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Possibilidades e limites do currículo escolar
frente a situações de violência doméstica contra crianças
Eixo Temático 4: Pesquisa, Políticas Públicas e Direito à Educação
Juliana Fonseca de Oliveira Neri
Mestre em Educação: Currículo (PUCSP)
Branca Jurema Ponce
Coordenadora do Programa de Educação: Currículo da PUCSP
Orientadora da Pesquisa
Com a universalização do acesso ao Ensino Fundamental, a escola pública tem se deparado com
desafios que estavam escamoteados no modelo educacional que predominou no Brasil até os anos 1990.
Com a entrada de novos sujeitos, a escola se vê desafiada a repensar seu currículo e sua função social.
Um dos desafios está na forma de lidar com a violência doméstica contra a criança, que impacta o
currículo escolar e deixa de impulsioná-lo a exercer sua função social. Quando a escola silencia,
ignorando os sinais de que algo está prejudicando o desenvolvimento da criança, o currículo escolar trai
seus próprios objetivos de busca.
O Estado brasileiro continua oferecendo um atendimento precarizado, setorializado e desarticulado
em casos de violência doméstica notificados. É evidente o descaso para criar e efetivar as políticas
públicas para conhecimento e enfrentamento do problema, com destaque para a não produção de dados
oficiais para delinear as especificidades de quantos e quais tipos de violência contra a criança têm ocorrido
no ambiente doméstico. Além da escassa produção de dados, há uma expectativa de números elevados
de casos que não são notificados.
Diante dessa situação, este artigo busca contextualizar a construção da concepção de infância e
sua relação com a VDCA e apresentar possibilidades e limites da escola para contribuir no enfrentamento
da questão. O artigo se construiu a partir da dissertação de mestrado que desenvolveu uma pesquisa
qualitativa que analisou dados obtidos nos grupos focais (realizados com professores, gestores e
supervisores de 3 escolas de ensino fundamental I do município de Osasco - SP) e documentos
disponibilizados pelas escolas (PEPP, PTA, avaliação institucional de2012) além de levantamento de
dados quantitativos do contexto amplo do país, da região metropolitana oeste de São Paulo, onde se
localiza Osasco, para traçar um amplo panorama da situação antes de analisá-la na escola. Também foi
realizado um levantamento bibliográfico sobre possibilidades da escola no enfrentamento à VDCA.
Pretende-se que este artigo deixe mais nítidas algumas formas pelas quais a escola possa
encaminhar adequadamente os casos de violência doméstica, trabalhar a temática com educandos e toda
comunidade escolar contribuindo na prevenção e na construção de outra cultura de infância, reforçando a
luta para que o sofrimento de milhares de crianças não seja mais silenciado.
1. O contexto da violência doméstica contra a criança e o adolescente (VDCA)
A VDCA precisa ser analisada de forma contextualizada, numa perspectiva crítica, diante das
implicações que a envolvem. Apesar de pesquisas na área de direitos humanos, serviço social, saúde e
psicologia demonstrarem altos índices de casos notificados no Brasil, chama a atenção a expectativa de
casos não notificados, o que prejudica a possibilidade de criação de políticas e ações de prevenção e
intervenção. Prevenir se mostra indispensável pois pesquisas internacionais revelaram que 90% dos casos
de violência fatal foram precedidos de outros tipos de violência, o que demonstra que elas poderiam ter
sido evitadas caso houvesse denúncia e intervenção adequada do Estado.
Guerra (1998, p. 32-33) conceitua a VDCA, destacando que ela representa todo ato de omissão,
praticado por pais, parentes ou responsáveis contra crianças e adolescentes, que causam dano físico,
sexual e ou psicológico à vítima e que implicam uma transgressão no poder/dever de proteção do adulto e
numa coisificação da infância, na negação do direito que crianças e adolescentes têm de ser tratados
como pessoas em condição peculiar de desenvolvimento. Segundo Azevedo e Guerra (2012), há
diferentes tipos de violência doméstica: física, sexual, psicológica, negligencial, testemunhal e fatal.
Sabe-se que além dos casos registrados, muitos são silenciados por uma sociedade omissa que
naturaliza a VDCA, o que impede que tenhamos uma visão exata do problema e maior atenção no
investimento em políticas públicas de enfrentamento ao problema. Tal dessensibilização pode ser
explicada pelo fato de a ideia de infância ser historicamente recente.
A concepção de autoridade despótica presumia a obediência incondicional dos filhos aos pais na
antiguidade clássica. A criança era vista como um bem, insignificante, descartável até a modernidade, o
que explica algumas práticas vigentes nessa época e que hoje nos parecem chocantes. O infanticídio era
tolerado até o fim do século XVIII, ainda que tivesse sido severamente proibido pela Igreja a partir da
queda do Império Romano (século V). Com a instituição de códigos penais, o infanticídio passa a ser
considerado crime, possibilitando seu registro médico-legal. Até então, muitas crianças mortas em
“acidentes domésticos”, eram vítimas de ações ou omissões fatais perpetradas pelos pais. Surgem em
1865 as primeiras sociedades protetoras da infância em Paris. Intensificam-se as pesquisas sobre essa
temática na Inglaterra e nos EUA. As estatísticas de ocorrência de óbitos de crianças em família passam a
ser instrumentos no combate do fenômeno que passa a ser visto como transgressão do poder tutelar dos
pais, condenável e por isso, podendo ser combatido. Essa mudança de perspectiva influenciou para que
emergisse na primeira metade do século XX a concepção de criança como valor. Somado a isso, nos anos
1970, fruto do movimento feminista, as violências no lar começam a ser desveladas. Passa-se então para
a construção da mitificação da infância. A idealização da infância contribuiu para compensar quem vive em
condições violentas, mas é preciso destacar que a crença na necessidade de preservar a vida infantil teve
mais razões decorrentes de considerações econômicas do que reflexões humanistas. O século XX foi
marcado pela luta dos direitos humanos e pelo combate à exploração da infância no trabalho, agravada na
Revolução Industrial. Surgem então, algumas iniciativas legais voltadas à garantia dos direitos da infância:
Declaração de Genebra (1923), Declaração Universal dos Direitos da Criança (1959), Convenção Sobre
os Direitos da Criança (1989, assinado pelo governo brasileiro em 1990), defendendo a vida, o direito à
sobrevivência e o desenvolvimento infantil (AZEVEDO e GUERRA, 1998).
No Brasil, estudos sobre diferentes populações indígenas registram o infanticídio tolerado e
legitimado quando a criança fosse definida como “outro” (por ser fruto de união com inimigos da tribo, por
vingança, quando possuíam alguma deformidade ou quando eram filhos de marido anterior (exemplos:
Guaikuru e Tapirapé). No período colonial, a idealização da criança vista como o anjo católico (tradição
jesuítica), tornava a morte da criança pequena uma felicidade. No período imperial destacam-se as mortes
e o abandono de crianças relacionados à pobreza ou à vergonha (filhos ilegítimos ou adulterinos), numa
sociedade estruturada entre classe alta agrária ou urbana, escravos e uma classe intermediária de
população pobre, livre, urbana. No período republicano passa a ser considerada como bem valioso, útil
enquanto projeto de homem produtivo. Nesse período surgem a psicologia e a pediatria e os movimentos
de promoção dos direitos que suscitam a concepção de morte de crianças como algo inaceitável e
criminoso dentro do modelo burguês de família. Emergem na segunda metade do século XX pesquisas
sobre a situação da infância no Brasil, com maior incidência a partir dos anos 1980 como forma de
subsidiar políticas públicas capazes de garantir a todas as crianças o direito à vida e uma qualidade de
vida digna da pessoa humana. Estudos sobre “acidentes” no lar começaram a demonstrar que não eram
tão acidentais assim e portanto, eram evitáveis.
Segundo Priore (2009), a infância brasileira foi marcada pelo abandono, trabalho infantil e por
pouca ou nenhuma escolarização. Desde o período colonial, a criança desamparada pela família era
também desamparada pelo Estado, que em vez de proteger, por muitas vezes intensificou políticas
higienistas e violências institucionais. Com o longo período de mudanças políticas e com a intensificação
dos movimentos populares no Brasil (movimento dos meninos e meninas de rua, por exemplo) o país
passou a reconhecer a criança como sujeito de direitos (e não mais como menor, em situação irregular,
institucionalizando a infância como objeto de controle do Estado, como no período entre 1889 e 1985,
marcado pelo Código de Menores de 1927, pelo Serviço de Atendimento ao Menor, pela FUNABEM e
código de Menores de 1979) e com necessidade de proteção, chegando a tornar-se signatário da
Convenção Internacional dos Direitos da Criança em 1989 e promovendo mudanças na legislação voltada
para a criança e para o adolescente (concebendo toda criança como sujeito em condição peculiar de
desenvolvimento – Estatuto da Criança e do Adolescente -ECA, artigo 6o).
Quando o Brasil se tornou signatário da Convenção Internacional dos Direitos da Criança já se
comprometeu a assegurar a sobrevivência e o desenvolvimento da criança (artigo 6), o que implica, dentre
outras questões, que a escola reflita sobre a questão da VDCA com toda comunidade escolar. O texto do
Plano Nacional de Educação de 2010 e o texto referência da Conferência Nacional de Educação de 2014
reconhecem a importância de a escola refletir sobre o ECA, sobre documentos como o Plano Nacional de
Educação em Direitos Humanos (PNEDH) e Diretrizes Nacionais para a Educação em Direitos Humanos
(de 2012), por exemplo. Também se mostra importante um estudo com a comunidade escolar sobre a
Portaria no 936, de 18 de maio de 2004, que aborda a Estruturação da Rede Nacional de Prevenção da
Violência e Promoção da Saúde e a implementação de núcleos de prevenção à violência em Estados e
Municípios.
Apesar do avanço na legislação, percebe-se na vida cotidiana que as mentalidades ainda não
mudaram. Nota-se uma naturalização da VDCA que pode ser explicada pelo processo de construção da
concepção de infância, determinada pelos contextos social, político e econômico e que não reconhece a
criança enquanto sujeito de direitos. Sobressai ainda a prática de “educar” por meio da força, da punição
física, em detrimento da reflexão, do diálogo, da construção de relações horizontais entre adultos e
crianças.
Essa cultura gera os altos índices de casos de negligência, violência sexual, psicológica, fatal, que
demonstram a invisibilidade da infância detentora de direitos, conforme podemos observar nos dados
colhidos pelo Laboratório da Criança do Instituto de Psicologia da USP (LACRI) entre 1996 e 2007. Os
dados levantados com a polícia, com o Conselho tutelar e com a Justiça da Infância nos 3 meses iniciais
de cada ano da pesquisa abrangiam todas as modalidades de VDCA e entravam na estatística apenas
uma vez mesmo que houvesse denúncia para múltiplos órgãos de proteção do município. Tabela 1 – Modalidade de VDCA – incidência pesquisada
Ano
Modalidade de VDCA (Violência doméstica contra crianças e adolescentes) - Incidência pesquisada
Violência física Violência sexual Violência psicológica Negligência Violência fatal Total de casos notificados
Qtd % Qtd % Qtd % Qtd % Qtd % Qtd %
1996 525 44,0% 95 8,0% 0 0,0% 572 48,0% 0 0,0% 1.192 100,0%
1997 1.240 60,1% 315 15,3% 53 2,6% 456 22,1% 0 0,0% 2.064 100,0%
1998 2.804 22,2% 578 4,6% 2.105 16,7% 7.148 56,6% 0 0,0% 12.635 100,0%
1999 2.620 39,3% 649 9,7% 893 13,4% 2.512 37,6% 0 0,0% 6.674 100,0%
2000 4.330 38,9% 978 8,8% 1.493 13,4% 4.205 37,7% 135 1,2% 11.141 100,0%
2001 6.675 32,9% 1.723 8,5% 3.893 19,2% 7.713 38,1% 257 1,3% 20.261 100,0%
2002 5.721 35,8% 1.728 10,8% 2.685 16,8% 5.798 36,3% 42 0,3% 15.974 100,0%
2003 6.497 31,3% 2.599 12,5% 2.952 14,2% 8.687 41,9% 22 0,1% 20.757 100,0%
2004 6.066 31,0% 2.573 13,2% 3.097 15,8% 7.799 39,9% 17 0,1% 19.552 100,0%
2005 5.109 26,5% 2.731 14,2% 3.633 18,9% 7.740 40,2% 32 0,2% 19.245 100,0%
2006 4.954 26,7% 2.456 13,2% 3.501 18,9% 7.617 41,1% 17 0,1% 18.545 100,0%
2007 2.940 25,1% 1.057 9,0% 2.285 19,5% 5.422 46,3% 10 0,1% 11.714 100,0%
Total 49.481 31,0% 17.482 10,9% 26.590 16,6% 65.669 41,1% 532 0,3% 159.754 100,0%
Fonte: LACRI-USP. Disponível em: <www.usp.br/ip/laboratorios/lacri>. Acesso em: 15 out. 2011
Ainda que a quantidade de casos notificados expressos na tabela sejam alarmantes, é preciso
atentar para os casos não notificados. Um exemplo disso é o caso de violência fatal entre 1996 e 1999. O
fato de não haver notificação de casos nesses anos precisa ser refletido a partir da concepção de violência
fatal que culminou no registro de casos nesses anos possivelmente como acidentes ou como causas
naturais, escamoteando a VDCA fatal, invisibilizando-a.
Diante desse quadro e da expectativa de casos não notificados, nem a escola e nem os familiares
podem ficar omissos pois, segundo o artigo 227 da Constituição Federal do Brasil (1988), é dever da
família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente com absoluta prioridade o direito
à vida, à saúde, à educação, à dignidade, ao respeito colocando-os a salvo de toda forma de negligência,
exploração, violência crueldade e opressão. O ECA também reafirma o dever de assegurar a dignidade e
colocar a criança a salvo de toda forma de negligência, violência e opressão, ressaltando também no
artigo 7o que a criança e o adolescente têm direito à proteção à vida e à saúde, mediante a efetivação de
políticas sociais públicas que permitam o nascimento e o desenvolvimento sadio e harmonioso, em
condições dignas de existência.
2. Limites da escola no enfrentamento à VDCA
A escola não está isolada do contexto social no qual está inserida. Em relação à VDCA ela reflete
as dificuldades que a sociedade tem para lidar com a questão. Demonstra limitações para a
implementação de uma educação com qualidade socialmente referenciada que construa conhecimentos
que embasem o educando para a sua intervenção no mundo, com entraves para abordar temas que são
“tabus” da sociedade em seu currículo (organizado em tempos e conteúdos que dificultam abordar uma
temática emergente e constante no cotidiano da escola). É prejudicada pela lógica capitalista da formação
de professores, que mercantiliza a sua atuação tornando-a isolada, fragmentada e superficial, sem que
responda à necessidades de conhecimentos dos educandos e também pelas condições estruturais
(número de alunos por sala de aula que dificulta que o professor consiga observar melhor o educando,
além de falta ou desconhecimento de materiais que abordem a temática). Soma-se às limitações a
desarticulação com a rede de proteção e o desconhecimento ou a descrença no sistema de garantia de
direitos.
Apesar das garantias da legislação citadas anteriormente, quando o ECA foi promulgado, em 1990,
havia certa resistência na escola por parte dos docentes ao reconhecimento da criança como sujeito de
direitos. A escola e o currículo estavam pensados para preparar a criança e o adolescente como se fosse
uma mercadoria qualificada para o trabalho. Por outro lado, a criança era pensada como futuro adulto e
somente quando chegasse a tal teria direitos (Arroyo, 2009). Em contrapartida, numa concepção crítica de
educação, o currículo escolar se compõe inserido na moldura mais ampla das determinações sociais,
permitindo repensar o sentido de suas ações, comprometendo-se com o processo de hominização e
libertação histórica de construção do homem coletivo, político que produza conhecimentos para intervir no
mundo e que busque, por meio de reflexões interdisciplinares a reflexão sobre a VDCA quando a realidade
local apresentar indícios de que essa questão pode estar silenciada, ou quando os educandos gritarem (o
que pode se dar muitas vezes silenciosamente) por socorro.
O não reconhecimento da criança enquanto sujeito de direitos influencia diretamente nas práticas
curriculares da escola, no fato de a escola ter dificuldades de abordar tal temática. Uma pesquisa realizada
em 2008 com estudantes de licenciatura (dentre os quais 91% declararam que pretendem ser educadores)
demonstrou que a resistência para tratar o tema em sala de aula provavelmente dita raízes em atitudes de
sutil desvalorização da VDCA, assim como na consciência do despreparo profissional / pessoal para
enfrentá-la (AZEVEDO, GUERRA, 2011b, p.215).
Os dados coletados em Osasco – SP (NERI, 2013) nos grupos focais e na análise documental,
demonstraram que a frágil formação (inicial e continuada) das professoras contribui para a invisibilidade do
problema pois muitas vezes não conseguem atrelar os sinais das crianças de que algo está prejudicando
seu desenvolvimento com a VDCA, atribuindo tais sinais a questões comportamentais e a dificuldades de
aprendizagem isoladamente. Outro fator que contribui para a invisibilidade da VDCA na escola é o
desconhecimento e o pouco acesso a materiais que tratem da temática ou do impacto da VDCA na
aprendizagem (em todos grupos focais a VDCA foi relacionada com dificuldades de aprendizagem).
As participantes também alegaram “falta de tempo” para perceber o aluno como um todo diante de
salas numerosas e “falta de tempo” para abordar a VDCA diante de outros conteúdos que precisam ser
desenvolvidos (apesar de descreverem nos projetos eco-político-pedagógicos o ECA, os direitos e a
violência como temas a serem trabalhados pela escola e não perceberem possíveis conexões que podem
ser feitas a partir de temas já presentes nos planejamentos como “corpo humano”, “cuidados com o
corpo”, “problemas da comunidade local”, “sentimentos e emoções”, “valores”).
Algumas participantes relataram tentativas frustradas de abordar o tema, barradas pelo
descontentamento de familiares que reclamaram ora da estratégia utilizada (escrita de diários pelas
crianças, o que poderia expor a intimidade da família) ora da iniciativa de tratar do assunto (por ser um
tema “pesado” para as crianças, com relatos de familiares que denunciaram a escola na secretaria de
educação por estar falando sobre sexo com as crianças). Dessa forma, o que se percebeu foram
iniciativas isoladas de se tratar de tal conteúdo, geralmente atrelado a data comemorativa ou algum evento
(conferência lúdica), de forma superficial.
A pesquisa realizada em Osasco evidenciou o desconhecimento ou a inexistência de
procedimentos para a escola poder denunciar e encaminhar casos de VDCA (tanto procedimentos de
como lidar internamente com a situação quando surgem evidências na escola quanto do como e para
quem encaminhar cada caso). Ainda que haja algum procedimento estabelecido (apenas uma supervisora
de um grupo focal alegou ter conhecimento de uma antiga orientação para as escolas do município, que
as demais supervisoras desconheciam e que não foi citada em nenhum outro grupo focal) as participantes
dos grupos focais demonstraram desconhecimento e falta de reflexão coletiva sobre o alcance da escola
no enfrentamento à VDCA. Foi frequente nos grupos focais falas que questionavam: “até onde a escola
pode ir?” As participantes também identificaram o medo (de piorar a situação da criança em casa ou do(a)
agressor(a) ameaçar a escola) como fator que dificulta o encaminhamento dos casos, o que leva à
omissão.
Também ficou nítida a fragilidade da articulação da rede de proteção à infância pois a escola tem
pouco diálogo os serviços do território que atuam na questão. Isso justifica os relatos de ações nas quais a
escola age sozinha para tentar proteger a criança, sem se articular com outros serviços, ora realizando
tarefas que não lhe cabem na rede de proteção e ora se omitindo, dada a descrença nos demais serviços
e a alegação da sobrecarga de trabalho dos Conselhos Tutelares que não conseguem atender toda a
demanda e nem orientar adequadamente a escola sobre como proceder.
3. Construção de possibilidades no enfrentamento da VDCA nas políticas públicas e na escola
A escola, apesar de inúmeras limitações curriculares e estruturais, tem possibilidades para se
envolver no enfrentamento da questão, cumprindo sua função social, construindo justiça curricular e
promovendo mudanças e avanços na concepção de infância que impera na sociedade brasileira. Nessa
tarefa não pode atuar sozinha, precisando contar com o apoio de todo sistema de garanti dos direitos da
criança, da rede de proteção e do poder público, na construção de políticas eficazes no enfrentamento à
VDCA.
Apesar das dificuldades relatadas, as participantes dos grupos focais reconhecem a escola como
um terreno fértil para a prevenção do problema por ser um espaço em que as crianças emitem sinais que
façam a escola desconfiar da VDCA (alterações de comportamento, dificuldades de aprendizagem,
alteração no relacionamento com outras crianças ou com os adultos da escola, demonstração de
sofrimento, verbalização dos fatos de VDCA, alterações no comportamento familiar, marcas físicas).
Também destacam que na escola se estabelecem vínculos das crianças com adultos que podem ajudar a
protege-la, denunciando o caso ao Conselho Tutelar. Reconhecem a importância do ambiente escolar
para a criança expressar o que sente e buscar ajuda num espaço que não seja a família. Alegam também
que a escola pode reunir a comunidade para refletir sobre a prevenção do problema. Nas avaliações
institucionais de 2012, foram destacadas como práticas que precisam avançar: melhorar as orientações
aos pais, divulgar o ECA para a comunidade e aumentar a integração entre escola e Conselho Tutelar.
Numa concepção de educação crítica, em direitos humanos, a escola tem possibilidade e dever de
se engajar no enfrentamento da VDCA. Ela tem diferentes elementos que propiciam desvelar a realidade
da infância além de mecanismos para envolver as pessoas na reflexão sobre como a ideia de infância se
construiu e mobiliza-las para a construção coletiva de planos de ação para o enfrentamento da questão.
Desse modo a escola contribui para a gradativa mudança cultural e de atitudes em relação a infância, por
parte dos familiares e da comunidade em geral, na busca da construção de uma forma de educar ou
solucionar conflitos por meio do diálogo e não por meio de coação ou violência. Sabe-se que essas ações
são embrionárias mas que o potencial articulador da escola tem oportunidade de irradiar para toda a
sociedade o compromisso com o enfrentamento à VDCA.
A incorporação desse compromisso gera um posicionamento político em relação às funções sociais
da escola e uma reflexão sobre o sentido de seu fazer, de suas ações, do currículo que desenvolve.
Também pode abrir possibilidades para que a escola forme e sensibilize a comunidade escolar em
relação ao problema e busque uma atuação interdisciplinar e um diálogo permanente entre os
profissionais da escola e da rede de proteção à infância.
A sensibilização da comunidade escolar ajuda a dar visibilidade ao problema para que saibam
identificar situações de VDCA. A partir da identificação, sugere-se que a escola atente para os cuidados
com a vítima, principalmente da pessoa que for interlocutora com a criança sobre o assunto. Para isso, é
importante que a escola identifique dentre os seus profissionais, aqueles que tem vínculos com a criança,
que possam suportar a verdade que possa aparecer e conseguir acompanhar e proteger alguém que foi
violentado para serem interlocutores com a criança sobre o assunto.
Segundo AZEVEDO e GUERRA (1998, p. 122 – 123), o primeiro procedimento que esses
profissionais da escola devem adotar é realizar uma entrevista com a criança, tentando identificar danos
físicos ou mentais em etapa inicial, visando evitar o agravo ou a continuidade da situação de VDCA. Para
isso a escola precisa disponibilizar uma sala privativa, um ambiente tranquilo e duas pessoas para
atuarem como entrevistadoras. SCODELARIO et al. (2004, p.56) ressaltam que esse profissional deve
cuidar da própria autoestima e estar preparado emocionalmente para lidar com a situação. É
imprescindível que a escola tenha registros e elabore um relatório para agilizar o encaminhamento do caso
ao Conselho Tutelar para que estes façam os encaminhamentos necessários, considerando que a criança
pode estar em situação de risco de vida.
Na continuidade do encaminhamento, sugere-se que a escola acompanhe o percurso do caso e
empenhe-se na interlocução com outros profissionais, zelando pelo sigilo mas não omitindo informações.
Sabe-se que a interlocução e os encaminhamento são difíceis mas segundo o artigo 245 do ECA, é dever
da escola encaminhar os casos, tendo em vista que a omissão é crime, com pena de 3 a 20 salários de
referência, aplicando-se o dobro em caso de reincidência.
Em linhas gerais, no interior da escola, é importante que não se adie decisões necessárias à
interrupção do ciclo de violência. A comunidade escolar precisa saber como e a quem recorrer, acionando
o mais breve possível o sistema de garantia de direitos. Para saber como e a quem recorrer, a escola
pode utilizar seu potencial formativo e articulador, cumprindo a sua função social de construir
conhecimentos para a intervenção na realidade, viabilizando e sediando cursos e palestras para seus
trabalhadores e toda a comunidade escolar para que conheçam e se sensibilizem em relação ao tema,
além de promover a atualização constante sobre a legislação e o incentivo da participação política em
fóruns de direitos da criança. Para isso é imprescindível também que a escola conheça os recursos de sua
comunidade e os locais de referência no atendimento de crianças e suas famílias.
Além dos procedimentos internos para a escola encaminhar os casos de VDCA, faz parte da
função social da escola a sua articulação com o sistema de garantia de direitos e com a rede de proteção
à infância. Não cabe a escola garantir sozinha todos os direitos da criança mas ela deve ser um centro
articulador dos serviços, políticas e sujeitos que estejam envolvidos na defesa, promoção e no controle
social dos direitos da criança.
Para a atuação em rede, sugere-se que a comunidade escolar reflita sobre a concepção do
trabalho em rede que implica numa organização democrática entre as instituições, entidades e serviços e
construa estratégias para conhecer a atuação de cada um no sistema de garantia de direitos (quem atua
na defesa, na promoção e no controle social, com quais ações, com qual alcance). Conhecendo a rede,
para que ela se fortaleça, sugere-se que as instituições, entidades e serviços invistam na sua
comunicação para atuarem coletivamente na criação de estratégias de prevenção e para otimizar o que
cada um tem de melhor.
Percebe-se a necessidade de integrar pesquisadores nas redes, ou reforçar o papel pesquisador
de seus sujeitos, para que sistematizem e divulguem os dados para melhor caracterização da necessidade
local, visando a construção de políticas públicas e atuação mais assertivas de enfrentamento à VDCA.
Também se mostrou oportuna a ampliação de pesquisas sobre VDCA com violentadores, para
compreender melhor as motivações que levam a VDCA e construir programas assertivos de reabilitação e
acompanhamento eficaz dos agressores para evitar a reincidência da VDCA.
O poder público também tem responsabilidades no fortalecimento da rede de proteção. A pesquisa
demonstrou que é urgente a atenção aos Conselhos Tutelares. Primeiramente no que diz respeito a
formação dos conselheiros para que possam qualificar seu trabalho e atuar na formação da comunidade.
Ficou evidente a necessidade de devolutiva dos encaminhamentos do Conselho para a escola, para que
possam atuar em conjunto, “falar a mesma língua” em cada caso. Apesar de apontar esses desafios para
os Conselhos Tutelares, as participantes dos grupos focais reconhecem que a precarização do
atendimento e a falta de devolutiva se devem ao fato de a demanda ser maior do que a capacidade de
atendimento do serviço. Cabe ao poder público reavaliar as condições de trabalho, ampliar a quantidade
de conselheiros e investir em sua formação. Além disso, evidenciou a demanda por melhorias também na
proteção social básica do município, melhorando condições estruturais de trabalho dos Centros de
Referência de Assistência Social – CRAS (estrutura física, quantidade de trabalhadores, formação) e da
rede de serviços socioeducativos e serviços de convivência e fortalecimento de vínculos (SCFV).
A pesquisa demonstrou ainda a necessidade de ampliação do acompanhamento da saúde física e
mental das vítimas no sistema de saúde, qualificando os trabalhadores para identificar casos de VDCA,
sensibilizando-os para registrar e comunicar o agravo (quando percebem que uma crise ou um ferimento
são oriundos de uma situação de VDCA), ampliando a quantidade de atendimento psicológico na rede
pública e os serviços de proteção à criança vítima de VDCA nos Centros de Referência Especializado de
assistência Social - CREAS. Na pesquisa, também se manifestou a importância da organização da política
de forma intersetorial e intersecretarial articulando saúde, educação, assistência social, cultura e judiciário.
Também cabe ao poder público uma especial atenção para a mudança nas características da
violência. A criação de políticas preventivas e intervenção do Estado nos casos de VDCA nos centros
urbanos tem levado a uma interiorização da violência, que tem crescido a passos largos e constantes nas
regiões metropolitanas próximas de São Paulo (como Osasco, por exemplo) e no interior do estado.
A atenção nos municípios do interior (e continuidade do enfrentamento à VDCA nas capitais)
depende de financiamento e promoção de programas de fortalecimento da concepção de infância
detentora dos direitos na escola e em outros espaços comprometidos com a infância. A pesquisa
demonstrou ser imprescindível e urgente visibilizar o problema, de forma que o tema da VDCA seja
abordado no currículo de todas as instituições responsáveis por alguma intervenção junto à infância e
adolescência.
Todas as propostas apresentadas como possibilidades dependem de mobilização, de articulação
de pessoas, instituições, adultos e crianças, envolvendo a todos no “não ao pacto de silêncio”. Em síntese,
a prevenção e a sensibilização dependem de constante mobilização, organização e monitoramento das
políticas. Desse modo, espera-se: a ampliação de programas informativos e fortalecimento de vínculos
entre pais e filhos (concebidos como sujeitos); a discussão da temática como conteúdo na escola (com
professores, demais trabalhadores da escola e comunidade), nas licenciaturas e na formação continuada
das instituições que atuam com a infância (para aguçar o olhar, encorajar a denunciar, notificar e qualificar
os encaminhamentos); a sensibilização, pois as mentalidades não mudam apenas com legislações planos
e pactos; a mobilização de crianças para que saibam identificar situações de VDCA contra si ou outra
criança, reconhecer pessoas, formas e lugares para pedir ajuda, não se sentirem culpadas pela violência e
serem multiplicadoras do tema com outras crianças; ampliação dos registros, sistematização de dados e
pesquisas relacionadas ao tema, que contribuam no enfrentamento à VDCA.
Conclusão
A problemática da VDCA que emerge na escola é fruto da construção histórica da concepção de
infância. Tomando a história do ponto de vista dialético, que se constrói por meio da ação humana e se
reconstrói a partir da análise e reflexão profunda sobre o modo de ser das coisas, a escola se envolve na
luta para que essa situação não seja mais assim mas que as crianças sejam reconhecidas como sujeitos
de direitos, em fase peculiar de desenvolvimento e que para isso precisam da proteção do adulto para que
possam crescer de forma saudável, numa ambiência favorável para seu avanço intelectual e físico, de
forma integral. A escola, apesar de inúmeras limitações curriculares e estruturais, tem possibilidades para
se envolver no enfrentamento da questão, cumprindo sua função social, construindo justiça curricular e
promovendo mudanças e avanços na concepção de infância que impera na sociedade brasileira. Para
isso, depende de articulação com o sistema de garantia de direitos e com a rede de proteção dos direitos
da criança, de articulação intersetorial e intersecretarial de políticas públicas, além de mobilização popular
para que o coletivo se envolva na gradativa mudança cultural que conceba a criança como sujeito de
direitos. Isso envolve recursos (governamentais e não governamentais), pessoas, diálogos, reflexões e
uma construção diferenciada de relações intergeracionais, diferente do que impõe o modelo capitalista
neoliberal (com base na desigualdade, no autoritarismo e na opressão). A construção dessa mudança
cultural que é feita com passos cotidianos, firmes, coletivos, por um mundo sem opressão é uma árdua
tarefa mas se mostra possível, necessária e urgente.
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