prÁticas pedagÓgicas de uma professora … · a sondagem das hipóteses de aquisição da leitura...

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Web-Revista SOCIODIALETO www.sociodialeto.com.br Bacharelado e Licenciatura em Letras UEMS/Campo Grande Mestrado em Letras UEMS / Campo Grande ISSN: 2178-1486 Volume 4 Número 12 maio 2014 Edição Especial Homenageado F E R N A N D O T A R A L L O Web-Revista SOCIODIALETO: Bach., Linc., Mestrado Letras UEMS/Campo Grande, v. 4, nº 12, mai. 2014 452 PRÁTICAS PEDAGÓGICAS DE UMA PROFESSORA ALFABETIZADORA E SONDAGEM DAS HIPÓTESES DE ESCRITA DE UMA CRIANÇA: CENAS SOCIAIS LETRADAS Francisco Renato Lima (FSA/UFPI) 1 [email protected] Maria Angélica Freire de Carvalho (UFPI) 2 [email protected] RESUMO: Uma alfabetização para a inserção crítica do sujeito no mundo social implica diretamente em pensar essa fase não apenas o ler e o escrever sob uma perspectiva mecânica, mas a leitura num sentido de inserção social e criticidade, o letramento. Assim, este estudo objetiva analisar os resultados de duas experiências que envolvem os processos de ensino e aprendizagem, a prática pedagógica alfabetizadora e a sondagem das hipóteses de aquisição da leitura e escrita, sob a perspectiva do letramento, como dimensão integrativa do sujeito Homem ao mundo em que vive. Os resultados da pesquisa de campo são tratados dentro de uma abordagem qualitativa, com base na revisão de literatura, num diálogo com autores como: Alves; Garcia (2000), Bakhtin (1992), Bolzan (2007), Colello (2010), Ferreiro; Teberosky (1999/2010), Gumperz (2008) Soares (1998) Vygotsky (2000), entre outros, caros ao enriquecimento da pesquisa. Dos dados analisados às leituras dos teóricos, aponta-se que, nas duas experiências, se evidencia uma preocupação com uma aprendizagem significativa, o que empreende uma ênfase em estratégicas de alfabetização e letramento. As atividades foram pensadas e realizadas, também, com o propósito de perceber como acontecem as articulações entre ambiente formal (escola) e informal (família) no favorecimento da aprendizagem. Portanto, as cenas de letramento analisadas, coadunam-se na medida que se compreende o comprometimento com a importância da formação alfabetizada e letrada, pela capacidade do indivíduo em interagir de forma crítica com diferentes formas de linguagens. PALAVRAS CHAVE: Práticas pedagógicas; Alfabetização e Letramento; Sondagem; Fases da Escrita; Criança. ABSTRACT: A critical literacy for inclusion of the subject in the social world directly implies thinking this phase not only read and write from a mechanical perspective, but reading a sense of social inclusion and criticality, literacy. Thus , this study aims to analyze the results of two experiments involving the processes of teaching and learning, literacy and pedagogical practice of probing hypotheses acquisition of reading and writing from the perspective of literacy as integrative dimension of human subject in the world living . The results of the field research are treated within a qualitative approach, based on the literature review , a dialogue with authors such as: Alves; Garcia (2000), Bakhtin (1992), Bolzan (2007), Colello (2010), Ferreiro; Teberosky (1999/2010), Gumperz (2008) Soares (1998) Vygotsky (2000), among others , the expensive enrichment research . The analyzed data to the theoretical readings, it is pointed out that in both experiments, evidenced a concern about a significant learning, which undertakes a strategic emphasis on literacy and literacy. The activities were designed and also performed in order to 1 Pedagogo (FSA). Especializando em Docência do Ensino Superior, pela Faculdade Santo Agostinho (FSA). Mestrando em Letras Estudos da Linguagem (UFPI). Com experiência docente na rede pública e privada de ensino básico e superior. 2 Professora Adjunta do Departamento de Letras e do Mestrado em Letras - Estudos da Linguagem da Universidade Federal do Piauí (UFPI). Mestra em Educação pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (1998). Doutora em Linguística pela Universidade Estadual de Campinas (2005).

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Web-Revista SOCIODIALETO • www.sociodialeto.com.br Bacharelado e Licenciatura em Letras • UEMS/Campo Grande M e s t r a d o e m L e t r a s • U E M S / C a m p o G r a n d e I SSN : 217 8 -148 6 • Vo l u m e 4 • N úm er o 12 • m a i o 201 4

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PRÁTICAS PEDAGÓGICAS DE UMA PROFESSORA

ALFABETIZADORA E SONDAGEM DAS HIPÓTESES DE

ESCRITA DE UMA CRIANÇA: CENAS SOCIAIS LETRADAS

Francisco Renato Lima (FSA/UFPI) 1

[email protected]

Maria Angélica Freire de Carvalho (UFPI) 2

[email protected]

RESUMO: Uma alfabetização para a inserção crítica do sujeito no mundo social implica diretamente em

pensar essa fase não apenas o ler e o escrever sob uma perspectiva mecânica, mas a leitura num sentido

de inserção social e criticidade, o letramento. Assim, este estudo objetiva analisar os resultados de duas

experiências que envolvem os processos de ensino e aprendizagem, a prática pedagógica alfabetizadora e

a sondagem das hipóteses de aquisição da leitura e escrita, sob a perspectiva do letramento, como

dimensão integrativa do sujeito Homem ao mundo em que vive. Os resultados da pesquisa de campo são

tratados dentro de uma abordagem qualitativa, com base na revisão de literatura, num diálogo com

autores como: Alves; Garcia (2000), Bakhtin (1992), Bolzan (2007), Colello (2010), Ferreiro; Teberosky

(1999/2010), Gumperz (2008) Soares (1998) Vygotsky (2000), entre outros, caros ao enriquecimento da

pesquisa. Dos dados analisados às leituras dos teóricos, aponta-se que, nas duas experiências, se evidencia

uma preocupação com uma aprendizagem significativa, o que empreende uma ênfase em estratégicas de

alfabetização e letramento. As atividades foram pensadas e realizadas, também, com o propósito de

perceber como acontecem as articulações entre ambiente formal (escola) e informal (família) no

favorecimento da aprendizagem. Portanto, as cenas de letramento analisadas, coadunam-se na medida que

se compreende o comprometimento com a importância da formação alfabetizada e letrada, pela

capacidade do indivíduo em interagir de forma crítica com diferentes formas de linguagens.

PALAVRAS CHAVE: Práticas pedagógicas; Alfabetização e Letramento; Sondagem; Fases da Escrita;

Criança.

ABSTRACT: A critical literacy for inclusion of the subject in the social world directly implies thinking

this phase not only read and write from a mechanical perspective, but reading a sense of social inclusion

and criticality, literacy. Thus , this study aims to analyze the results of two experiments involving the

processes of teaching and learning, literacy and pedagogical practice of probing hypotheses acquisition of

reading and writing from the perspective of literacy as integrative dimension of human subject in the

world living . The results of the field research are treated within a qualitative approach, based on the

literature review , a dialogue with authors such as: Alves; Garcia (2000), Bakhtin (1992), Bolzan (2007),

Colello (2010), Ferreiro; Teberosky (1999/2010), Gumperz (2008) Soares (1998) Vygotsky (2000),

among others , the expensive enrichment research . The analyzed data to the theoretical readings, it is

pointed out that in both experiments, evidenced a concern about a significant learning, which undertakes a

strategic emphasis on literacy and literacy. The activities were designed and also performed in order to

1 Pedagogo (FSA). Especializando em Docência do Ensino Superior, pela Faculdade Santo Agostinho

(FSA). Mestrando em Letras – Estudos da Linguagem (UFPI). Com experiência docente na rede pública e

privada de ensino básico e superior. 2 Professora Adjunta do Departamento de Letras e do Mestrado em Letras - Estudos da Linguagem da

Universidade Federal do Piauí (UFPI). Mestra em Educação pela Universidade do Estado do Rio de

Janeiro (1998). Doutora em Linguística pela Universidade Estadual de Campinas (2005).

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understand how the joints occur between formal setting (school) and informal (family) in fostering

learning. Therefore, the scenes of literacy analyzed are consistent insofar as one understands the

importance of commitment to the literate and literate training, the individual's ability to interact critically

with different forms of languages.

KEYWORDS: Pedagogical Practices; Schooling and Literacy; Poll; Stages of Writing; Child.

1 INTRODUÇÃO

“Na verdade, a transformação do mundo a que o sonho aspira é um ato

político e seria uma ingenuidade não reconhecer que os sonhos têm seus

contra-sonhos”.

(Paulo Freire)

A aquisição dos processos de leitura e escrita sob uma perspectiva do letramento

requer o desenvolvimento de práticas pedagógicas que garantam a aprendizagem

significativa destas habilidades, como pressuposto básico para a inserção crítica e

participativa do sujeito na sociedade, conforme alude Paulo Freire, na epígrafe deste

texto, ao apontar para a transformação do mundo como um ato político e, que enfrenta

muitos entraves neste empreendimento.

Duas experiências que se afinam pelo caráter formativo e multifacetado nas

condições de aprendizagem constituem o lócus deste estudo: a prática pedagógica de

uma professora alfabetizadora em uma turma de primeiro ano do ensino fundamental e

uma experiência de sondagem das hipóteses de escrita de uma criança de seis anos de

idade em fase de aquisição da escrita – cenas que se cruzam e se organizam sob a

perspectiva letrada.

Das práticas institucionalizadas (a prática pedagógica da professora em sala de

aula) às experiências livres e espontâneas (sondagem com uma criança em ambiente

familiar), a questão do letramento é tratada como condição necessária no processo de

construção do conhecimento. Sob o crivo de uma pedagogia sociointeracionista, em

espaço escolar e não escolar, os ambientes de letramento são construídos por meio de

procedimentos que valorizem a interconexão tempo x espaço na aprendizagem humana.

Este estudo tem por objetivo analisar os resultados de duas experiências

envolvendo processo de ensino e aprendizagem, prática pedagógica alfabetizadora e

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sondagem das hipóteses de aquisição da leitura e escrita, sob a perspectiva do

letramento como dimensão integrativa do sujeito Homem ao mundo em que vive. A

fundamentação teórica constitui-se do diálogo com autores como: Alves; Garcia (2000),

Bakhtin (1992), Bolzan (2007), Castanheira et al (2009), Colello (2010), Ferreiro;

Teberosky (/1999/2010), Gumperz (2008) Soares (1998) Vygotsky (2000), entre outros,

caros ao enriquecimento da pesquisa.

Trata-se de um estudo qualitativo, em que se organizam bibliograficamente os

dados de experiências de campo, colocando em discussão a dialética relação teoria-

prática. Esta organização qualitativa dos dados parte de “[...] uma relação dinâmica,

particular, contextual e temporal entre o investigador e o objeto de estudo. Por isso,

carece de uma interpretação dos fenômenos à luz do contexto, do tempo dos fatos”

(MICHEL, 2009, p. 36), que se sucederam em espaços construídos historicamente

(escola e ambiente familiar), verificáveis por meio da pesquisa de campo, em que “o

pesquisador inicia o trabalho com um conjunto geral de problemas em mente e também

com uma estrutura teórica” (CALEFFE; MOREIRA, 2006, p. 63); adquirida através de

pesquisa bibliográfica, em face de “[...] que toda pesquisa em algum momento, seja

bibliográfica, posto que carece se fundamentar em algo preexistente, do qual haja

registro” (ROCHA, 2002, p. 82), pois que, “somente nesse ponto de contato [dados de

campo e dados teóricos] é que surge a luz que aclara, fazendo-o participar de um

diálogo” (PIMENTA; SEVERINO, 2008, p. 161), ou seja, o conhecimento partilhado.

Os dados da professora foram coletados através de entrevista semi-estruturada,

ocorrida no primeiro semestre de 2013. Na transcrição de suas falas, utiliza-se dos

fundamentos da Teoria da Análise do Discurso (AD), proposta por Charaudeau;

Maingueneau (2004); à luz da compreensão do conceito bakhtiniano de alteridade,

respeitando o olhar do pesquisado e do pesquisador, sem confundi-los, pois,

[...] entre o discurso do sujeito a ser analisado e conhecido e o discurso do

pesquisador que pretende analisar e conhecer, uma vasta gama de

significados conflituais e mesmo paradoxais vai emergir. Assumir esse

caráter conflitual e problemático da pesquisa em Ciências Humanas implica

renunciar a toda ilusão de transparência: tanto do discurso do outro quanto do

seu próprio discurso. (AMORIM, 2003, p. 12).

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Sobre a experiência vivenciada com a criança, utiliza-se dos procedimentos

estratégicos da abordagem estudo de caso interpretativo (MYERS, 2000), em que o

pesquisador interpreta os dados, de acordo com os objetivos científicos pretendidos,

buscando compreender o evento em estudo e a partir dele, desenvolver teorias mais

genéricas. Neste caso, do processo de aquisição de leitura e escrita por uma criança de

seis anos de idade.

As ideias apresentadas neste estudo delineiam-se pelo seguinte caminho textual:

contextualiza-se o estudo apresentando a importância da prática pedagógica

alfabetizadora, por meio da organização de tempos e espaços favoráveis a uma

aprendizagem letrada e da sondagem das hipóteses de aquisição da escrita em criança

em fase alfabética; em seguida, apresentam-se os resultados coletados na prática,

possibilitando uma imagem contínua entre a teoria da educação e como elas se efetivam

na prática, por meio da prática pedagógica de uma professora e da realização de uma

sondagem com uma criança; e conclui-se apontando para a importância do letramento

na vida do individuo, e por isso deve ser promovido de todas as formas e em diferentes

instâncias de aprendizagem significativa.

2 PRÁTICA PEDAGÓGICA E ALFABETIZAÇÃO: ESPAÇOS E TEMPOS DE

APRENDIZAGEM LETRADA

As mudanças, decorrentes das transformações sociais do mundo contemporâneo,

têm refletido diretamente nas formas de produção do conhecimento. Atender as

demandas sociais e tecnológicas desse movimento tem sido uma ruptura nos moldes da

escola; principalmente, naquilo que se refere à construção de práticas pedagógicas

eficazes, na promoção de uma aprendizagem significativa na fase da alfabetização, na

qual a criança está em processo de aquisição da leitura e escrita, o que requer tempos e

espaços adequados ao desenvolvimento das habilidades específicas desse ciclo.

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Uma alfabetização para a inserção crítica do sujeito no mundo social implica

diretamente em pensar essa fase não apenas sob uma perspectiva mecânica do ler e

escrever, mas num sentido social, em via de que se constitui de um “conjunto de

prescrições sobre o uso do conhecimento” (GUMPERZ, 2008, p. 13), o que na prática,

significa o letramento da criança, para que ela possa exercer dessa condição de

alfabetizado letrado, no sentido de apropriação, uso e práticas cidadãs, por meio da

leitura e escrita.

A condição de sujeito alfabetizado e letrado se efetiva por meio de práticas

pedagógicas que levem a criança a apropriar-se do sistema alfabético e ortográfico da

língua materna, ao tempo em que alcança plenas condições de usos em diferentes

contextos. O trabalho pedagógico deve ser estreitado diariamente, com o objetivo de

promover um diálogo entre o mundo abstrato da leitura e o mundo real do indivíduo em

processo de aprendizagem das letras. Soares (1998, p. 47) recomenda: “o ideal seria

alfabetizar letrando, ou seja: ensinar a ler e escrever no contexto das práticas sociais de

leitura e escrita, de modo que o individuo se tornasse, ao mesmo tempo, alfabetizado e

letrado”.

Esse empreendimento está intimamente ligado às práticas pedagógicas

desenvolvidas pelo professor em sala de aula. Desse fato, decorre a necessidade de

alternativas pedagógicas que privilegiem o diálogo e a criticidade. Isso implica que

“conduzir o trabalho de alfabetização na perspectiva do letramento, mais do que uma

decisão individual é uma opção política [...]” (CASTANHEIRA et al, 2009, p. 31) por

parte do professor alfabetizador, que deve ter “o conhecimento e o domínio do que vai

ensinar” ( p. 16), a partir de escolhas político-pedagógico, considerando a dialética

relação tempos x espaços de aprendizagem.

A prática pedagógica alfabetizadora intencional “procura atingir determinados

fins, [...] apoia-se em conhecimentos sobre como funciona a realidade da sala de aula,

nos conteúdos a serem ensinados, e no perfil dos alunos que são objeto desse ensino”

(CASTANHEIRA et al, 2009, p. 36), de forma sistêmica, considerando a relevância de

uma sequência pedagógica que privilegie “uma continuidade entre uma aula e outra; a

previsão do ensino dos conhecimentos complexos para o aluno depois daqueles menos

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complexos; e a seleção de atividades adequadas aos conhecimentos que serão

ensinados” (p. 37). A este respeito, Colello (2010, p. 123) reflete:

Se abrirmos mão da compreensão da escrita como pura tecnologia associada

a um código, se considerarmos a aprendizagem da língua na sua dimensão

social, se entendermos a alfabetização como processo educativo para a

inserção dos alunos e alunas no universo letrado, se concebermos a

aprendizagem da leitura e da escrita como processos que fazem sentido no

antes e depois do período escolar, se aceitarmos o desafio de fazer da escola

um ambiente alfabetizador, somos obrigados a admitir a necessidade de

transformar o ensino e buscar novas bases para a prática pedagógica.

As práticas pedagógicas com foco em uma alfabetização e letramento devem

considerar muitos fatores, dentre eles: a relação de proximidade e articulação entre estes

dois processos; as funções e manifestações da língua em diferentes contextos sociais; a

construção da identidade humana por meio da inserção no mundo letrado. Destarte, ser

letrado vai além de ser alfabetizado, mas exige a capacidade de encontrar sentido

naquilo que lê e escreve, e produzir a partir disso, novos textos escritos de forma

intencional e crítica, construindo assim, a competência comunicativa.

3 A CRIANÇA EM FASE DE APRENDIZAGEM ALFABÉTICA: SONDAGEM

DAS HIPÓTESES DE AQUISIÇÃO DA LEITURA E ESCRITA

Ler e escrever com proficiência representa a grande arma de poder ideológico e

social da atualidade. “Saber ler e escrever tornou-se instrumento privilegiado de

aquisição de saber/esclarecimento e imperativo da modernização e desenvolvimento

social” (MORTATTI, 2006, p. 02), por isso, as preocupações com a criança em fase de

aquisição da leitura e da escrita ocupam lugar central na educação, tanto no campo

teórico-epistemológico, como principalmente, nas práticas de ensino e aprendizagem

das primeiras letras.

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O desenvolvimento e aquisição da linguagem (escrita ou falada) da criança é

determinado pelo contexto social que o impulsiona: primeiro na família e depois na

escola. Neste sentido Vygotsky (2000) aponta que os pseudoconceitos criados pela

criança, assim como a pronúncia de uma palavra pela primeira vez, determinam-se pelos

significados predeterminados pelo ambiente em que vive e por aqueles que a cercam,

então “[...] terá como base o significado dessa palavra fornecido pelo adulto, porém o

adulto não pode ensinar a criança a pensar como ele sobre aquela palavra, então, a

criança para compreender e fazer uso dessa palavra forma o seu próprio pensamento”

(p. 86). Este adulto é representado primordialmente por duas figuras: os pais e o

professor. Daí a importância, inclusive, de uma relação harmônica entre eles durante o

processo de aquisição da leitura e escrita.

Situada a questão da aquisição da linguagem, aponta-se para a importância da

sondagem das hipóteses da escrita da criança neste processo. As investigações sobre a

psicogênese da língua escrita apoiam-se nos princípios da epistemologia genética de

aprendizagem propostos por Piaget (1896-1980) e desenvolvidos por Emília Ferreiro e

Ana Teberosky na década de 80, que trouxe uma nova concepção de alfabetização para

o meio educativo, conhecida como Construtivismo, possibilitando ao professor atuar

como um mediador eficaz no processo de ensino e aprendizagem.

As teorias de Ferreiro e Teberosky (1999) enfatizam que é preciso considerar as

diferentes possibilidades que circundam o sujeito que aprende. A ação do educador deve

voltar-se para “como se aprende a ler e escrever”, e não apenas os modos de “como se

ensina”. A criança, a partir dos primeiros contatos com a escrita, constrói e reconstrói

hipóteses sobre a natureza e funcionamento da língua e passam por diferentes hipóteses

– espontâneas e provisórias, até elaborar conhecimentos sobre a leitura e escrita e se

apropriar de toda a complexidade da língua escrita. Tais hipóteses são baseadas em

conhecimentos prévios, assimilações e generalizações, dependem das interações com

seus pares e com os materiais escritos que circulam socialmente.

A sondagem funciona como um instrumento de análise das hipóteses da escrita

da criança. Emília Ferreiro (2010) classifica essas hipóteses em: pré-silábica (a criança

ainda não risca o papel com a intenção de realizar o registro sonoro do que foi proposto

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para a escrita); silábica (com e sem valor sonoro) (a criança começa a estabelecer uma

relação entre som e grafia no registro escrito); silábico-alfabética (a criança reconhece o

som das letras, compreendendo que a escrita representa os sons da fala); e alfabética

(vencidas todas as etapas anteriores, a criança analisa a sonoridade dos fonemas que

escreve).

A utilização da sondagem ainda insere-se como instrumento de avaliação

diagnóstica do nível de aprendizagem da criança. Constitui-se de uma série de passos,

que devem ser conhecidos e respeitados por quem vai realizá-la. As principais

orientações é que deve ser feita individualmente, sem a interferência de alguém

apontando “certo” ou “errado”, em local que a criança sinta-se a vontade e utilizando

palavras novas que represente um desafio possível de ser alcançado. A atividade deve

acontecer em etapas, repetidas quinzenalmente, percebendo assim, a evolução da

criança. Deve ser realizada por um profissional capacitado, de preferência o professor

ou pedagogo que lida diretamente com a criança, e que tenha uma noção clara sobre a

língua escrita, esta entendida como sistema de representação organizado e que por isso,

necessita de um olhar cuidadoso e particular, estabelecendo uma relação direta com o

objeto conhecível. As pistas obtidas no processo de sondagem possibilitam ao professor

conhecer as hipóteses de escrita elaboradas pelas crianças e a lógica como ela organiza

o pensamento e a escrita. Dessa forma, ele pode planejar suas atividades para fazer esse

quadro avançar, ter resultados qualitativos e promover uma aprendizagem significativa.

A sondagem funciona como elemento sinalizador de níveis de aprendizagem da

linguagem escrita infantil. É “um momento de construção de estruturas na qual o

indivíduo busca encaixar novas informações, formulando hipóteses, buscando

regularidades, colocando à prova antecipações” (BOLZAN, 2007, p. 22), e que,

portanto, carece de uma organização prévia sobre sua importância para a aprendizagem.

De sua realização exitosa, há resultados positivos para todos os envolvidos diretamente

no processo: o professor, que reavalia suas práticas a partir do estado identificado; a

criança e toda a família, consequentemente, em virtude de que a aprendizagem

significativa da criança representa um equilíbrio nas estruturas psicológicas e

organizacionais da família.

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4 À GUISA DAS ANÁLISES DE CAMPO

Em face da exposição teórica e contextualizada das questões que norteiam este

estudo, conjugando os objetivos propostos, aponta-se a seguir, apenas os resultados

obtidos (entrevista com falas da professora e registros da escrita obtida na sondagem

com a criança), aos que o pesquisador participou apenas como mediador das atividades:

entrevistando a professora e observando sua prática pedagógica em sala de aula, e

aplicando a atividade de sondagem com a criança; sem influenciar ou interferir nos

resultados pretendidos, permitindo assim, relatos e escritas, respectivamente,

espontâneos e criativos; conforme reflete Weffort (1996, p. 14), ao intervir nesta

conversa:

Observar uma situação pedagógica é olhá-la, fitá-la, mirá-la, admirá-la, para

ser iluminada por ela. Observar uma situação pedagógica não é vigiá-la, mas

sim, fazer vigília por ela, isto é, estar e permanecer acordado por ela, na

cumplicidade da construção do projeto, na cumplicidade pedagógica.

4.1 Prática pedagógica alfabetizadora: os depoimentos da professora

A professora X ministra aula em uma turma de crianças de seis anos de idade,

em fase de alfabetização, no primeiro ano do ensino fundamental, considerada uma das

primeiras etapas da Educação Básica, compreendida dentro do ciclo de atividades do

novo formato do ensino fundamental de nove anos (Lei nº 11. 274/2006), o que requer

novas estratégias e procedimentos pedagógicos que proporcione uma formação integral

e integrada, pelo e para o letramento e a cidadania do indivíduo.

As atividades analisadas neste estudo são: uma entrevista (as quais, perguntas e

respostas serão transcritas) com a professora, verificando as concepções que embasam

sua prática; e em seguida, sua prática de sala de aula, em que a ela desenvolve uma

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atividade, que possa ser identificada como “Prática de Letramento” (“trata-se de

atividades que envolvem a língua escrita com a finalidade de se alcançar um

determinado objetivo numa determinada situação” (MARTINS, 2009, p. 79)). Desta

forma, analisou-se teoria (o que a professora sabe) e prática (o que ela faz) na relação de

ensino e aprendizagem, pois “na sala de aula a teoria se atualiza, algumas vezes sendo

confirmada, outras vezes não dando conta do que acontece e provocando a busca e

criação de novas explicações teóricas e de novas soluções para o que acontece entre

sujeitos empenhados em ensinar e aprender” (ALVES; GARCIA, 2000, p. 11).

Assim, as falas do pesquisador e da pesquisada (professora X) são apresentadas:

1. Qual a concepção que você tem Letramento, ao trabalhá-lo em sala de

aula?

O letramento é uma atividade que vai além de decifrar códigos. Letramento

não é só simplesmente saber ler e escrever, mas é aplicar esse decifrar

códigos na sua vivência diária, em suas práticas; então é quando a criança

torna aquilo significativo pra vida dele; aplica aquilo na sua convivência e

com significado.

2. De acordo com esta concepção, como você trabalha com essa categoria

na sua aula, visando à melhoria no rendimento da aprendizagem dos

alunos?

Procuro trabalhar o letramento em todas as atividades, independente da

disciplina, de forma que a criança participe. Geralmente em todas as

disciplinas: português, matemática, ciências; sempre através de leituras

interdisciplinaridades, utilizo textos do assunto abordado, independente da

disciplina, de forma que a criança participe. Coloco-os pra lerem, quando a

gente tá resolvendo as questões, simplesmente não dou a resposta, mas peço

pra eles lerem e explicar porque estão dizendo aquilo, então é uma forma de

associar os conteúdos que eles estão estudando, com outras atividades de

letramento.

3. Diante dessa sua prática, como você percebe que isso interfere na vida

dos alunos? Os resultados que você vê: os positivos, os negativos? São

muitos ou poucos?

São muitos os resultados, por exemplo, no começo do ano, quando eu recebi

a turma, média de 50% não tinha uma leitura fluente, digamos assim, e

quando chegamos ao meio do ano, já percebi a diferença na melhoria na

leitura, por conta dessas atividades que são feitas: leituras de paradidáticos;

as tarefas, em que eles sempre leem as respostas que dão, então acredito

muito nessas atividades. Não só aquela atividade mecânica, mas aquela

atividade em que a criança é levada a fazer com gosto, isso tem uma

influência muito grande. Sempre falo pra eles não lerem o livro somente

quando vierem pra escola. Que leiam em casa, procurem revistinhas,

jornais; na rua procurem ler o que está escrito pra que tenham informações

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e saibam dar opiniões sobre diversos assuntos; então isso tem um papel

muito positivo; e a leitura, independente da circunstância é um crescimento

pra qualquer ser humano.

A forma como as questões foram organizadas permitiu que a professora

construísse um diálogo em que explicitou sua concepção teórica sobre o letramento;

como o promove em sala de aula, através de atividades contextualizadas de leitura,

preparando as crianças para a vida e a inserção no mundo, por meio do letramento

crítico e social.

Sobre a prática pedagógica de sala de aula, a professora organizou as crianças

em circulo e propõe a leitura discursiva de um texto do livro didático. Na forma como

os organizou houve a intencionalidade de ter uma visão de todos, percebendo suas

reações e seus comportamentos diante das emoções advindas da leitura do texto. A

professora lê o texto: “O jardim encantado”; de Alessandra Pontes Roscoe, solicita a

participação direta das crianças, nomeia cada uma delas com o nome de uma flor, e

desta forma, todas participam encenando as características daquela flor com gestos e

atitudes, interpretando o enredo da história para toda a turma. Por meio da atividade a

professora promoveu uma discussão a respeito dos principais valores tratados no texto,

possibilitando que as crianças interagissem umas com as outras, despertassem o

sentimento de coletividade e participação social. Além de que, aprenderam os nomes de

flores e as características similares aos seres humanos, possibilitando uma interligação

entre homem e natureza, dessa forma houve uma prática interdisciplinar entre saberes

transversais de português e ensino de ciências, por meio da leitura participativa.

A partir da fala da professora e da atividade de leitura contextualizada realizada

em sala de aula, identifica-se uma prática de letramento. Percebe-se que ela conjuga

teoria e prática de forma articuladas, por meio de atividades interdisciplinares, que

levam as crianças a perceberem a função e aplicabilidade da leitura em suas vidas.

Umas das possibilidades mais caras a essa aprendizagem, é que o professor tenha um

entendimento claro da importância de alfabetizar letrando, promovendo o ensino das

letras e ao mesmo tempo desafiando os alunos a se relacionarem com elas, de forma

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crítica e prazerosa; e isso se evidenciou na coerência entre sua fala e o seu fazer em sala

de aula.

4.2 Sondagem das hipóteses de escrita de criança: um estudo de caso

As atividades em que se investiga a psicogênese da língua escrita permitem

identificar como se constrói o processo de construção e funcionamento das regras da

língua escrita na mente da criança. Neste caso de estudo e investigação, estuda-se o caso

da criança Y, de seis anos de idade, que está em processo de alfabetização, no primeiro

ano do ensino fundamental.

A seguir apresentam-se as palavras propostas para que a criança escrevesse,

seguida das análises critico reflexivas e explicativas; a partir da hipótese de escrita

evidenciada, apontando para as principais dificuldades enfrentadas e as possíveis

estratégias que poderiam ajudá-la a avançar da fase em que está.

Ditado:

APAGADOR

BORRACHA

CANETA

LIVRO

LÁPIS

GIZ

Escrita:

AIA

DVA

VELA

UVAI

OBROA

XYAOB

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Veja como ela escreve a frase a seguir:

MEU LÁPIS É PEQUENO AMYLA.

A criança se mostrou bastante interessada na realização da tarefa, mas apresenta

grande insegurança na hora de escrever. Tanto nas palavras como na frase, ela não

associa quantidade de letras e sílabas, apresenta confusão na relação sonora e gráfica

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das palavras, utiliza letras aleatórias e sem uma quantidade definida na construção das

palavras com mais de uma sílaba, como se fossem todas monossilábicas, o que é uma

característica da fase em que está, ou seja, silábico sem valor sonoro.

Em algumas palavras, como por exemplo: CANETA (VELA) e LIVRO (UVAI),

ela até utiliza algumas vogais que correspondem ao som. Ao escrever GIZ (XYAOB)

utiliza o Y no lugar de I, já que ambos têm o mesmo som e é uma letra que está presente

em seu nome (SAMYLLA); mas mesmo assim, confunde o som de G com o som de X,

o que é esperado nessa fase do processo de aquisição da linguagem escrita3, ao

estabelecer relação som e grafia das palavras, não associa quantidade de letras e sílabas

e não há muita semelhança gráfica entre a palavra correta e o que ela escreveu. Ao

escrever BORRACHA (DVA) e LÁPIS (OBROA), além da presença da letra A, não há

nada de semelhante na escrita. Na escrita da frase, não revela nenhuma relação fonemas

e grafemas, nem mesmo sabe que são necessárias mais de uma palavra para escrevê-la.

A criança embora não apresente algo semelhante ao verbal, apresenta grafemas,

ou seja, ela elabora um raciocínio e elege propriedades na escrita, dentro do contexto

sociocultural em que se situa. A omissão ou acréscimo de letras, as alterações

ortográficas decorrentes da experiência oral, as confusões entre a sonoridade de algumas

palavras ou letras parecidas, aludem para uma imprecisão quantitativa entre fonemas e

grafemas que compõem a palavra. Ela considera a existência de uma transição fonética,

ou seja, o modo de falar determina fielmente o modo de escrever.

A escrita de Y permite identificar, portanto, que a criança está na fase de

transição entre silábico sem valor sonoro para silábico com valor sonoro, pois embora

em alguns casos, ela escreva cada sílaba com uma única letra qualquer, sem estabelecer

uma relação entre fonemas e grafemas; em outros não, já se percebe uma sutil relação

entre fonemas e grafemas, como por exemplo, ao escrever: CANETA (VELA) e LIVRO

(UVAI); e geralmente, utiliza letras presentes em seu próprio nome. Ao ser solicitada

3 Essa dificuldade apresentada pela criança em fase de aquisição da escrita é algo esperado pelo sistema

linguístico, dada à sonoridade. Dificilmente, ela não fará essa troca do oral para o escrito. Do ponto de

vista fonético, é previsível essa mesclagem entre o oral e o escrito. “A confusão entre um e outro

elemento da oposição ocorre, porque o aluno não distingue nitidamente o que ouve. Não se trata, pois, de

um problema articulatório, mas de acuidade auditiva” (SCHIFINO e BRENNER, 1981, p. 31).

Complementa: “O aluno deve perceber e constatar as propriedades combinatórias dos fonemas,

estendendo a silabação às sequências fonéticas, sem limitá-la à palavra” (p. 11).

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que escrevesse o próprio nome, a criança apresentou o mesmo nível de compreensão das

demais palavras do ditado, escreve-o trocando as letras e misturando maiúsculas e

minúsculas.

Segundo informações colhidas com a mãe de Y, que acompanha o

desenvolvimento escolar da filha, descobre-se que sua professora utiliza sempre o

mesmo tipo de atividade, que não trabalha atividades de diferenciação das letras

maiúsculas das minúsculas, e que, portanto, ela só reconhece alguma palavra se estiver

escrita em letra bastão, do contrário, ela diz que aquela palavra está errada ou nem

existe; sendo que no primeiro ano do ensino fundamental, a criança já deve escrever e

reconhecer a letra cursiva.

Embora não seja objetivo de uma sondagem, levar a criança a escrever palavras

olhando para outras, os pesquisadores optaram por fazer este teste, como uma forma de

enriquecer o estudo, ao permitir uma comparação de como está sua escrita pelo ditado e

como ela escreve as palavras que vê, como por exemplo, as palavras escritas pela

professora no quadro acrílico da escola.

Veja como ela reescreve as palavras a seguir, escritas em um cartaz para que

copiasse:

STEPHANY

MILK

BARBIE

JULIANA 2º Mª

ASTÓRIA

MEU AMIGUINHO

STEPHANY

MIUK

BARERIE

JULIANOSIMA

RIIIBR6

MEU AMIGUINHO

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Percebe-se que mesmo copiando de outras fontes, Y ainda apresenta desníveis

na organização das letras, mas ressalta-se que isto não pode ser considerado como parte

da sondagem, em virtude de que a criança não foi desafiada a escrever, mas apenas a

reproduzir, o que não deixa se ser um aspecto a ser considerado na análise. Algumas das

palavras utilizadas fazem parte de seu universo de leitura e de conhecimento, como por

exemplo, BARBIE, em que escreve BARERIE, ou seja, há uma aproximação entre

fonema e grafema, posto que é uma palavra que faz parte de seu vocabulário, é o nome

de uma boneca com a qual brinca cotidianamente.

Portanto, para que a criança possa avançar para a fase seguinte: silábico com

valor sonoro; é necessário que seja estimulada pela escola e pela família para o

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desenvolvimento de atividades que trabalhem objetos de sua realidade, construindo

assim, uma relação teoria e prática. A este respeito, Ferreiro; Teberosky (1999, p. 4)

afirmam:

A simples presença do objeto não garante conhecimento, mas a ausência do

objeto garante o desconhecimento. Se eu quero que a criança comece a

construir conhecimento sobre a língua escrita, esta tem de existir. Se eu a

proíbo, garanto que a criança não possa se fazer perguntas sobre esse objeto

porque eu o fiz desaparecer dentro da sala de aula.

Ou seja, se o professor não leva os objetos do dia-a-dia para o espaço da sala de

aula, fica mais difícil à apropriação da leitura e da escrita, pois a criança ainda não

consegue aliar a teoria/o abstrato (apenas o nome do objeto) ao prático/real (os objetos).

Outras possibilidades de avanço na escrita da criança é fazer um trabalho de base

alfabética, mostrando a ela os diferentes lugares em que a escrita se encontra (jornais,

revistas, televisão etc), fazendo com que ela perceba a escrita em sua vida (o

letramento); estimulá-la através de tarefas variadas, como o desenho, em que ao final,

escreva o nome para identificar seu trabalho; e principalmente, explorar o universo de

leitura (próprio) da criança, com palavras que fazem parte do seu vocabulário e o modo

como ela às pronuncia dentro do contexto de convivência social.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

As situações evidenciadas neste estudo trazem em comum, a perspectiva de uma

alfabetização letrada. Ao desenvolver uma prática pedagógica interdisciplinar e

contextualizada em sala de aula, a professora revela seu compromisso com uma

formação letrada dos alunos, pela forma como expõe os conteúdos e situa-os na vida

dos alunos. A atividade de sondagem com uma criança em processo de alfabetização

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revela um comprometimento didático em perceber em que nível de aprendizagem da

escrita a criança está, e partir de então, promovê-la.

Promover uma alfabetização para o letramento do indivíduo é, portanto, o

grande desafio que se apresenta nas escolas. A aprendizagem deve ser planejada e

realizada em tempos e espaços que favoreçam o desenvolvimento dessa competência. A

prática pedagógica precisa ser o lócus de um saber fazer articulado entre conteúdos

didáticos e saberes vivenciais. O professor deve alcançar formas que leve o aluno a

perceber as letras como uma representação de vida, que a partir delas, sua condição de

sujeito sócio-histórico redimensione o seu papel na sociedade, portanto, o letramento.

Desta forma, as cenas de letramento, anunciadas neste estudo, coadunam-se na

medida em que se compreende a importância da condição de alfabetizado e letrado na

vida do individuo. Não apenas o ler e escrever, pois somente isto é pouco; é preciso ir

além: compreender e interagir com o que lê e escreve, de forma que seu papel não seja

de agente passivo na sociedade, mas de ativo frente às situações de seu dia-a-dia, no seu

grupo de convivência.

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Recebido Para Publicação em 15 de abril de 2014.

Aprovado Para Publicação em 9 de maio de 2014.