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PPGCOM ESPM // SÃO PAULO // COMUNICON 2016 (13 a 15 de outubro de 2016)
Praia da Estação nas Minas Gerais: enfrentamentos, criações e reverberações1
Milene Migliano2
UFBA
Resumo
Buscamos neste texto revelar os processos de investigação das narrativas urbanas sobre a Praia da Estação, em Belo Horizonte. Por meio de uma montagem de fragmentos de narrativas sobre a praia buscaremos desvelar os fluxos de pensamento, práticas e gestos que tomam forma nos enfrentamentos, criações e reverberações, entre os espaços públicos da cidade e internet. Iremos encontrar as demandas em elaboração coletiva que tomaram parte da vida política da capital mineira desde 2010, que se observarmos com um distanciamento crítico, podem nos apresentar respostas para as perguntas motivadoras da tese e quem sabe para os próximos caminhos a serem trilhados pelos movimentos sociais urbanos contemporâneos.
Palavras-chave: espaço público, ativismo, experiência urbana, redes sociais, corpo.
Este texto tem como objetivo desvelar algumas considerações que estamos
tecendo durante o processo de escrita da tese, levando em conta as narrativas das
produções imagéticas e imaginárias em/de redes de ativismos urbanos3. Consideramos
a primeira motivação investigativa a afirmação de Walter Benjamin “de que toda
1 Trabalho apresentado no Grupo de Trabalho 5 Comunicação, Consumo e Novos Fluxos Políticos: ativismos, cosmopolitismos e novas práticas contra-hegemônicas, do 6º Encontro de GTs de Pós-Graduação - Comunicon, realizado nos dias 14 e 15 de outubro de 2016. 2 Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismos da UFBA, membro do Laboratório Urbano – UFBA, integra a equipe da pesquisa Cronologia do Pensamento Urbanístico (www.cronologiadourbanismo.ufba.br) e o Grupo de Pesquisa Internacional CNRS “Ambiances en traduction”. e.mail: [email protected] 3 Importante pontuar, entretanto, o momento político brasileiro que vivemos hoje, em que um golpe assume o governo nacional, onde as notícias minuto à minuto informam a ocupação das escolas pelo país, os chiliques de parlamentares diante das responsabilidades que assumiram ao se candidatarem, a divulgação dos nomes – em nenhuma medida qualificados - que ocuparam os ministérios do vice-presidente Michel Temer e ainda as notícias dos ministérios extintos por uma canetada federal, no dia seguinte da suspensão do mandato da presidenta Dilma Roussef. As informações circulam pelas listas de e.mails, pelas redes sociais, pelos sites de notícias, e muitas vezes não conseguimos nem sequer checar se são realmente produzidas jornalisticamente – já foram compartilhadas, e se realidade ou não - são espalhadas criando ficções sobre o mundo contemporâneo.
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descoberta científica implica por si só, mesmo sem pretendê-lo, uma revolução
procedimental” (BENJAMIN, 2013, p.125). Logo, instigamo-nos a saber como a
internet e as novas tecnologias de informação e comunicação transformam os
procedimentos utilizados nos/pelos movimentos de resistência política urbana
contemporânea? A segunda motivação investigativa parte da afirmação de Ana Clara
Torres Ribeiro, quando a socióloga diz que os resultados das mobilizações sociais
importam menos do que os processos e que é preciso considerar que “Nós temos hoje
(no Brasil) uma espécie de contenção do imaginário politico (2011)”; indagamo-nos
se é possível dizer que os movimentos de resistência urbana contemporâneos então,
puderam ampliar e/ou expandiram/expandem os imaginários políticos? No intuito de
problematizar ambas questões, lançaremos o olhar para alguns fragmentos narrativos
de situações de enfrentamentos, (re)criações e reverberações da Praia da Estação, em
Belo Horizonte.
A Praia da Estação começa a acontecer em janeiro de 2010 como modalidade
de protesto e que reivindicava a suspensão do decreto municipal Nº 13.7984 que
proibiu os eventos de qualquer natureza na Praça Rui Barbosa, também conhecida
como a Praça da Estação. Localizada na região central da capital mineira, a praça
guarda desde a fundação da cidade, em 1897, a Estação Central de Trens, e na
atualidade, também a Central de Metrô. Em 2008, depois de uma reforma de oito
anos, passa a abrigar no prédio da Estação o Museu de Artes e Ofícios, constituído
pelo acervo do Instituto Cultural Flávio Gutierrez5. O plano do museu originalmente
divulgado consistia em realocar as estações de trem e metrô dentro do prédio da
estação – desativado para a reforma mesmo em seu pleno funcionamento - mas ainda
não aconteceu.
Após um ano de funcionamento da praça, diversos eventos de pequeno, médio
e grande porte ocuparam a área, atingindo públicos de até oitenta mil pessoas em 4 Disponível em: http://portal6.pbh.gov.br/dom/iniciaEdicao.do?method=DetalheArtigo&pk=1017732. (Acesso: 14/05/16). 5 Flávio Gutierrez é um dos fundadores da Andrade e Gutierrez, empreiteira multinacional responsável por obras como a construção da Usina Hidrelétrica de Itaipu, a Estrada de Ferro Carajás, o Aeroporto Internacional de Confins e o metrô de Salvador.
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shows gospel. Nestas ocasiões, além da esplanade da praça, o público acabava
circulando também pelas duas outras praças que contém jardins, do outro lado da
avenida dos Andradas. Na sequência da publicação do supracitado decreto,
interditando o espaço ao uso público, acontece a chamada para uma reunião em um
blog6 anônimo a qual reúne oitenta pessoas, na primeira quinta-feira do ano. Neste
encontro inicial, depois de algumas horas de desentendimentos (por exemplo,
algumas pessoas foram de vermelho e de preto e contestavam a ideia pacificadora do
branco), montamos uma lista de emails7 e em nove dias acontece a primeira Praia da
Estação: a praça de concreto é tomada por corpos vestidos em maiôs de banho para
nadar nas fontes. Um blog8 coletivo foi montado e como sugestão de ação por
ativistas que seguem a ética hacker, deixamos sua senha disponibilizada como post
fixo. Junto com a lista de emails, as duas plataformas online se constituíram como a
arena de debate virtual da Praia da Estação, nos quais diversos outros blogs de
ativistas apareciam. Importante lembrar que naquele momento da internet os blogs
eram a maneira mais acessível para se expresser online, “Blogs valiam ouro e
blogueiros eram como estrelas de rock, quando fui preso em 2008.”
(DERAKSHNAN, 2015).
Depois de persistir por três meses todos os sábados de manhã, mesmo com
uma mídia local que não colaborava com a visibilidade pública da questão, o prefeito
pressionado instaura uma comissão para revisão do decreto que, depois de mais três
meses é suspenso. Os pareceres elaborados pela comissão para amparar a suspensão
do decreto nunca foram mostrados, mas o contrato com a Coca-cola para exibir na
Praça os jogos da Copa do Mundo 2010 apareceram pré-autorizados na nova lei,
juntamente com uma tabela classificando os eventos em de pequeno, médio e grande
6 Os blogs foram os primeiros espaços na internet que disponibilizaram modelos de publicação online e gratuita sem precisar saber programar uma página em html, tendo sido ferramenta essencial no processo de democratização e ampliação de conteúdo disponível na internet. Retomaremos o assunto mais adiante. Disponível em vadebranco.blogspot.com, acessado em 16/05/16. 7 As listas de e.mails são ferramentas de encontro e organização social muito inovadoras, são consideradas “canais importantes de agregação de comunidades online” (MAGALHÃES, 2015, p.181). 8 https://pracalivrebh.wordpress.com/, importante pontuar que a ética hacker era comumente acessada nas reuniões e encontros dos banhistas da Praia da Estação.
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porte, a qual determina os valores dos cheques-caução que passaram a ser
demandados aos proponentes dos eventos. A limpeza, segurança e cercamento a
serem contratados de serviços privados também passou a ser uma exigência, ao que
podemos perceber que a suspensão do decreto foi apenas uma pequena batalha que os
banhistas da praia da Estação venceram.
A prática de ocupação da praia da Estação - hoje com sete anos acontecendo e
agregando as mais diversas causas - experimenta formas de organização diferentes
das hierarquizadas em funcionamento nas instituições, que regulamentam e regulam o
espaço urbano. Seja em encontros presenciais, ou por meio do compartilhamento de
registros das situações vivenciadas, narrativas foram/vão sendo tecidas e atualizadas
em suas dimensões políticas e afetivas, contaminando (GUATTARI, 1992) e
imbricando outros corpos. Em meio a uma trama de acontecimentos, alguns
vivenciados outros acessados por etnografia digital, escolhemos produzir aqui uma
montagem (JACQUES, 2015) de fragmentos narrativos relacionados à situações de
empoderamento dos corpos, que foram vivenciadas nestes tempos de contestação,
reinvindicação e/ou celebração, mobilizadas na Praia da Estação.
Enfrentamentos
Desde o primeiro dia de encontro presencial do que viria a ser a Praia da Estação, ou
seja, no dia da reunião convocada pelo vá de branco, percebemos a multiplicidade e
heterogeneidade de modos de pensar, agir e se relacionar das pessoas que estavam ali.
Pessoas que acreditavam que precisávamos passar para ação direta, outras que para
passeatas que atrapalhassem o trânsito, outras para medidas no ministério público e
junto aos jornais da cidade para que todos os outros pudessem saber do que estava
acontecendo. A urgência de conseguir reverter a situação fazia surgir inúmeras ideias
para o enfrentamento da situação, que não eram necessariamente contraditórias ou
deveriam ser consideradas ações únicas. E elas começaram a serem trocadas tanto em
encontros presenciais quanto na lista de e.mails, que havia sido produzida na primeira
reunião, algumas se realizando, outras mais do que virando tradição.
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A ideia da praia9 foi uma das que foram debatidas como algo que poderia vir a
ser, já na reunião do vá de branco. A liberalidade do entendimento de que cada um
pode fazer o que quiser na praia foi, em alguma medida, um primeiro pensamento
indicativo de que poderíamos conseguir fazer alguma coisa juntos, depois de tantos
desentendimentos. Compreendermos que compartilhávamos um dano em comum foi
um consenso que nos fez encarar a demanda de fazer algo. E para além da proibição
dos eventos na praça a proposição de tirar a roupa no centro da cidade foi realmente
acatada por todos, se conformando como um segundo comum compartilhado.
Importante ressaltar que no contexto belo horizontino, diferentemente de cidades à
beira do mar, onde as pessoas muitas vezes circulam de roupa de banho pelos bairros
praieiros, não é nada costumeiro ver uma pessoa de biquíni pelo asfalto. Além disso,
muitos moradores da capital ainda cultivam uma ideia de tradicional família mineira,
além dos espaços públicos urbanos serem regulados por um com código de posturas
municipal. Colocar o corpo de biquíni no calçamento da praça se conformou como
uma proposição de enfrentamento ao biopoder (FOUCAULT apud CASTRO, 2009,
p.57) no espaço urbano belo-horizontino.
Tomar banho nas fontes era a desculpa para estarmos em roupas de banho na
primeira praia. Mas como chegamos a imaginar na sexta-feira, o prefeito mandou
desligar as fontes e precisamos contactar um caminhão pipa, que estava previamente
avisado, para refrescar o calor que fazia no calçamento de cimento da praça.
Passamos o chapéu e arrecadamos em moedas, com as trezentas pessoas que estavam
presentes, o recurso para pagar o serviço do caminhão.
9 Outras praias já haviam sido realizadas em Belo Horizonte, sendo a intervenção que o grupo galpão realizou na Praia da Savassi em 1989, como processo do trabalho no festival de inverno – o manifesto queremos praia, das mais conhecidas. (OLIVEIRAS, 2012; LAGES, 2014)
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Imagem 1: da primeira praia da estação, crédito Luis Navarro em seu flickr.
O banho foi um momento no qual os afetos e perceptos foram mais do que
ativados na experiência dos banhistas presentes. Transeuntes que aguardavam os
ônibus no cimento, sem sombra, vieram se refrescar. As pessoas que atravessavam a
praça com crianças, não tinham como negar os pedidos dos pequenos se juntarem à
nós. Os vendedores de bebidas e moradores de rua também se juntaram e abraçados,
cantávamos e dançávamos juntos. O banho foi o catalisador de produção de laços
fortíssimos entre nós, moradores da cidade, reivindicando o uso público da praça.
Depois da primeira praia diversos materiais foram produzidos virtualmente e
espalhados pelas redes sociais que existiam naquele momento. Pulularam fotos,
memês, vídeos e músicas pelos blogs, sendo replicados na lista de e-mails, como o
teaser10 publicado no youtube com imagens do primeiro sábado, chamando para a
10 Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=4mEzQrF6v0M, acessado em 14/05/16.
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próxima praia. O modo não usual de se manifestar, isto é, enfrentá-lo na ação de
desacato total – realizando um evento semanal – já estava feito. A ocupação da
internet sendo realizada sempre com definições e decisões discussões pautadas pela
ética hacker, influenciou algumas ações diferenciadas: o blog coletivo tem o acesso às
postagens liberado para todos (embora não esteja sendo utilizado mais agora,
substituído pela rede social facebook), sempre que éramos entrevistados pela mídia,
respondíamos aos jornalistas com os pseudônimos coletivos de Luther Blisset, Rita
Garela ou Ommar Motta.
A ativação de modos de operar hacker, chamando a responsabilidade para
todos, mas ao mesmo tempo para ninguém personificado, como na utilização dos
pseudônimos, também enfrentam a hegemonia das práticas políticas hegemônicas.
Novos modos de reivindicação estavam tomando parte na cidade e também na
internet: podemos dizer que a Praia da Estação é um exemplo de “Una conversión de
la forma manifestación en la forma ocupación.”11 (RANCIÈRE, 2016). Para o autor,
outra característica que marca as ocupações atuais nas cidades12 é que as praças e as
ruas tem sido acessadas pelos ativistas já que “son los últimos espacios públicos en
los que se puede estar en común; discutir y actuar en comúm13.” (Idem). Como muitos
outros movimentos que se desenrolaram pelas cidades globais, podemos dizer que a
Praia da Estação estava “reivindicando justicia social y democracia autentica”
(CASTELLS, 2015 p.25) e com eles,
“ignoraron a los partidos políticos, desconfiaron de los médios de comunicación, no reconocieron ningún liderazgo y rehazaron cuarlquier organización formal, dependendo de Internet y de las asambleas locales para el debate colectivo y la tomma de decisiones.14” (Idem)
11 Uma conversão da forma manifestação na forma ocupação, tradução nossa, disponível em https://www.diagonalperiodico.net/blogs/europa-constituyente/entrevista-jacques-ranciere-la-nuit-debout-es-la-transformacion-juventud, acessado em 14/05/16. 12 Na entrevista online, o tema principal é a “Nuit debouts” em Paris, mas o autor também faz referências à Madrid, Nova Yorque, Atenas e Istambul. 13 São os últimos espaços públicos nos quais se pode estar em comum; discutir e atuar em comum”, tradução nossa. 14 Ignoraram os partidos políticos, desconfiaram dos meios de comunicação, não reconheceram nenhum líder e rechaçaram qualquer organização formal, dependendo da internet e das assembléias locais para o debate coletivo e tomada de decisões, tradução nossa.
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(Re)Criações
Estar em um espaço onde é possível ainda se reunir, atuar, discutir, enfim estar em
comum é realmente imprescindível na manutenção de sociabilidades urbanas. A
modernização urbana, que possibilita cada vez mais pessoas morarem em uma mesma
cidade, já que a distribuição de água encanada amplia os horizontes de alcance dos
antigos poços, também impossibilita todos os encontros que aconteciam antes no
entorno na fonte, e que mantinham os laços e afetos das pessoas que moravam no
mesmo espaço. Willian Mitchell, em e-topia, segue sua argumentação afirmando que
depois das inovações digitais, estamos ainda mais afastados das possibilidades de
“estabelecer contatos, relacionarse, crear confianza y hacer tratos.(...) necessitamos
inovar, reinventar los espacios públicos, los pueblos y las ciudades para el siglo
XXI15.” (MITCHELL, 2001, p.9)
Mas o comum destes espaços que precisam/estão sendo reinventados não
significam práticas que vislumbram consensos pacificadores. Tais lugares são, antes
de tudo, espaço para as diferenças se encontrarem, criando dissensos (RANCIÈRE,
1996). Quando as disputas acontecem espontaneamente, motivadas por situações nas
quais desentendimentos são dados a ver nos cotidianos compartilhados, ampliam-se as
possibilidade de criações, soluções, invenções táticas (CERTEAU, 1994) que virão a
ser formuladas nestes processos colaborativos de coletividade de compartilhamento
de espaços comuns.
Importante ressaltar que compreendemos o dissenso a partir do filósofo
Jacques Rancière que os define como conflitos de “regimes de sensorialidades
diferentes” (RANCIÈRE, 2012, p.59). Ao serem colocados lado à lado, num mesmo
espaço, acabam mobilizando desentendimentos acerca do conforto da “ordem natural”
dos acontecimentos. O dissenso desestabiliza os lugares dos que estão envolvidos nas
ações de enunciação, de prática, de ato público e político, já que estão em disputa, e
portanto, relações de forças e poderes.
15 Estabelecer contatos, relacionar-se, criar confiança e fazer tratos. (...) necessitamos inovar, reinventar os espaços públicos, as vilas e as cidades para o século XXI, tradução nossa.
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Na praia da estação o dissenso já começa forçando a realização de
desorganização: os diversos grupos que se encontraram não conseguem concordar em
um modo de ação comum. Havia o problema em comum, a interdição da praça, mas
como reclamar uma transformação da situação, os grupos divergiam radicalmente dos
posicionamentos, gestos e práticas. A ideia da praia é acatada porque nela estavam
duas condições garantidas, a de que cada um poderia fazer o que quisesse, e que
estariam em roupa de banho, enfrentando outro inimigo em comum, a tradicional
família mineira. Os afetos mobilizados em quereres, que comungavam de outros
projetos de cidade, aproximaram os banhistas para cada vez mais se compreenderem e
compartilharem seus posicionamentos.
A praia vai expandindo seus espaços de conquista no território urbano
também. Com dois meses de praia, os banhistas convocam um eventão, com diversas
atividades durante um domingo. Como não era possível ter alimentação de energia
elétrica, e demanda para a ligação dos equipamentos dos músicos que se
apresentariam, os shows foram deslocados para o embaixo do viaduto de Santa
Tereza, duzentos metros da praça, programados para finalizar a jornada de atividades.
Para se chegar até lá, os banhistas saímos em procissão, cantando as músicas da Praia
da Estação, como a marchinha de carnaval, pela avenida dos Andradas. Tomamos
uma das duas pistas durante um quarteirão da avenida, expandindo pela primeira vez
o alcance de território físico da Praia da Estação. O caminho para o embaixo do
viaduto, discussão que havia tomado muito tempo dos nossos pensamentos sobre
como aconteceria rendeu um entendimento: a sensação de tomada da rua, de fazer
parte de uma ação política, também foi impressionante.
O carnaval foi outro evento que fez a praia ampliar seu território ocupado no
espaço urbano. Quando o carnaval praieiro decide mudar o lugar habitual de encontro
com o caminhão pipa – cujo banho coletivo se tornou um atrativo para cada vez mais
pessoas na cidade - para a frente da prefeitura, inventou-se uma lavagem das
escadarias da prefeitura. A ideia surgiu em uma reunião na praia e era a de levar
vassouras e baldes limpar simbolicamente as sujeiras do prefeito, suas corrupções ao
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nosso direito à cidade. No dia combinado, apenas Fidel apareceu para o intuito e
acabou também atualizando o imaginário ritualístico do banho espiritual com balde de
ervas e a bateção de folhas de manjericão e de alecrim da tradição baiana das lavagens
das escadarias das igrejas, um momento de renovação de ciclos. O banhista ainda
conta em entrevista que o casal Gaby e Sylvio também estavam vestidos de branco,
portando turbantes, como mães de santo, e colaboraram na primeira performance
realizada.
A lavagem das escadarias na prefeitura no sábado de carnaval antecede a
ligação da mangueira do caminhão pipa, e já se conformou como uma prática que se
repete. Em alguns anos da folia contestatória acontecem discursos que atualizam a
luta pelos espaços públicos em BH, contextualizando as batalhas terminadas, em
trâmite e as porvir, contaminando por meio de outros afetos e perceptos todos foliões
presentes. Tais contaminações, seguindo o filósofo, seriam proporcionadas por
mutações dos agenciamentos, que precisam ter o porte “por exemplo, a
reprodutibilidade potencialmente ilimitada do texto e da imagem pela imprensa ou a
potencia de transferência cognitiva adquirida pelos algoritmos matemáticos no
domínio das ciências...” (GUATTARI, 1992, p.116). O fazer junto, com os próprios
corpos, uma praia no centro da cidade e o carnaval de rua16 de Belo Horizonte, talvez
tenha tido a força dessa mutação.
Outros quereres inventados fortalecem os entendimentos sobre o que é ser
banhista da Praia da Estação e qual o tamanho das mudanças que poderíamos vir a
estar reivindicando com nossos corpos. Desde a primeira praia além dos biquínis e
maiôs nas mulheres, as sungas nos homens e até uma roupa de mergulho em um
banhista, encontramos pessoas liberando-se de uma “identidade binária de sexo”
(BUTLER, 2003, p.09). Homens também se vestem com maiôs. E o número de
corpos masculinos desfilando com essa peça, criada para os corpos femininos, foi só
aumentando a cada edição da Praia, que foi sendo contaminada e contaminadora de
16 Algumas outras informações sobre o carnaval em http://revistamarimbondo.com.br/artigo/18 e http://variavel5.com.br/blog/caps-lock-carnaval/, acessadas em 16/05/16.
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outros processos de criação artísticas, teatrais e performáticas na região da Praia da
Estação. No ano passado, a criação do campeonato de Gaymada17 e a realização de
uma edição do campeonato na Praia da Estação pode dar ideia da amplitude dos
desejos, como os de libertação da expressão e criação dos corpos da diversidade
sexual, despertado ali.
Imagem 2: do terceiro campeonato de Gaymada na Praia da Estação, página facebook Todo Deseo.
Reverberações
Um dos exemplos de outros projetos para a cidade que podemos dizer que foi, em
alguma medida, influenciado pela Praia da Estação é a sugestão de troca da estátua de
Tiradentes – herói mineiro retrato em bronze com a corda de enforcamento no
17 Realizadas pelos integrantes de Teatro Toda Deseo, a gaymada da Praia da Estação foi o 3o Campeonato Interdrag de Gaymada – Edy-ção Praia da Estação. Link para fotos no facebook disponível em 3º Campeonato Interdrag de Gaymada - Edy-ção PRAIA DA ESTAÇÃO, acessado 16/05/16.
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pescoço, na Avenida Afonso Pena esquina com a Avenida Brasil, por uma imagem de
Ed Marte de maiô, banhista e performer da Praia da Estação. Na imagem sugerida Ed
está fazendo o gesto como se estivesse se refrescando nas águas dos caminhões pipa
ou das fontes 18 , “corpografia urbana” (BRITTO; JACQUES, 2008, p.79) que
podemos tatear no clipe da música Babulina’s Trip do grupo Graveola.
A sugestão de troca foi motivada por um evento no facebook, que como nas
imagens de vendas de imóveis, desenha uma informação diferente das existentes na
cidade, numa fotografia da paisagem urbana.
Imagem 3: campanha no facebook pela troca da estátua da Praça Tiradentes.
Ed conta em entrevista que quando “vi o evento no face fiquei surpreso e
alegre, que era uma brincadeira dos eventos fictícios que estavam rolando no
facebook”, mas que depois acabou “viralizando muito e acabou sendo muito
divertido”. Ele ainda afirma que a maneira como ocupa os espaços públicos,
travestida, fazendo performances, foi estimulada pela criação da Praia da Estação,
“criando uma liberdade, pelo menos foi isso o que aconteceu comigo, né? Isso muda
minha forma de vestir e de se colocar, que aconteceu de uma forma natural, sem ser
muito pensado, e acho que refletiu também, para outras pessoas”. Na entrevista 18 Link clipe graviola disponível no https://www.youtube.com/watch?v=f-rk9DbItgE, acessado 16/05/16.
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concedida por whatsapp Ed Marte nos conta também que é um dos pré-canditados da
plataforma Muitxs, a cidade que queremos19, mobilização que consideramos também
mais uma das reverberações da Praia da Estação em Belo Horizonte, assim como o
Fora Lacerda, o Fica Ficus, o Espaço Comum Luiz Estrela.
O Fora Lacerda20 foi um movimento contra o governo do então prefeito
Márcio Lacerda, mobilizado por muitos banhistas da praia da Estação, que conseguiu
com suas críticas e denúncias fazer o PT lançar uma candidatura que não apoiasse o
supracitado. O Fica Ficus21 é uma ação que luta pela permanência das enormes
árvores que ocupavam toda a avenida Carandaí e não a simples poda e retirada diante
de uma praga, modo como a prefeitura se dispôs a agir. As árvores ambientam um
enorme passeio que abrigava usos diversos e diferentes feiras de rua, semanalmente.
O Espaço Comum Luiz Estrela22 é um edifício público que estava abandonada
havia 19 anos e que foi ocupado por artistas em outubro de 2013 com objetivo de ser
um espaço de criação e compartilhamento artístico, político e cultural, aberto e
autogestionado” segundo consta em sua página no facebook e pudemos perceber em
visita ao local.
Para além da cidade, a Praia da Estação reverberou até o nordeste como
motivador da Ocupa Estação, em São Félix, BA, 2014 e como trocas de experiências
com o Ocupe Estelita 23 , em Recife-PE, 2010. Ambas ocupações também se
encontram em prédios e imediações do enorme patrimônio industrial, ferroviário,
chamando atenção para as péssimas condições de preservação do patrimônio público.
Se antes as estações e galpões eram interligadas antes pelas linhas de ferro, agora são
pelas linhas de fuga dos novos movimentos de resistência pelos espaços públicos
urbanos. Os galpões de armazenamento em Recife que compõem área vítima da 19 Disponível em https://www.facebook.com/cidadequequeremosbh/, acessado em 15/05/16. 20 “O Fora Lacerda conta com um site atualizado diariamente20, dando visibilidade e questionando as políticas de higienização, privatização e excludência dos espaços públicos em Belo Horizonte, adotadas pela PBH. Em repúdio a essas ações, foram realizadas três grandes marchas no ano de 2012 (a última marcha, organizada em setembro de 2012, chegou a levar às ruas cerca de 5 mil pessoas), além de ter sido criado um jornal, o Movimenta BH” (ABREU et alli, 2013, p. 5.) 21 Disponível em https://www.facebook.com/ficaficus, acessado 15/05/16 e http://ficaficus.concatena.org/. 22 Disponível em https://www.facebook.com/espacoluizestrela/?fref=ts, acessado 15/05/16. 23 Disponível em https://www.facebook.com/MovimentoOcupeEstelita/?fref=ts, acessado 15/05/16.
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especulação imobiliária e o abandono do prédio da antiga estação de trem de São
Félix, somam-se à especulação do capital cultural agregador que o complexo
arquitetônico da Praça da Estação sofre. Nestas situações, os imaginários urbanos
passam a ser tomados pelo poder opressor e usados para fim mercadológicos, no
sentido de tornar a cidade um espaço vendável seja para o turismo internacional, seja
para os investimentos das corporações financeiras. Enfim, aguarda ser consumida
como se fosse apenas um produto a ser experimentado (DELGADO, 2011, p.97),
interrompendo os fluxos das experiências da população da cidade, o que o autor
define, “espaço público como ideologia”.
Em Belo Horizonte, podemos elencar como exemplo deste tipo de
expropriação, antes de tudo simbólica, do carnaval dos blocos de rua: depois de três
anos sendo desconsiderados e depois rechaçados pelo poder público municipal, a
prefeitura começou um cadastramento dos blocos. No ano seguinte, percebendo o
aumento cada vez maior da folia, começou a capitalizar as imagens e imaginário do
carnaval para atrair turistas, tendo atraído em 2016, cerca de 100 mil turistas24,
efetivando mais uma das metas do planejamento estratégico do projeto de
espetacularização urbana (JACQUES, 2004) a que se propõem, onde de quase nada
vale a opinião e participação real dos habitantes da cidade.
Referências BENJAMIN, Walter. Capitalismo como religião. São Paulo: Boitempo Editorial, 2013. BRITTO, Fabiana; JACQUES, Paola Berenstein. Cenografias e corpografias urbanas : um diálogo sobre as relações entre corpo e cidade. Cadernos PPG-AU UFBA, Salvador, v. 7, número especial, 2008. BUTLER, Judith P. Problemas de gênero. Feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 2003. CASTELLS, Manuel. Redes de indignación e de esperanza. Madrid: Allianza Editorial; 2015. CASTRO, Edgardo. Vocabulário de Foucault – Um percurso pelos seus temas, conceitos e autores. Trad. Ingrid Müller Xavier. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2009.
24 Dados do site http://www.carnavaldebelohorizonte.com.br/noticias/receita-turistica-no-carnaval-de-bh-mais-que-duplica-em-relacao-a-2015/
PPGCOM ESPM // SÃO PAULO // COMUNICON 2016 (13 a 15 de outubro de 2016)
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