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Praia Vermelha Uma noite de Bossa na UFRJ A história de certos acontecimentos, às vezes, se compõem por mais curvas que retas. Aqui temos um caso assim, no nascedouro da Bossa Nova no Rio de Janeiro, o Teatro de Arena Carvalho Netto foi o palco de dois eventos que mar- caram a virada no cenário musical dos anos de 1960. Um deles foi o festival Samba Session, pensado para acontecer em outra instituição, mas que terminou sendo realizado, em 22 de setembro de 1959, na Praia Vermelha. O foco das próximas páginas da Versus, contudo, é outro: um encontro de grandes nomes, até então pouco conhecidos, na chama- da A Noite do Amor, do Sorriso e da Flor. ELISA MONTEIRO, GABRIELLA CORDEIRO E YASMIN LIMA CRÉDITOS DA IMAGEM

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FOTOS: ARQUIVO PESSOAL

Praia Vermelha

Uma noite de Bossa na UFRJ

A história de certos acontecimentos, às vezes, se compõem por mais curvas que retas. Aqui temos um caso assim, no nascedouro da Bossa Nova no Rio de Janeiro, o Teatro de Arena Carvalho Netto foi o palco de dois eventos que mar-caram a virada no cenário musical dos anos de 1960. Um deles foi o festival Samba Session, pensado para acontecer em outra instituição, mas que terminou sendo realizado, em 22 de setembro de 1959, na Praia Vermelha. O foco das próximas páginas da Versus, contudo, é outro: um encontro de grandes nomes, até então pouco conhecidos, na chama-da A Noite do Amor, do Sorriso e da Flor.

ELISA MONTEIRO, GABRIELLA CORDEIRO E YASMIN LIMA

CRÉD

ITOS D

A IM

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Em vinte de maio de 1960, o Teatro de Arena do campus da Praia Vermelha foi palco

de um evento chave para o princi-pal movimento musical emergente da época: a Bossa Nova. O show chamado de A Noite do Amor, do Sorriso e da Flor reuniu a primeira geração de artistas do gênero no in-tuito de consolidar um lugar ao sol para o estilo na ascendente indús-tria fonográfica. O nome foi esco-lhido a dedo por seu idealizador, o compositor, produtor cultural e jor-nalista Ronaldo Bôscoli. “No amor, no sorriso, na flor é um trecho da canção, Meditação e também é o tí-

tulo desse álbum que João Gilberto lança no mesmo ano do evento”, ex-plica a historiadora Priscila Cabral Almeida.A pesquisadora dedicou o mestra-do às memórias e identidades dos bossanovistas. “Em 1962, João Gil-berto está na crista da onda e, em uma aparição no final do show, ele canta essa música no Carnegie Hall”, observa a docente da Univer-sidade Federal da Bahia (UFBA). “Várias pessoas que participaram da Noite do Amor, do Sorriso e da Flor na UFRJ depois foram para esse show, que é superconhecido na historiografia da bossa nova”.

Em sua visão, a apresentação no campus da Praia Vermelha é espe-cialmente significativo por registrar uma iniciativa de diálogo e de difu-são cultural da UFRJ décadas antes da criação do conceito de extensão universitária. “A abertura da uni-versidade, no fim dos anos 1950 e início de 1960, possibilitou a cria-ção de um circuito cultural dentro da cidade para uma juventude que não podia frequentar o bar da bo-emia. Foi quase um projeto de ex-tensão”, analisa.

“Todo mundo ali na Faculdade

abriu as portas para a gente. Aqui-

lo ficou como um clube; a gente

ia sexta-feira para lá tocar jazz e

Mídia. A Noite do Amor, do Sorriso e da Flor amplia visibilidade para

o termo "Bossa Nova" nas rádios e jornais.

FOTOS: ARQUIVO PESSOAL

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‘aí veio a ideia de fazer um show”, conta Roberto Menescal, um dos integrantes do movimento e uma das atrações da Noite. “Em uma jazz sessions, eu perguntei: por que só tocamos músicas estrangeiras? Por que a gente não faz um negó-cio chamado samba session?”. A logística, ele lembra, era sempre modesta: “A universidade não tinha som. Cada um levava as caixas que tinham em casa. A gente tocava de graça, o público também entrava de graça, era tudo gratuito”.

Uma maior leveza, segundo Menescal, conectava o estilo aos anseios da juventude da época. “O que havia antes eram letras muito pesadas para os nossos 18 anos,

‘ninguém me ama, ninguém me quer’, essas coisas”, argumenta. “Co-meçamos a mudar um pouco o es-tilo, a postura, na verdade. Na épo-ca, todo mundo andava de terno e gravata para todo o lado, mesmo para ir ao cinema. Fomos os pri-meiros a usar bermuda no Rio de Janeiro. Então, a música ficou mais leve também, sabe?”.

Na Noite do Amor, do Sorri-so e da Flor, o músico limpou o chão do palco sem a dimensão da proporção que o evento tomaria. “Estava varrendo e um cara falou: acaba logo que o trânsito tá para-do. E eu pensei: caramba, logo no dia do nosso show o troço está pa-rado. Pensei que fosse por algum acidente, mas era gente que estava vindo”, conta. “Aqueles estudantes tomaram a parte de baixo envolta da Arena e muita gente invadiu o palco que era grande. E também ocuparam os corredores de cima, então tinha gente acompanhando pelas janelas”.

Foi uma noite de muita expe-rimentação instrumental e vocal. Um jeito descontraído de ver o mundo e de pensar a música o ocu-pava espaço. Muitos interessados sentaram-se no teatro para ouvir a levada ritmada de Nara Leão, de Roberto Menescal, do Trio Iraki-tan, de Elza Soares, de Johnny Alf,

Em uma jazz sessions, eu perguntei: por que só tocamos músicas estrangeiras? Por que a gente não faz negócio chamado samba session?”

Antes da Bossa. Menescal toca jazz com colegas na Praia Vermelha em 1959

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de Claudete Soares, de Sérgio Ri-cardo, de Vinícius de Morais e do João Gilberto.

O momento ápice foi embalado pelo casal Astrude e João Gilber-to. “Quando ele entrou e cantou foi a glória. O João estourou com Chega de saudade, que era uma música assim simbólica da Bossa Nova”, recorda. A noite propiciou ainda um espaço especial para as novas intérpretes. “Foi a primeira vez que Astrude cantou em públi-co. Foi a primeira vez da Nara Leão também. A Nara era muito tímida, queria cantar de costas para o pú-blico, ficava envergonhada”, acres-centa Menescal.

A Noite do Amor, do Sorriso e da Flor, recebeu apoio do mercado fonográfico emergente. “Ronaldo Bôscoli escrevia para jornais e esta-va empenhado em atrair contratos com gravadoras para a Bossa Nova, apresentando aquele estilo musical como vendável, comerciável”, escla-rece a pesquisadora da Federal da Bahia. “A Odeon era uma impor-tante gravadora da época e tinha interesse em ampliar o nicho de vendas para a juventude”, justifica Priscila. Um de seus selos, a Elen-co, lançou boa parte dos nomes da Bossa Nova: “Eram capas muito conhecidas pela arte em alto-con-traste, bem modernas”.

Embora sambista, a jovem Elza Soares engrossou o repertório da histórica noite de bossa na UFRJ. A cantora interpretou a canção tema da Noite, Meditação, a convite de Bôscoli, João Gilberto e da Ode-on. “Eu fui muito amiga do Ronal-do Bôscoli, muito amiga do João. Eu tinha uma relação muito profunda com esse pessoal todo”, relata. “A Bos-sa Nova foi um marco muito forte na nossa história musical. Lógico, adoro, amo”.

OTIMISMO JOVEM ZONA SUL Autora da pesquisa Paisagens

Musicais da Zona Sul Carioca: me-mórias e identidades da bossa nova, Priscila Cabral Almeida reuniu de-

Mulheres. Elza Soares interpreta Meditação, canção tema da Noite.

Nara Leão se apresenta pela pri-meira vez ao público

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poimentos de nomes como Rober-to Menescal, Sergio Ricardo, Sônia Delfino, Wanda Sá, Pery Ribeiro, Ricardo Cravo Albin e Marcos Valle. E, com eles, analisou as mu-danças socioeconômicas em jogo, como a expansão urbana liderada pela Zona Sul carioca e a reconfigu-ração de hábitos e do mercado fo-nográfico. Em três palavras, “bom gosto, sofisticação e minimalismo”, resume.

Em entrevista à Versus, ela des-trincha o fenômeno a partir de duas frentes: a primeira se refere à perspectiva espacial dos territó-rios da Bossa Nova. A segunda se refere a uma juventude conecta-da com valores da modernidade. “Em 1950, você já tem Copacabana bastante povoada, diversos aparta-mentos, muitas construções imobi-liárias. E começa essa ideia de uma vida saudável, de valores associados a essa questão da praia, de esportes”, descreve.

“Não significa que não tinham outras pessoas”, adverte a historia-dora. “Algumas personagens que tinham essa estética, que partici-pavam desses grupos, e moravam em outros locais, muitas vezes, não eram inseridas nessa narrativa. No final das contas, isso é também uma construção”.

Por outro lado, a pesquisadora

admite uma “vinculação muito grande” entre a Zona Sul e o circui-to Bossa Nova de bares, universida-de, escolas de violão e encontros nas casas de amigos para tocar as novas composições. Ela registra que Sô-nia Delfino e Reginaldo Bessa – dois artistas do subúrbio da Zona Norte carioca – relataram à ela que nem sempre eram chamados para encontros e reuniões da parte rica da cidade. E que, eventualmente, se viam um pouco à margem do grupo.

O aspecto juvenil da Bossa Nova tem relação direta com o cresci-mento de uma nova classe média e de uma nova sociabilidade do pós-guerra, que incluiu a prática de instrumentos mais populares. “Es-tamos falando de uma nova estética

musical que busca uma moderni-dade não só nas letras, mas tam-bém na forma. Ela vai revalorizar o violão, um instrumento até então meio maldito”, destaca a pesquisa-dora da UFBA.

O corte social de elite da Bossa Nova é um dos principais moti-vos para críticas. “O que é a Bossa Nova? É um evento da elite, pro-duzido e promovido por uma par-cela da população de classe média e classe média alta, que tem acesso a esse espaço da Universidade”, opi-na a historiadora da UFRJ, Andréa Queiroz.

Atual diretora da Divisão de Me-mória Institucional do Sistema de Bibliotecas e Informação da uni-versidade, Andréa avalia que, para compreender a realização da Noi-

Praias da Zona Sul eram os cenários comuns para a "Bossa Nova"

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Influência popular. Elza Soares esteve entre os nomes do samba que inspiraram o movimento da nova geração musical.

te do Amor, do Sorriso e da Flor ocorrido no Teatro de Arena da Praia Vermelha é importante levar em conta que “muitas manifesta-ções culturais, artístico-culturais vão acontecer [nele] porque é um espaço não só de conhecimento, mas também de produção e de pro-moção de cultura”.

Priscila Almeida prefere usar cores menos fortes no julgamento. “A Bossa Nova conseguiu sintetizar uma cadência de samba para um instrumento harmônico que é to-cado a partir de cifras, numa apro-ximação com o que se chamava, naquela época, de cultura popular”, ameniza a pesquisadora. “Ela é ex-tremamente bem executada, isso é inegável - tanto que se internacio-naliza. É uma coisa de fato inova-dora e que merece todo o reconhe-

cimento dentro da historiografia da música”.

Ela vai além: “Se gente for pensar, Novos Baianos, a Tropicália e a pró-pria música de protesto, em alguma medida, têm um pouco da bossa nova e dessas tentativas de criar uma estética diferente”.

UMA BOSSA COM ALGO A MAIS

Nem tudo eram flores e chei-ro de mar entre a turma da Bossa Nova. Mesmo antes da ruptura de-mocrática de 1964, alguns de seus integrantes buscavam conjugar o novo som às arcaicas mazelas so-ciais do Brasil. Carlinhos Lyra, Ser-gio Ricardo e Nara Leão são alguns exemplos.

“Eles começam a questionar dis-cussões políticas e culturais, muito influenciados pelo CPC [Centro

Popular de Cultura]. Aproximar

esse universo cultural das camadas populares, trazer outros temas do cancioneiro musical”, frisa a pesqui-sadora da UFBA. Priscila destaca o papel de Nara Leão na “recupera-ção de grandes sambistas invisibili-zados, como Zé Keti e Cartola”.

Sergio Ricardo, acometido pelo Covid-19, seguido por uma insu-ficiência cardíaca, no dia 23 de ju-lho deste ano de 2020, era um dos nomes mais politizados. O artista foi um dos entrevistados da disser-tação da pesquisadora. “Ele falava muito isso, que a Bossa Nova era superficial e pueril. Apesar de ser algo muito bonito, bem feito, com uma estética que imprime moder-nismo na música”, conta a autora do trabalho.

Para Andréa Queiroz, “os atritos” entre bossanovistas como Ronaldo Bôscoli e Roberto Menescal foram importantes para o desenvolvi-mento da Bossa Nova. “São aquelas brigas que, na verdade, acontecem muito mais para fazer crescer do que para destruir o movimento”, avalia.

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que foram dadas com a redemocra-tização estão nos parecendo sólidas o suficiente. Seria interessante um evento da universidade ressoando as sonoridades presentes no Brasil hoje, tentando construir um pro-jeto de futuro. Reencarnando esse espírito de disposição para uma profunda transformação da cena pública, retomando ideais críticos de democratização e de bem estar social: dois motores da Bossa Nova.

A condição para fazermos uma reedição hoje seria uma Noite do Amor, do Sorriso e da Flor preta, indígena, LGBTQIA+, da favela e por aí vai... Porque expressaria um empenho de construir um Brasil mais justo, mais equânime e efeti-vamente para todas e todos.

NOITE DO AMOR, DO SORRISO E DA FLOR HOJE SERIA PRETA, INDIGENA, LGBTQIA+ E DA FAVELA,

DEFENDE ETNOMUSICÓLOGO

A Bossa Nova é um movi-mento cultural exclusiva-mente carioca?

Não. O que aconteceu em re-lação à Bossa Nova passou com outros estilos urbanos anteriores. Muitos acreditam que o choro foi inventado no Rio, por exemplo; porém havia manifestações muito parecidas em Recife e Porto Alegre. A Bossa Nova é um fenômeno na-cional, mas ela adquiriu mais des-taque no Rio, pelo fato de a cidade concentrar a indústria cultural, boa parte dos meios de difusão de mú-sica, a rádio e depois a televisão, as gravadoras etc.

A difusão do uso das ci-fras, em detrimento das partituras, ajudou a conso-lidar o estilo da Bossa Nova?

O uso de harmonia cifrada – como era o caso, símbolos alfanu-méricos que indicam a posição dos

dedos sobre o chamado “braço” do violão – decididamente facilitou a popularização desse novo estilo entre aquelas e aqueles que busca-vam aprendê-lo. Isso não necessa-riamente inibiu o uso de partituras, já que seu uso para o ensino de música popular nunca foi sistemá-tico. Por outro lado, a cifra pode ter significado a porta de entrada ao aprendizado de repertório com as partituras, levando progressiva-mente ao interesse em aprender e tocar música a partir delas.

Como seria uma Noite do Amor, do Sorriso e da Flor em 2020?

Aquele foi num momento de

transição, o país estava em busca

de um novo projeto. É exatamente

assim que entendo o atual momen-

to, porque nem mesmo as respostas

Samuel Araújo, professor titular da Escola de Música da UFRJ, teve o primeiro contato com a Bossa Nova aos 12 anos, quando decifrou, no violão “Vagamente”, canção de Roberto Menescal e Ronaldo Bôs-coli. Coordenador do Laboratório

de Etnomusicologia, ele localiza o movimento cultural que deu ori-gem A Noite do Amor, do Sorriso e da Flor dentro de seu contexto so-cioeconômico. Ele também opina sobre a relação entre o movimento musical e a democracia no Brasil.

FERN

ANDO

SOUZ

A/ A

DUFR

J