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Artigo Comunicon 2013 / GT 5

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  • PPGCOM ESPM ESPM SO PAULO COMUNICON 2013 (10 e 11 de outubro 2013).

    A Distino e o Consumo do Corpo na Homenagem Marisa 1

    Maria Joana Casagrande Soares-Correia2

    Universidade Estadual de Londrina (UEL).

    Resumo

    A problemtica do corpo e beleza recorrente nos meios de comunicao de massa. Na sociedade

    contempornea, a mdia assumiu uma funo de transmissora de modelos de identificao enquanto produtos

    a serem consumidos e o corpo se tornou o ltimo reduto da identidade dos indivduos e demarcador de

    sucesso e distino social. A publicidade tem dado sua contribuio ao estimular o consumo de bens simblicos e massificar os desejos. Desenvolveu-se uma pesquisa qualitativa, do tipo estudo de caso, com o

    uso de Anlise de Imagens a partir do comercial Homenagem, lanado pelas lojas Marisa em outubro de 2012. Durante a realizao do trabalho, foi possvel identificar que Homenagem apresenta uma viso limitada e preconceituosa sobre beleza e culto ao corpo e que a empresa buscou associar sua marca e seus

    produtos personagem principal, padro de beleza miditica, apresentada enquanto objeto-corpo passvel de

    consumo.

    Palavras-chave: Anlise de imagem, Consumo, Corpo, Distino social, Sociedade

    contempornea.

    Introduo

    A problemtica do corpo e beleza tema recorrente no ambiente acadmico, nas rodas de

    bar e tambm nos meios de comunicao de massa. Na sociedade contempornea, esta algoz e

    refm do espetculo e da visibilidade, o corpo se tornou o ltimo reduto da identidade, um blsamo

    para quem vive em tempos lquidos, para usar a expresso do socilogo Zigmunt Bauman, que

    raramente permitem que se criem razes em algum lugar.

    A sociedade atual caracterizada pela hipertrofia de repertrios e exploso da visualidade,

    pelas infindveis releituras e parfrases, alm da efemeridade e fragmentao das instituies

    1 Trabalho apresentado no Grupo de Trabalho Comunicao, Consumo, Gnero e Classes, do 3 Encontro de GTs -

    Comunicon, realizado nos dias 10 e 11 de outubro de 2013. 2 Mestranda da Ps-Graduao em Comunicao Visual (UEL). Bolsista CAPES. Especialista em Psicologia Cognitivo-

    Comportamental e Anlise do Comportamento (UEM) e Recursos Humanos (Unicesumar). Psicloga (UEM) e

    graduanda em Comunicao Social Jornalismo (Faculdade Maring). E-mail: [email protected]

  • PPGCOM ESPM ESPM SO PAULO COMUNICON 2013 (10 e 11 de outubro 2013).

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    (CONNOR, 1992; HALL, 2006). Em seu A identidade cultural na ps-modernidade, original de

    1992, Stuart Hall (2006) afirma que:

    [...] medida em que os sistemas de significao e representao cultural se multiplicam, somos confrontados por uma multiplicidade desconcertante e cambiante de identidades

    possveis, com cada uma das quais poderamos nos identificar ao menos temporariamente (p. 13).

    Neste sentido, a estabilidade que a materialidade e a pessoalidade do corpo do ao sujeito e

    sua subjetividade alentadora, embora enganosa. de se questionar o fato do indivduo estar se

    resumindo to somente a seu corpo, como chama ateno Sibilia (2012b). A busca incessante do

    espetculo, do ser visto e abocanhar os 15 minutos de fama profetizados por Andy Warhol, levam a

    sociedade contempornea a uma caada da purificao do corpo: mostrar o que bom e belo

    (leia-se, dentro dos padres estipulados socialmente) e esconder o que imoral, aquilo que destoa

    da norma.

    O corpo, ponte do sujeito para o mundo, passou a ser objeto de consumo, valendo no mais

    por seu uso, mas por sua imagem, pelo status que simboliza e que distingue os sujeitos, conforme

    proposta de Bourdieu (2011). Deixou-se de se relacionar com o corpo real, tridimensional, para

    faz-lo com uma imagem em duas dimenses, imagens essas que povoam o cotidiano na

    modernidade tardia e que sero problematizadas ao longo do artigo. A discusso dessa pesquisa do

    tipo qualitativa envolve o estudo de caso (YIN, 2001) do comercial Homenagem, das lojas

    Marisa, e sua repercusso na mdia, com o uso de anlise de imagens em movimento (JULLIER;

    MARIE, 2009; ROSE, 2011), e embasado em contedos sobre mdia, consume, corpo e distino

    social e formao do gosto.

    Mdia e consumo na sociedade contempornea

    Consumo, segundo o website Origem da Palavra (2013), vem do latim consumere,

    destruir, gastar, esgotar, formada pelo prefixo com-, que atribui maior intensidade a parte final

    suemere, que significa apoderar-se, tomar, agarrar; e do ingls consummation, somar, adicionar

    (BARBOSA; CAMPBELL, 2006). Barbosa e Campbell (2006, p. 22-23) pontuam que,

    tradicionalmente, o senso comum entende consumo como exausto e/ou aquisio de algo e que os

    mesmos objetos, bens e servios que suprem necessidades fsicas e biolgicas, consideradas

    bsicas, podem ser utilizados para mediar relaes sociais e conferir status, constituir e influenciar

    identidades e distinguir grupos e pessoas.

  • PPGCOM ESPM ESPM SO PAULO COMUNICON 2013 (10 e 11 de outubro 2013).

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    Baccega (2008, p. 3) destaca que consumir relaciona-se com todos os contextos sociais e

    define o consumo como [...] um conjunto de comportamentos com os quais o sujeito consumidor

    recolhe e amplia, em seu mbito privado, do modo que ele for capaz de ressignificar, as mudanas

    culturais da sociedade em seu conjunto. Barbosa e Campbell (2006) complementam a ideia ao

    dizer que:

    [...] na sociedade contempornea, consumo ao mesmo tempo um processo social que diz

    respeito a mltiplas formas de proviso de bens e servios e a diferentes formas de acesso a

    esses mesmos bens e servios; um mecanismo social percebidos pelas cincias sociais como produtor de sentido e de identidades, independentemente da aquisio de um bem; uma

    estratgia utilizada no cotidiano pelos mais diferentes grupos sociais para definir diversas

    situaes em termos de direitos, estilos de vida e identidades; e uma categoria central na definio da sociedade contempornea. (BARBOSA; CAMPBELL, 2006, p. 26).

    A realidade contempornea recebe diversas denominaes, como era do consumo, sociedade

    da mdia, sociedade ps-moderna. Embora este ltimo seja o termo mais difundido, a autora no o

    considera adequado, questionando se o moderno foi de fato superado (significado do prefixo ps)

    ou se o que ocorreu foi uma nova roupagem do moderno a partir do desenvolvimento tecnolgico.

    Desenvolvimento esse que proporcionou a difuso e disseminao dos meios de comunicao de

    massa, com o incremento vertiginoso da importncia da mdia e, consequentemente, de seus

    profissionais na atualidade (BACCEGA, 2008).

    Com a banalizao das imagens, o encurtamento das distncias, a massificao dos desejos e

    a velocidade e fluidez com que acontecem as trocas materiais, simblicas e sociais, caractersticas

    da hipermodernidade, possibilita-se a transformao de toda a realidade em objetos de consumo

    (BACCEGA, 2008, p. 2). O consumo perde ento uma condio exclusivamente material, de

    compra, para atuar como uma matriz de identificao do sujeito contemporneo, conforme Barbosa

    e Campbell (2006) e Hall (2006).

    A mdia assume, na totalidade de suas vertentes, uma funo de criadora e reprodutora de

    modelos de identificao a serem seguidas at que surja um novo modelo. No se iludam, porm,

    que essa criao de vanguarda. A produo e circulao de contedo pelos meios de Comunicao

    funcionam como mera validao das instituies vigentes (HALL, 2003). Nesse processo, a

    publicidade3 tem dado sua contribuio ao estimular (ainda mais) o consumo de bens simblicos e

    massificar os desejos. Ela esculpe os corpos, destituindo-os do que os diferencia uns dos outros,

    numa lgica do consumo permeada pela obsolescncia programada, ou seja, o corpo enquanto

    produto perecvel, com data de validade. O objetivo da propaganda vender o sonho, o prazer, a

    3 Publicidade e Propaganda no possuem, a rigor, o mesmo sentido (SANTANNA, 2007), no entanto, sero utilizados como sinnimos ao longo do trabalho, conforme feito por Vestergaard e Schroder (2004).

  • PPGCOM ESPM ESPM SO PAULO COMUNICON 2013 (10 e 11 de outubro 2013).

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    felicidade, molas propulsoras da narcsica e hedonista sociedade ps-moderna (VESTERGAARD;

    SCHRODER, 2004).

    Essa deveria ser a inteno das lojas Marisa ao lanar, em outubro de 2012, o comercial

    intitulado Homenagem4 para a promoo de sua coleo de alto vero. No vdeo possvel

    conferir a histria de uma personagem mulher aparentando pouco mais de 20 anos, jovem, portanto,

    alta, magra, bonita e sua luta contra a balana (e os padres sociais) para viver bem o vero. O

    comercial foi produzido para divulgar a coleo de alto vero da marca. Dois dias aps o

    lanamento da ao, em outubro de 2012, j era possvel encontrar matrias na mdia sobre a

    repercusso negativa do comercial5, que foi tirada do ar logo em seguida; cinco dias depois, a

    Marisa Lojas S.A. lanou um comunicado explicando que o filme tinha a inteno de ser bem-

    humorado, embora no o fosse de fato6.

    Figura 1 Cena 1 Reproduo Homenagem

    O comercial criado pela agncia de propaganda AlmapBBDO7 traz cerca de 25 cenas em

    seus 30 segundos de durao, comeando por imagens que parecem sadas de algum sonho de filme

    4 O filme est disponvel, em alta definio, em canais oficiais das lojas Marisa, como < http://goo.gl/MmWJFl >.

    Acesso em 12.dez.2012. 5 Disponvel em < http://goo.gl/HtvWFs > Acesso em: 04.jan.2013 6 O comunicado pode ser encontrado na fanpage da empresa, no Facebook, em

    ou em < http://goo.gl/nGldf5 >. Acessos em: 04.jan.2013 7 Disponvel em . Acesso em 04.jan.2013

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    do Michel Gondry8 (Figura 1) e passando por momentos do vero em alguma praia da moda em um

    hotel bacana (eufemismo para caro), como na Figura 2.

    A Figura 1 reproduz a primeira cena do comercial. Nesse plano inicial, a cmera d um close

    em uma mulher deitada de costas sobre um tapete felpudo no cho. a personagem central da

    histria que se conta. Sorrindo, ela vira a cabea a sua direita, em direo objetiva. um sorriso

    tmido, mas que aparente alegria, satisfao, at gratido, como diz o texto nesse trecho: Essa

    uma homenagem a todos [...]. A ambientao e a fotografia da cena lembram um sonhar acordado

    ou acordar de um sonho: desfoques, pontos e raios de luz que desviam a ateno.

    Por sua vez, a Figura 2, que traz a cena 24, penltima do comercial, possui um

    enquadramento mais aberto. O foco novamente a personagem principal, mas a situao

    completamente distinta. De um ambiente fechado e intimista, no princpio, para um local aberto e

    efusivo, de frias e diverso, beira de uma piscina com gramado verde e palmeiras em volta e uma

    praia ao fundo. uma cena contagiante, pessoas brincam, a modelo est de fato feliz por estar ali. O

    cu est azul, o sol no aparece, mas sabemos que brilha, a claridade da cena indica isso. O texto

    narrado nessa parte do comercial confirma o [...] viver bem o vero.

    So os extremos do filme. Do sonhar para a realidade, s que ainda em um sonho. Para

    associar determinado significado simblico a um produto, o anunciante pode apresentar o bem a ser

    vendido justaposto a um objeto, pessoa ou situao que possua a qualidade que se quer transferir. A

    ideia que o consumidor, ao adquirir o produto, tambm passar a ter tais caractersticas

    (VESTERGAARD; SCHRODER, 2004). Se eu for de Marisa9, meu vero ser em alguma

    locao paradisaca, continuarei linda, meu corpo ser desejado e admirado por todos e todas. Seria

    perfeito, no fosse irreal.

    8 Cineasta francs, diretor de Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranas e outros filmes e videoclips. 9 Verso de Vou de Marisa, mote da marca nas redes sociais.

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    Figura 2 Cena 24 Reproduo Homenagem

    O corpo como objeto de consumo e distino social na Homenagem Marisa

    Segundo Vestergaard e Schroder (2004), a funo da publicidade, em uma sociedade

    capitalista, estimular o consumo de itens que no so bsicos, de primeira necessidade e um

    anncio vende o desejo, um universo imaginrio. esse assim como eu queria que fosse a minha

    vida que o consumidor adquire (ou pensa estar adquirindo) ao levar para casa um determinado

    produto. Nesse momento, cabe uma ressalva. Barbosa e Campbell (2006) criticam a moralizao do

    consumo, com a separao de objetos, bens e servios em itens bsicos e suprfluos. Para os

    autores, trata-se de ingenuidade tpica de um olhar catlico-puritano-ocidental repudiar a dimenso

    material da vida, como se esta pudesse ser separada da vida social.

    O crescimento do consumo era visto como um mal necessrio, que devia estar relacionado

    sempre, e apenas ao crescimento populacional. Ou seja, os ricos podiam continuar

    comprando seus luxos e os pobres, o suficiente para sobreviverem. A democratizao do conforto, do suprfluo, da possibilidade de novos desejos e de novas formas de gerao de renda para a satisfao desses desejos no era vista como uma alternativa legtima de vida

    social (BARBOSA; CAMPBELL, 2006, p. 34).

    apenas no princpio da Idade Moderna que os economistas passam a identificar uma

    relao direta entre o aumento do consumo e o crescimento econmico, no apenas no acmulo de

    metais, poca que comea-se a legitimar o consumo. Nas bases dessa moralidade j possvel

  • PPGCOM ESPM ESPM SO PAULO COMUNICON 2013 (10 e 11 de outubro 2013).

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    encontrar as contradies nas relaes entre as classes e os aspectos de distino social e violncia

    simblica, trabalhados por Bourdieu (2011). O culto ao corpo da sociedade contempornea pode se

    encaixar nessa oposio entre grupos sociais e servir como um elemento de distino. Alm de sua

    funo no sistema capitalista, pela venda da fora de trabalho e consequente formao da mais-

    valia10

    , o corpo se tornou objeto de desejo e consumo, pela ao da mdia e da cultura da

    visualidade, na qual mais importante que ser, parecer ser. a produo simblica a servio da

    manuteno das estruturas e instituies sociais.

    Para controlar a vida preciso controlar os corpos, disciplin-los, mold-los, dociliz-los, cont-los: vontades iguais, desejos iguais, igual percepo de mundo. Nada deve ser

    diferente, tudo deve ser produtivo. Malhar para ficar saudvel; ficar saudvel para se sentir

    melhor; sentir-se melhor para produzir melhor; produzir melhor para acumular mais;

    acumular para aumentar o capital financeiro, ampliar o capital sade e recomear o ciclo produtivo. Um corpo suado, magro, embelezado e sarado que, inspirado no tom satrico de Deleuze, sustenta a sade gorda do capital (MENDONA, 2006, p. 107-108).

    Baudrillard (2010) afirma que o corpo o mais belo objeto de consumo do sculo XX e a

    beleza, conforme Sibilia (2012), Stenzel (2006) e Vigarello (2006), passa a ser um projeto acessvel

    a todos e de responsabilidade de cada um. Diz o livro sagrado da moda, a revista Vogue: A lovely

    girl is an accident; a beautiful woman is an achievement [Uma garota adorvel um acidente, uma

    mulher bonita uma conquista, traduo nossa] (LAKOFF; SCHERR, 1984, p. 237 apud

    VIGARELLO, 2006, p. 163, grifos do autor). Castro (2007), Sibilia (2012a; 2012b) e Vigarello

    (2006) afirmam que a beleza uma construo social, variando de acordo com a cultura e o

    momento histrico. J na virada dos sculos XIX e XX, a mdia mostra sua influncia, com

    anncios de produtos para perder gordura e conservar e idealizar sua beleza.

    O enfoque cada vez maior na imagem pessoal comeou a se delinear na exploso das

    grandes produes de Hollywood e no uso mais intenso dos olimpianos11

    para divulgar e vender

    produtos, o que elevou a expectativa e o padro do belo para um patamar distante da realidade

    cotidiana. As estrelas insistiam (e ainda o fazem) em dizer que eram como qualquer mortal,

    necessitando de determinao e fora de vontade para esculpir seu corpo como verdadeiras obras de

    arte (VIGARELLO, 2006). Celebridades passaram a ser (e continuam sendo) modelos de

    identificao para a sociedade e seus padres de corpo e beleza, objetos de desejo (e consumo),

    demarcadores do gosto e da hierarquia social. Alcanar tais matrizes, tais exemplos de corpo

    implica adentrar um seleto grupo de sucesso.

    10 Sobre os conceitos de Karl Marx, acessar < http://goo.gl/c7OUEo >. 11 Sobre o termo, ver Morin (1997, p.105-109).

  • PPGCOM ESPM ESPM SO PAULO COMUNICON 2013 (10 e 11 de outubro 2013).

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    A necessidade de que cada um decida e cuide de sua beleza generalizou-se, como se fosse

    possvel ter total controle sobre a prpria aparncia. Paradoxos de uma sociedade que fala de uma

    beleza-padro individualizada, mas que sua conquista (ou fracasso) responsabilidade de cada

    um, os vencedores eleitos. Educao, classe e origem social, que anteriormente se colocavam como

    aspectos quase exclusivos de formadores do gosto e sua esttica e que influenciaram Bourdieu

    (2011) na poca da produo de seu livro A distino, abriram espao e deram lugar a fenmenos

    tpicos da cultura visual que impera na atualidade: possuir um determinado produto da moda,

    encaixar-se no modelo de corpo e beleza veiculado pela mdia, ser popular nas redes sociais...

    O texto de Homenagem em si mesmo uma ode ao narcisismo e culto ao corpo e ao

    hedonismo da modernidade tardia:

    Esta uma homenagem a todos vocs que me ajudaram a chegar at aqui. A todos os

    chuchus que eu comi este ano, aos pepinos fatiados, baby cenouras e quinoas que acalmaram

    meus momentos de ansiedade. Uma justa homenagem s leguminosas e sopas ralas que

    fizeram minhas refeies menos alegres, mas que faro meu vero mais feliz. Coleo alto vero Marisa. Tudo vale a pena para viver bem o vero. De mulher para mulher, Marisa.

    Na cena cinco (Figura 3), assim como na seis, possvel ver a modelo inebriada com sua

    prpria imagem ao espelho. A personificao de Narciso12

    .

    Figura 3 Cena 5 Reproduo Homenagem

    12 Mito da Antiguidade sobre aquele que morreu consumido pela autoadmirao.

  • PPGCOM ESPM ESPM SO PAULO COMUNICON 2013 (10 e 11 de outubro 2013).

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    Nesse momento de satisfao e exaltao da prpria imagem, a Marisa aproveita para

    associar sua marca a esse sentimento, inserindo discretamente sua logo no canto superior esquerdo.

    Indiretamente, diz que se voc comprar esse short rosa por R$ 39,99, em uma das lojas da rede, ao

    vesti-lo, ele servir perfeitamente ao seu corpo de modelo caucasiana (como mostrado na cena

    anterior) e nem voc ir resistir a tanta beleza.

    Para alcanar sucesso nessa empreitada, como diz o texto do comercial: Tudo vale a pena

    para viver bem o vero. O tudo a ser feito apresentado entre as cenas nove e 13 de

    Homenagem. Essa sequncia revela raiva, ansiedade e nervosismo e, em alguns momentos,

    desespero: o close em uma mo feminina sobre o brao de um sof, com os dedos tamborilando

    (cena 9); uma mulher dando pequenos pulos no mesmo lugar, como um chilique (cena 10); um

    superclose no nariz/boca de uma mulher mordendo a ponta de um lpis (cena 11); duas bexigas

    cheias, quando uma delas estoura (cena 12). O pice o plano fechado da cena 13 nos ps descalos

    de uma mulher sobre uma balana (Figura 4). As unhas pintadas de vermelho chamam a ateno na

    cena, na qual os dedos levantam-se e abaixam-se, esperando. Pela velocidade com que passa a cena,

    no possvel identificar o peso ao assistir o vdeo, mas congelando o frame possvel perceber

    que o resultado gira em torno dos 40 ou 50 quilos. No possvel dizer com exatido, pois os

    nmeros no so mostrados, mas deduz-se serem esses valores pelos outros numerais que aparecem

    na tela (0 a 10 kg e de 100 a 150 kg).

    Figura 4 Cena 13 Reproduo Homenagem

  • PPGCOM ESPM ESPM SO PAULO COMUNICON 2013 (10 e 11 de outubro 2013).

    10

    A cultura contempornea centra, cada vez mais, sua ateno sobre o corpo e a busca

    incessante por sua pureza (ou ideal). A meta [...] vencer no mercado das aparncias, ter sucesso

    ou eficincia [...] O termo fitness [...] como uma palavra de ordem que incita a se adequar ao

    modelo hegemnico (SIBILIA, 2012a, p. 2, grifos da autora). Corroborando Hall (2006), a autora

    destaca que h um declnio da subjetividade e, portanto, as aflies recaem sobre a inadequao

    corporal. De acordo com Costa (1985 apud NOVAES, 2001, p. 38), a publicidade veicula, em

    relao ao sujeito que no se encaixa nos padres difundidos, uma ideologia de fracasso, como se

    aquele que no correspondesse ao modelo de beleza, demonstrasse sua incapacidade, sua

    impotncia diante de seu prprio corpo e no merecesse fazer parte do Olimpo.

    Nessa eugenia da beleza e do mercado, especialmente ocidental, fazer parte do padro

    responsabilidade de cada um (CASTRO, 2007; SIBILIA, 2012a; SIBILIA, 2012b; VIGARELLO,

    2006). A cultura determina o que pode ser visto, de acordo com o contexto histrico e social

    (BELTING, 2007; DOMNECH, 2011), quem ou o que no distinto o suficiente para se sacrificar

    e se adequar ao padro estabelecido socialmente deve ser combatido e extirpado, ou at mesmo,

    ignorado. Se h a proposta de alcanar um corpo padro de beleza, ento, que seja visto, admirado

    e, quem sabe, invejado. Tal situao claramente percebida na cena 21 do filme (Figura 5).

    Figura 4 Cena 21 Reproduo Homenagem

  • PPGCOM ESPM ESPM SO PAULO COMUNICON 2013 (10 e 11 de outubro 2013).

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    O plano aberto mostra o ambiente externo, com gramado, palmeiras, cu azul e sol

    brilhando, com a imagem de mar ao fundo e piscina frente, como se fosse a rea de lazer de um

    hotel no litoral. A personagem caminha, da direita para a esquerda, vestindo apenas biquni,

    sorrindo abertamente, afinal, est vivendo bem o vero. Pela primeira vez no comercial, h outras

    pessoas com a modelo, compondo o ambiente: mulheres tomam sol, homens passam andando, h

    uma boia na piscina. Assistindo com ateno possvel perceber uma das mulheres ao fundo,

    usando um vestido ou sada de praia e deitada sobre uma espreguiadeira, tirando os culos escuros

    para olhar a personagem passar de biquni. A situao deixa transparecer inveja, alm da surpresa

    pela bela mulher que est ali passando com seu biquni adquirido em uma das lojas Marisa, claro.

    Consideraes finais

    De esttica agradvel aos olhos, Homenagem talvez peque por um alegado humor

    inexistente, deixando emergir uma viso limitada e preconceituosa sobre beleza e culto ao corpo e

    magreza a qualquer custo. Adicione a essa receita o fato da abordagem utilizada passar longe da

    realidade do pblico principal da Marisa, que a classe C, e o contrassenso da marca ter uma linha

    especial de roupas plus size. A distinta personagem do comercial se encaixa no padro, mas no

    serve de modelo para o maior pblico da empresa. Vastegaard e Schroder (2004) afirmam, no livro

    original de 1985, que [...] de todo essencial estar em contato com a conscincia do leitor

    [consumidor], primeiro para captar sua ateno e, segundo, para predisp-lo a favor do produto

    anunciado. Por isso, os anunciantes tm de agradar aos leitores e jamais perturb-los ou ofend-los

    [...] (p. 185). Tarefa de casa que no foi feita pelos setores de marketing e propaganda da empresa

    e de sua agncia de publicidade.

    A beleza contempornea a do magro, do jovem, do sucesso. Essa a realidade de uma

    sociedade que privilegia a rapidez, o imediatismo e a excessiva importncia da superfcie das

    imagens condicionadas, produzidas e incessantemente consumidas por nossa cultura. O corpo da

    atualidade passa a ser, acima de tudo, um produtor de sentidos e identidade (LE BRETON, 2012;

    PROCHET, 2004), bem como de hierarquizao e distino social (BOURDIEU, 2011). Vale

    lembrar que a mdia um dos principais fatores que influenciam na construo da imagem corporal,

    que a concepo que se tem acerca do corpo e determina a forma como nos relacionamos com

    nossa materialidade. Mas como bem discute Hall (2006), o momento de transformaes e

  • PPGCOM ESPM ESPM SO PAULO COMUNICON 2013 (10 e 11 de outubro 2013).

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    nenhuma moda ou modelo cultural tem se perpetuado indefinidamente. Para a satisfao das lojas

    Marisa, que deve estar esperando a onda passar.

    Referncias

    BACCEGA, Maria Aparecida. Introduo Consumo e identidade: leituras e marcas. In. BACCEGA, Maria Aparecida (Org.). Comunicao e culturas do consumo. So Paulo: Atlas, 2008.

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    BELTING, Hans. Antropologa de la imagen. Buenos Aires: Katz Editores, 2007.

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    CONNOR, Steven. Cultura ps-moderna: introduo s teorias do contemporneo. So Paulo: Loyola,

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