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Práxis Educacional

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Práxis Educacional

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Departamento de Filosofia e Ciências Humanas (DFCH)

Prof. Dr. Abel Rebouças São JoséReitor

Prof. Rui MacêdoVice-Reitor

Prof. Ms. Paulo Sérgio Cavalcanti CostaPró-Reitor de Extensão e Assuntos Comunitários

Prof. Ms. Sidiney Alves CostaDiretor do Departamento de Filosofia e Ciências Humanas

Profª Drª Maria Iza Pinto de Amorim LeiteCoordenadora do Grupo de Pesquisa Políticas Públicas, Gestão e Práxis Educacionais

Profª Drª Lívia Diana Rocha MagalhãesCoordenadora do Museu Pedagógico

Jacinto Braz David FilhoDiretor da Edições Uesb

Estrada do Bem Querer, km 4 - Fone: (77) 3424-8716. E-mail: [email protected]: 45083-900 - Vitória da Conquista - Bahia

Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia

Catalogação na Publicação: Biblioteca Central da Uesb Práxis Educacional/Revista do Departamento de Filosofia e Ciências Humanas da

Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia – n. 2 (nov. 2006). – Vitória daConquista: Edições Uesb, 2006.Anual

ISSN 1809-0249

1. Prática de ensino – Brasil – Periódicos. 2. Professores – Formação – Brasil.3. Trabalho e educação – Brasil. I. Universidade Estadual do Sudoeste daBahia, Departamento de Filosofia e Ciências Humanas. II. Título.

CDD: 370.71081

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Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia

Práxis Educacional

ISSN 1809-0249

Práxis Educacional Vitória da Conquista n. 2 p. 1-298 2006

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Copyright © 2006 by Edições Uesb

Práxis Educacional

Revista do Departamento de Filosofia e Ciências Humanas (DFCH) daUniversidade Estadual do Sudoeste da Bahia (Uesb) n. 2 – 2006

Comitê Editorial

Ms. José Rubens Mascarenhas de Almeida (Coord.)Drª Ana Palmira Bittencourt Santos Casimiro

Drª Lívia Diana Rocha MagalhãesSecretárias: Ms. Edinalva Padre Aguiar e

Ms. Gerenice R. de Oliveira Cortes

CONSELHO EDITORIAL

Ms. Ana Cláudia Pacheco, Drª Ana Elizabeth Santos Alves (UESB), Drª Ana Palmira B. SantosCasimiro (UESB), Dr. Antônio Vital Menezes de Souza (UNEB), Ms. Cláudia AlbuquerqueLima (UESB), Ms. Claudinei C. Sant’Ana (UESB), Ms. Cláudio Pinto Nunes (UESB), Dr.Diógenes Cândido de Lima (UESB), Dr. Edson Silva de Farias (UFBA), Dr. Gaudêncio Frigotto(UERJ), Ms. Isabel Cristina de Jesus Brandão (UESB), Ms. Itamar Pereira de Aguiar (UESB),Dr. João Cardoso (UESB), Dr. Jornandes Correia (UESB), Dr. José Albertino Lordelo (UFBA),Ms. José Carlos Simplício (UESB), Ms. José Jackson Reis dos Santos (UESB), Ms. José RubensMascarenhas de Almeida (UESB), Ms. Jussara Almeida Midlej Silva (UESB), Drª Kátia Siqueirade Freitas (UFBA), Drª Leila Pio Mororó (UESC), Drª Lia Vargas Tiriba (UFF), Drª Lianna deMelo Torres (UFS), Drª Lívia Diana Rocha Magalhães (UESB), Dr. Luiz Otávio Magalhães(UESB), Dr. Marcelo Barreira (UESB), Ms. Milene de Cássia Portela Gusmão (UESB), DrªMaria da Conceição Fonseca Silva (UESB), Drª Maria do Pilar Cunha e Silva (UFBA), DrªMaria Iza Pinto de Amorim Leite (UESB), Drª Marta Araújo (UFRN), Drª Moema Maria BadaróCartibani Midlej (UESC), Ms. Nilma Margarida de Castro Crusoé (UESB), Ms. Núbia Moreira(UESB), Dr. Oswaldo Alonso Rays (UFSM/Unifra), Dr. Reginaldo de Souza Silva (UESB), DrªRita de Cássia Mendes Pereira (UESB), Dr. Roberto Sidnei Alves Macedo (UFBA), Dr. RomualdoPortela Oliveira (USP), Ms. Ruben de Oliveira Nascimento (UESB), Ms. Sandra Márcia PereiraCampos (UESB), Drª Tatiana Lebedeff (UPF), Drª Vera Fartes (UFBA).

REVISTA PRÁXIS EDUCACIONALUNIVERSIDADE ESTADUAL DO SUDOESTE DA BAHIA (UESB)

Departamento de Filosofia e Ciências Humanas (DFCH)Caixa Postal 95 – Vitória da Conquista – BA

CEP: 45083-900 – Fone: (77)3424-8652E-mail: [email protected]

http://www.uesb.br/editora

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SUMÁRIO

EditorialJosé Rubens Mascarenhas de Almeida .............................................................. 9

ENTREVISTA

Questões para Paolo NosellaLívia Diana Rocha Magalhães ...................................................................... 15

ARTIGOS

Apontamentos sobre a técnica de periodizarMarcos Jorge .................................................................................................. 23

A compaixão na história: atributo antropológico e ocultamentoIleuza Costa Cardoso e Marta Maria Amorim Silva .................................... 35

Pensando a relação escola e sociedade na perspectiva de BourdieuVânia Rita Donadio Araújo ......................................................................... 57

Educación y reproducción cultural: el legado de BourdieuJorge García Marín ........................................................................................ 71

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Investigação-ação na formação de profissionais pesquisadores(as):uma experiência no ciclo de aprendizagem e na educação de pessoasjovens e adultasMaria Iza Pinto de Amorim Leite e José Jackson Reis dos Santos ................. 79

Anotações sobre o processo de ensino e aprendizagem de históriapara alunos surdosCélia Regina Verri e Regina Célia Alegro ..................................................... 97

O currículo no Brasil colônia: proposta de uma educação para a eliteSolange Aparecida Zotti ..............................................................................115

Educação popular rizomática: educação das multiplicidadesWilson da Silva Santos ................................................................................ 141

Crianças pequenas em Vitória da Conquista: uma proposta de trabalhofora da educação infantilAna Lucia Castilhano ................................................................................. 153

Educação do campo: alfabetização e escolarização de pessoas jovens eadultas assentadas no Sudoeste da BahiaSilvia Regina Marques Jardim e Sidiney Alves Costa .................................. 171

DOSSIÊ TEMÁTICO

Fontes para a história da educaçãoAntonietta d´Aguiar Nunes ........................................................................187

Museu pedagógico: a intervenção acadêmica como ação de preservaçãode fontes para a história da educação do centro-sul da Bahia Ana Palmira Bittencourt Santos Cassimiro, Lívia Diana Rocha Magalhães eRuy Hermann Araújo Medeiros ..................................................................207

Registro em arquivos sobre a indústria de laticínios na região Sudoeste daBahiaAna Elizabeth S. Alves, Gilneide de Oliveira Padre Lima e Manoel NunesCavalcanti Júnior ......................................................................................... 221

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O uso das fontes na pesquisa historiográfica: questões metodológicasiniciaisMarlete dos Anjos Silva Schaffrath ..............................................................237

RELATOS DE EXPERIÊNCIAS

Mulher, professora e ativista social: o movimento das professoras pri-márias da Bahia, em 1947Alcides Leão Santos Júnior .......................................................................... 249

Filosofia e cinema, uma articulação entre o afetivo e o racional comoforma de encaminhamento do pensar: um relato da experiência do pro-jeto “Filosofia e cinema: estética e racionalidade da imagem”Clédson L. Miranda dos Santos ................................................................... 263

Saberes docentes: iniciando uma pesquisa nos cursos de licenciaturaem matemáticaJanuária Araújo Bertani, Janice Cássia Lando, Inês Angélica Andrade Freire,Roberta D’Ângela Menduni e Márcia Graci de Oliveira Matos .................. 275

RESENHA

Deslocamentos deleuzeanos para a educaçãoBenedito Gonçalves Eugênio .........................................................................291

Normas para apresentação de trabalhos .............................................. 295

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EDITORIAL

A apresentação deste segundo número da Revista PráxisEducacional tem uma preocupação precípua com a articulação entreeducação, história, filosofia, sociologia... efetivando o próprio sentidoda práxis educacional.

Priorizamos convidar para uma breve entrevista o professorPaolo Nosella, que analisa importantes temas que fizeram parte daformação dos educadores brasileiros no último quartel do século XX enos presenteia com uma espécie de “inventário crítico” sobre o sentidode categorias centrais. Na contramão de esquemas de pensamentos eanálises que sintetizam hoje a educação brasileira, tais comocompetência, escola, qualidade e educação, Nosella nos faculta oreencontro com conhecidas discussões, mas sob novos olhares, à luzda história.

No leque de artigos aqui publicados, apresentamos uma ampladiversidade de abordagens. O professor Marcos Jorge, com“Apontamentos sobre a técnica de periodizar” discute a problemáticada periodização na história da educação brasileira, levando em contaaquilo que se constitui como um continuum humano. Este autor faz umimportante trajeto sociológico que vai da reflexão de historiadores quepensaram tal problemática, desde a perspectiva do materialismo históricoaté a Nouvelle Histoire.

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José Rubens Mascarenhas de Almeida10

No artigo intitulado “A compaixão na história: atributoantropológico e ocultamento”, Ileuza Costa Cardoso e Marta MariaAmorim Silva, partindo de um viés histórico-antropológico, buscammostrar que a trajetória humana é marcada não só por fatos cruéis ebeligerantes, mas também pela compaixão.

Dois artigos nos aproximam da obra de Pierre Bourdieu. VâniaRita Donádio Araújo apresenta contribuições do pensamento deBourdieu no campo pedagógico e, mais especificamente, reflexões sobrea natureza do trabalho escolar e as dificuldades concretas da práticapedagógica, focalizando a relação escola/sociedade, cuja ação reproduzas desigualdades sociais. Fundamentada na perspectiva de Bordieu, aautora ressalta a mudança de rumo do papel da educação comoinstituição pressupostamente democratizadora e transformadora dasociedade para tornar-se mantenedora e legitimadora de privilégiossociais. Em outro artigo, Jorge Garcia Marín afirma que, no contextodas teorias da reprodução e de sua influência no desenvolvimento dosparadigmas do conflito na sociologia da educação, a análise crítica dosistema educacional e seu importante papel na reprodução socioculturalcontinuam como temas importantes na hora de abordar a educação.Para Marín, o diálogo com a obra de Bourdieu, principalmente no quediz respeito à reprodução, permite conflitar as relações educacionais,assim como pensar esquemas de ação que sigam políticas contra-hegemônicas.

Dois artigos articulam, dialeticamente, o fazer pedagógico. Oprimeiro, escrito a quatro mãos pelos professores Maria Iza PintoAmorim Leite e José Jackson Reis dos Santos, aborda a investigação-ação como práxis coletiva e colaborativa, resgatando o papel social dauniversidade, cuja função principal é desenvolver e enriquecer o olhardos sujeitos com ações que visam ao objeto em sua própria fontehistórica. O segundo é uma importante abordagem acerca do ensino-aprendizagem na disciplina história, envolvendo o aluno surdo ou comperda auditiva, e se constitui uma boa contribuição para o alargamentodas possibilidades de inserção indiscriminada dos indivíduos no exercício

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11Editorial

dos seus mais elementares direitos – e a educação se insere aí como umdos principais. Foi escrito pelas professoras Célia Regina Verri e ReginaCélia Alegro.

Num instigante artigo, Solange Aparecida Zotti analisa, com baseem fontes bibliográficas, a relação entre o contexto socioeconômico epolítico brasileiro do período colonial – caracterizado por um modelomercantilista baseado na exploração da mão-de-obra escrava –, aproposta educacional e as propostas curriculares oficiais que ali sedesenharam, calcadas na profunda e desmedida depredação da colônia.Denuncia a autora que a lógica desse modelo de educação era a desedimentar a visão do colonizador, sendo a catequese e a educação daelite seus principais objetivos.

A filosofia não poderia ficar fora deste número da Práxis. Wilsonda Silva Santos busca articular conceitos oriundos da filosofia deleuzeanano campo da educação popular e suas multiplicidades em conexõesproduzidas nas mais diversas particularidades, em consonância com aprática social concreta, no artigo “Educação popular rizomática:educação das multiplicidades”.

Em se falando de prática social, Ana Lúcia Castilhano aborda oproblema de crianças de 0 a 4 anos num bairro da periferia de Vitóriada Conquista, alijadas da Educação Infantil, numa clara denúncia dedemanda não atendida nesse setor. No âmbito das políticas públicas,Silvia Regina Marques Jardim e Sidiney Alves Costa analisamparcialmente o Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária(Pronera), na região Sudoeste da Bahia.

O eixo temático deste número da Práxis traduz a preocupaçãocaracterística do Museu Pedagógico da Uesb no que se refere às fonteshistóricas como elementos fundadores da história e da historiografiada educação no Brasil, mais especificamente da região Centro-Sul doEstado da Bahia. Resgate e conservação, fatores imprescindíveis nofazer história. Acreditamos que sem documentos não há história.

Hoje, com a ampliação da concepção de fontes, a história e ahistoriografia da educação vêem-se também ampliadas em suas

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José Rubens Mascarenhas de Almeida12

possibilidades investigativas. Assim, no dossiê Fontes DocumentaisPara a História da Educação, buscamos sintetizar, quase numaconfiguração caleidoscópica, a problemática indissociável do fazerhistórico-historiográfico que é a incessante busca e conservação dasfontes históricas. Aqui, a história da educação, como um dos ramos daHistória que tem conquistado amplos espaços nos últimos 40 anos, éabordada por Antonietta d´Aguiar Nunes, no artigo “Fontes para ahistória da educação”; em “Museu pedagógico: a intervenção acadêmicacomo ação de preservação de fontes para a história da educação doCentro-Sul da Bahia”, Ana Palmira Casimiro, Lívia Diana Magalhães eRuy Hermann Medeiros delineiam os objetivos-fins do MuseuPedagógico da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia; em“Registro em arquivos sobre a indústria de laticínios na região sudoesteda Bahia”, os autores Ana Elizabeth S. Alves, Gilneide de Oliveira PadreLima e Manoel Nunes Cavalcanti Júnior apresentam uma brevediscussão sobre documentos encontrados em arquivos acerca dodesenvolvimento da indústria de laticínios e da qualificação profissionalrealizada pelo Posto Experimental de Laticínios, na região de Vitóriada Conquista, Bahia, articulando aspectos do desenvolvimentosocioeconômico brasileiro e suas repercussões sobre a economiaregional e a educação. Por fim, em “O uso das fontes na pesquisahistoriográfica: questões metodológicas iniciais”, Marlete dos AnjosSilva Schaffrath investiga o lugar das fontes na pesquisa historiográfica.

Três relatos de experiência articulam o fazer pedagógico. Oprimeiro é apresentado por Alcides Leão Santos Junior, que aborda amobilização das professoras primárias na Bahia, na década de 40, doséculo XX, e ressalta o papel da mulher – e, nesta, a professora primáriacomo responsável pela criação da Sociedade Unificadora de ProfessoresPrimários –, onde objetiva fatos e acontecimentos que marcaram essemovimento por meio da memória dos “sujeitos epistêmicos”. Osegundo relato apresenta o projeto de extensão “Filosofia e cinema:estética e racionalidade da imagem”, realizado no ano de 2005, naUniversidade Estadual do Sudoeste da Bahia, estruturado segundo o

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13Editorial

“conceito-imagem”, fundamentado no que o autor – Clédison Mirandados Santos – considera a imagem cinematográfica como elemento capazde sintetizar conceitos de valores universais. No último relato deexperiência, as autoras, Januária Araújo Bertani, Janice Cássia Lando,Inês Angélica Andrade Freire, Roberta D’Ângela Menduni e MárciaGraci de Oliveira Matos trazem à tona reflexões sobre a prática e ateoria no ensino da Matemática segundo a percepção de discentes.

Fechando este número, uma resenha, escrita pelo professorBenedito Eugênio, do livro de Silvio Gallo, Deleuze e a educação, nosatualiza acerca de mais uma obra que aborda a filosofia deleuzeana naeducação.

Destarte, pensamos que o número 2 da revista PráxisEducacional cumpre com o seu papel, relatando a prática social e ateoria, interagindo, pedagogicamente, numa simbiótica e única relação.

José Rubens Mascarenhas de Almeidapelo Comitê Editorial do Museu Pedagógico da Uesb.

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QUESTÕES PARA PAOLO NOSELLA

Lívia Diana Rocha MagalhãesPelo Comitê Editorial do Museu Pedagógico da Uesb

O professor Paolo Nosella é um intelectual bastante conhecidono Brasil, particularmente por suas publicações sobre a EducaçãoBrasileira, na área de Trabalho e Educação, História da Educação, entreoutras, e por sua inestimável contribuição na difusão da literatura deAntônio Gramsci para a área educacional.

Na entrevista que se segue, ele nos proporciona uma reanálise detemas que fizeram parte da formação e preocupação dos educadoresbrasileiros no último quartel do século XX, possibilitando uma espéciede “inventário crítico” sobre o sentido que certas categorias de análiseassumem na problematização da prática e de concepçõeseducacionais. Na contramão de esquemas de pensamentos e análises quesintetizam o presente da educação brasileira, em questões de conceitostécnicos destituídos de história e de contradições sociais, comocompetência, escola, qualidade e educação, o autor nos possibilita oreencontro com discussões sobre “competência técnica x competênciapolítica”, “Escola desinteressada x Escola politécnica”, à luz das leiturasde Gramsci, historicizando-as e superando-as por meio de umaincursão que propicia a certeza de que precisamos continuardiscutindo e estudando a educação brasileira.

Práxis Educacional Vitória da Conquista n. 2 p. 15-19 2006

ENTREVISTA

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Lívia Diana Rocha Magalhães16

Práxis Educacional (PE): Em seu artigo “Compromisso político ecompetência técnica: 20 anos depois” e na sua palestra realizada no VColóquio do Museu Pedagógico da Uesb, o senhor rediscute o temacompromisso político e competência técnica. Qual a importância doretorno a um tema tão debatido na década de 1980?Paolo Nosella: De forma geral, os intelectuais brasileiros estiveramsempre envolvidos, direta ou indiretamente, em política. Essacaracterística não é defeito, aliás, considero-a um valor. A intelligentziabrasileira nunca se confinou exclusivamente na pura filosofia nem seenclausurou nas sacristias ou nas academias. Teve sempre um pé (oumais que um pé) no espaço político, desde os Jesuítas, passando pelosPioneiros da educação, até os atuais educadores em geral.

Tal compromisso político, como disse, é um valor. Mas há formase formas de envolvimento do intelectual com a política. Ora, sobreessas variadas formas, pouco se refletiu.

Meu artigo e minha palestra pretenderam estimular a reflexãosobre as variadas formas de compromisso político dos intelectuais,começando por caracterizar as duas principais: a orgânica e a tradicional.

Dos anos 70 e 80, do século passado, para os dias de hoje, aconjuntura política do país mudou muito. Assim, a forma deengajamento político do educador necessariamente deve tomar novasperformances. Simplificando: se, naqueles anos, era prioritário umengajamento orgânico, isto é, de carteirinha, hoje a carteirinha partidáriapara um educador, mesmo sendo ainda um valor, não é mais uma“necessidade” histórica. Com efeito, o ato pedagógico já possui em si adimensão clara (mesmo que implícita) do compromisso ético-políticodo educador.

Em suma, o intelectual orgânico e o tradicional representam duasformas de compromisso político; não se contrapõem entre si, mas searticulam e complementam. Ora, o equívoco em que muitos educadorescaíram nos anos 80 foi considerá-las antagônicas. Dependendo daconjuntura política, uma forma de engajamento pode ser maisimportante ou prioritária do que a outra; as duas, porém, são necessáriase complementares entre si.

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17Entrevista

PE: O senhor afirma que, para compreendermos a função e a naturezados intelectuais, precisamos ler Gramsci com maior atenção,contrariamente ao que ocorreu nos anos de 1980. O senhor poderiaexplicitar melhor a necessidade dessa releitura?PN: Precisamos reler Gramsci, justamente porque nos anos l980 suaobra foi lida pelo viés do compromisso orgânico, como se,necessariamente e sempre, ele priorizasse as atividades políticas“orgânicas” dos intelectuais, em detrimento das suas atividades“tradicionais”. Mas isso não é verdade. Em certos momentos (ascensãodo fascismo), Gramsci priorizou o intelectual orgânico, mas, em outrosmomentos, não. Aliás, se há uma especificidade nele, que o distinguedos comunistas dirigentes da época, é justamente a de focalizar e analisara cultura e a política desinteressadas e, paralelamente, a função e o pesopolítico dos intelectuais tradicionais. Ele deixa claro que o compromissopolítico do intelectual tradicional tem um valor extraordinário einsubstituível que, freqüentemente, o partido não entende. Só ointelectual tradicional pode fornecer ao partido a dimensão“desinteressada” da política, a perspectiva histórica de longo alcance, acultura elevada e complexa da modernidade, os valores éticos que fazemdo “poder” um verbo, e não um substantivo. Quando o partido osubestima, ou até mesmo o dispensa, o intelectual tradicional torna-seuma mera máquina burocrática, um cego instrumento de poder.

Obviamente, no novo quadro político em que se encontra oBrasil hoje, é indispensável ler o Gramsci que resgata a dimensão políticadas atividades tradicionais dos educadores e dos intelectuais em geral.A carteirinha, isto é, o engajamento político orgânico se, de um lado,ajuda, de outro, aprisiona a inteligência e o coração do educador. Ora,Gramsci, ultrapassando o marxismo determinista e introduzindo omarxismo investigativo e “desinteressado”, não aceita (salvo em certassituações históricas de extrema emergência) o taticismo político, porquejamais aceita deformar a verdade ou sonegá-la simplesmente paraganhar votos.PE: O senhor poderia discutir melhor sua afirmação de que “é precisoresgatar o valor da dúvida como método”?

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Lívia Diana Rocha Magalhães18

PN: A dúvida é a mãe da ciência. O intelectual orgânico dificilmenteduvida e menos ainda pode expressar suas dúvidas, pois seucompromisso é com a organização, não com a ciência. Quando Brechtescrevia que “O nosso recurso novo é a dúvida”, ele apontava para oprocesso de descolamento de Galileu do rígido organismo medieval.Não estava ainda clara, para esse famoso cientista, a estrutura do estadomoderno, mas, para chegar a ele, era preciso começar a duvidar daestrutura milenar da cristandade medieval. O que não era pouca coisa.Ora, Galileu podia duvidar porque era um intelectual tradicional, umfísico-matemático, livre de relações orgânicas com a estrutura do poderestabelecido, isto é, não era clérigo. Só o intelectual tradicional podeduvidar profundamente e manifestar abertamente suas dúvidas.PE: Em tempos atuais, como poderíamos compreender a necessidadeda escola e da política “desinteressadas”?PN: Uma escola “desinteressada” hoje é aquela que possibilita aosjovens adquirir o rigor científico e exercer responsavelmente a liberdade.Rigor científico é o método que eleva a cultura popular para os níveisprofundos da arte, da filosofia e da ciência. A aplicação desse métodonão admite leviandade, superficialismos, espontaneísmos,assistencialismos, etc.

O exercício responsável da liberdade ocorre quando o jovemcresce junto com a escola, que deve se tornar um espaço público paraacolher não somente seus braços e suas mentes, e, sim, também, suavida, suas organizações, seus sonhos, sua criatividade, suas tendênciasconstrutivas e suas habilidades. Por isso, para Gramsci, a expressão“educação politécnica” é inadequada por ser semanticamenteinsuficiente, visto que o termo inevitavelmente põe o acento noinstrumento do trabalho, e não na liberdade do trabalhador.

A política “desinteressada” é a forma de conquistar e exercer opoder, sem incorrer nos três atávicos e mortíferos vícios da política: omesquinho taticismo político, o determinismo histórico e oburocratismo autoritário. A política desinteressada não deixa de dizer averdade, e toda a verdade, mesmo que isso signifique, a curto prazo,perder uma eleição, pois sabe que o taticismo político, se a curto prazo

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19Entrevista

pode trazer vitórias eleitorais, a longo prazo prejudica os ideais da ver-dade e da autenticidade. O determinismo político não considera a his-tória como um processo dialético, e sim como a realização dos seusplanos e sua previsão mecânica e dogmática. O burocratismo político,finalmente, substitui os valores éticos por regras formais, instituídas eprotegidas pela força.PE: Será que, de fato, a idéia da “escola desinteressada” tem sidocompreendida no Brasil?PN: Infelizmente, acho que a bandeira da “educação politécnica”, emque pese às suas excelentes boas intenções, significou uma perda detempo, um freio para o esclarecimento da idéia gramsciniana de “escoladesinteressada do trabalho”. Cito Fernando Pessoa: “Quem não vêbem uma palavra,/não pode ver bem uma alma”.

Não me preocupo com o entendimento que o neoliberalismotem de “escola”. Pois, este já o sabemos: o neoliberalismo entendedoar uma escola assistencial para os pobres, uma profissionalizantepara os trabalhadores e uma elitizante para os futuros dirigentes. Oque me preocupa é a compreensão que os marxistas ou socialistas têmde escola. Nesse sentido, repito que a expressão “politécnica” não foisemanticamente feliz. Ela nos impediu uma interlocução clara com asociedade em geral e limitou nossa elaboração teórico-prática de ummodelo de escola voltado, em primeiro lugar, para a liberdade dotrabalhador, ou seja, para entender e aplicar a dialética íntima entre oreino da necessidade e o da liberdade. Assim, fomos encurralados pelaforça da semântica na reflexão sobre o ensino médio e sobre o impactodas novas tecnologias.

Referências Bibliográficas

NOSELLA, Paolo. O compromisso político do intelectual. In: ______.Qual compromisso político?: ensaios sobre a educação brasileira pós-ditadura. 2. ed. Bragança Paulista: EDUSF, 2002.

NOSELLA, Paolo. Compromisso político e competência técnica: 20anos depois. Eccos Revista Científica, São Paulo: Centro UniversitárioNove de Julho (Uninove), v. 6, n. 1, jun. 2004.

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A R T I G O S

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APONTAMENTOS SOBRE ATÉCNICA DE PERIODIZAR

Marcos Jorge *

Resumo: O artigo apresenta uma discussão sobre o problema da periodizaçãona História. Com base em alguns autores selecionados, inicialmente traça umpanorama da questão que envolve o segmentar do tempo vivido, em seguidadestaca as questões que envolvem a técnica do periodizar no campo disciplinarda História e, finalmente, apresenta os critérios para o uso da periodização.

Palavras-chave: Teoria da História. História. Periodização.

Introdução

Um tema atualmente discutido em História e em História daeducação é a periodização, ou seja, a secção do tempo histórico parafins analíticos, ou instauração de segmentos naquilo que se constitui ocontinuum humano.

Entre o início e o fim de qualquer atividade humana no tempo,há a mudança: nenhum homem, nenhuma sociedade são os mesmosde ontem, e serão diferentes dos de hoje; a transformação, por maisínfima e sutil que seja, remodela quem está inserido no processohistórico, como observa Reis (2005):* Doutor em Educação pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Professor daUniversidade Estadual de Londrina (UEL). E-mail: [email protected].

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Entre o ser inicial e o final há o tempo, a duração que altera oser. Essa duração não é “natural” – contínua, homogênea,regular, mensurável –, é “humana”, “vivida”, portantodescontínua, heterogênea, irregular, qualitativa e não-numerável(REIS, 2005, p. 180).

Mesmo com a renovação metodológica ocorrida com omovimento da Nouvelle Histoire, (em que o conceito de tempo é aceitocomo descontínuo, e as análises se concentram em recortes temáticos),a reflexão sobre o periodizar tem despertado muito interesse,independente de qual seja a orientação metodológica do pesquisador.Reis (1994) escreve a esse respeito:

A história, se apreendida por conceitos, ganha uma novaperiodização [...]. A periodização não se relaciona mais à históriauniversal. A Nouvelle Histoire não estuda épocas, mas estruturasparticulares. É sempre, como já foi mencionado, uma “históriade [...]” circunscrita no tempo e no espaço (REIS, 1994, p. 24).

Outro autor contemporâneo, Le Goff (1996), reforça essaavaliação quanto à forma como a Nouvelle Histoire concebe a noção deruptura entre passado e presente:

A história seria feita segundo ritmos diferentes e a tarefa dohistoriador seria, primordialmente, reconhecer tais ritmos. [...]mais importante seria o nível mais profundo das realidades quemudam devagar (geografia, cultura material, mentalidades: emlinhas gerais as estruturas) trata-se do nível das “longasdurações” (LE GOFF, 1996, p. 5).

O objetivo deste artigo é discutir a questão da periodização(um procedimento imprescindível no fazer historiográfico),considerando as reflexões de historiadores que escreveram sobre oassunto. Tal propósito se insere numa preocupação oriunda de umapesquisa sobre a periodização na História da educação brasileira, ondese pôde constatar a precariedade de trabalhos teóricos que discutamo ato de periodizar.

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25Apontamentos sobre a técnica de periodizar

Utilizando como metodologia a pesquisa bibliográfica, realizamosum levantamento de autores oriundos do campo da História queescreveram sobre o tema da periodização, posteriormente fizemos umaanálise desses trabalhos, buscando compreender a questão do periodizare, finalmente, traçamos algumas diretrizes gerais cujo objetivo foi o deregistrar as principais regras, com base nos historiadores estudados,para a utilização do recurso chamado de periodização.

Periodização é um tema complexo, pois envolve o “devir”humano por excelência, ou seja, a vida, as ações humanas impressas notempo; e a intenção de captar esse tempo é algo de extrema controvérsia,que inquieta os historiadores:

Seria possível segurar esse tempo humano que transcorrevertiginosamente, vivido na inquietação, no terror do horizontemortal? Seria possível regular a clepsidra para que a areia/águanão desça de uma só vez, sem deixar vestígios do ser que estavana parte superior? (REIS, 2005, p. 181).

Eis a grande marcha da História: reconstruir aquilo que já não é(o passado) para tentar dar sentido ao momento que passa, ou seja, opresente. Para tanto, a pergunta do pesquisador é: tal tarefa é possível?E o autor complementa:

Entretanto, é preciso controlar de alguma forma essa descidahumana no tempo, é necessário acompanhar essa passagem doshomens. Como? Essa é a problemática do tempo histórico: oacompanhamento dos homens em suas mudanças, e suadescrição e análise (REIS, 2005, p. 181).

Baliñas (1965) expõe as inquietações de Julián Marías sobre osegmentar do tempo histórico:

La ordenación histórica no es uma mera sucesión cronológica,en virtud de la cual se podría hacer corresponder un númeroordinal a cada punto de vista y a cada forma de potencia de loreal correlativamente. En primer lugar, el tiempo es irreversible[...]. En segundo lugar, cada momento es cualitativamente

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insustituíble [...]. En tercer lugar, cada situación histórica vienede las demás anteriore, y éstas quedan implicadas en ellas(MARÍAS apud BALIÑAS, 1965, p. 324-25).

O problema da periodização

A questão do periodizar está presente na História e em quasetodas as disciplinas (artes, literatura, sociologia, antropologia etc.), masé ainda pouco estruturada do ponto de vista teórico.

Conceitualmente, periodizar é uma operação que consiste nadivisão cronológica para efeitos de análise de uma grande unidadetemporal. Bauer (1957, p. 144) complementa que “esta separación lolhamamos ‘periodificacion’, y a los espacios de tiempo limitado poresse processo: períodos”.

Rama (1963, p. 176) fornece uma definição de período:

Por período histórico se entiende, de acuerdo a una recibidadefinición de C. J. Neumann “espacios de tiempo bienindividualizados de la vida histórica, que, por su contenido ysustancia, se ligan en una unidad, y que, justamente por ello, sedestacan de los que preceden o siguen”.

Ao que parece, periodizar é um processo controverso e carentede estudos mais sistematizados, porém tão importante para as ciênciasdo homem que, para poder melhor entender e organizar o conhecimentoda história da humanidade, se faz necessário proceder em recortes.

As questões relativas à cronologia (e à periodização) estãointrinsecamente ligadas ao fazer historiográfico e estão sempreamparadas nos valores de quem o realiza, como observa Bauer (1957,p. 147): “las cuestiones de periodificación están condicionadas por laconcepción que del mundo tenga el historiador”.

Dessa forma, o ato de periodizar não tem uma natureza em simesmo, é totalmente obra do pesquisador e tem um alcance bastantelimitado às suas necessidades, uma vez que “toda división histórica es,em último término, algo arbitrário y debe mantenerse dentro de ciertoslimites que ella misma proporciona” (BAUER, 1957, p. 153).

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Rodrigues (1969, p. 116) observa a artificialidade que encobretoda divisão periódica, os caracteres subjetivos que influem na escolhados marcos de um período e muitos outros fatores.

Em toda periodização se intromete a idéia do mundo dohistoriador ou filósofo. Uns preferem periodizar segundocritérios econômicos, outros, como Troeltsch, marcam osperíodos baseados nas transformações espirituais e culturaisou nas suas relações com as modificações econômicas, e outros,finalmente, como von Below, de acordo com a tradição,preferem apoiar-se nas modificações políticas.

O autor observa ainda um relativo desconforto no uso daperiodização para a análise histórica, pois, em certa medida, seccionaro tempo histórico, ainda que para efeito de método, entra em choquecom o material de trabalho do historiador, que é o “desenrolar”ininterrupto de eventos, consequência dos atos humanos sobre anatureza. Assim, “a história é realmente um suceder contínuo”, umtodo de difícil apreensão pelas partes.

No entanto, esse movimento encerra uma lógica interna quelhe dá estabilidade, coerência e impulso e integra esse mecanismo a“transformações e os nexos efetivos que as ligam como a um todo”.São justamente esses nexos que se prestam à análise histórica edevem ser dispostos em cortes ou períodos que comportariam as“tendências dominantes e que logo caracterizariam uma época”(RODRIGUES, 1969, p. 114).

Ainda segundo Rodrigues, estabelecidos os períodos, estes teriama função de destacar, dentre outras, toda a “cultura de uma época”,seus valores, crenças, seus objetivos materiais etc. Poderia ser que “umapessoa, um simples fato, um acontecimento encarnam em si mesmosum período” (p. 113). Por outro lado, essas chamadas “tendênciasdominantes” carregam os seus opostos, convivendo em permanentetensão; preparam o futuro, quando então se impõem definitivamente.

Percebe-se que “periodizar é interpretar”; é uma ação intelectualcircunscrita num tempo e espaço definidos, ou seja, socialmente

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marcados. O historiador, condicionado pelas conjunturas do seu tempo,procede a uma “leitura” das fontes disponíveis de uma determinadaépoca, estabelecendo um recorte para a análise.

No entanto, em razão dos avanços técnico-científicos, novas“interpretações” podem aflorar e, portanto, outros recortes sobreantigas fontes podem se estabelecer. Esse processo revela a relativadependência da periodização às “especificidades” da conjuntura emque se realiza:

Não é possível uma periodização estritamente “científica” damatéria histórica: os períodos adotados nunca são unidadesnaturais no sentido de se apresentarem espontâneamente aohistoriador como unidades unívocas (BESSELAAR, 1970, p. 93).

Segundo Besselaar (1970), o primeiro grande corte realizado peloshistortiadores instituiu dois períodos: Pré-História e História. Oprimeiro foi dividido em Idade da pedra e Idade dos metais, em queaquela se subdivide em duas fases: Paleolítico e o Neolítico; e esta, emduas: a do Bronze e a do Ferro. O domínio do fogo, as técnicas agrícolase a fundição de metais são os marcos de periodização na Pré-História.É possível observar, então, que o “período” é um marco de temporelativamente longo, que abrange características bem gerais e quecomporta a possibilidade de ainda ser subdividido em fases ou eras.

Dessa forma parece estabelecido que um período impulsionaoutro, tem uma existência e validade temporal finita, limitada e superadasempre por novas transformações técnicas, culturais e sociais que, porsua vez, demarcarão novas “quadras históricas”.

Rodrigues (1969), ao traçar um panorama da “história daperiodização”, observa que o recurso de subdividir a história dahumanidade em eras temporais não teve suas origens nas ciênciashistóricas. Foi o Cristianismo, ainda no tempos romanos, que fez atransposição dessa prática da astrologia para a História. Para isso, utilizouo livro de Daniel (VII, 14, 23), dividindo a Humanidade em quatrograndes impérios: Assírio, Persa, Macedônio e Romano. Esse esquema,denominado “quatro impérios universais” que se sucedem, perdurouaté o século XVI.

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Nos Tempos Modernos, inicia-se a fase de reformulação dessemodelo: Jean Bodin é o seu iniciador, mas os humanistas é que farão acrítica do método. Resgatando o legado greco-romano, concebem anoção do Medievo – caracterizado como um período entre duas eras de“luzes” – tempo obscuro e “desprezível” em que “a humanidade nãotomou banho” e que sucumbiu ante a Renascença.

Assim é estabelecida a divisão tripartite da História: AntigüidadeClássica, Idade Média, Tempos Modernos, que, embora se pretendauniversal, diz respeito à civilização ocidental. Ainda segundo o autor,esse padrão perdurou por longo tempo, pois continha o principalelemento crítico da Modernidade “que caracterizava os séculos dedomínio absoluto da Igreja Romana como uma época de superstiçõesobscuras e sombrias” (RODRIGUES, 1969, p. 116).

Esta divisão apresenta questionamentos quanto à limitação, porse referir basicamente à Europa Ocidental, e quanto à duração de cadaperíodo: a chamada Antigüidade Clássica abrange três ou quatromilênios; a Idade Média, quase mil anos; enquanto os Tempos Modernoscompreendem apenas quatro ou cinco séculos. A esta tripartição, foiacrescentado um quarto período, o “Contemporâneo”, com início em1789 e que se estende aos dias atuais.

Uma possível e prematura conclusão que se pode deduzir doexposto acima é a “obrigatoriedade” da periodização como requisitonecessário ao historiador para responder às perguntas que lhes são feitas.

Os critérios para periodizar

Periodizar é segmentar a rica experiência humana no tempo, tendocomo finalidade última identificar a lógica interna ou o sentido decoerência presente em determinada época histórica, ou seja, reordenar oencadeamento temporal, oferecendo organicidade ao fluir cronológico.Parece ser quase impossível o trabalho do historiador sem a periodização:

La necesidad que nos impulsa a la periodificación no es outraque la de iluminar la oscura trama de los fenómenos históricos,de compendiar y ordenar la madeja de las relaciones históricas.

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La periodificación nace de la necessidad de destacar, en suespecialidad, el sucesivo encadenamiento causal particular; nacedel conocimiento más profundizado de las relaciones del devenirhistórico (BAUER, 1957, p. 154-155).

Quanto aos critérios de periodização, Rodrigues (1969)apresenta alguns exemplos das ciências sociais: as periodizações“ideológicas” de Vico, Comte e Marx, que “interessam-se pelasignificação geral da história para a concepção do mundo”, em quefases se sucedem num movimento qualitativo à frente; as “sociológico-institucionais”, em que “se destaca o pensamento naturalista quecondiciona esses esquemas”, postula um ideal evolutivo, “um períodomais elevado” a ser atingido “para que o fim último da históriauniversal seja alcançado”, esquemas dos quais participam asperiodizações de Spengler, Toynbee, Werner Sombart e Max Weber;e as periodizações baseadas na “teoria dos ciclos históricos ourepetição cíclica” e na “teoria das gerações”, ambas com raízes nopensamento biológico, não utilizadas atualmente.

Reafirmando a gama de possibilidades para a periodização,Besseelaar (1970) apresenta como critério os “meios de subsistência”que o homem empregou para sobreviver. Assim, a história dahumanidade se dividiria em:

a) fase nomática que abrange o período paleolítico (60.000 –6.000 a.C.): o homem é caçador, pescador, colecionador etc.[...], sem praticar a agricultura ou o pastoreio; b) fase agrária epastoril, que se iniciou (em algumas regiões) no período neolítico(6.000 a.C.): o homem passa a viver da agricultura e do pastoreio;formação de Estados; aglomeração em cidades, etc.c) fase industrial e técnica, que teve seu início (pelo menos, emalguns países) por volta de 1800 d.C. e, hoje, começa a abrangero mundo inteiro (BESSELAAR, 1970, p. 94).

Dujovne (1959), citando Van Der Pot – historiador holandês1 –,apresenta os critérios deste autor que acredita que a periodização revela

1 Johan Hendrik Jacob Van Der Pot. De periodisering der geschiedenis: een overzicht der theoriëen.La Haya, 1951.

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a “síntesis más general de nuestro conocimiento histórico” (p. 272) e,em seguida, expõe as teses de seu “método” de periodização:

1ª), que la división no debe basarse em una ley histórica; 2ª),que “es deseable determinar el carácter de los períodos antesde fijar sus limites”; 3ª), que “es imposible determinar a prioridirectivas para medir la proporción correcta de la duración delos períodos o para establecer el número de ellos”; 4ª), que “emvez de fijar el comienzo de un período em el momento que seinicia el fenómeno nuevo que caracteriza tal período, espreferible fijarlo en el momento en que ese fenómeno nuevoadquiere primacías”; 5ª), que “no hay que determinar límitesdemasiado precisos para los períodos”; 6ª), que “es deseableque el valor tipológico de las denominaciones de los períodosno abarque más de un sólo aspecto de la civilización”; 7ª), que“es deseable que estas denominaciones se refieran todas almismo aspecto de la civilización”; 8ª), que “es deseable que lahistoria sea dividida considerando el aspecto de la civilizacióntenido por más impórtante a la luz de la concepción que noshayamos formados del mundo”; 9ª), que “la influencia de éstasobre la división de la historia en períodos debe limitarse al criteriode división y no debe llevar a construcciones apriorísticas de lahistoria misma” (VAN DER POT apud DUJOVNE, 1959, p. 272).

Ainda quanto aos parâmetros para um periodização relativamenterigorosa, encontramos a proposta metodológica de Bauer (1957):

1 – Cada período debe ser deducido de su objeto, esto es, delos hechos históricos mismos o de las concepciones de la épocaque abarca. Com otras palabras, no debemos llevar nuestropropio concepto a la caracterización de un período histórico.Los contemporáneos deben, al menos, haber sentido la sospechade hallarse situados, en ciertos aspectos, em una época detransición de las condiciones de vida en que hasta entoncesvivieron y de que esas condiciones van a orientarse, desde esemomento, em uma nueva dirección.2 – Todo período debe constituir un conjunto naturalmentebien delimitado y confiurado en si mismo, que se distingaclaramente del que lê precede y del que le sucede. K. J. Newmanncaracteriza esto acertadamente cuando compara la separaciónde los períodos en el tiempo con la distinción de los países enel espacio, y designa éstos como “partes de la Tierra bienindividualizadas”.

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3 – Los puntos de vista para la distinción de los períodos debenser de naturaleza uniforme. No debe fundamentarse la divisiónde un período em los hechos jurídicos-políticos y la de outroen los câmbios histórico-culturales o econômicos; el undamentopara la distinción debe ser el mismo para ambos períodos.(BAUER, 1957, p. 156-157).

Para além dos possíveis critérios para um bom periodizar, épreciso estar atento a alguns problemas freqüentes na temática daperiodização. Almeida (1988, p. 118-119) pontua alguns deles: o primeirose refere à chamada “falsa periodização”, que é a divisão em “períodosrígidos, procustianos, de cem ou dez anos exatos cada um”; um outroé a utilização de “um esquema temporal válido e funcional para oproblema “X”, aplicando-o sem alteração ao problema “Y”; tambémpode ocorrer confusão entre “efemérides com fatos históricos”, ou,ainda, um quarto erro, que é o de se “atribuir excessiva importância aum fato e/ou data, estendendo indevidamente sua influência a um longoperíodo”.

Considerações Finais

Na crítica que empreendemos, adotamos a orientação de deixar“falar” os autores, selecionando aspectos fundamentais de suas respectivasobras com intuito de explicitar suas concepções sobre o tema daperiodização bem como seus recursos metodológicos quanto o seu uso.

Depois desse exame, parece bem nítida a pluralidade em relaçãoao tema, bem como a qualquer padrão de como proceder quanto aoato de periodizar. Confirmamos assim que o problema da periodizaçãonão é uma temática geradora de consenso como técnica ou recursometodológico no interior da historiografia, que parece conviver composições antagônicas sobre a questão que tomamos para estudo.

Observamos que há historiadores que defendem oestabelecimento de regras mínimas para a periodização, enquanto algunsprofissionais admitem que devam prevalecer apenas as motivaçõespessoais balizando as opções quanto à seleção dos marcos temporais.

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Entendemos esse posicionamento como resultado da renovaçãometodológica por que passa o campo historiográfico hoje, que separaas concepções que se preocupam com a totalidade dos fenômenossociais, como é o caso do materialismo histórico, de um lado, e a NouvelleHistoire, que descarta a possibilidade de apreensão do todo social sendo,portanto, a periodização, um recurso discutível e até mesmo dispensável.

NOTES ON THE TECHNIQUE OF PERIODIZING

Abstract: The article presents a discussion on the problem of the periodizationin History. Initially it are brought up some considerations about a panoramaof the question that involves division the lived time, after that is detached thesome questions that involves the technique of periodization in the Historyand finally it presents the criterias for the use of the periodization from someselected authors.

Key words: Theory of History. History. Periodization.

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A COMPAIXÃO NA HISTÓRIA: ATRIBUTOANTROPOLÓGICO E OCULTAMENTO

Ileuza Costa Cardoso *Marta Maria Amorim Silva **

Resumo: A compaixão como determinante de fatos históricos. O artigoprocura mostrar que não somente a disputa pelo poder, geradora dos fatosmais cruéis e beligerantes da história da humanidade, caracteriza a trajetóriahumana, mas também fatores subjetivos positivos, tais como a compaixão,interferiram, influenciaram e mesmo definiram e ainda definem a atuação dohomem na Terra. O artigo mostra que reduzir o homem a sua dimensão hibrisé negar a complexidade inerente à espécie.

Palavras-chave: História. Compaixão. Crueldade.

Introdução

Cinderela, Branca de Neve e os Sete Anões, Édipo. O quehá de comum nessas três histórias? Não apenas o fato de serem ficção.O elemento que as une é que o desfecho das três histórias é

* Licenciada em História pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (Uesb). Pós-graduadaem Interdisciplinaridade na Educação Básica e Magistério Superior pela Faculdade Internacionalde Curitiba (Facinter). E-mail: [email protected].** Licenciada em Pedagogia pela Uesb, pós-graduada em História Social do Trabalho pela Uesbe pós-graduada em Psicopedagogia Clínica e Institucional pela Faculdade Internacional deCuritiba (Facinter). E-mail: [email protected].

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fundamentalmente determinado pela compaixão. É a compaixão daFada Madrinha que faz com que o Príncipe se case por amor comCinderela garantindo um período de paz e harmonia no Reino. É acompaixão do caçador que desobedece à ordem da Madrasta e poupa avida de Branca de Neve, alterando os planos maquiavélicos daquelaque pretendia ser a Rainha de todo ao Reino. É também a compaixãodo pastor que salva a vida de Édipo, que mais tarde matará o seu pai, oRei de Tebas.

Nas histórias infantis e nos mitos – recursos simbólicos de projeçãopsicológica –, a compaixão tem o “poder” de mudar o desfecho, de alterara configuração da história. Se levarmos em conta que

[...] esses arquétipos (os mitos) ancestrais, por mais metafóricosque sejam, nunca perdem sua conexão com certo conteúdohistórico-social [e que] tais realidades lançam sua raízes nasexperiências ancestrais, comunitárias e sócio-políticas dahumanidade (BOFF, 1999, p. 71-72)

talvez possamos conceber que a compaixão esteve e está determinandomuitos dos eventos históricos da humanidade.

Ocultamento da compaixão nos currículos

Na literatura histórica, é possível observar o quanto é escasso eimpreciso falar de grupos ou indivíduos que testemunharam acompaixão tanto nos grandes fatos históricos quanto em sua vidacotidiana. É como se a contradição humana inexistisse, e apenas ademência do homem explicasse todos os eventos registrados ou nãoao longo da história da humanidade. Os pesquisadores das ciênciashumanas (historiadores, antropólogos, sociólogos, etnólogos)dedicaram-se quase exclusivamente à investigação e análise dos fatos,enfatizando a crueldade, a perversidade, as atrocidades que um serhumano pode cometer em nome da ganância, do orgulho, da vaidade,da luta pelo poder. Apesar de serem das ciências humanas, elesabdicaram de humanizar-se ou de humanizar suas teorias. Dessa forma,a compaixão, uma grande virtude humana, foi marginalizada, banidada história e apropriada pelas expressões religiosas e filosóficas.

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37A compaixão na história: atributo antropológico e ocultamento

A moderna sociedade secular nos obriga a ver a bondade, a belezae a verdade como domínios separados: moralidade, arte e ciência nãose relacionam, quando não são tidas como opositoras:

O pensamento iluminista e pós-iluminista distinguiu umdomínio separado da razão/ciência/conhecimento e verdade,o qual se sustenta a si mesmo; a estética e a moralidade ou sãominimizadas ou separadas como emocionais, subjetivas, ouparticularistas; e as relações entre “bondade” e “beleza” sãovistas, na melhor das hipóteses, como discutíveis. Muitos(incluindo os de convicções políticas contrastantes) vêem amoralidade como um assunto de interesse do lar e/ou da igreja,e procuram dissociá-la inteiramente da escola. A religião, outroravista como o árbitro final da verdade, cede agora a tarefa deapurar a verdade às ciências e adota a esfera moral como suapreocupação central. E, é claro, alguns pensadores pós-modernos contestam inteiramente a utilidade de termoshistoricamente tão contaminados como verdadeiro, belo ou bom(GARDNER, 1999, p. 34).

Entretanto, nem sempre foi assim. Para os gregos antigos, umapessoa que tivesse alcançado o seu pleno desenvolvimento era oindivíduo virtuoso, que cultivou conhecimentos, que era fisicamenteforte e que evidenciava um apurado senso de beleza em questões decorpo e de espírito. Também na perspectiva confuciana, o cavalheiroideal era o que possuía virtudes nobres e habilidades. Para garantir asua formação plena, os indivíduos eram submetidos a exemplos depessoas que encarnavam as características pretendidas (intelectuais,físicas, éticas e estéticas) ao mesmo tempo em que rechaçavam osexemplos opostos. “Os antigos não viam o indivíduo como uma coleçãode virtudes, possivelmente conjugadas ou não. Adotaram, de preferência,uma visão decididamente holística da pessoa” (GARDNER, 1999, p. 36).

Com o passar do tempo, as esferas se separaram. O saber,fragmentado, destituiu o homem, se não na essência pelo menosideologicamente, de sua natureza complexa. Os saberes bifurcaram-se,e hoje o que se vê é, no máximo, uma justaposição de conhecimentos àguisa de complementaridade, de interdisciplinaridade. Verdade, belezae bondade estão, dessa forma, dissociadas no pensamento moderno e

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contemporâneo. Não obstante, não é possível negar os domínios dabeleza, da verdade ou da bondade. Associados ou fragmentados, sempreforam de interesse da humanidade, como se pode verificar nos mitosda pré-história, nos comportamentos de luto ritual dos neandertalensesou nos primeiros artefatos do Homo sapiens.

É ponto pacífico que a história não é neutra, ou melhor, que odiscurso histórico é profundamente ideológico. Nesse sentido, é quepodemos considerar que a história contada com base nos fatosbeligerantes ou nas disputas do poder, contada segundo a instânciaeconômica ou o viés materialista, contada segundo a visão da luta declasses forjou ou, pelo menos, potencializou “a selvageria” humana.

Daí porque é possível perguntar: como teria sido a história ou ashistórias se as pesquisas tivessem levado em conta as contradições hu-manas? Em outras palavras: como seria a história não somente pelaslentes de Menés (3100 a.C.), Hammurabi (c. 1800 a.C.), Júlio César(100-44 a.C.), Calígula (12-41 d.C.), Nero (37-68 d.C.), Átila (406-443),os primeiros papas, Czar Guilherme II (c.1027-1087), Gêngis Khan(1162-1227), Bernardo Guy (1261-1331), Torquemada (1420-1498),Henrique VIII (1491-1547), Calvino (1509-1564), Marquês de Sade(1740-1814), Napoleão Bonaparte (1769-1821), Otto Von Bismarck(1815-1898), Stalin (1879-1953), Benito Mussolini (1883-1945), AdolfHitler (1889-1945), Idi Amim Dada (1923), mas também pelas lentesde Lao-tsé (c.600 a.C.), Confúcio (c.537-c.479 a.C.), Asoka (272-232 a.C.),Wen (179-157 a.C.), Marco Antônio (121-180), os imperadores india-nos da dinastia Gupta (320-550), os imperadores maias do século I aoV, Luís (814-840), a rainha escocesa Margarete (1045-1093), MohandasGandhi (1865-1948), Hélder Câmara (1909-1999), Tereza de Calcutá(1910-1997), Nelson Mandela (1918), Martin Luther King (1929-1968),Herbert de Souza (1935-1997), entre tantos outros exemplos brilhan-tes ou repletos de compaixão?

Apesar de toda renovação e de toda crítica ao fazerhistoriográfico, a concepção histórica não extrapola a visão da crueldadehumana como motor subjetivo dos fatos históricos. O fazer histórico,

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como tem sido realizado até hoje, não permitiu a perspectiva dacompaixão ou de quaisquer outros motores subjetivos menos cruéis.Assim, a hibris assume um caráter estóico, determinista e determinanteda história humana.

As atrocidades, as guerras, as dores, as castas, o Holocausto, aexploração de classes, as revoluções, os exércitos formados paraconquistar territórios, as traições, as emboscadas, o fanatismo, osfundamentalismos, a disputa pelo poder em suas várias manifestações,o conflito de raças, classes, interesses econômicos, os genocídios,infanticídios, estupros em massa, repatriação forçada, torturas foramenfatizados ou são fulcrais na explicação dos eventos na literaturahistórica. O máximo que o discurso histórico se permite é uma apologiaà construção de uma sociedade “mais justa e igualitária”, à nobreza daslutas de classes e das resistências, à realização de objetivos éticos pelaforça. No entanto, mesmo essas lutas e resistências, mesmo a construçãodessa sociedade justa e igualitária são permeadas pela hibris, sem falarque, na verdade, os grupos representativos das classes exploradas oudominadas, muitas vezes, não os representam de fato, apenas de direito.Não há ênfase nas ações pacifistas de resistências seja de indivíduosseja de grupos. Muitas vezes, a dor e o medo diante da situação deexploração são confundidos com alienação. Na história, não há espaçopara “sentimentalismos”.

O discurso histórico tem sido guiado, em sua maioria, pelalinearidade, pelo utilitário, pelo funcional, pelo compartimentado, pelamanipulação maniqueísta dos fatos. O maniqueísmo permeia o fazerhistórico: de um lado os senhores de escravos e de feudos, oslatifundiários, os déspotas, os absolutistas, os conservadores, os militares,os tiranos, os fundamentalistas, a Igreja Católica, os girondinos, osburgueses, os capitalistas, os capitães de indústrias, o Primeiro Mundo,a globalização, os manipuladores, os exploradores, os inquisidores, aclasse dominante – legítimos representantes do mal. O mal absoluto. Apersonificação simbólica da crueldade humana. Do outro lado, osescravos, os camponeses, os proletários, os operários, os analfabetos,

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os índios, os negros, as mulheres, as crianças, os pobres, os rebeldes, osbárbaros, os protestantes, os jacobinos, os bolcheviques, os comunistas,os socialistas, o Terceiro Mundo – vítimas, heróis nobres, mártires –representações simbólicas das conseqüências da maldade humana. Obem absoluto. Na arena da história, a eterna luta entre o bem e o mal.

A psicologia cognitiva diz que as idéias transmitidas na formaçãode um indivíduo o impressionam e perduram em sua mentalidade, adespeito de qualquer formação acadêmica:

Lamentavelmente, porém, algumas idéias que se desenvolvemno começo da infância estão muito menos fundamentadas. Ascrianças acreditam, por exemplo, que os indivíduos que separecem com elas são bons, ao passo que os que lhes parecemdiferentes são maus. Acreditam que algo que se movimentaestá vivo, enquanto que o que está imóvel está morto. Acreditamque os objetos são impelidos por invisíveis forças mágicas. Eassim por diante. Boa parte da literatura e do teatro, em seusprimórdios, “joga” com essas crenças de um modo que cativaos jovens, mesmo quando diverte os mais velhos nos bastidores.Além disso, essas primeiras representações – idéias falsas comolhes chamam as pessoas do ramo – não desaparecemsimplesmente com a idade. Pelo contrário, elas provam serdesconcertantemente robustas. Mesmo os estudantes quefreqüentaram a escola formal continuam a nutrir uma variedadede idéias falsas – sobre tópicos que vão desde a evolução àópera e ao Holocausto [...]. Até os melhores estudantes, nasmelhores escolas, continuam freqüentemente a dar guarida aidéias falsas, a concepções errôneas; a durabilidade da “mentenão-instruída” tem sido documentada de forma excelente porengenhosos pesquisadores cognitivos (GARDNER, 1999, p. 85).

Daí por que se torna importante uma educação que favoreça aformação de mentalidades mais acuradas. Nesse contexto, oshistoriadores desempenham importante papel, visto que podemcontribuir para que as fontes de moralidade possam ser mais bemcompreendidas:

[...] qualquer relato histórico deve ser construído e aqueles querealizam a construção ajudam a definir a nós mesmos, aosnossos aliados, aos nossos inimigos e às nossas opções (inclusive

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as nossas escolhas morais) [...]. A iniciativa de investigar eescrever história elucida questões sobre verdade e bondade [...].Julgar as ações dos nazistas na Segunda Guerra Mundial (ou asações dos homens em qualquer outro evento histórico) não éum ato histórico – é um ato de avaliação moral (GARDNER, 1999,p. 181-182).

Se a história se nega a admitir/assumir as subjetividades, o mesmonão acontece com outras ciências que resgatam a centralidade dosentimento, a importância da ternura, do cuidado, da compaixão, desdea biologia genética à física quântica (BOFF, 1999, p. 100).

Por mais que o discurso histórico tenha pretendido reduzir oser humano a sua dimensão hibris e tivesse, em certa medida, nosconvencido dela, a história não contada revela a encantadora capacidadehumana da compaixão. Assim, não pretendemos negar a hibris humana.Todavia, é preciso compreender que há razões para que ela se manifestee que o discurso histórico, na maioria das vezes, forja essas razões:

[...] a compaixão pode ser embotada por um sentimento deinferioridade. Se as pessoas sentem que foram prejudicadasou estão ameaçadas, a fonte da boa vontade seca. Quandoexposta a mitos de atrocidades, histórias de sabotagem e usura,medo da guerra ou da fome, a compaixão é corroída e aviolência subjacente pode facilmente ser introduzida(THOMSON, 2002, p. 563).

O discurso histórico serve perfeitamente a esse interesse quandodissemina a idéia de “mocinho e bandido”, de herói e vilão, sugerindoque, somente pela força, pela violência, pela guerra, pelas rebeliões,pelas revoluções insufladas por “nobres ideais”, pode-se fazer oumodificar os rumos da história. Ao negar a moralidade como convençãohistoricamente definida, o discurso histórico naturaliza o maniqueísmodas ações humanas, sem considerar a complexidade dos fatores quemotivam os fatos. Na história da moralidade, podemos encontrarcontraposições à perspectiva da inerente maldade humana.

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A compaixão como condição antropológica

“A boa vontade é uma potencialidade antropológica que muitosfracassos, decepções, resignações, hábitos podem inibir” (MORIN, 2002,p. 122). Isso significa que somos antropologicamente capazes de confiar,de esperar pelo melhor, somos potencialmente capazes de fazer omelhor. No entanto, o discurso histórico viaja na contramão dessapossibilidade, funcionando como a Caixa de Pandora, que espalhadesgraças na trajetória da humanidade e trancafia a esperança.

A perspectiva moriniana é de uma história antropológica,multidimensional: “a história dos historiadores, do acontecimento,econômico-social, etnográfica e às vezes polidimensional, deve tambémtornar-se antropológica”. Tal fazer historiográfico “deveria consideraras guerras, os massacres, a escravidão, o assassinato, a tortura, osfanatismos, e também a fé, seus impulsos sublimes, a filosofia, comoatualizações de virtualidades antropológicas” (MORIN, 2002, p. 17). Nessemesmo sentido, Gardner (1999, p. 82) prossegue:

[...] assim como as capacidades lingüísticas (e numéricas eespaciais) evoluíram a fim de permitir a adaptação ótima aomeio ambiente, outras capacidades humanas podem igualmenteter propriedades universais, e estas são também a conseqüênciaadaptativa de milênios de evolução. Especificamente, pode haveruniversais no domínio da moral [...] e no domínio estético.

Assim como Morin (2002, p. 85) sugere uma dimensãocivilizacional coletiva na compreensão dos fenômenos oriundos do mal-estar da civilização, supostamente individuais, podemos supor,igualmente, uma dimensão civilizacional – porque antropológica – dasexpressões subjetivas mais nobres e éticas, entre elas a compaixão. Taldimensão estaria embotada, talvez porque, como insinua Gardner (1999,p. 79): “uma revolução em ciência social não exerce necessariamenteefeitos imediatos ou nítidos no mundo da prática”.

O caráter antropológico da compaixão permeia também oconceito da sociabilidade humana. É forçoso reconhecer que, embora

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os compêndios científicos postulem que o homem seja social pornatureza, em suas proposições a assertiva é que o amor entre oshumanos existe porque existe a sociedade. Para Boff e Maturana (BOFF,1999, p.110-111), ocorre exatamente o inverso: a sociedade existe porqueexiste amor entre os homens. A competição é anti-social, destrutiva,excludente, inumana. “O amor é um fenômeno cósmico e biológico”,assevera Boff, e antropológico. As pessoas se unem em sociedade nãopara competir, se matarem e se destruírem, mas porque precisam umasdas outras, precisam do “sentimento de pertença a um mesmo destinoe a uma mesma caminhada histórica”. Foram cooperação, a co-existência, a compaixão que garantiram a persistência da vida e dosindivíduos até os dias atuais. Os valores humanos da sensibilidade, docuidado, da convivialidade sempre impuseram limites à voracidade dopoder-dominação (BOFF, 1999, p. 124). Se examinarmos a história,propõe Dalai Lama (2000, p. 218), percebemos que o amor dahumanidade pela paz, pela justiça e pela liberdade sempre triunfa sobrea crueldade e sobre a opressão. Se fôssemos movidos tão-somente pelahibris, provavelmente já não existiríamos mais como espécie.

Nesse sentido, também o historiador inglês Oliver Thomson(2002, p. 34) assevera que

A compaixão pode não ser universal: seu nível em diferentesseres humanos depende muito da educação, tratamento,maturidade emocional, mas sem dúvida existe em quantidadesuficiente na maioria das sociedades, particularmente entremulheres, para formar a espinha dorsal do desenvolvimentomoral. Em alguns períodos talvez esteja enfraquecida ousufocada por sofrimentos, desgraças ou obsessões divergentes.A vida dos mercadores de escravos do século XVII, porexemplo, mostra como homens normais podiam rapidamenteacostumar-se a infligir um tratamento aterrador aos escravos,os monges da Inquisição espanhola, os guardas dos campos deconcentração nazistas eram facilmente treinados por seus líderespara serem obedientes instrumentos de sadismo em massa. Acompaixão pode desaparecer durante metade de uma geração,mas geralmente parece voltar para restaurar a estabilidade desociedades desequilibradas.

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Os diversos códigos morais constatados nas diferentes épocas eregiões são expressões “de como o grupo dominante de uma sociedadequer que a maioria se comporte, para sua própria conveniência”. Oscódigos morais são, portanto, instrumentos de controle psicológico degrupo que “proporcionam uma estrutura bem mais ampla demanipulação do que a corporificada apenas no código legal” de umasociedade (THOMSON, 2002, p. 32-33). Ainda assim, a história damoralidade vem acrescida pela elaboração de leis incorporadas noscódigos que violentam a subjetividade de um ser humano. O ser social/objetivo/compartimentado “mata” nele e no outro o ser moral/subjetivo/complexo. A compaixão, no entanto, não é uma condutaartificial que possa ser ensinada ou transferida por meio de atitudesopressoras.

O que possibilita o controle em massa é confundido muitas vezescom uma natural/antropológica tendência humana para a brutalidade/crueldade. No entanto, há uma explicação psicológica desse controle:uma das matérias-primas que facultam o desenvolvimento dos códigosmorais é a preferência por fáceis decisões já que decisões subjetivasprovocam medo e insegurança e, além disso, a forma como esse controleé exercido não deixa margem para dúvidas. Assim, as sociedades sãofortemente submetidas a propagandas e treinamento moral intensivos,numa espécie de “lavagem cerebral” (THOMSON, 2002, p. 34-37; 80-81).

Seja qual for o grupo dominante, o etos será sempre resultantede uma manipulação ou formação de mentalidades: “o caráter dohomem é construído para ele e não por ele”, assevera Owen, apudThomson (2002, p. 106), portanto os padrões morais coletivosconstituem uma expressão da persuasão em massa.

A imitação de heróis é a mais antiga e a mais eficaz das técnicaspara o treinamento moral da coletividade até hoje. Assim, cada sociedadeproduz seu lote de heróis – reais ou fictícios – “que se tornam foco deuma mimese comportamental”. Para cada ensinamento pretendido, ummodelo heróico é construído, de forma que Aníbal; Alexandre, oGrande; Carlos Magno; Rei Artur; Cristo; Buda; Maomé; a VirgemMaria; São Francisco; Florence Nightingale; George Washington; Lênin;

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Mao; Stakhanov; Andrew Carnegie; Tom Cornwall; Lucrécia deTarquínio são alguns desses heróis-modelos. Outra técnica detreinamento é o uso de material legendário, parábolas e mitos. ParaCampbell, apud Thomson (2002, p. 111), “a função social da mitologiaé estabelecer sistemas de sentimentos, modelos comportamentais paratodas as ocasiões”.

Dessa forma, atitudes morais desumanas e cruéis são racionalizadascomo tradições. A eficácia da transmissão da mensagem é garantida pordiversos meios de propaganda, inclusive pelas artes. A pintura, a escultura,a arquitetura, os símbolos, a literatura, a música, o teatro, o cinema, orádio e a televisão disseminam e incutem o etos dominante (THOMSON,2002, p. 110-111).

Na trajetória da humanidade, é fácil constatar que os maiorescrimes da história foram cometidos pelo poder oficial, por gruposdirigentes ou indivíduos convictos de sua própria integridade (THOMSON,2002, p. 556-574). A manifestação da hediondez humana pode levar acrer que há uma espécie de sadomasoquismo inerente à espécie,racionalizado sob a forma de sacrifício aos deuses, de chacina deexércitos e civilizações derrotadas, de perseguições às minorias, deexploração por escravidão, servidão e exploração industrial, de tiraniasmegalíticas. No entanto, não é possível atribuir tais atrocidades a umaúnica pessoa ou grupo. Nos episódios grotescos de crueldade histórica,os executores eram pessoas comuns – carrascos, capangas, torturadores,queimadores de bruxas, traficantes de escravos, assistentes de câmarasde gás – pessoas que voltavam para casa e tratavam com carinho osfilhos e os animais e que tinham a certeza do dever cumprido,demonstrando que o ser humano é facilmente conduzido, persuadido,induzido a aceitar, sem questionar, o inaceitável. A autoflagelação e oshomens-bombas são prova disso.

Apesar da evidência dos comportamentos extremos, pode-seafirmar que o cuidado pela vida e pelo bem-estar caracteriza o bomcomportamento humano, constituindo, essa fonte de bondade, num“instinto natural de compaixão” (THOMSON, 2002, p. 559-560).

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A compaixão humana suplanta substancialmente qualquercomportamento semelhante no animal, assim como a sua contraparteextrapola os limites plausíveis, demonstrando uma ferocidade de fazerinveja ao mais feroz dos animais. Exemplos de crueldade em massasugerem a liderança obsessiva de pequenos grupos ou de indivíduosque, por algum tempo, manipularam seus povos para que ignorassemos sentimentos normais de compaixão, enquanto muitos dos não-eventos da história estão relacionados a sociedades com liderançasdiscretas e ideologias não fanáticas que, assim, não ganharam nem aglória nem a notoriedade para se projetarem na história, tais como oshotentotes, o povo de Madagascar, os ilhéus de Tonga, os groenlandeses,os dyaks, os iroqueses norte-americanos. Tais exemplos sugerem que ocomportamento natural do homem tende a ser compassivo e que aatitude sádica é uma atitude mental artificialmente criada por líderes oupressões externas em que a compaixão foi embotada pelo sensocompetitivo patologicamente obsessivo ou pela superstição epreconceito e, ainda, pela superexposição à crueldade. O convívioconstante com a crueldade torna-a não vista, acomoda-se psiquicamente,naturaliza-se na mentalidade (THOMSON, 2002, p. 561-563).

Na história da humanidade a profusão de exemplos de compaixão

Boff (1999, p. 126-127) explica que a filologia latina da palavracompaixão sugere a capacidade de partilhar com o outro sua paixão,seus sofrimentos, suas alegrias, isto é, caminhar sinergicamente com ooutro. Tal atitude pressupõe a renúncia de dominar, de matar qualquerser vivo. No hinduísmo, o correspondente de compaixão é ahimsa, quesignifica não-violência, evitar qualquer sofrimento ou constrangimentoa outros seres. No taoísmo, o equivalente à compaixão é wu wei, quequer dizer entrar em comunhão e lutar contra o desejo de possuir. Nojudeu-cristianismo, o termo rahamimi, a misericórdia, equivale acompaixão e significa sentir a realidade do outro, especialmente de quemsofre. Dalai Lama (2000, p. 138-139) distingue dois tipos de compaixão.A compaixão-empatia, nying je, que se refere à capacidade inata de

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partilhar do sofrimento alheio, e a grande compaixão, nying je chenmo,que corresponde a um plano mais elevado de compaixão quando adedicação ajuda não apenas a superar o sofrimento alheio, mas tambémas causas do sofrimento. Dalai Lama fala ainda sobre a lógica dacompaixão segundo a qual a compaixão é potencialmente estável, segura,inata, contínua, estimulável, inesgotável, ampliável.

Apesar dos líderes obsessivos, das hecatombes sociais, dastiranias, das escravidões, das ditaduras que embotam a compaixão, estajamais deixa de existir como condição antropológica. Basta lembrarque os humanos neandertalenses eram solidários e esforçavam-se emajudar os deficientes; que as primeiras armas produzidas pelos humanos,o arco e a flecha, no início da Idade da Pedra, tinham a finalidade decaçar animais, e não de matar ou combater outro humano; que algumastribos atuais, como os pudans de Bornéu, os esquimós do Ártico e osdjahai da Austrália nunca fizeram uma guerra – “façanha notável emmilhares de anos, e sem paralelo em muitas das mais avançadassociedades”. Há ainda exemplos de diversas tribos primitivas quenunca tiveram escravidão, prostituição, poligamia, canibalismo,infanticídio, sacrifícios humanos ou quaisquer outros hábitos cruéise hediondos (THOMSON, 2002, p. 137-138). Em pleno século XX, aCosta Rica é exemplo de país que foi desmilitarizado desde 1949 emfavor da paz, além da zona desmilitarizada na Antártida (DALAI LAMA,2000, p. 227-231).

O Holocausto (1914-1945), o sistemático genocídio dos judeuse de alguns outros grupos pelos nazistas e fascistas, durante a SegundaGuerra Mundial, para alguns pesquisadores, é o maior exemplo deatrocidade; uma “crônica de perversidade humana sem precedentes”,porque, apesar de ser comum o morticínio organizado na históriahumana, o Holocausto destaca-se pela clareza de seus objetivos e pelameticulosidade de sua execução. Os nazistas pretendiam exterminarum povo inteiro, inclusive mulheres e crianças, e quase o conseguiram.Pretendiam o genocídio não porque o povo judeu representasse umaameaça militar, mas porque ameaçava a pureza da “raça” ariana, numa

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evidente demonstração de ignorância das leis da genética, segundo asquais os seres humanos pertencem todos à mesma espécie. Do pontode vista ético, esse é o episódio da história que mais suscitaquestionamentos (GARDNER, 1999, p. 16; 169).

É no Holocausto, maior emblema da maldade humana, que falamcom maior eloqüência os episódios de bondade, heroísmo e compaixão,embora “o entendimento de impressionantes exemplos de verdade,beleza e bondade é suficientemente significativo para os seres humanospara que possa ser justificado por si mesmo”, conforme asseveraGardner (1999, p. 17), “na ausência de tal entendimento, os indivíduosnão podem participar de forma plena no mundo em que vivem – emque nós vivemos”. Daí porque é preciso o esforço para atingir talcompreensão.

O Holocausto, portanto, documenta não somente os terríveispotenciais dos seres humanos, mas também nos oferece exemplosinspiradores de coragem e compaixão, pois envolve os mais extremossentimentos humanos: ódio, crueldade, perversidade e o uso do poderde forma criminosa, ao lado da coragem, da decência, do heroísmo, dasublimidade do amor. O Holocausto suscita questões de bondade emaldade humanas, em suas mais puras formas:

[...] se uma pessoa chegar a entender o Holocausto, teráadquirido uma melhor noção da natureza e dimensões damaldade humana; suas fontes, sua extensão, e as medidas quepoderiam ser iniciadas para combater esses potenciais humanos,nos outros e em nós próprios. E, dentro desse quadro sombrio,terá que vislumbrar raios de esperança nas condutas exemplaresde certos soldados, civis e líderes políticos e religiosos. Em últimaanálise, as respostas da sociedade a questões sobre verdade,beleza e bondade são importantes, mas nossas respostas pessoaissão ainda mais importantes (GARDNER, 1999, p. 252).

Os exemplos de amor, bondade e compaixão estãoinvariavelmente ligados a pessoas, anônimas ou não, que arriscaramsuas vidas para salvar vidas de quem nem mesmo, muitas vezes,conheciam. Olenka e Tânia são emblemas dessa compaixão. No livro

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A Marcha, escrito por Michael Stivelman, sobrevivente do Holocausto,Olenka e Tânia acolhem, cuidam, dividem alimentos e protegemStivelman e sua mãe judia, moribunda, arriscando suas vidas por pessoasque não conheciam (BOFF, 1999, p. 179). Há muitos outros exemplos.A oposição ao regime nazista surgiu também da juventude alemã eentre os que se ressentiam da tirania hitlerista. Em Munique, em tornode 1942, estudantes universitários deram forma a um grupo deresistência chamado “Rosa Branca”. Seus líderes, Hans Scholl, sua irmãSophie Scholl e o professor Kurt Huber foram presos e executados, em1943, para servirem de exemplo de castigo aos oposicionistas de Hitler.Alguns não-judeus também resistiram aos alemães, escondendo ouajudando judeus a escapar do regime nazista. Estas pessoas arriscavamfreqüentemente suas vidas e as vidas de seus familiares e amigos paramanter vivos alguns judeus. O povo da Dinamarca, por exemplo, desafiouas ordens de Hitler e o poder da Alemanha, recusando-se a entregar seuscidadãos judeus. Os dinamarqueses esconderam quase 7.200 judeus e,clandestinamente, os transportaram em segurança para a Suíça, que semantinha neutra. Raoul Wallenberg, um diplomata sueco, conseguiu salvarcerca de 100.000 judeus húngaros emitindo passaportes para que fugissemdo domínio nazista (BLAJBERG, 2004).

Oscar Schindler (1908-1974), um proprietário de uma fábricaalemã, protegia seus trabalhadores escravos judeus pessoalmente,recuperando-os dos transportes aos campos de concentração.Alimentou-os e abrigou-os em seu próprio campo de trabalho emanteve-os trabalhando em sua fábrica até que a guerra terminasse.Oscar Schindler, que começou a ganhar milhões de marcos alemãespela cruel exploração de trabalhadores escravos, acabou por despenderaté o seu último cêntimo arriscando a sua própria vida para salvar os“seus” 1200 judeus (BLAJBERG, 2004).

Há ainda exemplos como o do diplomata brasileiro Luiz Martinsde Souza Dantas (1876-1954), embaixador do Brasil na França de 1922a 1944. Assinando pessoalmente vistos e passaportes diplomáticos,Souza Dantas salvou, comprovadamente, 475 pessoas. O embaixador,que não figura em nenhum livro de história brasileiro, foi reconhecido

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pelo Museu do Holocausto de Jerusalém (Yad Vashem), como “Justoentre as Nações”. Só quem preenche, pelo menos, uma destas trêscondições merece o título concedido pelo museu: arriscar cargo eposição social, arriscar a própria vida e salvar um número expressivode pessoas. O diplomata não arriscou sua vida, mas quase perdeu oemprego e o status por assinar centenas de vistos para perseguidos donazismo na França ocupada, desobedecendo às recomendações oficiaisdo governo Getúlio Vargas. O número certo – de judeus,homossexuais, comunistas e outras vítimas do nazismo – queencontrou a salvação graças à assinatura de Souza Dantas não éconhecido, estima-se que possa passar de mil pessoas. Outro exemploé o da brasileira Aracy de Carvalho-Guimarães Rosa, que foi assistentedo embaixador brasileiro em Berlim durante a Segunda GuerraMundial. Também pouco conhecida, ela salvou cerca de 80 pessoas,emitindo vistos por conta própria (KRESCH, 2000).

Além desses exemplos incontestáveis, há os de muitas pessoasanônimas e desconhecidas que arriscaram suas vidas, por compaixão,para salvar as vítimas do nazismo. Alguns dos simpatizantes da causajudaica muitas vezes tinham oportunidade de pegar crianças judias elevá-las como sendo seus próprios filhos e, assim, conservar suas vidas.A lista tanto de pessoas como das maneiras de expressar a compaixãoé enorme e serve ao propósito deste artigo que não é outro senãomostrar que a compaixão se não predomina na natureza humana estápelo menos lado a lado, impondo limites à, supostamente inextinguível,crueldade dos homens.

Conclusão

Edgar Morin diz que:

[...] reduzir o conhecimento do complexo ao de um de seuselementos, considerado como o mais significativo, temconseqüências piores em ética do que um conhecimento físico.Entretanto, tanto é o modo de pensar dominante, redutor esimplificador, aliado aos mecanismos de incompreensão, quedetermina a redução da personalidade múltipla por natureza, a

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um único de seus traços. Se o traço for favorável haverádesconhecimento dos aspectos negativos desta personalidade.Se for desfavorável haverá desconhecimento dos seus traçospositivos. Em um e em outro caso, haverá incompreensão. Acompreensão pede, por exemplo, que não se feche, não se reduzao ser humano a seu crime, nem mesmo se cometeu vários crimes[...]. Além disso, lembremo-nos de que a possessão por umaidéia, uma fé, que dá a convicção absoluta de sua verdade,aniquila qualquer possibilidade de compreensão de outra idéia,de outra fé, de outra pessoa (MORIN, 2001, p. 98-99).

Assim, para Morin, é esse reducionismo que incapacita o serhumano de conceber o pensamento complexo, o pensar junto, derivandona racionalização do conhecimento em função do modo de pensardominante, absoluto, especializado, pronto e em função daincompreensão.

Diante do mito historicamente criado da irrecuperável hediondezhumana – tradição historiográfica que se cumpre “religiosamente” – épossível concluir que esse “dogma” histórico de que o espírito humanoé absolutamente hediondo está a serviço do pensamento redutor, dopensamento que rejeita a compreensão, as múltiplas personalidades deque fala Morin, que rejeita a crítica, a autocrítica, a heterocrítica, ascondições históricas, culturais, sociais, psíquicas, espirituais. É opensamento que rejeita a inteligibilidade humana, a sua racionalidade,que se outorga como verdade absoluta, acabada, por constituir-setradição histórica e, aliado aos mecanismos de incompreensão,compartimenta, especializa e reduz o conhecimento.

A lógica organizadora do discurso histórico, como tem sidopensada até hoje, não resiste ou não pode assimilar a dimensão dacompaixão humana como geradora de fatos históricos. No discursohistórico, o conveniente confunde-se com o real. A compaixão não éconveniente, não é fato histórico, apesar de ser determinante em muitassociedades, tais como os povos com total aversão ao ato de matar,registrados por Thomson (2002, p. 40) – os indianos em seu primórdios,os quacres, os dukhobors, os amishes, amostras de que a pacificação éantropologicamente possível.

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Tal atitude da literatura histórica resulta em reducionismos eimpede o bem pensar moriniano:

[...] o modo de pensar que permite apreender em conjunto otexto e o contexto, o ser e o seu meio ambiente, o local e oglobal, o multidimensional, em suma, o complexo, isto é, ascondições do comportamento humano. Permite-nos compre-ender igualmente as condições objetivas e subjetivas (self-deception,possessão por uma fé, delírios e histerias) (MORIN, 2001, p. 100).

Assim, a compaixão foi historicamente circunscrita à religião, àfilosofia, à ética, à moral. A racionalização que impede a racionalidadequer proteger o homem contra o erro e a ilusão, no entanto, incorreem erros e ilusões ainda mais ou tão perigosos.

Nosso sistema de idéias (teorias, doutrinas, ideologias) está nãoapenas sujeito ao erro, mas também protege os erros e ilusõesnele inscritos. Está na lógica organizadora de qualquer sistemade idéias resistir à informação que não lhe convém ou que nãopode assimilar (MORIN, 2001, p. 22).

Assim, a realidade não é facilmente legível. As idéias e as teoriasnão refletem, mas traduzem a realidade, às vezes de maneira errônea.“Nossa realidade não é outra senão nossa idéia de realidade”, asseveraMorin (2001, p. 85). Se assim é, é preciso compreender que a históriaestá sendo contada por pesquisadores sem isenção de suas percepçõese valores e que a educação é um dos meios de imposição/construçãode códigos de comportamento. Daí porque Thomson sugere que aeducação promova a compaixão natural e o estudo das forças que acoíbem. Sua proposta, no entanto, não é ingênua:

A lição da história é manter a simplicidade: as moralidades maisbem-sucedidas basearam-se no medo – medo da dor, punição,ridículo, desaprovação ou do tormento eterno. Remova essesmedos, como geralmente acontece nas comunidades afluentes,e o sistema cai no desequilíbrio. Só há um sinal de renascimentoquando o desequilíbrio começa a produzir destruição suficientepara restaurar o medo. O desafio para o século XXI é construir

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um novo etos amadurecido, baseado em objetivos positivos, enão negativos; que compreenda a crise que desafia o planeta ea população, um código construído a partir da compaixão enão só do medo (THOMSON, 2002, p. 574).

Por analogia, podemos lembrar que, assim como no filme prontopara consumo não aparecem as cenas dos bastidores, também no palcoda história não desfilam aqueles que fazem a história acontecer. É nosbastidores que se verifica a realidade, não na tela. E assim como oautor e o diretor abdicam de sua aparição por não terem habilidade derepresentar, também, na história, autorias são usurpadas por quem seapropriou legalmente do direito de assinar os fatos. Quantos destinosforam decididos nos bastidores da história? Quantos “vilões” decidiramdestinos porque foram poupados pela compaixão dos caçadores, dospastores ou das fadas madrinhas?

Para não concluir, lembramos o efeito borboleta, estudado desde1955 por Edward Norton Lorenz (apud CORRÊA, 2002), segundo oqual insignificantes fatores podem ampliar-se temporalmente de formaa mudar radicalmente um estado. Se o bater de asas de uma borboletapode, potencialmente, provocar reações nas mais longínquas regiõesdo mundo, o bater de asas de outros insetos também o pode. Se obater de asas de uma borboleta pode provocar efeitos, pode, igualmente,evitar o que se forma sem sua influência. Talvez os historiadores doséculo XXI percebam o efeito borboleta da compaixão e compreendamo que diz Thomson (2002, p. 93): “uma vasta rede de costumesmemorizados no mito e na fábula, repetidos de geração em geração,torna-se parte da estrutura do sistema moral como um todo e adquireum valor desvinculado de qualquer explicação racional”. Se issoacontecer, não apenas os historiadores, mas a humanidade poderáreescrever a sua história. Aí, quem sabe, se não pudermos viver felizespara sempre, poderemos, pelo menos, viver num mundo melhor.

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LA COMPASSION DANS L’HISTOIRE: ATTRIBUTANTHROPOLOGIQUE ET OCCULTATION

Résumé: La compassion comme déterminante de faits historiques. Dans cetarticle on cherche à montrer que les luttes en vue du pouvoir, génératrices desfaits les plus cruels et belligérants de l’histoire de l’humanité, ne sont pas lesseules à caractériser la trajectoire humaine; des facteurs subjectifs positifs,comme la compassion, ont interféré et influencé et, même, défini ? et définissentencore ? l’action de l’homme dans le Monde. On y montre que réduire l’hommeà sa dimension hybris c’est nier la complexité inhérente à l’espèce.

Mots-clés: Histoire. Compassion. Cruauté. Complexité.

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PENSANDO A RELAÇÃO ESCOLA ESOCIEDADE NA PERSPECTIVA DE BOURDIEU

Vânia Rita Donadio Araújo *

A seleção de significações que define objetivamente a cultura de um grupo oude uma classe como sistema simbólico é arbitrária enquanto estrutura, e asfunções desta cultura não podem ser deduzidas de nenhum princípio universal,físico, biológico ou espiritual, pois não estão unidas por nenhuma espécie derelação interna à “natureza das coisas” ou a uma “natureza humana”.

(BOURDIEU; PASSERON)

Resumo: Um dos objetivos deste artigo é apresentar algumas contribuiçõesdo pensamento de Bourdieu para o campo pedagógico, reflexões sobre anatureza do trabalho escolar e dificuldades concretas na prática pedagógica,visualizando, na relação escola e sociedade, o processo de reprodução dasdesigualdades sociais. Para Pierre Bourdieu, a educação perde o papel deinstituição transformadora e democratizadora das sociedades e passa a servista como uma das principais instituições por meio da qual se mantêm selegitimam os privilégios sociais. Esse autor deixou uma série de pistas e idéias,que, a nosso ver, colaboram para uma reflexão sobre as problemáticas vividasno campo pedagógico.

Palavras-chave: Educação. Sociedade. Desigualdades sociais.

* Mestre em Educação pela Universidade Federal Fluminense – Niterói, RJ. Professora Assistenteda Universidade do Estado da Bahia (Uneb). E-mail: [email protected]

Práxis Educacional Vitória da Conquista n. 2 p. 57- 70 2006

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Apresentando Bourdieu e algumas de suas reflexões

Pierre Bourdieu nasceu em 1930, em Denguin, França. Apesarde suas origens humildes, graduou-se em filosofia e desenvolveudiversos trabalhos de etnologia sobre a Argélia. Mas, é como sociólogoque o autor obterá destaque no mundo intelectual. Foi homenageadopelo Collège de France e recebeu a medalha de ouro do Centre Nationalde la Recherche Scientifique (CNRS). Pierre Bourdieu criou uma obraoriginal e complexa acrescentando à reflexão teórica uma imensavariedade de instrumentos de investigação (estatísticas, entrevistas,observações etnográficas, matérias históricas, etc.).

Autor moderno, intelectual crítico, polêmico, instigante, engajadono debate público, conheceu a consagração da ciência e do grandepúblico. Ele foi capaz de articular teoria e práticas sociais, influenciandonão só a França, mas pensadores em universidades de vários países,principalmente os das universidades de Chicago e de Harvard, doInstituto Max Plank de Berlim, na década de 1970.

Produtor de inúmeros estudos sobre arte, comunicação,linguagem, religião, política e outros temas, Bourdieu ocupa hoje posiçãode destaque no pensamento contemporâneo.

A sua sociologia foi construída com o propósito obstinado dedesvendar, de maneira fértil, os mecanismos de poder que permeiamas intricadas redes de relações sociais construídas historicamente.Bourdieu marcou o pensamento sociológico das últimas décadas tendocomo inspiração teórica os clássicos Durkheim, Max Weber e Marxentre outros pensadores contemporâneos, no que se refere à integraçãoentre teoria e pesquisa empírica. Os estudos produzidos por ele sãohoje referenciais, dada a fertilidade de instrumentos conceituais para acompreensão das estratégias de reprodução da sociedade, das lutassimbólicas travadas pela apropriação de bens que, no plano cultural,são realizadas por agentes sociais1 que visam ao monopólio dacompetência e do poder.1 Bourdieu (1996) atribui esse conceito aos indivíduos que desenvolvem ações em estruturassociais determinadas, das quais sofrem influências, constituintes de valores e perspectivas queorientam suas práticas e disposições realizadas nas trajetórias das histórias dos grupos sociais eculturais.

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59Pensando a relação escola e sociedade na perspectiva de Bourdieu

O ponto polêmico dos estudos de Bourdieu é a oposição entreo subjetivismo e o objetivismo na construção metodológica. Aopretender tecer um elo de mediação no embate subjetivismo/objetivismo, estabeleceu necessariamente uma interlocução, sobretudocom os dois clássicos da sociologia: Emile Durkheim e Max Weber.2

Bourdieu critica o objetivismo sociológico durkheimiano porreduzir as ações dos indivíduos à mera execução de normas ou deestruturas. Neste contexto, a sociedade aparece como uma fonte decoerção que define regras e normas às quais os indivíduos devem seorientar, e estes passam a existir não como agentes sociais, mascomo reprodutores do que se encontra programado pelo mundosocial – como sistema de relações objetivas e independentes dasconsciências e vontades individuais. Nogueira e Nogueira (2002, p.19) nos lembram que:

O individuo, em Bourdieu, é um ator socialmente configuradoem seus mínimos detalhes. Os gostos mais íntimos, aspreferências, as aptidões, as posturas corporais, a entonação devoz, as aspirações relativas ao futuro profissional, tudo seriasocialmente construído.

Ao fazer críticas ao objetivismo, Bourdieu procura dar conta darelação adequada entre sujeito e sociedade, ator e estrutura social, ondea ação não é empreendida conforme a obediência às regras, elas sim,podem oferecer a estrutura onde esta ocorrerá, mas não a define,incorporando elementos substanciais do pensamento durkheimiano.Desta forma, aproxima-se da dimensão subjetiva da análise Webianada ação social, da sociologia dos atores, agregando às relações deinteração a questão do poder e da legitimação.

Bourdieu, em contraposição ao objetivismo positivista, recuperaa idéia de subjetividade presente em Weber, na qual teríamos a escolha,pelo sujeito, de valores, normas e princípios sociais que orientam sua

2 Segundo Nogueira e Nogueira (2002), quando essa discussão teórica é levada para o campoda sociologia da educação, Bourdieu esforçou para evitar tanto o objetivismo quanto osubjetivismo na análise dos fenômenos educacionais.

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ação, porém não de forma racionalizada como em Weber. Ele tenta,em seu estudo, pôr em evidência as capacidades criadoras e inventivasdo homem a partir do momento em que acredita que o indivíduo tema liberdade de fazer escolhas, mesmo acreditando que estas escolhassão condicionadas pelo seu capital simbólico3 e pela estrutura social daqual participa.

Para Bourdieu (1994, p. 63) apud (CANESIN, 2002, p. 97):

A avaliação subjetiva das chances de sucesso de uma açãodeterminada numa situação determinada faz intervir todoum corpo de sabedoria informal, ditados, lugares-comuns,preceitos éticos e, mais profundamente, princípiosinconscientes do ethos.4

O que o autor deseja mostrar é que existe, tanto no sujeito, comono grupo, um “sistema de disposições duráveis”, que compreende todaa formação que o indivíduo teve em sua história de vida, podendo serinterpretada pelo capital simbólico que adquiriu e pelo conhecimentode regras e normas sociais pelas quais procura conformar sua ação.

Essa mediação entre o indivíduo, que age segundo estruturasdefinidas, mas com margens que precisam ser fechadas pessoalmente,e a realidade social que se estabiliza, é proporcionada pelo habitus. Esteconsiste em:

[...] sistemas de disposição duradouros e transponíveis, estruturasestruturadas dispostas a funcionar como estruturasestruturantes, isto é, como princípios geradores e organizadoresde práticas e representações que podem ser objetivamenteadaptadas ao seu objetivo sem supor a visada consciente defins e o controle expresso das operações necessárias para atingi-los, objetivamente “reguladas” e “regulares”, sem ser em nadao produto da obediência a regras e sendo tudo isso,

3 Entende-se por capital simbólico, todos os conhecimentos/saberes que o indivíduo socialmenteadquiriu em sua história de vida e que, por sua vez, estruturam o sistema simbólico do qualopera em suas relações sociais.4 Segundo Bonnewitz (2003, p. 77) Ethos “designa os princípios ou os valores em estado prático,a forma interiorizada e não consciente da moral que regula a conduta cotidiana: são os esquemasem ação, mas de maneira inconsciente”.

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coletivamente orquestradas sem ser o produto da açãoorganizadora de um maestro (BOURDIEU, 1980, apudBONNEWITZ, 2003, p. 76-77).

Nesta compreensão, Sacristán (1999) acrescenta que o habitus éuma espécie de ordem impessoal que tem uma autoria coletiva. É aorganização resultante de práticas com capacidade para dirigir e regularações futuras, de forma a permitir o alcance de determinados fins, semque cada indivíduo que o assume tenha de se propor a isso explicitamente.

A conceituação de habitus desenvolvida por Bourdieu, comoafirma Ortiz (1994), refere-se à interiorização das normas e dos valorese, também, ao sistema de classificação que preexiste logicamente àsrepresentações sociais, conforme sinalizam os estudos de Durkheim.Devemos atentar para o fato de que o habitus não é um conceito quevisa entender e enquadrar somente a ação de indivíduos, mas tambémde grupos.

O estudo do habitus de um indivíduo ou grupo permite umaanálise sobre as suas práticas e representações, na medida em que estassão objetivamente regulamentadas e reguladas, ocasionando areprodução das relações direcionada por escolhas de valores, comodescreve Bourdieu:

[...] Os habitus são princípios geradores de práticas distintas edistintivas [...]; mas são também esquemas classificatórios,princípios de classificação, princípios de visão e divisão, gostosdiferentes. Fazem diferenças entre o que é bom e o que é mau,entre o que é bem e o que é mal, entre o que é distinto e o queé vulgar, etc., mas não são os mesmos (BOURDIEU, 1994, apudBONNEWITZ, 2003, p. 83).

Assim, o conceito de habitus que ele desenvolveu em suas obrascorresponde a uma matriz determinada pela posição social do indivíduoque lhe permite pensar, ver e agir nas mais variadas situações. O habitustraduz, dessa forma, estilos de vida, julgamentos políticos, morais,estéticos. Ele é também um meio de ação que permite criar oudesenvolver estratégias individuais ou coletivas.

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Entre outros aspectos, Bourdieu dedica grande parte de seutrabalho conceituando o que denomina campo de produção de bensculturais e simbólicos, identificando-os abstratamente na sociedadecomo espaços portadores de especificidades: campo escolar, campocientífico, campo artístico, campo político, campo jornalístico, etc.

O conceito de campo, seja de qualquer especificidade, supõe apresença de hierarquias entre os agentes de um mesmo campo e entrecampos diferentes. Nesta disposição hierárquica entre os agentes,perpassam aspectos relacionados à origem de classe, trajetória escolar,acúmulo de bens expresso em capital simbólico acumulado, conjuntode habitus, estilo de vida e grau de legitimidade de um campo emrelação a outros.

A noção de campo desenvolvida por Bourdieu constitui-se emuma referência metodológica que visa orientar o modo de construçãodo objeto no processo de organização da pesquisa e indica a necessidadede pensar o mundo social de maneira relacional.

Relação escola e sociedade: O processo de reprodução dasdesigualdades sociais no pensamento de Bourdieu

Segundo Bourdieu, a escola e o trabalho pedagógico só podemser compreendidos quando relacionados ao sistema das relações entreas classes, uma vez que eles servem de instrumentos de legitimaçãodas desigualdades sociais. Para ele, a escola longe de ser libertadora éconservadora, mantém a dominação dos dominantes sobre as classespopulares.

Um jovem da camada superior tem oitenta vezes maischances de entrar na universidade que o filho de umassalariado agrícola e quarenta vezes mais que um filho deoperário, e suas chances são, ainda, duas vezes superioresàquelas de um jovem de classe média (BOURDIEU; PASSERON,1964, apud NOGUEIRA; CATANI, 1998, p. 41).

Nesta perspectiva, a escola não seria uma instância neutra queavaliaria os alunos com base em critérios universalistas, mas, ao contrário,

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seria uma instituição a serviço da reprodução e legitimação dadominação exercida pelas classes dominantes.

Para Bourdieu, a lógica da escola é perversa quanto trataformalmente todos os discentes como iguais em direitos e deveres,sem considerar as desigualdades que de fato existem, ignorando que ascrianças têm culturas diferentes e contribuindo desta forma, para ofracasso de tantos.

É arbitrário o que a escola oferece, exercendo sua função dereprodução e legitimação das desigualdades sociais, negando todadiferença de origem social, conforme nos lembra Bourdieu (1966) apud(NOGUEIRA; CATANI, 1998, p. 53):

Para que sejam favorecidos os mais favorecidos e desfavorecidosos mais desfavorecidos, é necessário e suficiente que a escolaignore, no âmbito dos conteúdos do ensino que transmite, dosmétodos e técnicos de transmissão e dos critérios de avaliação,as desigualdades culturais entre as crianças das diferentes classessociais.

De acordo com Bourdieu, essa igualdade formal que pauta oensino, privilegia quem, por sua bagagem familiar5, já é privilegiado,uma vez que o que é compreendido e assimilado pelo aluno dependeda sua capacidade cultural. Para este autor, o domínio dos alunos variade acordo com a maior ou menor distância existente entre o arbitráriocultural apresentado pela escola como cultura legítima e a cultura familiarde origem dos alunos.

[...] a tradição pedagógica só se dirige, por trás das idéiasinquestionáveis de igualdade e de universalidade, aos educandosque estão no caso particular de deter uma herança cultural, deacordo com as exigências culturais da escola (BOURDIEU, 1966,apud NOGUEIRA; CATANI, 1998, p. 53).

Neste sentido, a cultura transmitida pela escola é arbitrária, a daclasse dominante, transformada em cultura legítima, reconhecida como

5 No ponto de vista de Bourdieu, a família transmite a seus filhos uma bagagem familiar, ocapital cultural, que contribui na definição do destino escolar.

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única universalmente válida, conforme nos informa Bourdieu (apudBONNEWITZ, 2003, p. 118) que “toda ação pedagógica é objetivamenteuma violência simbólica enquanto imposição, por ser um poderarbitrário, de um arbítrio cultural”.

Desta forma, os alunos da classe dominante absorvem essacultura sem nenhum problema, como sua própria. Em contrapartida,os demais, os filhos das famílias menos favorecidas econômica eculturalmente permanecem à margem do processo ensino-aprendizagem, pois o que lhes é ensinado é muito distante de seucontexto. Essa ideologia é compartilhada, também, pelos membros docorpo docente, que transmitem os conteúdos igualmente a todos osalunos como se todos tivessem os mesmos meios de decodificar.Conforme nos informa Bourdieu (1966, apud NOGUEIRA; CATANI, 1998,p. 55), os “professores partem da hipótese de que existem, entre oensinante e o ensinado, uma comunidade lingüística e de cultura, umacumplicidade prévia nos valores”.

Para ilustrar esse problema, basta citar o fracasso escolar, quetodos os estudos mostram depender principalmente da origemsocioeconômica e cultural dos alunos. Ora, uma grande parte dosprofessores defende valores de igualdade e de justiça em relação aosalunos, recusando-se a selecioná-los e avaliá-los pela sua origemsocioeconômica. No entanto, por serem os principais agentes da escolae, a menos que sua ação seja considerada nula e sem efeito, é precisoreconhecer, como diria Bourdieu, que os professores “realizamobjetivamente uma tal seleção”, levando assim uma multidão de alunosao fracasso escolar.

Do ponto de vista de Bourdieu, essa neutralidade do ensinocontribui, na realidade, para justificar e perpetuar as desigualdades, aomesmo tempo em que as legitima. Na década de 70, a escola utilizou-seda “ideologia do dom” para explicar e justificar o fracasso escolar. Essateoria postula que as desigualdades de sucesso na escola são resultadodas aptidões, que aprender é um dom, uma capacidade inata, presenteem poucos “iluminados”, como ressalta Bonnewitz (2003, p. 117):

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65Pensando a relação escola e sociedade na perspectiva de Bourdieu

Com a ideologia do dom, a escola vai “naturalizar o social”,transformando desigualdades sociais em desigualdades decompetências. A escola converte desigualdades sociais emresultados de uma concorrência eqüitativa; o sistema das sançõesescolares é arbitrário.

A escola exerce uma função mistificadora, pois, além de permitirque as classes dominantes justifiquem ser a “ideologia do dom” a chavedo sistema escolar e do sistema social, contribui para reforçar aosmembros das classes dominadas o destino que a sociedade lhes mostra,levando-os a aceitar como inaptidões naturais o que não é senão efeitode uma condição inferior; convencendo-os de que eles devem o seudestino social à sua natureza individual e à sua falta de dons. A escolacumpre, assim, simultaneamente, sua função de reprodução e delegitimação das desigualdades sociais.

O conceito de capital cultural (diplomas, nível de conhecimentogeral, boas maneiras) é utilizado para distinguir capital econômico decapital social (rede de relações sociais). Os estudantes de classe médiaou da alta burguesia, pela proximidade com a cultura “erudita”, pelaspráticas culturais ou lingüísticas de seu meio familiar, têm maisprobabilidades de obter o sucesso escolar. Bourdieu demonstra queexiste relação entre cultura e desigualdades escolares: a escola pressupõecertas competências que são, de fato, adquiridas na esfera familiar(VASCONCELOS, 2002).

Em seus estudos, Bourdieu enfatiza que o maior efeito daviolência simbólica realizada pela escola sobre as classes dominadasé o reconhecimento, por parte dos membros dessas classes, desuperioridade e legitimidade da cultura dominante, ou seja, dadesvalorização do seu “saber” e do “saber-fazer” em favor do“saber” e do “saber-fazer” socialmente legitimados. A escolavaloriza um modo de relação com o saber e a cultura que apenasos filhos das classes dominantes poderiam apresentar, cumprindo,portanto, as funções de legitimação e reprodução atribuídas àinstituição escolar.

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Um dos efeitos menos percebidos da escolaridade obrigatóriaconsiste no fato de que elas6 conseguem obter das classesdominadas um reconhecimento do saber e do saber-fazerlegítimo (e.g.7 em matéria de direito, de medicina, de técnica,de divertimento ou de arte), acarretando a desvalorização dosaber e do saber-fazer que elas detêm efetivamente (e.g. direitoconsuetudinário, medicina doméstica, técnicas artesanais,divertimento ou arte) (BOURDIEU; PASSERON, 1970, apudBONNEWITZ, 2003, p. 119, grifo nosso).

Utilizando a expressão violência simbólica,8 ele tenta explicar omecanismo que faz com que os indivíduos vejam como “natural” asrepresentações ou as idéias sociais dominantes. A violência simbólica édesenvolvida pelas instituições e pelos agentes que as animam e sobrea qual se apóia o exercício da autoridade. Bourdieu considera que atransmissão pela escola da cultura escolar (conteúdos, programas,métodos de trabalho e de avaliação, relações pedagógicas, práticaslingüísticas), própria da classe dominante, revela uma violência simbólicaexercida sobre os alunos de classes populares.

Pierre Bourdieu elabora, assim, um sistema teórico: as condiçõesde participação social baseiam-se na herança social; o acúmulo de benssimbólicos e outros está inscrito nas estruturas do pensamento (mastambém no corpo) e é constitutivo do habitus por meio do qual osindivíduos elaboram suas trajetórias e asseguram a reprodução social.Esta não pode se realizar sem a ação sutil dos agentes e das instituições,preservando as funções sociais pela violência simbólica exercida sobreos indivíduos e com a adesão deles.

As instituições escolares, segundo as idéias de Bourdieu, podemlevar as crianças das camadas populares e das camadas médiasempobrecidas a prejuízos inestimáveis. Elas não ajudam na luta pelaeliminação das desigualdades sociais, pelo reconhecimento da

6 O autor refere-se a “elas” como as “classes dominantes”, uma vez que o sistema escolarcumpre a função de legitimação, impondo às classes dominadas o reconhecimento do saberdas classes dominantes negando a existência de uma outra cultura legítima.7 E. g.: exempli gratia (por exemplo)8 O termo violência simbólica aparece como eficaz para explicar a adesão dos dominados:dominação imposta pela aceitação das regras, das sanções; incapacidade de conhecer as regrasde direito ou morais, as práticas lingüísticas e outras.

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67Pensando a relação escola e sociedade na perspectiva de Bourdieu

diversidade cultural, pela superação da subalternidade da globalização,pela preparação profissional geral, ou seja, não propiciam as condiçõespara que a parte pobre e oprimida da sociedade produza idéias, crie, seprepare para o mundo da ciência, da cultura, da arte, da profissão e dacidadania.

Considerações finais

Não consideramos uma tarefa fácil ou simples escrever sobrePierre Bourdieu, mas um verdadeiro desafio: ele é, sem dúvida, um dosgrandes sociólogos do século XX, reconhecido internacionalmente,um intelectual capaz de unir teoria e prática. As suas obras refletem oseu engajamento: como um bom combatente, criticou os mecanismosde reprodução dos sistemas escolares, o papel da mídia, a miséria e odesemprego. Como diz o sociólogo Carlos Benedito Martins, “ele fezda sociologia uma arma de combate, um instrumento de desmistificaçãodas diferentes formas que assume o processo de dominação” (FOLHA

DE SÃO PAULO, 26 jan. 2002, p. E6).Na compreensão sociológica da escola, o ponto relevante deixado

por Bourdieu foi ter destacado que essa instituição não é neutra e/oulibertadora. Apesar de tratar, “aparentemente” todos iguais, em direitose deveres, ou seja, dominantes e dominados com o direito de assistir àsmesmas aulas, realizando as mesmas avaliações, tendo os mesmosprofessores, obedecendo às mesmas regras e tendo, supostamente, asmesmas chances, na realidade as chances não são iguais, visto que unsestariam em condições privilegiadas em relação a outros no atendimentoàs exigências, muitas vezes implícitas, da escola. Para ele, o processo dereprodução das estruturas sociais por meio da escola é, basicamente,inevitável, uma vez que esta serve de instrumento de legitimação dasdesigualdades sociais e de manutenção da hegemonia dos opressores.

Em todas as suas análises, uma das originalidades de Bourdieufoi tentar complexificar a idéia marxista de uma sociedade cindida emduas, “classe dominante versus classe dominada”. A sociedade éconstituída, para Bourdieu, de vários micro-campos, esferas

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Vânia Rita Donadio Araújo68

relativamente independentes, cada uma com valores particulares, regrasinternas e princípios de funcionamento.

Ao declarar que a cultura escolar é a cultura dominantedissimulada, Bourdieu abre caminho para uma análise mais crítica docurrículo, dos métodos pedagógicos e da avaliação escolar, enfim, detodo o processo pedagógico e da instituição escolar como um todo.

Depois de Bourdieu, tornou-se praticamente impossível analisaras desigualdades escolares, simplesmente, como fruto das diferençasnaturais entre os indivíduos. Acreditamos que uma das grandescontribuições, entre muitas, deixadas por esse sociólogo foi terproporcionado os alicerces para o rompimento frontal com a “ideologiado dom” e com a noção moralmente carregada de “mérito pessoal”.

Bourdieu criou um estilo literário nas ciências sociais: criticadopela complexidade dos textos, pela utilização de um vocabulário querepulsa os neófitos, ele afirma que “só se pode pensar corretamenteatravés da análise de casos empíricos teoricamente construídos”. Noentanto, alguns dos conceitos que desenvolveu fazem parte hoje dovocabulário corrente de sociólogos ou dos que trabalham sobre o social(violência simbólica, campo, capital cultural etc.).

Esse grande intelectual, pela sua história e produção científica,não pode ser desqualificado, como tentaram fazer alguns de seus críticos,argumentando que sua crítica voraz gerava pessimismo e,conseqüentemente, imobilismo. A herança deixada por Bourdieucertamente deverá fertilizar por muito tempo a área das Ciências Sociaise da Educação, bem como o campo da política.

THINKING THE SCHOOL-SOCIETY RELATIONSHIP ONTHE PERSPECTIVE OF BOURDIEU

Abstract: One of the objectives of this article is to present somecontributions from Bordieu’s thought for pedagogical field, reflections aboutthe nature of scholastic work and concrete difficulties on pedagogicalpractice, visualizing in the relation school and society the reproductionprocess of social differences. Pierre Bordieu thinks education loses its roleof transformable and democratical institution of societies and it starts to

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69Pensando a relação escola e sociedade na perspectiva de Bourdieu

be seen as one of the main institutions by that one it maintains and legitimatesthe social privileges. That author left a series of hints and ideas that to ourunderstanding explain and/or collaborate for a reflection about the problemslived on pedagogical field.

Key words: Education. Society. Social differences.

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Vânia Rita Donadio Araújo70

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EDUCACIÓN Y REPRODUCCIÓN CULTURAL:EL LEGADO DE BOURDIEU

Jorge García Marín *

Resumen: El presente trabajo nos aproxima a la obra de Pierre Bourdieu enel contcxto de las teorías de la reproducción y su gran influencia al desarrollode los paradigmas del conflicto en la sociología de la educación. El análisiscrítico del sistema educativo y su importante papel en la reproducción socialy cultural, siguen siendo temas necesarios a la hora de abordar la educación.Cada vez más, necesitamos pensar y repensar la educación como “intelectualestransformativos”, por eso se hacen más necesarios los paradigmas que nosayudan a visionar los elementos que contribuyen a perpetuar el sistema social.El diálogo con la obra de Bourdieu permite conflictuar las relaciones educativasy más allá de la reproducción permite pensar esquemas de acción que siganpolíticas contra-hegemónicas.

Palabras-clave: Reproducción social y cultural. Habitus. Violencia simbólica.Sutoridad pedagógica y campo.

Entre los grandes paradigmas de la sociología de la educaciónnos encontramos a las llamadas teorías del conflicto, de la reproduccióno neomarxistas, teorías que suponen una ruptura con el funcionalismo

* Doutor em Sociologia da Universidade Santiago de Compostela. E-mail:[email protected].

Práxis Educacional Vitória da Conquista n. 2 p. 71-77 2006

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y con las Teorías del Capital Humano al introducir el desorden en elanálisis del sistema educativo, superando la doxa de la neutralidad,objetividad e igualdad de las llamadas sociedades meritocráticas.

Uno de los principales representantes de este paradigma es elsociólogo francés Pierre Bourdieu, prolífico autor de gran y diversaproducción teórica, que abarca distintos campos especializados: laeducación, la religión, el poder político, el arte, la filosofía, la literatura, eldeporte… Pretender resumir en estas páginas las aportaciones de Bourdieual desarrollo de la disciplina sociología de la educación es muy osado, porlo que brevemente rescataré alguno de sus ya célebres conceptos comomínima expresión de su amplio conocimiento acumulado.

Bourdieu es un autor controvertido, no exento de polémicas ydebates, que construyó una obra original, donde se mezcla la reflexiónteórica con una impresionante variedad de medios de investigación(estadísticas, entrevistas, observaciones etnográficas, materialeshistóricos, etc.). Es un autor difícil de ubicar en una “escuela” depensamiento debido a las múltiples influencias incorporadas en su teoría,desde los clásicos (Marx, Weber, Durkheim) a las modernas corrientesde pensamiento interpretativo, como por ejemplo el InteraccionismoSimbólico (Mead, Goffman).

Una obra ya clásica en el campo de la sociología de la educaciónes la realizada con Passeron, La Reproducción, en la que reflejan lainfluencia del origen social del alumnado en el rendimiento académico,y como la escuela contribuye a reproducir las desigualdades sociales.

Para Bourdieu el sistema educativo pone en práctica una singularacción pedagógica, la cual esta bastante interrelacionada con la acciónde la clase dominante y su cultura, provee de cierta información que escapaz de ser aprehendida sólo por aquellos sujetos que poseen el sistemade predisposiciones que es condición para el éxito en la transmisión einculcación de la cultura (recordemos aquí los códigos sociolingüísticosde Bernstein).

La violencia simbólica, que se da en el sistema educativo, es laimposición de sistemas de simbolismos y de significados sobre gruposo clases de modo que tal imposición se concibe como legítima.

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73Educación y reproducción cultural: el legado de bourdieu

Todo poder de violencia simbólica, o sea, todo poder que lograimponer significaciones e imponerlas como legítimasdisimulando las relaciones de fuerza en que se funda su propiafuerza, añade su propia fuerza, es decir, propiamente simbólica,a esas relaciones de fuerza. (BOURDIEU; PASSERON, 1977, p. 44).

La legitimidad oscurece las relaciones de poder, lo que permiteque la imposición tenga éxito. En la medida en que es aceptada comolegítima, la cultura añade su propia fuerza a las relaciones de poder,contribuyendo a su reproducción sistemática. La cultura es arbitrariaen su imposición y en su contenido. Lo que denota la noción dearbitrariedad es que la cultura no puede deducirse a partir de que sea loapropiado o de su valor relativo. Ciertos aspectos de la cultura no puedenexplicarse a partir de un análisis lógico ni a partir de la naturaleza delhombre.

El sustento principal del ejercicio de la violencia simbólica es laacción pedagógica que se fundamenta en la imposición de un doblearbitrario: el arbitrario de la autoridad (método o modelo pedagógicodidáctico) y el arbitrario cultural que se inculca como algo definitivo,acabado, no negociado, acrítico. Todas las culturas cuentan conarbitrariedades culturales que son transmitidas a través de los procesosde socialización, disfrazados de legitimidades no cuestionadas (laimposición ha de ser vista como independiente de las relaciones defuerza) y como cuestión meramente técnica.

Para Bourdieu la Escuela, “la autoridad pedagógica, el trabajopedagógico, y la relación pedagógica”, ejercen una violencia simbólicaal imponer a los hijos de las clases dominadas ese arbitrario cultural (elcurrículum escolar como cultura universal y necesaria) como si fuese“la cultura”, al mismo tiempo que convierten en ilegitimas sus formasde cultura propias; es decir, se introduce una distinción entre los sabereslegítimos y dominantes y otros saberes subordinados. Y, en la medidaen que dicho arbitrario cultural concuerda con el capital cultural familiarde la mayoría de los hijos de la clase media, éstos se ven favorecidos: alfinal de la escolaridad su capital cultural familiar se ve reforzado con elcapital escolar, mientras que los hijos de las clases bajas tienen, para

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obtener el éxito en la Escuela, que cambiar su capital cultural familiarpor el escolar; de esta manera se construye la reproducción. El sistemaeducativo no sólo permite esa reproducción de las desigualdades(legitimándolas), sino que incrementa las desigualdades de partida.Bourdieu subraya el hecho de que la cultura escolar no es neutral, yaque enmascara relaciones de dominación que contribuyen a reproducirlas desigualdades de clase.

Repasamos aquí, brevemente, dos conceptos clave einterrelacionados de gran importancia en el análisis del sistema educativoy que sirven para fundamentar mejor el proceso de reproducción socialy cultural y la legitimación del orden social: Habitus y Campo:

Habitus

El habitus como sistema de disposiciones, es el producto de laincorporación de la estructura social a través de la posición ocupada enesta estructura — y, en cuanto tal, es una estructura estructurada —, peroal mismo tiempo estructura las prácticas y las representaciones, actuandocomo estructura estructurante, es decir, como sistema de esquema prácticoque estructura las percepciones, las apreciaciones y las acciones

Se constituye como sistema de esquemas adquiridos y quefunciona en la práctica como categorías de percepción y de apreciacióno como principio de clasificación al mismo tiempo que como principioorganizador de la acción que implica constituir al agente social en suverdad de operador práctico en la construcción de objetos. La acciónno es la simple obediencia a una regla, el sujeto reconstruye en lasacciones.

Las estructuras objetivas no existen fuera de la conciencia y lavoluntad de los agentes, y orientan sus prácticas y sus representacionesde acuerdo con las reglas del juego. El habitus funciona tambiénsubjetivizando, es decir, interiorizando la sociedad, según la posiciónparticular del sujeto y su trayectoria autobiográfica.

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75Educación y reproducción cultural: el legado de bourdieu

Con este concepto, como el propio Bourdieu reconoce, quisoreaccionar contra la orientación mecanicista de Saussure y delestructuralismo, dando a la práctica una intención activa, creadora.

Bourdieu propone el ejemplo del “juego”, en el que los jugadores,una vez que han “interiorizado” sus reglas, actúan conforme a ellas. Dealguna forma, se ponen al servicio del propio juego en sí. Esainteriorización y automatismo de las reglas de juego, que son las quedeterminan la capacidad de acción de los jugadores, se correspondencon ese “cuerpo socializado”, con el habitus generado en los diversoscampos sociales.

La forma en que los individuos perciben el mundo está ligada asu posición en el mundo social. Las posibilidades de cambio socialvendrían del desfase que se produce entre la adquisición del habitus ylas condiciones objetivas que lo generaron sobre las que inciden lastransformaciones sociales, económicas, políticas...

El Sistema educativo puede realizar su función a condición dereproducir, al menor coste y en serie, un habitus conforme al arbitrariocultural que reproduce tan homogéneo como sea posible. Todo trabajopedagógico tiende a producir un habitus, incorporando o interiorizandouna cultura determinada.

Campo

Son espacios estructurados y jerarquizados de posicionesobjetivas, en los que se desarrollan combates y luchas por preservar,ocupar o subvertir esas posiciones y esas relaciones. El campo es tantoreproducción como cambio.

Siguiendo a Bourdieu (1997, p. 48-49):

Todas las sociedades se presentan como espacios sociales, esdecir estructuras de diferencias que solo cabe comprenderverdaderamente si se elabora el principio generador quefundamenta estas diferencias en la objetividad. Principio que

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no es más que la estructura de distribución de las formas depoder o de las especies de capital eficientes en el universo socialconsiderado – y que por tanto varían según los lugares y losmomentos. Esta estructura no es inmutable, y la tipología quedescribe un estado de las posiciones sociales permitefundamentar un análisis dinámico de la conservación y de latransformación de la estructura de distribución de laspropiedades actuantes y con ello, del espacio social. Es lo quepretendo trasmitir cuando describo el espacio social global comocampo, es decir, a la vez como un campo de fuerzas, cuyanecesidad se impone a los agentes que se han adentrado en él,y como campo de luchas dentro del cual los agentes se enfrentan,con medios y fines diferenciados según su posición en laestructura del campo de fuerzas, contribuyendo de ese modo aconservar o a transformar su estructura.

El campo puede compararse con un juego cuyas reglas no sonexplícitas, y en el que los “jugadores” comparten, de forma desigual,una pluralidad de “bazas” y donde se ponen de manifiesto relacionesde poder que se estructuran a partir de la distribución desigual de loque Boudieu denomina “capital”. Bourdieu reconoce tres clasesfundamentales de capital: el económico, el cultural y el social. A estoshay que añadir el capital simbólico, que sólo existe en la medida en quees percibido como valor.

Creemos con Bernard Lahire (2005) que el concepto de campoes relativamente esquelético pero representa esa teoría regional delmundo social que nos permite “iluminar las grandes escenas en que sejuegan desafíos de poder”.

Los análisis de Bourdieu marcaron un gran avance con respectoa los análisis meramente economicistas , ya que introdujeron la variablecultura para identificar los obstáculos que se encuentran los estudiantesde clase baja en su trayectoria curricular y por lo tanto reafirmaron laimportancia del análisis de los procesos de reproducción cultural cuandose los ubica dentro de la lógica general de la reproducción social. Apesar de las críticas realizadas a su trabajo (como las de no ofrecermuchas posibilidades de acción práctica, o las de no poseer base teóricapara una política de cambio) el trabajo científico de Bourdieu seguirá

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77Educación y reproducción cultural: el legado de bourdieu

ofreciendo armas teóricas para justificar preguntas con las queinterrogarnos sobre la educación como espacio social estratégico dentrode la reproducción social, y sobre los poderes y sus representacionesque más que nunca, en esta llamada posmodernidad, dominan materialy simbólicamente nuestras sociedades y acciones.

EDUCATION AND CULTURAL REPRODUCTION:BOURDIEU’S LEGACY

Abstract: The present work brings us near to Pierre Bourdieu’s work in thecontcxto of the theories of the reproduction and its great influence to thedevelopment of the paradigms of the conflict in the sociology of the education.The critical analysis of the educational system and the important role in thesocial and cultural reproduction, they continue being necessary topics at themoment of approaching the education. Increasingly, we need to think and torethink the education like “intellectual transformativos”, because of it thereare done more necessary the paradigms that help us to visionar the elementsthat help to perpetuate the social system. The dialogue with Bourdieu’s workallows conflictuar the educational relations and beyond the reproduction heallows to think schemes of action that are still political counter-hegemonic.

Key Words: Social and cultural reproduction. Habitus. Intellectualtransformativos.

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INVESTIGAÇÃO-AÇÃO NA FORMAÇÃO DEPROFISSIONAIS PESQUISADORES(AS): UMA

EXPERIÊNCIA NO CICLO DE APRENDIZAGEM ENA EDUCAÇÃO DE PESSOAS JOVENS E ADULTAS

Maria Iza Pinto de Amorim Leite *José Jackson Reis dos Santos **

Resumo: O texto é fruto de um projeto de investigação-ação realizado comoparte da programação das disciplinas Didática e Educação de Jovens e Adultos,no V Semestre do Curso de Pedagogia da Universidade Estadual do Sudoesteda Bahia, em Vitória da Conquista, Bahia, Brasil. Presenciando, participandoe acompanhando atividades desenvolvidas no cotidiano das escolas, osgraduandos foram construindo o conhecimento da realidade com base nasexperiências pedagógicas concretas. Visitas, registros, leituras e comentáriosde memórias foram passos que proporcionaram aos graduandos afamiliarização com o espaço educacional das escolas municipais de Vitória da

* Doutora em Educação pela Universidade Federal da Bahia (Ufba). Professora do Departamentode Filosofia e Ciências Humanas (DFCH) da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia(Uesb), na área de Didática. Pesquisadora e líder do Grupo de Pesquisa intitulado “PolíticasPúblicas, Gestão e Práxis Educacionais: Um Estudo no Contexto do Município de Vitória daConquista-Bahia”, cadastrado no CNPq. E-mail: [email protected].**Mestre em Educação pela Universidade de Passo Fundo (UPF-RS). Professor doDepartamento de Filosofia e Ciências Humanas (DFCH) da Universidade Estadual do Sudoesteda Bahia (Uesb), nas áreas de Gestão Educacional e Educação de Pessoas Jovens, Adultas eIdosas. Pesquisador e vice-líder do Grupo de Pesquisa intitulado “Políticas Públicas, Gestão ePráxis Educacionais: Um Estudo no Contexto do Município de Vitória da Conquista -Bahia”,cadastrado no CNPq. E-mail: [email protected].

Práxis Educacional Vitória da Conquista n. 2 p. 79-95 2006

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Maria Iza Pinto de Amorim Leite e José Jackson Reis dos Santos80

Conquista. Os professores da rede municipal vivenciaram a experiência desocializar com os graduandos os acertos e desacertos que se verificam nocotidiano da práxis educacional. Com isso, além da reflexão da própria prática,contribuíram com a formação inicial dos graduandos.

Palavras-chave: Formação de Professores. Ensino-Pesquisa-Extensão. PráxisEducacional. Ciclo de Aprendizagem. Educação de Pessoas Jovens e Adultas.

Investigação-ação: práxis coletiva e colaborativa

Realizamos este projeto de investigação-ação por várias razões.A primeira delas diz respeito ao papel social da Universidade, uma vezque não podemos concebê-la distante das realidades educacionais edos contextos de atuação dos futuros pedagogos. Nesse sentido, aexperiência de conhecer e vivenciar o cotidiano educacional requer aimersão crítica, reflexiva e colaborativa dos sujeitos no ato de produzir,coletivamente, uma escola que se faz na caminhada; uma escola emmovimento e entendida como espaço de transformação social, comocampo de luta permanente pela qualidade dos processos educativos;uma escola, por isso mesmo, problematizante (FREIRE, 1987),acolhedora, reflexiva (ALARCÃO, 2003).

Estabelecer e desenvolver ações que estreitem o vínculo entreensino e pesquisa é outro aspecto motivador na implementação doprojeto. Entendemos que não fazemos Universidade apenas com ensino.O ato de ensinar pressupõe pesquisar permanentemente. A pesquisa éfonte constante de produção de outros conhecimentos; é possibilidadede ressignificação de práticas pedagógicas.

Ao vivenciar o cotidiano das escolas, os graduandos pretenderamcontribuir com a construção de uma educação de melhor qualidadesocial. Nesse contexto de interação e de interlocução, estivemosaprendendo e ensinando ao mesmo tempo. O aprendizado emcomunidades colaborativas possibilitou repensar e ressignificar asexperiências pedagógicas em desenvolvimento; experiências queconsideraram, partiram e conviveram com diferentes sujeitos e suasdiferentes histórias/trajetórias.

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81Investigação-ação na formação de profissionais pesquisadores(as): uma experiência ...

Viver a experiência pedagógica junto aos profissionais nelaenvolvidos não significou estender, de forma autoritária, saberesproduzidos na formação inicial aos sujeitos das escolas; ao contrário,numa perspectiva dialética, estabelecemos um processo de constantecomunicação. Esse é um movimento que implica abrir mão de certezas,duvidando sempre, questionando muito, observandopermanentemente; implica também registrar, escrever a experiência,refletindo criticamente sobre o processo em sua dimensão detotalidade.

Neste projeto, graduandos e profissionais das instituiçõesenvolvidas depararam-se com a oportunidade de analisar a práxispedagógica vivida no dia-a-dia da escola. Em se tratando de práxis,destacamos aqui a indissociabilidade entre teoria-prática e, além disso,como “concepção que integra em uma unidade dinâmica e dialética aprática social e sua pertinente análise e compreensão teórica, a relaçãoentre a prática, a ação, a luta transformadora e a teoria que orienta eajuda a conduzir a ação” (HURTADO, 1992, p. 173).

Sujeitos e contextos da experiência

Nesta investigação-ação, envolveram-se profissionais das escolaspúblicas1 de Vitória da Conquista, graduandos do 5º Semestre do Cursode Pedagogia da Uesb (turnos matutino e noturno) e os professoresdas disciplinas: Didática e Educação de Jovens e Adultos.

As escolas municipais de Vitória da Conquista estão organizadasem grupos, para efeito de planejamento, estudos e acompanhamentopedagógico. Nos turnos matutino e vespertino, as trinta e três escolascicladas formam cinco grupos dos quais dois foram tomados para arealização desta pesquisa. Os grupos foram selecionados em função dacompatibilidade entre os calendários de atividades da Secretaria

1 Participaram também desta pesquisa três outras escolas. A primeira é uma escola da redeprivada de Vitória da Conquista , Bahia. A segunda está localizada em Aracatu; a terceira emPiripá, municípios circunvizinhos, nos quais residem estudantes do curso de Pedagogia. Parafins de sistematização, neste texto, optamos em trabalhar apenas com as escolas da rede públicamunicipal de Vitória da Conquista.

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Maria Iza Pinto de Amorim Leite e José Jackson Reis dos Santos82

Municipal de Educação (SMED) e os horários disponíveis para asatividades dos professores e alunos das disciplinas envolvidas napesquisa.

As escolas que funcionam no noturno, num total de vinte equatro, foram também tomadas como espaços de investigação-ação.Estas escolas desenvolvem o programa Repensando a Educação deAdolescentes, Jovens e Adultos (Reaja) e estão organizadas em doisgrupos (A e B). O estudo, tanto no Ciclo, quanto no Reaja, foi realizadonas escolas localizadas na zona urbana.

Focos de estudo, objetivos, tempo e metodologia da pesquisa

A investigação-ação desenvolveu-se no cotidiano educacional,tomando-se como focos de estudo e análise duas políticas públicaseducacionais que vêm sendo implementadas no contexto da redemunicipal de Vitória da Conquista: o Ciclo de aprendizagem, nas classesiniciais do ensino fundamental com alunos na faixa etária regular, nosturnos diurnos; e o programa Repensando a Educação de Adolescentes,Jovens e Adultos (Reaja), no turno noturno.

O CA, implantado em 1998, em todas as escolas da zona urbana,organiza o ensino em dois ciclos, envolvendo os três primeiros anosdo ensino fundamental (Ciclo I) e os dois anos seguintes (Ciclo II). Aconstrução de uma pedagogia diferenciada que possibilite a progressãocontinuada no interior de cada ciclo é um dos principais objetivos dosprofissionais que acreditam na proposta do ciclo.

O Reaja, implantado em 1997, nas escolas das zonas urbana erural, propõe um trabalho pedagógico alternativo para a modalidadede educação de pessoas jovens e adultas. Organizado em módulos, oprograma fundamenta-se nas experiências de educação popular, tendocomo uma de suas referências o educador Paulo Freire.

Estreitar as relações entre sociedade, escolas e universidade,qualificar a práxis educacional vivida nesses contextos, contribuir coma formação continuada (escolas) e inicial (Universidade), tencionandoa transformação dos sujeitos e dos espaços educativos foram objetivos

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gerais, inerentes a este projeto de investigação que teve como objetivosespecíficos: a) identificar e analisar os princípios teórico-metodológicosorientadores das experiências pedagógicas do Ciclo de Aprendizageme do Reaja; b) analisar, coletivamente, práticas pedagógicas vividas pelosdocentes da rede municipal de ensino de Vitória da Conquista; c)participar do processo de construção e de ressignificação das práticaspedagógicas no cotidiano das escolas; d) auto-avaliar a práxis profissionalvivida ao longo da investigação-ação, refletindo criticamente sobre aprópria caminhada de elaboração do conhecimento.

Quanto ao tempo de desenvolvimento da investigação-ação,consideramos dois períodos:

a) O primeiro se refere ao tempo de vivência da investigação-ação:agosto a dezembro de 2004. Este tempo de trabalho com osgraduandos foi equivalente ao desenvolvimento do semestre letivode 2004.I,2 motivo pelo qual foi definido. Vale ressaltar que nesteperíodo não se encerrou a pesquisa, tendo possibilidade decontinuidade no semestre seguinte.b) O segundo se refere ao período de análise de dados estatísticos dasduas políticas públicas educacionais em estudo (1997-2003). Para estaanálise estatística, escolhemos o ano de 1997 como ponto inicial porser o ano de implantação do Reaja.

A metodologia de trabalho foi desenvolvida por meio da espiralde investigação-ação, incorporando princípios como problematização,contextualização, dialogicidade, reflexividade, participação, colaboração.Esses são princípios inerentes à práxis educacional; práxis entendidacomo “a ação do homem sobre a matéria e criação – através dela – deuma nova realidade humanizada” (VÁZQUEZ, 1977, p. 245). A dialéticada investigação-ação, por isso mesmo, é dialógica, problematizadora,crítica; é possibilidade de homens, mulheres, crianças produzirem juntosnovos conhecimentos.2 Na Uesb, os semestres estão atípicos em decorrência dos últimos movimentos grevistas. Osemestre 2004.I desenvolveu-se no período de agosto a dezembro de 2004.

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Nesse contexto, os sujeitos, suas experiências concretas e seusfragmentos de histórias de vida (SANTOS, OLIVEIRA; WESCHENFELDER,2004), bem como o processo de análise, de teorização e dereplanejamento da ação foram movimentos permanentes do trabalho.A elaboração da memória (BENINCÁ et al., 2004), a leitura dela e olevantamento de indicativos para aprofundamento teórico-metodológico foram partes integrantes do processo de vivência da práxispedagógica.

A investigação-ação como concepção e prática educativa é umadas possibilidades de desenvolver um trabalho de pesquisa, numaperspectiva qualitativa. Estudiosos da investigação-ação como Carr eKemmis (1988), Zeichner (2002), Elliott (1998), Benincá et al. (1994,2004); Faria (2001), entre outros, têm insistido nesse tipo de pesquisapelo fato de poder envolver os sujeitos da escola e da universidadenum processo de transformação das práticas pedagógicas. Esse tipo depesquisa não é produzido apenas pelo pesquisador acadêmico; ele édesenvolvido colaborativamente, em conjunto com todos osparticipantes do processo.

A origem da investigação-ação remonta, segundo Elliott (1998),aos anos 1940, quando Kurt Lewin divulgou pela primeira vez talperspectiva. Em seu início, conforme afirma Pereira (1998, p. 162), ainvestigação-ação objetivava:

[...] o caráter participativo, o impulso democrático e acontribuição à mudança social; [...] posicionamento realista daação, sempre seguida por uma reflexão autocrítica objetiva euma avaliação de resultados: nem ação sem investigação neminvestigação sem ação.

Nesse tipo de pesquisa, precisamos estar atentos para não atransformarmos em “fonte de técnicas de razão instrumental emorganizações humanas” (ELLIOTT, 1998, p. 150). Pereira (1998) afirmaque a investigação-ação, no Brasil, tem sido utilizada em processos deformação continuada e de formação inicial, principalmente quando setem como objeto de estudo as práticas pedagógicas vividas no cotidiano

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educacional. Nesse percurso, busca-se qualificar a própria prática,modificar as problemáticas encontradas e, ao mesmo tempo, contribuircom a transformação e ressignificação dos contextos, dos sujeitos edas suas experiências pedagógicas.

Como nenhuma transformação acontece sem intencionalidades,a investigação-ação, sem se deixar transformar em uma técnica depesquisa ou de inovação pedagógica nas escolas, exige odesenvolvimento de um rigor metodológico, o que muitos estudiosostêm denominado de espiral de investigação-ação. Esta espiral seapresenta em quatro etapas: a) esclarecimento e diagnóstico de umasituação problemática na prática; b) formulação de estratégias de açãopara resolver o problema; c) desenvolvimento e avaliação dasestratégias de ação; d) esclarecimento e diagnóstico posterior dasituação problemática (e assim sucessivamente na espiral seguinte dereflexão e ação).

No percurso de trabalho com as escolas da rede municipal deVitória da Conquista, os momentos da metodologia foram organizadosda seguinte forma:

a) Observação sistemática no contexto das escolas. Nesse momento,os graduandos observaram a vida educacional no cotidiano dos espaçoseducativos, dialogando com os sujeitos ali presentes. A coleta de material(documentos oficiais e outros), o registro das observações, a coleta deinformações de maneira informal e a elaboração de memóriascontribuíram para o processo de sistematização e análise do contextoeducacional.b) Produção de registros e de memórias (por escola). Cada graduando,no decorrer das observações, produziu o seu registro e, apósobservações, diálogos e coleta de informações, elaborou a memóriaindividual sobre o processo vivido na escola.c) Leitura de memórias (por escola) em sala de aula, durante as aulas deDidática e de Educação de Jovens e Adultos. Nessa etapa, foram lidasas memórias, levantados os indicativos e apontados novosencaminhamentos para voltar aos contextos das escolas. Aqui, fizemos

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o estudo e a análise de indicativos, compreendendo a complexidade docontexto das escolas e suas potencialidades. Incorporamos, ainda, oreplanejamento da nossa ação.d) Aprofundamento teórico-metodológico. Cada professor, durante asaulas de Didática e Educação de Jovens e Adultos, aprofundou discussõese debates, articulando-os às experiências vividas pelos graduandos duranteas visitas e observações feitas nos contextos das escolas.e) Retorno às escolas. De posse de novas leituras e de novas compreensõesacerca do processo educacional, os graduandos retornavam para as escolasa fim de continuar o trabalho de investigação-ação.f) Ação compartilhada. Em momento oportuno, cada grupo de trabalhodesenvolveu ação (ou ações) pedagógica(s) junto ao coletivo deprofissionais das escolas, contribuindo com a qualificação do processovivido pelos sujeitos nos espaços educativos.g) Produção de textos (artigo, resumo, pôster, folder). Elaboraçãointerativa realizada pelos professores das disciplinas envolvidas noprocesso e pelos graduandos, visando à publicação e divulgação dosresultados alcançados.h) Realização do seminário “Práxis educacional no Ciclo e no Reaja:olhares de profissionais-pesquisadores”, objetivando a socialização ediscussão da experiência vivenciada pelos graduandos e professores daUesb e pelos profissionais das escolas envolvidas. O seminário foirealizado no dia 11 de dezembro de 2004, no Auditório do Júri, naUesb, nos turnos matutino e vespertino.i) Elaboração de relatórios. Para sistematizar a experiência pedagógica,foram elaborados relatórios escritos pelos graduandos (por escola) erelatório-síntese pelos professores de Didática e de Educação de Jovense Adultos, revelando as aprendizagens vividas no processo.

Cada uma das etapas da investigação-ação precisa ser entendidae vivida dialeticamente, uma vez que todos os envolvidos buscam, juntos,diagnosticar, compreender e analisar as problemáticas, refletindo sobreelas, teorizando-as e apontando alternativas de ressignificação doprocesso educativo, transformando esse processo em práxis produtivana perspectiva de Vázquez (1977, p. 197):

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A práxis produtiva é assim a práxis fundamental porque nela ohomem não só produz um mundo humano ou humanizado, nosentido de um mundo de objetos que satisfazem necessidadeshumanas e que só podem ser produzidos na medida em que seplasmam neles finalidades ou projetos humanos, como tambémno sentido de que na práxis produtiva o homem se produz,forma ou transforma a si mesmo.

No processo de investigação-ação não há aquele que determina,que prescreve, que dita normas e regras para alguém jogar. Há, sim,aqueles que, juntos, se desafiam a buscar resolver situações-problema.Utilizando contribuições freireanas, podemos dizer que, nesse percurso,homens e mulheres partem colaborativamente no desvelamento, nacompreensão e na transformação do mundo.

Impressões e aprendizados no processo

Ao chegarmos ao final de uma das etapas do projeto deinvestigação-ação, já podemos fazer algumas considerações, resultantesdos momentos de observação, leitura e discussão das memóriaselaboradas pelos graduandos, permitindo sinalizar alguns pontosrelevantes no caminho construído conjuntamente.

A experiência pedagógica vivida enriqueceu e mudou os olharesdos sujeitos envolvidos. Numa das reuniões para leitura e discussão dememória, os relatos de duas alunas que não têm vivência como docentese destacaram. A primeira explicitou que não conseguia entender nadada organização do ensino em ciclos, mas, depois da explicação queouviu da coordenadora da escola em que está realizando a investigação-ação, acabou se apaixonando pela proposta. A segunda graduandaconfessou que, durante as visitas à escola e a participação nas reuniõesde professores, acabou se interessando pelo processo, identificando-secom os temas discutidos e desprendendo-se da preocupação em obteruma nota. Afirmou também que aconteceu motivação em cadagraduando, eliminando resistências que se percebiam no início dostrabalhos, o que podemos constatar nas falas de outros sujeitos:“Sinceramente, quando a gente começou, eu não estava muito animada,

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não. Eu achei que era uma coisa muito solta, sem direção [...] claro, nãoia ajudar em nada” (MEMÓRIAS de reuniões com graduandos).

As análises produzidas no âmbito do coletivo ressignificaram oprocesso e refizeram a caminhada. Encharcados das vivências dasescolas, os graduandos começaram a compreender a educação numaperspectiva totalizante, relacionando os aspectos pedagógico-administrativo-financeiros às questões sociais, políticas, econômicas,culturais, históricas da sociedade em geral; descobriram que os problemaseducacionais não são fruto do acaso; perceberam que não podemosresolver os problemas educacionais ficando presos apenas a eles.

O registro em memórias escritas, tanto das visitas às escolasmunicipais, quanto das reuniões de professores (no Centro EducacionalProfessor Paulo Freire) e de graduandos (na Uesb), deu conta de umprimeiro momento, no qual foi focalizada a coleta de informações,merecendo destaque a disponibilidade dos profissionais das escolasem contribuir com a formação dos graduandos, como verificamos nosfragmentos de diferentes memórias destacados a seguir:

• “Todos os olhares voltaram-se para a nossa presença, e o nossoolhar buscava descrever os mínimos detalhes daquele lugar” (MEMÓRIAS

de visitas às escolas – fragmento).• “Nossa visita foi bastante tranqüila, pois todos se colocaram commuita disponibilidade para conversar conosco e esclarecer dúvidas”(MEMÓRIAS de visitas às escolas – fragmento).

Foi essa coleta de informações, in loco, que colocou os graduandosem contato com a realidade das escolas, desde a estrutura física até asquestões pedagógicas e socioeconômicas:

A escola é pequena. Possui três salas espaçosas, sem forro ecom iluminação adequada; uma cozinha e uma secretaria quenão possuem tamanho adequado; dois banheiros (masculino efeminino) e não possui pátio. A construção é antiga e malconservada, e o mobiliário é velho e precisa de pintura. Osvidros das janelas estão inteiros e fornecem iluminação(MEMÓRIAS de visitas às escolas – fragmento).

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A escola se encontra em perfeito estado físico, com salas amplas,banheiros femininos e masculinos com certas adaptações paraos portadores de necessidades físicas, pátio para recreação,também consideravelmente amplo, sala de planejamento ecoordenação, secretaria, diretoria, almoxarifado, cozinha edespensa organizadas e abastecidas. Faltando-lhe apenas umlocal apropriado para a instalação de uma biblioteca, ficandoalguns poucos livros na sala da coordenação, disponíveis paratrabalhos em sala de aula e consulta dos professores (MEMÓRIASde visitas às escolas – fragmento).

Foram postas as dificuldades e avanços que o projeto vemadquirindo, onde pudemos perceber que um dos maioresimpasses para a obtenção do sucesso é a evasão escolar. Foidito que no início das aulas é possível formar uma turma com50 alunos chegando ao final com 17 ou até menos (MEMÓRIASde reunião de professores – fragmento).

No dia 24/09, visitamos a referida escola, no turno noturno,constatando que essa escola está situada numa área com terrenosbaldios e cercada por vários motéis, em frente a um abrigo depessoas indigentes. O mais grave é que o presídio está localizadona mesma rua da escola (MEMÓRIAS de visitas às escolas –fragmento).

No contexto da sala de aula universitária, em reuniões com osgraduandos, constituímo-nos em comunidades críticas e autocríticas.Cada sessão de estudos e debates representou o aprofundamento eanálise mais apurada das realidades encontradas nas escolas. Uma dasgrandes lições desse processo é aprender a inverter o olhar, ou seja,colocarmo-nos como sujeitos que também analisamos a nossa prática.Ultrapassar a dimensão de pesquisadores que simplesmente criticam eanalisam a prática dos sujeitos das escolas, para uma posição decolaboração e de aprendizagem mútua continua sendo um dos processosmais difíceis. Isso se verifica no fragmento a seguir:

É preciso ter um olhar mais abrangente. É um processo queenvolve pessoas diferentes, professores com realidadesdiferentes. Romper com isso é muito difícil já que é muito difícilromper com o tradicional. O processo é complexo (MEMÓRIASde reuniões com graduandos – fragmento).

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Constantemente, pegamo-nos analisando problemas, dificuldadesdos outros como se fosse possível transformar os sujeitos em objetosde estudo. Esquecemo-nos, muitas vezes, que o tema (ou temas) central(ais) de estudo é a relação pedagógica construída nas tramas do cotidianoeducacional, ou seja, as falas, os pensamentos dos sujeitos que se referema um contexto peculiar, específico.

As reuniões mensais com os professores são momentos deestudo para compreender melhor o trabalho do programaRepensando a Educação de Adolescentes, Jovens e Adultos(Reaja), para que o professor possa conciliar teoria e prática.Porém, o próprio professor dificulta o trabalho não querendoestudar (MEMÓRIAS de reuniões de professores – fragmento).As professoras falaram sobre a evasão escolar e disseram que,especificamente na sexta-feira, a freqüência é menor. Quandoperguntamos qual avaliação que elas faziam, em relação a estefato, uma professora [...] disse que a sexta-feira é para os alunosum dia de festa ou de comparecimento à igreja. Outra professoraculpou os alunos pelo desinteresse pela escola e não questionoufalha no sistema educacional (MEMÓRIAS de reuniões deprofessores – fragmento).Podia-se perceber a insatisfação de algumas professoras diantede certas afirmações (da palestrante) até mesmo porque areunião foi realizada na sexta-feira e muitos estão cansados nessedia (MEMÓRIAS de reuniões de professores – fragmento).A professora de progressão disse que o professor que trabalha40h não tem muito tempo para estudar e fazer atividadesdiferenciadas, mas que o professor da progressão recebe umpouco mais de instrução e diz que, sempre que possível, estálendo materiais para enriquecer o seu trabalho (MEMÓRIAS dereuniões de professores – fragmento).

Olhar as experiências educativas, analisando-as do lugar do outro,possibilitou-nos ultrapassar afirmações iniciais, muitas vezes presas aosenso comum, que culpabilizam os professores pelas problemáticaseducacionais, perdendo, desse modo, a leitura de realidade numaperspectiva de totalidade, de conjunto, por isso mesmo, contraditória,processual, dialógica e dialogante com os contextos, com os sujeitos.

Outro fator de importante aprendizado diz respeito àpossibilidade de desenvolvimento de um processo crítico-reflexivo-

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formativo ao longo do curso de Pedagogia, e não apenas no final deste.Passamos, por meio da investigação-ação, a apontar alternativas teórico-metodológicas capazes de articular e desenvolver o estágio do curso aolongo de todos os semestres, e não somente nos dois ou três últimoscomo em geral acontece. A fala de professores da rede municipal,registrada na memória de um dos grupos, referenda a necessidade daimersão do graduando, desde cedo, na realidade vivenciada nas escolas:

Mesmo estando na faculdade e recebendo um referencial teóricogrande, só iremos aprender realmente a ensinar através da práticaem sala de aula. Fizeram também um comentário no sentidode que deveríamos estar mais presentes na escola paraadquirirmos mais experiência e que esta não deveria se restringirapenas ao estágio no último semestre (MEMÓRIAS de visitas àsescolas – fragmento).

A experiência mostrou-nos que o desenvolvimento de umprocesso crítico-reflexivo-formativo requer tempo, espaço, dedicaçãodos sujeitos, registro das práticas e produção de memórias, leitura detextos, observação constante do cotidiano educacional, replanejamento,além de ações transformadoras, com o intuito de modificar as situações-problema encontradas nos diferentes espaços educativos. Tambémampliou significativamente a concepção de escola, de pesquisa, deensino, de extensão, de construção do conhecimento, de estágio. Istose evidencia nos fragmentos de memória que seguem:

Como tem sido natural nas aulas conjuntas, muitas dúvidasafloram e como sempre, quanto mais se falava, mais dúvidassurgiam (MEMÓRIAS de reuniões com graduandos – fragmento).

A leitura das memórias tem mostrado que a escola pública nãoestá tão defasada como pensam os pais que colocam seus filhosem escolas particulares e que há interesse da Secretaria Municipalde Educação em estar implementando e melhorando o ciclo.Não se está dizendo, com isso, que a situação da rede municipalestá às mil maravilhas. Há muitos professores que se envolveme fazem um ótimo trabalho, mas há outros que não (MEMÓRIASde reuniões com graduandos – fragmentos).

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Atrelado a esse processo, a pesquisa, o ensino e a extensão –tripé da universidade – ganharam novos rumos. A extensão, porexemplo, passa a nascer do cotidiano educacional e não apenas doâmbito da universidade numa perspectiva, muitas vezes, autoritária, quenão contempla os interesses e as necessidades das escolas. A pesquisa,de outro modo, corrobora o processo de ampliação das leituras demundo, além de contribuir com o entendimento e análise, de maneiraaprofundada, das problemáticas educacionais. O ensino, nutrido depesquisa e ressignificado por ela, ganha novos contornos, a fim detornar-se um espaço-tempo de encontro entre sujeitos que pensamrealidades, buscando compreendê-las, interpretá-las e transformá-las àluz de referenciais teórico-metodológicos no âmbito da sala de aula.No processo interativo da sala de aula universitária, o fazer-pensarpedagógico passa a ser compreendido como campo de debates, deconfrontos, de afirmações, de negações, de negociações pedagógicasentre professores e estudantes.

Contribuindo com os sujeitos das escolas, o projeto possibilitou,para nós, professores, desenvolver atividades de extensão, respeitandoe considerando as necessidades locais e o processo em desenvolvimentono cotidiano dos espaços educativos, por meio do que denominamosde ação compartilhada. Nesta, alguns graduandos tiveram oportunidadede participar do trabalho docente, ao lado dos professores, ainda queem momentos rápidos e eventuais, iniciando o contato com alunos darede pública municipal. Ainda nesta proposta, como professores deDidática e de Educação de Jovens e Adultos, tivemos a oportunidadede reunir todos os professores municipais da zona urbana e graduandosdo curso de Pedagogia em momentos de reflexão conjunta, aoministrarmos palestras para todos os grupos, inclusive aqueles nãoincluídos na pesquisa. Com os professores e graduandos da investigação-ação do projeto Reaja, realizamos palestras sobre “Currículo naPerspectiva do Paulo Freire”. Com os professores e graduandos dainvestigação-ação sobre o Ciclo, abordamos a “Avaliação daaprendizagem no ciclo”. Os temas das palestras foram definidos emreuniões com as coordenadoras da SMED, atendendo a interesses enecessidades dos professores da rede municipal.

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Articular, por meio deste projeto, o cotidiano da escola (comsuas singularidades, complexidades e potencialidades), envolvendodiferentes profissionais com o processo de formação dos pedagogosda Uesb, campus de Vitória da Conquista, possibilitou estabelecer ummovimento de formação inicial intimamente vinculado às problemáticase às potencialidades das escolas, configurando-se num espaço deaprendizado mútuo para os sujeitos participantes.

O processo de investigação-ação proposto contribuiu paraaproximar professores e estudantes universitários dos sujeitos econtextos das escolas envolvidas, na tentativa, conjunta, de vivermos eanalisarmos, em profundidade, a práxis educacional vivida em diferentesexperiências pedagógicas, constituindo-nos (todos) em profissionaispesquisadores. Fomos, o tempo todo, levados a repensar o próprioprojeto de investigação-ação: ele se desfez e refez permanentemente.

THE INVESTIGATION-ACTION PROCESS AS PART OFRESEARCHERS’ DEVELOPMENT:

An Experience gotten through the Educational Modalities namedLEARNING CYCLE AND YOUTH AND ADULTS EDUCATION

Abstract: The present paper is a result of a project based on the principlesof investigation and action which was developed as part of the followingsubjects: Didactic and Youth and Adults Education, offered during the fifthsemester of the Pedagogy Course of the Southwest State University ofVitória da Conquista, Bahia, Brazil. Going through, taking part and followingthe activities developed daily at some municipal schools, the PedagogyStudents gradually built their knowledge based on concrete educationalexperiences. Visits, accounts, readings and discussions on diaries wereprocedures that made it possible for the students to become familiar withthe public schools of Vitória da Conquista. The municipal teachers had thechance of sharing the positive and negative aspects of their everydayeducational praxis. Besides reflecting their own teaching practice, theycontributed to the students’ initial formation.

Key Words: Teachers’ Development. Teaching-Research-Extension.Educational Praxis. Learning Cycle. Youth and Adults Education.

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ANOTAÇÕES SOBRE O PROCESSO DEENSINO E APRENDIZAGEM DE HISTÓRIA

PARA ALUNOS SURDOS

Célia Regina Verri *Regina Célia Alegro **

Resumo: Trata-se aqui, introdutoriamente, do processo ensino e aprendizagemdo aluno surdo na disciplina História, destacando-se alguns aspectos relevantesdesse processo. Considerando a máxima de Ausubel de que o conhecimentoprévio do aprendiz é o mais importante fator isolado a influenciar aaprendizagem, reflete-se sobre as idéias acerca de uma aprendizagem maissignificativa para alunos do ensino médio, surdos, na disciplina História.

Palavras-chave: Ensino-aprendizagem. História. Ensino de História paraalunos surdos. Aprendizagem significativa.

A educação para o surdo no Brasil vem sendo ofertada desde1857, com a criação do Imperial Instituto dos Surdos-Mudos, no Riode Janeiro (MAZZOTTA, 1996). No entanto, longo caminho ainda há deser percorrido para a universalização do atendimento escolar ao

* Especialista em História Social e Ensino de História; membro do grupo de pesquisa Rede deEstudos sobre Ensino-Aprendizagem em História (UEL/PR). E-mail: [email protected]** Doutoranda em Educação (Unesp/Marilia-SP); membro do grupo de pesquisa Rede deEstudos sobre Ensino-Aprendizagem em História (UEL/PR). E-mail: [email protected]

Práxis Educacional Vitória da Conquista n. 2 p. 97-114 2006

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estudante surdo. E, hoje, ante o debate sobre a inclusão de pessoascom necessidades educacionais especiais, é urgente considerar nãosomente o seu ingresso na escola, mas a qualidade do processo deensino e aprendizagem a elas dirigido. É fundamental ofereceroportunidade de freqüência à escola em condições que permitam, aos“incluídos”, serem reconhecidos e participarem do espaço escolar comosujeitos de direitos da cidadania. Nesse processo, é preciso distinguirdesigualdade e diferenças. As diferenças possuem uma origem natural,não induzem à relação de superioridade e inferioridade, mas exigemum tratamento diferenciado, já que são enriquecedoras, dão direito àidentidade, à tolerância e ao reconhecimento. A desigualdade, aocontrário, é uma ruptura que induz à manifestação de desprezo eindiferença (LUNARDI, 2004; NASCIMENTO, 1995; SKLIAR, 2002).

No espaço de discussão sobre o processo de ensino eaprendizagem de História, a reflexão sobre necessidades educacionaisespeciais também está por ser realizada. Atualmente verifica-se umacontradição flagrante: enquanto a pesquisa histórica propõe retirar doesquecimento aqueles que não têm tido voz na história oficial, o ensinode História não tem se preparado para as possibilidades inexploradasque a relação com o “outro com necessidades educacionais especiais”pode propiciar no processo de ensino e aprendizagem. É evidente, naformação de professores dessa disciplina, a ausência de suporte para otrabalho com esses estudantes, particularmente com alunos surdos. Noentanto, cada vez mais, na sua prática cotidiana, o professor de Históriaestabelece relações com alunos falantes de uma outra língua – LIBRAS–, condição que pressupõe um processamento cognitivo diferenciadono processo de aprendizagem, pois estes alunos têm na língua de sinaisseu principal recurso simbólico.

Neste quadro, se delineia o interesse deste artigo. Seconsiderarmos que a perda auditiva, por si, não acarreta déficit cognitivopara o indivíduo, mas que dificuldades na comunicação podem acarretarlimitações cognitivas (GLAT, 1985 p. 88), é possível imaginar aimportância que tem a reflexão sobre as condições presentes no

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cotidiano do ensino de História para esses estudantes. Em primeirolugar, porque, por meio de suas abordagens específicas e das relaçõesestabelecidas com outras áreas do conhecimento, a aprendizagem deHistória favorece a discussão do que é próprio do mundocontemporâneo: o redimensionamento do presente e a construção deidentidade. E, a inclusão escolar do estudante surdo pressupõe o acessoa essas possibilidades que a disciplina oferece. Em segundo lugar,porque, nesta disciplina, o professor apresenta conceitos complexossegundo a estrutura de uma linguagem oral, e os alunos surdos devemapreendê-los em linguagem própria. Então, cabe perguntar se o processode ensino e aprendizagem de História tem, de fato, proporcionadopossibilidades de desenvolvimento a esses estudantes.

Um ponto de apoio para este estudo foi encontrado em Carretero(1997), para quem os conteúdos históricos assentam-se em conceitosque apresentam características particulares e exigem, na estruturacognitiva dos estudantes, sofisticadas propriedades organizacionais quedeterminam o potencial de significação do material de estudo. O ensinode História é caracterizado pela aprendizagem de conceitos muitocomplexos e abstratos. São mutantes, pois a dimensão temporal afetao seu conteúdo. Assim, aprender significativamente um conceito emHistória equivale a apreender o seu contexto. A aprendizagem deconceitos históricos depende de esforço deliberado para relacionar osnovos conhecimentos a conhecimentos pré-existentes na estruturacognitiva, o que pressupõe o “envolvimento afetivo para relacionar osnovos conhecimentos com aprendizagens anteriores e a orientação paraaprendizagens relacionadas com experiências, fatos ou objetos” (PONTES

NETO, 2001).Em sala de aula, na falta de referências anteriores para a

construção de idéias, proposições, conceitos históricos, os estudantestendem a aplicar o seu conhecimento mais geral na formulação dosnovos conceitos. Assim ocorre uma ampliação de inferências, novosconceitos podem se constituir de forma cada vez mais pobre,dificultando a conexão entre eles e impedindo a atribuição de

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significados. É por isso que o conhecimento prévio do aluno e ascaracterísticas específicas do conhecimento histórico condicionarão,em grande parte, o aprendizado. O conhecimento que o aluno temdisponível é fundamental como construção pessoal, espontânea,implícita, embora geralmente afastada da interpretação disciplinar. Masé este conteúdo o ponto de partida para aprendizagens significativas(ARAGÃO, 1976).

A teoria de Ausubel (COLL et al, 1998) sobre a aprendizagemocupa-se com a construção de um modelo teórico que explica comoos alunos adquirem e aplicam conceitos e generalizações que sãoensinados na escola. Segundo esta teoria, a aprendizagem significativapressupõe o conhecimento como um fenômeno substantivo (ideacional)e não apenas como capacidade de resolver problemas. “Significação” éuma experiência consciente que emerge quando proposições ouconceitos, símbolos e sinais potencialmente significativos sãorelacionados e incorporados numa estrutura cognitiva individual, numabase não arbitrária e substantiva. Pressupõe que o aluno relacione onovo material às idéias relevantes da sua estrutura cognitiva e reorganizeo conhecimento que já possui. Segundo Ronca (1980), a aprendizagemsignificativa exige do aluno

[...] capacidade de tradução (denominação de Bloom pararequisito ao comportamento de compreensão), que requer:capacidade de tradução de um nível abstrato a outro; capacidadede tradução de uma forma simbólica a outra; capacidade detradução de uma forma verbal para outra.

Neste sentido, como afirma Aragão (1976), referindo-se a Ausubel,“há uma relação importante entre saber como o aluno aprende, saber asvariáveis manipuláveis que influenciam a aprendizagem, e saber o quefazer para auxiliar o aluno a aprender melhor”.

Para situar melhor esta reflexão sobre o processo ensino eaprendizagem em História, envolvendo professores, ouvintes e alunosnão ouvintes, foram utilizados dois exemplares do questionáriorespondido por alunos surdos, para uma sumária caracterização das

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idéias que têm acerca da disciplina de História, na perspectiva propostapor Ausubel, Novak e Hanesian (1980), “o mais importante fator isoladoque influencia a aprendizagem é o que o aprendiz já sabe. Determineisto e ensine de acordo”. Os estudantes têm 19 anos, freqüentam oEnsino Médio no Instituto Estadual de Educação de Londrina (IEEL)e, durante o período vespertino, freqüentam aulas de reforço naAssociação dos Pais e Amigos dos Deficientes Auditivos de Londrina(Apadal). Um dos alunos freqüenta o segundo ano do Ensino Médio eapresenta perda auditiva profunda. O segundo estudante freqüenta oterceiro ano do Ensino Médio e possui deficiência auditiva moderada.Serão aqui chamados de aluno A e aluno B, respectivamente. O uso dequestionário permite observar concepções, construções, dificuldades,possibilidades e opiniões desses alunos acerca da disciplina e, também,como elaboram seus conhecimentos em História fazendo uso da línguaportuguesa.

Sabe-se que a LIBRAS é uma língua visual, enquanto a línguaportuguesa utilizada no questionário – e na construção dos conteúdoshistóricos em sala de aula – é uma língua oral. Por essa razão, optou-sepela transcrição do questionário para o leitor deste artigo. Quando osalunos apresentaram dúvidas acerca do conteúdo das perguntas doquestionário, receberam esclarecimentos do intérprete. O questionárioadotado é uma adaptação daquele apresentado por Nadai e Bittencourt.1

1- Você gosta de estudar História? Por quê?Aluno A: Eu acho mais difícil estudar História, porque eu pouca maiscoisas muito matéria.Aluno B: Eu gosto pouco de estudar História porque à História émuito difícil porque tem muito História.

2- Na disciplina de História, quais as atividades que mais facilitam oseu aprendizado?

1 Este questionário é uma adaptação daquele apresentado em NADAI, Elza; BITTENCOURT,Circe M. F. Repensando a noção de tempo histórico no ensino. In: PINSKY J. (Org.) O ensinode história e a construção do fato. São Paulo, Contexto, 1988, p. 73-92.

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Aluno A: Se professora mais ensino melhor é bom aprendeu eu maisexterno geração.Aluno B: Professora conta tudo sobre a História e também usa defitas video de filme.

3- Na disciplina de História, quais as atividades que você menos gostade realizar?Aluno A: Eu verdade porque materia o história sem todos difícil menore media o estudas.Aluno B: Não gosta de fazer o trabalho de história.

4- Na disciplina de História, quais são os conteúdos mais difíceis?Aluno A: Os Famílias e eu criança passado nada ensio porque, surdosmais sem comunicação com som familia separar ouviu.Aluno B: Mais difícil 1° e 2° guerra mundial

5- O que mais dificulta o seu aprendizado em História?Aluno A: Sim, Química preciso o formúla alguns muita problema.Aluno B: Mais dificulta aprender as palavras das História.

6- Para que estudar História?Aluno A: Eu gosta mais matemática de estuda.Aluno B: É bom para aprender como as mudanças feudalismo depoiscapitalismo etc... é bom pra conhecer essa história.

7- Cite três exemplos de atividades mais comuns na disciplina de História:Aluno A: revista, texto, ler e livro.Aluno B: Questionario, pesquisas, ler o livro.

8- Na disciplina de História se usa mais:( ) escritos antigos ( ) jornais ( ) músicas ( ) livro didático( ) filmes ( ) gráficos, tabelas ( ) imagens (figuras, fotos)( ) mapas ( ) textos literários ( ) textos de entrevistasAluno A: mapas e filmesAluno B: escritos antigos, mapas e filmes.

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9- Na disciplina de História aprende-se( ) a verdade sobre os grandes fatos e personalidades( ) interpretações sobre os acontecimentos humanos( ) uma ciência que estuda o passado distante( ) as lições do passado para evitar-se erros futurosOutra:Aluno A: resposta 2Aluno B: resposta 2

10- Imagine três cenas:um grupo de mulheres lava as roupas dos filhos na beira do rio.a princesa Isabel assina a Lei Áurea cercada de autoridades.um grupo de sem-terra ocupa uma fazenda no norte do Paraná.Quais destas cenas imaginadas mostram mais claramente o que maisrepresenta a História para você? Por quê?Aluno A: Isabel, o passado para brasil comando escravo só mulheres efilhos reis precisa coisas fazer todos mulheres sofrendo, Isabel ideiamelhor a carta assina os liberdades mulheres.Aluno B: Princesa Isabel assina a lei de liberdade da escravo da Africa.

11- Dentre as profissões abaixo, quais exigem uso dos conhecimentospróprios da História?( ) jornalista ( ) economista ( ) advogado ( ) arquiteto( ) geógrafo ( ) matemáticoExplique sua escolha:Aluno A: Geógrafo. As professora falem o história coisas o mundoiguais sempre parece geógrafo.Aluno B: Geógrafo. Porque geógrafo tem mistura a Historia. (O alunoB ficou em dúvida entre “jornalista” e “geógrafo”).

12- O que você sugere para melhorar o ensino de História?Aluno A: Eu não achou mais difícil brasileiro bastantes problemapreciso desenvolvimento mais conseguir lutar os grupos.Aluno B: Eu acho é melhor conhecer o filmes por exemplo conhecera História egito, outras Histórias romanas.

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(O aluno B demonstra, em alguns pontos do seu questionário, a preferência porestudar por meio de filmes, “fitas vídeo de filme”, e sugere como melhoria do ensinoa utilização de filmes).

13- Escolha um tema que você já estudou na disciplina de História eescreva um texto de, no máximo, 10 linhas.Aluno A: Surga e BrasilHistória, um homem portugual o navio procura longe ali tem terra jáchegamos vamos entra viu diferente própria o seu solo bonita, floresta,passaro... pessoas outra encontra índia chefe cuidado meu terra Brasile homem portugual você o lingua diferente estranho, ideia gruposhomem combino matar índia pegar ouro ganhar própria no Brasilcontinuo geração futuro externo ponto.Aluno B: “Descobrimento do Brasil”No 1500 anos atrás o pedro alvares cabral descobriu no Brasil.Pedro encontrou e assustou o nú do índios mas pedro tem vergonha,então é cultura de índios.Pedro roubou os ouros e levando para o Portugal. Aí os índio é bobinhodeu presente penas de papagaio. outro pedra deu presente chapeu. Oque aconteceu roubou muito ouro e levou para Portugal.O Brasil é pobre.

O processo de inclusão de pessoas surdas em salas comuns nemsempre garante aos alunos, quando comparados aos alunos ouvintes,leitura e escrita satisfatórias, ou o adequado domínio dos conteúdosescolares (BRASIL, 2005). A reflexão acerca das respostas obtidas noquestionário acima pode se iniciar com uma pergunta: como se processao ensino e a aprendizagem de História para estes alunos? Para Marques(1998): “o ensino de história para o aluno surdo é muitas vezes muitocomplexo, necessita de uma compreensão da maneira como se sistematizaa aprendizagem e a aquisição dos conteúdos, utilizando-se de umametodologia própria”. Já para Bernardelli (2000), a única diferença entreos alunos surdos e os demais alunos está na comunicação:

Nas escolas especiais, alunos e professores precisam comunicar-se em língua portuguesa e também em língua brasileira de sinais

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(LIBRAS). Comunicação é troca, é interação e é processo. Osalunos surdos possuem linguagem interna riquíssima. Eles estãoexpostos a todo o tipo de informação, mas tem dificuldade emabsorvê-las plenamente. Assim, necessitam interagir,experimentar com as informações recebidas junto aos ouvintespara entendê-las e expandi-las.

Observam-se, nas respostas aos questionários, dificuldades para,ao mesmo tempo, ler e traduzir o discurso apresentado na línguaportuguesa para LIBRAS, acompanhar a apresentação de formulaçõesconstruídas segundo a lógica da língua marcada pela oralidade – segundalíngua para os surdos – e providenciar a resposta escrita. Ao traduziros conceitos oriundos da língua portuguesa, os surdos reelaboram estesconceitos conforme os seus conhecimentos prévios construídos emLIBRAS. Por isso, para racionalizar o processo, centram-se em idéiasmais gerais e inclusivas e menos nos detalhamentos, o que exige cuidadoparticular tanto na seleção de conteúdos quanto na sua apresentaçãopara os alunos surdos. O processo de ensino e aprendizagem de História,neste caso, se concretiza como relação entre ouvinte e surdo, cujasestruturas cognitivas são organizadas segundo línguas diferentes, umamarcada pela oralidade, e a outra, pelo visual. Se o som e a fala sãodeterminantes para o ouvinte; para o surdo, a imagem é que melhorpermite seu aprendizado. Então, o professor de História devecompreender que:

A tolerância lingüística é um elemento necessário. É precisoentender que as dificuldades escritas do surdo não são causadaspor preguiça ou falta de inteligência, mas porque seu canallingüístico não é o oral, mas o visual. Ele tem habilidadesperfeitas em línguas visuais, nas quais os ouvintes apresentamdificuldades semelhantes e geralmente não têm um bomdesempenho. Por isso o critério de avaliação do texto escritodo surdo é o da comunicação, e não o da adequação à formapadrão. Se conseguirmos entender o que ele quer dizer, o textoé válido (UFPEL, 2004).

Nas respostas ao questionário, fica evidenciada a dificuldade naescrita em língua portuguesa, mas as respostas revelam as idéias centrais

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registradas e os conteúdos históricos aprendidos.2 Lacerda chamou aatenção para a crítica de Vygotsky, em 1926, sobre o modo como alíngua falada era ensinada para os surdos. Como era realizada, tomavamuito tempo da criança, em geral não lhe ensinando a construirlogicamente uma frase. O trabalho na disciplina de História – naquelaépoca e, muitas vezes, contemporaneamente – era dirigido para uma“recitação” e não para a aquisição de uma linguagem propriamentedita, resultando em um vocabulário limitado e, muitas vezes, sem sentido,configurando uma situação extremamente difícil e confusa (LACERDa;PICCOLI, 2004). Isso dificulta para o surdo a compreensão dos conceitosbásicos da História, pois estes pressupõem abstrações e, segundoBernardelli (2000), “trabalhar o imaginário com o aluno surdo, às vezesacarreta em distorcer a verdade histórica”.

A aprendizagem de conceitos é uma questão fundamental.Tomemos como exemplo o caso de crianças cegas desde o nascimento:a elas devem ser ensinados os conceitos de corpo-imagem e espaço, osquais são desenvolvidos naturalmente pelas crianças videntes. Elaspodem precisar aprender conceitos de espaço como “acima”, “abaixo”e “próximo a” em relação a si mesma e aos outros e podem apresentardificuldade em entender os conceitos de rotação e translação (TORRES;CORN, 2005). No caso dos surdos, eles precisam ter acesso à línguaestruturada, com quantidade e qualidade de informações para facilitar,por exemplo, a compreensão e a expressão de situações passadas, dediferentes lugares, das abstrações da História.

O exemplo acima pode ajudar a pensar a resposta do aluno Apara a questão 10: estabelece uma relação entre as alternativas 1 e 2 eafirma que “no passado Brasil comprava como escravos mulheres efilhos. Os reis precisam fazer alguma coisa porque todas as mulheresestavam sofrendo, Isabel teve uma boa idéia, assinou a carta dandoliberdade para as mulheres”. O aluno associa escravidão à condiçãofeminina, escravos são mulheres. Mobiliza seus conhecimentos prévios

2 Uma investigação interessante, neste caso, – por exemplo – poderia averiguar se a ausência demarcas de tempo nas formas verbais próprias da LIBRAS afeta a aprendizagem em História.

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e organiza o conteúdo escolar à luz daqueles conhecimentos que, ainda,“preenchem as lacunas” verificadas no processo de ensino eaprendizagem permitindo-lhe atribuir significado aos conteúdoscaptados na aula de História.

Em resposta à pergunta 1, os alunos afirmaram que História éuma disciplina difícil, da qual eles gostam pouco. Por quê? Além daquantidade de conteúdos que eles precisam estudar, “aprender aspalavras da História”, o trabalho se torna muito difícil. Ao consideraras questões acima apresentadas, é possível compreender as respostaspara este item. O aprendizado do aluno surdo se concretiza num ritmodiferente do aluno ouvinte/falante da língua portuguesa porque oprimeiro tem mais tarefas a realizar. Se a aprendizagem em História édificultada pelo excesso de conteúdos, é preciso reconhecer que essefato é agravado pela sua condição de falante de uma língua diferente dalíngua portuguesa. Então, pode ser eficaz selecionar apenas os conteúdosfundamentais e trabalhar com idéias, conceitos, proposições-chave.

Nesse quadro, cabe perguntar o que caracteriza o processo deensino e aprendizagem de História entre ouvintes e surdos segundo avisão dos alunos que responderam ao questionário:

1. Grande volume de conteúdos (excesso de informações, detalhamentos,multiplicidade de conceitos ensinados simultaneamente, etc.) dificulta oacompanhamento das aulas pelos alunos surdos.2. Grau de dificuldade dos conteúdos, por isso os alunos não gostam dadisciplina: “as palavras da História são difíceis”.3. Mediação da professora e do uso de filme (imagens), o que é aprovadopelos alunos.4. Realização de pesquisa (7), uso privilegiado de leitura, questionários, mapas,filmes e escritos antigos (8).5. Alunos com experiência anterior e conhecimento prévio marcados pelaausência de comunicação. Na resposta à questão 4, o aluno A parece fazer umdesabafo quanto às dificuldades encontradas por ele e sua família dada adificuldade de comunicação e, por isso, a ele “nada foi ensinado sobre opassado”.6. Ensino de conteúdos convencionais (4, 6).7. Pouco sentido em estudar os conteúdos de História (6), exceto o estabelecidono item abaixo (8).

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8. Interpretação e compreensão dos conceitos em História (perguntas 10, 12).Nesta questão, é interessante observar que a resposta de A confirma a de B, evice-versa. Alunos revelam coerência e organização de idéias e manifestamopiniões.9. História é concebida como “interpretações sobre os acontecimentos humanos”(9), mas o ensino é basicamente transmissão (recitação?) (pergunta 11).

Pode-se dizer que os alunos indicam a metodologia adequada paramelhorar o processo de ensino e aprendizagem. Araújo demonstra umpossível encaminhamento para a questão, ao discutir o ensino de álgebra.A autora induz à certeza de que as dificuldades não são exclusivas dosurdo, muito menos de um reduzido número de alunos, e nem é recenteo problema. O Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) pode provarisso: os alunos não conseguem “compreender os conceitos algébricoscomo se espera, ou seja, muitas vezes mecanizam técnicas de resolução,mas não compreendem quais são as propriedades matemáticas que lhespermitem usar este ou aquele processo para resolver uma determinadaquestão”. Mas, alerta que estas dificuldades podem estar relacionadascom a forma pela qual são abordados tais conceitos: “o tratamento formaldado às suas primeiras noções podem bloquear o aluno iniciante,impedindo que avance em seu estudo” (ARAÚJO, 2004).

Com base nas reflexões de Araújo, é possível afirmar anecessidade de recursos de ensino “falarem” sobre o conhecimentohistórico, objetivando ajudar o aluno a refletir sobre as noções adquiridasem sua experiência como estudante para desenvolver um novo conceito.Para a autora, esses recursos podem estar

[...] inseridos no discurso do professor, classificado comodiscurso meta em relação à matemática, que freqüentemente éutilizado para descontextualizar as noções a serem apreendidasde forma a proporcionar um ambiente satisfatório para acompreensão do aluno. Este discurso pode ser sob a forma dequestionamentos, informações sobre como e onde os conceitospodem ser utilizados, etc. (ARAÚJO, 2004).

Segundo o Ministério da Educação (BRASIL, 2005), na maioriadas conversas colaterais em sala de aula, os surdos estão tentando

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visualizar o conteúdo, buscando experiências ou exemplos na sua pró-pria memória. A elaboração de um exemplo, o mais próximo da vidaprática possível, é extremamente relevante para a sua aprendizagem.

Também a teoria de Ausubel propõe que se organize o ensinocom base em um conceito mais amplo e genérico que vá atuar comoalavanca para o acesso a um novo conhecimento mais específico. Umnovo conceito sempre se vincula à (re)organização de conceitosanteriores e requer reflexão sobre eles. Isso auxilia o aluno a pensarsobre o conhecimento aprendido e ter mais controle sobre seu processode aprendizagem. A cada novo conteúdo histórico abordado, énecessário exemplificar, questionar, fazer com que o aluno reflita sobreseu conhecimento.

Em História, aprender o factual – o visível, o aparente – é tãoimportante quanto aprender conceitos, proposições – abstração. Nãoexiste a possibilidade de aprendizagem de conceitos sem base deinformações que permita situá-los adequadamente. Se a aprendizagemde fatos e conceitos constitui formas diferentes complementares – masnão excludentes – de aprender, esse processo é distinto. A aprendizagemde fatos pressupõe a memorização de informações que, geralmente, sedá como cópia literal. A aprendizagem de conceitos pressupõe que oaluno seja capaz de repetir a informação memorizada, mascompreendendo, estabelecendo relação com os seus conhecimentosanteriores, o que requer envolvimento afetivo para relacionar os novosconhecimentos com aprendizagens anteriores e a orientação paraaprendizagens relacionadas com experiências, fatos ou objetos (COLL;POZO; SARABIA, 2000).

Por isso, no ato de ensinar o aluno surdo, é indiscutível anecessidade de investigar o conhecimento histórico prévio que o alunotraz consigo. Segundo Carretero (1997), “uma das principaiscontribuições para a adoção de uma postura construtivista no conceitode aprendizado foi a de destacar a importância que o conhecimentoprévio possui na aquisição de novos conhecimentos”.

É necessário, ainda, adequação da metodologia e dos recursosusados nas aulas de História. Os alunos entrevistados indicaram sua

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predileção por recursos visuais: filmes, mapas, textos. O Ministério daEducação (BRASIL, 2005) sugere ainda o uso da mímica, do teatro, deimagens, TV, vídeo, DVD e Internet, que possam sempre possibilitarexperiências visuais dos conteúdos, devendo-se, entretanto, evitar apoluição visual por motivos óbvios. E, também, “o estudo em grupo eo diálogo contínuo entre os surdos. Eles conversam mais entre si enecessitam deste diálogo para aprenderem” (BRASIL, 2005).

A narrativa é importante “porque auxilia o desenvolvimentolingüístico, raciocínio lógico e a capacidade de desenvolver seqüênciasnarrativas que tem utilidade pedagógica na própria aprendizagem dosurdo” (MINELLO, 2004).

Segundo o Ministério da Educação (BRASIL, 2005),

desenhos/ilustrações/fotografias – poderão ser aliadosimportantes, pois trazem, concretamente, a referência ao temaque se apresenta. Toda a pista visual pictográfica enriquece oconteúdo e estimula o hemisfério cerebral não-lingüístico,tornando-se um recurso precioso de memorização para todosos alunos.recursos tecnológicos (vídeo/TV, retroprojetor,computador, slides, entre outros) – constituem instrumentosricos e atuais para se trabalhar com novos códigos e linguagensem sala de aula. A preferência deve ser por filmes legendados,pois isto facilita o acompanhamento pelos surdos. No entanto,é sempre bom estar discutindo, previamente, a temática a serdesenvolvida, o enredo, os personagens envolvidos, pois caso alegenda não seja totalmente compreendida, por conta dodesconhecimento de algumas palavras pelos alunos surdos, nãohaverá prejuízo quanto à interiorização do conteúdo tratado.

Além de tudo,

O professor deve sempre falar olhando para os alunos, nuncafalar de costas para o grupo. Não significa que surdosconseguem necessariamente ler os lábios, isso é um mito.Percebem algumas palavras, mas raras vezes formam opensamento completo, com exceção de surdos que têm umalto resíduo auditivo. É importante que a disposição da salaseja em semicírculo (MINELLO, 2004).

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Para as práticas durante as aulas dirigidas ao aluno surdo, osmateriais devem ter objetividade e clareza. Neste sentido, repetimos, ateoria da aprendizagem significativa de Ausubel também pode oferecerimportante contribuição, particularmente quando propõe que o trabalhoem sala de aula considere o conhecimento que o aluno possui, que seorganize o ensino partindo dos conteúdos mais gerais e inclusivos,rumo aos conteúdos mais específicos, e propõe os organizadores préviose os mapas conceituais como estratégia de ensino.3 Estas estratégiasconcordam com o que se estabelece para o ensino do aluno surdo:

Textos com conteúdos deverão ser textos resumidos, nos quaisesteja privilegiada a ordem direta – SVO (sujeito, verbo, objeto).Textos para leitura e expansão do vocabulário em LínguaPortuguesa terão uma função diferenciada e, portanto, terãocaracterísticas mais elaboradas e língua mais espontânea. Osurdo necessita de motivação extra para a leitura, uma vez quea leitura vai exigir dele uma compreensão profunda da línguaoral, que ele geralmente não tem. A Língua de Sinais apresentaprocessos de conexão (palavras como preposições, conjunções)totalmente diferentes das línguas orais, por isso o surdogeralmente apresenta uma dificuldade característica emcompreender e utilizar estes elementos em Língua Portuguesa(UFPEL, 2005).

E, por fim, uma parte importante do trabalho de um professorde História é possibilitar uma atmosfera de compreensão, na qual osalunos surdos possam expressar e aprender a lidar com seus sentimentossobre sua condição e com as atitudes dos outros, reconhecendo-secomo sujeitos da aprendizagem (TORRES; CORN, 2005).

A título de conclusão, relatamos seis questões que se impuseramno decorrer desta reflexão:

1. No ensino de História, “atualmente, reforça-se a importância de fazercom que o aluno compreenda os conteúdos sociais e históricos de formaaproximada a toda sua complexidade explicativa” (CARRETERO, 1997).

3 Mapas conceituais proporcionam um resumo esquemático e organizado acerca das noções,idéias, conceitos e proposições veiculados na disciplina, e como eles se relacionam. Não sãoesquemas, organogramas, ou semelhantes, mas, sim, instrumentos que possibilitam situaçõesde negociação de significados entre professores e alunos que os elaboram.

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2. Cabe aos professores mediar a interação dos alunos surdos, ou combaixa audição, com as especificidades do conhecimento histórico eestimular o convívio dos alunos surdos com os ouvintes.3. Conforme a Conferência Mundial de Salamanca, não é o alunoportador de necessidades educacionais especiais que deve adaptar-se àescola, mas a escola é que deve adaptar-se a esse aluno. Inclusãopressupõe o compromisso de respeito à diferença que a escola assumecom o aluno.4. A teoria da aprendizagem significativa pode ser um instrumentalimportante para reflexão sobre a aprendizagem de alunos surdos nadisciplina de História, porém esta questão carece de pesquisa maissistemática.5. A aprendizagem significativa não se refere a acúmulo de informaçõesou aprendizagem “correta”, mas de conteúdo para o qual foi atribuídosentido e que, por isso, passa a determinar a assimilação de novosconteúdos, assim como modifica a pessoa. Desse modo, pensar o ensinode História para pessoas com necessidades educacionais especiais podeconter uma possibilidade de repensar o processo de ensino eaprendizagem em História como processo formativo, e não como merainstrução.6. É urgente a reflexão acerca da formação de professores na licenciaturaem História, em vista da sua preparação para o atendimento a alunoscom necessidades educacionais especiais, que têm a inclusão escolarcomo direito.

NOTATIONS ON THE EDUCATION PROCESS ANDLEARNING OF HISTORY FOR DEAF PUPILS

Abstract: It is a initial reflection about the process of teaching and learningin discipline of History involving the deaf pupil, being distinguished someimportant aspects for this process. Considering the principle of Ausubel thatit affirms to be the previous knowledge of the apprentice the most importantisolated factor that influences the learning, reflects on the ideas concerningdiscipline of History of pupils of high school, deaf, searching of a moremeaningful learning for these pupils.

Key words: Process of teaching and learning of History. Teach of Historyfor deaf pupil. Meaningful learn.

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113Anotações sobre o processo de ensino e aprendizagem de história para alunos surdos

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O CURRÍCULO NO BRASIL COLÔNIA:PROPOSTA DE UMA EDUCAÇÃO1 PARA A ELITE

Solange Aparecida Zotti *

Resumo: O presente artigo tem por objetivo sistematizar a história do currículooficial no Brasil no período colonial, caracterizado pelo modelo econômicoagroexportador. A pesquisa abrange os aspectos da educação jesuítica emsuas duas fases – a primeira idealizada por Nóbrega, nos chamados temposheróicos (1549-1570) e a segunda derivada de autoridades jesuíticas de Portugale concretizada pela Ratio Studiorum – bem como a realidade educacional quese desenha na colônia com a reforma pombalina. A pesquisa busca analisar,com base em fontes bibliográficas, a relação entre o contexto socioeconômico-político brasileiro, a proposta educacional e as propostas curriculares oficiaisque se desenharam nesse período. O contexto socioeconômico do Brasilcaracteriza-se por um modelo mercantilista, baseado na exploração da mão-de-obra escrava, com uma profunda e desmedida depredação da colônia. Nessalógica, o papel da educação era de sedimentar a visão do colonizador, sendo acatequese e a educação da elite seus principais objetivos. O currículo,

Práxis Educacional Vitória da Conquista n. 2 p. 115-140 2006

1 Trabalho apresentado na IV Jornada do HISTEDBR: História, Sociedade e Educação noBrasil, em Maringá, 2004.* Mestre em Educação pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e doutoranda emEducação na área de História, Filosofia e Educação (Unicamp). Professora da Universidade doContestado (UnC) – campus Concórdia. Membro do grupo de pesquisa HISTEDBR, GTCampinas e líder do grupo de pesquisa “História, Sociedade e Educação (Hised)“ da UnCcampus Concórdia. Autora do livro Sociedade, Educação e Currículo no Brasil: dos jesuítas aosanos de 1980 (Ed. Autores Associados e Ed. Plano, 2004).

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organizado com base no modelo europeu, traduzia a concepção de mundo docolonizador, formando dirigentes para a manutenção da sociedade de acordocom seus interesses, especialmente os econômicos.

Palavras-chave: Brasil Colônia. Sociedade. Educação. Currículo.

Introdução

O presente artigo tem por objetivo sistematizar a história docurrículo oficial no Brasil, durante o período colonial, que é caracterizadopelo modelo econômico agroexportador. O estudo abrange os aspectosda educação jesuítica em suas duas fases – a primeira idealizada porNóbrega, nos chamados tempos heróicos (1549-1570) e a segundaderivada de autoridades jesuíticas de Portugal e concretizada por meioda Ratio Studiorum – bem como a realidade educacional que se desenhana colônia com a reforma pombalina. A análise desse período, baseadaem pesquisa bibliográfica, busca responder: “Qual a relação entre ocontexto socioeconômico-político brasileiro, a proposta educacional eas propostas curriculares oficiais que se desenharam neste período?Em que medida as propostas curriculares oficiais atendem ao contextosocial, especialmente aos determinantes econômicos e políticos?”.

Essas questões norteiam o estudo por acreditarmos que, naspesquisas da história da educação brasileira, a visão de totalidade éfundamental. E, isso só é possível quando estabelecemos as relaçõesentre as condições materiais da sociedade e o objeto de estudo, a fimde que este não seja investigado em si mesmo, mas compreendido eexplicado à luz, especialmente, dos determinantes econômicos.

Do ponto de vista etimológico, o termo “currículo” vem dapalavra latina Scurrere, correr, e refere-se a curso, a carreira, a um percursoque deve ser realizado, comportando também a sua apresentação(GOODSON, 1995; SACRISTÁN, 1998). Dessa forma, a palavra currículoinclui o significado de “ordem como seqüência” e “ordem comoestrutura”, ou seja, além de expressar os conteúdos de ensino, estabelecea ordem de sua distribuição por aqueles que definem o curso (SANTOS;

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PARAÍSO, 1996; SACRISTÁN, 1998). Essa concepção de currículo comoprescrição já estava presente em Platão e Aristóteles. Contudo, o termocurrículo irá ser utilizado pela primeira vez em 1633, no Oxford EnglishDictionary, para designar um plano estruturado de estudos (GOODSON,1995; BERTICELLI, 1999).

Inserido no campo pedagógico, o termo currículo passou pordiversas definições ao longo do tempo. Tradicionalmente, referiu-se auma relação de matérias/disciplinas com seu corpo de conhecimentoorganizado numa seqüência lógica, com o respectivo tempo de cadauma. Esta conotação guarda estreita relação com “plano de estudos”,“currículo oficial”, tratado como o conjunto das matérias a seremensinadas em cada curso ou série e o tempo reservado a cada uma(BOYNARD; GARCIA; ROBERT, 1973). É este o sentido de currículo adotadoneste estudo.

Currículo e prescrição apresentam vínculos desde sua origem,mas essa relação fortaleceu-se ao longo do tempo, especialmente quandoa escolarização se transformou em atividade de massa (GOODSON, 1995).Para Sacristán (1998), o currículo implica a idéia de regular e controlara distribuição do conhecimento, além de estabelecer a ordem de suadistribuição. Ressalta esse autor que o currículo possui um papelregulador da prática e, portanto, regulador da ação educativa. De acordocom essas constatações, o conceito de currículo oficial se constitui naprescrição legal da organização das matérias/disciplinas a seremtrabalhadas pela escola e demais orientações, tais como de conteúdo,didáticas e avaliativas.

Assim, visando uma compreensão mais ampla das políticascurriculares oficiais do período colonial, procuramos configurar ocontexto socioeconômico-político e o contexto educacional, em queas propostas curriculares se inserem, por acreditarmos que, recuperandoesta história, teremos melhores condições de entender o processo quelevou à construção e definição dos currículos oficiais. Esses são frutosde um movimento mais amplo que se processa nas políticas educacionaise em toda a sociedade.

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A educação jesuítica

O Brasil “pré-descobrimento” se caracterizava pelo modo deprodução comunista primitivo. As sociedades indígenas não tinham oconceito de propriedade privada, não se dividiam em classes. Tudo erafeito em comum visando à satisfação das necessidades imediatas e vitaisda coletividade. “Os homens produziam sua existência em comum e seeducavam neste próprio processo. Lidando com a terra, lidando com anatureza, se relacionando uns com os outros, os homens se educavame educavam as novas gerações” (SAVIANI, 1998, p. 81). Em vista disso,todos os adultos eram responsáveis por todas as crianças, não cabendosomente aos pais o processo educativo. A educação se fazia no cotidiano,sem instituição escolar, confundindo-se com a própria vida. A educaçãoera o meio de garantir às outras pessoas aquilo que um determinadogrupo aprendeu.

“A educação indígena era eminentemente empírica, consistindo,antes de mais nada, em transmitir através das gerações uma tradiçãocodificada. A escola era o lar e o mato; muito mais importantes aslições do exemplo que as palavras” (TOBIAS, 1986, p. 31). A educaçãonasce como um processo comunitário de ensinar e aprender, ligado àsnecessidades de cada grupo. Conforme Saviani (1998, p. 81), a “educaçãoera o próprio trabalho: o povo se educava no próprio processo detrabalho. Era o aprender fazendo. Aprendia lidando com a realidade”.Enfim, a educação na sociedade indígena pode ser sintetizada naspalavras do antropólogo Carlos Rodrigues Brandão (1981, p. 19):

[...] as meninas aprendem com as companheiras de idade, comas mães, as avós, as irmãs mais velhas, os velhos sábios da tribo,com esta ou aquela especialista em algum tipo de magia ouartesanato. Os meninos aprendem entre jogos e brincadeirasde seus grupos de idade, aprendem com os pais, os irmãos-da-mãe, os avós, os guerreiros, com algum xamã (mago, feiticeiro),com os velhos em volta das fogueiras. Todos os agentes destaeducação da aldeia criam de parte a parte situações que, diretaou indiretamente, forçam iniciativa de aprendizagem etreinamento. Elas existem misturadas com a vida em momentos

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de trabalho, de lazer, de camaradagem ou de amor. Quasesempre não são impostas, e não é raro que sejam os aprendizesos que tomam a seu cargo procurar pessoas e situações quelhes possam trazer algum aprendizado.

Esta realidade é modificada com a chegada dos portugueses aoBrasil. Praticamente toda a cultura “pré-descobrimento” foi massacrada,sufocada, reprimida. Passamos do modo de produção comunistaprimitivo para o modo de produção capitalista (mercantil), ocorrendo,com isso, toda uma transformação, tanto em relação à produção dosbens materiais, quanto no âmbito de valores, costumes, crenças. Osportugueses, com forte concepção de propriedade privada (terra,produtos, instrumentos), têm, na produção/exploração para o mercado,seu objetivo. Então, inicia-se um processo de profunda depredação dacolônia, com a utilização da mão-de-obra escrava, com o uso detecnologias não conhecidas pelo índio, entre elas a arma de fogo,símbolo de poder e superioridade do colonizador. Afirma Sodré (1996,p. 12) que “o processo dito de ‘colonização’ alinha numerosos aspectospredatórios, na sua exigência elementar de produzir em grande escala”.

A sociedade mercantilista elegeu outros valores, profundamentemarcados pela religião católica. Entre eles, a catequese e a educaçãoinstitucionalizada, que ficaram sob a responsabilidade dos jesuítas. ParaPortugal, colonização e catequese confundem-se e fundem-se. Colonizarsignificava também a imposição de uma ideologia dominante, em que,além de “colonizar” a terra, era necessário “colonizar” as consciências.Os jesuítas mantêm a visão do colonizador, sedimentam as suas idéias.Nessa concepção, a igreja sustenta a reprodução ideológica.2

Portugal adotou para o Brasil, considerado apenas uma extensãode suas terras, um modelo de exploração baseado na doutrinamercantilista,3 que se dava por uma administração centralizada na

2 “Entende-se que a colonização implica numa dependência jurídica, econômica e cultural, nafase colonial, e qualquer prática escolar, obviamente, será um instrumento do qual a sociedadenascente vai servir-se para impor e preservar a cultura transplantada” (SCHER, 1992, p. 8).3 A doutrina mercantilista determinava que “a riqueza de um país resultava da acumulação, nele,de metais transformáveis em moeda (ouro e prata), obtidos de vantagens sobre os parceiros,em operações comerciais” (Cunha, 1986, p. 20).

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metrópole, com forte controle fiscal sobre as operações comerciaisinternas e externas. Instalou no Brasil uma economia colonialagroexportadora, que se constitui, em última análise, numa formaprimitiva de dominação capitalista. Para tal exercício, destacam-se trêselementos fundamentais: economia agrária, latifundiária e escravista.

Conforme Xavier (1994), o Brasil se constituiu numa economiaagrária dadas as condições territoriais (extensão) e o clima tropical,fatores fundamentais para a produção, em grande escala, de gênerosalimentícios e matérias-primas, condições ausentes em Portugal.Também, uma sociedade latifundiária pela disponibilidade de terras elucratividade da produção em larga escala, em que a cana-de-açúcar seconstituiu a base da economia colonial até os meados do século XVII.E escravista, principalmente porque o negro africano já era umamercadoria lucrativa no comércio europeu e possibilitava a produção abaixo custo.

Por conseguinte, a exploração latifundiária e o trabalho escravoeram condições de máxima rentabilidade para a burguesia mercantil,que também “tinha nas colônias uma verdadeira ‘reserva de mercado’,tanto para comprar os produtos nela produzidos, quanto para venderas mercadorias demandadas para o consumo” (CUNHA, 1986, p. 20-21).Ou, como enfatiza Ribeiro (1998, p. 19), “o objetivo dos colonizadoresera o lucro, e a função da população colonial era propiciar tais lucros àscamadas dominantes metropolitanas”, por isso a instrução e a educaçãoescolarizada só podiam ser convenientes e interessar à camada dirigente,que tinha o papel de servir de articulação entre os interesses portuguesese as atividades coloniais. Para Portugal assegurar a dependênciaeconômica, era fundamental a dependência política; para a manutençãodependência política, era indispensável a dependência cultural. Nestaafirmação podemos buscar a explicação do atraso no desenvolvimentoeducacional do Brasil.

A educação jesuítica teve como objetivo primeiro a catequese,que logo foi substituído por uma educação restrita aos filhos doshomens da elite, que, depois, concluíam seus estudos na Europa.

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121O currículo no Brasil Colônia: proposta de uma educação para a elite

Segundo Tobias (1986, p. 47), a educação cristã que caracterizou aeducação jesuítica subdividiu-se em dois períodos:

[...] o primeiro idealizado por Nóbrega, com espíritodemocrático, cristão, universalizador e brasileiro, estendendo-se até cerca de 1580, e o segundo período, vivificado por umafilosofia da educação, derivada de autoridades jesuíticas daMetrópole e segregadora do índio e do pobre, contrária àeducação de Nóbrega e dos primeiros jesuítas, mas triunfantedepois da morte de Nóbrega, ocorrida em 1570.

A educação jesuítica, nos chamados “tempos heróicos”(primeiros 21 anos) comandados pelo Padre Manuel da Nóbrega, eraorganizada em recolhimentos onde eram educados os mamelucos, osórfãos, os indígenas (especialmente os filhos dos caciques) e os filhosdos colonos brancos dos povoados. Nóbrega entrevia a necessidadede “alicerçar nessa unidade espiritual e escolar a futura unidade políticada nação” e, por isso, os recolhimentos funcionavam

como agências de democratização, aproximando as raças e osfilhos provenientes de diversas condições de vida, irmanando-os no trabalho, pela igualdade de tratamento e pelo convíviodiário no colégio, na capela, nos pátios de recreação (MATTOS,1958, p. 85).

É interessante destacar que a política educacional de Nóbregatinha um caráter democrático, especialmente pelo interesse em formaradeptos ao catolicismo – que teve suas bases abaladas com o movimentoda Reforma – e, também, porque a política colonizadora apontava que

[...]somente pela aculturação sistemática e intensiva doelemento indígena aos valores espirituais e morais dacivilização ocidental e cristã é que a colonização portuguesapoderia lançar raízes definitivas no solo fecundo [...] do novomundo (MATTOS, 1958, p. 31).

Para isso, era necessário possibilitar a convivência entre asdiversas raças e permitir que houvesse em comum a doutrina cristã,mediante aldeamentos especialmente organizados para esse fim. É

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interessante destacar o que Romanelli (1998, p. 35) enfatiza em relaçãoaos objetivos da missão jesuítica:

[...] não se pode perder de vista, evidentemente, os objetivospráticos da ação jesuítica no Novo Mundo: o recrutamento defiéis e servidores. Ambos foram atingidos pela ação educadora.A catequese assegurou a conversão da população indígena efoi levada a cabo mediante criação de escolas elementares paraos “curumins” e de núcleos missionários no interior das naçõesindígenas. A educação que se dava aos “curumins” estendia-seaos filhos dos colonos, o que garantia a evangelização destes.

Para atingir tais objetivos, o ensino da doutrina cristã, dos “bonscostumes” (diga-se costumes portugueses) e das primeiras letrascompunha a matriz curricular básica. O ensino do português foi a primeiranecessidade educacional da colônia, assim como, ao evangelizador, coubeaprender a língua indígena. “O evangelizador era [...] de visão larga e viano futuro; por isso, foi ele aprender a língua indígena, que acabou sendomatéria do currículo educacional do jesuíta no Brasil, de tal maneira quemuita vez (sic) o tupi-guarani4 foi substituto do grego” (TOBIAS, 1986, p.56), considerado indispensável pelos humanistas. Assim, a catequese foiassociada à transmissão do idioma e dos costumes de Portugal, ao mesmotempo em que o padre da Companhia de Jesus aprendeu a língua donativo pelo convívio e conversas de um com outro.

A doutrina cristã, com seus dogmas, seus princípios morais, suaespiritualidade, era o conteúdo da catequese, ministrada diariamentepor meio de aulas expositivas e de exemplos vivos, com o objetivo detraduzir lições de moral associadas a fatos acontecidos (TOBIAS, 1984;PAIVA, 1982). A catequese, do ponto de vista econômico, interessavatanto à Companhia quanto ao colonizador, “à medida que tornava oíndio mais dócil e, portanto, mais fácil de ser aproveitado como mão-de-obra” (RIBEIRO, 1998, p. 24).

Somente depois de falar o português e estar iniciado na doutrinacristã é que os índios e os demais iniciavam a “escola de ler e escrever”,considerada a escola primária. Nesta escola, também se ensinava o canto4 “Como veículo mais eficaz de comunicação com os nativos, adotaram a língua tupi, que em 1556já era ensinada no Colégio da Bahia e em 1587 no de Pernambuco” (CHAGAS, 1980, p. 3).

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orfeônico e a música instrumental. Estes componentes curriculares,opcionais, tinham por objetivo “desenvolver o entusiasmo da criança,como meio de tornar simpáticos e atraentes a educação cristã e o jesuíta,como atração das crianças e, sobretudo do selvagem” (TOBIAS, 1984, p.65). Percebemos a visão do jesuíta de tornar a escola atraente para,com isso, garantir que os alunos a freqüentassem.

Na seqüência dos estudos, era previsto, aos que se destacavam,o ensino da gramática latina e, aos demais, o ensino profissional, agrícolaou manufatureiro. Essa etapa correspondia ao atual ensino médio e jáapontava para uma estrutura dual, apesar de que, segundo Ribeiro (1998,p. 22), “não tinha, de modo explícito, a intenção de fazer com que oensino profissional atendesse à população indígena e o outro àpopulação ‘branca’ exclusivamente”. Também era intenção de Nóbregarecrutar indígenas para a vocação sacerdotal, o que logo foi percebidocomo inadequado, exercendo, provavelmente, influência na definiçãode um ensino profissional e agrícola.

O estudo da gramática latina visava à preparação para ashumanidades superiores, para a Filosofia e para a Teologia, culminandocom uma viagem de estudos à Europa. Nas palavras do próprio Nóbrega(apud MATTOS, 1958, p. 86, grifo do autor): “eu pretendia aos de maioreshabilidades ensinar também latim e, depois de desbastados aqui um pouco,poderem em Espanha aprender letras e virtudes, para voltarem depoishomens de confiança”. Nóbrega entendia que as aulas de gramática latinanão deveriam ser apenas “artigos de luxo”, alheias às necessidades dacolônia. Deveriam ser abertas aos mais aptos, não somente à aristocraciada terra, para que essa formação possibilitasse, além dos missionários,escrivães e funcionários para a administração colonial, gerentes para osnegócios públicos e privados.

Por outro lado, a introdução de uma disciplinaprofissionalizante, na visão de Nóbrega, era “imprescindível paraformar pessoal capacitado em outras funções essenciais à vida dacolônia” (MATTOS, 1958, p. 22). Nóbrega aliava, ao currículo humanista,a educação prática, voltada para as necessidades do contexto brasileiro,como parte da “aculturação do nativo, condição indispensável para a

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catequese, o aprendizado das práticas elementares de produção para asobrevivência material da comunidade indígena em processo dealdeamento” (XAVIER, 1994, p. 43). Como destaca Tobias (1984, p. 66),

[...] as escolas do curso médio ministraram algo de profissionale de princípios práticos de lavoura, a fim de que os filhos dosbrasileiros pudessem ter e produzir algo de útil para a Nação.Isto, porém, apesar de objetivo e eminentemente educativo ecristão, representa o âmago da luta entre Nóbrega e superioresdos jesuítas de Lisboa, entre a humanização e a desumanização,entre a democratização e a aristocratização do nascente ensinobrasileiro.

A partir de 1556, a proposta de Nóbrega passa a encontrar sériasresistências por entrar em choque com as orientações da Companhia,mantendo-se com dificuldades até sua morte em 1570. Então, osrecolhimentos foram dissolvidos e incentivou-se a criação de colégiosnos centros urbanos mais importantes da faixa litorânea, compreendendoo ensino das primeiras letras, o ensino secundário e o superior. A educaçãojesuítica passa a destinar-se exclusivamente à formação das elites burguesascom o objetivo de prepará-las para exercer a hegemonia cultural e políticada colônia, conforme os interesses de Portugal.

De acordo com Cunha, a educação jesuítica, nesta segunda fase,atendeu a uma tripla função: formar padres para a atividade missionária;formar quadros para a administração do empreendimento colonial comodo próprio Estado; e educar as classes dominantes.

A integração dessas funções assim variadas ficava garantida pelapresença no currículo desses colégios, das ideologias e daspráticas letradas comuns à cultura das classes dominantes, àsdiversas especialidades da burocracia estatal e à organização daprópria ordem religiosa desses colégios (CUNHA, 1986, p. 24).

Por isso, as etapas iniciais e o ensino profissional e agrícolapretendidos por Nóbrega5 foram excluídos do currículo, o que evidencia o

5 As propostas iniciais do currículo de Nóbrega eram: aprendizado do português, doutrinacristã, escola de ler e escrever, canto orfeônico e música instrumental.

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[...] desinteresse ou a constatação da impossibilidade de“instruir” também o índio. Era necessário concentrar pessoal erecursos em “pontos estratégicos”, já que reduzidos. E tais“pontos” eram os filhos dos colonos em detrimento do índio,os futuros sacerdotes em detrimento do leigo, justificam osreligiosos (RIBEIRO, 1998, p. 22).

Dessa forma, o ensino jesuítico interessava e era acessível a umaminoria, que, por não precisar produzir as coisas materiais para a suasobrevivência, dedicava-se ao “cultivo do espírito”, ou seja, “umaeducação literária, humanista, capaz de dar brilho à inteligência”(ROMANELLI, 1998, p. 34). Ainda, é importante ressaltar que “a formaçãoda elite colonial, será marcada por uma intensa ‘rigidez’ na maneira depensar e, conseqüentemente, de interpretar a realidade” (RIBEIRO, 1998,p. 25), fruto da eficiente organização da educação mediante a RatioStudiorum (Ratio atque Institutio Studiorum Societas Jesu).

Do ponto de vista das atividades de produção, o currículojesuítico era sem “utilidade prática visível para uma economia fundadana agricultura rudimentar e no trabalho escravo” (ROMANELLI, 1998, p.34). Entretanto, logo a elite percebeu a importância e o poder dessaeducação para a formação de seus representantes políticos econseqüente intervenção junto ao poder público.

As normas dos colégios jesuítas eram padronizadas e foramoficialmente publicadas em 1599 na Ratio Studiorum. Esse plano deestudos levou 59 anos para ser elaborado, o que possibilitou uma grandeexperiência e larga discussão até ser publicada. Não foi um plano deum homem ou um grupo fechado, mas de uma experiência comum(FRANCA, 1986). Podemos dizer que, na Ratio, “tudo estava previsto,regulamentado e discutido, desde a posição das mãos, até o modo delevantar os olhos” (PONCE, 1990, p. 122), constituindo-se numa coleçãode regras e prescrições práticas e detalhadas. Ou seja, um currículo queia muito além das disciplinas ou conteúdos escolares.

“O alvo visado era universal, a formação do homem perfeito,do bom cristão” (FRANCA, 1986, p. 12). A educação, nesse sentido, nãoera tratada como assunto de uma nação, com suas características

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específicas, pois os jesuítas acreditavam que sua proposta poderia seraplicada para qualquer povo, em qualquer lugar. Até hoje, a Ratio podeser considerada

a mais perfeita organização que se conhece para quebrar nosalunos o mais tímido assomo de independência pessoal e paraconseguir, portanto, nas esferas mais distintas do governo, dasfinanças e das universidades, colaboradores ativos, zelosos, e,freqüentemente, insuspeitos (PONCE, 1990, p. 122).

Esta afirmação deixa explícito que a educação baseava-se emum mundo pronto, perfeito, e objetivava adequar o homem a essa visão.Nesse mundo perfeito, “a cada um o que é de direito e vontade dosdesígnios divinos”; portanto, a educação pertencia àqueles que tinhamo que fazer com ela, aos nobres e à alta burguesia, para continuar emseu papel de dirigentes da sociedade. O trabalho mais marcante dosjesuítas no Brasil se dá na formação das elites e das lideranças dasociedade colonial, para que a consolidação da cultura católica fossegarantida (XAVIER, 1994).

Um sistema educacional de uma sociedade baseada naescravatura só poderia se ater a atender aos interesses de uma camadada população. Por isso, os jesuítas especializaram-se no ensinosecundário e superior, com currículos muito precisos epormenorizados, tripartindo-se em educação literária, filosófica eteológica. No Brasil, havia quatro graus de ensino, sucessivos epropedêuticos: curso elementar (escola de ler, escrever e contar, maisa doutrina religiosa católica); curso de humanidades (nível secundário);curso de artes (também chamado de ciências naturais ou filosofia) ecurso de teologia (nível superior) (FRANCA, 1986, TOBIAS, 1986, CUNHA,1986). Neste artigo, de acordo com seu objetivo, analisaremos o cursoelementar e o curso de humanidades.

O ensino elementar era costumeiramente oferecido pela própriafamília e reforçado nos colégios, evidentemente para os filhos dosproprietários. Os jesuítas não se importaram com a educação dascamadas populares, caracterizando-se seu sistema de ensino como

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aristocrático. Isso fica claro na afirmação de Inácio de Loyola (apudFRANCA, 1986, p. 7): “Ensinar os ignorantes a ler e escrever seria umaobra de caridade se a Companhia de Jesus tivesse suficientes membrospara prover a tudo [...]”.

O curso de humanidades foi o que teve maior difusão na colôniae objetivava preparar o aluno para “a arte acabada da composição e daescrita”, desenvolvendo uma “expressão perfeita” (FRANCA, 1986).Segundo Azevedo (1976, p. 27), “destinava-se a formar o homem inlitteris huamanioribus, ministrando-lhe um ensino eminentemente literáriode base clássica, e constituía por isto mesmo o alicerce de toda essaestrutura, solidamente montada, do ensino jesuítico”.

A matriz curricular humanista, correspondente ao cursosecundário, na Ratio, abrange cinco classes: retórica, humanidades egramática superior, média e inferior, sendo realizadas todas em latim.“As classes de gramática asseguram-lhe uma expressão clara e exata;a de humanidades, uma expressão rica e elegante; a de retórica, mestriaperfeita na expressão poderosa e convincente” (FRANCA, 1986, p. 15).Essas classes representam os estágios de progresso do aluno emrelação aos conhecimentos adquiridos, não exclusivamente em relaçãoa uma unidade de tempo (por exemplo, um ano). Conforme Chagas(1980, p. 3), “a conhecida rigidez dos jesuítas no plano dos fins [...] secompensava por uma grande plasticidade no plano dos meios.Exemplo disso, [...] era a flexibilidade com a qual afeiçoavam aexecução do currículo às diferenças de capacidade dos alunos”. Porisso, as gramáticas eram subdivididas, e essas subdivisões, muitas vezes,recebiam subníveis (“A” e “B”), o que poderia dilatar o currículo emseis ou sete anos.

O “grau” da gramática ínfima é o conhecimento perfeito dosrudimentos da gramática e as primeiras noções de sintaxe. Ograu da gramática média é o conhecimento de toda a gramática,ainda que não exaustivo e perfeito. O grau da gramática superioré o conhecimento perfeito da gramática. O grau da classe dehumanidades, que prepara imediatamente à retórica, é oconhecimento da linguagem, alguma erudição e primeiras

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noções dos preceitos da retórica. O grau da retórica é aexpressão perfeita, em prosa e verso, e abrange osconhecimentos teórico e prático dos preceitos da arte de bemdizer e uma erudição mais rica de história, arqueologia, etc.(FRANCA, 1986, p. 15).

Outro aspecto relativo à plasticidade do currículo jesuítico foi ouso do idioma pátrio, fundamental aos futuros padres para o sucessoda catequização dos índios – “[...] para pregar com fruto, importa bemaprender a língua falada pelo povo” (FRANCA, 1986, p. 16). A Ratio foialterada em 1751, quando foram introduzidas novas disciplinas nomodelo curricular, como as línguas vernáculas e as ciências naturais(CUNHA, 1986).

Os cursos elementares e de humanidades tinham por objetivo aseleção de religiosos, ou não, que completariam sua formação nos cursossuperiores de artes ou teologia. A Ratio, por sua vez, remeteu o estudodas ciências para o curso de artes, em que se ensinavam, durante trêsanos, lógica, física, matemática, ética e metafísica, em que Aristótelesera o principal autor estudado. O curso de teologia, de quatro anos deduração, era composto por duas matérias básicas: a teologia moral(questões éticas do cotidiano) e a teologia especulativa (estudo do dogmacatólico) (CUNHA, 1986; FRANCA, 1986).

“No plano da Ratio, enquanto os cursos universitários visammais diretamente à formação profissional, o secundário tem umafinalidade acentuadamente humanista” (FRANCA, 1986, p. 25). Essemodelo de formação é adequado à política colonial, visto que, emuma sociedade em que muitos produziam, os poucos que desfrutavamdessa produção dedicavam-se às atividades intelectuais. Aconseqüência foi o preconceito contra o trabalho, que era associadoao escravo, e, portanto, deixar de trabalhar significava aproximar-sedo senhor. Também, a ênfase no trabalho intelectual afastava os alunosdos problemas relativos à realidade, levando-os a rejeitar o mundoreal e a considerar civilizado o seu mundo. Nesse sentido, exerciamuma dominação sobre a maioria que não tinha acesso ao mundoletrado, reforçando a dominação.

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Na concepção da Ratio, o curso secundário, com currículoessencialmente humanista, era adequado, pois não era objetivotransformar os adolescentes em enciclopédias ambulantes, mas formaro homem, tornando-o mais homem. “O nome de humanidades foidado a estes estudos porque transformam os que a eles se dedicam em‘homens educados, afáveis, lhanos, acessíveis e tratáveis’” (FRANCA, 1986,p. 25). Por isso, a linguagem é considerada o instrumento natural deformação humana.

Só pela palavra pode o educador atingir o espírito do aluno; sópela palavra pode o aluno manifestar o próprio espírito. [...] Alinguagem é a expressão do espírito, e, portanto, a prova de suaexistência, a medida de seu desenvolvimento. Quem se exprime,exercita a sua atividade mental, imagina, pensa, julga, raciocina,concatena idéias (FRANCA, 1986, p. 25-26).

Por esses pressupostos, compreendia-se que todo o trabalho doeducador deve buscar desenvolver as capacidades naturais do jovem.O estudo da gramática, dos gênios antigos, do latim, a formação literáriano currículo não tinham como principal objetivo uma utilidadeinstrumental, mas a formação do homem pelo desenvolvimentoharmonioso de suas faculdades. Em vista disso, o verbalismo, comoconteúdo e método, condicionou o currículo, acompanhou o seudesenvolvimento e constituiu-se numa das principais características daeducação jesuítica.

A organização da educação jesuítica, mais especificamente ocurrículo humanista, tinha objetivo acima de tudo religioso. Por isso, oconteúdo literário e a metodologia do curso de humanidades e doscursos superiores visavam afastar os intelectuais das demais orientaçõesreligiosas, bem como da nascente ciência moderna, pois poderia levá-los a perceber as limitações do método escolástico medieval adotadopelos jesuítas (RIBEIRO, 1998). Era primordial manter a colônia sob omonopólio intelectual da metrópole. Nesse sentido, “da mesma formacomo a monocultura econômica destruiu fisicamente o resto dapaisagem, assim também na escola jesuítica a monocultura intelectual eespiritual destruiu em torno do indivíduo a paisagem intelectual”

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(FREYRE apud BENGER, 1976, p. 222). Nesse quadro não havia lugarpara o pensamento crítico e criador, nem para a ciência experimentalque já começava a mudar os rumos da humanidade.

Os jesuítas permanecem responsáveis pela educação no Brasilaté 1759, quando são expulsos de Portugal e, conseqüentemente, doBrasil. Foram 210 anos de educação jesuítica, interrompidosbruscamente, com as reformas feitas em Portugal pelo Marquês dePombal (Sebastião José de Carvalho e Melo), então ministro de D. JoséI. Pela primeira vez, o Estado passa a orientar os rumos da educação,objetivando substituir a escola que servia aos interesses da fé pela escolaútil aos fins do Estado.

O período pombalino

As reformas pombalinas tiveram por objetivo a recuperaçãoeconômica de Portugal, e uma das ações foi a modernização do ensinoe da cultura portuguesa, objetivando a formação do nobre, para queatendesse aos interesses do Estado, podendo este até ser cristão. Issodemonstra que não foi simplesmente um intento anti-religioso, mas “aremodelação dos métodos educacionais vigentes, pela introdução dafilosofia moderna e das ciências da natureza em Portugal” (CARVALHO,1978, p. 26). Também, completa o autor, “as reformas foram [...] umesforço no sentido de colocar as escolas portuguesas em condições deacompanhar com êxito o progresso do século” (p. 51).

Podemos apontar pelo menos três objetivos da nova políticaeconômica portuguesa: incentivo às manufaturas na metrópole,proibindo-as na colônia, para que se constituíssem uma reserva demercado; incentivo à acumulação de capital, tanto na metrópole comnas colônias; substituição das ideologias características da sociedadefeudal, por outras, de acordo com a orientação da sociedade capitalista(CUNHA, 1986). Este terceiro objetivo diz respeito às reformaseducacionais promovidas pelo Marquês de Pombal, em Portugal e nacolônia, que culminam com a expulsão dos jesuítas do comando daeducação, passando o Estado a definir os seus rumos.

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A fonte das idéias defendidas por Pombal vem do movimentoiluminista que se evidencia no final do século XVII e caracteriza oséculo XVIII. O iluminismo “consistia na celebração da razão emoposição a qualquer religião revelada, consistente com a fé na ordemracional do mundo, a exaltação da ciência experimental e da técnica”(CUNHA, 1986, p. 44). Apesar disso, em Portugal, não houve orompimento com a igreja e a religião católica. Pelo contrário, as ordensreligiosas que se submeteram ao poder do Estado, na pessoa do rei,continuaram com autorização para prestar seus serviços. A Companhiade Jesus, no entanto, mantém uma postura de insubordinação ao rei,pois o movimento iluminista não era compatível com o ensino jesuítico,que continuava com característica medieval, educando nos moldes daRatio Studiorum. A proposta da Companhia de Jesus era atrasada emrelação à nova proposta que se delineava com a reforma pombalina,que apresentava avanços em relação aos aspectos científicos no ensinoe na visão de sociedade. Até então, “a filosofia moderna (Descartes), aciência físico-matemática, os novos métodos de estudo da língua latinaeram desconhecidos em Portugal” (RIBEIRO, 1998, p. 32).

Estes foram alguns dos motivos para a Companhia de Jesus serapontada como a causa do atraso de Portugal, além de ser detentora deum poder econômico reivindicado pelo Estado e de ter uma propostade educação compatível com os interesses e a serviço da ordem religiosa,e não dos interesses do país.

Os reflexos das políticas pombalinas na colônia incidemdiretamente na necessidade de Portugal intensificar a produção para ocomércio. Isso implicava em mais mão-de-obra, diga-se mão-de-obraindígena, até então “protegida” pela influência dos jesuítas junto à corteportuguesa. Era necessário “‘libertar’ os índios dos padres, isto é, torná-los disponíveis para serem integrados à economia como escravos, senão de direito, pelo menos de fato (salário simbólico)” (CUNHA, 1986,p. 42). Vale lembrar também que os jesuítas acumulavam riquezasprovenientes do comércio de produtos do sertão, sem nada reverter aotesouro real, pois eram isentos do pagamento de impostos. Porconseguinte, “não poderiam os homens da administração de D. José I

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subestimar o valor da organização jesuítica como empreendimentocolonizador” (CARVALHO, 1978, p. 105). A sociedade religiosa tambémtinha objetivo mercantil.

O Brasil, nesse período, passava por uma crise na produção deaçúcar, enquanto se desenvolvia, sobremaneira, a atividade da mineração,permitindo “que indivíduos isolados se realizem economicamente, oque não acontecia no sistema de produção açucareira” (SODRÉ, 1996, p.25). Há, nessa época, um crescimento populacional dada a imigraçãoportuguesa, visto que a metrópole passava por uma forte criseeconômica. Dessa forma, pela primeira vez, a população livre é maisnumerosa que a população escrava. Para atender a essa demanda,diversificam-se as atividades econômicas complementares à mineração,principalmente aquelas relacionadas à produção de alimentos emanufaturas ligadas ao setor da tecelagem e do ferro, gerando-se, assim,o comércio interno, em função do desenvolvimento do mercado interno.Há um crescimento da vida urbana e das atividades administrativas dacolônia, bem como o surgimento de uma camada média, o que favoreceua este modelo de sociedade apresentar exigências culturais que antesnão existiam (SODRÉ, 1996; XAVIER, 1994).

“Esse descompasso que se verifica entre o desenvolvimentocolonial e a decadência metropolitana será o principal desencadeadordas chamadas reformas pombalinas” (XAVIER, 1994, p. 51). Estassignificaram, para o Brasil, o aumento da exploração parasitária dePortugal, por meio de reformas administrativas e fiscais, que acirraramos monopólios, multiplicaram os impostos, discriminaram os nascidosna colônia dos nascidos em Portugal, dotando o aparelho administrativosuperior da colônia exclusivamente com metropolitanos. Além disso,ocorreu o desmonte de toda a educação construída no decorrer dedois séculos (XAVIER, 1994; RIBEIRO, 1998).

Dessa forma, no momento em que a colônia mais precisava deum projeto de educação, em razão da sua urbanização e diversificaçãodas atividades econômicas, os jesuítas são retirados de cena, e a colôniaamarga a realidade de nada ver colocado em seu lugar, atrelando-se,ainda mais, a formação da elite dirigente aos moldes de Portugal.

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Também, continua inexistente um projeto de educação popular, poisas poucas aulas régias, que foram colocadas à disposição, nada maistinham do que a função preparatória de continuidade, de uma minoria,dos estudos na Europa. “A formação ‘modernizada’ da elite colonial(masculina) era uma das exigências para que ela se tornasse mais eficienteem sua função de articuladora das atividades internas e dos interessesda camada dominante portuguesa” (RIBEIRO, 1998, p. 35).

As aulas régias, baseadas no enciclopedismo, constituíam-se emunidades de ensino, com professor único, instaladas para determinadadisciplina, que deveriam substituir as disciplinas antes oferecidas noscolégios jesuítas. Eram aulas autônomas e isoladas, não havendo um“currículo, no sentido de um conjunto de estudos ordenados ehierarquizados, nem a duração prefixada se condicionava aodesenvolvimento de qualquer matéria” (CHAGAS, 1980, p. 09). Assim,como destaca Romanelli (1998, p. 36):

[...] a uniformidade da ação pedagógica, a perfeita transição deum nível escolar para outro, a graduação, foram substituídaspela diversificação das disciplinas isoladas. Leigos começarama ser introduzidos no ensino e o Estado assumiu, pela primeiravez, os encargos da educação.

A reforma de Pombal, no Brasil, não foi imediata. Somente em1772, treze anos após a expulsão dos jesuítas e do alvará de 28 dejunho de 1759,6 é que foram estabelecidas as aulas de primeiras letras,de gramática, de latim e de grego no Rio de Janeiro e nas principaiscidades das capitanias (AZEVEDO, 1976; RIBEIRO, 1998).

O ensino secundário, que era organizado segundo o Curso deHumanidades no período jesuítico, caracterizado pela unidade deprofessor, de método e de matéria, passa a ser fragmentado e dispersoem aulas avulsas, cada uma com um professor, contemplando, segundoRibeiro (1998, p. 34), as seguintes orientações:

6 O Alvará de 1759 instituiu as aulas de gramática latina, de grego e de retórica e criou o cargode “Diretor de Estudos” para orientar e fiscalizar o ensino, além de selecionar, através deexames, os professores.

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[...] para o ensino do latim, a orientação era a de ser entendidoapenas como instrumento de domínio da cultura latina e admitiro auxílio da língua portuguesa. Quanto ao grego (indispensávela teólogos, advogados, artistas e médicos), as dificuldadesdeveriam ser gradualmente vencidas: primeiro a leitura(reconhecer as letras e sílabas, palavras), depois os preceitosgramaticais e, por último, a construção. A retórica não deveriater seu uso restrito ao público e à cátedra. Deveria tornar-seútil ao contato cotidiano. As diretrizes para as aulas de filosofiaficaram para mais tarde e, na verdade, pouca coisa aconteceu.Diante da ruptura parcial com a tradição, este campo causoumuito receio ou muita incerteza em relação ao novo.

Com o “subsídio literário” (imposto colonial criado em 1772 paracustear o ensino), o número de aulas alcançou alguma diversificação emmatérias como retórica, hebraico, matemática, filosofia e teologia. Tudo,porém, muito precário em razão da escassez de recursos, do despreparodos docentes e da inexistência de um currículo regular com objetivosclaramente definidos. Teve, porém, continuidade a formação clássica,ornamental e europeizante dos jesuítas, visto que a maioria dos professoresera composta por padres formados sob os moldes jesuítas, os chamadospadres-mestres. As principais inovações de Pombal – o ensino das línguasmodernas, o estudo das ciências e a formação profissional – não foramimplantadas na colônia (CHAGAS, 1980; ROMANELLI, 1998).

O nível secundário continuou desvinculado dos assuntos eproblemas da realidade, permanecendo o modelo europeu “civilizado”.A continuidade dos estudos, para garantia dos interesses portugueses,deveria ser feita na Universidade de Coimbra ou em outros centroseuropeus. Com isso, fica evidente que a metrópole tinha pouco interesseem equipar a colônia com um sistema educacional eficiente, pois esteera incompatível com os objetivos de dominação e submissão impostos.Esta é a análise de Fernando de Azevedo (1976, p. 53):

[...] a reforma planejada para o Reino não só golpeouprofundamente, na Colônia, o ensino básico geral, pulverizando-o nas aulas de disciplinas isoladas (aulas régias), sem qualquerplano sistemático de estudos, como ainda cortou, na suaevolução pedagógica normal, o desenvolvimento do ensino para

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os planos superiores. [...] Tudo, até os detalhes de programas ea escolha de livros, tinha de vir de cima e de longe, do podersupremo do Reino, como se este tivesse sido organizado parainstalar a rotina, paralisar as iniciativas individuais e estimular,em vez de absorvê-los, os organismos parasitários quecostumam desenvolver-se à sombra de governos distantes,naturalmente lentos na sua intervenção. Esta foi uma das razõespelas quais a ação reconstrutora de Pombal não atingiu senãode raspão a vida escolar da colônia.

Dos jesuítas a Pombal, a educação brasileira foi marcada peloobjetivo básico de formação da elite dirigente da sociedade colonial.Mesmo assim, a organização escolar caracterizou-se precária, emquantidade e qualidade, com um currículo humanista, de conteúdo literárionos moldes europeus, com objetivo de “divulgação de uma concepçãode mundo apta a manter coesa a sociedade” (SEVERINO, 1986, p. 70), deacordo com os interesses econômicos do colonizador, segundo um ideáriocatólico. Mesmo com a desarticulação do currículo jesuíta, após Pombal,a essência do currículo permaneceu, apesar de a ciência estar em francodesenvolvimento na Europa. Nesse sentido, é esclarecedora a conclusãofeita por Antonio Joaquim Severino (1986, p. 72):

[...] o que a história mostra é a perfeita adequação entre estesprincípios doutrinários e os interesses econômicos, políticos esociais da classe dominante da época, constituída basicamentepela aristocracia agrária, pouco numerosa, mas encarregada dedirigir a exploração colonizadora do país. Daí por que atribuírampouca importância à organização do ensino e à políticaeducacional do país, tanto mais porque a educação se destinavaa segmentos restritos da população. Não havia necessidade deuma contribuição maior da educação, que ficava adstrita àformação da elite dirigente. Por isso o caráter literário,acadêmico de seu conteúdo, sua preocupação com os modeloseuropeus e o total desinteresse pela profissionalização eformação da maioria da população privada de qualquereducação formal. Ademais não havia também necessidade deaprofundamento dessa educação, uma vez que os integrantesdessa elite poderiam ir completar seus estudos na Europa.

Dessa forma, entre a expulsão dos jesuítas e a transposição dacorte portuguesa para o Brasil em 1808, há uma lacuna de quase meio

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século na educação brasileira, caracterizada pela precariedade doensino colonial.

Considerações finais

À luz deste quadro de informações e da proposta deste trabalho,o que podemos verificar é que o contexto socioeconômico do BrasilColônia tem como elementos principais um modelo de exploraçãomercantilista, baseado na exploração da mão-de-obra escrava, com umaprofunda e desmedida depredação da colônia. O Brasil era, paraPortugal, apenas uma extensão de suas terras, por isso mantinha umtotal controle por meio de uma administração centralizada.

Nesse contexto de modelo econômico agroexportador, o papelda educação era de sedimentar a visão do colonizador. Por isso, numprimeiro momento, a catequese foi a principal função dos jesuítas,responsáveis pela reprodução dos valores da sociedade mercantilista,profundamente marcada pela religião católica.

Nos chamados tempos heróicos, os primeiros 21 anos deeducação jesuítica, Nóbrega idealizou uma educação democrática, cristãe brasileira, estendida aos filhos dos colonos brancos, aos órfãos e aosindígenas, com um modelo curricular que contemplava o ensino dadoutrina cristã, dos “bons costumes” e das primeiras letras. O interessemaior de Nóbrega era a formação de adeptos ao catolicismo a fim derestabelecer as bases da Igreja Católica abaladas pela reforma e garantira aculturação do elemento indígena para que a “colonização” fosse defato definitiva. Esta proposta logo encontrou resistência junto à ordemjesuítica em Portugal, visto que não era interesse a instrução do índio,e, sim, o seu adestramento por meio da catequização para servir demão-de-obra. A educação deveria destinar-se à formação das elitesburguesas somente e, por isso, as propostas educacionais e o currículode Nóbrega não encontram espaço para serem desenvolvidos.

A segunda fase da educação jesuítica é a mais importante e aquise configuram os reais objetivos da educação no Brasil Colônia: formarquadros para a administração do Estado, formar padres e educar as

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classes dominantes. A educação é pautada nos princípios da RatioStudiorum, composta de uma coleção de regras e prescriçõesmilimetricamente pensadas. É segundo estes princípios que acontece aprincipal ação jesuítica, ou seja, a promoção da educação da elite. Nessesentido, fica clara a relação entre modelo econômico e educação, pois,numa sociedade escravocrata e agroexportadora, baseada na exploraçãodesmedida da população, a educação é artigo de luxo para garantir areprodução e consolidação dos interesses burgueses.

A proposta curricular contemplava a educação literária, filosóficae teológica nos níveis elementar, secundário e superior. O curso dehumanidades (secundário) foi o mais difundido, pois era o alicerce doensino jesuítico. Eminentemente literário, objetivava uma formaçãoessencialmente humanista, com o fim de diferenciar e reforçar adominação, na medida em que as atividades intelectuais eram para ospoucos que tinham garantido suas necessidades materiais pelaexploração da mão-de-obra escrava. O currículo, essencialmentehumanista, visava à formação de intelectuais comprometidos com asorientações da Igreja Católica e do modelo econômico, atendendo aoque se propunha sob o ponto de vista das classes dominantes.

Com a expulsão dos jesuítas e as reformas pombalinas emPortugal, assistimos ao desmantelamento completo da educaçãobrasileira. O Brasil não é contemplado com as propostas queobjetivavam a modernização do ensino pela introdução da filosofiamoderna e das ciências da natureza, com o fim de acompanhar osprogressos do século. Resta no Brasil, em termos de educação, as aulasrégias para a formação mínima dos que iriam ser educados na Europa.A formação humanista, clássica e europeizante tem continuidade nasdisciplinas isoladas, pois a maioria dos professores era composta porpadres formados nas escolas jesuíticas.

Podemos verificar, portanto, que, se a educação jesuítica foirestrita a uma elite, ela teve o mérito de constituir-se em um sistemaeducacional extremamente organizado, com objetivos, conteúdos emétodos compatíveis aos seus fins. Por isso, se para Portugal a laicização

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do ensino foi um avanço, para o Brasil, as reformas pombalinassignificaram um retrocesso em termos de educação escolar.

O currículo, de modo geral no período colonial, cumpriu seuobjetivo à medida que, construído no modelo europeu, traduzia aconcepção de mundo do colonizador, formando o dirigente para amanutenção da sociedade de acordo com seus interesses, especialmenteos econômicos. Portanto, estender o ensino à maioria da populaçãonunca interessou a aristocracia agrária, que via seu papel restrito àeducação da elite.

THE SYLLABUS IN BRAZIL COLONY:PROPOSAL TO AN ELITE EDUCATION

Abstract: The purpose of this article is to synthesize the history of the officialsyllabus in Brazil at colonial period, which was characterized by economicalagro exportation. The research includes aspects of Jesuits education in theirtwo phases – the first was idealized by Nóbrega at heroic times (1549-1570);the second, was derivate by Jesuits authorities from Portugal and wascharacterized through Ratio Studorum – as well the educational realitypresented at the colony from Pombalina Reform. The analyses of the researchinclude bibliographic sources, the relation among Brazilian social, economicaland political context, the educational proposal, and the official proposals ofsyllabus presented in this period. We can verify that Brazil social economicalcontext is characterized by a mercantilist model, based on slave laborexploration, from a deep and without measure running down of the colony.According to this context, the education purpose was to introduce thecolonization vision, where catechize and the elite education were the mainlyobjectives. The syllabus was organized based on European model, showedthe conception of the colonizing world, which formed the managers tomaintain a society according to their interests mainly economical.

Key words: Brazil Colony. Society. Education. Syllabus.

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EDUCAÇÃO POPULAR RIZOMÁTICA:EDUCAÇÃO DAS MULTIPLICIDADES *

Wilson da Silva Santos **

Resumo: O conceito de rizoma nos leva a pensar a Educação Popular comouma ação de n saberes, sensações e valores, cujos sujeitos elaboram e produzemrepresentações de si mesmos sobre platôs. A reterritorialização do conceito derizoma na Educação Popular funciona como agenciamento maquínico e comoforça propulsora para elucidá-la em suas multiplicidades segundo conexõesproduzidas nas mais diversas particularidades, em consonância com asexperiências da prática social concreta, dentro da dimensão das linhas de fuga.

Palavras-chave: Educação popular. Rizoma. Multiplicidades.

Apontamentos e aproximações da Filosofia deleuziana

Multiplicidades. Decerto, esta é a expressão mais consentâneacom que podemos alcunhar a filosofa deleuziana. Deleuze tipifica, pelaheterogeneidade de domínio de diferentes áreas de conhecimento, nãotão-só a filosofa, também as ciências, as artes e a literatura. Aheterogeneidade de diversos campos do saber aduzido no pensamento

* Trabalho realizado com o apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico eTecnológico (CNPq).** Mestrando em Educação Popular do Programa de Pós-graduação em Educação daUniversidade Federal da Paraíba (UFPB), na Linha de Pesquisa Políticas Públicas e Prá[email protected]

Práxis Educacional Vitória da Conquista n. 2 p. 141-152 2006

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filosófico de Deleuze tem um escopo, que é a ação criadora do filósofo,o exercício – ou atividade criativa – do pensamento. Não se refere afazer filosofia sobre ciência, literatura ou arte, muito menos refletirsobre. A sua filosofa estabelece um liame próprio com outras esferasdo saber não com a intenção de ratificá-las ou validá-las, e sim instituirreverberações, relações/reflexões recíprocas entre os distintos domíniossegundo a definição da sua démarche. Esta démarche é o pensar criador,contrapondo-se à constituição e perpetuação de um metadiscursofilosófico que se incumbe de explicações totalizantes incomensuráveise irrefutáveis, postulando para si o estatuir do conhecimento. Essa seja,talvez, uma de suas principais críticas à epistemologia de ser o podercoercitivo do conhecimento. De facto, o constructo do pensamentofilosófico é que vai nortear o trabalho de Deleuze.

Assim, a filosofia deve imergir na elaboração do novo, isto é,determinando-se, como exigência e reivindicação, na produção de umnovo pensamento. Segundo Deleuze, a filosofia diferencia-sefundamentalmente de outros saberes, por ela ser a forma distintiva decriação e produção de “conceitos”. Ele atenta em congregar e relacionararte, ciência e filosofia, observando a particularidade de criação de cadauma dessas áreas do saber, pois o objeto da ciência é criar funções, o daarte é criar conjunto de sensações integrado de percepto e afecto e o dafilosofa, conceitos.

O complexo de relações e encadeamentos, que Deleuze efetuaentre conceitos, originários da filosofia, com a ciência e a arte/literatura,vai desencadear e sustentar o seu plano filosófico, o de criar conceitosnovos. Um conceito é uma simbiose de elementos variados, masordenados por “zona de vizinhança”. A sua composição faz-se porcomponentes heterogêneos e inseparáveis, por conexões, identidades,agenciamentos, condensações de seus próprios componentes –conceituais e não conceituais (functivo, percepto, afecto) –,consubstanciando-se em novo conceito filosófico.1 É preciso salientarque todo conceito filosófico reporta-se a um problema, “a problemas1 Uma análise mais acurada sobre o que é conceito encontra-se na obra de Gilles Deleuze eFélix Guattari: O que é Filosofia?

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sem os quais não teria sentido, e que só podem ser isolados oucompreendidos na medida de sua solução. Não se criam conceitos, a nãoser em função dos problemas que se consideram mal vistos ou malcolocados” (DELEUZE; GUATTARI, 1992, p. 27-28).

O projeto filosófico de Deleuze, que compreende a buscaincessante da produção conceitual e do exercício do pensamento, privilegiaalguns conceitos ou filósofos; de modo igual, prioriza elementos nãoconceituais na arte, na ciência e na literatura. A filosofia apresentada porDeleuze pretende constituir, sob forte influência de Nietzsche, umagenealogia do pensamento, especificamente a da filosofia marcada pelacaracterística “geográfica de espaços opostos e assimétricos”, que seencerra na sua forma e conteúdo, entendida, à vista disso, como potênciade surgimentos de conexões, associações, eixos, ligações, caminhosmultiformes e multifacetados. Esta genealogia está entremeada eatravessada em toda sua construção filosófica, principalmente aoapresentar “espaços antagônicos” onde o pensamento filosófico éesquadrinhado e situado. A genealogia procura, então, assinalar dois tiposde filosofia, na sua constituição e acepção heterogêneses, em espaçosantagônicos. Por isso, Deleuze instaura uma geografia do pensamentopara desterritorializar e reterritorializar o pensamento filosófico,explorando sempre dois tipos de filosofia antagônicos.

Como mencionado no parágrafo anterior, na démarche do seupensamento filosófico, Deleuze prioriza e antefere filósofos e autoresde outras esferas do saber – literatura, arte, ciências2 –, cujo objetivo écircunscrever um “espaço ideal” (não seria o rizoma-canal?),contrastando o diferenciativo e, em última análise, combatendo o espaçoestampado por Platão, Aristóteles, Descartes, Hegel, Kant e Leibniz,considerados, pela história da filosofia, os arautos do pensamento oficial,estatal: a filosofia da representação ou o espaço da imagem dopensamento.

2 Nietzsche, Espinosa, Lucrécio, Hume, Bergson e Foucault, na filosofia; Proust, Kafka, Kleist,Lenz, na literatura; Arquimedes, Demócrito, na Ciência. Para Deleuze, estes, entre outros, pulsame energizam com movimentos intensivos, com força e potência intempestiva, que não seencontram nos axiomas impostos pela história da filosofia.

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Entrementes, Deleuze propõe uma filosofia da diferença, dodesejo, do sentido, do trágico, plural, múltiplo, uma filosofia do ser, umespaço do pensamento sem imagem, influenciado eminentemente porNietzsche,3 outrossim, à luz de filósofos que engendraram e exaltaramo pluralismo em filosofia – Espinosa, Hume, Bergson, Foucault,Epicuro, Lucrécio, os estóicos. A agregação desses filósofos, num sóespaço de pensamento, dá-se pela possibilidade de estabelecer umagenciamento, uma relação e ressonância entre os conceitos construídospor estes, que insurgem contra uma imagem tradicional perfilada àfilosofia e que pretendem patentear “o novo exercício do pensamento”.4

Portanto, em todos os seus escritos, Deleuze enraíza e perscrutaa relação antagonique que calha entre dois espaços de pensamento:

No curso de uma longa história, o Estado foi o modelo dolivro e do pensamento: o logos, filósofo-rei, a transcendênciada Idéia, a interioridade do conceito, a república dos espíritos,o tribunal da razão, os funcionários do pensamento, o homemlegislador e sujeito. É todo o pensamento que é devir, um duplodevir, em vez de ser um atributo de um sujeito e a representaçãode um todo. Um pensamento em luta com as forças externasem vez de estar recolhido em uma forma interior, operandopor revezamento em vez de formar uma imagem, umpensamento-acontecimento, em vez de um pensamento-sujeito,um pensamento-problema, em vez de um pensamento-essência,um pensamento que apela para o povo. Um pensamento

3 A polaridade de espaços filosóficos tem como fulcro medular o antagonismo entre Platão eNietzsche. A filosofia nietzschiana é a tentativa da reversão do platonismo, é a sublevação dafilosofia da representação do Bem e da Verdade, do metafísico, do alto.4 Essa relação entre os filósofos dá-se da forma de uma colagem: “Falar de colagem a respeitodo pensamento filosófico significa dizer que o texto considerado é muitas vezes extraído deseu contexto, ou melhor, que os conceitos – considerados como objetos de um encontro,como um aqui e agora, como coisas em estado livre e selvagem – são utilizados comoinstrumentos, como técnicas, como operadores, independentemente das inter-relaçõesconceituais próprias do sistema a que pertencem. Significa desembaraçar, desemaranhar osconceitos de seus sistemas de origem para criar um novo sistema, um sistema aberto” (MACHADO,1990, p. 16, grifo nosso).“Não se perguntará nunca o que um livro quer dizer, significado ou significante, não se buscaránada compreender num livro, perguntar-se-á com o que ele funciona, em conexão com o queele faz ou não passar intensidades, em multiplicidades ele se introduz e metamorfoseia a sua,com que corpos sem órgãos ele faz convergir o seu. Um livro existe apenas pelo fora e no fora”(DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 12).Poderíamos afirmar que os conceitos são desterritorializados em sua ambiência, com suas linhasde fuga, agenciamentos maquínicos, para reterritorializarem num novo plano de imanência, emnovos territórios correlativos.

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145Educação popular rizomática: educação das multiplicidades

nômade, um pensamento do de fora, a forma de exterioridadedo pensamento, não é de modo algum, uma outra imagem queoporia à imagem inspirado no aparelho do Estado. É, aocontrário, a força que destrói a imagem e as cópias, o modelo esuas reproduções, toda possibilidade de subordinar opensamento a um modelo do Verdadeiro, do Justo ou do Direito– o verdadeiro cartesiano, o justo kantiano, o direito hegeliano,etc. (DELEUZE; GUATTARI apud MACHADO, 1990, p. 14).

Evidencia-se, logo, consoante o que foi elencado por Machado,em citações do livro Mil Platôs: Capitalismo e Esquizofrenia, queDeleuze analisa a relação de espaços de pensamento opostosinconfundivelmente balizada por suas investigações noológicas: o espaçoracional, modelar, dogmático, transcendente, árvore-raiz; e o espaço queé multiplicidade, plural, ontológico, intempestivo, rizoma-canal.

Para empreender esta filosofia, Deleuze expressa como assertivabasilar a necessidade de partir de um caso. No plano de consistência ouda imanência, é requerido determinar-se na posição em que opensamento principiou, aproximar-se ao máximo do movimentomúltiplo de um caso singular. Daí, a filosofia de Deleuze ser concreta,pois concebe o conceito como a inesgotável variedade do concreto.Ela é concreta ao “assinalar os desenvolvimentos impessoais de umapotência local exigida a manifestar-se como pensamento pelos casosatravés dos quais a única voz do ser se faz ouvir na sua declinaçãomúltipla” (BADIOU, 1997, p. 25). Igualmente, a sua filosofia é sistemáticae, por conseguinte, abstrata. Sistemática, ao selecionar impulsos de umcaso-de-pensamento, pertinente a uma plasticidade local, congruentecom um impulso singular, no qual se desdobra num diferencial unímodode potência. Abstrata, por agenciar vitalmente as relações entre osconceitos, conforme determinação dos casos diversos, ou dasmultiplicidades concretas dos casos.

Desse modo, podemos dizer que Deleuze fundou ou sustentouum método? Em Diferença e Repetição, Deleuze urge em procedera uma análise de um Ser único e não categorizado. “As coisas sedesenrolam em toda a extensão de um Ser unívoco e não dividido”

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(DELEUZE, 1998, p. 54). Não se podem fracionar os entes para se chegarao Ser do ente; o pensamento não deve perscrutar o Ser por umenquadramento imutável que o leve a divisões consecutivas, umpartilhamento (aquinhoamento) das suas formas. O método deleuzeanorecusa as mediações categoriais – sensível e inteligível, idéia e simulacro.Não é possível pensar por categorias ou representações mediatizadas;o “método filosófico” não autoriza a divisão do Ser por distribuiçõesem tipos, grupos, classes: categoria.

Nenhuma aproximação do seu movimento por recortes formaispreliminares, por mais refinados que sejam. É preciso pensarjuntas a univocidade do Ser. Sem mediação dos gêneros e dasespécies, dos tipos ou dos emblemas, em suma: sem categorias,sem generalidades (BADIOU, 1997, p. 43-44).

A confutação dessa distribuição fundada no dualismo do Ser émais explícita ao realçar que o movimento do pensamento só pode semanifestar com uma única voz, “uma só voz do ser que se refere atodos os seus modos, os mais diversos, os mais variados, os maisdiferenciados” (DELEUZE, 1998, p. 53).

Assim sendo, o método deleuzeano forma-se como pensamentointuitivo, enquanto pensamento sem mediação. Um movimento intuitivoque se diferencia da intuição cartesiana, principalmente. A intuiçãodeleuziana constitui-se como método de insurreição nomádica dopensamento, a sua potência subversiva, provindo de um caso-de-pensamento, “um percurso atlético do pensamento”, uma multiplicidadeextensiva, que não é uma apreensão imediata de uma idéia clara e distinta,um “golpe de vista da alma”, como quer Descartes; mas é uma criaçãocomplexa.

Em consonância com o aludido, podemos afirmar que, distantedos envoltórios idealista, transcendental e contemplativo, a filosofiade Deleuze está voltada peremptoriamente à superfície e àprofundidade, isto é, com minudência aos “acontecimentos-micro”,com a vivacidade do cotidiano, corporificada com profusão e potênciade detalhes.

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147Educação popular rizomática: educação das multiplicidades

É possível pensar e fazer a Educação Popular vislumbrada peloRizoma?

A problemática da educação não foi a meta dos escritos deDeleuze. Mas, como pensar a educação, principalmente a EducaçãoPopular (EP), tendo como interlocutor a filosofia deleuzeana? Trata-sede uma prática que envolve o pensar, ou melhor, o pensar criativo, oque tira toda intenção de apresentar soluções prontas, ou de dizer oque é bom ou ruim para esta educação e, muito menos, conceituar oque é Educação Popular. O desafio é exercitar o pensamento que nosleve a um processo, a um desencadeamento de multiplicidades eacontecimentos que a Educação Popular hoje engendra.

Para que esse devir possa ser realizado, vamos analisar um dosconceitos de Deleuze, “o rizoma”, e como esse conceito pode noslevar a pensar a EP como instância que se caracteriza como açãodinâmica e criativa no seu cotidiano. Vamos desterritorializar o conceitode rizoma e reterritorializá-lo na educação. Este conceito será comoum agenciamento maquínico e seus diferentes tipos para analisar a EP,e não como propulsor de uma verdade que deve ser firmada; deveelucidar as suas multiplicidades por meio de conexões produzidas nassuas linhas de fuga.

O conceito de “rizoma” é apresentado por Deleuze e Guattarina introdução do livro Mil Platôs: Capitalismo e Esquizofrenia.Em todo o capítulo introdutório, os autores contrapõem a imagem derizoma à imagem-modelo da arbórea. O rizoma perverte:

A ordem da metáfora arbórea, tomando como imagem aqueletipo de caule radiciforme de alguns vegetais, formado por umamiríade de pequenas raízes emaranhadas em meio a pequenosbulbos armazenatícios, colocando em questão a relaçãointrínseca entre os vários saberes particulares, representados cadaum deles pelas inúmeras linhas fibrosas de um rizoma, que seentrelaçam e se engalfinham formando um conjunto complexono qual os elementos remetem necessariamente uns aos outrose mesmo para fora do próprio conjunto. Diferente da árvore, aimagem do rizoma não se presta nem a uma hierarquizaçãonem a ser tomada como paradigma, pois nunca há um rizoma,

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mas rizomas; na mesma medida em que o paradigma, fechado,paralisa o pensamento, o rizoma, sempre aberto, faz proliferarpensamento (GALLO, 2003, p. 93, grifo nosso).

Dessa maneira, o rizoma opera por redes de conexões e deheterogeneidade. Um ponto qualquer de um rizoma pode ser conectadoa outro ponto qualquer; o que é diferente da árvore-raiz, que fixadeterminado ponto a partir de uma unidade principal, pivô, funcionandocomo unidade hierárquica. Em um rizoma, o encadeamento defenômenos sociais é conectado nas relações políticas, econômicas,sociais, culturais, etc., que funciona no agenciamento maquínico. Umrizoma, como movimentos subterrâneos, não pára de fazer conexãocom o conjunto de organizações de poder, por exemplo, que aponta àsartes, às ciências, às lutas sociais e que concentra ações muito diversasnuma realidade heterogênea.

Também, a rede das multiplicidades atravessa todo fluxorizomático. As multiplicidades são essencialmente rizomáticas, pois nosrizomas existem apenas dimensões, grandezas, determinações que, aose expandirem, mudam de natureza. O crescimento dessas dimensões,nas multiplicidades, é provocado por um agenciamento; à medida quesuas conexões aumentam, a sua natureza se modifica. Estas conexõessão realizadas por linhas de fuga, desterritorialização que, por sua vez,transformam de natureza quando se conectam com outras. Hámudanças, modificações e transformações constantes, ou seja, hámultiplicidades intempestivas, devires. Num rizoma, existem somentelinhas com dimensões múltiplas, e nunca pontos, posições numaestrutura-arbórea hierárquica, unidade-pivô ou sistema fechado que, apartir do qual, ramificam suas folhas e galhos, tendo somente acomunicação com seu superior hierárquico; os canais de transmissãosão preestabelecidos.

É preciso ressaltar que as multiplicidades rizomáticas são a-significantes. Qualquer rizoma engloba “linhas de segmentaridadesegundo as quais ele é estratificado, territorializado, organizado,significado, atribuído, etc.” (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 18); mas

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também encerra linhas de fuga, de desterritorialização, que fazendosempre ruptura, alongando, variando, com muitas dimensões e commúltiplas linhas de entrada, ligando os movimentos desterritorializados.Por isso, o rizoma é uma cartografia; visto que o mapa é aberto, possibilitaa conexão com suas n dimensões, “desmontável, reversível, suscetível dereceber modificações constantemente. Um mapa tem múltiplas entradascontrariamente ao decalque que volta sempre ao mesmo” (DELEUZE;GUATTARI, 1995, p. 22).

Numa perspectiva rizomática, a EP pode ser concebida comocampo de saberes, um campo entremeado pelas multiplicidades.Multiplicidades marcadas pelas concepções de mundo, pela produçãodo conhecimento, do saber popular, das formas de aprender, dosinteresses, dos anseios, das percepções, dos desejos, das construçõescriativas e das necessidades dos sujeitos envolvidos e que subjazem emtodo seu processo. Pensar “rizomaticamente” a EP é tentar desnudaressas multiplicidades que fazem interconexões e que são produzidascotidianamente, que entram em movimento com linhas de fuga eintensidades, com velocidades muito diferentes, movimentos dedesterritorialização. Como em qualquer fenômeno social, na EP, temoslinhas de segmentaridade, de estratificação, que levam a sistemascentrados, de comunicação hierárquica e conexões preestabelecidas;mas, há linhas de fuga, de desterritorialização, com dimensões dísparescujas multiplicidades se transformam, mudando de natureza. Ela não éfeita de unidades fechadas, e sim de dimensões máximas, de caminhosmovediços, de todo tipo de devir. Nesse sentido, a EP rizomática éuma imbricação de ações educativas, de produção de conhecimento,de cultura, que se desenvolve nas mais diversas particularidades,envolvendo a sociedade, a educação, os saberes e as culturas, asaprendizagens populares, em ressonância com “princípios” eexperiências da prática social concreta, na dimensão de um sistemaaberto. Portanto, visa à transformação do existente a partir do próprioexistente, para daí gerar o novo.

A Educação Popular, vista como um rizoma, passa a ser umagenciamento. Agenciamento coletivo que se faz de acordo com o fluxo

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do cotidiano, da subjetividade/subjetivação, do concreto, do social,que ligados fazem multiplicidades ininterruptas sobre platôs.5 Dessamaneira, é uma máquina de resistência a todo sistema centrado.Define-se como sistema a-centrado, cadeias de autômatos finitos, nasquais as relações de saberes, de experiências, de conhecimentos, depráticas educativas, na dimensão popular ou no “plano de imanênciapopular”, se conectam a um ponto qualquer com outro pontoqualquer, “nos quais os indivíduos são todos intercambiáveis, demaneira que as operações locais se coordenam e o resultado finalglobal se sincroniza independente de uma instância central” (DELEUZE;GUATTARI, 1995, p. 27).

Estando de acordo com esta idéia, a Educação Popular está naesfera da micropolítica, que acontece nas ações cotidianas, construindoagenciamentos maquínicos de desejo. Não busca a totalidade, não almejamodelos, soluções acabadas e dogmáticas; o seu objetivo é fazer rizoma,conexões, que procedem por variações, expansões de saberes, deconhecimentos e de expressões; um exercício de produção demultiplicidades de saberes. Fazer EP é fazer multiplicidades, é criar.Realizar conexões e novas conexões, levando a surgir novasmultiplicidades, novas experiências, que, por conseguinte, potencializame promovem uma educação que busca exercer ações socioculturaisramificadas nas micro-relações, agindo para consolidar a fecundidadedos atos cotidianos.

A perspectiva rizomática para EP é pertinente, na medida emque impulsiona intensidades, resguarda, pulveriza e encadeia asdiferenças de saberes, desenvolvendo entre si a construção dasmulticompreensões. É feita numa região contínua de vibrações eintensidades que possibilita a conexão com n dimensões dos camposdos saberes, como mapa com suas múltiplas entradas e saídas. Está

5 Para Deleuze e Guattari (1995, p. 33), “um platô está sempre no meio, nem início nem fim.Um rizoma é feito de platôs”. Eles designam platô “como algo muito especial: uma regiãocontínua de intensidades, vibrando sobre ela mesma, e que se desenvolve evitando toda orientaçãosobre um ponto culminante ou em direção a uma finalidade exterior”. É o campo das forças desubjetivação que nas suas intensidades consideram os múltiplos, pois não existe instânciadeterminante, causa primeira, mas redes e traços de intensidades que vão fazendo contigüidadessubjetivas.

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voltada então à superfície e à profundidade, isto é, com a preocupação– atenção – aos acontecimentos-micro, com a vivacidade do cotidiano,“corporificada com profusão e potência de detalhes”.

Uma não-conclusão

A EP, analisada rizomaticamente, é desferir a devires improváveis,a uma lógica dos múltiplos singulares dos n saberes, sensações, valores,etc. Será uma EP ontológica? Certamente uma EP da ação, do ato,contra toda representação instituída, cujos sujeitos elaboram, produzemrepresentações de si mesmos sobre platôs.

Pensar EP dessa forma é fazer ruptura, tramar a nossa própriaexistência, é aprender/reaprender, é desafiar. Por isso, este exíguo textonão pode concluir, acabar, pois

um rizoma não começa nem conclui, ele se encontra sempreno meio, entre as coisas, inter-ser. O rizoma é unicamentealiança. Buscar um começo implica uma falsa concepção daviagem e do movimento. Kleist, Lens ou Büchner têm outramaneira de viajar e também de se mover, partir do meio, pelomeio, entrar e sair, não começar nem terminar. O meio é olugar onde as coisas adquirem velocidade. Entre as coisas nãodesigna uma correlação localizável que vai de uma para outrae reciprocamente, mas uma direção perpendicular, ummovimento transversal que as carrega uma e outra, riachosem início nem fim, que rói suas duas margens e adquirevelocidade no meio (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 37).

Acredito que fazer EP rizomática é um dos nossos grandesdesafios hoje. Sendo assim, conclamo a todos que:

Façam rizoma e não raiz, nunca plantem! Não semeiem, piquem!Não sejam nem uno nem múltiplo, sejam multiplicidades! Façama linha e nunca o ponto! A velocidade transforma o ponto emlinha! Sejam rápidos, mesmo parados! Linha de chance, jogo decintura, linha de fuga [...]. Tenham idéias curtas. Façam mapas,nunca fotos nem desenhos. Sejam a Pantera cor-de-rosa e quevossos amores sejam como a vespa e a orquídea, o gato e obabuíno (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 36).

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Wilson da Silva Santos152

RHIZOME POPULAR EDUCATION: EDUCATION OFMULTIPLICITIES

Abstract: The concept of rhizome leads us to think of popular education asan action of n knowledges, sensations and values, whose persons mix andproduce representations of themselves over plateaus. The reterritorializationof the concept of rhizome in popular education works as machine-agent andas pulsing power in order to elucidate it in its multiplicites through conectionsproduced in several peculiarities, according to concret social behaviorexperiences, within scape lines dimension.

Key words: Popular education. Rhizome. Multiplicites.

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Práxis Educacional Vitória da Conquista n. 2 p. 153-170 2006

CRIANÇAS PEQUENAS EM VITÓRIA DACONQUISTA: UMA PROPOSTA DE TRABALHO

FORA DA EDUCAÇÃO INFANTIL

Ana Lucia Castilhano

*

Resumo: Este texto apresenta minha pesquisa de doutorado, em andamento,a qual trata de crianças de zero a quatro anos que estão fora da EducaçãoInfantil em um bairro pobre do município de Vitória da Conquista, BA. Trata-se de um trabalho que parte do interior da Educação Infantil, como campo deestudos da demanda não atendida por vagas na rede de atendimento públicaà criança pequena, procurando chegar à infância vivida pela criança pobreque não é alcançada pela educação. Até o momento, foi realizado umlevantamento da demanda por creches e pré-escolas na cidade de Vitória daConquista e houve a entrada em campo para observação da vida diária dascrianças em suas casas, abordando como vivem e que atividades realizam emseu ambiente. Este conhecimento privilegiará o contato para conhecer aspráticas das crianças no seu dia-a-dia, como brincadeiras e atividades em geral,

* Doutoranda em Educação pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Professora daUniversidade Estadual do Sudoeste da Bahia (Uesb). E-mail: [email protected].

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buscando o registro da infância da criança pequena fora da instituição deEducação Infantil.

Palavras-chave: Criança. Infância. Educação Infantil. Demanda.Introdução

Minha pesquisa de doutorado, em andamento, é sobre as criançasde zero a quatro anos que estão fora da Educação Infantil em um bairrodo município de Vitória da Conquista, BA. Trata-se de um trabalhoque parte do interior da Educação Infantil como campo de estudos,diante da problemática da demanda não atendida por vagas na rede deatendimento pública à criança pequena, procurando chegar à infânciavivida pela criança pobre que não é alcançada pela educação. Até omomento foi realizado um levantamento sobre a demanda por crechese pré-escolas na cidade de Vitória da Conquista. A etapa seguinte seráum estudo etnográfico em um bairro para conhecer uma parcela dapopulação de crianças que não é alcançada pelas políticas públicas epelas instituições educacionais, com descrição e análise das criançaspobres de zero a quatro anos que não freqüentam a Educação Infantil,abordando como vivem e que atividades realizam em seu ambiente.Este conhecimento privilegiará o contato para conhecer as práticas dascrianças no seu dia-a-dia, como brincadeiras e atividades em geral,buscando o registro da infância da criança pequena fora da instituiçãode Educação Infantil.

Em geral, a produção científica sobre crianças menores de seisanos se concentra em trabalhos sobre Educação Infantil, estando,portanto, em evidência, uma criança institucionalizada, comcaracterísticas que refletem a política para Educação Infantil em vigorno país. A produção exterior a este campo de pesquisa se concentra napsicologia e, recentemente, na sociologia da infância. A proposta derevisão bibliográfica para esta pesquisa partiu dos textos de educaçãoda criança de zero a seis anos. Conforme dito anteriormente, daí foidetectada a lacuna de conhecimento e o início da construção do campode pesquisa.

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A apresentação da temática parte da questão da demanda nãoatendida por Educação Infantil, nas instituições municipais de todo opaís, o que levanta uma série de preocupações políticas em termos dasações e programas voltados à criança pequena, passando por problemasde orçamento e organização dos setores governamentais (BARRETO,2003; GUIMARÃES; PINTO, 2001; MONTEIRO, 2004; CAMPOS, 1999; PASSETTI,2000, ROSSETTI-FERREIRA, 2002).

Uma outra preocupação se refere à demanda propriamente dita.A este respeito há estudos recentes que abordam tanto a discussãopolítica, incluindo a importância de levantar dados sobre as criançasque estão fora do contexto das creches e pré-escolas no país (KAPPEL;CARVALHO; KRAMER, 2001), como o lado das famílias (MOTA;ALBUQUERQUE, 2002).

O diálogo com a produção na área da Educação Infantil se baseianos trabalhos discutidos na Associação Nacional de Pós-Graduação ePesquisa em Educação (Anped), por se tratar de um veículo de produçãoe síntese do pensamento educacional brasileiro há 28 anos. Do universode trabalhos do GT 7 da Anped, apenas 3,5% tratam da criança pequenafora do espaço da instituição educacional. Destes, 1,5% tratamespecificamente da demanda para a Educação Infantil (FULLGRAF, 2001;2002; MOTA; ALBUQUERQUE, 2002). Como discussão dos resultadosencontrados, pode-se colocar o tema da demanda como recente noGT 7, ainda que, nos textos sobre políticas públicas, os autores façammenção ao problema. Em relação ao conceito de criança fora da escola,os textos selecionados confirmam a utilização da escola como paradigmapara compreensão das crianças e dos espaços extra-escolares (comoshopping center ou brinquedoteca). Este, assim como o tema da demanda,é assunto que deve ser discutido de forma mais sistematizada, inclusivena Anped, que é um espaço fundamental para entendimento da trajetóriae de temas pertinentes à educação no Brasil.

Objetivos

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Esta pesquisa, então, toma como ponto de partida a questão dademanda por vagas na Educação Infantil, mas se estende para o campoda infância que não foi alcançada pelas políticas públicas. Esta é aespecificidade pretendida do trabalho. Procurar ir além da questão dademanda (ela própria um objeto de pesquisa pouco explorado), parafalar de uma possibilidade de infância como muitas que há neste país.Evidentemente, a intenção não é buscar uma generalização, cabendo,em vez disso, um preparo e uma discussão que é metodológica econceitual.

Neste texto, pretendo mostrar um panorama geral da pesquisano seu estado atual; pontuar os principais conceitos relacionados aoobjeto de estudo em questão; e, finalmente, apresentar algunsdirecionamentos metodológicos já organizados.

Em razão da natureza do objeto de pesquisa (crianças residentesem um bairro periférico em Vitória da Conquista), um dos primeirosprocedimentos para a concretização do projeto foi um levantamentobibliográfico sobre pobreza. O objetivo era operacionalizar osconceitos e localizar a questão da pobreza em meio à discussão dainfância e das políticas publicas em Educação Infantil. Estelevantamento bibliográfico possibilitou uma compreensão significativadas variáveis econômicas e políticas implicadas na questão da infânciae do atendimento à criança pequena. No entanto, apesar de enveredarpor diversos estudos que abordam a questão do conceito e açõessociais e políticas para a constituição e erradicação da pobreza(ALENCAR, 2004; HAHNER, 1993; MAGALHÃES, 1994; MONTEIRO, 2004;PENN, 2002), a opção foi não categorizar, a fim de “limpar o terreno”,na tentativa de chegar às pessoas sem rótulos anteriores. Joan Scott(1998) propõe uma recusa ao essencialismo como forma dedesnaturalizar as categorias e possibilitar o desvendar de seu processode construção considerado como histórico sempre. Em suaconcepção, as categorias são mutáveis, assim como as possibilidadesde pensar as pessoas. No caso das crianças e suas famílias, procura-seabrir espaço para compreender a sua diversidade em meio à

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normatividade social. Sobre a questão da categorização da criançapequena e de sua família neste estudo, procuram-se formas deprescindir do conceito de pobreza na sua abordagem, mesmo queseja necessário rever esta decisão. Acreditamos que isso facilite tantoa entrada em campo, como a possibilidade de despir, no pesquisador,alguns conceitos prévios sobre o tipo de infância que as crianças levamnos bairros periféricos.

Marisa Peirano (2002, p. 18), falando em favor da etnografia,alerta para o fato de que “é importante, então, reter a idéia de que asobservações são realizadas não só para descrever o curioso, o exótico,ou o diferente por si mesmos (pelo natural interesse que despertam),mas, também e principalmente, para universalizá-los”.

Então, não se trata de procurar o que há de diferente na criançaque está fora da Educação Infantil, assim como nas práticas de suasfamílias. Trata-se de registrar o seu modo de vida, sua visão da educaçãoe do mundo. Como exemplo deste tipo de proposta, podemos citar otrabalho coordenado por José de Souza Martins (1991), O Massacredos Inocentes. Este livro reuniu sete estudos sobre a vida e a situaçãodas crianças consideradas “sem infância” no Brasil. Os relatos dospesquisadores apresentam visões das crianças sobre a situação de suasfamílias, de seu futuro, de sua relação com a escola, em um contexto devida onde, muitas vezes, o trabalho infantil se sobrepõe às necessidadesde ir para a escola.

Consideramos como principal pressuposto que orienta arealização desta pesquisa a idéia de infância como uma categoriaconstruída historicamente, e sobre a qual se “construiu um conjuntode representações sociais para a qual se estruturam dispositivos desocialização e controle que a instituíram como categoria social própria”(SARMENTO; PINTO, 1997).

Kuhlmann Júnior e Fernandes (2004, p. 17) compreendem ainfância como “a concepção ou a representação que os adultos fazemsobre o período inicial de vida, ou como o próprio período vividopela criança, o sujeito real que vive essa fase da vida”. Então, ao

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falar da história da infância, está-se falando da história das relaçõesentre crianças e entre crianças e adultos, uma história de adultosque se relaciona com essa classe de idade (crianças). Trata-se deuma história que não é narrada na primeira pessoa, mas por umconceito arbitrário do que é infância, dentro de várias possibilidades,contextos e variáveis. Assim,

A infância é um discurso histórico cuja significação estáconsignada ao seu contexto e às variáveis de contexto que odefinem. Semelhantes contextos são de natureza econômica,social, política, cultural, demográfica, pedagógica, etc. Éindispensável discernir quais dessas variáveis são de fato atuantesem cada conjuntura e são, conseqüentemente, pertinentes nadelimitação do território em causa (KUHLMANN JR.; FERNANDES,2004, p. 29).

Por esta e por razões de aproximação metodológica com aantropologia, nos amparamos na discussão da sociologia da infância afim de dialogar sobre que criança e que infância estão em jogo nestaproposta. Na definição de Manuel Sarmento (2005, p. 363), a sociologiada infância:

Propõe-se a interrogar a sociedade a partir de um ponto devista que toma as crianças como objeto de investigaçãosociológica por direito próprio, fazendo acrescer oconhecimento não apenas sobre a infância, mas sobre oconjunto da sociedade globalmente considerada.

Sendo assim, o principal esforço teórico da sociologia da infânciaé organizar uma mudança de perspectiva, de paradigma, uma vez queas interpretações da ciência moderna predominaram por tematizar ascrianças como em estado de transitoriedade, de dependência. A propostada sociologia da infância é, então, considerar a alteridade da infânciacomo elemento da realidade, partindo de uma análise das crianças comoatores sociais, sem os limites interpretativos da ciência (SARMENTO, 2005).Estes limites certamente ultrapassam a questão metodológica (bastantediscutida pelos pesquisadores da infância na atualidade), mais dramática

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ainda no caso das pesquisas com crianças pequenas, por conta danecessidade de encontrar formas de comunicação para além dalinguagem falada. Metodologias que se propõem a deixar a criança“falar” por si, dar a sua contribuição, a sua visão de mundo, sãopropostas recentes e ainda em construção. São exemplos os trabalhosde William Corsaro (2005), Cléopâtre Montandon (2005), PriscillaAlderson (2005). No Brasil, podem-se citar os trabalhos de PatríciaDias Prado (1998), Márcia Gobbi (2002), Jucirema Quinteiro (2002),dentre outros.

Metodologia

Aos poucos, os estudos sobre a criança atingem metas conceituaise necessidades metodológicas de dar conta dos múltiplos contextosnos quais ela se insere. Com a alteração, nas duas últimas décadas, daabordagem do objeto de pesquisa criança, indivíduo que possui umadeterminada infância, o campo de estudos no Brasil tem se organizadopara tentar traçar rumos conforme a diversidade de temas, de tipos devida das crianças brasileiras, algumas com condições de vida muitoaquém do aceitável. Um problema identificado no estudo da infânciaainda é a dificuldade dos pesquisadores de trabalhar em uma perspectivateórica que dê conta de seus objetos (QUINTEIRO, 2002).

A problemática para o trabalho com a criança pequena ou paracompreender e registrar a visão de mundo das crianças certamente nãose resume à questão metodológica. Há uma questão de fundo,epistemológica, relativa ao próprio pensamento iluminista que temdeterminado, ao longo de praticamente quatro séculos, que idéias sãolegítimas ou não; que tipo de linguagem e pensamento pode serconsiderado aceitável, compreensível ou não. As crianças e outrascategorias “marginais” (do ponto de vista da racionalidade) foramcriadas e mantidas no rastro deste processo de composição de umasociedade que criou instituições específicas para normatizar a linguageme o pensamento das pessoas (FOUCAULT, 1998). Com o Iluminismo, umtipo de racionalidade foi eleito em detrimento de outras possibilidades.

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Somente esta, gerada pelo controle do corpo e pela disciplina dopensamento, é considerada legítima. Então, uma vez eleita estaracionalidade como ideal, a modernidade organizou uma série demecanismos para incluir todos nesta lógica, as crianças em especial,porque se descobriu a infância como fase de transição para a vida adulta.Entra aí a escola como instituição que tem em seu alicerce a idéia daformação de um adulto, um determinado tipo de adulto, o “normal”(WARDE, 1997). A escola é discutida por muitos autores como ainstituição de base deste processo de constituição de um pensamentoracional, iluminista.

Carlota Boto (2002, p. 14) organizou um texto cujo objetivo foi“procurar vestígios da construção da categoria aluno como a grandereferência de compreensão da criança construída pela modernidade”.Neste trabalho, a autora apresenta uma reflexão sobre a idéia de civilidade,o impacto das letras (leitura) e as regras da escola como pontosfundamentais na formação das categorias infância, criança e aluno.

Colin Heywood (2004) considera a infância e a criança comoconstructos sociais enganosamente simples. Para o autor, há um processode influência mútua entre o novo paradigma das ciências sociais e ahistoriografia da infância (encabeçada por Ariès) que é positivo. Estediálogo pode desenvolver possibilidades novas no estudo da infância demodo a ultrapassar os obstáculos encontrados nas pesquisas com crianças.Tais obstáculos viriam de uma concepção de criança como imatura eirracional, em um mundo que é absolutamente contrário a isso.

Claude Javeau (2005, p. 379) propõe, para o incremento doestudo da infância, a definição de “campos semânticos” nas ciênciassociais, “capazes de alimentar e aceitar a emergência de objetos depesquisa específicos”. Neste processo, os apuramentos conceituais eas provas empíricas (de qualquer natureza), alimentariam o percursoheurístico do campo de estudos da infância. Mariza Peirano (2002, p.22) afirma que “a antropologia não se reproduz como ciência normalde paradigmas estabelecidos, mas por uma determinada maneira devincular teoria e pesquisa, de modo a favorecer novas descobertas”.Neste sentido, o contato do pesquisador com seu campo pode se

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mostrar como um encontro de diferenças e semelhanças, em que“nossas diferenças são constituídas às avessas”. Para a autora, trata-se de perguntar qual a nossa especificidade, em que somos peculiarese o que nos separa ou distingue.

Quinteiro (2002, p. 26), que considera os métodos etnográficos“particularmente úteis para o estudo da infância”, chama a atençãopara a necessidade de os pesquisadores problematizarem os dados edescreverem os elementos constitutivos do processo de “recolher” avoz da criança. Da mesma forma, a discussão dos dados sobre a criança,ainda mais diante das mudanças anunciadas na metodologia, tem sidoalgo cada vez mais complicado, em razão da dificuldade teórica para asua explicação. A psicologia já não parece adequada para transitar pormuitos assuntos referentes à criança, ainda mais quando a proposta éabordar as múltiplas crianças e infâncias possíveis.1

Então, trata-se de estudar a criança em outro ambiente que nãoa escola, na verdade, em seu ambiente de vida, anterior à instituiçãonormativa educacional. Ainda que se possa atribuir à Educação Infantila função de inserir a criança em um mundo de convivência com outrascrianças, de aprendizado sobre sua própria vida, com investimento daspolíticas públicas para a infância em respeito aos seus direitos (KRAMER,2003), há um aspecto de normalização sobre o que significa ser criança,sobre a idéia de uma infância comum, que contradiz o que existe narealidade: crianças com múltiplas possibilidades e arranjos econômicose familiares, com formas inusitadas (para quem não as conhece) demobilidade geográfica, expectativas de vida que podem diferir daquiloque a escola prega como ideal. De qualquer maneira, estaremos falandode um tipo de criança brasileira, em um contexto mais amplo deconstrução do objeto infância pelo esforço dos pesquisadores parafalar dele em suas pesquisas.

Conforme já foi dito anteriormente, esta é uma aproximaçãocom a proposta da sociologia da infância que ganha ares no Brasil jácom resultados publicados na Anped e em periódicos nacionais. Há1 A respeito do vínculo histórico da psicologia com a educação e a criança aprendiz na escola,ver o texto de Mirian Jorge Warde (1997).

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trabalhos que relatam, dentro da escola, a opinião das crianças sobre asua instituição (MÜLLER, 2003; REIS, 2002; OLIVEIRA, 2001) e que entramno campo dos trabalhos que procuram levantar as “vozes” das crianças.Há também pesquisas que relatam lugares freqüentados por crianças eexpõe os modos de brincar, assim como a organização que lhe éoferecida nesses espaços (shopping center, brinquedotecas são osprincipais). Nestes casos, embora não haja um contato estreito entre opesquisador e a criança, a observação pode trazer um conteúdo darealidade infantil que pode ser útil para compreender um pouco docotidiano da criança em meio a um mundo governado por adultos.

Discussão

A pesquisa possui duas fases. A primeira delas, praticamenteconcluída, compreende o levantamento dos dados das crianças pequenasde Vitória da Conquista e das creches públicas (municipais econveniadas) que atendem a uma parcela delas. Diante da falta deinformações sobre a questão é que se torna necessário nos deter nasituação de demanda dos bairros que possuem creche, a fim decompreender um pouco a relação desta instituição com as famílias,com a política de atendimento à criança pequena.

O Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep)divulga em seu site na Internet o documento intitulado “Desafios doPlano Nacional de Educação”, no qual considera a Educação Infantilcomo um dos maiores desafios do Plano Nacional de Educação (PNE),uma vez que propõe elevar de 756 mil, para 4,3 milhões, o número decrianças atendidas em creches no país até a ano de 2011. Na pré-escola,o atendimento, que atualmente ultrapassa 3,9 milhões de crianças, deveráchegar a 7,2 milhões.

A respeito das políticas públicas para a criança pequena, em geral,o quadro apontado é o mesmo: a evolução da legislação (Constituiçãode 1988, LDB de 1996, principalmente) está em contraponto com adificuldade de operacionalização dos programas e ações voltados para

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esta faixa etária, seja por questões orçamentárias, seja por divisão deobjetivos entre os setores governamentais. Barreto (2003, p. 59) chamaa atenção para a quase ausência da criança de zero a seis anos na políticaeducacional do governo federal. Tal ausência é percebida, por exemplo,“no Plano Plurianual 2000-2003, em que a educação infantil nãoapresenta sequer o status de programa, ao contrário dos outros níveisde ensino e, até mesmo, das modalidades de ensino”.

Vitória da Conquista se localiza no Centro-Sul baiano, possuiuma população de 262.494 pessoas no censo de 2001, com estimativapara o ano de 2004 de 281.684 pessoas (dados do IBGE). A renda percapita média do município era de R$ 204, 90 em 2000, com umaproporção de pobres de 41,8% (ATLAS..., 2005). O acesso da populaçãoaos serviços básicos cresceu nos últimos 10 anos, tendo a porcentagemde domicílios urbanos com água encanada aumentado de 61,3% em1991, para 74,7% em 2000. A de energia elétrica de 87,3% em 1991,para 93,7 em 2000; e de coleta de lixo de 81,0% para 94,4% no mesmoperíodo.

Os especialistas no estudo e discussão da pobreza concordamque não é apenas o acesso da criança à alimentação que determina ouafeta o seu desenvolvimento, mas, certamente, as condições de higienee saneamento. Esta preocupação está presente nos textos que tratamdo assunto. De acordo com Monteiro (2004, p. 88), o risco dedesnutrição no país está ligado também à cobertura de serviços públicosde saúde, educação e saneamento, além da renda. Daí, a desvantagemhistórica das regiões Norte e Nordeste.

O Índice de Desenvolvimento Humano Municipal (IDH-M)2

de Vitória da Conquista em 2000 era de 0,708. De acordo com avaliaçãodo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), omunicípio é considerado como região de médio desenvolvimento (IDHentre 0,5 e 0,8), ocupando um lugar médio quando em comparaçãocom os demais municípios do país (51% deles em melhor posição,contra 48% em pior ou igual situação). Comparando Vitória da2 Publicado em 1998, o índice é organizado segundo as dimensões de renda, educação, infância,habitação e longevidade da população. Disponível em: <http://www.undp.org.br/HDR/Atlas.htm>.

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Conquista com outros municípios do Estado da Bahia, sua posição é a18ª, sendo considerados, entre os de melhor situação, 4,1% do total demunicípios, contra 95,5% em situação igual ou pior.

A população de zero a quatro anos no município de Vitória daConquista em 2001 era de 25.195 crianças, das quais 20.304 com idadesde zero a três anos e 4.891 com quatro anos. Dados do Inep (2004)informam que foram efetuadas 5.749 matrículas no ensino pré-escolar:244 na rede pública estadual; 1.382 na rede pública municipal, e a grandemaioria no ensino privado, com 4.123 matrículas. As 5.749 matrículasno ensino pré-escolar se distribuem em duas instituições estaduais, 32municipais e 104 pré-escolas do ensino privado.

Pode-se chegar facilmente ao cálculo de 19.446 crianças de zeroa quatro anos que não foram matriculadas em instituições de EducaçãoInfantil, sejam elas creches ou pré-escolas. Em porcentagens, teremos(de acordo com dados do IBGE de 2003): 40% das crianças de zero aseis anos que são atendidas pela Educação Infantil têm 6 anos, e somente15% estão na faixa de zero a três anos. Assim, este é um dos motivospara a escolha da faixa etária de zero a quatro anos como populaçãopara este projeto de pesquisa, uma vez que são as crianças que, deacordo com os dados, estão fora da instituição educacional.

De acordo com informação da Secretaria de DesenvolvimentoSocial de Vitória da Conquista, as creches municipais e conveniadasatendem hoje a 2.558 crianças,3 em um total de nove creches conveniadase nove creches municipais. Destas creches, somente uma prestaatendimento a crianças menores de dois anos, contando com umberçário com cerca de quinze crianças de um ano. Então, pode-se dizerque praticamente todo o atendimento público no município de Vitóriada Conquista é voltado para crianças na faixa de dois a seis anos. Aidade limite também varia de acordo com a creche, e, em geral, deacordo com as relações desta com a escola próxima, que recebe a criança,muitas vezes ainda na pré-escola.

3 Dados informados no mês de setembro de 2005.

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Em Vitória da Conquista, as creches estão sob a jurisdição daSecretaria de Desenvolvimento Social. Como há pré-escolas quefuncionam em escolas do Ensino Fundamental, e outras que funcionamem creches, há também uma clara divisão de metas, objetivos emetodologias. Esta situação é comum em todo o país, e não atende àLei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), que determinao uso do nome creche para as instituições que recebem crianças e zeroa três anos e pré-escola para aquelas de quatro a seis anos, ambas comoparte da chamada Educação Infantil. Este fato gera dificuldades pararealizar uma análise mais detalhada uma vez que não se associa o tipode educação, de trabalho realizado, à idade da criança. (KAPPEL;CARVALHO; KRAMER, 2001). Da mesma forma, o que em um determinadotexto pode ser referente à creche, em outro pode ser atribuído à pré-escola ou mesmo ao Ensino Fundamental, uma vez que é comummatricular crianças de cinco anos neste nível de ensino. Guimarães ePinto (2001, p. 96) também levantam a questão da nomenclatura esugerem a sua regularização. Segundo eles, “não há porque se manter ouso de expressões para identificar, de forma diferenciada, o que estádefinido na legislação”.

Em um estudo na cidade de Vitória da Conquista sobre aspolíticas públicas para a Educação Infantil, Brandão (2004) demonstrouque não há dados sobre a demanda de vagas para esta etapa da EducaçãoBásica, assim como sobre o número de crianças em idade de zero acinco anos que estão fora das instituições de atendimento à criançapequena. No entanto, este não é um problema específico destaadministração ou da região. Os dados a respeito dessas crianças sãoobscuros de um canto a outro do país, uma vez que as Secretarias deEducação não procuram identificar a demanda, ou atribuem esta funçãoao governo estadual, federal, entre outras instâncias. Guimarães e Pinto(2001) afirmam que, justamente nas regiões mais pobres do país, aresponsabilização dos municípios pelo Ensino Fundamental avançou.Segundo os autores, a Constituição de 1988 não torna os municípiosos únicos responsáveis pelo atendimento ao Ensino Fundamental e à

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Educação Infantil. O Art. 211 fala em colaboração entre a União, osEstados e os Municípios para garantir o direito à educação.

Quanto à situação da demanda, nem todas as creches mantêmlistas de espera, e muitas desconhecem a demanda, além deconstatarem que “é grande”. A principal razão declarada paradesistirem da lista de espera é a dificuldade para lidar com a frustraçãodas comunidades e da própria creche.4 Algumas diretoras mantêmsuas listas guardadas ou tentam segui-las na atribuição de vagas quandohá alguma criança desistente.

Há variação de idades no fluxo da demanda por bairro. Emalguns, a maior demanda é para crianças de quatro anos. Em outros, ademanda significativa é para crianças de dois anos e assim por diante.Seria interessante um levantamento das razões para estas diferenças,que podem variar, desde a dificuldade de encontrar quem fique emcasa com crianças de quatro anos,5 até mesmo as necessidades das mãesde filhos de dois anos de retornarem ao trabalho depois da maternidade.Este estudo não será feito nesta proposta de pesquisa.

As informações sobre demanda foram valiosas na composiçãode um quadro para definir o bairro a ser estudado no trabalhoetnográfico. A próxima etapa será a entrada em campo com as criançasde um bairro para o levantamento das informações sobre sua infância.

SMALL CHILDREN IN VITÓRIA DA CONQUISTA:WORKING OUT OF THE CHILD SCHOOL

Abstract: This paper presents discussing about infants and children that arenot inside child education institutions. These children belong to a poor placein Vitória da Conquista-BA. This is a discuss that comes from inside of childeducation as a study field about non attending demand for public assist, untilshows a kind of infancy living by poor children which are not assisted bygovernment programs. The methodology used includes a studying aboutdemand for child care and child education. Includes also notes of a

4 Dados levantados em entrevistas com diretoras de creches municipais e conveniadas.5 Segundo uma das diretoras, esta seria a principal razão para a demanda por vagas para criançasde quatro anos (sua creche possui quatro turmas desta idade): a dificuldade das avós de “daremconta” de crianças mais velhas, que já saem sozinhas e buscam “novidades” na vizinhança, seafastando de casa.

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methodology of research field observing children daily lives in their homesshowing how they live and what activities they can do in their environment.This kind of knowledge intents to favor the contact to know about the practiceof children in their lives, like playing games, searching for some mark of smallchildren infancy that is out of child education.

Key Words: Child. Infancy. Child Education. Demand.

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EDUCAÇÃO DO CAMPO: ALFABETIZAÇÃO EESCOLARIZAÇÃO DE PESSOAS JOVENS E ADULTAS

ASSENTADAS NO SUDOESTE DA BAHIA

Silvia Regina Marques Jardim *Sidiney Alves Costa **

Resumo: O trabalho avalia resultados parciais da implantação do ProgramaNacional de Educação na Reforma Agrária (Pronera) por meio do projeto“Alfabetização e Escolarização de Pessoas Jovens e Adultas em áreas deAssentamento da Região Sudoeste da Bahia”. Dos trabalhadores ruraisassentados na Região Sudoeste da Bahia, 1.080 estão sendo alfabetizados e1.125 estão cursando o 1º Segmento do Ensino Fundamental (de 1ª a 4ª série).A metodologia de acompanhamento e avaliação do projeto contempla visitasàs áreas, conversas com educadores, educandos e coordenadores locais ereuniões pedagógicas com líderes de movimentos sociais que participam doPrograma, professores capacitadores e coordenações pedagógicas. O Proneraé um programa importante para a Educação do Campo, já que vemcontribuindo para erradicação do analfabetismo em áreas de assentamento eelevação da escolaridade de jovens e adultos assentados. Este projeto ampliaas práticas de cidadania e atende ao direito constitucional desses jovens eadultos à educação.

Palavras-chave: Educação de Jovens e Adultos. Educação do Campo. Pronera.

* Mestre em Educação pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Professora Assistenteda Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (Uesb). E-mail: [email protected].**Doutorando em Educação pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).ProfessorAssistente da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (Uesb). E-mail:[email protected].

Práxis Educacional Vitória da Conquista n. 2 p. 171-183 2006

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Introdução

Este trabalho faz uma análise da implantação do ProgramaNacional de Educação na Reforma Agrária (Pronera) na região Sudoesteda Bahia e tem como foco o projeto “Reforma Agrária e Educação:Alfabetização e Escolarização de Jovens e Adultos Assentados noSudoeste da Bahia”, que está em execução desde fevereiro de 2005 e seestende até janeiro de 2006, com objetivo central de alfabetizar 1.165assentados(as) e promover a escolarização (1ª a 4ª série do EnsinoFundamental) de 1.125 educandos(as) dessa mesma região.

O Pronera atende a projetos de educação de jovens e adultosdas áreas de assentamentos de reforma agrária e é desenvolvido noâmbito do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), sobresponsabilidade do Instituto Nacional de Colonização e ReformaAgrária (Incra), por meio de parceria entre o Governo Federal, asinstituições de ensino superior e os movimentos sociais ligados à lutapela reforma agrária.

Situa-se numa linha de continuidade do trabalho de extensãodesenvolvido pela Uesb e visa orientar práticas pedagógicas e capacitareducadores(as) para o Ensino Fundamental em áreas da reforma agráriado Sudoeste da Bahia. A parceria para a realização desse projeto envolvea Uesb, como entidade executora, o Incra, entidade asseguradora, e osmovimentos sociais: Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra(MST); Federação dos Trabalhadores da Agricultura (Fetag) eMovimento dos Trabalhadores Desempregados (MTD).

A análise, portanto, está voltada para o processo de alfabetizaçãoe escolarização de pessoas jovens e adultas assentadas nessa região eatendidas pelo projeto, buscando refletir sobre os resultados dodesenvolvimento do projeto com base na avaliação das ações executadasaté o momento.

A motivação para a execução do projeto em estudo se encontrana necessidade de oferecer, de forma ampla e com qualidade, Educaçãode Jovens e Adultos (EJA), observando as diretrizes do Pronera, a Lei

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de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), as DiretrizesOperacionais para a Educação Básica nas Escolas do Campo e ascontribuições educacionais dos movimentos sociais.

A relevância política da atuação do projeto pode ser evidenciadade muitas maneiras, mas basta mencionar que a região Nordeste tem amaior taxa de analfabetismo do país, sendo a população rural a queapresenta mais dificuldades de acesso à educação, segundo os dados daPesquisa Nacional por Amostras Domiciliares (Pnads), apontados noMapa do Analfabetismo no Brasil (INEP, 2003). A zona rural nordestinaregistrava índice de analfabetismo absoluto de 42,6% – considera-seanalfabeto absoluto o indivíduo que não sabe ler e escrever um bilhetesimples –, o que demonstra a importância política e pedagógica emamenizar ou, até mesmo, zerar esse número, visto que, historicamente,o funcionamento da educação no campo apresenta quadro deprecariedade em razão de fatores diversos, como formação profissionale infra-estrutura inadequadas, por exemplo.

Outras motivações podem ser apontadas, tais como: estimularpesquisas que promovam a ampliação e a socialização do conhecimentosobre o campo; integrar universidade e assentamentos em teorias epráticas que contemplem o desenvolvimento sustentável do campo;pesquisar e/ou adequar material didático-pedagógico para odesenvolvimento do programa; estimular, nos assentamentos, umacultura de que a educação é direito de todos e que sempre é tempo deensinar e de aprender; aprofundar metodologias com base em vivênciasgeradoras; aprimorar práticas que respeitem o jeito de aprender de cadatempo da vida; promover a alfabetização de jovens e adultos(as)assentados(as) que não tiveram esta oportunidade; complementar aescolaridade e oportunizar a formação continuada; construir processosinterativos de produção do saber, valorizando a diversidade cultural,política e social; desenvolver ações ligadas à formação humanaconsiderando os diferentes saberes produzidos no contexto social dos/as educandos/as; certificar os que tiverem sucesso no programa,segundo legislação educacional.

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Fundamentação teórica

O projeto “Reforma Agrária e Educação: alfabetização eescolarização de jovens e adultos assentados no Sudoeste da Bahia”tem como referencial teórico os pressupostos de Educação Popular dePaulo Freire. Em vista disso, sentimos a importância de pensar aeducação de pessoas jovens e adultas de forma ampla. Reflexões noslevaram a perceber a relevância das discussões deste conceito, como éenunciado pela “V Conferência Internacional de Educação de Adultos”realizada em Hamburgo, Alemanha, em 1997:

Por educação de adultos entende-se o conjunto de processosde aprendizagem, formais ou não formais, graças aos quais aspessoas cujo entorno social considera adultos desenvolvem suascapacidades, enriquecem seus conhecimentos e melhoram suascompetências técnicas ou profissionais ou as reorientam a fimde atender suas próprias necessidades e as da sociedade. A edu-cação de adultos compreende a educação formal e permanen-te, a educação não formal e toda a gama de oportunidades deeducação informal e ocasional existentes em uma sociedadeeducativa e multicultural, na qual se reconhecem os enfoquesteóricos baseados na prática (DECLARAÇÃO DE HAMBURGO, Art.3º apud DI PIERRO, 2000, p. 27).

Este conceito é coerente com a Lei de Diretrizes e Bases daEducação Nacional nº 9394/96, artigo 1º, que estende a abrangênciada educação aos “processos formativos que se desenvolvem na vidafamiliar, na convivência humana, no trabalho, nas instituições de ensinoe pesquisa, nos movimentos sociais e organizações da sociedade civil enas manifestações culturais” (DI PIERRO, 2000).

Assim, a educação de pessoas jovens e adultas refere-se aosprocessos educativos que visam à satisfação das necessidadeseducacionais e que atendem aos objetivos da Educação Básicaenunciados no Artigo 22 da LDB: “[...] desenvolver o educando,assegurar-lhe a formação comum indispensável para o exercício dacidadania e fornecer-lhe meios para progredir no trabalho e em estudosposteriores”. Nessa definição, a Educação Básica compreende não só

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processos de formação geral, mas a eles articula e integra um conjuntoheterogêneo de práticas de formação profissional e qualificação para otrabalho (BRASIL, 2002).

Outra perspectiva adotada na execução do projeto diz respeito àcompreensão da multiplicidade de aprendizados produzidos esocializados entre os(as) trabalhadores(as) estudantes, universidades emovimentos sociais. A educação que resulta desta interação mostranovos modos de perceber o conhecimento como resultado de umconjunto de idéias, valores, teorias e métodos, cujo objetivo está empensar o papel da escola nos processos de ensino-aprendizagem.

Em relação ao currículo e à metodologia adotados nodesenvolvimento do projeto, foi priorizada uma proposta de Educaçãodo Campo, na qual o sentido da educação está em valorizar as experiênciase os objetivos de vida dos sujeitos do campo e reconhecer o trabalhadorrural como sujeito que dialoga com distintos universos simbólicos eculturais. Por isso foram aprofundados referenciais que abordam asinterações com a realidade dos trabalhadores, que adentram o seucotidiano, ou seja, que entendam a realidade como ponto de articulaçãoe reflexão da diversidade de experiências vivenciadas pelas comunidadesrurais. Neste sentido, as ações pedagógicas foram centradas na identidadehistórica dos trabalhadores do campo, cujas raízes se encontram naagricultura familiar, na cultura, na experiência dos sujeitos do campo,fatores que contribuem para estruturar e fortalecer o ambiente educacionalno campo (CALDART, 2000; ARROYO, 2000; COSTA, 2002; 2004).

3 Metodologia

Realizamos o acompanhamento das atividades por meio de visitasàs áreas de assentamento e de reuniões pedagógicas entre a coordenaçãopedagógica geral, a coordenação administrativa, as coordenaçõesespecíficas, os coordenadores locais e representantes dos setores deeducação dos movimentos. Os registros dos acompanhamentos foramfeitos em diários de campo, fotografias, entrevistas, questionários econversas informais.

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As visitas realizadas durante o período compreendido entre 1°de agosto de 2005 e 10 de outubro de 2005 abarcaram 20 escolas deassentamentos, num total de 25 turmas, nos municípios de Vitória daConquista, Barra do Choça, Jaguaquara, Candiba, Poções, Encruzilhada,Itambé e Santa Inês. As visitas foram planejadas, de modo sistemático,e contaram com a colaboração dos coordenadores locais responsáveispelo setor de educação de cada movimento. Nas conversas informaiscom os/as educandos/as e educadoras (quase todos eram mulheres;apenas dois homens), o objetivo foi estabelecer um ambiente deinteração. Elas estiveram voltadas, basicamente, para um trabalho defortalecimento da auto-estima, tanto dos educandos, quanto doseducadores, e de estímulos para que os primeiros não desistissem(evadissem) das aulas. Consideramos este um momento importante,em razão dos altos índices de evasão nos projetos de educação depessoas jovens e adultas e na educação rural, uma realidade constatadanos estudos não somente sobre a Bahia, independente da política públicadesenvolvida (DI PIERRO; HADDAD, 2000).

Com as visitas, buscamos identificar, ainda, o tipo de relaçãoentre os educandos participantes, as condições do assentamento e deensino (infra-estruturais e pedagógicas), bem como a relação doseducandos e educadores com o próprio Pronera. Ou seja: procuramosouvir o que os sujeitos tinham a dizer sobre a implantação do Programapara, assim, podermos fomentar a reflexão sobre a Educação do Campo.

Durante as visitas, foram distribuídos questionários paraeducadores e coordenadores a fim de colhermos dados e termossubsídios que pudessem contribuir para o cumprimento dos objetivose das metas prescritas no projeto. O questionário foi não apenasdistribuído ao público visitado, como também enviado a educandos,educadores e coordenadores que não foram contemplados com asvisitas. Este instrumento compôs-se de duas (2) questões fechadas equatorze (14) abertas, de modo que esses sujeitos, com o questionárioem mão e um tempo hábil maior para responder, pudessem refletirsobre o programa, e os dados aí obtidos pudessem ser confrontados

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com as conversas informais ocorridas durante as visitas, buscandoidentificar melhorias a serem realizadas no projeto.

O processo de formação pedagógica, caracterizado como“formação em serviço”, dos agentes alfabetizadores e educadores doPronera está em andamento, mas já foram realizadas duas etapas dedesenvolvimento educacional, contemplando uma dinâmica quecombina três momentos de trabalho intenso realizados na Uesb. Aprimeira, em fevereiro de 2005, e a segunda no mês de outubro. Aterceira etapa está programada para ser realizada junto a cada um dosmovimentos participantes do projeto (MTD, MST, Fetag), em ambientesindicados pelos próprios movimentos.

Os momentos reservados à capacitação adquirem umaimportância crucial para reflexão e orientação da prática pedagógicavivenciada em cada sala de aula, em cada turma, em cada assentamento.

Resultados

Os primeiros resultados da implantação do projeto permitemvislumbrar o reconhecimento, por parte dos trabalhadores, do papelestratégico dos saberes relacionados à leitura e escrita como condiçãoao exercício da cidadania.

Os assentados afirmam que o programa é útil por possibilitar oaprendizado da escrita e da leitura, “melhorar a vida”, o que demonstraa valorização dessas habilidades pela população jovem e adulta dascomunidades rurais. O domínio da leitura e da escrita significa, paraeles, superar o estigma de não serem reconhecidos socialmente comocidadãos. Possui um sentido de conquista de um status social, ilustradopela possibilidade de ler e assinar documentos importantes e realizarações consideradas corriqueiras, como escrever uma carta para um entequerido ou ter autonomia para pegar um ônibus.

As falas dos educandos enfatizam a importância dos processosde ensino e aprendizagem no contexto de educação de pessoas jovense adultas do meio rural, os quais não devem ser fruto de projetos quetenham apenas caráter compensatório ou que sejam norteados por uma

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prática escolar tradicional e urbanocentrada (COSTA, 2002). Estesprojetos devem-se constituir em processos dinâmicos voltados para amultiplicidade de experiências e vivências que compõem o cotidianodos trabalhadores-estudantes, a fim de que estes tenham instrumentospara refletir e construir novas possibilidades de uma vida melhor.

A execução parcial do projeto permite estimar a repercussãodas atividades desenvolvidas, destacando-se sua relevância em funçãodo número de educandos/as, alfabetizandos/as, educadores/as,monitores/as, coordenadores locais, professores e profissionais dauniversidade que participam e atuam no projeto.

Os resultados constituem estímulo a educadores(as) eeducandos(as) à consciência de que a formação fortalece a cidadania,mas a sua manutenção e ampliação, na atualidade, devem ser umprocesso constante. A existência do programa propicia a busca pelamelhoria da infra-estrutura das salas de aulas, a ampliação do númerode escolas, o atendimento a novas áreas de assentamento ouacampamentos, a diversificação do material didático e o estímulo afreqüentar a escola, pela sua proximidade do assentamento.

O grau de abrangência do projeto, apesar de não atender a todosque necessitam dessa formação, é considerável uma vez que estão sendocontemplados: 16 (dezesseis) assentamentos e 2 (dois) acampamentos,distribuídos em 6 (seis) municípios da Região Sudoeste da Bahia, com14 (quatorze) turmas de alfabetização, cada uma delas com 20 (vinte)alunos, e 24 (vinte e quatro) turmas de escolarização de 1º segmento,cada uma com 25 (vinte e cinco) educandos(as) indicados pelo MST; 8(oito) assentamentos e 6 (seis) acampamentos, espalhados por 12 (doze)municípios com 32 (trinta e duas) turmas de alfabetização, cada umacom 20 (vinte) alunos, e 17 (dezessete) turmas de escolarização de 1ºsegmento indicados pela Fetag; 8 (oito) turmas de alfabetização e 4(quatro) turmas de escolarização, demandas apresentadas pelo MTDapenas para o município de Vitória da Conquista. Portanto, estão sendobeneficiados, ao todo: 1080 alfabetizandos(as), distribuídos em 54turmas com 20 alunos, e 1125 educandos na escolarização de 1ºsegmento, divididos em 45 turmas com 25 educandos.

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Os obstáculos que encontramos, até o presente momento, estãosendo superados de forma a não causar grandes prejuízos à execuçãodo projeto. Alguns, entretanto, devem ser analisados não só para amelhoria deste projeto em andamento, mas para projetos que possamvir a atuar em áreas de assentamento de reforma agrária.

A infra-estrutura das salas de aula é a principal dificuldade naexecução das ações. Percebemos, nas visitas, que algumas salas possuemiluminação precária, prejudicando o bom aproveitamento das aulas.Muitos educandos têm problemas de visão (miopia, astigmatismo,catarata etc.) e não têm acompanhamento médico ou recursos paraadquirir óculos.

Outra dificuldade é o fato de que as ações do Pronera nãocontemplam merenda escolar, entendida como atividade importanteno processo de aprendizado, já que muitos destes educandos estudamà noite, logo após suas atividades na terra, não tendo tempo, portanto,de se alimentarem antes das atividades escolares. A merenda, segundoeducandos e educadores, também auxilia no processo de aprendizagem,pois propicia um “despertar” do sono, adquirido no dia de trabalhointenso no campo.

Os materiais didáticos não têm sido suficientes para as atividades,embora a sua aquisição seja contemplada pelo Pronera. Osassentamentos estão localizados em lugares distantes e, na maioria dasvezes, os educadores não dispõem de recursos didáticos importantes,como material de apoio, material de consumo e material permanente.

Considerações finais

Nossas considerações reafirmam o interesse e as práticasparticipativas do Pronera na promoção de uma educação do campoque promova mudanças educacionais atreladas a diretrizes dedesenvolvimento sustentável do campo. Entendemos que essa educaçãodeve acontecer numa perspectiva de emancipação e transformaçãosocial, o que exige a construção de novos procedimentos e nova relaçãoepistemológica com o conhecer e com o conhecimento. Trata-se,

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portanto, de compreender a inter-relação existente entre conhecimentoe ação no contexto político, econômico e cultural da reforma agrária.

Os resultados, ainda que parciais, da implantação do projeto“Reforma Agrária e Educação: Alfabetização e Escolarização de Jovense Adultos Assentados no Sudoeste da Bahia” demonstram oreconhecimento, por parte dos trabalhadores, do papel estratégico dossaberes relacionados à leitura e escrita na sociedade atual. Ter o domínioda leitura e da escrita significa status e, ao mesmo tempo, condições derealizar ações corriqueiras que envolvem essas práticas.

Constatamos que as expectativas e os horizontes deaprendizagens estão se concretizando para que a população assentadapossa vir a ter instrumentos de reflexão e construção de novaspossibilidades de vida na multiplicidade de experiências e vivênciasque compõem o seu cotidiano.

É saliente considerar a importância do Pronera que, ao pensar aEducação do Campo de forma integrada, não despreza a necessidadede contínua formação dos alfabetizadores, educadores, coordenadorese dos próprios educandos. Por isso, convém destacar o papel daformação pedagógica dos agentes alfabetizadores e educadores doPronera, “formação em serviço”.

A realização do Pronera tem atingido os objetivos propostos depromover, estimular e refletir sobre as políticas e ações dos movimentossociais do campo, dos poderes públicos e da universidade, no que serefere à educação de pessoas jovens e adultas. Dessa forma, o projetodemonstra, até o momento, que os objetivos estão sendo alcançados eque a metodologia adotada mostrou-se eficiente.

Observamos que o Pronera, entendido como suplementar àspolíticas públicas na área de Educação, e a parceria desenvolvida, nopresente projeto, entre o MDA/Incra, o Pronera, a Uesb e osmovimentos sociais (MST, Fetag e MTD) vem mostrando resultadosrelevantes, pois muitas pessoas jovens e adultas assentadas estão tendooportunidade de exercer seu direito constitucional à educação e deampliar suas oportunidades de praticar sua cidadania.

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181Educação do campo: alfabetização e escolarização de pessoas jovens e adultas assentadas ...

Por isso, a importância pedagógica em desenvolver um projetocomo este está na possibilidade de oportunizar o acesso à escola nocampo. Outro fator pedagógico importante é o fortalecimento daEducação do Campo, desenvolvida por meio do estudo sistematizadodas “Diretrizes Operacionais de Educação Básica do Campo” e dasteorias de Educação Popular, bem como teorias que ressaltam aeducação como processo de formação humana. Assim, elevar o patamarde escolarização e a permanente qualificação, em todos os níveis, nomeio rural, passa a ser um desafio pedagógico central.

EDUCATION OF THE FIELD: LITERACY AND BASICSCHOOLING OF YOUTH AND ADULTS IN THE BAHIA

SOUTHWEST

Abstract: This paper makes some considerations about the National Programof Education in the Agrarian Reform (Pronera) through the project “Literacyand youth and adults schooling in areas of Establishment of the BahiaSouthwest “. Of the rural workers seated in the Bahia Southwest, 1.080 arebeing alphabetized and 1.125 are studying the 1st Segment of the FundamentalTeaching (from 1st to 4th series). The accompaniment methodology andevaluation of the project contemplates visits to the areas, chats with educators,students and local coordinators and pedagogic meetings with leaders of socialmovements that participate in the Program, teachers trainers and pedagogiccoordinations. As a result of the work developed until the moment, it can beaffirmed that Pronera is an important program for the Education of the Field,because it contributes to democratizing opportunities for literacy, basicschooling and continued education.

Key words: Youth and adults schooling. Education of the Field. Pronera.

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DOSSIÊ TEMÁTICO:Fontes Documentais para

a História da Educação

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FONTES PARA A HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO

Antonietta d´Aguiar Nunes *

Resumo: O trabalho começa ressaltando o grande desenvolvimento que aHistória da Educação tem tido no Brasil nos últimos 40 anos, em razão,sobretudo, das pesquisas originadas em cursos de pós-graduação em educação.Por esta razão, torna-se importante discutir a questão de Fontes para Históriada Educação. Relaciona alguns trabalhos que já o fizeram e passa a conceituaro que seja fonte, fonte histórica, segundo vários historiadores, e fala da suaclassificação em primárias e secundárias. Passa então a tratar das fontes para aHistória da Educação, entendendo educação no sentido amplo e não apenas ainstrução formalizada em instituições escolares. Relaciona especificamente aspossíveis fontes documentais escolares. Em seguida, mostra como opesquisador constrói suas próprias fontes, de acordo com o problema estudado,que podem, depois de encerrada sua pesquisa, ser custodiadas por algumainstituição que as ponha à disposição de outros pesquisadores. Conclui dizendoque o historiador da educação precisa também conscientizar administradores,professores, funcionários da educação para a importância de preservar eorganizar a documentação referente a assuntos instrucionais, para que se possano futuro dispor de fontes fidedignas para a História da Educação.

Palavras-chave: Fontes históricas. História da Educação. Fontes documentaisescolares. Construção de fontes.

* Doutora em Educação pela Faculdade de Educação (Faced) da Universidade Federal daBahia (Ufba). Historiógrafa do Arquivo Público da Bahia. E-mail: [email protected].

Práxis Educacional Vitória da Conquista n. 2 p. 187-206 2006

DOSSIÊ TEMÁTICO:Fontes Documentais para a História da Educação

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Antonietta d´Aguiar Nunes188

Introdução

A História da Educação é um ramo da ciência histórica que muitotem se desenvolvido nos últimos 40 anos, sobretudo por interesse doseducadores que se formaram nos programas de pós-graduação emvários pontos do país.

Os historiadores originalmente não costumavam tomar aeducação como um objeto específico de estudo, como se podeconstatar em obras que, coletivamente, davam conta dos avanços emHistória: as mais antigas sobre metodologia da pesquisa histórica comoa de Bauer – Introducción al estúdio de la Historia (1957); deSamaran – L´Histoire et ses méthodes (1967); ou de Rodrigues –Teoria da História do Brasil (1978), e mesmo as obras mais recentes,que ampliam o campo de estudo da História, como a de Le Goff ePierre Nora – História: Novos Objetos (1976); de Ciro F. Cardosoe Ronaldo Vainfas – Domínios da História (1997). Todas elas, aomencionarem os vários ramos da História “esqueceram” da Históriada Educação.

Nas últimas três a quatro décadas, porém, desde o surgimento,em 1972, dos cursos de pós-graduação em educação, que se têmdesenvolvido pesquisas nesta área: na Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (Anped), desde 1984 se reúneanualmente o Grupo de Trabalho História da Educação onde sãoexpostos os trabalhos recentes dos professores; em 1986, naUniversidade Estadual de Campinas (Unicamp), se organizou o Grupode Estudos e Pesquisas História, Sociedade e Educação no Brasil(HISTEDBR), que realiza anualmente seminários, também, comapresentação de comunicações livres; na reunião da Anped em 1999, foifundada a Sociedade Brasileira de História da Educação (SBHE) que,desde 2000, vem fazendo congressos bianuais (CBHE), com participaçãocrescente de professores de História da Educação de todo o país.1

1 O primeiro Congresso aconteceu no Rio de Janeiro em 2000, seguido de Natal, Rio Grandedo Norte, em 2002, e Curitiba, Paraná, em 2004, devendo o IV realizar-se em Goiânia, Goiás,de 5 a 8 de novembro de 2006.

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189Fontes para a história da educação

Só mais recentemente a Associação Nacional de ProfessoresUniversitários de História (Anpuh) incluiu, entre seus grupos detrabalho, o de Ensino de História e Educação e, no seu XXIII SimpósioNacional de História (SNH), realizado em julho de 2005 em Londrina,Paraná, foram incluídos dois Simpósios Temáticos referentesespecificamente à História da Educação: História e Historiografia daEducação no Brasil: Desafios e Perspectivas de Pesquisa, coordenadopor Thaís Nívia de Lima e Fonseca; e A Educação e a Formação daSociedade Brasileira, coordenado por Wenceslau Gonçalves Neto eCarlos Henrique de Carvalho. Além destes, outros cinco semináriostemáticos no XXIII SNH tinham relação com o tema: História e Ensino– Saberes e práticas; Ensino de História e Novas Tecnologias: UmOlhar Reflexivo; Ensinos de História: Balanço e Perspectivas; Históriada Família – Novas Perspectivas e Novos Desafios e A Criança naHistória do Brasil: Abordagens e Perspectivas.

Torna-se então importante fazer uma discussão sobre Fontespara a História da Educação, assunto que já vem preocupando osestudiosos em várias de suas reuniões, seminários, simpósios econgressos, existindo, inclusive, publicações sobre o tema, tais como:Faria Filho (1999, 2000, este último enfatizando as novas tecnologias);Tavares (2001, 2002); Lombardi e Nascimento (2004); Gondra (2005);Gatti Jr. e Inácio Filho (2005).

Muitos foram os artigos publicados sobre o assunto, genéricaou especificamente: Nunes (1992) sobre o valor histórico do documento;Sousa (1999) sobre textos literários como fontes alternativas; Giglio(2000) sobre impressos operários; Hébrard (2001) sobre cadernosescolares; Chartier (2002) sobre cadernos e fichários da escola primária;Peres (2002) sobre o silêncio das fontes, questões étnico-raciais;Wissenbach (2002) sobre cartas, procurações, escapulários, patuás;Galvão e Batista (2003) sobre manuais escolares; Silva (2003) sobremanuais pedagógicos; Becchi (2004) sobre biografias e autobiografias;Fernandes (2004) sobre registros da História; Hébrard (2004) sobrebibliotecas escolares; Hilsdorf e Vidal (2004) sobre o centro de Memória

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da Educação da Universidade de São Paulo (USP); Vecchia (2004) sobreplanos de estudo; Vilela et al. (2004) sobre periódicos; Viñao (2004)sobre relatos autobiográficos de professores; Buffa (2005) sobre plantasarquitetônicas de prédios escolares; Lopes (2005) sobre arquivos doInstituto de Educação; Lucca (2005) sobre periódicos; Nunes e Carvalho(2005) sobre fontes para a História da Educação, e Veiga (2005) sobreprodução infantil na instrução elementar.

E existe mesmo um livro completo cujo tema específico são asFontes Históricas: Pinsky (2005).

Conceituando termos

“Fonte”, segundo o Grande Dicionário da LínguaPortuguesa de Morais Silva (1949-1959, p. 271, v. 5), vem do latimfonte e significa nascente de água que irrompe perenemente no solo.Mas, como toda palavra polissêmica, tem outros significados: chafariz,bica por onde corre a água ou tudo que se lhe assemelha; causa, princípiode onde provêm efeitos tanto físicos como morais; o texto original deuma obra; ponto de onde alguma coisa dimana, ...

O Vocabulário Jurídico de Silva (1987, p. 311, v. 2) tambémafirma vir a palavra fonte do latim fons (nascente, manancial) e diz que,no sentido legal, “fonte”, considerada como nascente de água, nãosomente se refere às águas que surgem ou brotam naturalmente, comoàs que vêm à superfície trazidas pelo engenho humano (fonte captada,feita artificialmente; também chafariz). Mais adiante, no relativamentelongo verbete tratando de fontes, ele menciona:

Fonte. Seguindo seu próprio sentido etimológico, origem,procedência, é empregado para indicar tudo de onde procedealguma coisa, onde ela se funda e tira razão de ser, ou todo fatoque dá nascimento a outro. Com este sentido, o texto originaldiz-se fonte. E se diz fonte para o costume ou o uso que fazgerar a regra jurídica (SILVA ,1987, p. 311, v. 2).

O historiador alemão Ernst Bernheim (1937, p. 101), em seuclássico Introdução ao Estudo da História, quando fala da

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191Fontes para a história da educação

metodologia da História tem todo um capítulo sobre Heurística(Conhecimento das Fontes). Nesta obra ele define:

Llamase fuentes al material de donde se derivan los conocimientosde nuestra ciência. Este material no es preferentemente, comosucede com casi todas las otras ciências, el objeto directo einmediato de nuestro conocimiento, ya que tal objeto son loshechos o actos humanos, los cuales tan solo en parte muypequeña pueden ser presenciada por los coetaneos, debiendoconocer la mayor parte de los sucesos solo por las informacionesde los demás. Las informaciones y descripciones de lo pasadopor médio de la narración oral o escrita o por la imagen,constituyen nuestra segunda fuente de conocimento. Umatercera fuente son los restos de lo pasado, de los cualesdeducimos los hechos que los han causado u creado Se vê,pues, que no solo son distintos los materiales, sino que tambémson muy distintas las maneras con que de ellos hemos de lograrnuestros conocimentos, o sea que son muy distintos los métodoscon que debemos tratar las fuentes segun su peculiar condición,y por todo ello es de suma importância comprender bien elcarácter de cada fuente.

E José Honório Rodrigues (1978, p. 234), no capítulo sobreFontes Históricas da sua obra Teoria da História do Brasil, afirmaque, embora o trabalho histórico se inicie

com a pesquisa dos meios de conhecimento que são as fontes,[...] apenas uma parte da pesquisa histórica se inicia e terminacom o exame crítico das fontes. Seguem-se, então, os trabalhosde interpretação e de composição. Deste modo, o objeto dahistória não só é a caça e a descoberta do documento, que éunicamente um meio de conhecimento, mas a reconstituiçãohistórica baseada em documentos autênticos e fidedignos.Aqui entra outro elemento, a crítica das fontes, que procuragarantir que sejam autênticas (tenham sido realmente produzidasna época que se está estudando) e fidedignas (sejam seguras edignas de confiança).

O historiador português Joaquim Veríssimo Serrão, em capítulosobre Fontes Históricas (1968, p. 57-68), que tem como primeirosubtítulo “Do fato à fonte histórica”, se pergunta: Como se passou da

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concepção tradicional de “documento” para o moderno sentido de“fontes históricas?”. Mostra, no item seguinte sobre a concepçãotradicional de documentos, a divisão de fontes históricas conforme ovalor dos documentos, feita desde a obra de Bernheim:

Haveria, assim a distinguir duas espécies de fontes: 1º osVestígios, os traços deixados pelo homem, não com o fimexpresso de fornecer aos vindouros quaisquer informes dopassado, mas que ficaram esquecidos na marcha do tempo. Avida passou, deixando memória dela: colunas, achas, dentes,ossos, desenhos, moedas. Trata-se de valiosos dados deinformação, sobretudo para a fase que antecedeu oaparecimento da escrita. 2º os Testemunhos, fontes que encerramnotícias do passado e que foram erguidas para que as geraçõesfuturas pudessem estudar a presença do homem no palco daHistória (SERRÂO, 1968, p. 59).

No capítulo intitulado “A História se faz com documentos”,Henri Marrou ([196-], p. 63) lembra, porém, que os documentosconservados não são sempre (a experiência sugere quase que se escreva:não são nunca) aqueles que nós gostaríamos que seria bom que fossem.Ou não os há, ou não chegam..., ou – por outro lado – são demasiados,como no caso da história contemporânea (p. 64), razão pela qual ohistoriador precisará se assenhorear dos documentos existentes e, paraisto, deverá não somente saber colocar o problema como, ao mesmotempo, elaborar melhor um programa prático de pesquisas que permitaencontrar, fazer surgir os documentos mais numerosos, mais seguros,mais reveladores (MARROU, [196-], p. 65).

Mais adiante em sua obra, Serrão (1968) – falando da concepçãomoderna de documento, que a nova metodologia da ciência históricacompreende na sua mais larga acepção, isto é, como fontes históricas –cita os clássicos historiadores franceses: Henri Marrou, Charles Samarane Lucien Febvre e suas definições de documento e fontes. Transcreveum trecho de Febvre mostrando como ele se opõe à concepção deuma história feita apenas com textos escritos, como a conceberamhistoriadores anteriores como Fustel de Coulanges, Benedetto Croceou Louis Halphen,

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193Fontes para a história da educação

L´histoire se fait avec des documents écrits, sans doute, quandil y en a. Mais elle peut se faire, elle doit se faire avec tout ceque l´ingeniosité de l´historien peu lui permettre d´utiliser pourfabriquer son miel, à défaut des fleurs usuelles. Donc, avec desmots. Des signes. Des paysages et des tuiles. Des formes dechamp et de mauvaises herbes. Des eclipses de lune et descolliers d´attelage. Des expertises de pierres par des géologueset des analyses d´épees em metal par des chimistes. D´un mot,avec tout ce qui, étant à l´homme, dépend de l´homme, sert àl´homme, exprime l´homme, signifie la présence, l´activité, lesgoûts et les façons d´être de l´homme (FEBVRE, 1965, p. 428).2

Vemos aqui um conceito bem amplo do que seja fonte histórica:tudo o que possa nos dar algum tipo de informação sobre a atividadehumana que estamos estudando. É mais largo ainda do que o foramvestígios e testemunhos. E mais, agora a responsabilidade passa para ohistoriador. É ele que, com sua engenhosidade, construirá suas fontes.Mesmo quando existem documentos escritos, e o historiador lança mãodeles, o faz de forma própria, original.

Michel de Certeau (1982, p. 81), no seu também já clássico AEscrita da História, tratando do estabelecimento das fontes ou daredistribuição do espaço, afirma:

Em história, tudo começa com o gesto de separar, de reunir, detransformar em “documentos” certos objetos distribuídos deoutra maneira. Esta nova distribuição cultural é o primeirotrabalho. Na realidade, ela consiste em produzir tais documentos,pelo simples fato de recopiar, transcrever ou fotografar estesobjetos mudando ao mesmo tempo o seu lugar e o seu estatuto.Este gesto consiste em “isolar” um corpo, como se faz em física,e em “desfigurar” as coisas para constituí-las como peças quepreencham lacunas de um conjunto, proposto a priori. Ele formaa “coleção”. [...] Longe de aceitar os “dados”, ele os constitui.O material é criado por ações combinadas, que o recortam nouniverso do uso, que vão procurá-lo também fora das fronteirasdo uso, e que o destinam a um reemprego coerente.

2 A história se faz com documentos escritos, sem dúvida. Quando os há. Mas ela pode se fazer,ela deve se fazer, sem documentos escritos, se eles não existem. Com tudo o que a engenhosidadedo historiador possa lhe permitir utilizar para fabricar seu mel, na falta das flores usuais. Então,com palavras. Com signos. Com paisagens e telhas. Com as formas do campo e com as ervasdaninhas. Com eclipses de lua e coleiras de atrelar cavalos. Com pareceres de peritos geólogossobre pedras e analises de espadas de metal feita pelos químicos. Em uma palavra, com tudo oque, sendo do homem, depende do homem, serve ao homem, exprime o homem, significa apresença, a atividade, os gostos e as formas de ser do homem.

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As fontes podem ainda ser classificadas em primárias, ouoriginais, quando se acessa por primeira vez uma determinadainformação ou quando se recorre a documentos originais e autênticos;e secundárias, ou de segunda mão, a que se tem acesso mediante outraobra, autor ou pessoa, como quando se faz a revisão de literatura sobreo assunto que se quer estudar e se apreendem várias informações que,até então, se desconheciam ou que são pouco divulgadas e conhecidas,mas que são corretas pelo procedimento científico do autor que asrevelou. Em geral, os documentos custodiados em arquivos ou nasseções de manuscritos das bibliotecas são considerados fontes primárias,mas os que já estão publicados ou que são transcritos em obras dealgum outro autor, escritor ou historiador, são considerados fontessecundárias.

Com base nestas definições é que procuraremos sugerir as fontespossíveis para a História da Educação.

Fontes para a História da Educação

Considerar-se-á aqui educação em seu sentido também amplo,não abrangendo apenas a instrução formalizada em instituiçõesescolares, mas toda a socialização do indivíduo no meiosocioeconômico-político em que ele vai viver e atuar, ou mesmo a suapreparação para as atividades de trabalho que deverá desempenhar.

Num sentido geral, podemos considerar educação como sendo:

L´éducation est l´ensemble des actions et des influencesexercées volontairement par um être humain sur um autreêtre humain, em príncipe par um adulte sur um jeune, etorientée vers um but qui consiste em la formation dans l´êtrejeune des dispositions de toute espèce correspondant aux finsauxquelles, parevenu à maturité, il est destiné (HUBERT apudÉTÈVÉ, 1998, p. 342).3

3 A Educação é o conjunto de ações e de influências exercidas voluntariamente por um serhumano sobre um outro ser humano, em princípio por um adulto sobre um jovem, e orientadapara um fim que consiste na formação no ser jovem de disposições de vária espécie,correspondentes aos fins aos quais, advinda a maturidade, ele está destinado (HUBERT, apudÉTÈVÈ,1998, p.342).

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195Fontes para a história da educação

Além disto, é preciso levar em conta que, em cada grupo social,existem formas diferentes de atuação dos seres humanos entre si, demodo que a cada tipo de sociedade corresponde um tipo de educaçãoque lhe é peculiar.

Se adotamos o conceito mais amplo visto em Febvre, tudo podeservir de fonte para a História da Educação, desde que o historiadorsaiba o que quer pesquisar, estabeleça adequadamente o seu problemade estudo e exercite a sua imaginação cogitando tudo ou todas as coisasque poderiam direta ou indiretamente fornecer informações que oajudem a esclarecer as dúvidas que tem sobre o tema ou assunto queestá investigando.

Em primeiro lugar, é preciso, portanto, situar com precisão oseu problema ou as suas questões de pesquisa, delimitar o locusgeográfico em que ele vai ser estudado e o período de tempo que seráconsiderado, para então poder passar para o arrolamento de quaispoderiam ser as possíveis fontes de informação que ajudariam aesclarecer a questão.

Depois, uma ampla pesquisa bibliográfica, ou revisão daliteratura, levantando tudo o que se possa encontrar, que já tenha sidoestudado, pesquisado ou escrito sobre o tema, o local e o tempo do quese pesquisa. Aqui usaremos amplamente o que se chama de fontessecundárias, ou seja, aquelas produzidas por outros pesquisadores ouestudiosos anteriores que, utilizando as fontes de que dispunham,resolveram escrever sobre o assunto. Também outra fonte importantesão os dados estatísticos colhidos por fontes oficiais. Sabemos que, em1872, foi feito um censo demográfico no Brasil, seguido de outros, naRepública, agora decenais. São úteis fontes de informação sobre apopulação, por sexo, cor, faixa etária, grau de escolaridade, etc.

Em seguida, estudar em profundidade este mesmo espaço etempo que foram delimitados, fazendo uma contextualização histórica,na qual se estudará a específica questão de pesquisa. Dependendo dequal seja o problema, um estudo mais detalhado da geografia do lugare das transformações aí ocorridas, pela intervenção humana, já pode

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ajudar a esclarecer alguns pontos do problema. Aí precisaríamoscertamente de um mapa detalhado do local, do assessoramento degeógrafos que nos expliquem os acidentes, a intervenção da chamadageografia humana no lugar, a urbanização, demografia, etc. Também nestafase é importante localizar edifícios relacionados com o tema em estudo:prédios escolares atuais ou antigos, desativados ou re-ocupadospresentemente por outra atividade, bibliotecas, áreas de lazer para crianças,jovens e adultos, parques, museus... Se for o caso, procurar as plantasbásicas dos prédios escolares, ver se houve uma similaridade entre osprédios construídos no mesmo período, a que se deveu isto, etc.

Também o estudo da situação econômica, social e política dalocalidade na época já fornece a moldura em que o problema se desenvolvee pode dar outras informações. Aqui os estudos de sociólogos, economistas,cientistas políticos serão de grande valia, junto também com os dadosestatísticos que existirem sobre questões econômicas, sociais e políticas doperíodo estudado. Produção de gêneros, exportação, importação, indústriasexistentes, nível de escolaridade da população, número de eleitores,participação efetivas nas eleições, distribuição das instituições escolares noespaço estudado, por nível de ensino, número de alunos matriculados egraduados em cada nível, etc.

Muito importante como fonte publicada, mas que poderá serfonte primária se ainda não foi usada para este fim, são os jornais e asrevistas editados periodicamente na região. São importante fonte deinformação sobre a vida local em seus múltiplos aspectos.

Ao lado das fontes secundárias, o historiador precisa já irbuscando relacionar quais as fontes primárias, custodiadas em arquivosexistentes na região, que podem servir para dar subsídios a sua pesquisa.De acordo com o tipo de problema proposto, procurar-se-ão os arquivospúblicos municipais, os eclesiásticos (na matriz da paróquia, livros deregistro de batismos, casamentos, missas de finados, etc), os jurídicosem algum cartório ou sede de comarca ou, ainda, os arquivos particularesde alguma irmandade religiosa, empresa ou personalidade que permitao acesso a ele. E, sobretudo os escolares.

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197Fontes para a história da educação

Em Minicurso sobre Arquivos e Fontes Documentais Escolares,ministrado no IV Colóquio do Museu Pedagógico da Uesb emnovembro de 2004, lembramos as fontes documentais escolares,produzidas e utilizadas na própria instituição escolar que se estáestudando; são importantes fontes primárias de pesquisa. Podem serprocuradas:1. Na Biblioteca: livros didáticos e para-didáticos utilizados; revistas deeducação existentes; boletins, jornais ou revistas produzidos pela escola;artigos ou livros produzidos pelos professores e funcionários da casa;anuários da escola, se houver.2. Na Secretaria da escola: 2.1 - documentos fundantes da própriainstituição: lei de criação da escola, outros atos legislativos sobre ainstituição, ata de instalação; estatutos, regimentos internos; atas deeleição ou designação e de posse de diretores; organograma dainstituição, se houver. 2.2 - Direção da casa: planejamento anual deatividades; relatório anual da direção; relacionamento com outrasinstituições (convênios, contratos, etc). 2.3 - Contabilidade: receita edespesa da instituição; orçamentos anuais e plurianuais; balancetes ebalanços; prestações de contas. 2.4 - Correspondência: enviada, recebida,comunicações internas, registro magnético dos e-mails, etc. 2.5 - Livrospermanentes: do tombo do patrimônio da instituição; de ponto dosfuncionários; de atas das reuniões; de registro das atividades(solenidades, festas, semanas culturais, seminários, etc.); De Visitantes(inspetores, autoridades educacionais, pessoas gradas locais ou de outrosestados ou países). 2.6 - Documentos de alunos: livros de matrícula etrancamento de disciplinas; ficha ou pasta de cada aluno com seushistóricos escolares; cadernetas escolares. 2.7 - Documentos deprofessores: calendário escolar; quadro de horário dos professores;elenco de disciplinas por curso; cronograma das aulas; planos de cursoe programas das disciplinas. 2.8 - Aberturas para a comunidade:utilização das instalações e recursos; atividades de extensão.3. Na Sala dos professores (ou nos departamentos): planos de curso;diários de classe; projetos e relatórios de pesquisa; material preparado

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para o ensino (cartazes, powerpoint, transparências, slides, etc); materialescolar produzido pelos professores ou alunos (posters, banners,folhetos...); artigos escritos ou livros publicados pelos professores (senão estiverem na biblioteca); fotografias de atividades várias, classes,turma de professores, etc.; cartas, bilhetes, comunicações internas;convites de formatura; atas de reuniões (congregação, departamento,professores).4. No Centro acadêmico dos alunos: dados sobre sua criação e principaisatividades realizadas; regimento; atas de assembléias ou reuniões;boletins ou documentos produzidos; relação das atividades usuais ouprogramação para aquele ano; documentos produzidos pelos alunos.5. Na Organização de funcionários ou departamento de pessoal: listados funcionários existentes; dados sobre cada um: formação, data deadmissão, funções desempenhadas, etc.; atividades organizadas porfuncionários; atas de suas assembléias ou reuniões; documentosproduzidos por funcionários.6. Acervo magnético – com a crescente difusão das novas tecnologias,seu barateamento e ampliação de uso, toda instituição possui hoje emdia computadores, ou mesmo laboratório de informática. Nele podemosencontrar interessantes bancos de dados à disposição de alunos,professores e funcionários da instituição ou mesmo abertos àcomunidade. Podem, em sua maioria, ser acessados gratuitamente, oumediante o pagamento de alguma contribuição, em geral utilizada paraa manutenção, expansão e ampliação dos próprios bancos de dados.

Várias revistas são hoje em dia editadas exclusivamente online eapresentam artigos interessantíssimos; é preciso verificar de que modose assegura a preservação da informação nelas contidas.

Algumas escolas possuem bibliotecas virtuais, para facilitar aoaluno o acesso a obras difíceis de encontrar ou caras no mercadohabitual de livros.

Os cursos de pós-graduação de muitas universidades utilizamcomumente grupos de estudos online por disciplinas, criam os chamadosrascunhos digitais para produção coletiva de textos, já começam aproduzir hipertextos, etc. Desenvolvem-se aí interessantes discussões

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que muitas vezes ajudam a avançar nas discussões teóricas ou fornecempistas de como operacionalizar conceitos ou aplicar a teoria a problemasespecíficos, desenvolver técnicas não só de coleta como também deanálise e interpretação de dados para se chegar a conclusões significativasno trabalho.

Isto sem falar nos sites de professores ou de grupos de trabalho,nos blogs e mesmo em toda a produção independente que circula pelasredes virtuais, localizadas ou mundializadas, como a Internet. Comfamiliaridade com a navegação virtual, pode-se comunicar com o mundoe conseguir as mais variadas e ricas informações, que sejam de interessepara a pesquisa ou trabalho que se realiza.

Além dessas fontes citadas, podem-se encontrar várias outras,como material que serviu para pesquisas de professores ou mestrandose doutorandos, como questionários feitos, entrevistas transcritas, tabelaselaboradas, quadros, etc. que se precisará devidamente organizar eaproveitar como fonte de informação.

Construindo novas fontes

Lembramos ainda que, independente das fontes existentes, opesquisador pode ainda construir suas próprias fontes formando mesmoum acervo que poderá ser depois custodiado por alguma instituição depesquisa ou instituição escolar e servir futuramente como fonte paraoutros pesquisadores. Exemplo: entrevistas realizadas – devidamenteregistradas e transcritas – com antigos professores, funcionários e alunosdo estabelecimento escolar, visando resgatar a história vivida pordiferentes participantes do processo escolar e a memória vivenciada dainstituição escolar estudada.

E mais, cada entrevistado pode ainda ter escrito diários, possuirantigas agendas de compromissos, velhos cadernos de anotações deaulas, fotos de turmas, grupos de colegas, trabalhos escolares realizados,etc. que, embora não ceda sua propriedade ao pesquisador ou ainstituições, pode permitir a consulta e eventual reprodução parcial outotal (neste caso o pesquisador cederia mais tarde para alguma instituiçãocustodiadora, de modo a servir a outros estudiosos).

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Também para a pesquisa, o estudioso terá que transcreverdocumentos, leis, regulamentos, atos variados e, ainda, organizar dados,elaborar quadros, tabelas, gráficos, cronogramas, listas de escolas, deprofessores, informações sobre as realizações de uma determinadadireção da escola, acompanhamento da carreira de professores comnomeação, transferências, promoções até a aposentadoria, etc. quepoderão depois fazer parte também de um banco de dados que seriadisponibilizado a outros pesquisadores.

O pesquisador pode, por exemplo, se estuda uma determinadainstituição escolar, providenciar um levantamento cartográfico, se nãoexistir, do prédio da escola, de suas redondezas, dos diversos cômodoscom diferentes destinações escolares em escala que permita aobservação de mais detalhes, etc.

Também é importante um levantamento fotográfico, tanto defotos históricas da instituição e suas atividades, quanto de sua situaçãoatual: prédio, mobiliário, recursos vários, atividades desenvolvidas,grupos de professores, turmas de alunos, etc. e a elaboração de umbanco de dados digitais com informações importantes sobre a escolaou assuntos a ela relacionados, que ainda não existam na instituição.

E, ainda, o mais importante: recorrer à História oral para levantarnovos dados e para complementar os já existentes sobre o histórico efuncionamento da instituição. Fazer registro exato das entrevistas comantigos professores, funcionários e alunos e, com a transcrição dessasentrevistas, criar um acervo de História oral da instituição, para serconsultado futuramente por quantos se interessarem e para sercompletado permanentemente com novos dados à medida que outrosestudiosos também acrescentem seus materiais de trabalho atécompletarem a pesquisa que realizarem.

E não se cingir apenas às instituições escolares formais. Existemoutras formas educativas em cada comunidade. As oficinas de trabalho,tanto de antigos artesãos (sapateiros, alfaiates, carpinteiros, serralheiros,latoeiros, etc.) como de fábricas que dão cursos de formação em serviçoa seus empregados; as instituições religiosas que educam seus fiéis de

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diferentes formas dentro do seu espaço consagrado às atividadesmísticas, mas em momentos distintos; as instituições de lazer e instruçãocoletiva, como o movimento escoteiro e sua contrapartida feminina, asbandeirantes, os grupos de jovens; as instituições ligadas a pessoas comnecessidades especiais de educação: deficiência visual, auditiva, motoraque, agora, pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB),nº 9.394/96, precisam ser incluídas nas classes normais, educando assimos demais membros da sociedade a conviverem harmoniosamente coma diversidade do outro.

Considerações finais

Como em nosso país ainda é muito fraca a consciência do valore da importância do patrimônio documental e escolar, caberá, também,ao pesquisador da História da Educação, o papel de conscientizar osecretário de Educação do município e também os diretores,funcionários e professores das várias instituições escolares sobre o valorque têm os documentos produzidos na escola, a importância da suaboa organização e conservação não só para a garantia dos direitosindividuais de todos os que se relacionaram com a escola, mas tambémpara construção de uma História da Educação naquele município.

Se não cuidarmos das fontes documentais escolares hoje, elasacabarão se perdendo e amanhã não as teremos mais, o que prejudicarágrandemente o levantamento da evolução educacional local, regional emesmo do país, pois não se conhece a história de um país apenas tendoinformação sobre a capital e as principais cidades.

Se não registrarmos convenientemente as formas como os gruposreligiosos, as oficinas artesanais, os movimentos para-escolares, como oescotismo e bandeirantismo, os grupos de lazer como clubes, grupos dejovens, bandas de música, times esportivos, grupos de afro e índio-descendentes, as entidades que trabalham com portadores de necessidadesespeciais de educação costumam desenvolver o aspecto educativo dosseus membros, dificilmente poderemos reconstruir em sua integridade adinâmica educacional de uma determinada comunidade no futuro.

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É um trabalho cotidiano de cidadania consciente, crítica, atuantee constante, mas que, felizmente, já um grande número de gruposinstitucionalizados de pesquisadores em História da Educação e mesmoprofessores interessados no assunto de algumas cidades já vêmrealizando, para o bem dos futuros estudiosos da educação em nossostempos atuais.

SOURCES FOR THE HISTORY OF EDUCATION

Abstract: The work begins showing the great development occurred with theHistory of Education in the past 40 years, due mainly to the researches madein the Post Graduation Courses on Education. Therefore, it is important todiscuss the questiono f Sources for the hisstory of Education. Some otherwork already writen about the theme are related, and it discusses here theconcept of source, historical source according to several historians and mentionthe classification of sources in primaries and secondaries. It deals then withthe sources for the History of Education, understanding Education in thelargest sense, not only the formal instruction given in school institutions. Ittalks specifically about the possible schol document sources. But then showshow the researcher constructs his ouw sources related to the problem he studies,that may later be given to na institution that disposes them to other futureresearchers. It concludes saying that the historian of education must, duringhis work of research, promote among administrators, teachers and fucntionariesof educacion the conscience of the importance to preserve and organize thedocumentation of educational matters, so that in the future it may exist reliablesources for the history of education.

Key words: Historical sources. History of Education. School documentarysources. Construction of sources.

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DOSSIÊ TEMÁTICO:Fontes Documentais para a História da Educação

Práxis Educacional Vitória da Conquista n. 2 p. 207-220 2006

MUSEU PEDAGÓGICO: A INTERVENÇÃOACADÊMICA COMO AÇÃO DE PRESERVAÇÃO

DE FONTES PARA A HISTÓRIA DA EDUCAÇÃODO CENTRO-SUL DA BAHIA

Ana Palmira Bittencourt Santos Casimiro *Lívia Diana Rocha Magalhães **

Ruy Hermann de Araújo Medeiros ***

Resumo: Relatamos uma medida de intervenção de acordo com os objetivosfins do Museu Pedagógico: rastreamento, catalogação, preservação emusealização de quaisquer documentos – escritos, sonoros, fílmicos oufotográficos – considerados importantes para organizar o estudo, a reflexão, aprodução de conhecimentos e saberes sobre a história da educação na regiãoCentro-Sul da Bahia. Adotando as perspectivas teóricas de Thompson (1981),de Schaff (1978) e do próprio Marx (1973) e os referenciais teórico-metodológicos de Jameson (1964) e de Schellenberg (apud JAMESON, 1964),diagnosticamos a necessidade imediata de intervenção no arquivo escolar daDiretoria Regional de Educação e Cultura (Direc-20). O arquivo encontrava-se instalado numa pequena sala, que integra conjunto de outras alugadas peloEstado, e abrigava documentos de escolas públicas e particulares extintas.

* Doutora em Educação; Professora da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (Uesb).E-mail: [email protected]** Doutora em Educação; Professora da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (Uesb).E-mail: [email protected]*** Advogado; Especialista em Direito; Professor da Universidade Estadual do Sudoeste daBahia (Uesb). E-mail: ruy-medeiros.bol.com.br

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208 Ana Palmira Bittencourt Santos Casimiro et al.

Apresentamos uma proposta junto à Reitoria da Universidade Estadual doSudoeste da Bahia (Uesb) e à Coordenação Geral da Direc-20 de acolher oarquivo em nosso próprio espaço. Coube à Direc-20 transferir seu pessoalpara o local, como uma espécie de extensão do órgão, em espaço adequadocedido pelo Museu.

Palavras-chave: Museu Pedagógico. Arquivo. Documentos escolares. RegiãoCentro-Sul da Bahia

A concepção pedagógica do Museu da UESB

O Museu Pedagógico da Universidade Estadual do Sudoeste daBahia, situado na região Centro-Sul do Estado, já é conhecido comoum lugar destinado não só à pesquisa, à extensão e ao estudo sobre ahistória da educação nacional e regional, mas, principalmente, àcatalogação de fontes documentais primárias, cartográficas,iconográficas, fílmicas, sonoras, literárias, estatísticas, sejam elas oraisou escritas, tendo em vista possibilitar diferentes olhares e leiturasinterdisciplinares sobre o mesmo objeto, ou seja, a educação. É, pois,uma concepção de Museu que funciona como lugar vivo e dinâmico,mantido, sobretudo, pelo princípio interdisciplinar.

A criação e a implantação paulatina do Museu se deram,particularmente, em decorrência do amadurecimento do diálogo, dasdiscussões acumuladas e da vontade expressa por sujeitos sociais –professores, alunos, técnicos administrativos, pessoas da comunidade– e do crescente interesse por pesquisa e registro histórico da educaçãoda região. Buscava-se, também, um “espaço” que viabilizasse acompreensão, interpretação, discussão e realização da investigaçãosistemática sobre seus objetos de estudos, suas interpelações einterrogações. Tais aspectos possibilitaram a implantação real dessaidéia do projeto, no final do ano de 1999.

O Museu Pedagógico, apesar de estar ainda em processo deorganização, se constitui, hoje, como um espaço de produção deconhecimentos, reflexões, pesquisa e produção de saberes, sobrequestões relacionadas à trajetória da educação. As formas de articulaçãoentre ensino, pesquisa e extensão do Museu Pedagógico, como espaço

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livre para permanente olhar, interpretação e reflexão sobre a educaçãobrasileira, abrem espaço às várias áreas de conhecimento, aos diversossaberes e informações, possibilitando a formação de grupospermanentes, eventuais e livres.

O saber interdisciplinar, que dá sentido e organização à pesquisa,ao ensino e à extensão no Museu Pedagógico, vem se concretizandograças à sua equipe multidisciplinar e à implementação de várias propostasteórico-pedagógicas que se unem em torno da perspectiva apontada porThompson (1981), autor que considera que o diálogo entre fontesdocumentais poderá desencadear interrogações às evidências; por Schaff(1978), o qual diz ser possível o acúmulo de verdades relativas; ou, ainda,pelo próprio Marx (1973), que afirmou ser a partir do mais desenvolvidoque podemos entender o menos desenvolvido.

Além do trabalho de planejamento e consolidação dos gruposde estudo, extensão e pesquisa, como proposta básica, fundamentadana própria razão de existência do Museu, a investigação e a organizaçãodo conhecimento, em termos didáticos, estão constituídas em tornode dois grupos de pesquisas, que formalizam a pesquisa do MuseuPedagógico: um que trata da educação escolar propriamente dita eoutro que trata da educação não escolar, nas suas variadasmanifestações.

No processo de reconhecimento dos acervos e fontesdocumentais da região e nas nossas primeiras ações de busca e coletade documentos para o projeto de pesquisa: “A educação no sudoestebaiano: seus sujeitos, materiais e representações”, localizamosimportantes arquivos escolares de escolas extintas, armazenados naDiretoria Regional de Educação e Cultura da nossa região (Direc-20) eem escolas que funcionam desde os anos de 1940 na cidade de Vitóriada Conquista e região Centro-Sul do Estado da Bahia.

Pudemos observar que a situação de determinados arquivos eraprecária e que muitos documentos importantes para o conhecimentoda educação regional corriam o risco de desaparecer, além depermanecerem inéditos aos olhos dos estudiosos e dos interessados nahistória da educação e na história local e regional.

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Nesta comunicação, pretendemos relatar uma medida deintervenção que está sendo realizada, sobretudo a transferência dearquivos de escolas extintas, até então, sob a guarda da Direc-20, para oMuseu Pedagógico, de acordo com os seus objetivos fins: rastreamento,catalogação, preservação e musealização de quaisquer documentos,sejam eles escritos, sonoros, fílmicos ou fotográficos, consideradosimportantes para organizar o estudo, a reflexão, a produção deconhecimentos e saberes sobre a história da educação no município.

A intervenção

Neste caso, especialmente, a equipe do Museu Pedagógico, combase no referencial teórico-metodológico que privilegia os pensamentosde Jameson (1964) e de Schellenberg (apud JAMESON, 1964) e na realidadeempírica das suas ações de pesquisa, diagnosticou uma necessidadeimediata de intervenção neste importante arquivo que abriga osdocumentos escolares pertencente à rede escolar estadual. Assim,precisava ser evidenciada a situação do arquivo escolar da Região Centro-Sul da Bahia, sob a guarda da Direc-20.

O arquivo encontrava-se instalado em uma pequena sala queintegra um conjunto de outras, alugadas pelo Estado, no EdifícioConquista Center, 6º andar, Praça Tancredo Neves nº 86, no centro dacidade de Vitória da Conquista, e abrigava documentos de escolaspúblicas e particulares, já extintas. Tratava-se, na verdade, de um depósitode documentos, provido de estantes de aço, cujo espaço não permitia acirculação, ao mesmo tempo, de mais de uma pessoa. Num dessescorredores, uma pessoa mal podia passar. A leitura e o manuseio dosdocumentos eram feitos, pelos pesquisadores, fora do local (corredor),embora no conjunto de salas. A sala-arquivo não tinha mais nenhumespaço para abrigar novos documentos.

Apesar da situação do abrigo, é de justiça ressaltar que tanto osgestores anteriores quanto a atual gestora vinham zelando e conservandoos documentos sob sua guarda. O estado de conservação é bom, estãoaptos para o manuseio com as cautelas que merecem para retirada de

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resíduo de poeiras em alguns deles. Muitos se encontravamacondicionados em pastas classificadores, e outros, em pacotes. Háreconhecimento, por parte da gestora e de funcionários, da necessidadede conservar a integridade dos documentos e a sua guarda permanente,e eles o fazem conscienciosamente, mesmo que isso dificulte suaspróprias condições de trabalho.

Os documentos do arquivo não possuem nenhuma classificação,no entanto apresentam uma separação inicial, por origem, que temfacilitado a localização daquele documento desejado. Por outro lado, estavasendo permitido o acesso responsável e necessário ao arquivo, por partede interessados, na forma prevista na legislação. Mas, na realidade, nãohavia espaço físico suficiente nem móveis, para abrigar pesquisadoresou, mesmo, funcionários, naquele âmbito, por sua diminuta extensão.

Apresentamos uma proposta de convênio entre a Uesb/MuseuPedagógico e a Direc-20/Secretaria da Educação da Bahia para abrigaro rico acervo de documentos que estavam correndo risco de desaparecer,na situação em que se encontravam. O convênio foi firmado em 2005,cabendo à Equipe do Museu Pedagógico acolher o arquivo da Direcem seu próprio espaço e, à Direc-20, transferir seu pessoal para o local,como uma espécie de extensão do órgão, em espaço adequado, cedidopelo Museu. A equipe do Museu deverá organizar, musealizar edisponibilizar os documentos pertinentes ao público interessado,pesquisadores ou pessoas da região, na demanda por sua história escolar.

Tratou-se, pois, de transferir a documentação para local maisadequado, a fim de que se possa cumprir o quanto dispõe a legislaçãoatual de arquivos, com a vantagem secundária de deixar a sala disponívelpara outras atividades da Direc-20. Porém, não se trata apenas deencontrar espaço mais amplo para os documentos, mas de depositá-los em local com dimensão suficiente, com área de leitura, vigilância defuncionários, de classificá-los, mantê-los bem conservados, catalogá-los, divulgar sua existência, sua importância e finalidade e colocá-los aserviço das atividades públicas, da proteção de direitos e da pesquisa eda produção do conhecimento.

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Considerando que não é possível a história sem fontes e queesses documentos são as fontes históricas fundamentais da históriaeducacional da região e, destarte, por ser de suma importância esseacervo, tanto para os servidores, interessados, como para o governo ea sociedade é que a preservação do arquivo se faz necessária,principalmente porque:

a) quando o arquivo estiver no Museu Pedagógico e recebertratamento adequado à sua natureza, sua finalidade será potencializada.Da mesma forma, com os documentos de estabelecimentos nãoextintos, com base na sua longevidade, conforme estabelecido noconvênio, o governo terá, centralizadas, informações necessárias eprontamente disponíveis;

b) alunos e professores, com a guarda, conservação, classificaçãoe possibilidade de acesso aos dados documentais, poderão tercomprovantes de sua situação e direitos decorrentes de seus cursos. Emais que isso: ter-se-á documentada parte da vida de pessoas, que têmdireito de ver preservados seus comprobatórios biográficos,documentos que integram suas vidas e de seus semelhantes;

c) a História, especialmente a História Cultural ou Educacionalterá no arquivo da Direc-20 fontes essenciais, pertinentes a toda a regiãoCentro-Sul, para a pesquisa. Organizado o arquivo, estudiososproduzirão conhecimento, estudantes e professores poderão conhecere fazer conhecer a história e, nos cursos de História e de Pedagogia edemais áreas da educação, será possibilitada e desenvolvida a finalidadede pesquisa e produção do conhecimento cometida constitucionalmenteàs universidades. Ademais, o passado escolar de gerações será revividoem textos. Não há dúvida do valor cultural desse arquivo.

O fato de tratar-se de arquivo setorial não lhes diminui omínimo de relevância, para servidores em geral, governo, interessadose sociedade. Já se tornou truísmo dizer que os “arquivos constituema memória do governo”. São eles necessários ao planejamento,mantêm informações sobre as diversas ações e realizaçõesgovernamentais, ministram informações essenciais para a continuidade

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administrativa, informam sobre direitos e prerrogativas deadministrados e administradores, entre outros fins oficiais.

O arquivo escolar da Direc-20 traz a história de escolas, alunos,dirigentes educacionais e professores. O seu arquivo não corrente (deestabelecimentos extintos) informa ao público atingido pela açãogovernamental e particular o número de formandos por ano, tipo deensino, currículo, etc., necessário ao conhecimento da evolução e aoplanejamento governamental no setor. Quando o arquivo da Direc-20receber os documentos não correntes de estabelecimentos não extintos,sua finalidade será potencializada, e o governo terá centralizadasinformações necessárias e prontamente disponíveis.

Reunidos em um espaço adequado, catalogados, conservados eclassificados os documentos, haverá democratização de acesso às fontese desenvolvimento do conhecimento científico. Não é possível a históriasem fontes, e os documentos ainda são as fontes históricasfundamentais. Vale a pena revisitar as palavras de Jameson (1984), paraquem o homem é o único animal que deixa documentação a ser usadapela posteridade. Seja isso uma benção ou uma maldição, ele aprendecom a sabedoria acumulada ou com os erros do passado. Ao passo quea lembrança individual se transforma em pó ou cinzas, a memóriacoletiva sobrevive em documentos escritos. Essas experiênciasregistradas do passado evitam ensaios onerosos e experimentosdesnecessários no futuro. Segundo o autor,

Tanto as coletividades religiosas como as seculares têm seusidolatrados patrimônios históricos. As igrejas referem-se a umaplêiade de homens e mulheres elevados ao estado de santidade.As nações cultuam a memória dos seus estadistas. As famíliasreferem-se com orgulho à sua genealogia. As organizaçõesimortalizam o nome de seus fundadores em placas de bronze.Os acadêmicos emitem publicações especiais em memória deseus membros exponenciais e publicam as primeiras ediçõesde suas obras. Os artistas, inventores, descobridores, mártires,revolucionários, heróis, etc., que marcaram indelevelmente suageração, são reverenciados pela própria geração ou pelasgerações futuras.

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Museus e bibliotecas, de quaisquer tipos, contam a história dopassado e as realizações de indivíduos e grupos. Servem comoos repositórios do passado para a instrução e edificação dasgerações futuras. Esses museus e bibliotecas, por meio devariados objetos de arte e literatura, retratam as lutas, osmalogros e as conquistas do homem, tanto inspirando comoprevenindo sua descendência.Os documentos públicos, tais como a correspondência legal,política, cultural, e mesmo pessoal, possuem valor histórico.Sua preservação permanente transformou-se em problema deimportância capital. Daí, os arquivistas colecionarem textos,auxílios audiovisuais, mapas, correspondência, formulários,depoimentos, minutas, contratos comerciais, itens relativos agenealogias, acordos nacionais e internacionais, notas,declarações, etc. Essa função de coletar material de diferentestipos impõe grande responsabilidade ao arquivista porque lhecabe determinar o que deve ser preservado e posto ao alcancedo público quando surge a procura.

Em resumo, o arquivo não corrente da Direc instalado no MuseuPedagógico deverá desempenhar aquela missão apontada por T. R.Schellenberg (apud JAMESON, 1964, p. 21-25): a) incrementar a eficiênciagovernamental; b) preservar os recursos culturais representados pelosdocumentos oficiais; c) proteger direitos pessoais estabelecidos pordocumentos oficiais; d) exercer tarefa de governo.

Quanto à disponibilidade, pretendemos: a) colocar osdocumentos numa ordem tal que os tornará disponíveis, e a informação,neles contida, acessível ao uso; b) descrever os documentos mediantemeios de busca, como índices e catálogos, que farão conhecidos seucaráter e conteúdo; c) prestar serviço não só ao público, mas, também,ao governo, no que toca a documentos transferidos para sua custódia.

Proposta de instalação

Propomos o funcionamento do Arquivo da Direc-20, para finsde pesquisa, em um prédio de caráter histórico, localizado na zonacentral da malha urbana de Vitória da Conquista, próximo da sededaquele órgão. O prédio cujos cômodos deverão abrigar o arquivo é oedifício popularmente conhecido como Ginásio do Padre, que, durante

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muitos anos, foi dirigido pelo Padre Luís Soares Palmeira, e ondefuncionou o primeiro estabelecimento de ensino secundário de toda aárea do Planalto de Conquista e circunscrição da Direc-20.

O prédio do velho Ginásio de Conquista está localizado na PraçaSá Barreto, aberta em 1904, hoje integrante da parte central da malhaurbana de Vitória da Conquista, pertence à Arquidiocese de Vitória daConquista, mas encontra-se em regime de longo comodato para usopela Uesb, que o está reformando para ali desenvolver as atividades doMuseu Pedagógico.

Origem do prédio

A construção do edifício ocorreu a partir da década de 1920,por iniciativa da Igreja Católica, com subscrição pública. Construídoem parte, a Prefeitura Municipal o ampliou e ali manteve estabelecimentode ensino. Porém, em 1938, foi devolvido à Igreja Matriz Nossa Senhorada Vitória, mediante escritura de doação que se encontra registrada afls. 270 do livro 3-H, do Cartório do 1º Ofício do Registro de Imóveise Hipotecas da Comarca de Vitória da Conquista. Então o edifício foidescrito como

[...] prédio sito à Praça Dr. Sá Barreto, nesta cidade e primeirodistrito de Conquista, contendo dos vinte e cinco (25) janelasde frente, duas (02) e dois portões, inclusive pavilhão, muro defrente, com paredes de adobes, coberto de telhas, atijolado ochão, com dois salões assoalhos, forrado, murado, edificadoem terreno foreiro da mesma Igreja Matriz de Nossa Senhoradas Vitórias, cercada pelo fundo, com cercas de arame nos trêslados, separando-os dos vizinhos que são terrenos de Dr.Crescêncio Antunes da Silveira, terrenos ocupados peloMunicípio e terreno da mesma Igreja dados em arrendamentoa terceiros.

Após abrigar escola municipal e, temporariamente, oEducandário Sertanejo, do poeta Euclides Dantas, nas décadas de 1920e 1930, a Igreja Matriz de N. Sra. das Vitórias o doou ao Padre Luiz

Soares Palmeira para que, ali, o religioso instalasse um ginásio (escolasecundária). Naquele mesmo ano, o Padre Palmeira transferiu-se do

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Ginásio da cidade de Caetité para o prédio da Praça Sá Barreto,implantando em Vitória da Conquista o primeiro ginásio da região. OPadre construiu, em anexo, sua residência, que seria demolida, jádeteriorada, em década de 1970. O Ginásio de Conquista adquiriugrande nomeada e muitos conquistenses que, depois, seguiram diversasprofissões, aí estudaram. Em razão disso, a comunidade local tem grandecarinho pela casa por onde passaram tantos alunos e professores.

Posteriormente, nos anos 60, o prédio foi transferido para aDiocese que aí o manteve, sob o título de Colégio Diocesano, até aconstrução de outro prédio na mesma praça, para onde transferiu suasatividades. Mas o velho prédio continuou servindo à educação e cultura.Aí funcionou a Faculdade de Formação de Professores, embrião daUniversidade Estadual do Sudoeste da Bahia, e o museu Padre Palmeira/Arquivo Municipal.

Atualmente o prédio encontra-se de posse da Uesb em regimede comodato celebrado com a Diocese de Vitória da Conquista, paraabrigar, justamente, o Museu Pedagógico da Uesb. No momento passapor uma reforma básica para recuperação de danos causados pelo tempoe pelo descaso com um monumento, do início do século passado.

Caracterização e importância

O prédio que abriga o Museu Pedagógico e recebeu osdocumentos da Direc-20 é uma edificação térrea, construída de adobes(barro/argila crua), de paredes largas (tijolos assentados a tição, isto é,de forma a tornar grossas as paredes), conservando o padrão dearquitetura de velhos prédios de colégios, com salas amplas, grandesalão, janelas altas e largas. Exceto quando ao teto, piso e anexoresidencial, conserva-se inteiramente como era.

Mas, seu valor arquitetônico fica muito aquém do grande valorhistórico. Pessoas de vários lugares ainda o procuram para mostrar aosfilhos e netos, orgulhosamente, o local onde estudaram. Afinal, era oúnico Ginásio num grande raio de extensão e era privilégio de poucosestudarem ali.

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Nesse espaço, o arquivo não corrente da Direc-20 (que envolverá,inclusive, o extenso arquivo do extinto Colégio Diocesano) ocuparásala de guarda e conservação e sala de consulta com respectivo mobiliárioadequado. A documentação será classificada e catalogada. A gestão doarquivo deverá ser conjunta, envolvendo pessoal da Secretaria daEducação do Estado da Bahia e da Universidade Estadual do Sudoesteda Bahia (Uesb), sob a guarda e assessoria técnica, é claro, da Equipedo Museu Pedagógico. O arquivo guardará não apenas documentaçãode escolas extintas, mas, também, todo arquivo não corrente das escolaspúblicas, a documentação pessoal do Padre Palmeira, livros didáticosantigos, bem como fontes primárias e secundárias provenientes dasações de busca dos grupos de pesquisa do Museu Pedagógico.

No espaçoso prédio, de arquitetura neoclássica, se bem queobedecendo a um padrão mais simplificado do que observamos nosprédios da mesma época nas metrópoles (como era usual no tempo dasua edificação, na região interiorana da Bahia), funcionará, igualmente,o Museu Pedagógico, voltado para as atividades de pesquisa, extensão,produção de conhecimento, preservação de patrimônio cultural ehistórico-educacional. Isso permitirá visão integrada, como, porexemplo, verificação de currículos, de dados de público envolvido, emconfronto com recursos da época, livros didáticos e outras informações.

Em resumo, as partes pretendem estabelecer cláusulas de gestão eguarda (inclusive na forma ampla prevista no Art. 37, 8º, da ConstituiçãoFederal), em que sejam observadas as finalidades do contrato/convênio/acordo de gestão e, principalmente, que sejam firmadas:

Obrigações/atribuições da UESB

- Fornecer espaço adequado para conservação e manutençãodo arquivo não corrente da Direc-20 e para consulta dosdocumentos.

- Classificar e catalogar os documentos.- Fornecer cópia do método e critério de classificação e do

catálogo à Direc-20 e a outros órgãos (a estes, quando solicitados).

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- Criar sistema de classificação de documentos de arquivo escolara fim de reproduzir arquivos com procedimentos adequados.

- Atender pedido de cópias de documentos ou de informaçõesconstantes do acervo à Direc-20.

- Criar condições de conhecimento dos documentos apesquisadores.

- Comunicar ocorrências que possam atentar contra a conservaçãoe integridade dos documentos.

- Contribuir com funcionário de apoio.

Obrigações/atribuições da Secretaria da Educação

- Designar funcionários para serviços de apoio.- Fornecer estantes (12), armários (10) e mesas (04), para equipar

a sala que vai abrigar o acervo.- Transferir arquivos não correntes de escolas públicas e privadas

para o arquivo escolar da Direc-20, ao prédio do MuseuPedagógico da Uesb.

- Promover seminários em conjunto com a Uesb sobredocumentação e arquivo escolares.

Finalizamos este relato, informando que o contrato já está sendoexecutado. A Direc-20 embalou cuidadosamente os documentos, e aUesb/Museu Pedagógico está realizando o processo paulatino detransferência.

PEDAGOGIC MUSEUM: THE ACADEMICINTERVENTION AS SOUTHEAST BAHIA EDUCATION

HISTORIC FOUNTS PRESERVATION.

Abstract: Describes an intervention way according to the Pedagogic Museumfinality: Searches, catalogs, preserve and archives any kind of documents, text,records, photos considered important to organize the knowledge, study,reflection and production in the southeast Bahia education. Using theThompson (1981), Schaff (1978) and Marx (1973) theory perspective, andthe Jameson (1964) and Schellenberg (apud JAMESON, 1964), method referential

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was found an immediate intervention necessity in an important archive thatcontains the scholars documents of the southeast region, the scholar archiveof the Education and culture regional directory (Direc-20).The refereed archivewas installed in a small room, that includes another ones, rented by the Stateand it contents public and privates extinct schools documents. We, with theUESB and the DIREC-20, propose that the museum members take theDIREC-20 archive in our own space. Is supposed to the DIREC-20 transferthey employers to a new and adequate place offered by the museum, like anextension of their institution.

Key words: Pedagogic Museum. Archive. Scholar documents. Southeast Bahiaregion

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REGISTRO EM ARQUIVOS SOBRE AINDÚSTRIA DE LATICÍNIOS NA REGIÃO

SUDOESTE DA BAHIA1

Ana Elizabeth S. Alves *Gilneide de Oliveira Padre Lima **

Manoel Nunes Cavalcanti Júnior ***

Resumo: Este artigo apresenta uma breve discussão sobre documentos(jornais, revistas e relatórios administrativos) encontrados em arquivos acercado desenvolvimento da indústria de laticínios e da qualificação profissionalrealizada pelo Posto Experimental de Laticínios, na região de Vitória daConquista, Bahia, articulando aspectos do desenvolvimento socioeconômicobrasileiro e suas repercussões sobre a economia regional e a educação.

Palavras-Chave: Arquivo. Documento. Indústria de laticínios.

Práxis Educacional Vitória da Conquista n. 2 p. 221-236 2006

1 Parte deste texto foi apresentada no VI Congresso Luso-Brasileiro de História da Educação,de 17 a 20 de abril de 2006, em Uberlândia, MG.* Doutora em Educação pela Universidade Federal da Bahia (Ufba). Professora da UniversidadeEstadual do Sudoeste da Bahia (Uesb). E-mail: [email protected].** Mestre em Pedagogia Profissional pelo Centro Federal de Educação Tecnológica da Bahia(Cefet-BA)/ISPETP-CUBA. Professora do Cefet-BA. email: [email protected].*** Mestre em História do Brasil pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) . Professordo Centro Federal de Educação Tecnológica da Bahia (Cefet-BA). E-mail:[email protected].

DOSSIÊ TEMÁTICO:Fontes Documentais para a História da Educação

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Ana Elizabeth S. Alves et al.222

Introdução

Os arquivos são “lugares de memória” que possibilitam a guardafísica de documentos, o tratamento técnico e a organização dainformação, como, também, lugares que permitem a compreensão dopassado e as múltiplas relações que os documentos estabelecem com opresente (VIDAL, 2005). Os documentos em geral são compreendidoscomo quaisquer objetos, qualquer base de conhecimento fixadamaterialmente que elucide, instrua, reconstrua, prove ou comprovecientificamente algum fato ou acontecimento. Nessa perspectiva,podemos considerar a pluralidade do campo da fonte documentalhistórica presente em um arquivo, envolvendo desde escritos de todosos tipos até documentos figurados (LE GOFF, 1993). Ou seja, tudo quese relaciona a todos os homens e mulheres, como agentes da históriaem qualquer tempo e lugar. Por intermédio das possíveis leituras acercados documentos existentes em um arquivo, podemos compreender amemória de um dado objeto de estudo.

A consulta dos registros de documentos em arquivos nospermitiu conferir sentido ao passado pelo manuseio e análise de fontespara uma pesquisa que investiga a indústria de laticínios e a qualificaçãoprofissional de técnicos laticinistas a partir dos anos 30 e o EnsinoPrático em Laticínios, ministrado no Posto Experimental de Laticíniosda cidade de Vitória da Conquista,2 reconstituindo parte da história.

Tomando como referência as questões apontadas acima,inicialmente, o presente artigo descreve os documentos encontradosnos arquivos pesquisados, em seguida, de acordo com esses documentos,relata o desenvolvimento da indústria de laticínios e do Ensino Práticoem Laticínios.

2 A pesquisa “O Trabalho e a História da Qualificação Profissional na Indústria de Laticínios naRegião Sudoeste da Bahia” está sendo desenvolvida pelo grupo de estudos e pesquisas Trabalhoe Educação do Museu Pedagógico da Uesb. O objetivo é conhecer a história da qualificaçãoprofissional dos produtores e trabalhadores do ramo de laticínios da Região Sudoeste da Bahia,iniciada pelo “Posto Experimental de Laticínios” em 1934, hoje extinto, bem como as suasarticulações/influências na transferência de conhecimentos técnicos para a construção da indústriade laticínios local até os dias de hoje. A agência financiadora dessa pesquisadora é a Fundação deAmparo à Pesquisa do Estado da Bahia (FAPESB).

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223Registro em arquivos sobre a indústria de laticínios na região Sudoeste da Bahia

Os arquivos

No Arquivo Público Municipal de Vitória da Conquista,pesquisamos exemplares do jornal O Combate do período de 1934 a1937; 1943 a 1950 e 1957 a 1959. Como fonte rescrita primária, osjornais captam a visão da sociedade da época (ou de parte dela) sobre oobjeto estudado, sendo um meio extremamente expressivo das idéias evalores de um tempo, possibilitando apreender as concepções daquelemomento sobre o tema de um modo mais ágil, informal, e percebernovos aspectos sobre a organização da vida na região e sua articulaçãocom o trabalho e o processo educativo.

Localizamos na Biblioteca Central do Estado da Bahia, emSalvador, alguns exemplares da revista Bahia Rural, outra fonte escritasignificativa para desenvolver estudos sobre a história da indústria delaticínios. Esta revista é uma publicação mensal da sociedade civil EditoraBahia Rural, do período de 1933 a 1958. Em alguns exemplares,catalogamos informações a respeito da criação e funcionamento doPosto Experimental de Laticínios em Vitória da Conquista e sobre asituação das indústrias de laticínios na cidade àquela época. Essedocumento apresenta uma variedade de textos de caráter educativo,direcionados para a área agrícola e para a indústria de laticínios, aexemplo de artigos de intelectuais que tratam da história dos municípios,do ensino prático de laticínios, da educação da juventude rural (escolaspara os filhos dos vaqueiros), entre outros. Muitos dos conteúdos darevista refletem um caráter de expansão de conhecimentos técnicospara uma determinada clientela, demonstrando ações extensionistasque estabeleciam uma relação entre técnicos, produtores rurais,trabalhadores e a indústria de laticínios, com o objetivo de organizarcientificamente o trabalho para aumento da produtividade emodernização do campo. Um debate que tinha como pano de fundo oobjetivo de construir um projeto de nação brasileira, alinhando o paísno caminho do capitalismo mundial (MENDONÇA, 1996). Para tanto,era importante criar formas de intensificação do processo de produçãocom a introdução de inovações tecnológicas e a formação de um “novo”trabalhador.

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Na pesquisa desenvolvida no Arquivo Público Pedro Calmon,sessão republicana, em Salvador, rastreamos documentos das atividadesdesenvolvidas pela Secretaria de Agricultura, Indústria e Comércio nasdécadas de 30, 40 e 50, em busca de informações sobre os laticínios naRegião Sudoeste. Os principais documentos encontrados foramprocessos de isenção de impostos, relatórios de vistorias em fábricasda região e relatório das atividades do Posto Experimental em 1942.Os documentos mostraram que uma das preocupações do governo daBahia nos primeiros anos da interventoria (1932-1934) de JuracyMagalhães (1936) foi o fomento da indústria de laticínios. Uma dasestratégias políticas do então interventor foi a de conquistar o apoiodos chefes políticos do interior baiano. Em Conquista, um dos principaislíderes políticos era o Coronel Deraldo Mendes, chefe local do PartidoSocial Democrático (PSD), partido criado por Juracy para enfrentar aseleições para governador em 1934. A criação do Posto em Conquistanão deixava de ser um trunfo do interventor e instrumento depropaganda para angariar apoio a sua candidatura ao governo estadual(O COMBATE, 1934; GUEIROS, 1996, p. 130-134).

Indústria de laticínios e ensino prático

Tradicional zona de pecuária, a região de Conquista, desde o seudesbravamento na segunda metade do século XVIII, trilhou o caminhoda criação de gado (SOUSA, 2001, p. 104-109). A cidade foi a pioneirabaiana na produção de manteiga em moldes industriais. Há dois relatosa respeito deste fato. Segundo o professor Pedro B. Peres, a primeirafábrica de manteiga foi fundada em 1920 pelo Coronel Deraldo Mendese Cia., e seu produto denominava-se “Elza” (PERES, 1936, p. 856). Já oagrônomo Honorato de Freitas afirmava que a manteiga Elza disputavao pioneirismo com a manteiga “Oriental”, que teve curta duração,produzida pelo Sr. Virgílio Mendes Ferraz (FREITAS, 1936, p. 1153-1154).Segundo os relatos, dá-se a entender que a manteiga Elza foi produzidaem parceria pelos Srs. Deraldo Mendes e Américo da Silva Almeida.Em 1936, ela ainda estava firme no mercado, e sua fábrica continuava

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no mesmo local, na Fazenda Casa de Telhas, pertencente à esposa deum de seus fundadores, a Srª Anna Mendes de Almeida.

Em 1930, surgia a Cooperativa de Laticínios de Conquista,fundada por elementos da própria cidade, “com 150 contos de capital,aparelhagem moderna, instalação frigorífica, laboratório etc.” (PERES,1936, p. 856). A marca produzida pela Cooperativa foi a Condor, queenviou, para Salvador, nos seus primeiros sete meses de funcionamento,15.140 kg de manteiga. Ainda em 1930, enfrentando dificuldades, aCooperativa foi arrendada para o Sr. Julius Frank, e a marca passou adenominar-se “Conquista”. Não resolvidos os problemas, a Cooperativadeixou de produzir pouco tempo depois (FREITAS, 1936, p. 1154).

Segundo Honorato de Freitas, no início daquela década, maisexatamente em 1931, a cidade de Conquista via surgir mais uma fábrica,de propriedade da firma Irmãos Rosa e produtora da marca Catita. Suaprodução em 1932 foi de mais ou menos 24 mil kg de manteiga, saltando,em 1935, para 82 mil kg e, para 1936, a previsão era superar os 100 milkg (FREITAS, 1936, p. 1154).

Entre 1932 e 1934, uma forte seca assolou a região central doEstado, onde se localizavam os municípios de Mundo Novo e Morrodo Chapéu, sedes também de fábricas de manteiga. Para fugir desseproblema, alguns proprietários transferiram-se para a região Sudoeste,fortalecendo a indústria de laticínios ainda mais a partir de 1933.Conquista recebeu a fábrica Coroa, do médico veterinário J. CohimRibeiro, que, mais tarde, mudou sua marca para 2 de Julho. A fábricaGarota, pertencente ao Sr. Octavio Meneses, instalou-se em Itambétambém em 1933 e, em 1935, ela já produzia 140 mil kg de manteiga.Por fim, o município de Encruzilhada recebeu a fábrica Princezita, depropriedade do Sr. Raul Borba, em 1934. No ano seguinte, sua produçãoalcançava os 50 mil kg (FREITAS, 1936, p. 1154).

O Sr. Otto Frensel, diretor técnico da Sociedade Nacional deAgricultura e secretário da Associação dos Exportadores de Leite parao Distrito Federal, destacava as “excelentes condições” para a produçãode manteiga na zona de Conquista (PERES, 1935, p. 257-259). A produçãode queijo também tinha ali condições bastante favoráveis, tanto no que

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diz respeito à temperatura quanto à umidade, pois eram fatoresfundamentais para a cura e fermentação do leite (PERES, 1935, p. 257-259).

Em 1934, instalou-se na cidade de Vitória da Conquista o primeiroPosto Experimental de Laticínios da Bahia com o objetivo de incentivaro aproveitamento do leite na produção de queijo artesanal e manteiga,combinando princípios de uma moderna tecnologia, organizaçãoindustrial, transferência de conhecimentos técnicos para os produtoresrurais e qualificação da força de trabalho. Esta iniciativa teve por fimdisseminar, entre os criadores baianos, noções sobre pecuária de leite,higiene e defesa sanitária animal, assim como efetuar experiências e estudoscom o intuito de promover o desenvolvimento da indústria de laticíniosna região (BAHIA RURAL, 1936, p. 1211).

O Posto de Laticínios, portanto, estava sendo instalado numaregião favorável ao ramo da indústria leiteira, que, sozinha, produziaquase a totalidade da manteiga fabricada na Bahia, com uma previsãode produção, para 1936, superior a 328 mil kg, quantidade maior quetoda a produção baiana no ano de 1933 (PERES, 1936, p. 856).

A fotografia (Figura 1) mostra o prédio onde funcionou o PostoExperimental de laticínios na década de 30:

No Posto de Laticínios, desenvolviam-se várias atividadesdirecionadas para um mesmo fim. Uma delas voltava-se para a produção

Figura 1 – Fachada do prédio onde funcionou o Posto Experimental de laticínios na década de 30.

Fonte: PONDÉ, 1934.

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experimental de laticínios, análise em laboratório dos componentes doleite, disseminação de tecnologias e instruções sobre a instalação deusinas de beneficiamento, fábricas de laticínios, entrepostos de leite,cooperativas, postos de desnatação, etc.

Nessa mesma época, iniciou-se o Curso Prático de Laticínios(Figura 2), ministrado por professores técnicos agrônomos, na sede doPosto Experimental de Laticínios, regulamentado pela Secretaria daAgricultura, Indústria, Comércio, Viação e Obras públicas da Bahia,em 1934, com o objetivo de instruir, preferencialmente, os filhos dosfazendeiros, industriais ou operários deste ramo, interessados noconhecimento da tecnologia do leite e seus derivados (PONDÉ, 1934, p.86; BAHIA RURAL, 1936, p. 1211).

O currículo do curso era composto de aulas práticas sobrepecuária leiteira e laticínios. Durante o seu funcionamento, produziam-se variados tipos de queijos e manteiga não só para capacitar os alunosem relação ao feitio dos produtos, normas de higiene, mas, também,para ensiná-los a comercializar, relacionando os produtos segundo osingredientes, tipos e preços tabelados pela Secretaria da Agricultura. Ocurso era gratuito, oferecia um máximo de vinte vagas por ano, comduração mínima de dez meses e era essencialmente prático, “aprenderfazendo”, ensinando um ofício ligado à produção e destinado àformação de uma força de trabalho manual.

Figura 2 - Turma de práticos em laticínios em 1937. Fonte: FotoExtraída do arquivo particular de ex-aluno da Escola Prática de Latcínios.

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Ao final do curso, após exame de habilitação perante uma bancaexaminadora, os alunos recebiam um certificado que lhes concedia otítulo de “Prático em Lacticínios”, fornecido pela Secretaria daAgricultura do Estado. De acordo com o regulamento de criação docurso, os primeiros colocados no exame deveriam ser preferidos nasindicações quando surgissem vagas em cargos para o exercícioprofissional. No primeiro ano de seu funcionamento, o curso diplomoucinco práticos que foram trabalhar em fábricas de manteiga baianas emineiras, sendo a única oportunidade de uma profissionalizaçãoregulamentada para rapazes na cidade.

Nas notas publicadas no jornal O Combate, entre 1935 e 1937,pode-se observar a direção do Posto Experimental divulgando as datasde entrega de certificados de conclusão do Curso Prático aos alunosque o freqüentaram, fazendo referências ao local e à importância dosconvidados para o evento, demonstrando que este representava ummomento solene para a cidade (O COMBATE, 1935).

A concepção do curso estava voltada para a qualificaçãoprofissional de rapazes que tinham a intenção e as condições de, nofuturo, tornarem-se pequenos proprietários ou empregados emindústrias de laticínios; modernizar a produção nas propriedades dafamília; tornarem-se funcionários para o exercício do “ensinoambulante” em fazendas da região.

Nos depoimentos colhidos com ex-alunos, verificamos que ocurso cumpriu uma importante função educativa na qualificação depráticos em laticínios, sendo responsável pelo fomento edesenvolvimento da produção de manteiga e queijo do tipo Camponêsem meados da década de 30, que perdura até hoje, além de ter propiciadoos conhecimentos necessários à abertura de negócio próprio no ramode laticínios.

Naquela época, a cidade contava com poucas escolas primárias,públicas ou particulares, cursos que preparavam alunos para exame deadmissão em outras localidades, cursos de datilografia, corte e costura,culinária e música. Apesar de o ensino profissional na sua essência serassociado às classes pobres, o Curso de Prático em Laticínios

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representou certo avanço em termos educacionais para a cidade, emboraum avanço para poucos, uma vez que os candidatos deveriam apresentar,no ato da matrícula, diploma de curso primário expedido por escolapública ou particular de idoneidade reconhecida. O depoimento de umdos ex-alunos entrevistados esclarece que, para freqüentar o curso, aexigência era o exercício da leitura e da escrita.

A finalidade educacional do curso, que se distinguia das demaisinstituições de ensino elementar, era formar mão-de-obra especializadapara ministrar ensinamentos práticos nas fazendas e nas indústrias demanteiga. Já havia naquela época uma grande preocupação com aeducação dos trabalhadores da zona rural e da indústria, aliada a umapreocupação do Estado em oferecer alguma alternativa de inserção dejovens no mercado de trabalho e atender às demandas dos fazendeirose proprietários de laticínios com uma força de trabalho qualificada.Conforme Freitag (1986, p. 53), o Estado procurava atender àsnecessidades do setor privado assumindo o treinamento da força detrabalho “‘para criar um exército de trabalho para o bem da nação’ naspalavras do Ministro Capanema”.

O fomento da indústria de laticínios vai exigir uma maiorinstrução dos trabalhadores para o manejo com as máquinas e as normasde higiene. Segundo Aguiar (1936), técnico em laticínios do PostoExperimental, para a expansão e o desenvolvimento da indústria delaticínios, os conhecimentos técnicos e higiênicos são necessários desdea fonte de produção da matéria-prima até a última operação no fabricodo queijo e da manteiga. Para Aguiar, a região tem deixado muito adesejar, configurando um entrave para a expansão da produção.

Do ponto de vista das transformações históricas que estavamacontecendo no mundo do trabalho naquela época, a implantação doPosto Experimental de Laticínios no município e a instalação do CursoPrático de Laticínios refletem as influências do processo deintensificação do capitalismo industrial e o papel da intervençãoeconômica do Estado. Essas transformações surgiram nas primeirasdécadas do século XX no país. Nesse período, estabeleceu-se um jogo

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de interesses socioeconômicos que, às vezes, implicava,simultaneamente, solidariedade e oposição entre as oligarquiasagroexportadoras, de um lado, comprometidas em preservar os seusinteresses e, de outro, a burguesia industrial que ganhava projeção coma expansão urbano-industrial, tendo o Estado como aliado para criarcondições favoráveis à introdução desse novo modo de acumular. Alémdisso, havia o objetivo de construir um projeto para a nação brasileiraque enterrasse o passado colonial e alinhasse o país no caminho docapitalismo mundial (MENDONÇA, 1996, p. 268).

A década de 30 foi o período de aceleração do desenvolvimento dasrelações capitalistas nos centros urbanos. No campo, essas relações se ex-pandiram de modo desigual e com lentidão, do mesmo modo que ocorre-ram desigualdades marcantes entre regiões do país. O desenvolvimentodos centros urbanos impulsionava o crescimento de um mercado internoque demandava o crescimento da indústria e, neste sentido, novas áreasiam sendo incorporadas à economia de mercado. Esse novo modo de vidadesperta para a importância estratégica do sistema educacional, objetivandogarantir as mudanças estruturais ocorridas, criando estímulos de reduçãoda taxa de analfabetismo e estratégias de qualificação profissional a umnúmero maior de pessoas que já eram alfabetizadas para atender às neces-sidades de uma sociedade capitalista emergente (SODRÉ, 1980, p. 64-72).

Naquele momento, despontavam novas demandas educacionaispor conta da intensificação do capitalismo industrial no país. As exigênciasda sociedade industrial impunham mudanças na forma de pensar aeducação e a escola. Por um lado, havia a necessidade de eliminar oanalfabetismo por conta da grande concentração da população nos centrosurbanos com o objetivo de formar uma massa de consumidores e, poroutro, a necessidade de qualificar mão-de-obra para trabalhar nasmanufaturas. Havia também, segundo Cunha (2000), a intenção dedifundir uma ideologia que versava sobre a necessidade de educar o povo,tirá-lo da ignorância, da apatia, da superstição, para o “engrandecimentoe progresso da nação”, aliada ao desenvolvimento da industrialização,que juntos poderiam conduzir o Brasil ao nível das nações civilizadas.

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Como conseqüência do desenvolvimento urbano-industrial pós-1920 e, principalmente, depois de 1930, começará a se sentir anecessidade de formar elementos capacitados a desempenhar novasfunções no setor industrial e de serviços. Os hábitos da vida urbanacomeçam a exigir maiores níveis educacionais e o Estado é pressionadopelas massas populares a um maior acesso à educação. Já que o ensinosecundário era reservado para a elite, a saída era a criação de cursosprofissionalizantes (MACHADO, 1989).

A criação de cursos profissionais no Brasil sempre estevediretamente relacionada às necessidades do modo capitalista deprodução, configurando-se como expressão da divisão social e técnicado trabalho o que implica em diferentes formações, de acordo com aposição a ser ocupada no sistema produtivo. Segundo Kuenzer (1992,p. 12), a formação voltada para o trabalho está definida, desde seuinício, como destinada aos mais pobres que, sem acesso ao sistemaregular de ensino, teriam condição de ocupar as posições mais baixasna “hierarquia ocupacional”.

O sistema público de ensino oferecia um determinado caminhopara os alunos oriundos das classes mais abastadas e outro para asclasses populares que conseguiam chegar e permanecer na escola. Osprimeiros, depois de cursar o primário, eram encaminhados para oginásio, em seguida para o colegial, podendo optar por um cursosuperior. Para os segundos, o caminho, quando não evadiam do primário,era freqüentar um curso profissionalizante. O próprio Estado admitiuabertamente esse ramo de ensino como predestinado para as camadasmais desfavorecidas, só assumindo outra posição ideológica mais tardecom avanço do capitalismo no país.

Em Vitória da Conquista, novas necessidades de urbanizaçãoe o surgimento de um mercado de consumo já determinavam oaparecimento de outras exigências educacionais, demonstrado porprofessores da cidade ao expressar sua grande preocupação com oproblema do analfabetismo, inclusive do homem do campo (OCOMBATE, 1934).

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Na década de 30, a economia da cidade de Vitória da Conquistaera basicamente direcionada para atividades primárias ligadas à pecuáriae à agricultura de subsistência. O município tinha como principaisprodutos de exportação: gado, manteiga, requeijão, couro, poaia(ipecacuanha) e feijão (BAHIA RURAL, 1937), cuja maioria era controladae desenvolvida nos latifúndios, que pertenciam a um pequeno grupode fazendeiros da região, favorecendo a formação de uma populaçãode trabalhadores rurais que viviam em situação de miséria e ignorância.O principal comércio realizado por esses fazendeiros era a compra evenda de cabeças de gado. O leite era considerado como uma mercadoriade menor importância quando comparado com o gado, não obstantejá existirem na região algumas fábricas de manteiga.

Em meados dos anos 30, os fazendeiros locais e o governo de-batiam idéias em torno do melhor aproveitamento do leite. No Primei-ro Congresso de Criadores Baianos que aconteceu na cidade, em 1936,estavam presentes o interventor do Estado, técnicos em laticínios, fa-zendeiros e proprietários das fábricas de manteiga. O relato dos dis-cursos proferidos no evento mostra a importância do fomento à in-dústria de laticínios para o crescimento da região (BAHIA RURAL, 1936).

Agrônomos e técnicos em laticínios do Estado publicam artigospara difundir e demonstrar idéias sobre a produção de derivados doleite, com o objetivo de fomentar a indústria de laticínios (O COMBATE,1934; BAHIA RURAL, 1936). As oligarquias rurais do municípiodemandavam o desenvolvimento dessas indústrias, viabilizando aexpansão da produção e a ocupação de novas terras. O Estado, por suavez, tinha uma preocupação política e econômica em cooptar asoligarquias locais, que eram controladas pela classe dominante ligada àpecuária, e assumir um papel intervencionista, propiciando algumascondições favoráveis para o fomento da indústria de laticínios.

As exigências dessa nova produção indicavam a necessidade deassegurar a instrução primária, eliminando o analfabetismo equalificando profissionalmente indivíduos para trabalhar na produçãode queijo e manteiga.

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Esses dados obtidos a respeito da história da indústria delaticínios e da instalação do Posto Experimental na região de Vitória daConquista ilustram o avanço do modo capitalista de produção e devida, abrindo possibilidades de prosseguimento nos estudos acerca dastransformações técnico-organizacionais do capitalismo industrial paraa organização da produção no campo e a sua relação com o processode qualificação profissional de trabalhadores e produtores rurais.

Por fim, vale ressaltar que a localização, sistematização eproblematização das fontes documentais possibilitaram reconstruir oobjeto que está sendo investigado, atribuindo sentido a alguns rastrosde memória sobre a cidade, as pessoas e as instituições.

RECORD IN FILES ABOUT THE DAIRY INDUSTRY IN THESOUTHWESTERN REGION OF BAHIA

Abstract: This article presents a brief discussion on documents (newspapers,magazines and administrative reports) found in files about the developmentof the dairy industry and the professional qualification carried out by theExperimental Dairy Station, in the region of Vitória da Conquista – BA, andso articulating aspects of the Brazilian social economic development and itsrepercussion on the regional economy and education.

Key words: File. Document. Dairy Industry.

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O USO DAS FONTES NA PESQUISAHISTORIOGRÁFICA: QUESTÕES

METODOLÓGICAS INICIAIS

Marlete dos Anjos Silva Schaffrath *

Resumo: O texto integra um trabalho de pesquisa docente recentementeconcluído, cujo objeto é a investigação do lugar das fontes na pesquisahistoriográfica e, mais especificamente, uma análise acerca do uso das fontesmais comuns neste tipo de pesquisa. Apresenta os resultados das primeirasaproximações com o tema e se constitui da seleção de alguns estudos queajudam a situar o objeto de análise, sua problemática e, sobretudo, seuscaminhos metodológicos. Pretende discutir em que medida os historiadores epesquisadores da historiografia da educação podem significar as fontes emsuas pesquisas. Considerando a hipótese de que o uso das fontes estáirremediavelmente sujeito à perspectiva de análise do pesquisador (método),o que se tem visto são abordagens diversas sobre o papel das fontes naspesquisas, assim como são distintos os significados que a elas se atribuem.Entretanto, há ainda pesquisadores para quem as fontes passam pela pesquisaapenas como instrumento informativo ou, quem sabe, mero efeito de ilustração(como o que acontece com o uso de fontes imagéticas), sem que incidam sobreelas reflexões que deveriam caracterizar melhor o seu papel na pesquisa.

Palavras-chave: Fontes. Pesquisa historiográfica.

Práxis Educacional Vitória da Conquista n. 2 p. 237-246 2006

* Professora Assistente da Universidade Estadual de Maringá (UEM). E-mail:[email protected].

DOSSIÊ TEMÁTICO:Fontes Documentais para a História da Educação

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O interesse pelo estudo deste tema de pesquisa nasceu danecessidade de um tratamento adequado ao uso das fontes na pesquisahistoriográfica, que é onde temos trabalhado ultimamente. Nossaparticipação em diversos grupos nos tem motivado a realizar pesquisasno campo da historiografia da educação e, também, a utilizar pesquisascuja sustentação se dá pelas fontes documentais, imagéticas e outras.São fotografias, documentos antigos, documentos oficiais, sobre osquais (e sob os quais) traçamos um plano de pesquisa sem muitas vezesatentar para os critérios de sua utilização.

A pesquisa docente que dá origem a este texto se propõe a estudaro lugar das fontes na pesquisa historiográfica e, especificamente, detalharuma análise do uso das fontes mais comuns neste tipo de pesquisa, asaber: documentos oficiais, relatórios e falas de Presidentes dasProvíncias, relatórios e registros da educação brasileira, fotografias ematerial de circulação periódica. Pretende investigar a caracterizaçãodestas fontes assim como os critérios de sua utilização.

Este texto vem especialmente tratar do trabalho inicial dapesquisa, que se constitui de um estudo preliminar com a finalidade deestabelecer as bases teóricas e metodológicas sob as quais se estabeleceriaa pesquisa em si. Aqui se encontram descritas algumas consideraçõesacerca dos conceitos que envolvem a História como ciência e sãoapresentados alguns argumentos a respeito do trabalho do historiadore do uso das fontes em suas pesquisas.

Mas, por que investigar os aspectos teóricos e metodológicos dapesquisa historiográfica antes de tratar propriamente das fontes?

Logo nos primeiros estudos, surgiram algumas questões decaráter metodológico que pareciam cruciais para o desvelamento denosso objeto. E, neste momento, já não seria mais possível continuarnossa investigação sem antes revisitar as bases teóricas e metodológicasda pesquisa com fontes. A idéia era a de que, com os resultados dasprimeiras aproximações, constituir-se-ia um texto de orientação básicaque serviria como ponto de partida para o trabalho de pesquisa e comonorte ideológico para as escolhas e as análises que se fariam noencaminhamento da pesquisa.

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239O uso das fontes na pesquisa historiográfica: questões metodológicas iniciais

Assim, retomamos algumas questões mais gerais acerca daHistória e da pesquisa historiográfica a fim de delimitar um caminhometodológico que servisse como suporte para as interpretações a seremrealizadas na pesquisa. O texto que estamos apresentando, portanto,contém uma seleção de estudos e uma breve análise de suas propostas,que nos ajudam a situar nosso objeto de pesquisa (as fontes na pesquisahistoriográfica), sua problemática e, sobretudo, seus caminhosmetodológicos.

O interesse pelo estudo deste tema de pesquisa nasceu danecessidade de um tratamento adequado ao uso das fontes na pesquisahistoriográfica, que é onde temos trabalhado ultimamente. Temosparticipado de grupos de pesquisa nesta área, a saber: o grupo depesquisa em “Educação Pública”, ligado ao CNPq; e o grupo de pesquisa“Levantamento e catalogação de fontes primárias e secundárias de apoioà pesquisa em educação do DFE-UEM” ligado ao HISTEDBR(Unicamp). Nossa participação nestes grupos nos tem motivado arealizar pesquisas no campo da historiografia da educação e, também,a utilizar pesquisas cuja sustentação se dá pelas fontes documentais,imagéticas e outras. São fotografias, documentos antigos, documentosoficiais, sobre os quais (e sob os quais) traçamos um plano de pesquisasem muitas vezes atentar para os critérios de sua utilização. Este temsido o fator que mais tem influenciado nossos questionamentos acercado uso das fontes de pesquisa.

O que se pode advogar em favor de um tema de pesquisa que sepropõe a discutir o uso de fontes é o fato de que elas nos têm fornecidomotes para pesquisas diversas; é com elas que construímos nossosobjetos de análise, fazemos nossas investigações e, depois, as revelações.No entanto, ao mesmo tempo em que as fontes nos têm proporcionadohistoricizar nossos objetos, elas nos colocam um problema fundamentalque é exatamente estabelecer, reconhecer os limites e as possibilidadesde seu uso na pesquisa. A problemática fundamental neste trabalho ésaber em que medida os historiadores e pesquisadores da Historiografiada Educação podem significar as fontes em suas pesquisas; saber dequais perspectivas eles devem partir.

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Considerando a hipótese de que o uso das fontes estáirremediavelmente sujeito à perspectiva de análise do pesquisador(método), o que temos visto são abordagens diversas sobre o papel dasfontes nas pesquisas, assim como são distintos os significados que aelas se atribuem. Entretanto, há ainda aqueles pesquisadores para quemas fontes passam pela pesquisa apenas como instrumento informativoou, quem sabe, mero efeito de ilustração, sem que incidam sobre elasreflexões que deveriam caracterizar melhor o seu papel na pesquisa.

De início, antes de tudo é preciso avaliar algumas questõesmetodológicas da História e só então discutir o uso das fontes naspesquisas historiográficas. Não poderíamos, portanto começar semantes revisitar a pergunta que se coloca para os historiadores/pesquisadores: O que é História? No livro de E. Carr, Que é História,1

encontramos o fio condutor que pode nos levar à reflexão sobre estaquestão. Para Carr (2002, p. 65), a História “se constitui de um contínuoprocesso de interação entre o historiador e seus fatos, um diálogointerminável entre passado e presente”. Para ele, o historiador e osfatos históricos têm uma relação de interação, ou seja, na medida emque o historiador analisa, interpreta um fato, ele o significa. Assim, ohistoriador sem os fatos é inútil, e o fato sem o historiador está morto;há, portanto, entre eles, uma relação de recíproca dependência.

Ainda segundo o autor, é preciso considerar que o historiadorpertence a uma determinada época e, por isso, está ligado às condiçõesde existência de sua sociedade. Daí depreende-se que o trabalho deinterrogar as fontes para saber dos fatos e escrevê-los estáirremediavelmente ligado às condições históricas do historiador.

Mas então a História é mera subjetividade do historiador? Equanto ao seu caráter científico? Numa sociedade cujos padrõescientíficos são estabelecidos pela lógica positivista, onde tudo se soma,tudo se divide, como se poderia conferir o grau de Ciência a um ramodo conhecimento que se propõe a analisar os fatos em interação com opesquisador?

1 CARR, E. H. Que é história? 8. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2002.

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Vamos agora tentar localizar a relação entre o historiador e osfatos históricos e, ao mesmo tempo, levantar a questão da objetividadee da cientificidade da História.

Sempre que se coloca em discussão acadêmica o valor da Históriacomo ciência ou o valor da pesquisa histórica para a Ciência, apareceuma questão em torno da lógica científica que regula os estudos históricos.Thompson (1981), ao buscar caracterizar este processo, ao qual chamade “lógica histórica”, defende que a lógica da História se caracterizadiferentemente da lógica analítica e, por este motivo, não pode sersubmetida aos mesmos critérios de definição. Para o autor, a “lógicahistórica” é adequada a fenômenos que estão sempre em movimento,que evidenciam contradições, particularidades e processos. Para o autor:

Assim, a “história” não oferece um laboratório de verificaçãoexperimental, oferece evidências de causas necessárias, mas nunca(em minha opinião) de causas suficientes, pois as “leis” (ou, comoprefiro, a lógica ou as pressões) do processo social e econômicoestão sendo continuamente infringidas pelas contingências, demodos que invalidariam qualquer regra nas ciências experimentais,e assim por diante (THOMPSON, 1981, p. 48).

A partir daí, Thompson argumenta que a “lógica histórica” éum método lógico de investigação adequado à pesquisa histórica. Nes-te caso, o autor sustenta que o interrogador é a lógica histórica, o con-teúdo da interrogação é a hipótese, e a evidência é o interrogado. En-tão, cada historiador, ao fazer perguntas e ao fazer perguntas de umadeterminada maneira, traz à luz novos níveis de evidência. Isto querdizer que nossos valores, nossas perspectivas de análise determinarãoos significados de nossas pesquisas porque também significam os fa-tos que estão no passado. Neste sentido, pesquisar a história e, no nos-so caso, pesquisar a história da educação é perguntar por ela, escolherestas perguntas e, conforme explica o autor, saber que:

Nosso voto nada modificará. E não obstante, em outro sentido,pode modificar tudo. Pois estamos dizendo que estes valores, enão aqueles, são os que tornam a história significativa para nós,e que estes são os valores que pretendemos ampliar e manterem nosso próprio presente (THOMPSON, 1981, p. 52).

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O raciocínio de Thompson nos ajuda a compreender questõesmetodológicas importantes para a pesquisa historiográfica. Por ele,podemos inferir que a compreensão de nossos objetos de estudodepende fundamentalmente do olhar que lançamos sobre ele, donosso lugar, do lugar histórico de onde estamos “perguntando àsfontes”.

Também Lopes (1995), ao se referir às dificuldades de aceitar aHistória como ciência (na sociedade ocidental contemporânea), explicaque, na concepção positivista, a História é entendida como sucessãode fatos isolados, sem qualquer relação com o observador; rumo aoprogresso e, em cujo registro, estão apenas os grandes feitos dahumanidade, as guerras, os personagens e heróis. Para a autora, a Históriapensada assim coloca a si própria a impossibilidade de adquirir o statusde ciência posto hoje “já que sua matéria-prima – os fatos – seriampassados, únicos, irrepetíveis e, portanto, impossibilitados de setransformar em ‘lei’” (LOPES, 1995, p. 23).

Na perspectiva de Lopes (1995), portanto, se quisermos auferirà história o status de ciência, é preciso que admitamos seu caráter distinto,peculiar de um ramo do conhecimento que se impõe indiferente aospadrões das ciências “exatas”.

Agora vamos às fontes. Mas, o que são fontes?Esta é outra questão que se impõe aos pesquisadores e, sobretudo,

à discussão do seu papel na pesquisa historiográfica. As fontes podemser definidas, conforme Cardoso (1981), como sendo qualquer tipo deinformação acerca do devir social no tempo, levando-se em consideraçãoos meios com que foi preservada e transmitida. Neste sentido,argumenta Cardoso (1981, p. 95):

Serão fontes históricas as redações que nos chegaram empapirus, tijolos de barro, paredes de monumentos, pergaminhos,papéis, etc.; objetos materiais diversos como templos, túmulos,moedas, móveis, quadros, etc.; restos ou contornos de paisagensagrárias, ou monumentos desaparecidos perceptíveis através dafotografia aérea feita em certas condições etc.

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Ainda de acordo com Cardoso (1981), a classificação mais usualde fonte2 é a que distingue: “fontes primárias ou diretas”, que seriamos documentos escritos (manuscritos ou impressos) publicados duranteo próprio período estudado, ou depois, mas que tenham surgido emdecorrência direta do tema pesquisado; e “fontes secundárias ouindiretas”, que se caracterizam pelos estudos realizados com as fontesprimárias, que passam a configurar como material de pesquisa.

Cardoso (1981) aponta ainda uma segunda classificação para asfontes, qual seja, a de “fontes escritas”, que seriam majoritárias para apesquisa histórica, e as “fontes não escritas”, que se constituem demateriais como fotos, entrevistas, material arqueológico, etc.

Esta descrição do conceito e das características de fontes depesquisa é seguramente importante para o historiador. No entanto, há,no nosso entendimento, questões que se colocam como fundamentaispara o desenvolvimento da pesquisa historiográfica que não estãoexatamente situadas no âmbito da conceituação, mas que se apresentamcomo preocupações com o método de investigação e uso das fontesem pesquisas. É sobre esta questão que investiremos algumasconsiderações.

Para Ragazzini (2001, p. 14), “as fontes são vestígios testemunhosque respondem às perguntas que lhes são apresentadas”. Para o autor,a fonte é o único contato possível com o passado, ela está lá, provémdo passado, mas, ao ser interrogada e interpretada pelas formas deconhecimento do presente, deixa de ser passado e torna-se uma pontecom o presente, uma testemunha capaz de nos proporcionarconhecimentos sobre o passado.

Nossa relação com as fontes de pesquisa constitui-se, mormente,de dois modos distintos: o primeiro diz respeito à perspectiva de que ouso das fontes e suas abordagens devem ser inteiramente objetivos; e osegundo, à concepção que defende a subjetividade do intérprete para ouso das fontes. O autor lembra que, atualmente, as fontes são lidas de2 Aqui é preciso advertir que outros autores trazem esta discussão (do que são fontes) sob viésteórico distinto deste. São estudos que futuramente deverão fazer parte deste trabalho depesquisa.

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acordo com múltiplas relações, subjacentes a questões como a suaprodução, seu modo de seleção, sua conservação e interpretação e que,por este motivo, devem-se evitar concepções que valorizamdemasiadamente a objetividade no uso das fontes, assim como se deveatentar para a ênfase inadequada dos aspectos subjetivos ao se avaliaruma fonte de pesquisa. Segundo o autor, “é preciso revelar claramentetodas as relações que compõem a cadeia que leva do sinal do passadoao signo, à significação, à interpretação da história” (RAGAZZINI, 2001,p. 16). Para Ragazzini, nesses termos, faz-se necessária uma discussãosobre o uso e os problemas das fontes para uma História da Educação,tanto do ponto de vista teórico, quanto da prática de pesquisa.

Ainda sobre as fontes, Fávero (2000) adverte que, emborautilizemos as fontes para conhecer os fatos e aprender mais sobre umadeterminada realidade, devemos saber que este conhecimento não podeser entendido como um dado definitivo e acabado. A autora explicaque os conhecimentos produzidos pela realidade estão em constanteaproximação do real, o que significa dizer que a eles podem seracrescidos outros elementos, construindo-se, assim, novosconhecimentos.

O trabalho com fontes documentais se dá nesta perspectiva:trata-se de um constante diálogo do pesquisador com as fontes, masum diálogo permeado por questões, dúvidas e cujo resultado nemsempre se constitui de análises precisas.

A este respeito, Nunes (1992) explica que a leitura que o histori-ador faz a partir do presente sobre o passado está organizada em fun-ção de problemáticas impostas por determinadas situações. São as cha-madas “questões de nossa época”. A autora argumenta que algumasdestas questões revelam, por um lado, o exercício de poder realizadopelo historiador ao escolher umas e preterir outras questões e, ao mes-mo tempo, os limites desta escolha que estão definidos pelo lugar soci-al de onde escreve e pelas práticas institucionais nas quais ele está mer-gulhado. Para Nunes (1992, p. 14), “É isto que faz da historiografiauma expressiva síntese entre um lugar, um trabalho e um discurso”.

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Temos então as fontes chamadas do passado pelo presente erevelando o que se pergunta a elas. Mas o que as fontes podem dizer(dizer a cada um) não pode ser entendido como a verdade irrefutáveldos fatos. O que podemos apreender das fontes são conhecimentoshistóricos, passíveis de modificação, de novas interpretações e novasdescobertas e de ressignificação. Os critérios da “Lógica Histórica”defendida por Thompson (1981) mais uma vez explicam que, para aHistória e, no nosso caso especialmente, para a pesquisa historiográficacom uso de fontes, não é permitido apresentar conclusões absolutas,imaginadas como verdades irrefutáveis acerca do passado interpretadopelo presente. Pode-se contar, afinal, com resultados de pesquisa quetêm seu valor histórico, real e científico, mas que revelam também todaa dinamicidade e, por que não dizer, provisoriedade do conhecimentohumano incidindo sobre os fatos históricos.

O que temos até aqui são elementos metodológicos que nosindicam algumas perspectivas de análise e, sobretudo, reforçam arelevância do tema de pesquisa. O conceito da História, as contribuiçõesdos estudos da História, o lugar histórico do pesquisador/historiador,as fontes, seus conceitos, usos e interpretações são, todos eles, questõesabsolutamente necessárias ao desenvolvimento da pesquisa histórica.As discussões brevemente apresentadas buscaram situar a atualidade ecentralidade do tema por um lado e, por outro, fornecer pistas de nossaspretensões de abordagens e perspectivas de análise ao final de nossapesquisa.

THE USE OF THE SOURCES IN THE HISTORIOGRAPHICALRESEARCH: INITIAL METHODOLOGICAL QUESTIONS

Abstract: This text is part of a teaching research recently concluded whoseobject is the investigation on the place of the sources in historiographicalresearch and, specifically, an analysis on the use of the most habitual sourcesin this sort of research. This text shows the results of the first approaches tothe theme, and was constituted from the selection of some studies which helpsituate the object of analysis, its problem and, above all, its methodologicalways. It aims to discuss to what extent historians and education historiographyresearchers can signify sources in their researches. By considering the hypothesis

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that the use of sources is exposed to the perspective of analysis belonging tothe researcher (method), several approaches about the function of sources inresearches have been seen, as well as the meanings attributed to them aredistinctive. However, there are researchers that discern the sources only as aninformative tool in the research, or, maybe, as mere illustration effect (as inthe case of the use of imagetical sources), without the incidence of reflectionson them which should better characterize their role in the research.

Key words: Sources. Historiographical research.

Referências Bibliográficas

CARDOSO, C. F. Uma introdução à História. 8 ed. São Paulo:Brasiliense, 1981.

CARR, E. H. Que é história? 8. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2002.

FÁVERO, M. L. A. Pesquisa, memória e documentação: desafios denovas tecnologias. In: FARIA FILHO, L. (Org.). Arquivos, fontes enovas tecnologias: questões para a história da educação. Campinas:Autores Associados, 2000. p. 101-116. (Col. Memória da Educação).

LOPES, E. M. T. Perspectivas históricas da educação. 3. ed. SãoPaulo: Ática, 1995. (Série Princípios).

NUNES, C. O passado sempre presente. In: NUNES, C. (Org.). Opassado sempre presente. São Paulo: Cortez, 1992. (Coleção Questõesda Nossa Época, v. 4).

RAGAZZINI, D. Para quem e o que testemunham as fontes da históriada educação? Revista Educar, Curitiba, n. 18, p. 13-28, 2001.

THOMPSON, E. P. A miséria da teoria: ou um planetário de erros(uma crítica ao pensamento de Althusser). Rio de Janeiro: Zahar, 1981.

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RELATOS DEEXPERIÊNCIAS

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MULHER, PROFESSORA E ATIVISTA SOCIAL:O MOVIMENTO DAS PROFESSORAS

PRIMÁRIAS DA BAHIA, EM 1947

Alcides Leão Santos Júnior *

Só resta então uma esperança:que as falhas se transformem em fagulhas.

(Waly Salomão).

Resumo: Estuda-se a mobilização das professoras primárias, na Bahia, na década de40, movimento social que retrata o papel da mulher e da professora primária comoresponsável pela criação da Sociedade Unificadora de Professores Primários. Parte-sedo pressuposto de que as motivações corporativas para a valorização profissional foramfundamentais para a eclosão do movimento dessas professoras. Dessa forma, objetiva-se a análise dos fatos e acontecimentos que marcaram esse movimento por meio dasmemórias dos “sujeitos epistêmicos”.

Palavras-chave: História da Educação. Memória. Gênero. Movimento Social.

* Pedagogo (UCSAL), Mestre em Ciências Sociais (UFRN), membro do Grupo de EstudosBoa-Ventura (PPGCS-UFRN) e Professor da Faculdade de Filosofia e Ciências Sociais (FAFIC), da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN). E-mail: [email protected]

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Considerações iniciais

O desejo de estudar o movimento das professoras primárias daBahia emergiu do contato que tivemos com a Sociedade Unificadorados Professores Primários (SUPP) – por conta das comemorações peloseu cinqüentenário. E como não poderia deixar de ser, essa discussãoconstitui-se um momento de diálogo e reflexão sobre a forma comopercebemos a práxis educativa.

O diálogo que constituímos, inicialmente, ao lecionar a disciplinaHistória da Educação, no Curso de Pedagogia, da Faculdade de Filosofia,Ciências e Letras de Candeias (FAC/Candeias, Bahia), nos levou aperceber a ausência de fontes documentais dos fatos que marcaram ahistoriografia educacional baiana, o que nos conduziu a pesquisar essesfatos. Diante da multiplicidade de acontecimentos que marcam aHistória da Bahia desde a chegada dos portugueses, centramos nossosestudos nos anos 40 do século XX porque esse período se constituicomo um dos marcos do liberalismo econômico e das lutas de classes.Diante desse quadro, deparamos-nos com o movimento de mulheresprofessoras primárias na criação e organização de sua entidaderepresentativa de classe.

Também a reflexão decorrente dos estudos que ora fazemossobre gênero, sob a tutela do Grupo de Estudos em Filosofia, Gêneroe Educação, da Faculdade de Educação da Universidade Federal daBahia constituiu-se uma outra motivação para este trabalho.Entendemos o estudo de gênero como categoria analítica e, dessa forma,procuramos seu viés inter-transdisciplinar e o associamos à educação,à docência e à memória. O percurso que faremos é marcado pelosrelatos orais que se sustentam nos pilares da História Oral. Sendo assim,procuraremos produzir conhecimentos a partir da experiência do“outro”.

A aproximação entre o diálogo e a reflexão nos levou aosacontecimentos que marcaram a criação da SUPP, tendo em vista que ahistória das mulheres é pouco explorada nos meios acadêmicos, pelaausência (ou publicações escassas) de fontes documentais. Percebemos

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que a bibliografia acadêmica sobre gênero assumiu o caminho da análise.Nessa perspectiva, o estudo de gênero procura traçar um perfilsocioeconômico e psicológico das mulheres e conduz a um reducionismoligando-as apenas aos movimentos feministas. Outro fato a salientar éque a maioria desses estudos limita-se a essa centralidade, por issobuscaremos, nesta pesquisa, desmistificar a figura passiva da mulher nasociedade e trazer à tona como as mulheres se organizam e participamdas transformações da sociedade no percurso histórico.

Gênero uma categoria em análise

No cerne das exigências da sociedade contemporânea, estão astransformações globais tanto na esfera organizacional quanto na esferahumana. Tal conjuntura, ao longo das últimas décadas, vemproporcionando uma (re) leitura da memória humana como um suporteda (re) construção da história social. Situados num mundo de constantesmudanças, entendemos o professor como agente (re) construtor damemória coletiva.

Ao principiar no curso da História, constatamos que as relaçõessociais são marcadas pelas lutas entre os diversos atores e atrizes sociais.Essa ocorrência determina alterações nas esferas eco-sociopolítico-culturais que, por sua vez, direcionam o caminhar da humanidade. Nessapolifonia de vozes, dá-se sentido à aproximação entre gênero e docência.

A história da humanidade é marcada por conflitos que conduzemà dualidade: vencedor e vencido, dominante e dominado, ciência e sensocomum, cristão e protestante... E ser homem e ser mulher.

O ser humano já foi totalidade, um ser de natureza completa,por inteiro e, de uma forma ou de outra, guardamos no nosso íntimoesse desejo de retornar a ser um ser uno, um ser completo e indivisível.A idéia do ser humano completo nos direciona a um espaço que propiciaa reflexão que se dá em um intenso processo de socialização que émarcada pela produção de gênero. Flax (1991, p. 217-250) nos mostraque as relações de gênero “são uma categoria destinada a abranger umconjunto complexo de relações sociais, bem como a se referir a um

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conjunto mutante de processos sociais historicamente variável” e aindacompleta salientando que, por meio das relações de gênero, dois tiposde pessoas são criados: homem e mulher. Só que homem e mulher sãoapresentados como categorias excludentes.

Gênero é uma concepção teórico-analítica, por isso oentendemos como uma construção histórica, cultural e social. O serhumano na divisão social é uma complementaridade. Descrevendo dessamaneira e em estreitos termos biológicos, o ser homem e o ser mulherseguindo seu desenvolvimento é uma produção cultural e social.Acreditamos, porém, que tal fato não justifica que, no plano físico eem nossos corpos, circulem características comuns. Contudo, emdeterminados momentos, as especificidades das funções bioanatômicasmarcam as diferenças entre os sexos.

Culturalmente, é essa a relação que tem sido ensinada aos sexosopostos, a mulher presa à preservação da espécie, ligada àsamarras da maternidade, num fazer considerado e semcriatividade, o homem livre para criar instrumentos poderosos,preparar o futuro e forjar sua identidade (PASSOS, 1994, p. 23).

Como podemos reparar, quando o sujeito assume o seu “eu”sexual, boa parte de sua experiência vivida representa o (re)conhecimento que sustenta a construção da sua identidade, que nãoserá representada na totalidade já que sua imagem somente representauma parte. Assim, o homem se mostra com aparência viril, e a mulher,frágil. No processo de afirmação da identidade, são atribuídosmecanismos de socialização, são determinados valores e regras queespecificam cada sexo. Este processo mostra-se conforme uma sucessãode diferentes níveis de conscientização que não permite a (re) construçãodo processo de (de) formação da sua identidade sexual.

Docência: uma atividade eminentemente feminina

As relações de diferenciação entre o homem e a mulher sãomarcadas por fatores sócio-históricos. Levando em conta essa premissa,

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na demarcação do modo de produção, talvez essa diferenciação – entreos sexos – seja mais explícita.

Quando se focaliza o “mundo do trabalho”, percebemos commaior veemência as desigualdades entre os sexos. Contudo, seprestarmos atenção, poderemos perceber, também, que, a esta alturado caminhar histórico, o distanciamento do abismo das desigualdadesnão apresenta diminuição.

Como não poderia deixar de ser, a relação mulher-trabalhosempre existiu. A história nos mostra que “na comunidade primitiva,as mulheres estavam em pé de igualdade com os homens [...]” (PONCE,1994, p. 18) e, seguindo o processo histórico, essa relação passa a sofreralterações quando a mulher escrava assume papéis domésticos e deprodução. Um novo rumo toma essa relação e, na sociedade capitalista,a mulher passa a tirar sua sobrevivência – e também da família – do seutrabalho. É imprescindível ter claro que o capitalismo cria dois tipos demulher: a burguesa e a proletária. A primeira é aquela que vive emfunção do trabalho do marido, enquanto a segunda, é a operaria, acamponesa... que sobrevive do seu trabalho como assalariada, fora dolar, e mantém-se responsável por todas as atividades domesticas – emcasa. Tanto num sentido como no outro, a mulher começa a articular-se na ocupação do mercado de trabalho.

Los patronos parecen haber previsto um cambio continuo emla fuerza de trabajo femenina, em parte, esa era la razón de quese pudiera contratar a lãs mujeres por tan bajos salários.Asimismo, parece ser quelos bajos salarios se relacionabam conun cálculo ecónomico que siempre consideraba que las mujereseram “dependientes naturales” de los hombres, un padre,marido o hermano (SCOTT, 1992a, p. 52.)

Na medida em que deixa (va) o lar para procurar trabalho, essabusca é (era) entendida – pelos capitalistas – como uma complementaçãode renda ou, simplesmente, um passatempo. Esse fato estabeleceusalários mais baixos e a ira dos homens que temiam ser desempregados.

A nosso encontro, vem a diferenciação que a sociedadeestabelecera a fim de ilustrar a inferioridade da mulher nas atividades

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produtivas. A inserção da mulher no mercado de trabalho precisa serentendida como ocupação de postos de trabalho assalariado e comcarteira de trabalho assinada. Nesse momento, as posições na ocupaçãode cargos começam a definir o trabalho do homem e o da mulher.

Sobre a divisão sexual do trabalho, Mello (1995, p. 71-72)comenta que:

Tem por trás uma divisão social que serve a interesseeconômicos, a qual produz e ajuda a manter uma representaçãoprofissional que favorece uma retribuição desigual de salário eprestigio para profissões masculinas e femininas.

Os modos e maneiras como as coisas vão acontecendo earranjando nos levam a compreender que ser professora foi o caminhoencontrado pela mulher de classe média para ter acesso ao mercado detrabalho. Nessa perspectiva, Mello (1995, p. 70) esclarece que:

A sexualidade do magistério como ocupação feminina,decorrente de determinantes econômicos, revela-se, ou aparece,como fator natural em função de exigências que essa ocupaçãoapresentaria e que supostamente se adequaria mais ao sexofeminino. Essa adequação baseia-se, em geral, em estereótipossobre o que é natural no homem e na mulher, ou emcaracterísticas femininas e aprendidas ou induzidas pelasocialização.

A presença feminina torna-se bastante significativa na esferaeducacional e predominante nos anos iniciais de escolarização, ou seja,na escola primária.

A imagem de professora primária é dominante, com traçosbastantes feitos, onde predomina a competência para o ensinodas primeiras letras e contas, mas, sobretudo o carinho, ocuidado, a dedicação e o acompanhamento das crianças(ARROYO, 2002, p. 30).

Para Arroyo (2001, p. 30), os docentes das séries mais adiantadassão diferentes dos professores primários porque:

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255Mulher, professora e ativista social: o movimento das professoras primárias da Bahia,...

Não incorporaram os traços reconhecidos da professora primária,nem a confiança social. Não incorporaram a figura do educador,condutor da adolescência e juventude como a professoraincorporou o cuidado, a dedicação e o acompanhamento dainfância.

Diremos, pois, que o saber docente passa a ser atrelado à relação decuidados e de afetividade que o professor mantém na relação com o aluno,assumindo, assim, a dicotomia teorização e manutenção do status. Ainfluência dessa percepção fez do magistério dos anos iniciais uma profissãofeminina. Sob essa influência, a figura do professor primário feminiliza-se,e a educação passa a ser concebida como uma extensão da família. A escolapassa a ser a segunda casa, e a professora, a segunda mãe.

Não pretendemos discutir a relação escola–educação–familia,mas as representações que essa dinâmica faz da docência. Bem, se odestino reservou às mulheres a profissão de professora por entendê-lacomo, segundo Louro, uma “atividade de amor, de entrega e doação,para a qual ocorreria quem tivesse vocação”, é Louro (apud SAFFIOTI,1987) ainda quem nos revela que:

A entrada das mulheres no exercício do magistério – o que, noBrasil, se dá ao longo do século XIX (a princípio lentamente,depois de forma assustadoramente forte) – foi acompanhadapela ampliação da escolarização a outros grupos ou, maisespecialmente, pela entrada das meninas nas salas de aula.

Lima (1996, p. 101), fazendo uma análise da entrada da mulher nomagistério, no Estado da Bahia, salienta que esse ingresso deu-se emvirtude da:

[...] falta de professores para o provento de vagas nas escolasde Primeiras Letras, devido aos baixos salários e à dificuldadede fiscalização das atividades docentes, fazendo com que oCurso se tornasse uma ocupação feminina.

O que ficou exposto é que essa não foi, de forma alguma, umaentrada “tranqüila”. Objeto de muitas disputas e polêmicas, apossibilidade de mulheres exercerem o magistério foi, como sabemos,

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contestada por diferentes discursos, especialmente a partir do momentoem que, pela abertura das escolas normais às moças (em meados doséculo XIX), estas passaram a se construir numa presença muito maiordo que se supunha ou se desejava. Os apelos para “conter” e tambémpara disciplinar a massa feminina se multiplicaram. De modo maisincisivo, esses apelos se voltaram para aquele que seria o discurso maisimportante da época, ou seja, o discurso científico. Portanto, foi com oapoio do “discurso cientifico” que alguns puderam afirmar que seconstituía uma “temeridade”, uma “insensatez” entregar às mulheres –portadoras de cérebros “pouco desenvolvidos” pelo seu “desuso” – aeducação das crianças.

Dessa maneira, o magistério dos anos iniciais de escolarizaçãopassa ao longo do tempo a ser uma quase exclusividade feminina, eesse fato marca um alto percentual de mulheres nos cursos de Magistério.

O movimento das professoras primárias na Bahia em 1947

Longe de serem seres passivos e sem garra para a luta, as mulheresprofessoras marcam a História da Educação quando assumem aconsciência de sua identidade – de mulher e de professora – e, ao tomaremconsciência desse papel, essas profissionais ingressam no “mundo” dotrabalho politizadas. Segundo Ponce (1994, p. 35):

A classe em si, apenas com existência econômica, se definepelo papel que desempenha no processo da produção; a classepara si, como uma classe que já adquiriu consciência do papelhistórico que desempenha, isto é, como uma classe que sabe aque aspira.

As pesquisas sobre o desenvolvimento pessoal e profissionaldas professoras têm sido aceitas e ganham destaque ao longo dos anos,comprovando o papel da mulher como co-construtora do processohistórico. A aproximação entre os estudos de gênero e docência com otrabalho marca os alicerces desta pesquisa. Tendo como base essesestudos, procuraremos retornar à discussão da participação feminina

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nos acontecimentos político-sociais que marcam a História da Sociedadee da Educação Baiana especificamente na década de 1940. Passos (1991,p. 6) nos elucida o contexto da época com a seguinte afirmação:

Em 1940, 56% das mulheres sabiam ler e escrever contra 62%dos homens. Poucas possuíam Curso Superior e quando istoacontecia, quase sempre, era na área do magistério, da medicinaou da odontologia, com consultórios montados em suas própriasresidências. Além destas, a área das letras “também era umainserção possível. Contudo, o desenvolvimento intelectual, quasesempre, não representava possibilidades de notoriedadepublica”.

Os estudos sobre essa temática inserem-se no quadro vasto deteorização, com os quais compartilhamos a idéia de que a mulher marcao seu desenvolvimento profissional, como professora primária, fatorpreponderante da construção da sua identidade profissional.

Para esta pesquisa, temos como ponto de partida a primavera de1947. O início da estação fez desabrochar, na classe dos professoresdo Estado da Bahia, uma rosa que marca a História da Educação e daMulher. Já que, segundo Scott (1992b, p. 77):

[...] reivindicar a importância das mulheres na história significanecessariamente ir contra as definições de história e seus agentesjá estabelecidos como “verdadeiros”, ou pelo menos, comoreflexões acuradas sobre o que aconteceu (ou teve importância)no passado.

Procuraremos reparar, na História da Educação Baiana, o papelfundamental das professoras primárias da rede estadual de ensino, nacriação da entidade representativa de classe. Como de costume, no mêsde setembro, as unidades escolares da capital baiana festejavam a chegadada primavera com muita animação. Contudo, na Escola Estadual MariaQuitéria estoura uma inquietação; para alguns, uma revolta. Osprofessores tomam conhecimento de uma Tabela de Cargos e Saláriosdecretada pelo então Governador Octavio Mangabeira que iguala osvencimentos dos professores primários aos dos zeladores.

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Como uma bomba que devasta corpos e vida, esta chegadevastando as alegrias e provocando revoltas dos professoresda Escola Estadual Maria Quitéria que conseguem articular-secom outras Unidades Escolares, pois teria que ser feito algoque viesse demonstrar a “capacidade e a união dos Professorescontra o que se achava injusto e desrespeitoso” (REVISTA dASUPP, 1957, p. 15).

Lúcia Barreto Almeida Souza, Luzia Martins de Souza, EsmeraldaAragão, Irene de Araújo Falcão, Abelita Gama da Paixão, HelenaSampaio Cruz, Maria Costa Figueiredo e Eleusina Uzel, não satisfeitascom a situação, constituem-se como representantes do movimento eredigem uma carta de indignação que é publicada no jornal A Tarde. Asituação da categoria não é resolvida, e o grupo resolve convidar osprofessores, por meio de visitas às escolas, para uma reunião a fim deexplanar a insatisfação da classe.

Lucia idealizou e realizou o maior movimento de união dosprofessores primários, criando, com um grupo de colegas daEscola Maria Quitéria, onde ensinava, a Sociedade Unificadorade Professores Primários (SUPP), com o apoio e entusiasmo deLuzia Martins, a grande líder, e muitos outros colegas (ARAGÃO,2002).

A reunião culminou com a criação da Sociedade Unificadora deProfessores Primários (SUPP), que passou a convocar novos colegaspor meio de anúncios em jornais. Os anúncios passaram a ser freqüentese eram financiados pelos próprios professores que, logo após,resolveram montar um jornal – A Voz do Professor – para viabilizar asocialização das informações entre os professores. O movimento seorganiza e ganha repercussão estadual, a ponto de, até o secretárioestadual de Educação e Saúde, Anísio Teixeira, solidarizar-se com osanseios dos professores. Assim, surge a SUPP, uma entidade criada paradefender os interesses dos professores primários no Estado da Bahia.

Em suma, a participação feminina nas entidades de classes e decategorias sempre foi marcada por muita desconfiança pela sociedadecivil e pelas próprias entidades. Assim, aqui pudemos ver como, mais

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259Mulher, professora e ativista social: o movimento das professoras primárias da Bahia,...

uma vez, as mulheres rompem os obstáculos que as direcionam paraos afazeres domésticos e profissões consideradas menos privilegiadassocialmente e se vêem na linha de frente dos movimentos sociais e deinteresse de classe.

Considerações finais

O processo de construção de uma identidade e valorizaçãoprofissional conduziu as professoras primárias da Escola Maria Quitériaa lutar contra uma equiparação salarial que não consideravam justa.Ainda que na prática docente fique evidente o discurso da democraciae da ética, ao dissertar essa temática não estamos livres em incorrer empreconceito.

Num espaço de tempo em que se vivia o tumultuado final da“Segunda Grande Guerra Mundial” e em que as diferenças locais,nacionais e internacionais fizeram ressurgir os movimentos sociais(negro, índio, operário, etc.), as diferenças entre as classes ficaram maisevidentes. É possível então perceber que o movimento baiano não estavadissociado de um contexto local, nacional e internacional. Pelo contrario,ele é resultado de ideais democráticos que imperavam na época.

Dessa forma, entendemos que o movimento das professorasprimárias constitui-se num momento de reflexão e amadurecimentoprofissional. Reflexão porque estabeleceu os alicerces para a valorizaçãodos professores primários da rede estadual de ensino tanto no aspectofinanceiro como na elevação da auto-estima. Ao longo do tempo, vieram oamadurecimento e as lutas sucessivas para o respeito e valorização da classe.

A nossa pretensão de resgatar um segmento da experiênciahumana, no contexto de um passado relembrado, de um presentedinâmico e de um futuro a ser construído por meio do uso de fontesorais – depoimentos –, nos estimula à reflexão sobre as formas pelasquais a História é construída. Em resumo, entendemos que a HistóriaOral, como metodologia de pesquisa, é uma História vista de baixo,uma História local e comunitária, que procura retratar a história dos

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humildes e dos sem-história, tira do esquecimento aquilo que a Históriaoficial sepultou. Levando em conta essas premissas, ela é necessária para(re) afirmar aqueles e aquelas que lutaram para a construção deste país.

FEMME, INSTITUTRICE ET ACTIVISTE SOCIALE: LEMOUVEMENT DES INSTITUTRICES DE L’ÉTAT DE BAHIA EN 1947

Résumé: On étudie la mobilisation des institutrices à Bahia dans la décennie1940, comme un mouvement social qui retrace le rôle de la femme/institutriceen tant que responsable de la création de la Société Unificatrice d’Instituteurs.On part du présupposé selon lequel les motivations corporatives en vue de lavalorisation professionnelle furent fondamentales pour l’éclosion dumouvement de ces institutrices. On a pour but d’analyser les faits et événementsqui marquèrent ce mouvement en interrogeant les mémoires de celles et ceuxqui l’ont vécu.

Mots-clés: Histoire de l’éducation. Mémoire. Genre. Mouvement social.

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FILOSOFIA E CINEMA, UMA ARTICULAÇÃOENTRE O AFETIVO E O RACIONAL COMO

FORMA DE ENCAMINHAMENTO DO PENSAR:um relato da experiência do projeto “Filosofia eCinema: estética e racionalidade da imagem”

Clédson L. Miranda dos Santos *

Resumo: O presente trabalho constitui-se num relato da experiênciadesenvolvida no projeto de extensão “Filosofia e Cinema: estética eracionalidade da imagem”, realizado na Universidade Estadual do Sudoesteda Bahia (Uesb), no ano de 2005. O curso estruturou-se segundo a idéia de“conceito-imagem”, considerando a possibilidade de a imagem cinematográficasintetizar, construir ou desenvolver conceitos com valor de verdade. O projetodesenvolveu-se partindo da exposição de grandes obras do cinema mundialcontextualizadas em grandes temas da história da filosofia contemporânea.

Palavras-chave: Linguagem cinematográfica. Linguagem filosófica. Conceito-imagem. Racionalidade logopática.

* Especialista em Filosofia Contemporânea pela Universidade Estadual de Santa Cruz (Uesc).Professor do Departamento de Filosofia e Ciências Humanas (DFCH/Uesb). Proponente ecoordenador do projeto “Filosofia e Cinema: estética e racionalidade da imagem”, desenvolvidocom a colaboração de professores da área de Filosofia e do Curso de Comunicação Social doDFCH, no ano de 2005. E-mail: [email protected].

Práxis Educacional Vitória da Conquista n. 2 p. 263-274 2006

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Notas Iniciais

Ao longo de sua existência, o cinema tem sido visto como umaopção de entretenimento, de lazer e de informação. Alguns filósofoscontemporâneos tematizaram sobre o cinema em suas obras, entretanto,somente na segunda metade do século XX, é que se perceberamtentativas de tecer reflexões de caráter filosófico com base na tramacinematográfica.

O projeto de se instaurarem grupos de discussões filosóficastomando-se por base a exposição de filmes ganhou força no Brasil nofinal do século XX. Muitos pensadores brasileiros, não só críticosliterários, aportaram-se em filmes para construir um pensamentoconceitual acerca da sua realidade de estudo.

Este curso de extensão outrora proposto visou à instauração degrupos de estudo e reflexão de caráter filosófico, à semelhança de outrosexistentes em outras universidades brasileiras. Cabe aqui salientar quea Universidade de Brasília (UnB) é pioneira na implantação de cursosdesta natureza ofertados a toda a comunidade.

Socializar as grandes idéias do legado filosófico é uma forma denão restringir a Filosofia ao âmbito universitário. Articulá-la com ocinema é uma maneira de torná-la acessível ao grande público. Assim,o pensar filosófico deixaria de ser algo restrito apenas aos iniciadosnuma linguagem e num mundo hermeticamente fechados.

Numa universidade como a UESB, que há muito tempo divulgaas produções cinematográficas de vários países, por meio do JanelaIndiscreta, este projeto veio somente acrescentar esforços no intuito dese propagarem grandes obras da cultura cinematográfica mundial. Outroaspecto de grande relevância é o fato de que nesta Universidade aindanão existe o curso de Filosofia e, dessa forma, um projeto que, além deexpor filmes, os articulou com reflexões de caráter filosófico, resultounuma importante fonte de informações, questionamentos e indagaçõesdiversas.

Parte do público que se interessa por cursos desta natureza éformada de professores de Literatura, História, e, principalmente, de

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265Filosofia e cinema, uma articulação entre o afetivo e o racional como forma ...

Filosofia. Faz-se necessário apontar que muitos professores quelecionam a disciplina Filosofia nas escolas da região Sudoeste da Bahianão são habilitados na área, principalmente aqueles que trabalham emescolas da Rede Pública de Ensino. Este curso oportunizou a estesprofissionais, além de conteúdo, estratégias metodológicas para sedesenvolverem aulas em turmas do Ensino Médio. O projeto pôdeviabilizar o enriquecimento das discussões de cunho filosófico noâmbito da sala de aula, uma vez que o cinema (em seus diversosformatos, principalmente o VHS e o DVD) é um valioso recurso parao trabalho com temas diversos. Deve-se considerar também o fato deque o cinema pode viabilizar a reflexão conforme a percepção estética,e isto pode ser um valoroso instrumental (não só motivador) para odesencadeamento das atividades de ensino.

Para o público em geral, formado por graduados das diversasáreas de conhecimento (cinéfilos ou não) que se interessam pela reflexãofilosófica, foi importante salientar que o curso tinha a oferecer aoportunidade de eles se familiarizarem com os grandes temas da históriada Filosofia e com a linguagem filosófica articulada à linguagemcinematográfica.

Outro benefício foi o de propiciar aos cursistas um diálogo entreo conhecimento da Filosofia e o das suas respectivas áreas de formaçãoou atuação. Considerando-se o fato de que o público-alvo compôs-sedos graduados de diversas áreas e que o curso esteve aberto àcomunidade (inclusive professores da UESB), é oportuno salientar quese possibilitou um diálogo mais fecundo entre as diversas áreas doconhecimento e o pensamento filosófico.

Um aspecto de grande relevância é que este projeto é fruto depesquisas desenvolvidas em outras Instituições de Ensino Superior,onde o pensamento “logopático” é pauta de grandes discussões em cursosde extensão, projetos de mestrado e doutorado. Assim, baseando-seem reflexões proporcionadas por este curso, pôde-se vislumbrar apossibilidade de se desenvolverem, no âmbito da UESB, projetos depesquisa nesta área.

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Aportes Teóricos

A origem da Filosofia está diretamente ligada à sistematizaçãodo logos. O pathos não foi a tônica que fundamentou a tradição dopensamento ocidental. Na Pós-modernidade, surgiram correntes depensamento que problematizaram a razão puramente lógica (o logos)com a qual a Filosofia habitualmente costumou enfrentar o mundo.De acordo com Cabrera1 (1999), pensadores como Schopenhauer,Nietzsche, Kierkegaard e Heidegger introduziram no processo decompreensão da realidade o elemento afetivo (o pathos). Eles não selimitaram a tematizar o componente afetivo, mas também o incluíramna racionalidade como um elemento essencial de acesso ao mundo. Opathos deixou de ser um objeto de estudo para transformar-se numaforma de encaminhamento metodológico.

Ao longo de sua história, a Filosofia se desenvolveu por meio dapalavra, e não da imagem. Na tradição ocidental, herdeira da culturagrega clássica, as imagens são impressões derivadas dos sentidos(principalmente da visão). Segundo Platão, os sentidos não nos dãoacesso ao mundo verdadeiro. As palavras, que são a expressão do logos,estão articuladas aos conceitos e às idéias. Assim, a Filosofia, que seconstituiu numa perspectiva logocêntrica, ligou-se à escritura, e não àsimagens. Entretanto, afirma Cabrera (1999), “nada há na natureza doindagar filosófico que o condene inexoravelmente à escritura”.

Então, como se articula a imagem cinematográfica com o pensarfilosófico? Tal qual Cabrera (1999) assevera, o cinema nos apresentauma linguagem mais apropriada que a linguagem escrita para expressaras intuições que alguns filósofos tiveram acerca dos limites de umaracionalidade puramente lógica. Também não se constitui em um veículopuramente emocional de idéias; trata-se de um outro tipo de articulaçãoracional, que inclui um componente emocional, porque a linguagem

1 O trabalho desenvolvido teve como principal suporte teórico a obra do professor Dr. JulioCabrera, da UnB, cujo livro Cine, 100 años de Filosofía: una introducción a la Filosofía através del análisis de películas, que discute a articulação entre Filosofia e Cinema, ainda nãofoi editado no Brasil. Assim, as citações e referências que aparecem no texto constituem-setraduções não oficiais; entretanto, foi mantido o seu sentido original.

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267Filosofia e cinema, uma articulação entre o afetivo e o racional como forma ...

cinematográfica possui a capacidade de dizer as coisas num nível dearticulação entre o intelectual e o afetivo. “O emocional não desalojao racional, ele o redefine” (CABRERA, 1999). A apreensão de certosaspectos do mundo não parece se efetivar por uma total exclusão doelemento afetivo.

Visto filosoficamente, o cinema é a construção do que se podechamar de conceito-imagem: um tipo de conceito visual estruturalmentediferente dos conceitos tradicionais utilizados pela filosofia escrita. Mas,como se caracterizam os conceitos-imagem? Cabrera (1999) apontaalguns critérios de definição para esta categoria:a) um conceito-imagem instaura-se e funciona dentro de um contextode uma experiência específica;b) os conceitos-imagem do cinema produzem nas pessoas um impactoemocional que, ao mesmo tempo, diz-lhe algo a respeito do mundo e quetem valor cognitivo, argumentativo por meio de seu componente emocional;c) mediante uma experiência instauradora e emocionalmente impactante,os conceitos-imagem afirmam algo sobre o mundo com pretensões deverdade e universalidade;d) um filme inteiro pode ser considerado como um conceito-imagemde uma ou de várias noções. Um filme inteiro pode ser consideradoum macro-conceito-imagem, composto por conceitos-imagem menores;e) os conceitos-imagem podem se desenvolver num nível literal do queestá sendo mostrado nas imagens, mas também podem se desenvolvernum nível ultra-abstrato. Quando se desenvolve num nível abstrato, oconceito-imagem permite uma melhor conceituação filosófica, mesmoquando se trate de um filme absolutamente fantástico, surreal ou irreal;f) os conceitos-imagem não são categorias meramente estéticas, pautadasno gosto. Não determinam se um filme é bom ou mau, de classe A ou C;g) eles não são privativos do cinema. São construídos e utilizados pelafilosofia, como também, já tradicionalmente, pela literatura, para exporalgumas intuições;h) os conceitos-imagem proporcionam soluções lógica, epistêmica emoralmente abertas e questionadoras para os diversos problemasfilosóficos que aborda.

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Simplificadamente, tal qual afirma Cabrera (1999), pode-seafirmar que o conceito-imagem consiste num encaminhamento, ou seja,um construir-se ao caminhar, em certa direção compreensiva, mas quenão se consegue enclausurar num conceito definitivo, pois a imagemcinematográfica é movimento que tenta captar a dinâmica do real.

Assim como não se pode definir exatamente o que é conceito-imagem, não se pode também definir exatamente o que é cinema. Comoassente Carrière (1995, p. 21), o cinema é uma experiência aberta, empermanente autodescoberta, uma linguagem que está sempre criandoformas e se enriquecendo, fugindo constantemente das regras quetentam aprisioná-la em cânones que tendem à rigidez do dogmatismocristalizado em conceitos.

O cinema é visto como uma autêntica fábrica de ilusões, demalabarismos, efeitos especiais (visuais e sonoros), de inverossimilhançasde todo caráter e de recortes absolutamente artificiais. Diante desteargumento, fazem-se pertinentes duas questões: a) Como algo que lidacom uma linguagem tão inverossímil poderia conduzir à verdadepretendida pela Filosofia? b) Como podem situações particulares davida humana conduzir à universalidade? Diante destas questões, faz-sepertinente considerar que o cinema consegue ultrapassar as limitaçõesaqui implícitas porque a linguagem cinematográfica possui a capacidadede dizer as coisas num nível de articulação entre o intelectual e o afetivo.

Ao contrário da escrita, em que as palavras estão sempre deacordo com um código específico em que se deve conhecer ouser capaz de decifrar, [...] a imagem em movimento está aoalcance de todo mundo. Uma linguagem não só nova, comotambém universal: um antigo sonho (CARRIÈRE, 1995, p. 19).

Aumont et al. (2002b, p. 159) corroboram com esta assertivaquando defendem que “a característica essencial dessa linguagem ésua universalidade; ela permite contornar o obstáculo da diversidadedas línguas nacionais. Realiza o sonho antigo de um ‘esperantouniversal’ [...]”.

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Para Aumont (2002a, p. 248), “toda representação é relacionadapor seu espectador – ou melhor, por seus espectadores históricossucessivos – a enunciados ideológicos, culturais, em todo casosimbólicos, sem os quais ela não tem sentido”. Considerando que tantoa linguagem imagética quanto a linguagem verbal estabelecem com omundo uma relação representacional, pode-se afirmar que a linguagemcinematográfica, articuladora de ambas as linguagens, encerra em sidiversos sentidos, porque é capaz de significar o mundo. Ainda segundoAumont (2002a, p. 249), a imagem cinematográfica “só tem dimensãosimbólica tão importante porque é capaz de significar – sempre emrelação com a linguagem verbal”.

Aqui, também é necessário considerar a linguagemcinematográfica à luz do conceito de texto. Este conceito abrange todouso de qualquer espécie de linguagem que, de uma forma concatenada,consegue articular uma significação do mundo. Considerando estaabrangência do conceito de texto e também o fato de que este não sereduz à escritura, pode-se afirmar que o cinema apresenta umalinguagem mais apropriada que a linguagem escrita para expressar oconhecimento imediato do mundo, as intuições. Muitos destes conceitospodem ser captados pelas imagens de um filme. O cinema conseguedar sentido cognitivo ao que muitos filósofos tentaram dizer por meioda escritura. Conforme relata Carrière (1995, p. 19), “um críticoamericano, que via a câmera como um engenho capaz de converter oespaço em tempo e vice-versa, se referia sobriamente ao cinema como‘a maior surpresa filosófica desde Kant’”.

Os conceitos-imagem não são qualidade exclusiva do cinema. Aliteratura, como produção artística, resgata, de acordo com intuiçõesestéticas, verdades de valor universal. Alguns filósofos, como Heidegger,por exemplo, utilizam-se largamente de conceitos-imagem para exporalgumas de suas intuições conceituais. Entretanto, no exemplo específicodo cinema, pode-se afirmar que os conceitos-imagem constituídos eutilizados desenvolvem-se com muito mais propriedade. A vida e opensamento fluem continuamente. Não se pode dissociar o fluxo do

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vivido (o real) do fluxo do articulado (o representacional). A literaturae o cinema podem expressar o fluxo histórico-vivido, sem, contudo,reduzi-lo à mera representação, ou a conceitos puramente intelectuais.Parafraseando Cabrera (1999), se filosofar admite ser concebido comoum tipo de captação do real mediante uma linguagem de imagens, semimposições intelectualistas e sem a obrigação de ater-se a uma dadatradição, o cinema e a literatura podem ser filosóficos.

O pressuposto básico para que haja articulação entre a linguagemcinematográfica e a Filosofia é que nos disponhamos a “ler” o filme demaneira filosófica, ou seja, que o tratemos como um conceito imagéticoem movimento. Devemos impor à nossa leitura do filme a pretensãode verdade e de universalidade.

Objetivos

No transcorrer do curso, esperava-se que o público estivessefamiliarizado com os temas e com as linguagens filosófica ecinematográfica e que pudesse promover o diálogo entre o conhecimentofilosófico e o das suas respectivas áreas de formação ou atuação.

Entre os objetivos específicos propostos, podem-se destacar:a) divulgar e socializar com a comunidade as grandes idéias do legadofilosófico produzidas no decorrer da história humana;b) contextualizar a imagem cinematográfica com base em grandes temasda Filosofia: o ser, a ética, a existência, a angústia, a morte, a realidade,a linguagem, etc.;c) oportunizar ao público acesso às grandes obras do cinema mundial,bem como contextualizar historicamente a obra cinematográfica;d) propiciar uma reflexão sobre as relações entre cinema e filosofia,evidenciando os componentes intelectuais e emocionais da racionalidade.

Filmografia e temas

Os temas trabalhados durante o curso estavam ligados aopensamento de alguns filósofos contemporâneos. Assim, a filmografia,

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intencionalmente escolhida, refletia sobre tais temas, de forma aengendrar uma articulação intertextual entre a linguagem filosófica e alinguagem cinematográfica. Abaixo, seguem arrolados os filmes, ospensadores e os temas filosóficos por eles tratados:a) A Felicidade não se Compra (Arthur Schopenhauer: a existência,a vida, a dor, o tédio, a morte, etc.).b) Tomates Verdes Fritos (Martin Heidegger: a existência, acotidianidade, a angústia, a vida, a morte, etc.).c) El Mundo de Sofía (O conceito de Filosofia, segundo a exposiçãoda história da Filosofia).d) Os Imperdoáveis (Friedrich Nietzsche: a vontade de potência, oniilismo, o além do homem, amor ao mundo e ao destino, etc.).e) Os Últimos Rebeldes (Jean-Paul Sartre: a existência autêntica, amá-fé, a liberdade, o determinismo, etc.).f) Paris/Texas (Hegel: a dialética das idéias, a formação dasubjetividade, o Absoluto, a cultura, a razão, a história, etc.).g) Thelma e Louise (Jean-Paul Sartre: a existência autêntica, a má-fé,a liberdade, o determinismo, etc.).h) Vida de Cachorro, O Garoto (Ludwig Wittgenstein: os poderes eos limites da linguagem, o silêncio, a demonstração, o sentido, o signo,formas de “dizer” sem o uso das palavras, etc.).

Metodologia utilizada

A metodologia visou provocar a participação ativa dos cursistas,buscando uma compreensão geral sobre os temas que eram trabalhados.O curso se desenvolveu em três momentos distintos: a) exposição daobra do autor estudado e de sua(s) temática(a) filosófica(s); b) exposiçãodo filme relacionado com a(s) temática(s) abordada(s) pelo autor; c)contextualização logopática entre o filme e o tema estudado. O intuitofundamental das técnicas que foram desenvolvidas foi o de promover acoletivização do conhecimento, pela socialização das idéias. Buscandoalcançar um maior interesse pelos conteúdos abordados e otimizar odesempenho dos participantes, os temas filosóficos e os filmes foram

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assim trabalhados: a) exposições dialogadas; b) projeção de transparências;c) esquematização do conteúdo na lousa; d) projeção dos filmes; e) audiçãode músicas; f) leituras orientadas; g) discussão aberta e contextualizaçãodas obras cinematográficas com os temas filosóficos estudados.

Avaliação dos resultados

Conforme houvera sido planejado, no desenvolvimento do curso,esperava-se que o público fosse se familiarizando com os temas e coma linguagem filosófica, bem como a cinematográfica, e que pudessepromover o diálogo entre o conhecimento filosófico e o das suasrespectivas áreas de formação e/ou atuação. Esta meta foi alcançada.Os cursistas conseguiram realizar as mais diversas contextualizações,analisando os temas, opinando, debatendo-os e discutindo-os. Avaliaramos conteúdos e a metodologia como satisfatórios, lamentaram a “curta”duração do curso (40 horas) e reivindicaram novos cursos desta naturezacom uma carga horária maior. Desta forma, diante da avaliação realizada,pode-se dizer que o projeto, mesmo diante dos muitos percalços, logrouêxitos, pois seus principais objetivos foram atingidos.

PHILOSOPHY AND THE MOVIES, AN ARTICULATIONBETWEEN THE AFFECTIONATE AND THE RATIONAL AS AWAY OF DIRECTING THE THOUGHT: A REPORT ON THEEXPERIENCE OF THE PROJECT “PHILOSOPHY AND THE

MOVIES: AESTHETICS AND IMAGE RATIONALITY”

Abstract: This paper is constituted in a report of the experience developed inthe extension project “Philosophy and Movies: aesthetics and rationality ofthe image”, accomplished in Uesb, in the year of 2005. The course wasstructured starting from the “concept-image” idea, being considered thepossibility of the cinematographic image to synthesize, to build or to developconcepts with value of truth. The project grew leaving of the exhibition ofgreat works of the movies world contextualized with great themes of thehistory of the contemporary philosophy.

Keywords: Cinematographic language. Philosophical language. Concept-image. Logopathic rationality.

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273Filosofia e cinema, uma articulação entre o afetivo e o racional como forma ...

Referências Bibliográficas

AUMONT, Jacques. A imagem. Tradução de Estela dos Santos Abreue Cláudio César Santoro. 7. ed. Campinas: Papirus, 2002a.

______. et al. A estética do filme. Tradução de Marina Appenzeller.2. ed. Campinas: Papirus, 2002b.

CABRERA, Julio. Cine, 100 años de Filosofía: una introducción a laFilosofía a través del análisis de películas. Barcelona: Gedisa, 1999.

CARRIÈRE, Jean-Claude. A linguagem secreta do cinema. Tradução deFernando Albagli e Benjamim Albagli. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1995.

Filmográficas:

A FELICIDADE não se Compra (It’s a Wonderful Life). Produção eDireção de Frank Capra. Estados Unidos: RKO Radio Pictures Inc./Liberty Films, 1946. 1 DVD (129 min), áudio em inglês e legendas emportuguês e espanhol, preto e branco.

EL MUNDO de Sofía (Sofies Verden). Produção de Oddvar Bull Tuhuse John M. Jacobsen. Direção de Eric Gustavson. Noruega/Suécia: NRKDrama/Filmkameratene AS, 1999. 1 DVD (90 min), áudio emnorueguês e legendas em espanhol, colorido.

OS IMPERDOÁVEIS (Unforgiven). Produção e Direção de ClintEastwood. Estados Unidos: Warner Bros, 1992. 1 DVD (131 min),áudio em inglês e espanhol e legendas em português e espanhol,colorido.

O GAROTO (The Kid). Produção e Direção: Charles Chaplin. EstadosUnidos: Chaplin - First National Pictures Inc., 1921. 1 DVD (68 min),sem áudio e legendas em português e espanhol, preto e branco.

OS ÚLTIMOS Rebeldes (Swing Kids). Direção: Thomas Carter.Estados Unidos: Abril Vídeo, 1993. 1 videocassete (115 min), áudioem inglês e legendas em português, colorido.

PARIS/TEXAS (Paris, Texas). Produção: Anatole Dauman e Don Guest.Direção: Wim Wenders. Alemanha Ocidental/França: 20th Century Fox/

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Argos Films/Channel Four Films/ Project Filmproduktion/RoadMovies Filmproduktion/Westdeutscher Rundfunk, 1984. 1 DVD (146min), áudio em inglês e espanhol e legendas em português e espanhol,colorido.

THELMA e Louise (Thelma & Louise). Produção: Mimi Polk Gitlin,Mimi Polk e Ridley Scott. Direção: Ridley Scott. Estados Unidos: MGM/UIP/Pathé Entertainment, 1991. 1 DVD (130 min), áudio em inglêse espanhol e legendas em português, espanhol e francês, colorido.

TOMATES Verdes Fritos (Fried Green Tomatoes). Direção: Jon Avnet.Produção: Jon Avnet e Jordan Kerner. Estados Unidos/Inglaterra: UniversalPictures/The Rank Organization/Act III Communications/ EletricShadow Productions/ Avnet/ Kerner Productions/ Fried GreenTomatoes Productions, 1991. 1 DVD (124 min), áudio em inglês eespanhol e legendas em português e espanhol, colorido.

VIDA de Cachorro (A Dog’s Life). Direção e Produção: CharlesChaplin. Estados Unidos: First National Pictures Inc., 1918. 1 DVD(40 min), sem áudio e legendas em português e espanhol, preto e branco.

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SABERES DOCENTES: INICIANDOUMA PESQUISA NOS CURSOS DE

LICENCIATURA EM MATEMÁTICA

Januária Araújo Bertani *Janice Cássia Lando **

Inês Angélica Andrade Freire ***Roberta D’Ângela Menduni ****

Márcia Graci de Oliveira Matos *****

Resumo: O projeto “Saberes docentes construídos pelos discentes dos cursosde licenciatura em matemática da Universidade Estadual do Sudoeste daBahia”1 está em fase inicial. Este artigo, portanto, propicia consideraçõespreliminares, possibilitando uma reflexão sobre o andamento da pesquisa,cujo objetivo é identificar e analisar os saberes docentes construídos durante

* Mestre em Educação. Docente do Departamento de Química e Exatas (Área de Matemática),da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (Uesb).** Especialista em Metodologia do Ensino da Matemática. Docente do Departamento deQuímica e Exatas (Área de Matemática), da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (Uesb).*** Especialista em Metodologia do Ensino da Matemática. Docente do Departamento deQuímica e Exatas (Área de Matemática), da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (Uesb).**** Mestre em Matemática Docente do Departamento de Química e Exatas (Área deMatemática), da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (Uesb). E-mail:[email protected].*****Mestre em Matemática. Docente do Departamento de Química e Exatas (Área deMatemática), da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (Uesb). [email protected] Esse projeto possui o apoio financeiro da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado daBahia (Fapesb).

Práxis Educacional Vitória da Conquista n. 2 p. 275-290 2006

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a formação inicial. Para esse estudo, fundamentamo-nos teoricamente emTardif e Pimenta. Como abordagem metodológica, recorremos ao estudo decaso. Os sujeitos envolvidos são duas alunas do curso Licenciatura emMatemática do Campus de Jequié, uma delas tendo a sua formação em serviçoe a outra apresentando sua primeira experiência docente nas disciplinas deEstágio Curricular Supervisionado. Como resultados preliminares, podemosdestacar que as alunas concebem em sua prática docente alguns saberesdocentes, mas de forma diferenciada.

Palavras-chave: Formação de professor. Ensino de matemática. Saberesdocentes.

Introdução

Objetivando identificar e analisar os saberes docentes e tambémas possibilidades de sua construção durante a formação inicial,2 aUniversidade Estadual do Sudoeste da Bahia (Uesb), CampusUniversitário de Jequié, por meio do Departamento de Química eExatas, propõe a Pesquisa: “Saberes docentes construídos pelosdiscentes nos cursos de licenciatura em matemática da Uesb”. A pesquisapossibilitará revelar os saberes referentes à docência, propiciando“compreender como esses saberes são integrados concretamente nastarefas escolares dos professores e como estes os incorporam,produzem, utilizam, aplicam e transformam em função dos limites edos recursos inerentes às suas atividades de trabalho” (TARDIF, 2002, p.256). Essa pesquisa encontra-se em fase inicial, momento da avaliaçãodos instrumentos de coleta de dados. As considerações apresentadasneste artigo são resultados preliminares obtidos por meio do teste piloto.

A Uesb, no decorrer de 25 anos de funcionamento, tem comoobjetivos fundamentais o ensino, a pesquisa e a extensão, integradosna formação técnico-profissional e na difusão da produção doconhecimento, desenvolvendo a formação de profissionais comcompetências técnicas e científicas. Dentre os cursos oferecidos poresta Instituição, destacamos as Licenciaturas, em particular, as

2 Quando tratarmos de formação inicial, estamos nos referindo aos cursos de graduação.

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277Saberes docentes: iniciando uma pesquisa nos cursos de licenciatura em matemática

Licenciaturas em Matemática, dos Campi de Vitória da Conquista eJequié. Além dos cursos regulares, esses Campi oferecem os cursos deLicenciatura em Matemática do Programa de Formação paraProfessores.3

Características dos cursos de licenciatura em matemática docampus universitário de Jequié

Para uma melhor contextualização do estudo, destacaremosalgumas particularidades dos cursos de Licenciatura em Matemáticado Campus Universitário de Jequié, já que o teste piloto foi realizadosomente nesse local. Atualmente, contamos com dois cursos referentesà formação do professor de Matemática: Licenciatura em Matemáticacom Enfoque em Informática e Licenciatura em Matemática doPrograma de Formação para Professores das Séries Finais do EnsinoFundamental e do Ensino Médio.

O curso de Licenciatura em Matemática com Enfoque emInformática foi implantado em 2000, conforme Resolução do ConselhoSuperior de Ensino, Pesquisa e Extensão (Consepe) nº 50/2000,objetivando formar “profissionais com sólidos conhecimentos emmatemática pura e aplicada, bem como destacar a importância docomputador como ferramenta tecnológica e facilitadora da relaçãoensino-aprendizagem na Educação Matemática” (UESB, 2003a, p. 106).Esse curso atende a estudantes que já exercem a função de professor eaqueles que ainda não atuam na docência, cuja seleção,independentemente da função profissional do candidato, ocorre pormeio de vestibular.

Funcionando no período noturno, com quarenta vagas anuais ecarga horária total de 3.132 horas, o curso de Licenciatura emMatemática com Enfoque em Informática, em atendimento à Resolução

3 A partir deste momento utilizaremos a expressão “Cursos de Licenciatura em Matemática”para referenciar os Cursos que são oferecidos na modalidade regular e da mesma forma “Cursode Licenciatura em Matemática – PFP” para identificar os Cursos de Licenciatura em Matemáticado Programa de Formação para Professores nas Séries Finais do Ensino Fundamental e doEnsino Médio.

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do Conselho Nacional de Educação (CNE) nº 02/2002,4 depois deter passado por um processo de reflexão, sofreu uma adequação nasua estrutura curricular, o que possibilitou a inserção de disciplinasreferentes ao campo investigativo da educação matemática,enfatizando a pesquisa e a prática de ensino para a formação doprofessor. Como o processo de formação de professores é dinâmico,surgiu novamente a necessidade de repensar o curso. Portanto, estamosmais uma vez vivenciando um processo de reestruturação curricular.

A Licenciatura em Matemática do Programa de Formação paraProfessores das Séries Finais do Ensino Fundamental e do EnsinoMédio (PFP) foi concebida pela Secretaria Estadual da Educação eestruturada pelo convênio com as Universidades Estaduais e aUniversidade Federal do Estado da Bahia, já que havia uma grandenecessidade de qualificação do quadro docente da rede pública desteEstado.

No Projeto de Implantação do Curso, constam os princípios,nos quais se fundamentou a comissão para elaborar a proposta dessecurso: construção de competências; pesquisa na formação; e coerênciaentre a formação oferecida e a prática do professor. Em referência aosobjetivos propostos, destacamos o que está relacionado aos saberesdocentes, uma vez que é o objeto de estudo desta pesquisa:

Refletir sobre a experiência docente, na perspectiva deaprofundar os saberes da docência necessários ao exercício daprofissão, aliando competência técnica a competência política,contribuindo para a formação de um professor crítico/reflexivo,preocupado com a indissociabilidade teoria/prática (UESB,2003b, p. 20).

A formação em serviço é uma das suas principais características,por isso há uma preocupação, na escrita da proposta, em articular aexperiência docente com questões epistemológicas, didáticas epedagógicas, ressaltando o exercício para a reflexão:

4 Essa Resolução institui as Diretrizes Curriculares Nacionais dos Cursos de Licenciatura.

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O programa vale-se dos benefícios da formação em serviço,que torna possível o confronto entre o saber docente oriundodo contato direto com os alunos nas aulas de matemática e osfundamentos epistemológicos e didático-pedagógicos, possibi-litando um aprender-ensinar reflexivo (UESB, 2003b, p. 20).

O curso abrangeu o município de Jequié e cidades circunvizinhas.5

Das 50 vagas oferecidas, foram preenchidas somente vinte e duas.Funciona de forma presencial, sua duração está prevista para três anose sua carga horária total é de 2.955 horas.

Com referência a esses dois cursos, podemos destacar que ambos,além de qualificar para a docência no Ensino Fundamental e no EnsinoMédio, proporcionam uma reflexão sobre a aprendizagem deconhecimentos matemáticos necessários à formação do indivíduo. Essaformação consiste em fornecer ao estudante uma sustentação teórica,refletindo, em sua prática docente, o seu amadurecimento intelectual,ou seja, a possibilidade da construção dos saberes docentes.

Caminhos Metodológicos

Para a realização desta pesquisa, optamos pela abordagemqualitativa, que, segundo Zimmermann (2000), possui as seguintescaracterísticas: ênfase no indivíduo; pesquisa de pequena escala; destaquepara a descrição e interpretação; e preocupação de entender a ação dossujeitos envolvidos na pesquisa.

Essas características possibilitam que os pesquisadores façamuma leitura particularizada do objeto de estudo. Dessa forma, o local,as pessoas, as situações envolvidas também fazem parte do objeto depesquisa. Assim, ao fazer uma pesquisa, tanto pesquisadores quantopesquisados possuem papéis importantes, e o somatório da interlocuçãoentre o objeto de estudo e os pesquisadores terá como resultante aprópria pesquisa.

A pesquisa que vem sendo realizada na Uesb, nos cursos deLicenciatura em Matemática, está intimamente relacionada com os

5 Itiruçu, Jaguaquara, Lafaiete Coutinho e Manoel Vitorino.

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pesquisadores envolvidos, uma vez que são professores do Campus deJequié que atuam nas disciplinas pedagógicas e específicas tanto noCurso de Licenciatura em Matemática - PFP quanto no Curso deLicenciatura em Matemática. Para Eco (1995, p. 06), a escolha do objetode pesquisa perpassa alguns itens, dentre os quais se destacam: “que otema responda aos interesses do candidato [...] que as fontes de consultasejam acessíveis”. Portanto, há interesses profissionais em pesquisarsobre a construção dos saberes docentes no decorrer destes cursos, jáque o processo investigativo não só possibilita a reflexão sobre a própriaprática pedagógica dos pesquisadores, mas, também, propicia uma leituradetalhada do papel social da Instituição ao oferecer esses cursos.

Como estratégia metodológica, escolhemos o estudo de caso.Para Triviños (1987, p. 133), o estudo de caso é “uma categoria depesquisa cujo objeto é uma unidade que se analisa aprofundadamente”.

Os sujeitos envolvidos no teste piloto foram: Taís e Luíza.6 Comoestamos no início da pesquisa, optamos em envolver somente duasalunas: Taís do Curso de Licenciatura em Matemática e Luíza do Cursode Licenciatura em Matemática – PFP, ambas do Campus de Jequié.Restringimos o desenvolvimento da pesquisa a um teste piloto, pois acoleta dos dados poderia possibilitar a viabilidade deste instrumento(roteiro da entrevista) e o alcance dos objetivos, ainda que com umgrupo reduzido.

A escolha dessas alunas não foi aleatória. Como apresentavamtrajetórias que permeavam caminhos diferentes, acreditávamos que apre-sentariam olhares diferenciados sobre a prática docente, a escola, a mate-mática, o conhecimento, entre outros. Segundo Tardif: (2000, p. 115):

[...] o ponto de vista dos professores, ou seja, sua subjetividadede atores em ação, assim como conhecimentos e o saber-fazerpor eles mobilizados na ação cotidiana. De modo mais radical,isso quer dizer também que a pesquisa sobre o ensino deve sebasear num diálogo fecundo com os professores, consideradosnão como objetos de pesquisa, mas como sujeitos competentesque detêm saberes específicos do seu trabalho.

6 Os nomes referendados aos sujeitos envolvidos na pesquisa são fictícios.

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281Saberes docentes: iniciando uma pesquisa nos cursos de licenciatura em matemática

Vale salientar que, no momento, analisamos e refletimos apenassobre os dados coletados no teste piloto da entrevista; porém,pretendemos, em 2006 e 2007, dar continuidade a essa pesquisa,recorrendo aos seguintes sujeitos:

• estudantes do Curso de Licenciatura em Matemática quetenham cursado, pelo menos, uma disciplina referente ao EstágioCurricular Supervisionado;• estudantes do curso de Licenciatura em Matemática doPrograma de Formação para Professores.A coleta de dados, ou seja, a organização do material para a

realização da pesquisa, será constituída pelas seguintes etapas:

• Análise das entrevistas, análise documental e análisecomparativa das etapas anteriores. Essas análises possibilitarãouma compreensão do papel das Licenciaturas em Matemáticapara a construção de saberes pertinentes à sua atuação docente.A análise documental consistirá no estudo e análise dedocumentos7 dos cursos, visando pesquisar a existência daarticulação entre as disciplinas para a fundamentação daconstrução dos saberes docentes.• Entrevistas individuais e em grupo do tipo semi-estruturadas– para Triviños (1987, p. 146), a entrevista semi-estruturada: “[...]é aquela que parte de questionamentos básicos, apoiados emteorias e hipóteses, que interessam à pesquisa, e que, em seguida,oferecem campo de interrogativas, fruto de novas hipóteses quevão surgindo à medida das respostas do informante”.

Compreendemos que essa proposta metodológica tem o intuitode possibilitar uma maior apreensão e aproximação dos objetivos dessapesquisa. Tal compreensão poderá propiciar um outro direcionamentopara futuras construções referentes aos saberes docentes e a novosquestionamentos, ao mesmo tempo em que subsidiará a possibilidade

7 Para a análise documental, serão utilizados os projetos pedagógicos e os planos de ensino dealgumas disciplinas dos cursos envolvidos.

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de refletir e transformar este espaço de construção de saberes. Assim,também, a pesquisa poderá ser um condicionante para a transformaçãoda atividade docente.

Saberes docentes: categorizações

Para essa reflexão, faz-se necessário definirmos os principaisconceitos que permeiam o objeto de estudo. Dentre eles, salientamoso conceito utilizado neste trabalho sobre os saberes docentes,recorrendo a Tardif (1991, 2000 e 2002) e Pimenta (1999), os quaisnos proporcionam estabelecer relação entre os professores e os seussaberes e definir os tipos de saberes que compõem o saber docente, ouseja, nos permitem construir a categorização.

Tardif (1991, p. 231) salienta a existência de saberes sociaisconstituídos pelo conjunto de saberes de que dispõe uma sociedade, entreos quais, os saberes referentes à educação e aos saberes docentes: “Pode-se definir o saber docente como um saber plural, formado pelo amálgama,mais ou menos coerente, de saberes oriundos da formação profissional,dos saberes da disciplina, dos currículos e da experiência”.

O saber profissional é caracterizado “pelo conjunto de saberestransmitidos pelas instituições de formação dos professores” (TARDIF,1991, p. 219). Este saber está inserido no contexto da ciência da educaçãoe da ideologia pedagógica.

Os saberes da disciplina, construídos historicamente e remetidosa uma tradição cultural, referem-se ao conhecimento específico, nestecaso, o conhecimento matemático.

Os saberes curriculares são compostos pelos “discursos,objetivos, conteúdos e métodos, a partir dos quais a instituição escolarcategoriza e apresenta os saberes sociais que ela definiu e selecionoucomo modelo da cultura erudita e de formação na cultura erudita”(TARDIF, 1991, p. 220). Esses saberes apresentam-se na forma deprogramas escolares. Entendemos que, no nosso contexto, trata-se doProjeto Político Pedagógico de uma instituição escolar.

Os saberes da experiência são os saberes construídos pelospróprios professores durante a sua atuação docente, quando

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“desenvolvem saberes específicos, fundados em seu trabalho cotidianoe no conhecimento do seu meio. Esses saberes brotam da experiênciae são por ela validados”. Vale ressaltar que os professores sãorepresentantes de grupos sociais e profissionais; portanto, os saberesda experiência podem ser incorporados à vivência coletiva e individual.Por isto, Tardif, ao se referir a esse saber, caracteriza-o como sendocultura docente em ação.

Para Pimenta (1999, p. 18), os saberes docentes são os saberesnecessários à docência. Nesta perspectiva, os Cursos de Licenciaturapodem desenvolver: “[...] nos alunos conhecimentos e habilidades,atitudes e valores que lhes possibilitem permanentemente iremconstruindo seus saberes-fazeres docentes a partir das necessidades edesafios que o ensino como prática social lhes coloca no cotidiano”.Pimenta, ao se referir à formação, ressalta que formar significa construir,ou seja, possibilitar a ressignificação de práticas e a aprendizagem denovos caminhos que propiciem saberes relacionados à realidadevivenciada, compreendendo o ensino como uma realidade social. Essaautora salienta a importância de três saberes na docência: experiência,conhecimento e saberes pedagógicos.

A “experiência” é definida, por Pimenta (1999), em três eixos:saberes de sua experiência de aluno (representação dos seus professorese da sua vivência escolar); saberes da experiência socialmente acumulada(representações e estereótipos que a sociedade produz em relação a serprofessor); e saberes da experiência como professor (vivência com osseus colegas e alunos, da sua prática docente).

Em relação ao “conhecimento”, Pimenta (1999, p. 22) adverteque esse saber vai muito além do conhecimento específico; para serprofessor de matemática, por exemplo, não é suficiente saber osconceitos matemáticos. Para ela, “[...] conhecer significa estar conscientedo poder do conhecimento para a produção da vida material, social eexistencial da humanidade”. Assim, evidencia a importância do trabalhocoletivo, interdisciplinar, que poderá propiciar uma educação críticaem busca de uma transformação.

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Além desses saberes, Pimenta também apresenta os “saberespedagógicos”, que só são constituídos pela relação entre teoria e prática,ou seja, na ação que possibilita o saber-fazer e o fazer-saber. Nestaarticulação entre os saberes sobre a educação, sobre a pedagogia e oensinar é que surge o saber pedagógico.

Para Tardif (1991, 2000 e 2002) e Pimenta (1999), os saberesdocentes se configuram da seguinte forma:

Essa representação possibilita estabelecer relações entre ascategorizações de saberes docentes constituídas pelos autores acimacitados. Esses autores, em relação à experiência, possuem conceitosque se equivalem no que se refere ao saber produzido por meio daatuação docente. Os saberes das disciplinas, para Tardif, correspondemaos saberes do conhecimento estabelecidos por Pimenta. Contudo, emrelação aos saberes pedagógicos propostos por essa autora, é possívelcompará-los aos saberes curricular e profissional apresentados porTardif.

Tecendo algumas considerações

Iniciaremos nossas reflexões apresentando os sujeitos dapesquisa, suas trajetórias de vida e as relações estabelecidas entre essatrajetória e a escolha do curso, de acordo com as informações obtidasnas entrevistas:8

8 Entrevistas realizadas no dia 5 de dezembro de 2005.

Fonte: Elaborado pelos autores.

TARDIF PIMENTA

Experiência

SABERES

DOCENTES

Pedagógico

ConhecimentoConhecimento

CurricularProfissional

Experiência

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• Taís – destaca que sempre gostou de Matemática, mas, quandofoi escolher um curso superior, fez o vestibular paraEnfermagem, não obtendo aprovação. No ano seguinte, pensou“em fazer Biologia, justamente para poder transferir [paraEnfermagem], mas veio Matemática e eu sempre gostei dematemática”. Além destas informações obtidas na entrevista,em conversas informais pudemos perceber que a aluna começoua sua atividade docente após ter cursado a disciplina de Estágiono Ensino Fundamental.9

• Luíza – ao referir-se a sua trajetória profissional, enfatiza quetem 25 anos de docência, 23 dos quais destinados ao ensino daMatemática, tempo em que é efetiva na Rede Estadual de Ensino.Quando iniciou seu trabalho, como professora, havia cursado omagistério de nível médio. Após dois anos, cursou a LicenciaturaCurta em Ciências, 20 anos depois voltou para a Universidadecom o intuito de graduar-se em Biologia, não conseguindoconcluir pelas seguintes justificativas:

[...] não era a minha área. Não me adaptei porque eu já tinhadeixado há muito tempo de estudar. Quando nós voltamos parafazer a plena, já tinha mais de vinte anos que eu tinha terminadoe pegamos uma sala regular de alunos que tinham passado emum vestibular recente (Luíza).

Quando questionadas sobre as condições necessárias para seremprofessoras de matemática, percebemos posicionamentos diferentes.Enquanto Taís destaca os saberes do currículo, da profissão e doconhecimento, Luíza limita-se aos saberes do conhecimento.

Taís salienta que, para ser professor de Matemática, faz-senecessário o conteúdo (saber do conhecimento e/ou das disciplinas) etambém ressalta que é necessário saber ensinar (saber pedagógico e/ou saberes curriculares e profissionais) e diz que:9 Neste curso, o Estágio Curricular Supervisionado é desenvolvido em quatro etapas e se compõedas seguintes disciplinas: Estágio Supervisionado do Ensino Fundamental I (fases de observaçãoe co-participação), Estágio Supervisionado do Ensino Fundamental II (observação e docência),Estágio Supervisionado do Ensino Médio I (observação e co-participação) e EstágioSupervisionado do Ensino Médio II (observação e docência). Estas disciplinas acontecem emsemestres distintos.

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[...] acho que saber conteúdo é preciso; também saber como pas-sar o conteúdo é mais importante, porque, às vezes, a gente atésabe, mas como o outro vai aprender é a dificuldade da genteexpor. Da gente que está iniciando agora, a gente conversa mui-to sobre como passar este conteúdo para os alunos de umaforma que eles possam aprender. Porque fica difícil para a gen-te poder analisar como ele vai achar mais fácil desta maneira oude outra (Taís).

Quando Taís fala da importância do conteúdo, também destaca arelevância em saber “passar este conteúdo”, ou seja, considera os saberesrelacionados ao conhecimento, à profissão e ao currículo. Talvez Taísnão aponte o saber da experiência pelo fato de apresentar pouco tempo(alguns meses) de atuação docente. O sentido da expressão usada porTaís – “saber passar” –, de certa forma, nos remete ao saber pedagógico.Quanto ao saber da experiência, Tais relata a importância da interligaçãoentre a formação universitária e a sala de aula:

[...] porque às vezes a gente ouve muitas discussões e tudo;quando a gente não tá na prática fica mais difícil [...] ficávamosum pouco viajando. Aí a partir do momento que começamosno estágio, começou ficar mais claro; algumas coisas que eramdiscutidas em sala de aula [...] a gente foi se familiarizando maiscom a realidade (Taís).

Em seu depoimento, Taís mostra a relevância de vivenciar a escolacomo professora. Também é necessário destacar que o primeiro contatoda aluna na atividade docente foi durante o estágio, permitindo o iníciode uma reflexão sobre a atuação do professor. Desta forma, ela percebeuo sentido de algumas discussões encadeadas nas disciplinas relacionadascom Educação Matemática. Isto fica evidenciado quando Taís utiliza otermo “viajando”, mostrando como é difícil compreender uma realidadenão vivenciada.

Luíza também salienta o conhecimento específico e reforça que,além desse conhecimento, é necessário ter aptidão e vocação, mostrandoque o saber pedagógico, ou seja, o “saber ensinar” é algo inato. Talvezesse posicionamento venha da sua história profissional. Como apresenta

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muitos anos de experiência, não percebe que essa experiência tambémpode ser fundamentada por saberes apreendidos teoricamente. Luízadiz que: “Além de conhecimento, a gente tem que ter aptidão, vontade,determinação [...] a gente tem que ter aptidão para despertar nos alunoseste desejo de aprender matemática [...]”. Complementando sua falasobre o que é preciso para ser professor, destaca: “Muito embora sejadifícil a gente alcançar o objetivo, principalmente em matemática, maseu acho que boa professora é aquela que cumpre, aquela que éresponsável, aquela que sabe levar os alunos, aquela que compreendeos alunos [...]”. Novamente podemos perceber que não há indíciosacerca do saber pedagógico, pois, para ela, ser “boa professora” estárelacionado com a postura do profissional. Ressalta, portanto, que asua prática pedagógica está pautada em duas referências: “domínio doconteúdo e aptidão”.

Assim, considerando os relatos, podemos avaliar que, para ambas,a atividade docente é construída e referendada por meio de saberes.Tardif (1991, p. 221) compreende a importância desses saberes como“elementos constitutivos da prática docente”. Para isso, o professor“[...] deve conhecer sua matéria, sua disciplina, o seu programa, quedeve possuir certos conhecimentos das ciências da educação e dapedagogia, sem deixar de desenvolver um saber prático fundado emsua experiência cotidiana com os alunos”.

Quando questionadas sobre as disciplinas que mais contribuírampara a sua formação docente, Taís destaca as disciplinas Fundamentosde Matemática Elementar III10 e Pesquisa e Prática de Ensino emMatemática II,11 disciplinas que têm uma característica em comum: estãorelacionadas ao ensino de Matemática na Educação Básica. Ao justificaresta escolha, ela afirma: “Então, eu achei importante e por quê?Justamente para dar essa visão da gente levar matemática de uma maneiradiferente para os alunos, não daquela forma tradicional”. Novamenteessa resposta reforça a preocupação com o saber pedagógico. Já Luíza

10 Abordagem crítica dos conteúdos de matemática do Ensino Fundamental.11 A disciplina desenvolveu atividades que envolvem o uso de recursos didáticos nas aulas dematemática.

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considera que a disciplina mais importante foi Política Educacional,12

dizendo que: “[...] uma grande reflexão que a gente tem feito durante ocurso [...] é o poder que tem o professor como educador em transformar– o agente transformador. Então eu acho isto muito importante para oprofessor, ele tem que ser consciente que ele é um agente transformador[...]”. Percebemos, no relato de Luíza, que ela não se concebia comoagente transformador. Tardif (1991, p. 221) também analisa que “[...]o(a)s professore(a)s ocupam uma posição estratégica, porémsocialmente desvalorizada [...] a função docente define-se em relaçãoaos saberes, mas parece incapaz de definir um saber produzido oucontrolado pelos que a exercem”. Em conformidade com esse autor,destaca-se a importância do saber profissional, uma vez que foi duranteas discussões teóricas, desencadeadas na disciplina Política Educacional,que Luíza se conscientizou da dimensão política em suas açõespedagógicas.

A última questão abordada, neste trabalho, é sobre oentendimento das alunas a respeito do significado da expressão saberdocente. Para Taís: “é o saber que a gente precisa saber para exercer aprofissão do professor”. Indagada sobre quais seriam estes saberes,obtivemos a seguinte resposta: “É o didático pedagógico [pausa]. Gente,é porque deu branco. [...] Não, é porque deu branco. Mas, o maisimportante que vejo para mim é o didático pedagógico”. Podemosconstatar que esta resposta de Taís está coerente com suas falasapresentadas no decorrer da entrevista, ou seja, para ela, o saberpedagógico deve ser priorizado na formação docente.

Já Luíza, ao ser questionada sobre os saberes docentes, indaga:“Saberes docentes? [pausa] Saber do professor, não é? [pausa]. Nãosei, formação do professor?”. Em meio a tantos questionamentos,percebemos que Luíza não tem clareza quanto ao conceito de saberesdocentes. Entretanto, ela cita o saber do conhecimento, embora nãovamos admitir que sua prática seja permeada somente por esse saber,pois ela apresenta uma experiência de mais de vinte anos em sala deaula. Além disto, a prática docente apresenta um “saber plural”, pois é

12 No ementário desta disciplina, entre outros tópicos, há referencias sobre o profissional daeducação: formação, estatuto e ética e o estudo da evolução histórica da educação.

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caracterizada por uma rede complexa de representações. Portanto, ossaberes são construídos e reconstruídos no decorrer da atuação docente,que é permeada pela reflexão e pelo estudo. Desta forma, surge anecessidade de pesquisas referentes a este tema, pois só assimpoderemos rever o que Tardif (1991, p. 221) problematiza: “A relaçãodo(a)s professore(a)s com os saberes é a de ‘agente da transmissão’, de‘depositário’ ou de ‘objeto’ de saberes. mas não de produtores de umsaber ou de saberes”. Esta relação pode ser ressignificada por meio daintegração do saber da experiência juntamente com os saberes doconhecimento, profissional e curricular, possibilitando uma formaçãoconsciente e reflexiva.

Enfim...

O intuito deste trabalho foi, inicialmente, o de refletir sobre osprimeiros passos da pesquisa, com a preocupação em analisar aviabilidade de um dos instrumentos de coleta de dados – roteiro daentrevista –, sem a pretensão de transformá-lo em um artigo. Os dadoscoletados, entretanto, nos proporcionaram discussões que, juntamentecom o referencial teórico, nos possibilitaram a construção deste trabalho.

Assim o presente trabalho analisou a forma como duas alunas doscursos de Licenciatura em Matemática da Uesb, Jequié, concebem e vêemos saberes docentes que estão sendo construídos no decorrer dos cursos.

Também é necessário salientar que não tínhamos o objetivo deestabelecer classificações definidas, pois concebemos a prática docentede matemática como sendo um ir e vir que está sempre em um diálogoconstante com os mais variados tipos de saberes. Logo, a prática educativaé dialética, sendo ressignificada por meio de rupturas e reflexões.

TEACHER’S KNOWLEDGE: STARTING A RESEARCHIN THECOURSES OF LICENTIATESHIP IN MATHEMATICS

Abstract: This research intends to identify and analyze teacher’s knowledge[saberes docentes] shared by undergraduate students from a course inMathematics Teachers at the Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia.We took Tardif and Pimenta’s ideas as theoretical references and case studiesas methodological framework. The subjects involved in our study are two

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students from that course, one is being trained in service while the other isdoing her first teaching experience as trainee in courses related to supervisedteaching experience. This paper presents in a preliminary way our first results,and they show that students exhibit teacher’s knowledge in their teachingexperience, but they exhibit it in different and individual ways.

Key words: knowledge, teacher formation, teaching of mathematics.

Referências Bibliográficas

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DESLOCAMENTOS DELEUZEANOSPARA A EDUCAÇÃO

por Benedito Gonçalves Eugênio *

GALLO, Sílvio. Deleuze e a educação.Belo Horizonte: Autêntica, 2003.

Sistematizar e resumir de modo simples e preciso o pensamentode um autor não é tarefa fácil. Isso assume um caráter de maiordificuldade quando se trata de um autor de textos densos e complexos,como é o caso de Gilles Deleuze, nos quais as idéias e categorias deanálise vão sendo elaboradas e enriquecidas à medida que as obras sãoproduzidas.

Aliada a essa primeira dificuldade soma-se outra que me pareceainda mais difícil: pensar a vasta obra de Deleuze, que não escreveusobre educação, e transportar os seus conceitos para o campoeducacional, o que impõe a necessidade de não apenas condensar asidéias, mas refletir sobre a contribuição destas para as teorias e práticasda educação. É a essa árdua tarefa que se dedicou Sílvio Gallo em seurelevante livro Deleuze e a educação.

* Doutorando em Educação pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). E-mail:[email protected]. Professor da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (Uesb).

Práxis Educacional Vitória da Conquista n. 2 p. 291-293 2006

RESENHA

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Benedito Gonçalves Eugênio292

Na introdução, Gallo deixa claro o objetivo do livro: “ser umaintrodução didática à obra de Deleuze, assim como oferecer umaexploração inicial de questões tratadas por ele que podem fazer interfacecom temáticas da educação” (p. 9), o qual é prontamente alcançado.

O livro está estruturado em quatro capítulos. O primeiro capítuloinicia-se apresentando e situando Deleuze: sua formação, atividadesprofissionais e os encontros importantes que geraram agenciamento eintercessores, com Fanny Deleuze, Claire Parnet, Foucault e FélixGuatari. O capítulo encerra-se com uma relação das obras produzidaspelo filósofo francês.

O segundo capítulo nos apresenta um breve panorama dafilosofia francesa contemporânea, a qual, segundo Gallo, foi marcadapela história da filosofia, mas com várias divergências entre as diferentestendências, influenciadas, por um lado, pela filosofia da vida, naprodução de Bergson e, de outro, pela produção de Husserl. Em seguida,o autor nos apresenta a “revolução” provocada por Nietzsche na geraçãode filósofos franceses nos anos 1960, incluindo aí, logicamente, opróprio Deleuze.

Gallo, entretanto, nos adverte que “se há a influência deNietzsche, há ainda de várias outras [...]. Assim, não é possível dizerque Deleuze tenha sido um ‘nietzscheano’, como o foram Foucault,Derrida e companhia” (p. 32).

A partir daí, o autor prossegue nos apresentando Deleuze comoum filósofo-historiador e toda a sua multiplicidade. Gallo, agindo comoum arqueólogo, vai “escavando” as obras deleuzeanas para nos oferecerseus principais conceitos e as possibilidades analíticas destes.

No terceiro capítulo, o foco é a contribuição de Deleuze parapensar a educação. Continuando com o trabalho arqueológico, Galloopta por operar com deslocamentos, isto é, tomar conceitos de Deleuzee deslocá-los para o campo de imanência que é a educação. Quatro sãoos deslocamentos operados: pensar a Filosofia da Educação naperspectiva da filosofia posta por Deleuze e Guattari; pensar umaeducação menor com base no conceito de “literatura menor”; aplicar

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293Deslocamentos deleuzeanos para a educação

o conceito de rizoma para pensar questões do currículo e da organizaçãoeducacional; discutir as decorrências e implicações das “sociedadesde controle” para os problemas educacionais contemporâneos.

No quarto e último capítulo, estão listadas as obras sobre aprodução e o pensamento de Deleuze e relacionados os sites que podemser consultados pelos que o estudam.

O livro de Gallo conduz o leitor por um verdadeiro labirinto,que é o pensamento deleuzeano. No entanto, diferentemente da lendaateniense em que, para conseguir sair do labirinto, Teseu contou com aajuda fundamental do fio de lã oferecido por Ariadne para não se perder,matar o minotauro e escapar com vida, a obra aqui resenhada é o própriofio condutor que nos leva à saída do labirinto, saída que nos desaloja denossas falsas certezas.

Considerando-se especificamente o campo da educação, em quea obra de Deleuze não é tão conhecida e estudada, a leitura do livropropicia grandes reflexões e traz instigantes contribuições,principalmente para quem, como o autor desta resenha, é estudiosodas questões curriculares. A obra nos convida para um mergulho nopensamento deste grande filósofo que muito tem a contribuir para aárea da educação.

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NORMAS PARA APRESENTAÇÃO DE TRABALHOS

A Revista Práxis Educacional é um periódico anual da Áreade Educação do Departamento de Filosofia e Ciências Humanas(DFCH), da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (Uesb). Seusobjetivos são: a) divulgar pesquisas desenvolvidas pelos grupos deinvestigação da Área de Educação da Uesb e por grupos de pesquisade outros espaços educacionais; b) fomentar a socialização e o debateda pesquisa no âmbito da práxis educacional, incentivando a produçãocientífica de professores-pesquisadores e de estudantes-pesquisadoresdos cursos de graduação e de pós-graduação.

A Revista Práxis Educacional publica dossiês temáticos,artigos, resenhas, entrevistas, relatos de experiências, resumos demonografias, dissertações e teses recém-concluídas, de acordo com asseguintes temáticas:

a) Organização do Trabalho Pedagógico (Projeto político-pedagógico; Planejamento; Currículo; Avaliação; Processoensino-aprendizagem; Tecnologias da informação e dacomunicação).b) Trabalho e Educação (Formação inicial e continuada deprofissionais da educação; Trabalho docente).c) Fundamentos da Educação (Filosofia e Educação; História,Educação e Cultura; Sociologia e Educação).d) Políticas Públicas e Educação (Políticas de EducaçãoBásica; Políticas de Educação Superior; Políticas deFinanciamento da Educação).

INSTRUÇÕES PARA PUBLICAÇÃO

• Serão publicados trabalhos inéditos, relacionados com a área deconhecimento ou especialidade definida para a revista, apresentadosconforme normas da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT).

• Serão aceitos, para análise com vistas à publicação, trabalhos deprofissionais (docentes, pesquisadores, pós-graduandos e egressos de

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cursos de pós-graduação) da Uesb e de outras Instituições de EnsinoSuperior, bem como de outros espaços educativos formais e não formais(movimentos sociais, organizações não governamentais, entre outros).

• Os trabalhos encaminhados serão objeto de apreciação de trêspareceristas, que deverão opinar pela sua publicação ou não. Os autoresserão informados, por e-mail, da aceitação ou não do trabalho. Emcaso de aceitação, o(s) autor(es) deverá(ão) encaminhar, por e-mail,autorização para publicação na revista.

• Se necessário, os artigos poderão ser encaminhados àparecerista ad hoc, não integrante do Conselho Editorial da Revista,com titulação mínima de mestre.

• Os trabalhos deverão ser encaminhados à Comissão Executivada Revista em disquete ou CD-ROM (compatível com padrão MS Wordpara Windows), com dois arquivos: um com autoria e outro sem autoria.Os trabalhos deverão ser encaminhados ainda em 4 (quatro) cópiasimpressas, sendo 3 (três) cópias sem identificação de autoria e 1 (uma)com identificação de autoria. Além disso, as produções também deverãoser encaminhadas para o endereço eletrônico da revista:[email protected].

• Os trabalhos deverão conter abstract ou résumé, resumo, palavras-chave e referências, sendo digitados em: a) espaço – 1,5; b) fonte –Garamond 12; c) margens – 2,5; d) tamanho do papel – A4; e) notas derodapé digitadas em tamanho 10; f) referências, de acordo com normasda ABNT.

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ENDEREÇO PARA ENCAMINHAMENTO DOS TRABALHOSUNIVERSIDADE ESTADUAL DO SUDOESTE DA BAHIA

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EQUIPE TÉCNICA

Coordenação editorialJacinto Braz David Filho

CapaLuiz Evandro de Souza Ribeiro

Editoração eletrônicaAna Cristina Novais Menezes

DRT-BA 1613

Revisão de linguagem (Português)Redacta - Consultoria Educacional Ltda.

Normalização técnicaJacinto Braz David Filho

Redacta - Consultoria Educacional Ltda.

Revisão das traduçõesInglês

Diógenes Cândido de LimaFrancês

Carlos Alberto Almeida Ferraz e Araú[email protected]

egbaImpresso na Empresa Gráfica da Bahia

Na tipologia Garamond 11/15/papel offset 90g/m²Em outubro de 2006.