para me ofender, ingrato?

Faetonte. Deixa-me, Egéria; se a desgraça cuidadosa te segue, para que me persegues tu tão diligente, se não motivo as tuas infelicidades?

Egéria. Já te deixo, infame; já fujo da tua vista, fementido; porque não quero ver nas fortunas de Ismene a ocasião da minha morte. E assim, como ninfa do Erídano, vou já inundar a cópia de suas

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cristalinas águas, com as correntes de minhas enternecidas lágrimas, até que o Céu, compadecido da minha desventura, e justiceiro à tua infidelidade, vingue com teu precipício a minha queixa. (Vai-se).

Faetonte. Valha-me o Céu! Isto é sonho, ou realidade? Ismene advertindo-me que a ambição de subir é tropeço para me despenhar e Egéria culpando-me de perjuro, pedindo ao Céu justiça! Justos deuses, que vaticínios são estes, que amedrentam este tímido coração? É verdade que eu prometi a Egéria defender a sua causa, para cingir a coroa; mas foi sem saber que havia de comprar a púrpura à custa do sangue de Ismene, pois mal poderia tirar a vida ao original, quem primeiro entregou à cópia toda a alma. Ai, Ismene, que tu és a motora das minhas desventuras! Porque, se sigo a causa de Egéria, preciso-me* a tirar-te a vida e na precisão da tua vida fico sem alma; se deixo a Egéria para te seguir, tenho contra mim a perseguição dos deuses, pois concorro na culpa de perjuro. Mas, ai de mim, que aí vem Ismene com El-Rei! Retiro-me, por não ver a uma ingrata. (Retira-se ao bastidor).

Saem El-Rei, Ismene, Albano, Mecenas e Chirinola

Rei. Pois Faetonte é um pobre pastor, e não filho do Sol?

Faetonte. Ai de mim! Que ouço? Estou sem alma!

Albano. Assim o confessa Chichisbéu, compadecido do nosso engano.

Faetonte. Ah, infiel Fíton, que tu me precipitaste!

* Preciso-me − obrigo-me.

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Mecenas e Ismene. Eu o ouvi dizer a Chirinola. Chirinola. Agora entro eu! Queira Júpiter que eu o diga

de sorte que sempre fique em segredo, por não faltar a Chichisbéu!

Rei. Chirinola, desengana-nos: Quem te disse que Chichisbéu era Faetonte?

Chirinola. Senhor, eu só o posso dizer em segredo. Se Vossa Majestade promete não revelar nada, eu então direi que é um pastor, e por sinal que sua mãe é outra pastora, que guarda as feras de uma deusa Diana, que é Senhora dos bosques.

Rei. Oh, como andei acelerado em admitir a Faetonte por filho do Sol e em crer as fingidas insinuações do mágico! Perdoa, Albano, a injusta repugnância do teu himeneu; mas, como sabes que a extinção da luz me deu aparentes motivos para supor era insinuação dos deuses a demora das núpcias, entendo que me sobram fundamentos para a minha desculpa; e, para que a alegria da posse suavize o desgosto da desesperação, já Ismene será tua feliz esposa, apesar dos fingimentos do enganoso Fiton, e falso Faetonte.

Faetonte. Ai de mim, infeliz! Este sim, que é o meu maior precipício!

Albano. Senhor, mal pode ser culpa o que não foi advertência, pois padecemos todos o mesmo engano.

Chirinola. Vossa Majestade não diga nada a ninguém; peço-lhe, pela vida da Senhora Ismene; e, para que o não diga, há de-me prometer uma cousa.

Rei. Que é? Chirinola. Que não há-de fazer mal a Chichisbéu, porque

ele não teve culpa nestas arengas, como sabe sua Alteza.

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Rei. Não merece perdão tão grande culpa; ambos padecerão o rigor de minhas iras.

Chirinola. Senhora, lá se avenha; há-de-me fazer boa a palavra que me deu.

Ismene. Senhor, eu prometi a Chirinola a vida de Chichisbéu, se ela confessasse; e assim ...

Rei. Basta, princesa; eu lhe perdoo, pois tu o apadrinhas. Albano. Pois, Senhor, se eu, qual arábica Fénix das cinzas

do esquecimento, renasço para ter nova vida na esfera de tua lembrança, peço-te que não castigues a Faetonte, porque quero antes que morra aos golpes de uma furiosa desesperação, do que vê-lo perder a vida aos fios de um cutelo; e assim ...

Rei. Bem está! Fique muito embora padecendo as violências de uma morte sucessiva nas mãos da desesperação; porque a loucura que o incitou a tão inopinado insulto fica incapaz de todo o mais castigo. Vamos, Albano.

Albano. Obediente te sigo. (Vão-se todos com El-Rei). Chirinola. Ainda que não guardei o segredo, tenho

segura a vida de Chichisbéu, que é o que mais importa. Faetonte. Imortal devo ser, pois não perco a vida no dia

em que perco a Ismene! Ismene, espera. Ismene. Que queres, Faetonte? Faetonte. Que te lembres de minha amorosa constância,

para que assim mitigue com a consideração de lembrado o duro golpe de desfavorecido; porque um amor ...

Ismene. Que dizes, Faetonte? Ainda a tua louca temeridade persiste no mesmo delírio? Adverte que, se permiti essas afectuosas expressões, quando te

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considerei filho do Sol, agora, que conheço seres um humilde pastor, te não posso* conceder o mesmo indulto. Vai-te, que em Egéria acharás propícia a fortuna, para veres premiado o teu amor. (Faz que se vai).

Faetonte. Senhora ... Ismene. Não mais, Faetonte. Faetonte. Adverte ... Ismene. Não há que advertir. Faetonte. Que eu sempre ... Ismene. Não quero ouvir-te. Faetonte. Rendido ... Ismene. Não passes adiante. Faetonte. Te dediquei o meu amor. Ismene. Deixa-me, Faetonte. Faetonte. Como te posso deixar, se sempre desvelada te

busca a minha fé? Ismene. Chirinola, chama quem prenda este louco. Chirinola. Eu vou, Senhora. (Vai-se). Faetonte. Louco, sim; mas é porque delirante o meu

cuidado enferma de adorar-te. E que pouco correspondes, Ismene, aos delírios deste fino amor!

Ismene. Vai-te, Faetonte; não queiras que a minha indignação te precipite.

Faetonte. Que mais precipício, que o da minha esperança, caindo do céu dessa beleza para o abismo da minha desesperação? Ai, Ismene, que me tiranizas a alma! E para que vejas que desestimo a vida, vou buscar a minha morte; que, se

* Te não posso − isto é, não te posso.

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morro por ti, quando te adoro, quando te perco bem é que perca a vida. (Vai-se).

Ismene. Fortuna, pois estamos sós, responde às queixas de uma infeliz. (Se é que a uma infeliz ouviu as suas queixas a fortuna!) Se querias que admitisse a Faetonte, porque não antecipaste a ocasião de vê-lo, para lhe dar a primazia na correspondência? Pois, se só Albano logra as primícias de meu amor, para que me persegues com as oposições de Faetonte? Oh! Suspende a roda de tuas inconstâncias, para que eu segure as firmezas de minhas felicidades!

Canta Ismene a seguinte

ÁRlA

Fortuna, que inconstante te ostentas rigorosa, quando serei ditosa? Quando serei feliz?

Suspende por um pouco teu moto acelerado;

não seja sempre o fado cruel a uma infeliz. (Vai-se).

CENA III

Bosque, como ao princípio. Saem Faetonte e Fíton Dentro. Guardem do louco, guardem do louco. Faetonte. Vês, infiel Fíton, que já estou feito alvo da

irrisão popular? Fíton. E qual é a causa que move tal ludíbrio?

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Faetonte. A tua infidelidade; pois disseste não era eu

filho do Sol; e, se pela tua aleivosia chego a tal opróbrio, com a tua morte darei satisfação às minhas iras. (Puxa por um punhal).

Fíton. Faetonte, não te precipites, que estás enganado! (Primeiro está que tudo a minha vida!). Como podia eu negar o que já tantas vezes confessei? Tu és o verdadeiro filho do Sol; e, para que te desenganes, chama a Apolo, teu pai, que ele responderá benigno às tuas vozes.

Faetonte. Inúteis considero todas as porfias; que as vozes de um infeliz nem ainda o vento as ouve; mas, se a diligência é progenitora da fortuna, não quero malograr as fortunas por omissão da diligência.

Canta Faetonte o seguinte

RECITADO

Ó tu, luzida antorcha*, que nessa etérea sala predominas a brilhante caterva de todos os planetas,

ouve os ecos, as vozes, os clamores de um mísero infeliz, a quem a sorte dá na vida o rigor da mesma sorte.

Sala imperial do Sol, em que aparecerá Apolo, que descerá em uma nuvem, a qual trará na parte

* Antorcha − tocha.

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RECITADO Apolo. Quem é que ternamente remete ao deus Apolo a sua queixa? Faetonte. Faetonte te busca, ó deus luzente, para que a tua piedade lhe dê honra, nobreza e majestade. Um humilde pastor todos me chamam, e assim saber pretendo qual é a minha nobreza; pois presumo que, a ser filho do Sol, não permitira ver com tanta ignomínia ultrajado o régio esplendor que tenho herdado. Apolo. Suspende, Faetonte, essa quimera da tua fantasia; do Sol herdas os raios com que brilhas; e se queres desterrar esse temor, pelo lago Averno aqui te juro de te facilitar todo o seguro. Faetonte. Se me dás faculdade, Apolo. Para tudo ta dou. Faetonte. O que te peço me leves ao celeste Firmamento, e do carro flamante, em que giras o Orbe me entregues o domínio. Apolo. Impossível será de conseguir. Faetonte. Porquê? Apolo. Porque temo o teu perigo. Faetonte. Não temas; não receies.

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esquerda outro assento para Faetonte, e cantam ambos alternativamente o seguinte

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Apolo. Considera. Faetonte. Nada considero. Apolo. Adverte, Faetonte. Faetonte. Nada há que advertir; desse carro flamante hei-de governar hoje a luz brilhante, para que toda a esfera orbicular conheça a fidalguia que me alenta, enobrece e sabe honrar. Apolo. Nada valem contigo os meus temores? Faetonte. Inúteis são e sem fruto esta porfia, que quem do Sol herdou os resplandores as luzes do mesmo Sol sabe seguir qual águia imperatriz, que essa luz pura segue sem temor, o busca com ventura. E, se nas mãos do desprezo hei-de acabar, melhor será que morra honrado e enobrecido, como filho do Sol reconhecido. Apolo. Vença, pois, hoje a indústria a violência dos fados, que, instruído primeiro, girará com ventura esse globo celeste. Faetonte. Que respondes, Apolo? Apolo. Sobe comigo e vem ao Firmamento dessa celeste esfera, aonde cumprirás o teu intento. Faetonte. Já gostoso te sigo, pois já nobreza tenho. Apolo. Nobreza terás. Ambos. E indo contigo.

{ comigo.

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Com pompa luzida se há hoje de ver no claro farol a glória subida, com que resplandece o filho do Sol.

Sobe Faetonte elevado de uma coluna até se sentar na nuvem. Vão-se, e desaparece a sala, ficando em bosque

como ao princípio

Fíton. Oh, queira Júpiter ache Faetonte a fortuna próspera, para superar o rigor dos fados! Mas, como temo que a remontada eminência a que a sua ambiciosa cegueira o eleva seja a mesma que o leve cautelosa para o mais eminente despenho! Mas aqui vem Chichisbéu. Retiro-me, para observar os seus movimentos.

Sai Chichisbéu

Chichisbéu. Dou eu a Deus a quem tem entendimento, que de um destes logo se fia fazer tudo com muito siso, como fez o meu amigo Faetonte, que, para mostrar que não era de todo tolo, pôs o corpo em arrecadação e deixou a minha vida por um fio.

Fíton. Não foras tu néscio! (À parte). Chichisbéu. Foi o caso: Viu Faetonte o caldo en-

tornado, e que fez? Deu às palanganas*, deixando

* Dar às palanganas − fugir; escapar-se.

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o perrixil de Chichisbéu para pratinho do desenfado das iras de El-Rei, que a estas horas suponho que se come de raiva, por engolir a logração da minha mágica. E tem muita razão, que não é este bocado tão saboroso, que se possa tragar.

Fíton. Por tua culpa se vê Faetonte propínquo ao maior precipício. (À parte).

Chichisbéu. Ainda assim, era bem feito que El-Rei me pusesse as mãos e a boa vontade, que eu tive a culpa de todos estes enredos; que, se me não metera a descobrir o filho do Sol, não veria agora posta ao Sol a minha mentira.

Sai Chirinola

Chirinola. Por mais que corra e que discorra, não posso encontrar a Chichisbéu, para lhe intimar a sua ventura, na fortuna que teve na benignidade de El-Rei. Mas ai, que ele aqui está! Descansa, coração. Chichisbéu?

Chichisbéu. Ainda me tu apareces, falsa Chirinola? Dize-me, embusteira; tanto pejo te fez um segredo, que no mesmo instante em que o concebeste o vomitaste nas bochechas de El-Rei?

Fíton. Em boa secretaria o meteu, para se não revelar! Chirinola. E que havia eu de fazer, se Ismene tudo

ouviu? Chichisbéu. Negar a troxe-moxe.

Chirinola. E que fazia com isso? Chichisbéu. Pôr o caso em dúvida, porque o caso

negado nunca é bem provado; e, enquanto se averiguava a verdade, tinha eu tempo de pôr o vulto na guarda-roupa da segurança, e por tua culpa estou

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agora em termos de o veres pendurado no cabide da forca. Chirinola. Não temas tal, que Ismene pediu a tua vida a

El-Rei. Chichisbéu. Visto isso, não morro desta tratada? Chirinola. Trata tu de te livrar de outra, que desta está

livre a tua vida. Chichisbéu. Vivas muitos anos! Sempre agradecido ao

livramento da soltura, que me não podiam fazer bom cabelo as ligaduras da morte.

Fíton. Vaso mau nunca quebra. Chichisbéu. Ora dize-me, Chirinola: que se diz em

palácio de Faetonte? Ismene sentiu não ser filho do Sol? Chirinola. Ismene de nenhuma sorte; antes parece que o

estimou. Chichisbéu. E Egéria que diz à tirania com que a

desprezou? Chirinola. De Egéria não sei nada; só sei que

impaciente se ausentou para as águas do Erídano, aonde habita como ninfa.

Chichisbéu. Iria tomar banhos de paciência para refrigério do calor da desesperação em que a puseram as chamas dos zelos. Mas tem tu mão, que, se me não engana a vista, ela anda passeando a pé enxuto as águas de Erídano. Cheguemos nós para lá, pé ante pé, para pescarmos alguma cousa do que ela diz.

Descobre-se a marinha e aparece Egéria no carro como ao princípio e canta a seguinte ária, e

RECITADO

Ó deuses soberanos, se sois justos, como assim permitis, injustamente,

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que um traidor, fementido, falso e perjuro amante um afecto constante despreze, sem temor de vossas iras;

deixando-me ultrajada, aflita e impaciente, dos zelos padecendo o activo ardor, sem alívio, sem remédio a tanta dor?

ÁRIA

Nas chamas dos zelos minha alma abrasada, com fúria ardente, impaciente, delirante, de um falso amante aos deuses supremos se chega a queixar.

Com justa violência vingança, castigo, contra este inimigo os Céus me hão-de dar.

Chichisbéu. Chega-te para ela e apara-lhe os sopapos. Aquilo é desesperação refinada.

Aparece Faetonte no alto, em um resplandecente carro

Egéria. Para quando, ó deuses soberanos, guardais a vossa indignação, se a um falso amante, que tanto burlou as minhas esperanças, deixais isento de castigos? Júpiter supremo, para quando

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são os raios, se não abrasais um peito fementido, que tão tíbio correspondeu aos incêndios de um fino amor? Oh, venham as vossas vinganças, para que o Mundo, conhecendo o castigo, reconheça a equidade da vossa justiça.

Faetonte. Agora que em luminoso carro, como substituto de meu pai Apolo, alento os planetas com raios e revolvo a celestial esfera com giros, quero girar a esfera terrestre, encaminhando o meu brilhante curso às caudalosas correntes do Erídano, para que Ismene se assombre em um epílogo de luzes, já que me submergiu em um pélago de des-prezos. Verá Tages e verá toda a Itália entronizado em fólio de resplendores o mesmo a quem confundiu com abismos de humildades.

Fíton. Já Faetonte se vê no radiante carro do Sol! Queira Júpiter que as minhas ciências sejam fabulosas!

Faetonte. Já diviso a região de Itália; já diviso as cristalinas enchentes do undoso Erídano. Pois que faço, que não encaminho os meus giros aos seus cristais, para retratar neles a grandiosa pompa de meus luzimentos? Mas, ai de mim, que os brutos enfurecidos correm sem governo! Mas que muito*, se discorrem guiados da minha infelicidade. (Ruído dentro) .

Dentro. Deuses, piedade! Júpiter, socorro! Outros. Que me queimo! Que me abraso! Outros. Clemência, deuses! Favor, Júpiter!

Saíram todos

* Mas que muito − mas que admira.

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Fíton. Ai, infeliz Faetonte, que não foram sem fundamento as minhas cautelas!

Faetonte. Inúteis são todas as porfias! Ai, Egéria, que os deuses, conjurados contra mim, querem que pague com meu precipício a culpa que cometi, faltando ao juramento que te dei!

Passa um raio atravessando o carro, e cai Faetonte nos braços de Egéria

Egéria. Ai, de mim infeliz! Mas que vejo? Não és tu o fementido Faetonte, a quem os deuses, compadecidos da minha injúria, precipitam justiceiros para castigo da tua infidelidade? Olhai! Se as águas do Erídano não foram as que te erigiram decente túmulo para sepultar a tua ingratidão, as correntes de meu pranto sejam as que purifiquem as manchas de tua inconstância, para que se patenteiem os realces da tua firmeza! Mas ai! Ai, que já entregou nas mãos da morte os últimos espíritos, para deixar de todo sem alentos a minha esperança!

Todos. Horroroso castigo! Rei. Qual será a causa de tanta consternação? Fíton. É tempo de romper as prisões ao silêncio, que,

perdido Faetonte, já não há mais que perder. (À parte. Sai). Eu sou, invicto Tages, o infeliz Fíton, que, seguindo a Faetonte, vivi disfarçado no teu reino com o nome de Chichisbéu.

Chichisbéu. O meu nome feito capa de velhacos! Se não fora El-Rei ...

Fíton. Porque a minha solícita diligência quis triunfar da tua porfiada vigilância; pois, a saber Faetonte quem era, esta mesma ciência lhe havia de servir de maior ruína por causa de uma formo-

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sura. E, como agora se faz precisa a narração deste tão inopinado caso, não posso ocultar-te quem sou, nem deixar de manifestar-te o infortúnio de Faetonte.

Chichisbéu. Ouçamos, que isto há-de ser galante. Fíton. Sabe que este me quis tirar a vida, ressentido

das ignomínias com que se viu ultrajado de ti e de todos de teu reino, se lhe não certificasse o ilustre brasão de sua soberana origem; e, como ele é o verdadeiro filho do Sol e como tal sempre das minhas ciências respeitado, intentei, para desviar o golpe que à minha vida ameaçava a última ruína, expor a sua ao rigor dos fados.

Chichisbéu. E fez muito bem, que primeiro estão dentes, que parentes: Caritas bene ordinata incipit a se ipso*.

Fíton. E assim, lhe insinuei o modo com que havia de invocar a Apolo, seu pai. Este desceu a recebê-lo com pompa majestosa e com a mesma majestade o conduziu à celeste esfera, para governar o carro do Sol, do qual caiu despenhado para os braços de Egéria.

Chichisbéu. O certo é que zombando se dizem as verdades.

Rei. Não foram ilusões, mas verdades, as que sonhei. Fíton. Esta, Senhor, foi a causa que me incitou a viver

disfarçado no teu reino; este o infortúnio do infeliz Faetonte, que de nenhuma sorte puderam as minhas ciências evitar; antes me parece que todos

* Caritas ... − A tradução corresponde a: «A caridade bem ordenada por nós deve ser começada».

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os princípios, que intentei para reparo do precipício, foram meios infalíveis com que lhe acelerei o despenho.

Chichisbéu. Isso foi o mesmo que errar os princípios de meio a meio por todos os princípios.

Todos. Estranho caso! Chichisbéu. É caso que em nenhum caso* se pode casar

com outros casos. Rei. Temo, Fíton, que Apolo, ressentido do injusto

desprezo com que ultrajei a Faetonte, com injusta indignação empregue em mim o poder de suas iras.

Fíton. Apolo, Senhor, bem conhece que ignoravas quem era Faetonte; e, como o castigo pressupõe advertência de culpa, não havendo em ti advertência de culpa, desculpa tens para te isentares do castigo.

De repente desce Apolo em uma nuvem

RECITADO

Sabei que Apolo sou, o deus flamante, que na esfera brilhante

desse celeste globo, com luzida influência a todos os planetas ilumino. A Faetonte dou por filho caro de semideus a glória sempre excelsa,

nova vida cobrando,

* Caso − Repare-se na repetição da palavra caso, ao lado do verbo casar, para provocar o riso.

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para que ressuscite novo amante de Egéria. Ismene será de Albano esposa; e, em doce himeneu todos unidos,

Ismene na Ligúria com Albano, Faetonte na Itália e Eridano, reinarão; porque fique desta sorte Egéria satisfeita, pois com pompa luzida

ao seu reino se vê restituída.

Todos. Prodigioso sucesso!

Saem Faetante e Egéria do mar

Chichisbéu. E mais prodigioso para Faetonte, pois para cá vem com bom sucesso.

Rei. Não posso contrariar preceitos tão justos, maiormente quando reconheço a justiça de Egéria na sucessão desta monarquia.

Chichisbéu. Isso é fazer da necessidade virtude. Faetonte. Feliz mil vezes, quem, ressuscitando, vive para

consagrar nas aras de tua beleza uma nova vida, e tão nova, que, se aquela por não viver contigo me conduziu às mãos da morte, esta me encaminha para a vida, pois vivo já de morrer por ti.

Egéria. Da morte dos desprezos passou o meu amor para a vida dos favores.

Chichisbéu. Isso é passar da morte para a vida, como quem passa da vida para a morte.

Ismene. Albano, se como princesa fui alvo de teus favores, agora não permitas que eu seja o objecto dos teus desprezos.

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Albano. Enganas-te, Ismene; não há maior império que o da tua beleza, da qual sempre vassalo se confessa o meu amor.

Chichisbéu. Chirinola, já vês que enforquei os livros de Mágica! Acorda-te de mim.

Chirinola. Eu sempre sonhei em te querer! Tua sou. Chichisbéu. Pois então que fazes? Dá cá essa mão de

papel, que quero imprimir nela as cifras da minha afeição. Mecenas. Perdida Egéria, com o amor voou a esperança

de reinar. Chichisbéu. Senhor Mecenas, contente-se vossa mercê

nestes casamentos com o seu nome, que melhor se há-de casar com o ofício de padrinho.

Rei. Esclarecido Faetonte, releva-me os desprezos passados, pois bem sabes foram dominados de uma indiscreta ignorância.

Faetonte. Antes os devo estimar, por serem venturosos motores de minhas felicidades. E, já que do abismo da humildade, em que me considerei abatido, me acho agora entronizado na glória de filho de Apolo, repita o coro com melífluas consonâncias, publicando a majestade suprema, a que me elevou a fortuna nos respeitos que consigo como filho do Sol.

CORO

Na teia luzente do sacro Himeneu se acenda brilhante o raio flamante do filho do Sol.

FIM

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