para espelho de seus enganos e desenga- nos* de seus...

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OBRAS DO DIABINHO DA MÃO FURADA para espelho de seus enganos e desenga- nos* de seus arbítrios. Palestra moral e profana, donde o curioso aprenda para o divertimento** ditames e para o passatempo recreios. * Em Acad., desengano. ** Em Acad., doutrina. A abreviação “Acad.”, que aparece aqui e em várias notas de rodapé de responsabilidade de José Pereira Tavares, faz referência ao manuscrito existente na biblioteca da Academia das Ciências, em Lisboa. Do mesmomodo, a abreviação “Arq.”, quando aparece nas notas do Prof. Pereira Tavares, faz referência ao texto reproduzido no volume V de Arquivo Pitoresco, em 1862,sob o título de O Fradinho da Mão Furada. [Nota dos revisores]

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OBRAS DO DIABINHO DA MÃO FURADA

para espelho de seus enganos e desenga-

nos* de seus arbítrios. Palestra moral e

profana, donde o curioso aprenda para

o divertimento** ditames e para

o passatempo recreios.

* Em Acad., desengano.

** Em Acad., doutrina.

A abreviação “Acad.”, que aparece aqui e em várias notas de rodapé de responsabilidade de José Pereira Tavares, faz referência ao manuscrito existente na biblioteca da Academia das Ciências, em Lisboa. Do mesmomodo, a abreviação “Arq.”, quando aparece nas notas do Prof. Pereira Tavares, faz referência ao texto reproduzido no volume V de Arquivo Pitoresco, em 1862,sob o título de O Fradinho da Mão Furada. [Nota dos revisores]

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A QUEM LER

Leitor curioso, nestas fabulosas Obras do Diabinho da Mão Furada te ofereço desenganos das suas tentações e escarmento das penas delas, para fugires a umas e temeres outras, que no entretenimento da jocosidade acharás o proveitoso, se prudente te quiseres inclinar à doutrina. que nelas se te envolve, para que ache em ti o melhor acolhimento o moral entre o profano, como* se disfarça; que estão os gostos hoje de tão mau gosto, que se inclinam mais ao que dana do que ao que aproveita.

Faze o sinal da cruz primeiro que leias,** para que o mau fuja de ti e o bom*** te persuada.

De cinco folhetos te dou esta beberagem. Se te não souber bem, suspende no primeiro a tua direcção, que te não vai nisso nada. Calunia e murmura quanto quiseres, pois és livre e senhor do teu alvedrio, e são baldadas as desculpas com tentações**** maliciosas .

* Como − Em Acad., com que. ** Que leias − Em Acad., que as leias.

*** E o bom − Em Acad., e ao bom. **** Tentações − Em Acad., tenções.

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PROÊMIO

Estranhos são os meios que a Fortuna toma para facilitar felicidades aos homens: dos mais pobres nascimentos muitas vezes os expõe às dignidades supremas, e dos mais nobres e ricos precipita* para as desgraças incomparáveis. Baldadas são as diligências contra este destino impenetrável e misterioso, sem prejuízo da livre vontade;** quantos deméritos com todo sete-estrelo estimados e preferidos! Efeito monstruoso da Fortuna, cujos suntuosos edifícios costumam*** fabricar sem alicerces, e por esta razão duram tão pouco! Não é a penetração deste segredo para a humana capacidade, mas concernente à nossa história o princípio do primeiro parágrafo, como se verá no meio que a Fortuna tomou para enriquecer um afligido e pobre soldado. Nem sempre se podem escrever histórias verdadeiras, políticas e exemplares; também do fabuloso e jocoso se colhe muito fruto, por ser salsa para desfastio da doutrina que nela**** se pode envolver aos

* Ricos precipita − Em Acad.,, ricos muitas vezes precipita.

** Vontade − Acad., alvedrio. − A seguir a esta palavra, em Acad., o seguinte: porque, como dizem os velhos, a quem deus quer ajudar o vento lhes apanha a lenha. Quantos merecimentos vemos abatidos e desprezados sem migalha de estrela?

*** Costumam − Acad., costuma. **** Nela − Acad., nele.

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COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SÁ DA COSTA

que se aplicam mais à ociosidade* ilícita que à lição dos livros espirituais e graves. De que servem as fábulas que os antigos escreveram, mais que de inventiva e assunto de católicas moralidades? Que não profana a lição o fabuloso, quando se toma por motivo para inclinar ao acertado;** nem reprovar ociosidades geralmente dos que prevaricam ofende os merecimentos dos que seguem o ditame da razão, não sofrendo o génio curioso ociosidades*** por não malograr o tempo. * À ociosidade ilícita – Acad., a ociosidades ilícitas. ** Inclinar ao acertado – Acad., ensinar o acertado.

*** Ociosidades – Acad., licenciosidades

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FOLHETO I

Retirou-se um soldado da milícia da Flandres, em tempo de Filipe II , chamado André Peralta, aflito e maltratado da guerra, tão pobre como soldado e tão desgraçado como pobre. Depois de entrar neste reino, onde havia nacido, e caminhava para Lisboa, pátria comua de estrangeiros, madrasta de naturais e protectora de [a] venturosos,* começou de anoitecer-lhe uma légua de distância da cidade de Évora, em um sítio onde estavam umas casas abertas e desocupadas de gente. Vendo o soldado caminhante que a noite ameaçava escuridão e que as nuvens sem descansar choviam, se resolveu a passar a noite como pudesse em algum aposento mais reparado daquele edifício, contentando-se nele, para seu sustento, com o limitado provimento do seu alforge; e, cortando com a espada ramos de umas árvores e valados que perto estavam, para acender fogo a que se enxugasse e reparasse do frio, se recolheu a um dos aposentos, que julgou por mais acomodado. Tirou do alforge fuzil e pederneira, que é a mais importante alfaia de quem caminha, acendendo fogo, à cuja claridade, varrendo com uns ramos parte do aposento em que se acomodou, depois de se enxugar ceou do pobre sustento que trazia.

* Venturosos – Arq., aventurosos.

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COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SÁ DA COSTA

Já tinha o soldado, depois de cear, dormido um breve sono, que seria passada a terça parte da noite, quando, acordando a um grande estrondo, que nas vizinhas salas se fazia, aplicou ao lume alguns ramos, para que com mais luz pudesse melhor testemunhar o que aquilo era. Ouviu que uma voz desentoada e medonha lhe dizia: Despeja, atrevido soldado, este aposento, se não queres perecer nele, derribando-o, desfazendo-o sobre ti. A esta voz atendendo o soldado, viu que, a seu parecer, as paredes do cubículo estremeciam, prognosticando sua ruína, e os fragmentos das antigas portas e janelas se quebravam; mas nem por este respeito perdeu o ânimo. Fazendo das tripas cora-ção, pelo não matar primeiro o medo que o perigo, como muitas vezes sucede aos desalentados, respondeu à dissonante voz, dizendo: Se és espírito transmigrado desta vida, e necessitas de algum sufrágio nela, eu te requeiro, da parte de Deus, me digas quem és e o que pretendes, que ânimo tenho para te servir, e te prometo fazer tudo o de que necessitares para teu remédio, ainda que por ser um pobre soldado me seja forçoso mendigar para o fazer. E, se és espírito danado, nada me dá de teus ameaços, que aqui tenho a cruz da minha espada, e palavras me ensina a santa fé católica que me livrarão de ti e de teus poderes, pois não tens jurisdição para executar, sem a divina justiça o permitir; demais, que se eu aqui te enfado, pouco tempo terás essa moléstia, pois é já da noite passado tanto espaço e apenas aparecerá a luz da resplandecente aurora, quando despeje; que o rigor da escuridão e tempestade me não dá lugar a

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OBRAS COMPLETAS DE A. JOSÉ DA SILVA

obedecer-te logo. Com isto me parece que, se em ti há algum conhecimento da razão, te podes dar por satisfeito e haver-me por desculpado de me atrever a ser teu hóspede; que, se no campo havia de perecer a vida esta noite à chuva e ao frio, mais lícito me pareceu fiá-la ao abrigo do solitário desta casa. Replicou a voz: Ora já que estás tão pertinaz em não despejar, tanto choverá aqui como no campo.

Dizendo isto, em um breve instante se destelhou o telhado do aposento, e ficou chovendo nele como na rua. O soldado, vendo-se naquele aperto, não teve outro remédio mais que meter-se no canto da chaminé; e, tornando-se às boas com o dono da casa, que até o Diabo se obriga de lisonjas, pelo que tem de enganador, lhe disse: Senhor Barrabás, Astarat,* Belial, Asmodeu, Levitã ou Berzebu, ou qualquer outro príncipe infernal que Vossa Diabrura seja, não é política de grandes sujeitos usarem rigores com os humildes. Perdoe Vossa Diabrura violar o solitário desta casa com minha assistência; e, considerando que o medo e o frio faz[em]** meter o homem com seu inimigo, e como o desta noite era tão grande me obrigou a não reparar no terror dela, − sirva-se Vossa Diabrura de tornar a telhar a casa, por que me repare da chuva; que, em rompendo a luz do dia, a despejarei logo. Contente-se por castigo do meu erro com os sobressaltos e moléstias que me tem dado,

* Astarat − Acad., Astaroth; Arq., Astarot. ** Faz [em] – Nas três versões, faz.

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COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SÁ DA COSTA

que tanto é o de mais como o de menos; e, se quer que conversemos um pouco, apareça, que ânimo tenho para isso, e por mais feio que se me represente, não me aproveitarei das palavras que sei para me livrar de Sua Demonência, nem lhe direi vade retro,* nem o notificarei com os exorcismos, que tanto descompõem a Vossa Diabrura. Palavras não eram ditas,** quando já a casa estava outra vez telhada, e o Diabinho da Mão Furada em presença do nosso soldado Peralta, em figura de fradinho, de pequena estatura, mas de disformes feições, os narizes rombos e ascorosos de moncos, a boca formidável com colmilhos de javali, e os pés de bode, o qual ao sobressaltado Peralta articulou estas palavras: Ó animoso soldado, não sou nenhum desses príncipes infernais que disseste: sou, sim, comissário-geral para tentador e provocador das maldades. Depois que, por soberbos e ingratos, o nosso inefável Criador nos despenhou das celestiais alturas, uns de nós outros foram sepultados nos abismos infernais, outros ficámos no ar, à superfície da Terra tendo nossa pena, para movermos as tempestades e terremotos, quando o poder que nos precipitou o permite, por castigo ao mundo. Destes, sou eu um dos mais perversos e endiabrados de todos. Eu fui o que inventei o tomar tabaco,*** para que os homens * Vade retro − Acad., vade Satanás retro.

** Palavras, etc. − Antes deste período, em Acad.: O bom termo e a cortesia parece que até o Diabo obriga. *** Tomar tabaco − A crítica ao uso do tabaco encontra-se também nas Guerras do Alecrim e Mangerona, cena III da Parte I: “ … mascando alecrim como quem masca tabaco de fumo” (Vol. III, pág. 191).

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OBRAS COMPLETAS DE A. JOSÉ DASILVA

perdessem o sentido e regalo do olfato e andassem sempre enodoados nele; e bem se vê que foi inventiva minha semelhante vício, tanto sem gosto, pois não sofrem os que o tomam quando espirram, que lhes digam − Dominus tecum! −, porque respondem logo, para evitá-lo:−“Senhores, é tabaco!”−. E têm por delícia metê-lo em pó pelos narizes e bebendo-o em fumo pela boca, à imitação do Inferno. Eu inventei os rebuços de meio olho, por levar às mulheres liberdades sob capa deles; os monhos* e as anáguas, os guarda-infantes, punhos franceses pelo meio dos braços, e decotados provocadores das lacívias. Não falo em capainas,** seram-biques, chacoinas, sarabandas e seguidilhas desonestas, que isso são cousas de nonada para mim. Uns me chamam Diabinho da Mão Furada e outros Fradinho, por alguns de nós termos as mãos tão rotas de liber[ali]dades,*** que em muitas casas onde andamos fazemos ferver o mel, crecer o azeite, aumentar-se os bens, lograrem-se felicidades e, sobretudo, quando no-lo merecem com a boa companhia que nos fazem, descobrimos tesouros escondidos aos donos das casas em que andamos. A estas me inclinei para minha habitação, pelos infelizes donos que tiveram e os execráveis malefícios que

*Monho− topete postiço.− Anágua-saia branca, usada sobre a camisa (Cfr. Vol. I, Esopaida, pág. 195). − Guarda-infante − saia de balão.

** Capainas - Acad. e Arq., capoinas (= caponas) − Serambiques − sarambeques (dança de pretos). ***Liberdades − Acad. e Arq., e muito bem, liberalidades.

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COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SÁ DA COSTA

nelas se executaram. Daqui tenho ordem de Lúcifer para acudir a todos os mágicos e bruxas que connosco têm pacto e lhes dar razão do que por meio de minha indústria querem saber. Determinava fazer-te má hospedagem; mas, vendo-te tão animoso e justificado, revoguei minha tenção, que até os diabos, pelo que tivemos de atrevidos, respeitamos os sujeitos valorosos; que não somos tão feios como nos pintam. E já folgo de te ter hospedado esta noite para a passar conversando contigo, por seres homem de inestimável valor, a quem minha presença não atemoriza, como a alguns que só do nome dela se assombram e arripiam. Assim, não partirás daqui sem ir aproveitado e te fazer grandes bens. Respondeu o Peralta: Agradeço à sua Diabrura, Senhor Diabinho da Mão Furada, a hospedagem desta noite, por ser inescusável; mas os favores que promete os escuso, porque, como sua Demonência costuma pôr o mel pelos beiços de semelhantes promessas com que engana os parvos, para depois se pagar delas com tanto dano dos que lhe dão crédito, não quero eu prato de ouro em que hei-de escarrar sangue, e sangue espiritual, com risco de minha salvação. Ora digo − replicou o Diabinho – que és discreto, pois me conheces tão bem. É verdade que a profissão de minha natureza é a que supões: de enganar, com promessas de bens, para deles tirar males de quem os recebe, sem considerar a pensão com que lhos concedo, porque os ignorantes cuidam que no receber não há engano; mas de mim podes estar seguro, que de ti não quero nada mais que fazer-te bem, porque parece que outro Demo como eu me cortou o embigo.

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OBRAS COMPLETAS DE A. JOSÉ DA SILVA

Não entendo!* − respondeu Peralta −. A mim não me enganam palavras. A verdadeira felicidade não consiste em ter tudo, senão em desejar nada; e sua Demonência bem sabe que neste mundo o fazer mal e o fazer bem tem igual perigo, porque nunca falta contradição a quem bem obra, nem quem é mau tem boa correspondência. Sempre observei o não teimar com rei nem superiores, nem com os ricos, e muito menos com os diabos; porque não há valor na natureza humana para porfiar muito, havendo de medrar pouco. Alguns avisos se dão aos superiores, que não são faltas de infamado, senão mentiras do invejoso, e por isso comummente leva o prémio quem o não merece. A sua Demonência não peço nada mais que me deixe sossegado passar o restante da tempestuosa noite. Não sejas tão desconfiado da afeição que te tomei; − respondeu o Diabinho − por que te não pareças ingrato. Chegaste aqui pobre, e quero que vás rico. Considera, para não enjeitares o que te ofereço, o que diz o castelhano: hagase milagro, y hagalo el Diablo! Ao que respondeu Peralta: Se Vossa Diabrura quiser obrar comigo essa grandeza, sem esperar de mim que quebrante em nada a obrigação de fiel católico, no sera mi dicha tanta, quanto sera mi plazer. Ainda − replicou o Diabinho − não se pescam trutas a bragas enxutas. Os bons pescadores

* Não entendo! − Muito diferente, em Acad., esta fala.

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COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SÁ DA COSTA

as tomam presentadas; e presentes há que não custam a quem os recebe, mais que o aceitá-los.

Teimou o Diabinho: Nunca o muito custou pouco. Já te disse não queria que te custassem nada os favores que te fizesse, porque me pago deles no gosto que tenho de falar contigo.

Querendo a isto responder Peralta, lho impediu a vista de quatro femininos vultos, que com notável estrondo entravam pela janela com grandes alaridos, e as grenhas soltas e empeçadas e negras, as caras disformes, as carnes curtidas, e nas grosseiras e torpes mãos umas candeinhas acesas, as quais, ajoelhando ao Diabinho, lhe falaram na forma se guinte: A ti, ó poderoso comissário das tenebras,* reverenciamos e rendemos graças. Como fidedignas súbditas tuas, vimos publicar os benefícios que temos feito em virtude do pacto que contigo temos celebrado, para que o julgues por bom acerto e nos não faltes quando te invocarmos.

Eu vos agradeço, amigas minhas, − respondeu o Diabinho − esse cuidado e adoração que me fazeis. Assim, bem podeis relatar as maravilhas que tendes executado em virtude do favor que vos concedo.

Levantou-se uma das bruxas, com humilde submissão, e disse ao Diabinho: Eu, ó lucífero Comissário, venho esta

noite de chupar o sangue a um menino que não havia

* Tenebras − trevas.

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OBRAS COMPLETAS DE A. JOSÉ DA SILVA

mais que dous dias fora baptizado, e o deixei sem vida.

Ao que respondeu o Diabinho, dando um formidável grito: Ó monstro indigno de meu favor e do título de bruxa, mereceras por tal feito, logo, logo, em corpo e alma te sepultasse nas profundas do Inferno, e que não viras mais luz do mundo! Não fora mais lícito que antes de se baptizar esse menino lhe tiraras a vida, que então, quando não tivera pena, não gozara a glória que perdeu a nossa soberba, cuja inveja nos abrasa e obriga a procurar a perdição de todas as criaturas, por que não ocupem as cadeiras que nós perdemos? A inocentes em graça matas, feminino Herodes, para irem gozar da eterna glória?! Não fora melhor que esse inocente vivera até a idade em que pecara, para que tivéramos parte nele, que não evitar-lhe este perigo com lhe tirar a vida?

Grandes diligências fiz, ó indignado Comissário, − respondeu a bruxa − por executar minha maldade antes de se baptizar; mas, semeando seus pais mostarda pela casa, levantando os ferrolhos das portas e pondo as espadas nuas nas entradas delas, mo impediram; que não sei a antipatia que tem connosco a virtude destas cousas; que nos encontram com grande violência nossos intentos; se não é que procedeu de semelhante efeito da virtude de alguma relíquia que ao infante se tinha posto, que será o mais certo. Quanto ao que me dizes − que mais justo fora que vivera aquele inocente até idade em que pecara, para nele teres parte −, contenta-te com a que tiveste pela culpa original que lavou o baptismo; pois, se vivera, poderia ser

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COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SÁ DA COSTA

um grande santo, além de ficar capaz de maior glória, que pudera acontecer com seu exemplo reduzir muitas almas a Deus e tirar-te das mãos as presas delas; e, sobretudo, tu tens a culpa da minha hidropesia do sangue humano, pois te fizeste insaciável sang[u]essuga dele. O Demónio endemoninhado lhe disse: Ó feminino Herodes! Ó diabo dos diabos, pois atormentas, com o sangue que chupas, aos inocentes baptizados! Não te irás daqui, ó indigna da minha presença e de meus favores, sem o merecido castigo! E, sem mais nem mais, tomando um pau, dos que Peralta tinha dedicado para o lume, a moeu em pancadas, de sorte que lhe aleijou uma perna. Admirado estava Peralta e fora de seu sentido, de ver aquele espectáculo e de haver gente baptizada que, por gozar favores do Demónio, para sua eterna condenação sofresse tal ignomínia! Deseja-va-se ver dali cem léguas e maldizia em seu coração a sorte que ali o trouxera, onde se julgava em tamanho perigo, vendo, a seu parecer, o Inferno em vida, se bem [que]* fiava de seu ânimo e coração que, encomendando-se interiormente a Deus, mediante o seu divino favor escaparia de tudo.

O Diabo, depois que derreou a bruxa com o referido castigo e lhe mandou que dentro de quinze dias não fizesse sinos salomónicos, nem o invocasse, sob pena de lhe tirar logo a vida e lhe antecipar o Inferno, onde eternamente beberia chumbo derretido,

* Se bem que − Este que só existe, e com toda a propriedade, em Arq.

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OBRAS COMPLETAS DE A. ]OSÉ DA SILVA

pelo sangue inocente que chupara, mandou

às companheiras que referissem o que tinham feito, ao que elas logo obedeceram, relatando tais enormidades e torpezas, que Peralta, por lhe parecerem indignas de se escreverem, não fez delas memória. Só referiu que foram tais, que o Diabinho lhes disse:

Vítor, amigas minhas! Vós outras, sim, que sois merecedoras de meus favores! Eu vos engrandeço por superlativas bruxas; e, porque tenho o hóspede que ali vedes e é já tarde, vos podeis restituir às vossas habitações. Elas, que até então não tinham reparado em Peralta, por atenderem sòmente ao Diabinho, e Peralta estar muito quieto e sem falar palavra, retirado ao canto do aposento, tanto que dele tiveram vista, transformando-se em gatos negros saltaram, pela janela fora, da quadra, com horrendos maúlos. * Assombrado estava Peralta e sem gota de sangue, porque todo lhe tinha o coração, com temor do que tinha visto, parecendo-lhe ilusão do Diabo o que julgava realidade, quando, desaparecidas as bruxas, lhe disse o Diabinho: Que te parece, daquelas súditas minhas? Peralta respondeu: Estou admirado e atónito, como fora de mim! Dizer que haja gente tão bruta, tão cega e tão irracional, que, conhecendo-te a ti, por executar maldades contra seus próximos e viver quatro dias licenciosamente à custa do desprezo com que as

*Maúlo − é palavra castelhana com que se designa a voz do gato.

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COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SÁ DA COSTA

tratas, comprem um inferno, onde hão-de penar eternamente! Oh, miséria grande! Oh, execrável maldade! Eu te confesso que vivia enganado, porque, por mais que ouvia dizer haviam bruxas, e que com teu favor obravam grandes malefícios, e para isso te comunicavam, não me podia persuadir que assim fosse, imaginando que não passava de superstições de mulheres embusteiras; mas agora, que vi com os meus olhos o contrário do que imaginava, se não foi ilusão do teu engano, fico desenganado, que coração sem arte não cuida de maldade. Quantos desses enganos há no mundo! − disse o Diabinho. − Mal sabes o que corre nele e quantos fazem praça de timoratos e virtuosos que me estão entregues!

Con su pan se lo coman − respondeu Peralta −, que eu lhes não tenho inveja, e lá lhes virá seu S. Martinho, a tempo que o arrependimento não tenha remédio; que quem tempo tem e tempo espera tempo é que o Demo lhe leva; mas é natureza humana que com a idade, com a fortuna, com o interesse e com paixão se vai mudando, assim como os malévolos com as palavras, riso e lágrimas encobrem o que tem no coração: erram com capa de bem, e com amor perseveram e fazem reputação da vingança e da crueldade. Quanto melhor fora ao sujeito, que, persuadido de ti, engana ao mundo com capa de virtude, o não haver na[s]cido nele, nem visto a luz do Sol, por se livrar da eterna condenação! Assim é aquele que nas necessidades é humilde e fora delas arrogante e desprezador. O que em si louva e afecta é o que lhe falta; julga-se fino na amizade, mas não a sabe guardar; despreza o

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OBRAS COMPLETAS DE A. JOSÉ DA SILVA

próprio e ambiciona o alheio; quanto mais alcança, mais deseja; com bens e acrecentamentos alheios se consome e inveja. Mais pareces pregador que soldado − disse o Diabinho −, contra o hábito da tua profissão; porque os mais dos soldados, se não são diabos, são as peles deles na blasfémia e liberdade de con[s]ciência com que executam seus vícios. É verdade que a vida de soldado é muito licenciosa − disse Peralta −; mas nem por isso deixa de haver muitos timoratos e reformados, porque os perigos de que escapam na guerra muitas vezes lhes fazem emendar a vida, por não os tomar neles a morte carregados de malefícios. Esses são poucos! − respondeu o Diabinho −. Não queiras tu ser agora corrector do mundo. Examina-te, porque não és tão Paulo, que não tenhas caído em bastantes malefícios. Não to digo, porque tu o sabes; e no meu livro de memória tenho tomado assento para tua acusação, quando for tempo; mas ninguém vê as trancas nos seus olhos, e só vê os argueiros alheios. Disse Peralta: Confesso que fui moço e soldado e que como tal caí em grandes desacertos contra a obrigação de católico; mas já agora, arrependido e confessado, procuro emendar-me de meus erros, que gato escaldado de água fria tem medo; e, porque este conhe-cimento me obriga a apartar-me da tua companhia, e a luz da manhã vem já rompendo, peço-te me dês licença para prosseguir meu caminho.

Não sei que secreta causa − disse o Diabinho − me obriga de te fazer bem. Segue-me e irás aproveitado, já que tua ventura assim o permite.

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COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SÁ DA COSTA

E, de[s]cendo por uma escada abaixo, disse a Peralta o seguisse, o que ele fez contra sua vontade; e, chegando a uma açoteia,* onde, sinalando-lhe o Diabinho um canto dela, lhe disse que cavasse com a sua adaga, que com pouco trabalho descobriria uma panela com quinhentos cruzados em ouro, que ali deixara enterrados certo miserável que naquelas casas morava e morrera sùbitamente havia mais de cem anos. Assim o fez Peralta e brevemente descobriu a panela com a quantia mais copiosa, que o Diabinho disse acomodasse no alforge, e se partisse logo, que ele o queria acompanhar até Lisboa, pelo livrar dalguns contrastes, que no caminho lhe podiam suceder, e manifestar-lhe os enganos do mundo.

Sentidíssimo ficou Peralta da oferta da companhia, e antes de boa vontade largara o dinheiro, que ir com o Diabo. E assim lhe disse:

Deixe-me Vossa Diabrura ir só, porque tenho muito medo de seus enganos, e me não deixará lograr uma só hora de descanso; e, se para isso é necessário largar a panela do dinheiro, eu o faço de muito boa vontade.

Ao que o Diabinho replicou: Não sei que secreta causa me obriga

a respeitar-te e fazer-te bem; assim, te não hei-de largar,** até te pôr em porto seguro. Pois, já que assim é − respondeu Peralta-,

* Açoteia − eirado. **Te não hei-de largar − isto é, não te hei-de largar. − Em várias peças do nosso autor, em especial no “Anfitrião”, “Labirinto”, “Guerras”, “Variedades” e “Precipício”, encontrámos e anotámos brasileirismos deste tipo.

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e te resolves a acompanhar-me, há-de ser com condição que me não hás-de impedir as boas obras que fizer. Disse o Diabinho: Disso te dou eu firme palavra. E Peralta respondeu: Vamos, em boa hora. Nesta conformidade partiram da pousada, ou conciliábulo, o Diabinho da Mão Furada e o famoso Peralta. Chegados que foram à ribeira chamada Enxarrama,* viram como naquela noite tinha chovido. Muita água ia de monte a monte; mas, sem embargo disso, disse o Diabinho a Peralta que passasse, que ele o tomaria às costas, e a pé enxuto o poria da outra banda do rio, em paz e salvo. Não consentiu Peralta, dizendo-lhe:

Vossa Diabrura** faz de mim Judas: quer-me mergulhar com a panela do dinheiro. Rodeemos um pouco, e vamos à ponte, que é o mais seguro e o mais acertado.

No que com facilidade veio o Diabinho, por ter ocasião de mostrar a Peralta que, por mais que se acautelasse dos seus enganos, se não poderia ver livre deles, se ele os quisesse executar.

Caminharam breve espaço, e pareceu a Peralta que estava na ponte, porque o Diabinho fantàsticamente lha representou fingida e indo passando, ao parecer de Peralta, pela ponte, no meio do rio,

*Enxarrama − Xarrama, afluente da margem direita do Sado, que corre perto de Évora.

** Vossa diabrura − Muito diferente em Acad.

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sustentado no ar do Diabinho,* o qual lhe disse que ali veria o pouco que importavam para com ele prevenções e cautelas, quando quisesse executar maldades; porém que não desconfiasse mais dele, por não dar ocasião a fazer verdadeiros seus receios.

Assombrado ficou Peralta quando se viu no meio da corrente impetuosa, pendendo da vontade de quem o sustinha, imaginando que para executar a maldade de se afogar naquele rio usara o Diabinho com ele os referidos enganos; e, fazendo interiormente, naquele aperto, actos de contrição e pedindo socorro ao Céu, esteve por muitas vezes largando o alforge com os cruzados que trazia, julgando-os tão falsos como o dono, por ficar mais desembaraçado para lutar com as águas; mas, fazendo das tripas coração e da necessidade virtude, mostrando que não temia nem devia,** disse ao Diabo que o pusesse em terra, que dali por diante o reconhecia por fiel amigo. Assim fez o Diabinho, e foram caminhando para a cidade de Évora, Peralta imaginando no meio que havia tomar para se apartar de tão prejudicial companhia, e o Diabo fulminando embelecos para executar suas maldades. Chegaram à dita cidade, onde se apresentaram*** em uma estalagem à Porta de Avis. Nela deixou o Diabinho a Peralta, dizendo-lhe que descansasse e * Sustentado no ar do Diabinho − sustentado no ar pelo Diabinho.

** Nõa temia nem devia − Cfr. «quem não deve não teme.

*** Se apresentaram − Acad. e Arq., se aposen-taram.

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se regalasse aquele dia, que ele ia dar uma volta pela cidade a fazer umas galanterias; que à noite se veriam. Com isto se despediu o Diabinho, e Peralta se recolheu a um aposento, onde, fechando-se, tirou do alforge o dinheiro, porque se não podia persuadir que fosse tão favorecido da fortuna, que por tão estranho modo lhe deparasse aquele remédio para reparo de tantas misérias e trabalhos como na milícia tinha padecido. Tirado o dinheiro e desenganado com a vista dele e de sua realidade, não cessava de dar graças ao Céu por aquele amparo; porque, como nada se move sem permissão sua, ainda que o instrumento daquele bem fosse o Demónio, o atribuía à maravilha da Divina Providência, e assim, em agradecimento de tal mercê, prometia de fazer todas as boas obras que pudesse.

Depois de Peralta contar o dinheiro três ou quatro vezes e tirar dele o que lhe pareceu necessário para os gastos do caminho, pediu linhas e agulha à dona da casa. Gastou o restante da manhã em coser os dobrões entre os forros do jubão e da roupeta.

Acabada esta obra, pediu de jantar e tratou do regalo da sua pessoa, como quem se achava com dinheiro fresco; que, pela vida que professava, de soldado, nada tinha de miserável, como alguns malditos que, feitos escravos do dinheiro, por não tocarem um tostão se deixam perecer de fome, e jejuam sem algum merecimento, poupando para outrem o que não logram para si. O nosso Peralta, que era livre desta relé miserável, além da olha da hospedagem mandou assar uma boa franga, e com mais fragmentos de queijo, azeitonas e bom licor

Vol. IV-Fl. 16

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de Peramanca* fez a razão; e, depois de jantar, como tinha velado a noite passada, fechada a porta do aposento, se lançou a dormir.

Entregues os sentidos exteriores ao sono, ociosidade da alma e esquecimento dos males, e soltos os interiores, como se lhe não tirava do sentido o Diabinho, lhe ocorreram à estimativa e fantasia imaginações, ajudadas do vapor do Peramanca, e se lhe figurou, com representações evidentes, se via com ele no Inferno**.

* Peremanca (nomanuscrito, Peramansa; Acad., Peramanca; Arq., Pera-mansa) − é povoação situada a cerca de cinco quilómetros de Évora, afamada na antiguidade pelo muito apreciado vinho que produzia. Sobre a origem deste topónimo, lê-se na História das Antiguidades de Évora, de Amador Patrício, editada em 1739, pág. 55, que tendo Helena [a de Tróia, esposa de Menelau!] partido uma perna perto de Évora, o lavrador em casa de quem fora recolhida, interrogado sobre o estado da doente, cujo nome ignorava, e sobre o destino das mezinhas que para ela levava, respondera: “Isto é pera a manca”. As andanças da famosa Helena encontram-se resumidas nesta obra em duas saborosas quadras, que, segundo o autor, se liam na tosca pedra da sua sepultura:

A formosura de Helena aqui está enterrada, a qual a muitos deu pena, sendo de todos amada. Em Grécia se cativou e Tróia por ela ardeu; em Évora enviuvou, em Peramanca morreu.

Não se espante o leitor: naquela obra, vê-se que não há deus ou herói da antiguidade que não tenha nascido em Évora, ou por lá não tenha passado .. ** Inferno − A seguir, em Acad.: (Vá de sonho).

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FOLHETO II

Chegado Peralta com o Diabinho, por representações, à porta do Inferno, viu que um grande tropel de gente vinha correndo para ele [e]* lhe preteriu na entrada dela; e, admirado de ver tão grande alvoroço para tão triste habitação, perguntou ao endiabrado companheiro que gente era aquela, ao que lhe respondeu que eram uns condenados por miseráveis, que não souberam na vida que cousa era dar esmola nem fazer obra boa, nem tão-pouco ser senhores do que tinham; os quais tinham passado a vida em tanta abstinência, que lhes representava a sua ignorância que a haviam ter menos penosa no Inferno; e por esse respeito vinham com tanta pressa a tomar lugar, cuidando furtavam bogas, mas allá se lo diran de misas. Admirado ficou Peralta da brutalidade de tal gente; e, entrando, a seu parecer, pela boca da infernal gruta, o aturdiram e assombraram alguns horrendos latidos do cão Cérbero, a quem o Diabinho, assobiando, sossegou, dizendo que eram amigos. Passaram adiante. Em o primeiro aposento, viu Peralta muitos homens em pé, arrimados a varas de justiça, e detrás deles outros tantos escrevendo em feitos, e um grande número de demónios espancando-os

* Correndo para ele, etc. − Acad.: vinha correndo para se lhe preferir; Arq.: gente, correndo para ele, lhe preteria a entrada.

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Que gente era aquela − perguntou Peralta a seu sócio −, porque ali não se conhecia rei nem roque ... Respondeu-lhe que eram ministros, meirinhos e alcaides, e detrás deles seus escrivães e porteiros, que haviam sido condenados por obrarem mal em seus ofícios, e que, por haverem sido instrumento de sua condenação pela má administração da justiça, subornação que nela tiveram, respeitos e empenhos por que a mal usaram, peitas e interesses que receberam por proferirem sentenças injustas, se usava naquele lugar do poder e jurisdição infernal, atormentando-os com pancadas daqueles varejões, sem atenção a requerimentos, autos ou protestos, nem apelação ou agravo, nem outro algum recurso superior.

Em outra estância se representaram a Peralta algumas pessoas graves, sentadas em tribunais ascorosos, a quem muitos espíritos malignos defumavam com papéis queimados e, abrasando-os com fogo lento, lhes diziam:

com varejões tão compridos, que alcan-çavam a todos. Os que tinham as varas clamavam pelos escrivães, que da parte de El-Rei notificassem aqueles perversos malditos para autos de resistência; porque aqueles desacatos, feitos a ministros e ofi-ciais reais, eram dignos de um asperíssimo castigo. E nisto persistiam de contínuo e, quanto eles mais gritavam, mais lhes davam, dizendo-Ihes:

Varas que por ambições de interesse e da cobiça mediram mal a justiça se tornaram varejões.

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E, informando-se Peralta, do seu fidus Achates,* quem eram os defumados, lhe disse que eram alguns ministros condenados por confirmadores dos julgados contra o direito e o merecimento dos autos, movidos por paixões, peitas ou respeitos, ou também de sua má tenção, do que de tudo procedem as fumaças com que os ofendiam, que significavam os maus feitos deles; o que sucede aos bons, bem tencionados, porque em todos os estados há maus e bons. Em outra parte, viu Peralta outros com alguma autoridade, e, ao redor deles, muitos demónios atordoando-lhes os ouvidos com disformes buzinas, dizendo-lhes, de quando em quando, o seguinte quarteto:

* Fidus Achates (fiel Acates) − Assim é designado na Eneida, livro VI, v. 158, um dos companheiros de Eneias.

O interesse e respeito a tal pena causa deram, pois na vida vos fizeram fazer de torto direito.

Ouvidos que ouvir na vida não quiseram pretendentes no Inferno as tristes buzinas ouvirão eternamente.

Perguntando Peralta a seu familiar quem eram aqueles, respondeu que eram ministros ocultos das partes, que fechavam as portas e cerravam os ouvidos,

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fazendo dos pleiteantes aves baldias; as chancelarias são a era onde se põe o cebo* para enganá-los; o juiz a rede, e os advogados e ministros os caçadores; e, por mal obrarem, caçaram os tormentos que estão padecendo.

Admirado estava Peralta de ver tais espectáculos e não se podia persuadir que fossem verdadeiros, senão outra ilusão fantástica, semelhante à da fingida ponte, porque se lhe não acomodava à boa razão que houvesse sujeito de juízo e católicos ro-manos tais, que com conhecimento do bem e do mal dessem ocasião a cometerem tais agravos a Deus, que os sujeitou àquelas penas infernais, sem remédio, quando no mesmo distrito se lhe representaram outras figuras folheando grandes livros, os quais lhe[s] arrebatavam da mão alguns demónios e com eles lhes davam muitas pancadas, dizendo-Ihes, de quando em quando, os epigramas seguintes:

F olheai sem descansar os textos com desprazeres, pois vossos maus procederes vos fizeram condenar.

Padecei a infernal ira, pois fazíeis com maldade

ou da mentira verdade, ou da verdade mentira.

Perguntou Peralta ao Diabinho-companheiro quem eram aqueles. Respondeu-lhe que eram advogados * Cebo – Arq., cevo (comida). 246

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* Mordendo as unhas − Na Vida do Grande D. Quixote de La Mancha e do Gordo Sancho Pança, cena IX da Parte I, fala Sancho Pança de um filho seu, muito inclinado à poesia, “de sorte que tem roído quantas unhas há em minha casa, que todos as tínhamos grandes”. _ Quevedo, em Los Sueños, falando de poetas, diz: “Cual para hallar un consoante, no hay cerco en el infierno que no haya rodado mordiendo-se las uñas” (“EI Alguazil Endemoniado”). − Na novela de Cipión y Berganza, de Cervantes, há este passo, relativo a um estudante-poeta: “Ocupábase en escribir en uno cartapacio, y de cuando en cuando se dava palmadas en la frente y se mordia las uñas, estando mirando al cielo” .

OBRAS COMPLETAS DE A. JOSÉ DA SILVA constituídos em trapaças, onzenas e afecta-ções, que, por terem das partes interesses e dádivas com espórtulas mais excessivas ao merecimento de seu trabalho, fulminavam requerimentos quiméricos, sem fundamento de razão ou justiça, a fim de atropelar e inquietar o sossego justo, limitando as leis, dirigindo-as com diversos sentidos, trazendo autoridades e fingindo-as aparentes ao caso, inculcando-se por discretos, doutos e verdadeiros, sendo entranhàvelmente enganadores, vãos e mentirosos, e por isso eram com os mesmos livros espancados dos demónios e condenados a eternas penas.

A estes se seguia outro conclave de gente, muito esfarrapada, rota e mal vestida, uns muito pensativos e cuidadosos, outros mordendo as unhas* e outros dando palmadas na testa, fazendo acções como doudos, e juntos a eles alguns demónios, di-zendo-lhes os seguintes quartetos:

Pródigos que, dispendendo tanto ouro e tanta prata, tantos rubins e diamantes, tantas pérolas e esmeraldas,

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encarecendo belezas que se hão-de tornar em nada, apenas no fim da vida tivestes uma mortalha!

Informando-se Peralta, do companheiro das mãos rotas, que gente era aquela, lhe respondeu que eram poetas, que se condenaram por darem epíteto às belezas humanas, chamando-lhes divinas, angélicas, idolatradas e soberanas, com outras semelhantes loucuras, que, por mais que se quiseram desculpar, dizendo que eram ornato e exaltação da poesia as hipérboles daquelas lisonjas, lhes não foi aceita a descarga. Aqueles que ali vês pensativos estão desatinados, buscando conceitos no entendimento para um certame poético que Plutão ordenou sobre o roubo que fez de Prosérpina; e os que vês batendo na testa e mordendo as unhas estão buscando conceitos para os versos que têm já começados; e o prémio que por eles hão-de* receber são os tormentos dobrados que padecem, pois não sei que antipatia tem a fortuna com a pobreza, que tão-pouco favorecida é dela no mundo, sendo tão aplaudida nele; nem que implicância tem a poesia com a pobreza e miséria, que não houve professor seu, por mais insigne que fosse, que não acabasse infeliz e miserável.

* Hão-de − Aqui, adoptámos a lição das outras duas versões, em vez de não de, do manuscrito.

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Por isso está naquele canto Ovídio, açoutando-o* seu pai por fazer versos, e ele prometendo, em verso, de se emendar, porque é tal a doença da poesia, que, por mais que procurem os génios que a professam deixá-la, se não podem livrar dela. Não tinha o Diabinho acabado as referidas ra-zões, quando Peralta olhou e viu muitos cavalheiros vestidos de capa e volta, sem espadas, com anéis de bispo e luvas fechadas nas mãos, virem fugindo de grande multidão de gente, que os seguia, dizendo-lhes: Esperai, infames mações,** verdugos da morte, que vós aqui pagareis as erradas medicinas que nos aplicastes, sem mais conhecimento ou razão das queixas, que aquelas que voluntàriamente arbitrava o vosso asnático entender, sem cessardes, com o sangue das veias de nossos corpos nem com as beberagens das boticas sem serem coadunadas às queixas, nem deleites,*** franjos, ajudas; e ùltimamente, se não morremos de garrote, banhas e fora da terra; extorquindo-nos o cabedal, tanto do corpo como da fazenda; e o pior foi, estando nós morrendo, dizerdes escapáramos da morte, motivo por que nos descuidámos da nossa salvação; pelo que vós, malditos,

* Açoutando-o − E sabido que o pai do poeta latino Ovídio tentou em vão dissuadi-lo de se dedicar exclusivamente à poesia. ** Mações − Acad.: mata-sãos; Arq., algozes. *** Nem deleites, etc. − Até o fim deste parágrafo há grande corte em Acad .. Quanto à versão de Arq., eis o teor: “... nem os leites, frangos, bichas, e ùltimamente, se não morremos de garrote, banhos e fora da terra”.

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fostes o instrumento de virmos aqui com este epigrama:

E assim com razão pagais, com pena e rigor tão forte, * serdes na vida, da morte gadanhas universais.

Seguiram também a estes carniceiros da gente humana dous tumultos de gente, uns tirando-lhes com redoma almofarizes e espátulas e outros com malvas, violas e jogos de tábulas, dizendo-Ihes os primeiros: Aqui, falsos Galenos, nos havemos de vingar de serdes a causa da nossa perdição com a prodigalidade de vossos récipes,** sendo igualmente interessados com os boticários! Os segundos clamavam arguindo-Ihes a culpa das inumeráveis execuções das sangrias e sarjas.***

Não ignorou Peralta que os cavaleiros eram médicos e os das redomas e guitarrinhas boticários e barbeiros. Por isso, não perguntou ao Diabinho quem eram, atendendo só a ver em que parava aquela revolta, que foi o chegarem todos aos doutores e, depois de os derribarem das bestas a baixo

* Neste verso, no manuscrito e no Arq., o em vez de e; e no seguinte, seres em vez de serdes. Neste mesmo, no Arq., e na morte. ** Récipes − Falando de médicos, Quevedo, em Los Sueños, escreveu: “Venían todos vestidos de recetas y coronados de erres assaetados, con que empiezan las recetas. Y consideré que los doctores hablan a los boticarios, diciendo: ‘Recipe, que quiere decir recibe’” (“Visita de los Chistes”). *** Sarja − pequena incisão na pele, para extracção de sangue. 250

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Recebei nesta eternidade, velhacos de infame ser, dessa água mais quantidade que a que fizestes beber aos homens, contra vontade!

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Logo nas costas destes viu Peralta que vinham outros muitos e atrás deles outros tantos demónios, que os traziam de rastos a lançar em um lago de água sórdida, fedorenta e turva, para que bebessem nele a que tinham lançado nos vinhos, que venderam por serem taverneiros. Eles gritavam que os não lançassem; que não mereciam tão grande castigo por baptizarem o vinho e o fazerem cristão. Os demónios, em paga de uma tão boa obra, como era o serem missionários baptizantes, lhes diziam:

e os arrastarem largo espaço, os boticários lhes deram ascorosas beberagens, e os barbeiros muitas sangrias com lancetas abrasadas em fogo. Ocupado estava Peralta na representação deste objecto, quando o advertiu dele outro, de um grande tropel de gente, uns com sovelas e tesouras nas mãos, fazendo uma barafunda de todos os diabos, e a causa da sua diferença era sobre quais foram na vida maiores mentirosos; e, como os da sovelas eram sapateiros e os das tesouras alfaiates, não se resolveu. Alguns demónios os acompanhavam a determinar a questão, dizendo-Ihes:

Destes, por ser singular o mentir por seu prazer, podemos nós aprender a mentir e a enganar.

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Sorrindo-se Peralta de ver semelhante barafunda, perguntou a seu Diabinho quem eram as duas mulheres que vira como senhoras mandar queimar às outras as monhas e guarda-infantes. Respondeu-lhe que eram Eurídice e Prosérpina, que os poetas fingiram ser roubadas do príncipe infernal; e [que] foi falso testemunho que lhe levantaram, que até os demônios no Inferno não estão livres deles, e a

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Estava Peralta admirado, considerando como se pagavam no Inferno as maldades que se faziam no mundo, quando viu sair de uma sala ou gabinete muitas mulheres enfeitadas e besuntadas, olhando para os peitos se os levavam altos e bem puxados, e para os pés se brilhavam, e as meias se apareciam, fazendo-se escoadas da barriga e botando o cu para trás, influindo mais gravidade; e, circundando-se todas, se foram chegando para as outras que já lá estavam; e, mandando-as retirar para tomarem melhor lugar, não lhes quiseram as outras obedecer, suposto estavam mais desprezíveis; e sobre o “tire-se para lá!” − e – “vá para acolá!” − e – “não quero!” − e – “olhe para ela!” −, houve tal tumulto no Inferno, que nem os diabos paravam! Engadelharam-se umas nas outras, e tudo ardia em tanto fogo e alarido, que atroavam os Infernos. Alguns demônios lhes diziam:

Porque não ardem galantes Nesta infernal oficina, a todas as circunstantes manda queimar Proserpina os monhos e guarda-infantes.

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Castiga-te meu poder, sem ninguém poder livrar-te. Pois te quiseste perder, ninguém poderá salvar-te.

Em outra parte se representaram a Peralta muitos homens em grandes porfias, com compassos, quadrantes e esferas nas mãos cujas insígnias os manifestavam por astrólogos. Uns defendiam que não havia mais que o céu empíreo e que no convexo dele estavam as estrelas e mais corpos celestes; outros negavam a esfera de fogo; outros contradiziam esta opinião. E sobre isto havia tais gritarias, que o mesmo Inferno se assombrava de os ouvir.

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verdade é que pelas suas obras e seus pés vieram cá, que ninguém as foi buscar. Não bem tinha o Diabinho acabado de referir estas palavras, quando Peralta em outra parte viu muitas pessoas cobertas de ásperos cilícios, macilentas e fracas, ajoelhadas defronte de um demónio que estava sentado sobre um trono de fogo, que ardia sem dar luz, e coroado de negro fumo. Assombrado Peralta de tal visão, perguntou a seu familiar infernal que gente era aquela. Ele lhe respondeu que eram mártires do Diabo, que na vida chamavam hipócritas, que, com as contas na mão, fingiam que rezavam, e com aqueles cilícios e outras penitências se mostravam virtuosos, para os terem por bons, sendo os mais perversos e depravados deles, por cujo respeito tinham no Inferno as insíg-nias com que o granjearam, podendo ser instrumento da sua salvação, e que o príncipe a quem adoravam era o grande Lúcifer, o qual lhes dizia:

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Sobre cujas porfias se vieram a descompor, de maneira que se tiravam uns aos outros com os globos celestes e terrestres, esferas, astrolábios, bússolas, dioptras, cilindros, compassos e pantómetros, fazendo tal revolta, que um diabo que os acompanhava lhes disse: Maldita gente, quem te mete a querer testemunhar do que não viste, e a troxe-moxe dizer tais disparates? Que astrologia ou que ciência foi a tua, pois te não sabes livrar de vir argumentar sobre ela neste lugar e abismo? Por vida do Senhor Lúcifer, que, se mais alguém fala palavra, que hei-de tapar a boca a cada um com seu demónio que o martirize! Deixem estar o céu, as estrelas, o Sol e a Lua em suas esferas e não se metam no que não sabem, nem deste abismo se pode considerar. Calaram-se todos, e o Demónio prosseguiu, dizendo:

A astrologia divina, de que todos sois indignos, de entendimentos divinos sòmente pode ser digna.*

Em outra parte apareceram grande número de mancebos, esmerados em todo o asseio, vestidos à moda, com calças justas, meias de glória,** sapatos acolherados com sua forquinha e saltos de palmo, as cabeleiras bem talhadas e muito polvilhadas,***

* Esta quadra não existe em Arq. ** Glória − No man. da Bibl. Nacional, por

lapso, glovia. *** Polvilhado − Termo que também aparece

adiante. − Na Esopaida, cena V da Parte II, diz Esopo: − “Já vou; espere, que me estou apolvilhando” .

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* Pulões – plebeus.

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Perguntou Peralta ao seu intérprete de mão furada que gente era aquela. Respondeu-lhe que eram pulões * que sem eira nem beira ostentavam aquela limpeza, porque com ela passavam praça do que não eram e enganavam o mundo, e que, em

dando muitas vezes à cabeça por ver se descobriam janelas, e nelas alguma dama para exercitarem os vis e escandalosos rompantes de que usam, e ainda nos templos com mais devassidão e toleima, ludibriando do divino culto e nele com muitos risos e escárnios, fazendo mais capricho da vaidade e namoro que da oração. Detrás destes estavam muitos demónios enfarruscando-lhes os vestidos e sujando-lhes as meias e sapatos, pondo-lhes fogo às cabeleiras e metendo-lhes tições pelos narizes, com que desatinavam e faziam notáveis clamores e gritarias, rogando aos demónios que antes lhes fizessem outros males que sujar-lhes os vestidos, porque na limpeza deles estava o remédio de seus enganos; mas eles não cessaram só com este malefício, porque, depois de os enodarem, lhes entraram com tesouras ardentes a tirar as guedelhas e queimar as bigodeiras, com o que eles faziam tais extremos de sentimento, que pareciam doudos. E os demónios lhes davam vaias, dizendo este epigrama:

Vossa perversa maldade aqui donde parar veio fez a limpeza e asseio converter-se em sujidade.

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pena disto, se lhes fazia o referido, que eles sentiam mais que outro qualquer tormento. Não tinha acabado bem Peralta de se admirar desta representação, quando por outra parte viu que vinham correndo muitas pessoas, vestidas de comprido, com barretes e badamecos, e com eles outros tantos demónios, dizendo-lhes: Vão-se com todos os de cavalo de nosso Inferno, a ser demónios do mundo, como eram, que não queremos cá tal gente nele, por que se não levantem com nosso império e usem de seus embustes e travessuras. E sobre – “não havemos de ir” −, − “sim, havemos de ir” − foi grande revolta. Aqui, acudiu o Diabinho; e, porque via eram estudantes, os expulsou, dizendo: A paz; a paz, cavalheiros! Amigos somos todos. Estes senhores foram meus companheiros em executarem maldades. Vossas Diabruras me hão-de fazer mercê de lhes dar gasalhado, pois tantas diligências fizeram na vida pelo merecer, − dizendo-lhes este satírico epigrama:

São de maneira endiabrados os estudantes bragantes,

que donde estão estudantes são demónios escusados! *

* Não existe esta quadra em Arq .. Para elucidação do leitor, transcrevemos daquela versão o passo correspondente à quadra e à fala que a precede: − “À paz, à paz, cavalheiros, amigos somos todos; estes senhores foram meus companheiros em executar maldades; vossas diabruras hão-de-me fazer mercê de lhes dar gasalhado, pelo merecerem, acrescentando que onde estão estudantes são os demónios escusados”.

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Contudo, foram admitidos por intercessão do interlocutor infernal, o Fradinho da Mão Furada; e por isso se disse que até no Inferno é bom ter um amigo. Enlevado estava Peralta na dita representação quando por uma infernal rua viu passar grande número de coches e liteiras; do que admirado, disse ao Diabinho: É possível que também no Inferno se ande em coches e liteiras?! Disse-lhe o Diabinho: Daquilo há infinito número! Porque neles e nelas penaram aqueles a quem os coches e liteiras haviam trazido ao Inferno com inumeráveis malefícios. Ao que Peralta replicou, dizendo: Como podiam os coches e liteiras ser causas de sua condenação, se ela pendia dos seus insultos e maus procedimentos? Respondeu o Diabinho: Pois eles e elas as originaram, porque, em se vendo em coche ou liteira, qualquer daqueles vão soberbos, desprezando a humildade, imaginando-se sobre as estrelas, cuidando que na carruagem caminham para o céu, vangloriando-se daquela ostentação e, por lhes não faltar para ela o preciso, deixam de favorecer os pobres e de pagar o alheio; e, por isso, digo bem que nos coches e liteiras penam no Inferno. A isto replicou Peralta, dizendo: São pragas tuas, porque muitos fidalgos e grandes Senhores conheci eu, em carruagens, coches e liteiras, muito caritativos, benignos e ajustados com a razão.

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Não nego − disse o Diabinho −, que há bons e maus; e os que merecem o nome de bons são aqueles cujas obras se conformam com a antiga nobreza de seu sangue; porém aqueles que entram no noviciado da fidalguia cuidam que na inchação e soberba consiste a sua conservação e respeito. Todos se perdem sem que minhas tentações os obriguem. A isto ia Peralta para responder, quando viu que muitos demónios que seguiam as ditas carruagens vinham gritando aos cocheiros: Pára! Pára! E eles, fazendo-se moucos às diabólicas vozes, se detinham doutros demônios* que lhes saíam diante. Foi forçoso obedecer-lhes; e, parados que foram, disseram os demónios aos encochados e liteirados**: Vossas mercês, senhores galantes, cuidam que nestas carruagens vem passear no Inferno? Pois estão enganados. Apeiem-se logo, que lhes queremos dar os tormentos que merecem. Ao que lhes responderam que aquele termo era muito descortês e indigno de suas qualidades; que se fossem embora, que eles não se haviam de apear. E nisto houve uma revolta tão infernal, que, indignados, os diabos puseram fogo aos coches e liteiras, em que se abrasaram os que vinham dentro, sem que para isso fosse bastante os lastimosos gemidos e horríveis

* Se detinham doutros demónios − eram detidos por outros demónios. ** Encochados e liteirados − Em Acad., encocha-

dos e enliteirados.

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*Em Arq., não existe esta quadra, bem como tudo quanto se segue até o parágrafo que principia por “Nesta consideração estava”, o qual, nessa versão, reza assim: “Compadecido estava Peralta de tal cena, quando desaparecida ela ... “.

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suspiros com que dentro repetiam estes dous ressentidos quartetos:

Estes coches e liteiras deram connosco através, porque as vanglórias do mundo nisso sempre a parar vem.

Oh, quem a nacer tornara de novo agora outra vez, para que viver soubera como havia de viver! *

Não acabou bem Peralta de se admirar desta representação, quando em outra parte viu muitos homens agarrados a grades de fogo ardente, e outros tantos demónios dando-lhes rigorosíssimos tormentos, de que os atormentados se queixavam com las-timosos e horrendos alaridos, a que os demónios lhes respondiam juntamente: Padecei, velhacos, ociosos, lacivos; pois, tendo na vida tantas mulheres com liberdade para vossos gostos, inquietáveis em suas clausuras as religiosas, dedicadas para esposas do inefável Criador, tão cioso da pureza, como poderoso para o castigo de semelhante sortilégio.

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E, depois deste vexame, lhes começaram todos a dar vaias, dizendo-lhes:

Mentecaptos e ignorantes, que fabricais, de amor cegos, edifícios de esperanças sobre alicerces de vento!

Que pretendeis de mulheres detrás de grade de ferro, com esposo tão cioso e com poder tão imenso? Sem temer quem pode tudo, como brutos, mais que nécios, navigais com vento em popa na vida para os Infernos.

Tântalos de vossas glórias sois, pois delas os desejos, tendo-as à vista dos olhos, lograis só com o pensamento. ,< Que toda a mulher queria por isso disse um discreto, mas que a freira e a pintada aborrecia em extremo. Estas letras vos contamos, não para vos dar conselho, mas para vos dar vexames de mentecaptos e nécios.

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Acabada a música, desataram os demónios, das grades, aqueles afligidos e os levaram de rastos a lançar em ardentes fornalhas, onde se abrasavam; de que, compadecido, Peralta contemplava quão arriscado desacerto era na vida desinquietar as religiosas dedicadas a Deus, e quão dignos do castigo que se lhes dava.

Nesta consideração estava, quando, desaparecida aquela visão, viu em outra parte muitos demónios, os quais estavam fazendo pélas de velhas setentonas muito autorizadas, com seus capelos inculcando virtudes, que davam rigorosos rechaços* de uns para os outros, com pélas de ferro ardentes as faziam em pedaços, e elas com horrendas vozes gritavam que não era aquele o gasalhado que esperavam no In-ferno, em prémio de serem na vida almoeda de tantas virgindades, profanidades de tantas virtudes e recolhimentos e motivo de tantos adultérios; e assim, requeriam as levassem perante o Senhor Lúcifer, para lhes pedirem justiça, o que ele estava obrigado a fazer, como absoluto Senhor e rei do infernal império.

Os demónios lhes respondiam: Que justiça se vos pode fazer, infames,

mais que o que padeceis, que é só o que mereceis, pois os serviços que alegais ao Senhor Lúcifer não foi pelo obrigardes a ele, senão por vossos particulares interesses, comendo e regalando-se com o dinheiro que vos davam pelas alcovitices que fazíeis?

E assim, não vos deve nenhuma remuneração, pelo que justamente se vos dá o castigo que padeceis

* Rechaços − repelões.

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COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SÁ DA COSTA por vossas maldades e por serdes a causa de todas as que fizestes pecar com vossas persuasões e enganos, que também carregam sobre vós. Assim, tapai as bocas, e sede nossas pélas.

Com que começaram* de novo a pelotá-las, e elas gritavam, dizendo este quarteto:

Penamos, porque de gostos alheios fomos terceiras, que as pagas que dá o mundo são todas desta maneira.

Desaparecida esta visão, se representou a

Peralta logo outra, de muitos homens com cruéis mordaças na boca, de ferro abrasado; e, perguntando a seu companheiro que gente era aquela, ele lhe respondeu que eram barqueiros, almocreves, carreteiros, carni-ceiros** e os que por dinheiro juravam falso; que a todos, por blasfemadores e por perjuros maltencionados se lhes dava a pena daquelas mordaças.

A esta se seguia logo outra representação de grande número de homens e mulheres, espedaçando-se com grandes alaridos e gritarias. Perguntando Peralta ao Diabinho que gente era aquela, lhe disse que eram os malcasados, entre os quais havia diversidades

* Com que começaram − Daqui até o fim da quadra é texto que se não lê em Arq ..

** Carniceiros − No manuscrito, camiceiros.

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de génios, de que procediam muitas discór-dias, e tais, que raras vezes se conformavam, elas pelos profanos trajes e apetites de suas pessoas, com que vexavam os maridos, obrigando-os a excessivas despesas, com que as suas possibilidades se não atreviam, ocasionando-lhes com esta desordem amofinações e empenhos, de tal sorte que passavam a vida desgostosamente em contínuos dissabores, pragas e motins, também motivados das suas perversas condições, além dos particulares desgovernos de suas casas; eles por faltarem às obrigações de seus estados e terem grande descuido em suas casas, mulheres e filhos, sem a constituição do preciso trato, doutrina e sustento, conforme suas posses e inteligência, e de não reprimirem prudentemente os desordenados luxos e apetites profanos de suas famílias, instruindo-as em bons costumes e tementes ao Altíssimo com seu exemplo e aplicação, resultando do contrá-rio muitas desordens, e finalmente virem a padecer no Inferno os referidos tormentos. E assim estavam em porfias, elas dizendo: “Você não me dava o que lhe pedia nem obedecia aos meus preceitos, e menos se conformava com a minha vontade!”; eles dizendo: “E você, com as suas perseguições, agonias e gritarias, teimas, acintes e rebenditas, me movia a fazer o que não devia, e se não conformava com a minha vontade isto se permitisse!”

E nestes “dize tu”, “direi eu”, se travaram, de sorte que saltaram às punhadas entre todos, fazendo tal motim e alarido, que aturdiam o Inferno, as mu-lheres ... umas, assombradas, dizendo em gritos: “Ai, que me arranhou a cabeça este inimigo!”, “Ai, que me matou este ladrão!” E, enquanto se estavam espedaçando, feitos uma 263

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brasa, os demónios que lhes assistiam lhes repetiam este quarteto:

Estes desconformes* casados em depravadas vontades o merecido padecem de suas conformidades**.

Avistada*** esta representação, olhou Peralta para um lado e viu uma disformidável porta negra, a qual, abrindo-se de repente com grande estrondo, se via dentro um intenso fogo em profunda concavidade e infinitas pessoas eclesiásticas, divididas em congressos, todos com seus superiores e prelados maiores, acompanhados de muitas legiões de demónios que os acometiam ferozmente com execrandos tormentos, e tão cruéis, que, atemorizado, disse Peralta ao seu Diabinho que eram as mais insofríveis penas que tinha visto, e a sua maior admiração era executarem-se em pessoas daquela qualidade e de diferente jurisdição. Ao que lhe respondeu o Diabinho: Pois que cuidas? O serem grandes indagadores das vidas alheias e as suas deslealdades, ambições, mancebias, tratos e comércios ilícitos, e a falta de pasto espiritual lhes move aqueles rigorosos tormentos para toda a eternidade; e, para se dizer tudo em

* ∗ Desconformes − Em Acad., conformes.

∗∗ Conformidades − Em Arq., desconformidades. ∗∗∗ Avistada − O que se lê daqui até o parágrafo que

começa por “ Acabada esta representação”, não existe em Arq.

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OBRAS COMPLETAS DE A. JOSÉ DA SILVA uma palavra, é a pior gente que há no Mundo, excepto alguns bons.

Acabada esta representação, viu Peralta em outra parte, acompanhado de muitos homens cujos trajes os acreditavam por grandes sujeitos, aos quais seguia infinito número de demónios que os martirizavam com rigorosíssimos tormentos e lhes diziam de palavra, como por injúria:

Pagais*, desagradecidos, no eterno fogo infernal, pagar na vida tão mal benefícios recebidos.

Lastimado de ver tão rigorosos tormentos, perguntou Peralta ao Diabinho que rei era aquele e que pessoas eram aquelas que o acompanhavam.

Ele lhe respondeu que eram os ingratos, e que o rei era Saul, que, depois de ser ingrato a quem da baixeza da sua humildade o levantou à dignidade real, o foi também a David, querendo-lhe tirar a vida por galardão de o livrar do gigante Goliat** e lhe lançar o demónio do corpo com a suavidade de seu cântico e virtude das vozes da sua harpa; e que os que o acompanhavam eram senhores que o imitaram em semelhante vício.

* Pagais − No Arq., Penais. ** Goliat (em Acad., Goliath: em Arq., Golias) − Gigante morto por David, na altura em que o rei Saul se achava em guerra com os Filisteus. Desta vitória de David, em combate singular com o temeroso gigante, provieram os ciúmes de Saul contra o herói. 265

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Por diante fora Peralta com as representações das visões em que estava engolfado e acabara nelas de revolver o Inferno, se o Diabinho da Mão Furada, entrando pela janela do aposento, lho não impedira, dizendo-lhe: Não durmas mais, companheiro, porque é tarde e te poderá fazer mal. Acordou Peralta sobressaltadíssimo e disse a seu familiar endiabrado: _ Ai, companheiro! Deixa-me, que me tens morto; porque com a comunicação da tua pessoa e presença de teu espírito estou admirado, de ontem para cá. Acabo agora de umas visíveis representações, acompanhado de ti no Inferno, e estou fora de mim, mais morto que vivo. E, quando isto foram horrendíssimas representações visíveis, que fará a realidade do seu espectáculo? Deixa-te desses assombros − respondeu o Diabinho −, que isso são ilusões da fantasia; que o Inferno não se vê senão quando se padece; porque, se o Céu permitira o contrário, ninguém se conde-naria, e estiveram os demónios ociosos. Para te livrar dessa imaginação, quero-te divertir com o que passei esta tarde, depois que me apartei de ti. Primeiramente me fui aos estudos e sobre certos argumentos fulminei tais dissenções, que sobre elas se altercaram, de sorte que estiveram a pique de se matarem todos, se os religiosos da Companhia não acudiram com justiça a atalhar a pendência, depois de bem escalavrados. Fiz jurar falso a algumas pessoas, por limitados interesses; levantar a outros falsos testemunhos; e tais alvoroços em toda a cidade, que bem diziam todos: Anda o Diabo solto! _ Logo fui a certo convento de religiosas fomentar

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discórdias que entre elas havia sobre a eleição de nova abadessa. Estavam elas divididas em dous ranchos,* em cada um deles sua cabeça, que motivava as dissenções, uma delas inclinada a diferente sujeito com tal paixão, que diziam umas às outras do seu séquito: − “Manas, Fulana se não for abadessa, não seremos nós filhas de nossos pais!”_− “Pois isso − respondiam outras − pode deixar de ser, tendo da nossa parte tantos votos? Pelo dia de Deus, que, quando sucedesse nos faltassem, que seria neste convento outra como a de Roncesvales!” – “Eu − disse outra − lanço muito bem as favas aos pauzinhos de Santo António, e sempre me saía a sorte em favor do nosso intento”. _− “Pois eu, mana, − disse outra − este S. João passado lancei por ela três alcachofras e todas me saíram floridas, de sorte que não havia mais que ver!” – “Eu − disse outra − estive no nosso miradouro com uma bochecha de água na boca até dar meia-noite e o primeiro nome que ouvi foi o da nossa abadessa”. – “Não me fio dessas cousas − disse a cabeça do bando −, porque todas são superstições e disparates sem fundamento algum, e catòlicamente se não devem crer, antes julgo por grande imprudência e ofensa a Deus o exercitá-las”. Da parte do outro rancho contrário dizia uma às companheiras:_− “Não há dúvida que a nossa parte há-de prevalecer, porque eu mandei chamar a certa beatinha, minha

* Ranchos − Dois ranchos figuram também na “ópera” – “Guerras do Alecrim e Mangerona” − (Parte I, cena II). ** Aos − Em Acad., e os.

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conhecida, e adiante de mim fez andar a peneira como uma desatinada. E um devoto meu me avisou de encomendar o negócio a certo matemático judiciário, e que ele levantara figura sobre a nossa pretensão e lhe mandara dizer que não tinha dúvida”. – “Não durmamos nós sobre essas tentações − disse outra mais anciana −, que destas cousas não faço caso, nem cabedal pelo que têm de enganosas, que os contingentes futuros só Deus os pode saber”. “E falou verdade, que nós outros não sabemos mais que conjurá-los incertamente”. – “Ai, mana, pois dizei-me: os astrólogos não fazem os repertórios, em que adivinham os tempos?” – “E quando − replicou a anciã − falaram eles verdade, se não foi acaso? Não vedes vós que, quando dizem ‘há-de chover’, faz bom tempo, e, pelo contrário, quando dizem ‘não há-de chover’, então chovem dilúvios de água?! E, por esta razão, tomam sempre salva de suas mentiras, dizendo: Deus super omnia!” “Pois eu tenho feito devoção − disse outra− para esta noite tirar uma alma, que me há-de vir falar e dizer-me toda a verdade”. – “Também disso me rio eu − respondeu a Veterana −, porque a palavra de Deus nos ensina que a que desta vida vai não torna a ela” − Disse a que falava: − “Quando a dificuldade que digo se vença, tereis vós ânimo para lhe falar?” – “E como − respondeu ela −, que não há mulher deliberada e apetitosa que se intimide de nada!” Nestas práticas as deixei; e sou o espírito que esta noite, pelas onze horas, lhe hei-de ir falar, que ela cuida há-de ser alma passada desta vida; porque as devoções que elas para as tirarem fazem têm pacto secreto connosco. O pior é que muitas vezes por esta via nos

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invocam; e, quando lhes aparecemos e falamos, não têm valor para nos ouvir e nos lançam de si, assombradas com palavras a que não podemos resistir; mas elas o pagam com o que lhes custa o sobressalto. Admirado estava Peralta de ouvir o Diabinho, e quanto ele mais lhe manifestava seus poderes e suas obras, mais o atemorizava sua companhia, e desejava livrar-se dela. Neste tempo, subia ao aposento, onde estava, uma fregona* muito bem parecida, que na pousada havia, chamada Ângela Pedrosa, que, por ter ouvido pela manhã contar o dinheiro a Peralta, se vinha a ele, como gato a bofes, confiada na sua agradável presença. Disse a Peralta que vinha saber o que queria se lhe ordenasse para a ceia; o qual respondeu: Senhora Ângela, se há lombo de porco, mande-me assar um pedaço. Ao que ela disse: Eu mesma o assarei e o trarei a vossa mercê, quando lhe vier pôr a mesa, porque desejo muito agradar-lhe e servi-lo. Peralta, por não deixar de falar ao galanteio de soldado, lhe disse: Não errou quem lhe pôs a vossa mercê o nome que tem, pois a acredita com a sua gentileza.

Prouvera a Deus, Senhor − respondeu Ân-gela −, que eu devera menos à natureza, porque ela me tem desterrada da minha pátria e feito grandes males. Naci em Arrifana de Sousa, filha de

* Fregona. − Vide Prefácio, pág. 216.

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lavradores honrados; e porque, estando uma noite falando a um mancebo que me pretendia para esposa, se veio a encontrar com ele outro que também me pretendia e, movido de ciúmes, lhe tirou a vida, − foi-me forçoso ausentar-me aquela noite, com temor da justiça, e deixar os pais e pátria. E, por não molestar a vossa mercê, lhe não refiro os sucessos que tive no caminho até chegar a esta pousada, onde haverá um ano que assisto servindo. Neste passo, deu o Diabinho uma risada, que até ali estava calado; e a dita Ângela lhe disse: De que se ri vossa mercê, senhor fidalgo? Respondeu o Diabinho: Das patranhas que vossa mercê nos conta, não sabendo que a conheço eu melhor que as minhas mãos! Vossa mercê não é filha de um remendão, chamado João Fernandes Pedroso? E, por essa boa cara que a natureza lhe deu, não era ama de um abade, onde, por sua fecundidade, deu tal escândalo, que quis o Ordinário* evitá-lo, pondo a vossa mercê na clausura de Terena**, e vossa mercê, por evitar este recolhimento, não tomou as de vila-diogo com um soldado que vinha do Porto, a que serviu, na jornada, de companheira de cama e mesa, até chegar a esta pousada, onde a deixou e passou a Lisboa? Pois, se isto é assim, como vossa mercê muito bem sabe, porque nos está encampando, vendendo-se por outra que não é? Cuida que mamamos no dedo e que não sabemos quantos são cinco?

* Ordinário − autoridade eclesiástica. ** Terena − freguesia pertencente a Alandroal, distrito de Évora.

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Assombrada ficou Ângela de ouvir a relação verdadeira do Diabinho, fazendo-se muito vermelha e, de envergonhada, não soube outra cousa que lhe responder mais que só: Vossa mercê é o Diabo, pois também sabe das vidas alheias! _ Zombando se dizem verdades! − disse o Diabinho −. Mas nem pelo que tenho dito vossa mercê, Senhora-Ângela, deve perder com o Senhor Peralta, porque a graça desses olhos e a perfeição dessa cara com a disposição desse corpo se faz credora dos maiores empregos. O certo é que pouco fizera o Senhor Peralta em se obrigar de vossa mercê e levá-la em sua companhia até Lisboa, onde vossa mercê, pelo seu bom parecer, poderá ter melhor ventura. Bem entendeu Peralta os enganos e gabos de Ângela e o arbítrio que o Diabo lhe dava de a levar consigo, em ordem a movê-lo ao pecado da sensualidade, com o trato e comunicação de Ângela; mas ele, escarmentado das visões infernais e do que vira obrar ao Diabinho, tinha outros pensamentos dirigidos a melhor fim; dissimulando o luciferino intento, disse a Ângela, dando-lhe cinco reales para ajuda de uns sapatos, que fosse dar ordem à ceia e que mais de vagar falariam; ao que ela logo obedeceu, fazendo sua mesura de mantéu ao chão, com esperança de conseguir aquele ganho. O Diabinho ficou contentíssimo, parecendo-lhe que Peralta se afeiçoara a Ângela e, assim como* ela se retirou, lhe disse: Ora já te fica esta noite com que te divertires, porque esta moça parece que te roubou os afectos!

* Assim como − logo que. 271

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Estou tão sobressaltado − respondeu Peralta −, depois que se me representaram os horrores do Inferno, que as delícias da vida me aborrecem; e assim, pouco tem Ângela que esperar de mim e muito menos as tuas persuasões, à vista deste desengano. Não te tinha por tão ignorante − replicou o Diabinho −, que cresses em sonhos! Bem sei − tornou Peralta − que não é lícito crer neles; mas os que representam o mal, para se temer e fugir deles, não são sonhos: são avisos do Céu. Se queres que sejamos amigos, há-de ser com condição que não me hás-de persuadir a cousa que seja contra o meu Criador. Companheiro − disse o Diabinho −, eu não posso deixar, por mais que teu amigo seja, de usar da natureza que professo em te armar laços, em que caem os fracos e ignorantes. Vence-os tu com prudência, que para fugir ao mau e seguir o bom foste criado com livre alvedrio; e, quanto mais venceres os estímulos de minhas tentações, terás maiores merecimentos. Confesso que assim é − tornou Peralta−; mas também é temeridade fiar semelhantes resistências da fraqueza humana, que quem não teme os perigos perece neles. Pelo que te peço, como companheiro, que, enquanto o formos, te queiras moderar comigo nas tentações.

O Diabinho, ainda que dissimuladamente, disse que assim o faria; e, parecendo-lhe que da inclinação de Ângela resultaria o mau fim que esperava, se despediu de Peralta, dizendo-lhe que tinha certo negócio que fazer aquela noite, e se ficou invisível na pousada, fazendo das suas.

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Saiu* Ângela com a ceia ao cubículo de Peralta, com sua demão** na cara, toalhinha e coifa lavada e tão donairosa, que a quem fosse menos continente que Peralta estava dizendo: “Comei-me! Comei- me!” − Ao qual disse ela: Aqui tem vossa mercê a ceia, e a mim para o servir no que for de seu gosto! E, perguntando-lhe pelo companheiro, lhe respondeu Peralta que era ido fora; que se recolhesse e deixasse a ceia; que outra noite cearia com ele e lhe pagaria com igual vontade à que lhe mostrava; que aquela noite não era possível, por se achar indisposto. Ângela, com mágoa de seu coração por se lhe malograr o trabalho de seu enfeite, se recolheu, significando a Peralta o interior sentimento de seu achaque. Ida ela, fechou Peralta a porta do aposento e, depois de cear, se lançou a dormir. Já tinha Peralta passado um breve sono, e seria perto das onze horas da noite, quando, depois de todos recolhidos Ângela se deitou na cama, lutando com o sentimento do desprezo de Peralta, julgando por grande ofensa de sua gentileza, que mais a molestava que a mágoa da perda pecuniária.

* Saiu − Em Acad. e Arq., subiu, verbo aliás

empregado no manuscrito da B. N., em passo idêntico do folheto II (Pág. 269, linha 10).

** Demão − pintura, para enfeite. 273

FOLHETO III

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Estando Ângela na cama, inquieta desta consideração, que lhe tirava o sono, depois de apagada a luz ouviu uma voz que lhe dizia, muito de manso: “Dormes, Ângela?” −. Ela, imaginando que era o dono da pousada, que às vezes costumava diver-tir-se com ela, respondeu: _ Não durmo, porque me deram umas ânsias que me têm maltratado. E, por isso, peço a vossa mercê que por ora se recolha e me deixe. Tornou a voz a dizer-lhe: _ Conheces-me, Ângela? Quem pode ser senão meu amo? − tornou ela. Quem me costuma fazer estes favores? Deixe-os, por vida sua, para outra ocasião em que lhos mais agradeça, que poderá acordar a Senhora Ama e haver alguma revolta nesta casa. Não sou quem cuidas, Ângela − respondeu a voz −, senão quem esta noite foste buscar com a ceia, e te mandou sem lograr tua beleza; e que depois considerando, não pude sossegar sem vir buscar-te para recuperar o que perdi. Pelo que te rogo venhas a meu aposento. Vossa mercê é o Senhor Peralta − referiu Ângela − e soube onde eu dormia? Quem havia de adivinhar este bem? Recolha-se vossa mercê secretamente, que eu o sigo. Com isto se recolheu a voz; e Ângela, entendendo que era Peralta, cingindo o mantéu o foi buscar ao aposento, do qual achando a porta cerrada, pondo-lhe a mão se abriu; e, entrando dentro, por ter ainda a luz acesa, viu que Peralta estava dormindo a maior levar, de que ficou admirada pelo pouco tempo que ela se deteve. E, imaginando que o sono devia ser fingido, por ver o que ele fazia sem

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dizer nada tirou o mantéu e se meteu na cama, esperando um pouco. Vendo que não acordava e que o sono parecia verdadeiro, fingidamente começou a tossir e a inquietar-se na cama, a cujo movimento acordou Peralta; e, admirado de a ver consigo, havendo fechado a porta do aposento, lhe disse: Que soltura é esta, Senhora Ângela? Quem lhe deu confiança para me vir inquietar, abrindo a porta do cubículo, que eu deixei fechada? Parecia a Ângela que aquilo era graça, pelo que tinha passado; e, sem responder, se ria e se chegava para ele. Porém, vendo que Peralta, indignado, se descompunha e a lançava com empuxões fora da cama e da casa, lhe respondeu: Sossegue-se vossa mercê, pois tem a culpa de eu vir aqui, pois me foi chamar à minha cama, e eu, por lhe obedecer e dar gosto, o vim buscar; mas, se vossa mercê assim o ordenou por me ofender mais com este desprezo, eu me vou logo. Porém, advirto-lhe que, ainda que sou mulher e assista nesta pousada, não falta quem acuda aos meus agravos, que não carece esta terra de estudantes que pagam as mulheres com executar vinganças em quem as ofende. Caiu então Peralta, pelo que Ângela lhe disse da chamada e de achar a porta do aposento aberta, que tudo fora obra do Diabinho, pelo tentar com o pecado da sensualidade; e, tornando às boas com Ângela, lhe disse: Sossegue vossa mercê, que, pelo que tenho entendido, nem eu nem vossa mercê temos culpa deste acidente, porque sem dúvida foi travessura de meu companheiro, que é um grande mágico e

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se faz invisível cada vez que quer; e por isso julgo ele iria chamar a vossa mercê, em meu nome, e abrir-lhe a porta do aposento, que eu tinha fechada; porque ignora um grande perigo em que me vi na guerra, de que Deus me livrou, e lhe fiz voto de castidade conjugal. Que, se este respeito não fora, agradecera eu, como bom galã, o favor que vossa mercê me faz em me buscar; mas, já que pelo respeito que digo não pode ser, leve vossa mercê este par de cruzados para umas meias e vá descansar na sua cama, por que não perigue, à vista da sua gentileza, a obrigação do meu voto, que se não pode fiar na resistência da debilidade humana. Ângela, fazendo grande cortesia e dando a Peralta grande agradecimento, assim do donativo como da satisfação que lhe dera, se foi menos queixosa e satisfeita do que tinha ido buscar. Desvelado passou Peralta o restante da noite, considerando o perigo em que andava com tal companheiro e os laços que lhe armava para cair neles; e assim, pedia de todo o coração a Deus lhe deparasse meio para poder deixar tal companhia. Amanheceu; e, acordando de um breve sono, viu que o Diabinho, muito melancolizado, estava sentado à sua cabeceira; e, ainda que Peralta atribuiu a tristeza ao sentimento de não ter caído na tentação que Ângela lhe ofereceu, dissimulando o que con-jecturava, lhe disse: Que tendes, companheiro, que tão triste vos vejo? Devia não vos suceder bem com a freira, a quem fostes falar! É verdade − respondeu o Diabinho −, porque, em eu aparecendo e lhe falando, foram tantos 276

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os Verbum caro* e os sinais da cruz e os gritos articulando o sagrado nome, a que eu não posso resistir, que sùbitamente desapareci e se encheu a casa de religiosas que estavam de vigia. E, enfim, eu me vim, e ela ficou com um mortal desmaio de assombramento.

Esse fruto − tornou Peralta − tiram os ignorantes que, cegos de apetites, se lhes introduz lhes hão-de vir falar às almas passadas desta vida; e, porque o dia está formoso, eu me visto à pressa e daremos uma volta pela cidade e iremos dormir a Montemor.**

Seja em boa hora! − respondeu o Diabinho.

E Peralta se vestiu, almoçou, tomou o seu alforge, pagou a pousada e se foi embora.

Chegaram à praça*** e, ouvindo Peralta tocar à missa na igreja de Santo António, disse a seu familiar endiabrado que o esperasse à fonte, que ele voltava logo.

Faze o que quiseres − respondeu o Diabinho −, que não quero em nada encontrar o teu gosto, por que não cuides que não sou teu amigo; que o que meu for à mão me há-de vir. Entrou Peralta no templo a ouvir a missa, que * Verbum caro (em Acad., Verbum caros; em Arq, Verbuns carus) - Evangelho de S. João, 1-14: “Et verbum caro factum est ... “-. ** Montemor − Montemor-o-Novo, distrito de Évora. *** Praça − Praça do Giraldo, onde existe a igreja de Santo Antão, defronte da qual há um chafariz a que o autor chama fonte.

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ouvi-la todos os dias é acção de grande merecimento, e o Diabinho o ficou esperando na fonte, onde foram tantas as cizânias que arguiu entre todas as pessoas que chegaram a tomar água, que não ficaram nenhumas que não andassem às bofetadas e quebrassem os potes, sobre qual havia de encher primeiro; porque não pode haver paz onde o Demónio assiste. Saiu Peralta da igreja e, juntando-se com o Diabinho, foram para diante, tempo em que se encontraram com um alcaide e seu escrivão, que levavam um homem preso, o qual se ia queixando que o prendiam pelo que não devia e tinha pago, sendo um pobre hortelão, velho e com filhos; ao que respondeu a parte, que com eles vinha, que sim, devia, mas que não queria pagar. Lastimado Peralta de ouvir o preso, chegou ao alcaide e lhe pediu que em cortesia lhe quisesse dizer a quantia por que aquele homem ia preso. Respondeu o alcaide que por dois mil reis e cinco tostões de diligência. Se não é mais que por isso − disse Peralta −, solte-o vossa mercê, que aqui darei logo o dinheiro. Ao que acudiu o Diabinho: Não faças tal. Peralta lhe disse: Não me deste tu palavra de que me não havias de impedir as boas obras que quisesse fazer? Sim, dei − respondeu o Diabinho −; mas esta, sem tu gastares dinheiro a quero eu fazer por amor de ti.

E, virando-se para a parte, lhe disse: Não sei, Senhor, como tendes tão pouca conciência, que prendeis este pobre homem pelo que vos tem pago!

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Teimou a parte que tal não havia, e o Diabinho prosseguiu: Não vos lembra que tal dia vos deu dezasseis tostões, uma pataca e quatro vinténs, que tudo faz dois mil réis que vos devia, e vós lhe destes, por sinal, nas costas de uma carta, quitação deles?! Pois, se isto é assim, como quereis agora, por este pobre homem perder a quitação que eu achei, torná-lo a cobrar dele? Como os sinais que o Diabinho dava eram certos, não soube o credor outra resposta que dar, mais que dizer: Senhores, se tal é, levem-me todos os diabos! Com que o Diabinho, muito contente, lhe respondeu que a seu tempo lhe pediria cumprimento daquela palavra. E rogou ao alcaide quisesse esperar um pouco, que ele em um instante ia buscar a quitação, e que no entanto ali ficava seu companheiro. Finalmente conveio o alcaide na espera, e Peralta bem entendeu que o lanço daquela boa obra do Diabinho fora só dirigido à tentação em que o credor tinha caído, dando-se falsamente a todos os diabos; o qual, tanto que o Diabinho partiu a buscar a quitação, reconhecendo serem verdadeiros os sinais dela e que não podia deixar de a trazer por não ficar convencida sua maldade com a vista da quitação, disse ao alcaide que soltasse o preso, que ele não queria já nada dele. Justo é − disse o escrivão −, mouro, o que não podes haver, dá-lo por tua alma. E, por ter que escrever, prosseguiu que aquela desistência se havia de fazer por termo que ele, credor, havia de assinar, o qual respondeu que fizesse embora. E, feita a diligência, pediram os

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oficiais a Peralta a paga dela, e ele respondeu que a graça que suas mercês lhe fizeram em deter tão injusta execução pagaria ele, mas que a diligência dela pagasse a parte, em pena de pedir o que se lhe não devia, como se fazia certo pela quitação que seu companheiro tinha ido buscar.

Não soou isto mal aos oficiais da diligência e logo disseram ao credor, por levarem dinheiro a ambas as partes: Este fidalgo tem muita razão. Vossa mercê pague e vá-se logo embora, porque, se chegar a quitação, havemos de levar a vossa mercê com ela diante do juiz e há-de ser condenado no dobro do que pedia sem lhe dever. A isto respondeu o credor: Ainda que a quitação seja falsa, contudo não me quero sujeitar a este ameaço.

Chamou de parte os oficiais, untou o carro, andaram as rodas e se foi embora.

Depois de ido, Peralta deu aos esbirros um cruzado para doces, com que também se despediram, muito contentes, e ficou o preso com Peralta, dando-lhe os devidos agradecimentos do bem que lhe fizera. Neste tempo, chegou o Diabinho com a quitação e mostrou sentir muito ter-se ausentado o credor e justiça, porque determinava fazer no negócio uma embrulhada das suas, que nunca o Diabo faz bem, sem esperança de haver mal. E assim o deve entender todo o cristão, para se não fiar de seus enganos. O pobre preso, desejoso de gratificar o benefício, dando-lhe o Diabo a quitação lhe pediu muito que quisessem ir à sua casa almoçar uma franga gorda que sua mulher tinha; mas Peralta e o Diabinho

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lhe agradeceram a boa vontade. Recusando-lhe a oferta, se despediu deles, dando-Ihes infinitas graças pelo bem que lhe fizeram, que atribuía a particular mercê do Céu. Despedido o preso, viu Peralta sairem de Santo Antão* quatro beatas com suas toalhas largas, rosários nas mãos, as caras torpes, macilentas e fracas, com os olhos pregados no chão, passando praça de grandes devotas o edificado da modéstia que ostentavam. Perguntou Peralta ao Diabinho quem eram. Ele lhe respondeu que eram as quatro bruxas que vira entrar pela janela do aposento onde estava, e que com aquela aparência de virtude enganavam o mundo e desmentiam suas maldades, que tais são os enganos do mundo. Admirado Peralta de tal ouvir, logo quisera ir dar conta ao Santo Ofício;** mas, temendo o Diabinho, o reservou para melhor ocasião. Tendo já partido de Évora para Montemor, o Diabinho viu estarem em uma casa jogando os dados e, por fazer das suas, disse a Peralta que, pois era soldado, entrasse a fazer quatro paradas, que poderia ser que ganhasse para ajuda dos gastos do caminho. Peralta se escusava, dizendo que era tarde para se deterem mais, e o Diabinho replicou que não era. E assim, por não desgostá-lo, entrou * Santo Antão − a igreja atrás designada por Santo António.

** Dar conta ao Santo Ofício − delatar o caso ao tribunal da Inquisição.

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Peralta na casa do jogo, onde a todas as paradas que fez lançaram azares, ele às que lhe fizeram, sortes, porque parece que o mesmo Diabinho invisível lançava os dados. Os que perdiam davam as mãos, com que lançavam os azares, aos diabos; e outros, jurando e blasfemando, e o Diabinho regalando-se de ouvi-los; mas Peralta, fazendo escrúpulo de ganhar com tanta vantagem e de ser causa de ouvir tantos juramentos, entendendo que o Diabinho só para motivá-los lhe fazia ganhar, se contentou com seis moedas e, dando barato a todos os mirones, saiu pela porta fora. Começaram sua jornada e, em breve espaço, sem saber como, nem cansar no caminho, se achou Peralta com seu companheiro no Rossio de Montemor, onde tomaram pousada aquela noite. Depois de Peralta cear e se deitar na cama, começou o Diabinho a fazer das suas e arguiu tais diferenças entre o hóspede e a hóspeda, que se fundia a casa. O motivo foi dizer o hóspede à sua mulher que fizera as postas de carne muito grandes e que medira o vinho sem o rebaptizar; ao que ela respondia em segredo: Pois, traidor, não bastava que a carne de que fiz as postas não fosse de carneiro ou bode, nem vaca, nem porco, cabra ou ovelha, e que te não custasse nenhum dinheiro, senão ainda as havia de fazer menos da marca, − nem que tivesses já feito o vinho cristão, para que eu o não baptizasse?! Pois, infame, − respondia o marido − se havias de ser tão escrupulosa, fizeras-te ermitõa,* e não estalajadeira!

* Ermitõa − ermitoa.

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Sobre esta disputa houveram* várias razões, em que pelejando as comadres se descobrem as verdades. Houve tal “aqui-de-el-rei”, que, se não acudiram** os hóspedes a aplacar o negócio, sem dúvida a estalajadeira, que era teimosa, pagara sem escrúpulo com a vida, porque o Diabinho tinha enfurecido de maneira o marido, que não reparava nada em lhe tirar a vida. Não se contentou só com a referida revolta; mas, sendo já passada grande parte da noite, estando todos quietos repousando, se foi à estrebaria e inquietou de sorte as cavalgaduras, que se desfaziam todas em couces, com tal estrondo, que parecia se vinham as casas a baixo. Acudiram os almocreves, cada um às suas, e sobre dizerem uns que as cavalgaduras dos outros tinham a culpa, por se soltarem e irem comer a cevada das outras, que por isso os donos as deixavam mal presas, e outros com grandes juramentos negando o facto, atribuindo-o aos que lho imputavam, − houve tal barulho, que se houveram de matar todos às facadas, se gritando o hóspede – “Aqui de El-reil” − não acudira a justiça, que andava de ronda, a metê-los em paz. Sossegado o arruído, que Peralta ouviu por estar acordado, a que não acudiu como soldado por entender que era obra do seu companheiro, querendo já amanhecer subiu o Diabinho ao aposento de seu amigo e lhe disse: Veste-te, companheiro, à pressa, e vamos daqui, que esta gente está de má catadura; não te suceda com ela alguma cousa.

* Houveram − tiveram. ** Não acudiram − não tivessem acudido.

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Vestiu-se Peralta e, querendo perguntar pelo estalajadeiro para lhe pagar a pousada, lhe disse o Diabinho que não fizesse tal, porque o hóspede era o maior pirata do mundo, e que assim, quem furta a ladrão ganha cem anos de perdão; que se fossem logo e que ele abriria a porta secretamente e sairiam sem serem sentidos. Obedeceu Peralta, ainda que contra sua vontade, e foram-se embora. Quando a manhã rompia, tinham já passado o rio de Montemor;* e, como Peralta vinha falto de sono, pelo haver perdido com a inquietação da noite passada, pediu ao Diabinho o deixasse repousar um bocado ao som da corrente de tão famoso rio; no que o Diabinho veio de boa vontade e, enquanto Peralta dormiu um breve sono, deu volta por alguns moinhos, a induzir os moleiros para que duplicassem as maquias. Já era mais de uma hora de sol, quando, acordando Peralta e vendo diante de si o familiar endiabrado, lhe disse: Que formoso rio é este, e que cerrado de árvores e pomares!

O Diabinho lhe respondeu: Ora, já que tão bem te parece, te quero mostrar nele, como em espelho, o mais famoso edifício que viste, nem hás-de ver em tua vida, desde o Norte até o Sul, porque com sua grandeza não pode competir o da máquina que atalhou a confusão das línguas. As pirâmides do Egipto, o colosso de Rodes, o artifício de Corinto foram imperfeitas sombras da sua maravilhosa arquitectura; porque

* O rio de Montemor − o Almansor.

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as colunas são de alabastro,* os frisos e capitéis de finíssimo jaspe, as pirâmides de diamantes, e as portas de cheiroso cedro, chapeadas de ouro. Este se divide em sete quartos, com uma só porta, por onde se entra em uma espaçosa praça, ou pátio, onde têm suas serventias todos os sete quartos, cujas paredes têm virtude para deixar penetrar tudo quanto há dentro neles, que é a maior maravilha. E quem foi esse edificador do tal palácio? perguntou Peralta. Respondeu o Diabinho que o príncipe das trevas, senhor de infinitas riquezas, porque só ele pudera dar fim a tão custosa obra, para gozá-la os que o seguem, que ele com generosidade suborna e lisonjeia. E, porque sei quanto te hás-de admirar de ver tal edifício, to não quero dilatar. Folgarei muito! – tornou Peralta. E o Diabinho prosseguiu: Pois põe os olhos nas águas desse pego. E assim o fez Peralta, e logo nelas se lhe representou que via um suntuosíssimo palácio, cuja fachada, de mármores e jaspe, podia ser oitava maravilha do mundo. Pelo que disse ao Diabinho: Com razão me encareceste tanto a arquitectura de tão soberano edifício. Mas que palácio é este? Não divisas − respondeu o Diabinho − umas letras de ouro que estão por cima do friso do portal?

* As colunas são de alabastro, etc. − Compare-se com Cena II da Parte II do “Labirinto de Creta”:− “Que admirável edifício! Que variedade de arquitecturas! Que pórticos! Que mármores! Que colunas!”

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Sim, diviso! − tornou Peralta. Pois eles to dirão − replicou o Diabinho. E continha o que leu o seguinte:

Fabricar o rei do Averno mandou estes edifícios, para morada dos vícios e noviciado do Inferno.

Das palavras daquele epigrama − disse o Diabinho − podes inferir do que serve ao Senhor Lúcifer tão suntuoso palácio; e, para melhor perceberes, atende ao que nele se te vai representando. Peralta, aplicando os olhos, viu que pela famosa porta entravam para um espaçoso pátio infinito número de gentes de todo o género e estado, e que nele se dividiam para entrar por diferentes portas de vários quartos que estavam no mesmo edifício. Para o primeiro quarto,* que estava à mão direita, considerou que alguns sujeitos à obra, dando com seus semblantes escritos de vida, e com tanta arrogância, que por decoro do lugar em que estavam se não matavam uns aos outros sobre a preferência da entrada; e, depois de entrados, se representou a Peralta que pararam em um aposento ricamente adereçado, no meio do qual estava um trono

*Para o primeiro quarto − O começo deste parágrafo, em Acad., é: - “No primeiro quarto, que estava à mão direita, considerou que estavam alguns sujeitos dando em seus ,semblantes escritos de vida ... “; e em Arq.:−“No primeiro quarto, que ficava à mão direita, observou que estavam alguns sujeitos dando em seus semblantes espíritos de vida ...”.

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de vidro e sobre ele colocada uma dama custosamente vestida e com asas unidas a seus ombros, com coroa, e a seus pés ajoelhada uma formosa donzela pobremente adereçada, a quem a entronizada estava desprezando e lançando de si com grande ira, por mais que a donzela humilhada lhe pedia que tal não fizesse, a quem, fazendo-se surda a seu rogo, dizia:

Não me venhas fazer guerra. De ti à minha presença há tão grande diferença como do Céu para a Terra.

Por te fugir solicito as asas de que me esmalto, com que talvez de mais alto me despenho e precipito.

A estas razões replicava, com grande submissão, a mal vestida beleza o seguinte:

Vou-me, pois que nada val meu rogo; mas ... ai de ti, que em te apartares de mi deixas teu bem por teu mal! E assim, * que te aviso, digo que o teu trono de cristal de pedra terá fatal, feito em pedaços, castigo.

* E assim − Em Acad. e Arq., E assim te aviso e digo. 287

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As asas com que que te ensaias a enlumbrar* teu presumir servem só de te subir donde de mais alto caias.

Com isto se despejou o aposento a tão formosa dama, como humildemente vestida, e a entronizada se ocupou em fazer grandes carícias a seus sequazes e em lhes mandar repartir espaçosos e soberanos gasalhados, dignos de sua altiveza.** Peralta estava confundidíssimo, sem saber dar sentido ao enigmático daquela representação e das figuras dela; e, por se livrar desta dúvida, pediu ao Diabinho lha declarasse. O qual lhe respondeu que a dama que estava colocada com asas sobre o trono de vidro era a Soberba, primeiro pecado dos sete mortais, e que mais parte trazia ao noviciado do Inferno. As asas que tinha nos ombros, pegadas com cera, a que fiava o voo da sua altiva presunção, eram as que, derretidas, a despenhavam do auge da maior altura, a que aspirava; e que por este respeito estava colocada sobre aquele trono cristalino, exposto a qualquer golpe. Aquela pobre e formosa donzela que lhe estava rogando que a não lançasse de si era a Humildade, antípoda sua; e que o número dos arrogantes que a buscavam era dos soberbos, seus sequazes, que por seu meio vinham acabar no noviciado do Inferno, onde haviam de professar para sempre, enganados

* Enlumbrar − Em Acad., enxumbrar (= enxam-brar − enxugar); em Arq . alumbrar (alumiar). ** Altiveza − altivez.

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das delícias que no dito noviciado se lhe ofereciam, porque nele não costuma Lúcifer atemorizar com asperezas, senão lisonjear com regalos, ao contrário dos santos noviciados, em que com elas se examina e qualifica a virtude, merecedora da divina profissão.

Ora digo − respondeu Peralta − que bem parece não perdeste com a graça a ciência de anjo, pois tão artificiosamente sabes manifestar as circunstâncias das cousas! Agora, admiro as propriedades das figuras e entendo o equívoco dos epigramas delas; mas também me desconsola muito o desacerto de tão cega e enganada gente. Por diante quisera ir Peralta neste discurso, se lhe não roubara o sentido a vista de outro objecto da representação da gente que entrava pela porta do segundo quarto, muito recatada e com o olho sobre o ombro, vigiando se vinha alguém pedir-lhe alguma cousa, porque dos pobres que os vinham seguindo pedindo esmola não faziam caso e, por se livrarem deles, entravam depressa e fechavam a porta. Mas por um corredor descoberto viu Peralta que paravam em uma quadra ricamente entapeçada* e fornida de inestimáveis peças. Aos cantos da dita quadra, muitos sacos de dinheiro em ouro e prata, por ser infernal erário do tesouro de tão maldita gente. No meio do aposento estava um trono guarnecido de pérolas e pedras preciosas e sobre ele uma dama mais custosamente vestida que formosa, com mais olhos que Argos, vigiando as riquezas da

* Entapeçada − entapizada, entapetada. − Neste passo, há grande corte em Arq ..

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sala, cujas chaves só fiava de si própria, pelo que umas tinha nas mãos, muito apertadas, e outras pendentes de um cordão de seda e ouro que lhe decia da cintura. Esta fazia grandes carícias aos que vinham entrando a reverenciá-la e a empre-gar-se no gosto da contemplação daquelas riquezas, advertindo-lhes que os gastos seriam limitados:

Porque a liberalidade no gastar e despender se pode vir a fazer nécia prodigalidade. E assim de imprudência é mal o gastar-se sem medida, que às vezes sobeja a vida e falece o cabedal.

Muito contentes com o referido e

advertência, se agasalharam todos; e Peralta não acabava de atinar que gente fosse aquela, por mais que discorria, e perguntou a seu companheiro, o qual respondeu que os que tinham entrado eram os avarentos, que idolatravam o dinheiro e riquezas que possuíam, sem delas dar nada aos pobres, nem fazer bem a seus próximos, e que assim, pelo caminho da imunidade de tal vício, vinham fazer o noviciado para o Inferno, porque não tinham visto, ainda que ouviam, o gasalhado que nele faziam ao rico avarento e a todos os mais que o imitaram; que, se eles o viram, ou não deixariam entrar por um ouvido e sair pelo outro as advertências que disso se lhes faziam, ou eles não viriam tão apressados e contentes a idolatrar quem os engana, que era

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OBRAS COMPLETAS DE A. JOSÉ DA SILVA a senhora da casa, e a mesma Avareza, segundo pecado dos sete. Agora digo − replicou Peralta − que teremos três, meu amigo, pois com tanta evidência me estás representando os perigos de que me devo guardar, em que tanta e tão cega gente cai. Não estejas tão desconfiado − disse o Diabi-nho −, que alfin se canta la gloria, e atende à ter-ceira visão que se te representa, do terceiro quarto. Viu que entravam por ele com grande fúria, aos empuxões, grande número de mancebos e alguns velhos, a quem estava defendendo a entrada uma formosíssima dama, dizendo:

Doudos! Porque em mim deixais o bem que o Céu vos ordena

e ides buscar vossa pena na vil glória que buscais?

Mas eles, sem temor nem respeito à divina beleza, por se livrarem de suas instâncias entravam mais depressa, e por entre os que entravam iam os velhos seu mole-mole*, e como podiam vinham saindo outros, muito fracos, pálidos, macilentos e descorados. E, seguindo Peralta os olhos para os que tinham entrado, viu que paravam em uma sala bem adereçada, cuja porta estava aberta, e nela sentada uma dama que, pela forma, servia de porteira, com uma mão sobre outra sem falar palavra nem dizer nada a ninguém, por mais gente que entrasse e carregasse sobre ela.

Na mesma quadra viu que estava sobre um trono alcatifado e semeado de flores outra dama, mais

* Seu mole-mole − muito devagar.

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Vós outros que nesta idade me buscais, muito vos devo; e bem é que em minha graça tenhais o lugar primeiro.

Ditas estas palavras, reparou que entre os mancebos se iam acomodando os velhos, e eram alguns sujeitos que, por parecê-lo, convertiam, com artificiais tintos, em azeviche a neve de seus cabelos, desmentindo os anos de sua idade; aos quais chamando, a dama do trono lhes disse assim:

Senhores velhos gaiteiros, desocupem vossas mercês logo este quarto, porque não quero nele fruta que pareça verde, sendo tão madura; pois a que admito nele, de semelhante género, é só a que na aparência manifesta sem mentira o que dela se pode esperar. Podem vossas mercês passar-se ao outro quarto do engano, que lá acharão gasalhado às desmentidas cãs.

Responderam eles: Não procederam, Senhora, de larga

idade, mas sim de trabalhos e amofinações, que tanto custam.

Não me meto em averiguar essa questão – tornou a dona da casa −; que, para serem daqui expulsos, basta o crime da transfiguração. Que, a

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engraçada que formosa, e tão decotada da camisa e curtas anáguas, que não era necessário bruxulear para se verem os listões dos sapatos. Esta era a senhora da casa, a quem todos os que entravam faziam grandes submissões, e ela os recebia com grande benevolência e mandava dar deliciosos agasalhos, e em especial aos velhos verdes, a quem dizia:

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não ser ela, lhes dera lugar entre os velhos, que admito, e não o que vossas mercês queriam tomar entre os mancebos. E sofram-me que lhes diga

que da autoridade* zomba e de si mesmo escarnece todo o que corvo amanhece, tendo anoitecido pomba. Que, se tão nécios enganos não reedificam o ser, de que proveito é fazer parecer menos os anos?

Com esta resolução se foram saindo da quadra os despedidos. Peralta, admirado, perguntou ao Diabinho que gente era aquela, que em tanta quantidade entrava aos empuxões naquele quarto, e que dele saíam tão macilentos e fracos, e quem era a formosa dama que defendia a porta aos que entravam, sem lhe haver respeito nem atenção, e quem era a que da banda de dentro servia de remissa porteira, e a que estava no trono por senhora da casa, porque o tinham atónito e fora de si as circunstâncias de tão admirável representação. O Diabinho lhe respondeu que os que entravam a empuxões, tão cegos e desatinados, eram os incontinentes, que, estimulados dos lacivos apetites, iam atrás deles, como gato a bofes; e que a formosa dama que lhes impedia a entrada, a quem não tinham respeito, era a Virtude, de quem, enganados, fugiam à rédea solta; e que os que vinham saindo por entre os que entravam, fracos e macilentos,

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∗ Que da autoridade − No manuscrito da B. N., erròneamente, quem da autoridade.

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eram os que tinham consumido a vida e saúde no exercício libidinoso e se passavam para o hospital daquele noviciado a solicitar saúde para tornarem a seus desenfados, em que andam, e desenfreados apetites, sem arrependimento dos passados; e que a dama que remissamente servia de porteira era a Ociosidade, causa e motivo de todos os vícios; e a do trono, senhora da casa, a cujo cargo estava o agasalhado dos que a professavam e vinham fazer noviciado no seu quarto para o Inferno era a Sensualidade, terceiro pecado dos sete mortais. Estou aturdido − disse Peralta − do desatino de tal gente e da propriedade da significação dele em sua representação, que agora entendo e dantes ignorava, confundido da sua delicadeza.

Atende − lhe replicou o Diabinho − à representação que se segue no seguinte quarto.

Olhou Peralta e viu que pelo pórtico dele entravam alguns sujeitos arrogantes e tanto à valentona, que pareciam linces, que com os olhos matam, pois com eles amedrontavam aos que os viam. E sobre a preferência do entrar da porta estiveram a pique de se matarem uns aos outros às estocadas, e nesta diferença chegaram a uma sala, onde sobre um trono de ferro e aço estava colocada uma mulher torpíssima, vomitando sangue pela boca e expelindo raios pelos olhos, a qual, depois de deixar um pouco prosseguir a pendência, mandando quietar os donos dela, fazendo-lhes grandes agasalhos lhes dizia:

Vós, que com rigoridade minha influência exerceis, aqui em prémio lograreis de meu favor a equidade,

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pois que com indignações, apesar do entendimento, do primeiro movimento executastes paixões.

Assim lhes disse, e todos a reverenciaram, e se foram acomodando em seus lugares, para neles fazerem seus noviciados. Peralta, por se inteirar do que presumia daquela representação, pediu ao Diabinho lha declarasse. E ele respondeu que a mulher que estava colocada sobre o trono de ferro e aço, sinal de suas armas, era a Ira, quarto pecado dos sete mortais e a mais inexorável fúria do Inferno, que, com ser tal, tinha uma irmã divina, que estava no Céu, que era a ira do Todo Poderoso, quando, ofendido dos pecados sem arrependimento, castiga o Mundo. E que, com serem irmãs no nome, era tão justa uma, como injusta a outra, e sempre estavam em perpétua contenda: a do Céu, porque a [do] Inferno provocava com maldades que influem nos homens; e a do Inferno, pelo sentimento que lhe fica quando vê que aos arrependidos se transforma a do Céu em misericórdia. Os que viste entrar, tão arrogantes, são os sequazes da do Inferno, que, obstinados em suas perversidades, vem fazer no seu quarto noviciado. Lastimado Peralta da cegueira desta gente, disse a seu companheiro infernal: Maldita seja a soberba de vós outros e vossa ingratidão; que, se ela não fora, prevaleceríeis espíritos angélicos e não estivéreis sepultados nos abismos infernais, donde por ódio e vingança viestes enganar a Eva para fazer pecar seu consorte Adão,

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nossos primeiros pais, em cuja culpa incorreu o género humano, ficando assim perdendo a graça, e sujeito às misérias desta representação.

Contudo isso − respondeu o Diabinho −, nós não nos arrependemos, nem havemos de arrepender eternamente; mas, deixando este argumento, por que te não fique nada por ver deste noviciado atende ao que se te representa no quinto pórtico.

E, aplicando os olhos, viu que entravam muitos homens carregados de mantimentos, tão sôfregos, que como esfomeados vinham comendo, às mãos cheias, do que traziam; os quais pararam em um aposento rodeado de mesas, ao modo de refeitório, todas cheias de diversas e deliciosas iguarias, e na cabeceira delas uma mulher sentada, comendo sem descansar, tão sôfregamente, que tudo lhe parecia pouco. E não cessava de mandar vir mais iguarias; a qual, com o bocado na boca, não cessando de comer, disse aos que entravam que, pois tinham prestes e eram seus confrades, se sentassem a razão*, porque

* Se sentassem a razão − era justo que se sentassem. − Em Acad.,”se sentassem e fizessem a razão...”; em Arq., “se assentassem e lhe fizessem a razão” .

quem por comer e beber faz na vida estimação não come para viver, mas vive para comer, como epicúreo glutão.

E não vos pareça que só vós sois meus sequazes, porque aqui fizeram também seu noviciado,

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enquanto viveram, Heliogábalo, Sardanapalo e outros. Isto dizia a Senhora da casa aos assistentes, sem deixar de comer, e eles sem despejar a boca comiam e calavam, como doentes de fome canina. Ainda que Peralta conjecturava a figura daquela representação, não deixou de pedir ao Diabinho que lha declarasse, porque o fazia com grande subtileza; ao que ele satisfez, dizendo que a Senhora daquele quarto era a Gula, quinto pecado dos mortais, e o que trazia infinita gente ao noviciado, e dele a levara ao Inferno; e os que assistiam eram os glutões epicúreos, seus sequazes, que não ocuparam mais a vida que em comer e beber, sem jejuarem um só dia, nem se compadecerem dos pobres e necessitados, e muito menos cumprirem as obrigações de cristãos pelo vício da glutonaria. Admirado ficou Peralta* de tão bruto desacerto, quando** pelo pórtico do sexto quarto viu que entra vam muitos homens queixosos de sua desgraça e murmurando dos venturosos, até chegarem à quadra onde estava colocada uma mulher como furiosa, comendo-se a si mesma, de raiva de não poder conseguir o que seu insaciável desejo lhe representava, a quem chamavam dizendo que vinham àquele seu quarto acabar de passar a vida, porque não podiam seus súditos ver tantas grandezas nem sofrer gentilezas, e muito menos felicidades alheias. E ela lhes dizia este epigrama:

* Admirado ficou Peralta − Em Acad.,”Abominando estava Peralta”. ** Quando − No manuscrito, quanto

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O mal que por mim sentis muito devo agradecer, pois a ninguém sofreis ver bens que vós não possuis.

Das palavras do referido epigrama coligiu Peralta que a figura que as tinha pronunciado era a Inveja, sexto pecado mortal, que, por abominável, pudera ser o primeiro, se a Soberba se lhe não antecipara. E, por isso, não perguntou nada ao Diabinho, ocupando-se só em discorrer na brutalidade deste actual pecado, e quão merecedora era a gente que nele caía, de semelhante noviciado. Nisto contemplava Peralta, quando, desaparecida a sexta representação, viu que pela porta do sétimo quarto vinham para entrar muitos homens e mulheres, muito devagar, pé ante pé, parando aqui e ali com grande sorna, até que, depois de largo espaço, entrando todos, pararam em uma quadra toscamente adereçada, com as mais das alfaias sem conserto, fora de seus lugares, e no meio dela levantado um desalentado trono, sobre o qual estava lançada na cama uma mulher, dormindo a bom levar, sem sentir as vozes que os que vinham entrando lhe estavam dando, de quando em quando, porque também o sono lhes suspendia as vozes que continham em avisá-la, como eram chegados a seu quarto, para que, como seus sequazes, lhes mandasse dar agasalhado nele. O que fizeram tantas vezes, até que a sonolenta Senhora, levantando a cabeça, depois de se esperguiçar um pouco e de dar quatro bocejos, abrindo os olhos deu fé dos circunstantes, a quem logo mandou dar agasalhado

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e muito bem de comer e beber, dizendo-lhes mal desperta, como sonhando:

Comei e dormi, senhores, sem cuidado e com descanso, porque o o comer e dormir é da vida o mor regalo. Com o sebo* destas delícias de preguiçosos enganos isco eu os meus anzóis, com que pesco tantos barbos.

Apenas a encamada Senhora, mal desperta acabou de pronunciar estas palavras, quando logo ficou outra vez dormindo, como se não tivera acordado.

Disse Peralta ao Diabinho que não entendia bem as figuras daquela visão e que, assim, estimaria lhas explicasse. Ao que o Diabinho satisfez, dizendo que a mulher que estava dormindo na cama era a Preguiça, sétimo pecado mortal, que muita gente trazia ao noviciado do Inferno. Disse Peralta ao Diabinho que não entendia bem as figuras daquela visão e que, assim, estimaria lhas explicasse. Ao que o Dia Pois aqueles que ali vês, com bigodinhos e polvilhados, todos peripatéticos, andam toda a noite desvelados, de dama em dama, e de pura preguiça ociosos, sem emprego nem trabalho, ostentando fidalguias; sendo uns bazorreiros, não se levantam da cama senão ao meio-dia, principalmente em dias

* Com o sebo − Em Arq., cevo (comida).

** Bazorreiros − Em Arq., bosorreiros: − A palavra não figura em Acad.,onde se nota grande corte.

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de obrigação de missa, parecendo-lhes cumprem com a devida obrigação com irem a buscá-la a horas que a não acham; e com se porem às portas das igrejas e a passear nos adros, registrando as damas, fazendo-lhes macaquices; e com outros descobrindo defeitos e fazendo risadas, levantando-lhes epitáfios, namoros e praças entendem ter satisfeito os divinos preceitos. Ao que elas também se entregam com todo o descoco, saindo muito devagar das igrejas, com contas nas mãos, muito grandes, e seus listões,* que trazem mais por gala que para rezar por elas; travando conversações com outras, por terem me-lhor ocasião de se mostrar a eles e dar-lhes a entender, com modilhos, disfarces e outras aparências, as desenvolturas de que são dotadas, empregando-se mais na ociosidade e apetites levianos, provocadores de toda a preguiça, que no trabalho e desvelo do seu governo e reputação. Os que estavam dormindo, mais robustos na presença, eram oficiais e trabalhadores que, por lhes dar o ofício da preguiça, tinham deixado de ganhar o sustento com o suor de seu rosto na conformidade do divino mandado e, pelo adquirir com menos trabalho, se fizeram piratas de estradas e por isso dormem tão descansados neste noviciado, não temendo as forcas que os ameaçam. As mulheres que entre eles vês eram muito sisudas e ganhavam de comer pela sua roca, almofada e costura; mas, inficionadas da preguiça, atropelaram o justo procedimento, procurando ganhá-lo sem trabalho, lacivamente.

* Listões − faixas.

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Olha se com razão Lúcifer pôs a Preguiça por senhora regalada deste quarto de noviciado do Inferno, pois lhe traz tanta gente a ele. E assim respondendo, Peralta, porque estava já lastimado e enfadado de ver tantas representações de torpezas e misérias humanas, disse ao Diabinho que não queria ver mais que seguir seu caminho. Seja embora − lhe disse o familiar diabólico −; mas deixa passar o rio àquele religioso que acolá vem a cavalo com os alforges recheados de cousas em que tenho parte, que quero te aproveites delas. Eu o escuso − respondeu Peralta −, que nos meus levo bastante provimento.

Não quero eu perder logo o que me dão − tornou o Diabinho −, porque o de Deus a Deus, e o de César a César.

E, neste tempo, passando o religioso, se espantou a mula, de sorte que em desatinados couces e ásperos movimentos deu com o religioso em terra e foi fugindo, e o Diabinho correndo atrás dela.

Peralta acudiu ao religioso e lhe foi buscar água ao rio para beber; e, perguntando-lhe se recebera algum dano, a que respondeu que não; porque, como vira a mula tão desinquieta, se resolvera a lançar-se dela o melhor que pudesse, como o fez. E que entendia que a mula se lhe devia meter o Diabo no corpo, que a provocou àquela fúria, porque era mansíssima e nunca tal tinha feito. Mas que aquele sucesso devia ser em pena de ele não ter dito missa aquele dia, por madrugar para a jornada. Porém, que não tornaria a acontecer tal em sua vida, já que Deus lhe fizera mercê de o livrar de tão grande perigo, porque a missa não fazia perder

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tempo e era o verdadeiro Norte de toda a boa viagem. Ao que disse Peralta: Vossa Paternidade fala como discreto, e seguro-lhe que o Diabo lhe espantou a mula, por não haver celebrado, que ele não perde ocasião em que possa molestar os servos de Deus. Neste tempo, chegou o Diabinho com a mula pela rédea e a deu ao religioso, dizendo que com os saltos que ia dando lhe fora caindo do alforge algumas cousas que ele não pudera recadar, por não perder a mua* de vista , que a fora tomar muito longe. Seja por caridade − respondeu o religioso −[o] trabalho de apanhar a mula, que o que caiu do alforge não importa nada. E, fazendo o sinal da cruz para se montar, tendo-lhe Peralta mão no estribo, o Diabinho desapareceu [e] o religioso se foi embora.

Ausente o religioso, disse o Diabinho a Peralta que se aproveitasse da ocasião de um pedaço de presunto e de uns poucos de doces do alforge do religioso. Peralta lhe respondeu que agradecia a oferta, mas que sentia o haver tomado ao religioso o que trazia para passar o caminho. Eu − respondeu o Diabinho − não tomei nada ao frade, que o que tomei era meu, por mo haver dado primeiro. E isso como pode ser? − tornou Peralta. Hás-de saber − prosseguiu o Diabinho − que este presunto e estes doces mandou a este frade

* Mua – mula.

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certa confessada sua; e, vendo que o presunto era duro e que não se acabava de cozer, disse: − Dou ao Diabo tal presunto! Como é duro! − E o mesmo aconteceu com os doces, porque, tardando o moço que os foi buscar, lhe disse, muito agastada: Leve-te o Diabo a ti, mais aos doces! E assim, que no tomar o que me tinham dado não fiz ofensa a ninguém, que eu não sou homem de comprimentos, e logo tomo a palavra para seu tempo, quando então não haja lugar. Não teve Peralta que responder, * mas sim que considerar, à vista daquele exemplo, quanto desacerta quem dá alguma coisa ao Diabo, de quem todo o Cristão deve fugir.

* Final deste capítulo em Acad.: “Não teve Peralta que responder mais que considerar ha (sic) vista daquele exemplo quanto desacerta quem dá nada ao Diabo, que todo o Cristão deve fugir”; e em Arq.: − “Não teve Peralta que responder, mas sim que considerar, vendo aquele exemplo e castigo de quem dá alguma coisa ao Diabo”.

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FOLHETO IV

Puseram-se a caminho os dous companheiros para as Vendas Novas, Peralta discorrendo sobre o meio que elegeria para se apartar de tal companhia sem perigo de algum dano, que o estimulavam muito os desejos que disso tinha pelas perversidades que em dano de seus próximos a cada passo via executar, e o Diabinho lhe minando* maldades para repetir. Chegaram à primeira Venda da Silveira, onde Peralta, querendo tomar alguma refeição, viu que toda a justiça de Montemor tinha preso ao dono dela por um grande furto que ali se fizera, em que foi culpado. Tanto que o Diabinho viu isto, fez retirar a Peralta e lhe disse que passasse a tomar refeição na segunda venda e que nas Vendas Novas iria ter com ele, porque determinava livrar aquele homem da prisão em que estava, por lhe ser muito obrigado pelas maldades que executava e havia executar enquanto vivesse, e que assim convinha ao serviço de Lúcifer dilatar-lhe a forca mais alguns dias. Peralta fez o que o Diabinho lhe ordenava; e, apenas a justiça tinha saído com o preso, quando o Diabinho levantando** uma poeira da terra tão

* Lhe minando − Em Acad. e Arq., fulminando. ** Levantando − Em Acad. e Arq., levantou.

Vol. IV-Fl. 20

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grande, que se não viam uns aos outros, e as cavalgaduras, espantadas, corriam à rédea solta, sem obedecer a quem ia nelas. E com esta revolta ficou o preso sem gente que lhe assistisse; e, como o Diabinho lhe desatasse as mãos que levava algemadas, lhe fez tomar as de vila-diogo e em breve espaço pôs pés em polverosa;* os da companhia da justiça foram parar em diferentes partes, e assom-brados do sucesso. O que tudo Peralta esteve vendo de cima de um outeirinho, e depois, ajuntando-se e querendo recobrar o preso, não achavam notícia alguma dele, motivo por que se retiraram a suas casas, admirados de tal acontecimento. Naquela noite ficou o Diabinho nas Silveiras, aonde obrou tais diversidades,** que houveram de se escrever muitos volumes, o que deixo em silêncio na consideração dos que bem confessem as suas más obras. Peralta chegou ao sol-posto às Vendas Novas, e na pousada em que se agasalhou estava o religioso a quem espantaram a mula no rio de Montemor, que, em rezão de se sentir quebrantado da queda e temer não achar boa comodidade nos Pegões, não quis passar dali, considerando em seu sucesso que mais vale quem Deus ajuda, que quem muito madruga , o qual festejou muito a Peralta, agradecido do sentimento que mostrava da sua queda; e, recolhendo-se ambos a um aposento, Peralta lhe deu conta de tudo o até aqui referido e de como o Diabinho fora o que lhe espantara a mula para lhe

* Pôr os pés em polverosa (= polvorosa) − fugir. ** Diversidades− Em Acad. e Arq., perversidades. 306

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tomar o presunto e os doces que levava no alforge, dizendo que lhos dera a ele primeiro a pessoa que os mandava a sua Paternidade, e que, assim, lhe pedia muito lhe fizesse a maneira de o aconselhar no meio que elegeria para se apartar de tal companheiro, porque o que ele tinha resolvido em seu coração era meter-se religioso na ordem do seráfico Padre São Francisco, que Sua Paternidade professava, se nela o quisessem aceitar, dando de esmola os cruzados que trazia, porque, suposto seguira a milícia, tinha bastantes princípios de latim, e era limpo de sangue, capaz do hábito de religioso. Não cessava o frade de se benzer de caso tão espantoso como Peralta lhe referira, ao qual disse que a resolução que tomava era o mais seguro meio para se livrar das tentações do Demónio; e que, em chegando a Lisboa, fosse ao convento de Xabregas e perguntasse pelo guardião de Extremoz, que ele lhe dava sua palavra de o fazer aceitar logo, e que até chegar a Lisboa fosse contemporizando com o Diabinho, por que, sabendo sua determinação, lhe não fizesse algum dano.

Assim ficou Peralta mais animado, e prometeu de pôr por obra a sua tenção, dando muitos agradecimentos ao relegioso pela mercê que lhe prometia fazer; e com isto, depois de cearem ambos, se recolheu cada um e meteu quarto, porque o religioso não queria nenhuma comunicação com o Diabinho, que era força ir buscar a Peralta. Seria meia-noite e já tinham todos repousado largo espaço, quando o Diabinho, sem lhe abrirem a porta entrando na pousada, tratou de fazer das suas. O primeiro com quem contendeu foi com o dono da casa, entrando no cubículo em que dormia

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e pondo toda quanta louça em casa havia espalhada por ela. Derribou um alguidar que estava sobre um poial com tassalhos de carne, a cujo estrondo acordando o estalajadeiro, cuidando que o dito rumor era de algum cão ou gato que tinha entrado a comer a carne, levantou-se da cama, pegou de uma cacha-morra,* que tinha sempre à cabeceira, e começou de esgrimi-la com grande fúria; e o Diabinho, por que não errasse com as pancadas a louça fazia rumor, de quando em quando, para onde ele estava, dando-lhe a entender que não erraria o golpe no cúmplice do delito, que imaginava. A mulher, que tinha acordado ao estrondo e conhecendo no tinido da louça o prejuízo que lhe faziam, começou de gritar, dizendo: Homem do Diabo, olha que quebras a louça toda quanta tenho! Pois valha-te Barrabás, mulher! − respondeu o marido − Não tinhas outra parte onde pores a louça, senão no meio da casa? Levanta-te com Barzabu e fere lume, que não há-de amanhecer vivo este rafeiro que aqui se me anda metendo entre as pernas, sem lhe poder acertar em parte que o mate! Assim o fez a mulher: acendeu luz e viu o destroço que na louça estava feito em pratos, potes, tigelas, púcaros e alguidares. Pôs as mãos na cabeça e começou de tornar a culpa ao marido, dizendo: Não tiveste mais que fazer, senão a louça em pedaços! Leve-te o Diabo o teu juízo!

* Cachamorra − cacheira; moca. 308

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Pois, mulher, − dizia o marido − para que trouvestes* a louça para aqui? Foi pela teres mais guardada? Que diabo de governo é o teu? Ela se desbaptizava,** e eram tantos os juramentos com que afirmava que tal não fizera, como areias do mar; de que confuso o marido, vendo que já não tinha remédio o dano que estava feito, e que o rafeiro se não podia ter saído por estar a porta do aposento fechada, livrava a vingança de tudo na execução que nele determinava fazer; mas, como o Diabinho desapareceu e o estalajadeiro revolvesse todos os cantos da casa sem achar o delinquente que imaginava, fazendo em si mil cruzes, se tor-nara, ele e a mulher, a lançar na cama. Seria pouco mais de uma hora ante manhã, quando os almocreves e passageiros, pedindo à dona da casa candeia, indo a dar penso às suas cavalgaduras as acharam todas suando, copiosamente seladas, enfreadas e albardadas e como se àquela hora houvessem chegado de fora; com o que se persuadiram os donos que, depois de dormirem, o dono da casa os mandara a Montemor buscar alguma cousa. E sobre isto começaram a dizer que era má cristandade não deixar descansar e comer de noite as alimárias; mas que protestavam de lhes pagar o dano que disso lhe resultasse, e não tornar mais a pousar naquela casa. O estalajadeiro se esconjurava que tal não fora e que antes ele tinha razão de estar queixoso de

*Trouvestes (= trouxestes) − forma popular de trouxeste.

** Se desbaptizava − se excomungava. 309

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COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SÁ DA COSTA alguns estúrdios, que lhe ajuntaram quanta louça tinha no aposento donde dormia para a fazer em pedaços com uma cacheira, cuidando que lançava fora [um] rafeiro guloso. Ao que responderam os almocreves que como podiam fazer tal, se ele deixava fechada a porta do aposento em que dormia.

Pois menos podia eu − replicou o hóspede − tirar as vossas cavalgaduras pela mesma casa donde estáveis gasalhados, abrir as portas sem vós outros sentirdes! Com que uns e outros se deram por satisfeitos, pressupondo que algum demónio devia andar aquela noite naquela casa e, quando a suspeita não fora verdadeira, não era temerária, porque todos são muito devotos de semelhantes ermidas. Tornou a dizer o hóspede que, se assim fosse, que ali estava um religioso e que, em ele acordando, lhe pediria benzesse e esconjurasse a casa, que o que sentia era não terem suas mercês, quando almoçassem, um prato em que comer, nem um púcaro por onde beber. Não importa! − responderam os almocreves − Arrieiros somos, nas mãos comemos, e beberemos pelas borrachas. Com isto, trataram de dar penso às cavalgaduras e de ordenar o almoço; e o Diabinho, tanto que ouviu a resolução de o estalajadeiro pedir ao religioso benzesse a casa, se foi, desatinado, acordar Peralta e lhe pediu que sem dilação se vestisse e saísse para fora daquela pousada, porque importava assim. Peralta, por contemporizar com o Diabinho, como lhe tinha aconselhado o dito religioso fez o que lhe pedia, pagou a pousada e foi o primeiro que saiu dela. 310

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Partidos os dous, ao tempo que amanhecia, das Vendas Novas para os Pegões,* disse o Diabinho a Peralta, por travar conversação, que estava admirado de ver quanto reformado vivia, sendo soldado, em tempo que as maldades dos homens eram tais, que os faziam parecer diabos. Ih! − lhe disse Peralta − É mentirosa praga tua! Pois dize-me − tornou o Diabinho − que outra cousa são, senão diabos, tanto número deles temos, perjuros, traidores, falsos, enganadores, melquetrefes,** embrulhadores, falsários de testemunhas, piratas sem restituição e sensuais desenfreados. Que outra cousa são, senão diabos, os que estão anos em mortal ódio com seus próximos, sem quererem admitir reconciliação? Que outra cousa são, senão diabos, os que tiram a justiça a quem a tem, para a venderem a quem a compra? Que outra cousa são, senão diabos, os soberbos poderosos que por dá cá aquela palha vexam os humildes? Não prossigas mais em tua infernal prática, que não tenho paciência para te ouvir − disse Peralta −, porque, ainda que por fraqueza humana haja algum sujeito mau e perverso, há infinito número de bons que cumprem como devem as obrigações de católicos, e nem aos mais depravados podes dar o nome, que lhe aplicas, de diabos, porque estes se poderão arrepender de seus erros, e os homens, por mais insolentes que sejam, basta para os pôr em

* Pegões − é povoação situada entre Vendas Novas e Aldeia-Galega (hoje Montijo).

** Melquetrefe (= mequetrefe) − intrujão. 311

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Todos nele são diabos tão exorbitantes, que podemos nós outros deles de a cousas** aprender. O ódio que aos homens temos, entranhável e cruel, iguala, se não excede, o que uns aos outros tem.

* Magdanela − Madanela, forma pop. de Madalena. ** De a cousas − Em Acad. e Arq., diabruras.

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graça qualquer firme arrependimento de suas culpas sem tornar a reincidir nelas, como tantos exemplos verificam. De um perseguidor seu fez Deus um S. Paulo; de um mercador onzeneiro, um S. Mateus; de uma pública pecadora, uma Mag [d]anela* Santa, e de um salteador de estradas um S. Dimas. Isso era outro tempo! − respondeu o Diabinho −. Porém neste, são tão poucos os arrependidos, que certo Diabo − poeta − porque também os hão desta arte − fez à referida matéria uma petição em verso ao Senhor Lúcifer, que te referirei por divertires o cansaço do caminho e a moléstia da jornada: Anda Vossa Diabrura, poderoso Lucifer, que se lhe levanta o Mundo com a jurisdição que tem.

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A soberba que aqui reina e que despenhar nos fez lá para os poderosos menina de mama é. Tudo se compra e se vende em almoeda, porque a rezão mais conhecida tem o interesse a seus pés. A justiça está de sorte que escusa nosso poder para fazer que se tire àquele que mais a tem. Os bachareis fazem tudo quanto querem, mal ou bem, que é pior que* mil diabos, se é perverso, um bacharel. Os soberbos que a Fortuna de pouco ou de nada fez nem no Céu nem neste Inferno entendo que hão-de caber.** São lá de sorte os enganos, ardilosos e cruéis, que os nossos para com eles ficam de vista a perder.

* É pior que − No man. da B. N., é porque. ** Nem no Céu, etc. − Estes terceiro e quarto versos são da versão do Arq. − No man. da B. N.: Nem no céu, este inferno/entendo que há-de caber. 313

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A mentira que aqui reina reina tanto lá também, que a Verdade anda corrida sem ousar de aparecer.

Ardis e perversidades bem podemos aprender hoje os diabos dos homens, conversando* no A. B. C.

Quantos** são os que se aprestam para nos virem a ver, que são, para se aquecerem, poucas nossas chaminés!

E, posto que estas maldades cá se hão-de pagar bem,*** não cabe em meu sofrimento ver-me nelas exceder. Deu-se um dia um**** ao Diabo, e eu, por não o perder, querendo lançar mão dele, como costumo talvez,*****

* Conversando − Em Acad. e Arq., começando.

** Quantos − Em Acad., tantos. − Esta quadra não figura no Arq ..

*** Cá se hão-de pagar bem − No man. da B. N. – Cá se handem pagar bem sei; em Arq.: Cá é que se hão-de pagar. **** Deu-se um dia, etc. − Em Arq., Houve um que se deu ao Diabo.

***** Talvez − Em Arq., fazer.

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rindo-se* de mim, me disse: Tenha-se** vossa mercê, que, se me dei ao Diabo, eu sou diabo também. E assim, por esta razão, que me queira*** justo é para mim tanto portanto pois a mim próprio me dei. Veja vossa Diabrura como se pode sofrer um desacato tão grande, um termo tão descortês.

Nem que qualquer mulherzinha possa cada vez que quer com quatro signos samões,**** esconjuros***** dous ou três, a todos quantos nós somos mandar****** com o bico do pé por sòmente interessarmos******* a alma******** que não val dous reis,

* Rindo-se − No man. da B. N., rendosse.

** Tenha-se − Idem, Tentasse. *** Queira − Em Acad., queiras. ****Signo (ou sino) samão (de Salomão) −

amuleto que consiste em dois triângulos entrelaçados, formando estrela. − Samões − Em Acad., salmões.

***** Esconjuros − Em Acad., Ou com juros. ****** Mandar − Acad., andar. ******* Interessarmos − Em Arq., interessar-nos. ******** A alma - Em Acad., Alma − Dous − Em

Arq., dez.

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quando se nos dão de graça imperadores e reis, que da balança de Astreia não tem direito o fiel. No mundo está já o Inferno, no Inferno o mundo também, porque é tal o desconcerto, que hoje tudo anda ao revés. Mais atormenta no mundo um poderoso sequer que no inferno nós outros quantas almas a ela vem. Ponha-se nisto remédio, por que não venha a perder o Inferno, por este modo, a jurisdição que tem. São [já]* tais no mundo os homens, que nos fazem parecer, depois de sermos diabos, anjos agora, outra vez. ] Isto pede um diabrete, melquetrefe bacharel, que se veja e que se emende. E receberá mercê.

* São [já] - Adoptámos o advérbio da versão do Arq. Em Acad., o verso é iniciado por Que.

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Ocioso − disse Peralta − devia estar o Diabo que fez essa satírica petição, e bem parece sua, pois reparava* nela o que só podia ser obra de suas tentações, quando tal houvera no mundo; que o particular de um mau procedido** por causa de teus enganos não pode desacreditar o grande número de bons e virtuosos. Pois hás-de saber − respondeu o Diabinho − que, se os versos te não contentaram, que foram muito louvados de Virgílio, Homero, Ovídio, Lucano e Claudiano e outros. Só alguns poetas ocultos,*** que nem eles se entendem a si mesmo, nem nós a eles, os censuraram de inteligíveis,**** e em prova disso lhe mandou o Senhor Lúcifer dar com eles nos focinhos. A isto ia Peralta para responder, em desculpa das ciências da cultura, mas impedindo-lhe***** uns arrieiros que passavam, a quem o Diabinho, por fazer mal, espantou as cavalgaduras e lhe fez derribar as cargas. Com que os arrieiros blasfemavam e davam as bestas ao Diabo; e o da mão furada, banhado em água de flor, do gosto que lhe dava aquele malefício dizia a Peralta, muito de mansinho: Olha quantas cavalgaduras tenho! Acabaram os arrieiros de carregar e foram-se embora, moendo as alimárias a pancadas; e Peralta, muito triste, pediu ao Diabinho que não quisesse outra vez fazer aquilo aos passageiros, porque o lastimava[m] muito as moléstias de seus próximos.

* Reparava − Em Acad., reprova. ** Procedido − Em Acad., persuadido.

*** Ocultos − Em Acad., cultos. **** Inteligiveis − Em Acad., ininteligíveis. ****** Impedindo-lhe − Em Acad., impediram-lhe.

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Esta máquina estremada, que a mor** grandeza limita, é para quem nela habita tudo vento e tudo nada.

* De sua − Em Acad. e Arq., dessa sua. ** A mor − No mano da B. N., o amor. *** Fechada − Em Acad., aberta.

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Da referida porta, que sempre estava fechada*** para os que quisessem entrar por ela, era porteiro um aprazível velho e lisonjeiro, que com grandes submissões e cortesias recebeu o Diabinho e ofereceu a Peralta a entrada franca, louvando com grandes

O Diabinho lhe respondeu que como o fazer mal era natureza sua, não podia deixar de executá-la; mas, pelo livrar de sua* pena, o levaria por caminho por onde não encontrasse passageiros, e que, pelo divertir, lhe mostraria nele a casa da Cobiça, que tinha muito que ver.

Bem quisera Peralta escusar o rodeio e mais representações; mas, por não ver que o Diabinho molestava seus próximos, condescendeu com seu gosto. Afastaram-se da estrada e, sem saber como, em breve espaço se viu Peralta em um formosíssimo e aprazível vale, entre o qual divisou logo um sumptuosíssimo edifício e, chegando a ele, viu que a porta estava fechada e chapeada de finíssimo ouro, em que estavam engastadas muitas pedras preciosas e por cima delas uma tarja com umas letras do mesmo metal, que diziam:

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* Magnifactores − Em Acad., manufactures

** Fruto - Em Acad., fmito. 319

encarecimentos seu bom gosto em querer ver aquela insigne casa e inclinar-se às delícias dela; o qual, entrando dentro em um aposento armado de finíssimas telas, viu nele uma dama com admiráveis galas, a quem assistia outra, que lhe servia de criada, não menos custosamente vestida. A senhora estava sentada sobre um sólio guarnecido de ouro e tinha na mão um escudo com umas letras que diziam:

Entre baixos me criei, mas com tal sagacidade, que na maior dignidade hoje já me entronizei.

Com pobres magnifactores* tratava sòmente então; hoje, já só me acharão nos ouvidos dos senhores.

Fui no tempo desprezada, que trabalhava sem fruto; **mas hoje já valho muito por meio desta criada.

Admirado estava Peralta de ver aquela grandeza e o enigma daquelas figuras. Perguntou ao Diabinho o que eram. Respondeu-lhe que o velho que servia de porteiro era o Engano, e a dama que sobre o

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trono* estava sentada na cadeira era a Mentira, e a que lhe assistia** de criada, a Lisonja; com o que Peralta entendeu os versos dos referidos epigramas, que o tinham confuso, ficando admirado das propriedades das figuras. Deixado este salão, chegaram a outro, do qual estava cerrada a porta; e, batendo o Diabinho nela, perguntaram de dentro quem era e o que buscavam. Disse-lhe o Diabinho que eram dous forasteiros que por curiosidade queriam ver aquele edifício. Dera-lhe de conselho − replicou de dentro o porteiro − que tal não intentassem, por que se não enganassem com as aparentes delícias e riquezas deste fantástico e fabuloso palácio com que a senhora dele engana aos que nèciamente se lhe entregam. Já vimos acautelados dos seus enganos − replicou o Diabinho − Como assim seja, bem nos podes abrir a porta. Não me atrevo, senhores, a obedecer-vos − tornou o porteiro −, porque, além das advertências que já vos fiz, do perigo a que vos arriscais, está nesta quadra, que guardo, uma dama nua, a mais fermosa que criou a natureza e a mais estimada do céu, e não quer que ninguém a veja tão descomposta. Por outra parte podereis prosseguir vossa pretensão, que vos será menos dificultosa. Como o que mais se dificulta é o que mais se apetece, estimulado Peralta assim deste respeito, com o desejo de ver tão fermosa dama disse ao Diabinho que instasse com o porteiro lhe abrisse a

* Trono − No mano da B. N. - fomo. ** Assistia − Em Acad., servia.

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Meu ser, que já floresceu, aqui preso e pobre vive, sendo tão nobre, que tive meu nascimento no céu. Mas, já que na Terra assim me vejo tão desprezada, para o céu, envergonhada, me tornarei, donde vim.

Admirado Peralta da gravidade daquelas

figuras, perguntou ao Diabinho quem eram. Ele lhe respondeu que o porteiro era o Desengano e a dama nua a Verdade, − um e outro seus declarados contrários;

* Rogos − Em Acad., roubos. ** Epigrama − A seguir a esta palavra lê-se, em

Acad., − com letras de chumbo. 321

porta; e, como para o Diabinho não eram necessários rogos* para arriscar a perigos, certificou ao porteiro lhe abrisse logo, e, se não, se iria queixar à senhora da casa de sua descortesia. Ao que respondeu o porteiro, abrindo a porta: Eu fiz o que tinha de obrigação por quem sou. Já que vós não quereis aproveitar de minhas advertências, entrai em boa hora! Entrados dentro, viu Peralta que o porteiro era um velho mui severo, e que a quadra estava sem adereço algum, e ao canto dela uma donzela nua, mais rara beleza que os humanos viram, segundo testemunhava o rosto, que um escudo a cobria toda, e só a deixava ver por cima dele, no qual tinha escrito o seguinte epigrama:**

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que se prezava de andar nua para mostrar que sua clareza não necessitava de adornos alguns, para crédito seu. Se a dizem os despidos e [nus], nenhum crédito se lhe dá; a cujo propósito disse certo poeta:

Desnuda la Verdad pintan, Peró fue retrato improprio, Pués si lo está quien la dize* , Pierde credito y decoro.

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Assim que, por glorificar** este, lhe fora melhor arrastar brocado e telas e não andar entre os pobretes para ser desestimada, que, por esse respeito, a senhora daquele alcáçar a tem suspeita*** e presa.

A isto respondeu Peralta que as virtudes não haviam mister adornos para crédito seu e que os vícios sim, porque as custosas galas com que se vestem [desmentem] a qualidade de seu ser. Pelo que disse um engenho:

La lisonja y la mentira andan guarnecidas de oro, por acreditar su engaño de las galas al**** adorno.

* Dize − Em Arq., bire. **Glorificar − Em Acad., granjear; em Arq., para trovar este epigrama. ***Suspeita − Em Acad., supeditada; em Arq., supitada (= sopitada, adormecida). − Além disso, em Acad., a seguir a presa lê-se: no canto daquela desarmada quadra. **** Al − Em Acad., e1.

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Deixemos essa questão − disse o Diabinho −, que não convém averiguada*, e passemos avante a outra sala. Assim o fizeram e, achando também dela a porta fechada, bateu o Diabinho a ela, e de dentro lhe responderam com toscas palavras, perguntando-lhes quem eram e o que buscavam. Ao que satisfez o Diabinho dizendo que eram dous forasteiros que queriam ver aquela casa. E a voz lhe replicou, per-guntando-lhe se eram néscios, que podiam entrar confiados; se discretos, temerosos de não serem admitidos, porque a senhora daquela sala tinha por razão de Estado da sua tirania não conceder seus favores senão aos que menos o mereçam. Admirado ficou Peralta de ouvir tal razão, e o Diabinho respondeu: Ora abra vossa mercê, que quem se não aventurou não perdeu nem ganhou. Ao que a voz replicou, abrindo a porta: Entrem vossas mercês. A sua ventura lhe valha!

Entrados na quadra o nosso Peralta e seu familiar Diabinho viram que a voz que lhe falava era uma mulher tonta, segundo mostrava com suas acções, e que servia de porteira. O aposento estava ricamente adereçado, e no meio dele uma grande roda de ouro em contínuo movimento, e ao pé dela uma fermosa dama, que com um braço estava derribando alguns sujeitos que pretendiam subir acima da roda, * Averiguada − Em Acad. e Arq., averiguá-la.

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A primeira dama que estava sobre a roda derribando alguns que tinham subido ornava também seu peito com o eguinte epigrama:

Sou tão execrável vício, é meu rigor tão estranho, que todos os que acompanho tem certo seu precipício

No peito da segunda dama, que estava sobre a roda tendo mão nos que tinham subido, se liam também as letras deste epigrama:

Os que** nas felicidades sabem portar-se comigo, estão livres do perigo de adversas calamidades

* Tenha-se – No man. da B.N., tentasse. ** Os que – Em acad., o que.

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sobre a qual estavam colocadas duas damas, uma delas derribando algumas pessoas que tinham subido, e a outra tendo mão em outras, que não caíssem. A que estava ao pé da roda tinha no peito escrito o seguinte:

Na roda que meu ser manda quem subir tenha-se* bem! Não se assegure ninguém, que assim como anda desanda!

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Depois que Peralta com devida admiração contemplou o enigmático da representação daquelas figuras e leu os referidos epigramas, por se inteirar bem da sua verdadeira significação perguntou ao Diabinho que pessoas eram aquelas. O qual respondeu que a que servia de porteira era a Ignorância, muito favorecida da Fortuna, que era a senhora daquela casa, que estava ao pé da roda; e que os sujeitos a quem defendia a subida dela eram os beneméritos, e os a quem ajudava a subir, os que careciam de merecimentos. E que a dama que estava em cima da roda derribando alguns que a ela tinham subido era a Soberba, porque o que com ela se porta nas felicidades pouco as logra. Assim é − lhe disse Peralta −, que esse mal tem as bonanças, que raro é o sujeito a quem não faça* mudar a natureza. Não fazem − replicou o Diabinho −, que a mesma natureza tinha dantes, mas não a manifestava porque não podia, que as honras e as riquezas não mudam os homens, mas são o toque em que descobrem o que a humildade da pobreza desmentia. E, prosseguindo no que me perguntaste, hás-de saber que a segunda dama, que está também sobre a roda, tendo mão nos que tinham subido, é a Prudência, porque com ela se asseguram e logram sem perigo as bonanças e felicidades. Gostosíssimo ficou Peralta de ouvir a declaração do Diabinho, louvando consigo muito a propriedade dos epigramas e figuras para o que significavam. E, passando daquele a outro aposento, achara [m]

* Faça − Em Acad. e Arq., façam. 325

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Sou tão má de contentar

e de condição tão crua, que estou, por mais que [posssua],* sempre mais a desejar. Qualquer alheia pobreza que [possuir] não me vejo com insaciável desejo a inveja, minha riqueza. ** Por mais riqueza que sobre a meu depravado intento, com nenhuma me contento: sempre cuido que sou pobre.

Subiam os degraus do trono, * * * em que estavam muitas pessoas a fazer-lhe grandes obséquios* * * * e cortesias,

* [Possua] − existe em Acad. e Arq .. **Riqueza − Em Arq., avareza. − O verso, em Acad., é: a inveja e minha riqueza. *** Trono − No man. da B. N., torno. **** Obséquios − Em Acad., submissões.

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a porta aberta e sentado nele em uma cadeira de ouro o porteiro, que a guardava, que era um velho consumido. Entraram em o aposento sem o porteiro lhe falar palavra nem defender a entrada, porque esta se dava francamente a todos. Estava o aposento armado de telas com sanefas de brocado de tressaltos e no meio, levantado, um sólio guarnecido de pérolas e diamantes e sobre ele colocada uma dama, custosìssimamente vestida, e ornada de preciosas jóias, a qual no peito tinha escrito o seguinte:

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e ela de cima dele os despenhava* rodando, que esta era a paga que lhe dava. De que, espantado, Peralta perguntou ao Diabinho que gente era aquela. Ao que ele satisfez, dizendo que o velho porteiro era o rei Midas, aquele tão ambicioso de riquezas, que pediu aos deuses da gentilidade que tudo o em que tocasse se lhe convertesse em ouro; o que lhe foi concedido, para castigo de sua ambição. Está tão consumido e fraco, porque até o mantimento que toma nas mãos se lhe converte em ouro, e fica jejuando. A senhora deste alcáçar é a dama que vês sobre o trono,** e é a Cobiça, a quem Lúcifer deve grandes obrigações pelas muitas almas que encaminha ao Inferno, e tem por porteiro o referido Midas, para que pela virtude que lhe foi concedida se lhe esteja convertendo tudo em ouro, de que nunca se farta.

Atónito estava Peralta da consideração daquelas maravilhas, imaginando que eram fábulas sonhadas*** ou ilusões fantásticas de seu companheiro; mas, vendo que os sentidos operavam livremente, se não acabava de resolver em sua imaginação; e, por se livrar do cuidado que lhe causava, pediu ao Diabi-nho que seguissem**** sua jornada, porque era tarde [e] não queria ver mais do que tinha visto. E, querendo comprazê-lo o Diabinho, indo para sairem da quadra acharam a porta fechada. Pediu Peralta ao

* Despenhava − Em Acad., despachava. ** Trono − No man., forno.

***Fábulas sonhadas − Expressão muito do gosto de Camões: Lus., V, 89-6; VI, 66-4; X, 20-5; final da canção “Vinde cá, meu tão certo secretário”.

**** Seguissem − Em Acad., seguisse.

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porteiro, com muita cortesia, lhe quisesse abrir a porta. A cuja petição respondeu que sem ordem expressa da senhora da casa a não podia abrir, porque todos os que entravam a vê-la ficavam dedicados a seu serviço. Ao que replicou Peralta que isso se entendia nos grandes e poderosos, mas nele não, que era um pobre soldado e se contentava com a sua limitação, sem aspirar a grandezas.

Estragado gosto tens, forasteiro − respondeu então a senhora da casa −, pois te pagas mais de misérias* que de riquezas.

Nas misérias me criei, senhora − respondeu Peralta − e nelas quero viver; pelo que vos peço me façais a mercê de me mandar abrir a porta. E ela tornou dizendo que era impossível quebrantar a lei de sua morada. E Peralta, enfadado, respondeu que ou pela porta ou pelo telhado havia de sair, razão que todos os que estavam na sala avaliaram por grande desacato e começaram de gritar que era justo se castigasse. Pelo que a dita senhora mandou que Peralta fosse preso, e remeteram** todos a ele para este efeito. Peralta, vendo que as armas que na casa haviam eram riquezas, obrigado dos brios de soldado deixou cair a capa e empunhou a espada. E diziam todos, a grandes vozes: A ele! Maior crime! E o porteiro dissimuladamente se ia chegando a Peralta para pegar nele; porém o Diabinho advertiu a Peralta se desviasse, porque, se lhe tocasse, o

*Misérias − Em Acad., onzenarias. ** Remeteram − arremeteram.

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converteria em estátua de ouro, pela virtude que tinha. E, ainda que Peralta tinha aquilo por fábula, pelo sim [e] pelo não a maior cautela não deixou de se precatar, dizendo ao Diabinho que ele tinha a culpa de se ver naquele perigo, pois tendo-lhe prometido de o livrar de todos, o metera no daquele encantamento. O Diabinho, satisfeito já dos sustos que lhe tinha dado, meteu o pleito a vozes e disse ao porteiro que abrisse a porta logo, que aquela violência se não sofria, porque o livre alvedrio se não podia forçar. Respondeu o porteiro que tal não havia de abrir. Sobre − sim, há-de abrir!−,−não há-de abrir!−, houve uma revolta de todos os diabos: o porteiro está nos seus treze, o Diabinho resoluto e Peralta confuso, os assistentes da casa gritando que não havia de haver no mundo um homem tão inferior em suas prendas* e qualidades que fosse mais privilegiado e se livrasse dos laços em que eles tinham caído.

A figura da Cobiça protestava e dizia ao Diabinho que, se intentasse tirar Peralta da sua jurisdição, mandaria logo queixar-se ao grande Lúcifer, pois em lugar de o ele persuadir ao engano, e que o tinha de obrigação, o queria livrar dele. Ao que o Diabinho respondeu que não se lhe dava disso, porque ele tinha feito bem seu ofício, que era só tentar e persuadir aos vícios; mas que não podia constranger o livre alvedrio para eles, que o Soberano e tutor da natureza o não permitia. E que assim, não podia

* Em suas prendas − Em Acad., às suas qualidades.

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Lúcifer por isso castigá-lo, porque fazia certamente justiça a seus vassalos. Sobre estas razões houve grandes dares e tomares, até que, sem mais nem mais, pegou o Diabinho em Peralta por um braço e o levou em bolandas pela janela fora da sala; e, sem saber como, nem cansar no caminho, se achou Peralta à vista da segunda venda dos Pegões, onde, depois de descansar* um pouco sobre o que por ele havia passado, se entrou a tomar alguma refeição, ficando o Diabinho da banda de fora. Estavam alguns passageiros jantando na dita venda; e, por que não deixasse o Diabinho de fazer ali das suas, tomou a figura de um feroz lobo e se pôs a passear defronte da porta, diante de todos. Disse um passageiro: Há maior desaforo que o daquele animal, que na ametade da hora do dia esteja aqui tão confiado à nossa vista, sem temer o dano que nele podemos executar? Rezão será que o pague com a vida! E, dizendo isto, pegou em uma clavina e endi-reitou com o lobo, para lhe atirar, e atrás dele saíram todos os que em casa haviam, uns com espadas nuas, outros com pedras, dardos e cachamorras, excepto Peralta que, entendendo que era travessura do Diabinho, se deixou ficar jantando. O que saiu com a clavina se deixou ficar à parte e fez logo tiro, porém acertou no vento, porque o fingido lobo, ao tempo que deu um grande salto lhe passou o tiro por baixo. As pedradas choviam em vão; os das espadas e mais armas, quando lhes

* Descansar − Em Acad., discursar.

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pareciam que executavam os golpes, os emprega-vam no ar. Os pastores, que tinham acudido ao reboliço, gritavam, açulando os rafeiros; porém eles, em lugar de remeterem, fugiam amedrontados. Assim, zombando de todos, os trouxe divertidos mais de uma hora em seu seguimento, pelos lugares mais espessos e perigosos daquela charneca, em cujas covas e barrancos caíam muitos e se maltratavam, até que, desenganados de lhe não poderem dar alcance nem fazer dano, se contentaram com afugentá-lo com puros brados e apupos, de que ele, zombando, dava a entender que muitos brados cabiam nos ouvidos do lobo. E assim o deixaram, depois de muito bem cansados e escalavrados, roucos de gritarias e, finalmente, estruídos.*

* Este último parágrafo aparece assim em Acad.: E assim o deixaram depois de roucos de gritar, e se vieram embora suados e tressuados; e em Arq.: E assim o deixaram, depois de muito bem cansados e escalavrados, roucos de gritar e finalmente estropiados.

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FOLHETO V

Depois de jantar, Peralta se saiu da pousada e foi caminhando enquanto durou a pendência do lobo. Chegando ao sítio de Vale de Cebola, lhe saíram nele quatro salteadores com clavinas, pistolas, bigodeiras e carapuças, dos quais disse um a Peralta que largasse logo a boleia* que trazia. Respondeu ele que algum grande aperto de necessidade devia obrigar a suas mercês àquele excesso e que com grande vontade a oferecia, pesando-lhe muito de ser

tão limitada, que não passava de quatro mil reis; de que, se suas mercês fossem servidos de lhe deixar três tostões para o gasto de Aldeia-Galega, seria grandemente** para ele. Ao que lhe foi respondido que depois*** de entregar a bolsa, que estava um companheiro muito mal vestido; que tratasse de despir o que trazia, se não quisesse arriscar a vida. Não deixou Peralta, vendo tal rigor, de ter algum estímulo para arriscar a vida na resistência; mas, ponderando a desigualdade do partido e a vantagem das armas, julgou por temeridade o furor e, largando * Boleia – Em Acad.e Arq. bolsa., ** Grandemente – Em Acad., mercê; em Arq., favor. *** Que depois ... − O sentido é: que receberia os três tostões depois de entregar a bolsa. − Em Acad., não existe o que. 333

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COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SÁ DA COSTA os calções e o ferragoilo,* lhe pediu se con-tentassem com aquilo e o deixassem em ceroulas com a roupeta e com a sua espada, sequer pelo privilégio de soldado, que era, havia mais de vinte anos, em Flandres. A que um dos salteadores, com a clavina assestada replicou dizendo que se contentasse com a camisa e ceroulas por honestidade e com a espada por insígnia de soldado e que do mais se despojasse logo com muita pressa. Peralta começou de despir a roupeta e o jubão em que trazia cosidos os cruzados e em grande mágoa de seu coração, pelos haver prometido, para as obras do convento donde** se queria recolher, ao referido religioso; se bem que por outra parte, considerando que o dinheiro do Diabo não podia deixar de ter semelhante fim e que sem ele lhe ficava mais fácil o poder-se apartar de sua companhia.

Já começavam os salteadores [a] enfardelar os despojos de Peralta, quando ouviram um tropel de cavalaria e uma voz, que adiante vinha, dizendo: Dem-se à prisão, ladrões, da parte de El-Rei! Cerca! Cerca! Prende! Prende! E os que resistirem ... morram! E, largando o fardel, se aligeiraram todos para melhor correrem e puseram os pés em polvorosa imaginando que havia sido indústria da justiça mandar só Peralta adiante para eles lhe sairem ao caminho e dar com eles divertidos no que lhe roubavam. E assim devia ser − disse um da companhia a outro, indo fugindo −; mas a vossa ambição é a

*Ferragoilo (ou ferragoulo) − espécie de gabão. ** Donde − onde.

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causa disto, que, se vos contentáreis com os quatro mil reis, pudéramos estar já no Japão, e sem nos vermos agora neste perigo, que, se não tivermos asas nos pés como Mercúrio, não sei como havemos livrar deles, que quien todo lo quiere todo lo pierde. Peralta, entendendo que era a Justiça que tinha deixado na Silveira, que trazia o preso a Lisboa não cessava de dar graças ao Céu, de a trazer por ali,* a tão bom tempo. Nesta consideração estava Peralta, vestindo-se muito depressa, quando, chegando a ele o Diabinho, que nos Pegões tinha ficado feito lobo, lhe disse: Que fora de ti, companheiro, com que cabedal entraras em Lisboa, se eu te não socorrera com a venida** que fantàsticamente fingi? E não me deves pouco nela para a minha natureza, nem antepor a tua comodidade, vivendo tão reformado, à daqueles salteadores, que vivem tão licenciosamente, ocasionando-lhe temores da suposta justiça, de que escarmentados podem emendar a vida −, cousa tanto contra a minha obrigação; mas já te disse que não sei que secreta causa me obriga a fazer por ti semelhantes finezas. Peralta lhe respondeu, admirado do sucesso; no modo que lhe era possível lhe agradecia a vontade que lhe mostrava. E com isto prosseguiram sua jornada, fazendo o Diabinho pelo caminho das suas travessuras.

* Ali − No man. da B. N., a Lisboa. ** A venida − o ataque. - Em Acad., o estratagema; em Arq., a avenida, que tem aqui o mesmo sentido que a venida.

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Chegaram a Aldeia-Galega antes do sol-posto, e disse o Diabinho a seu companheiro que se agasalhasse na pousada que lhe parecesse, porque naquela noite não podia assistir-lhe porque tinha muito que fazer com os barqueiros daquela terra, que eram já piores que ele e se lhe tinham levantado com a sua jurisdição, de maneira que naquele lugar não corria a praga de − leve-te o Diabo!−, [mas] a de − leve-te um barqueiro! −, que a tinha por

pior; que ele, como fiscal generalíssimo do Inferno, não havia de sofrer tal, e o havia de castigar como merecia; que se contentassem com serem blasfemos, piratas, enganadores, e o non plus ultra de todas as maldades, sem quererem também usurpar para si as ofertas que se costumavam fazer aos piratas malignos, crime de lesa-majestade contra seu domínio. Ao que, sorrindo-se Peralta do que o Diabinho dissera dos barqueiros, lhe respondeu que lhe agradecia o deixá-lo descansar aquela noite, sem que assistisse na pousada em que estava, pelo não inquietar. Com isto se apartou dele e se acomodou no que melhor lhe apareceu, e o Diabinho se foi ao cais entender com os barqueiros. À janela estava Peralta do seu cubículo, quando viu que chegava o religioso que tinha deixado nas Vendas Novas. Desceu a baixo, a pedir-lhe quisesse ficar naquela pousada com ele aquela noite. O religioso se escusava dizendo que, como havia de assistir nela também o Diabinho, não queria participar da sua inquietação, como lhe acontecera nas Vendas

* Piratas - Em Acad. e Arq., espíritos.

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Novas. Ao que disse Peralta que bem podia sua Paternidade fazer-lhe a mercê que lhe pedia, porque aquela noite não vinha o Diabinho aonde ele estivesse, que assim lho prometera, em razão de ter muito que fazer aquela noite com os barqueiros, e neles achava forma de seu pé.

Respondeu o religioso: Suposto que o Diabinho vos não há-de assistir, sou contente de me agasalhar aqui convosco. Apeou-se o religioso, deu Peralta ordem ao agasalhado* da mula, e subiram para um aposento, aonde, assentados, referiu Peralta ao religioso tudo o que o Diabinho fizera nos Pegões e de como o livrara dos bandoleiros que lhe sairam em Vale de Cebola, de que o religioso se benzia muitas vezes e se admirava.

Nesta e outra prática espiritual que o religioso fez a Peralta sobre os enganos do Demónio e sobre a vida de religioso que, para reparo deles, queria tomar [n] a regra do seráfico S. Francisco gastara[m] o tempo, até se fazerem horas de cear, o que puseram por obra esplêndidamente por conta de Peralta, que não quis consentir que o religioso gastasse cousa alguma; e, edificado de suas exortações e conselhos, resoluto em aceitar a milícia espiritual, tanto que se acabou a ceia começou a descoser da roupeta o dinheiro** em ouro que nela trazia cosido, de que, como tinha dito, faria esmola ao convento onde havia de professar e pediu mercê*** ao religioso o quisesse receber, porque na sua mão estavam mais

* Agasalhado − Em Acad., gasalhado. ** O dinheiro − Em Acad., os 500 cruzados. *** Mercê − Em Acad. e Arq., muito.

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seguros, em caso que o Diabinho, irritado de ele deixar a sua companhia, lhos quisesse tomar: ao que com sua Paternidade se não havia de atrever, assim pelo respeito de sacerdote, como de sua virtude e hábito que trazia. Porque, de ouvir dizer aos hóspedes de Vendas Novas que haviam de chamar a sua Paternidade para benzer a casa, ficou tremendo e me fez levantar ante manhã para nos sairmos pela porta fora, de puro medo de sua Reverência.* O religioso duvidava receber o dinheiro, assim por ser do Diabo, como porque a sua Regra o não permitia levá-lo consigo; contudo, obrigado das persuasões de Peralta e do seu bom termo, e reconhecer-lhe os desejos que nele via de se consagrar a Deus, lhe disse que lançasse o dinheiro no alforge e que não se apartasse mais da sua companhia, que ele o livraria de tudo quanto o Demónio lhe quisesse urdir, com protestos e exorcismos, e ficaria de sorte que não entendesse com ele; de que Peralta ficou muito contente, prometendo que assim o faria. E, com isto, se recolheram, a repousar. O Diabinho, tanto que se apartou de Peralta, se foi passear no cais, esperando pelas barcas** que viessem de Lisboa. Chegou uma à vela e remo por tomar a dianteira a outra e por ocupar o cais primeiro. O arrais da que ficava atrás, quando chegou, vendo que não tinha lugar para descarregar, disse

* Em Acad. e Arq., este período também em discurso indirecto.

** Barcas − Em Acad. e Arq., barcos.

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OBRAS COMPLETAS DE A. JOSÉ DA SILVA ao arrais da primeira que desatravessasse a barca e a virasse de proa para o cais e que assim caberiam todos; ao que respondeu o da primeira que tivesse paciência, que ele tinha chegado primeiro e que primeiro havia descarregar. O da segunda replicou que, se ele entendera que por fazer aquele acinte se tinha adiantado, ele metera os remos na água e molhara o pano; que não havia de ser a sua barca a primeira que chegasse, pois ele preparara o seu caravelão de sorte que deixasse a sua barca a perder de vista. E sobre – “sim, deixará!” − e – “não deixará!”−, −“afaste a barca!”− , −“não hei-de afastar!” − e outras razões que sobre isto se travaram − tudo arguido e fomentado pelo Diabinho em uma e outra parte, se enfureceu entre eles uma cruel bulha e chovendo nela votos e arrenegos, de sorte que durou largo espaço, ajudada de outras barcas e bateiras que chegaram, cujos donos se dividiram em favor de uma e outra parte, até [que], depois de muito escalavrados, chegou a Justiça da terra e os meteu em paz.* Ao estrondo e gritaria do – “Aqui del-Rei!” − que ia no cais, se levantou Peralta à janela do seu cubículo; e, vendo o que passava, disse ao religioso: Ouve vossa Paternidade o terremoto que o meu companheiro tem feito entre os barqueiros, que parece se acaba o Mundo? Sim, ouço − respondeu o religioso − e aqui me estou encomendando a Deus e pedindo-lhe interiormente

* Em Acad. e Arq., todo este período é bastante diferente, em especial na primeira das versões.

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nos deixe passar com bem o rio e nos livre dele. Assim o espero na bondade divina − replicou Peralta −, por oração de vossa Paternidade e intercessão do seráfico Padre S. Francisco, que eu a todo o risco o não hei-de consentir mais em minha companhia, valendo-me para minha defensa vossa Paternidade. Já queria amanhecer aquela noite e repontava a maré, quando os barqueiros que da pendência tinham ficado para poder fazer viagem aquele dia acudiram às suas barcas; e, como entre elas iam alguns apaixonados por uma e outra parte, tornaram à vaca fria da passada bulha, porque o Diabinho, por ateá-los,* tinha desamarradas as velas das barcas, os lemes fora do seu lugar, as fateixas levan-tadas, os remos fincados no lodo, que, se houvera mais água crecida, puderam as barcas sem dono navegar para onde o vento as levasse. Pelo que um deles, que presumia de grande capataz,** entendendo que aquela travessura devia de ser feita sobre acinte por algum do contrário rancho, afirmava com gran-des juramentos que, se vinha a saber quem tal fizera, que a mais pequena posta que dele havia de ficar havia de ser da orelha; e outro do bando contrário, que também julgava o mesmo, com sagrados votos e revotos prometia executar outra tal vingança. O Diabinho, que andava entre eles mexendo tudo para incitá-los, dizia que era muito mal feito,

* Ateá-los− Em Acad., atiçá-los; em Arq., para. os acirrar.

** Capataz − Em Acad., sátrapa. 340

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sendo todos companheiros, fazerem-se* sobre acintes, podendo haver paz entre uns e outros. De que, estimulado, o que falou primeiro disse que aquelas patifarias** eram de covardes e fracos e desavergonhados que, por se não atreverem às pessoas, se vingavam naquilo. Ao que replicou o segundo que o mesmo afirmava ele e o sustentaria em toda a parte, havendo quem o quisesse contradizer. Porque eu não temo, nem devo,*** nem se me dá de reales,**** e tanto me dá aqui como em Londres, que em toda a parte se come pão. Pois eu − respondeu o primeiro − não morro de atabafado, nem deixo passar carros por cima de mim, que tenho mais de arrojado que de sofrido. Esses remoques de você trazem água no bico. Para que são palavras onde podem ter lugar as obras? Aqui estou. Chegue-se para cá e veremos qual vai de lá! Começaram a tomar as varas para se sacudirem com elas, sairam os tios, mulheres e filhos, com bramidos e – “À que del-Rei!” −, − “ tem mão!”−-, − “não dês!” −, − “olha que te leva o Diabo!” −, e era tal a algazarra, que ninguém se entendia; mas como naquela ocasião, por ter amanhecido, vinha já muita gente para se embarcar, não deixou ir por diante a pendência e os meteu em paz,

* Fazerem-se, etc. − Em Acad., fazerem-se acintes; em Arq., fazerem acintes.

** Patifarias − Em Acad., moléstias. *** Não temo nem devo − Cfr. “quem não deve não teme”.

**** Reales − Em Acad., reales brancos.

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pedindo-lhe se aquietassem para que se não dissesse que em uma terra em que todos eram tios e parentes houvessem tais dissenções e discórdias*. Neste tempo, saía já Peralta da pousada em companhia do religioso, para se embarcarem; e achou à porta um pobre com duas muletas, que se fingia aleijado de uma perna, que trazia encolhida e muito entrapada, o vestido muito roto e todo cheio de remendos, o qual pediu uma esmola a Peralta com grandes lástimas e rogos; e, indo-lha a dar, o Diabi-nho, que estava esperando, lhe disse que não fizesse tal porque aquele homem era o mais perverso e desalmado que tinha o Mundo, como logo veria; e, virando-se para o pobre, lhe disse: Maior esmola do que a que pedes te quero eu fazer, e esta será dar-te, por esse vestido que trazes, tão roto e remendado, outro novo que tenho, que te cubra as carnes e te defenda do frio, que me lastima ver-te com esse, tão desagasalhado. Atónito estava Peralta e o religioso, não menos de verem a oferta do Diabinho, esperando o fim em que havia de parar.

Respondeu o pobre ao Diabinho que Nosso Senhor lhe pagasse a vontade com que, compadecido dele, lhe oferecia aquela caridade, mas que a troca do vestido lha não aceitava, porque com o que trazia esfarrapado e roto, ainda que fosse à conta da sua descomodidade, provocava a mais compaixão para lhe darem esmola.

*Pedindo-lhe se aquietassem ... − Em Acad., a redacção é até o fim do período a seguinte: pedindo-lhes que se quietassem e não quisessem que se dissesse por eles “quem é teu inimigo? Oficial do teu ofício”.

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Pois, velhaco, − lhe disse o Diabinho − a mi que las viendo* me queres enganar?! Cuidas que mamo no dedo? Não sabes que te conheço pelo mais facinoroso pirata que salteias** estradas, aonde executaste tantas mortes e latrocínios, e agora com a carta de seguro da tua fingida*** aleijão e desses remendos, tesouro de trezentos dobrões, que neles trazes cosidos, vens a roubar as esmolas dos pobres? Ficou o pobre tão sobressaltado e tão fora de si, de ouvir as verdades que o Diabinho lhe disse, que não teve outra causa que responder senão: Senhores, se é tal,**** levem-me todos os diabos, ou todos os barqueiros, que são piores que eles! _ Ora já que assim é, − disse o Diabinho − enquanto se não lança mão da palavra eu vou dar recado à Justiça, e ela averiguará esta questão. Apenas o Diabinho acabou de pronunciar estas palavras, fingindo que ia dar recado à Justiça, quando o pobre, sarando repentinamente da aleijada perna, fugindo que parecia vento***** e pudera dar muito que invejar à ligeireza de Atalanta.******

* Viendo - Em Acad., viendo yo. ** Salteias - Em Acad., salteou; em Arq., salteia.

*** Fingida - A palavra aleijão usou-se também como do género feminino. Não obstante, em Acad. e Arq. é considerada do masculino.

**** Se é tal − Em Acad., se tal é. ***** Fugindo que parecia vento, etc. − Em Acad.,

fugindo equiparava o vento e pudera dar muito que invejar à ligeira Atlanta; em Arq., fugiu que parecia vento, podendo dar muito que invejar à ligeireza de Atlante.

****** Atalanta (e não Atlanta ou Atlante) − é nome mitológico de uma donzela caçadora e guerreira.

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O Diabinho, que já tinha penetrado as relíquias que Peralta trazia ao pescoço, que o religioso lhe havia dado, pela resistência que para chegar a ele lhe fazia sua virtude, temeroso de que o religioso que o acompanhava o descompusesse com algumas justificações e exorcismos, não quis deixar aquele passarinho do pobre, que tinha na mão, pelo de Peralta, que ia voando com asas dos referidos privilégios; e assim, despedindo-se de Peralta com a promessa de que algum dia se veriam, desaparecendo foi seguindo o pobre. Ausente o Diabinho, ficou o religioso admirado de ver qual era a natureza do Demônio, pois até os que mais se deixavam enganar dele perseguia,* seus sequazes na vida, como se viu no exemplo do referido pobre e diferenças que arguiu entre os bar-queiros, de quem ele publicava tantas maldades. Peralta não cessava de dar graças a Deus, de se ver com remédio para seu intento e livre de tão infernal companheiro. Embarcaram enfim e, enquanto durou a viagem, fez o religioso, que era homem douto, um sermão aos passageiros sobre os ardis e enganos do Demônio, recontando-lhe, de André Peralta, a prudência com que se não deixara vencer deles, exortando aos barqueiros fossem muito reformados e timoratos, porque o Diabo publicava que eram piores que ele mesmo, e que com inveja disso andara a noite passada entre eles metendo cizanias para que se espancassem e ferissem,

* Perseguia, etc. − Em Acad., e mais seus sequazes eram, perseguia na vida.

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OBRAS COMPLETAS DE A. JOSÉ DA SILVA ficando em mortal ódio. De que todos se benziam* muitas vezes, e edificados das exortações do religioso. Acabada a viagem, que foi muito boa, assim que desembarcaram se foi Peralta com o religioso caminho do convento de Xabregas, aonde ao outro dia se lhe lançou o hábito do seráfico Padre S. Francisco, que ele recebeu com grande edificação e alegria.**

FIM

* Se benziam − Em Acad., se benzeram.− E edificados - Em Acad., ficando edificados.

** Edificação e alegria − Em Acad., edificação, gosto e alegria.

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