possibilidades de mediações no teatro: libertos a intrincados processos relacionais de troca
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Artigo de Alexandre Mate, mestre em Teatro-educação pela ECA-USP e com doutorado em História Social pela FFLCH-USP. É professor na graduação e na pós-graduação do Instituto de Artes da UNESP.TRANSCRIPT
Possibilidades de mediações no teatro:
libertos a intrincados processos relacionais de troca
Texto preparado por Alexandre Mate1 para servir de
base a proposta de discussão quanto aos processos
pressupostos pela mediação em teatro.
08 a 10 de Outubro de 2013
Centro de Pesquisa e Formação
Sesc São Paulo
1 Mestre em Teatro-educação pela ECA-USP e com doutorado em História Social pela FFLCH-USP. É professor
na graduação e na pós-graduação do Instituto de Artes da UNESP.
À guisa de sumário
I. Introduzindo o assunto: um admirável mundo velho que se transfigura
enganosamente em novo
II. No sentido da compreensão, o primeiro trabalho de enfrentamento com relação
aos conceitos fundamentais
III. Os processos de mediação no teatro: das trocas relacionais mais livres e abertas
àquelas coercitivas e encerradas em espaços considerados sagrados
IV. Apontamentos sobre o essencial em processos de mediação teatral na
contemporaneidade
V. À guisa de conclusão
Referências bibliográficas
Possibilidades de mediações no teatro: de libertos a intrincados processos
relacionais de troca
Fiz de mim o que não soube E o que podia fazer de mim não o fiz. [...] Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me. Quando quis tirar a máscara Estava pegada à cara Quando a tirei e me vi ao espelho, Já tinha envelhecido Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado. Deitei fora a máscara e dormi no vestiário Como um cão tolerado pela gerência Por ser inofensivo
Tabacaria, Álvaro de Campos.
I. Introduzindo o assunto: um admirável mundo velho que se transfigura
enganosamente em novo
Os processos relacionais (im)postos pelo viver social, envolvendo o uso de papéis e
máscaras, traz todo o tipo relação, das boas às ruins. Se ser pai, em tese, é algo que pode
ser muito bom - o amor impositivo, de quem se acha dono da vida do outro, é péssimo. No
texto Luxo e vaidade (1860), de Joaquim Manuel de Macedo, o autor lembra que, no
assunto em epígrafe, ser muito mais potente o choro de uma mãe do que eventualmente
um tapa do pai: trata-se do amor corrupto, premido por culpa emocional. Muitos dos papéis
que somos obrigados a viver têm esse tipo de mediação impositiva da moral hegemônica,
decorrente, sobretudo, dos interesses políticos do Estado e das finalidades precípuas das
religiões (sempre a serviço da moral do Estado).
Para se safar de múltiplos processos de imposição de máscaras ou rótulos danosos,
incontável número de sujeitos mostram-se/ apresentam-se de modo adverso àquilo que
pensam e são. Em 1979, em uma entrevista, Cacá Diegues usou a expressão “patrulhas
ideológicas”. Por esse viés, e pelos mais distintos “grupos patrulheiros” (ou como a eles se
referia Foucault: esquadrinhadores), adequamo-nos ao social para nos ralarmos o mínimo
possível: mesmo que isso seja absolutamente danoso ao nosso viver. Em determinadas
concepções, há uma aceitação fundamentada no preceito segundo o qual para aprender é
preciso levar muita porrada!
Em seu texto Eu sei mais não devia (1972), Marina Colasanti refere-se a esse tipo
de contrição pela dor, no sentido da busca de abstrata redenção:
A gente se acostuma a coisas demais, para não sofrer. Em doses pequenas, tentando não perceber, vai afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá. Se o cinema está cheio, a gente senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço. Se a praia está contaminada, a gente molha só os pés e sua no resto do corpo. Se o trabalho está duro, a gente se consola pensando no fim de semana. E se no fim de semana não há muito o que fazer, a gente vai dormir cedo e ainda fica satisfeito porque tem sempre sono atrasado. A gente se acostuma para não se ralar na aspereza, para preservar a pele. Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para esquivar-se de faca e baioneta, para poupar o peito. A gente se acostuma para poupar a vida. Que aos poucos se gasta, e que, gasta de tanto acostumar, se perde de si mesma.
No sentido de considerar que existe certa confortabilidade em assumir tantas e
nocivas demandas quanto às imposições exteriores, quase todos nos permitimos, por
frações de tempo variáveis, assumir papéis, personagens e máscaras alheias. Nesse caso,
e sem tantas mesuras, permitimos a manipulação exterior e, de certo modo, a mediação de
Aristófanes a serviço de contendas e demandas no inferno que há no céu da terra. Para
concluir, a consciência desse estado aparvalhante de estar, em oposição ao ser (re)orienta
um dos pensamentos mais importantes em Sartre: o inferno são os outros, mas o outro sou
eu. Acerca das personagens aqui apresentadas, e de modo bastante sucinto (e redutor),
Mefistófeles, na obra de Goethe, Fausto (1806), é o porta-voz de proposta estabelecida
entre Deus e o Diabo no sentido de verificar o grau de tolerância e de resistência do Dr.
Fausto ao hedonismo e prazeres deslimitados deste. A frase “o inferno são os outros”
ganha notoriedade e divulgação, sobretudo, no texto do filósofo francês Entre quatro
paredes (1945). Em ambas as obras, em graus diferenciados, a vida de humanos é
mediada por entes de fora ao contexto deles).
Atualmente, nosso viver apresenta-se absoluta e grandemente mediado pelo
capital. O que comemos, o que vestimos, o que queremos, o que pensamos e como
fazemos, a cor de tinta que passamos nos cabelos, as tatuagens que marcam nossos
corpos, nossos pratos preferidos, os espaços que escolhemos para viver, para o lazer, as
concepções que temos de amor, de respeito, de paciência... é tudo mediado. A palavra
escolha, dissociada de todos os seus sentidos pragmáticos, concerne, de modos mais
específicos aos recortes feitos ao já e antecipadamente estabelecido e colocado à
disposição para o consumo.
Talvez, sem tantos eufemismos se pudesse falar ou se referir à nossa vida como a
acomodação a imensos institutos de correção ou a gigantescos sistemas correcionais no
qual, e por todos os modos, tivéssemos de nos igualar àquela sociedade criada por Aldous
Huxley no surpreendente Admirável mundo novo (1932).
Em O mito de Sísifo (1942), Albert Camus apresenta a existência como absurda.
Atolados até os dentes em uma vida cujo sentido nos escapa permanentemente, preconiza
o filósofo argelino o suicídio como a única forma para alcançar a consciência de um viver,
em si mesmo, sem sentido. Portanto, a partir de tantas observações aqui apresentadas sem
as mediações necessárias, talvez seja importante conscientizar-se de que para transpor a
vida administrada seria necessário que os sujeitos (individuais ou grupais) fizessem todos
os esforços possíveis para entender como a ideologia cimentou suas potências para
reordená-las em tantas outras camadas, já naturalizadas e aceitas quase sem oposição e
contestação. Para terminar, afigurar-se-iam sábias as palavras do Senhor Keuner, em “O
esforço dos melhores”. Indagado sobre qual seria seu próximo passo, no que ele estaria
trabalhando, sendo sua resposta: “Tenho muito o que fazer, preparo meu próximo erro”.
Na medida em que o objeto da reflexão ora presente instaura-se na conjugação
entre a linguagem teatral e alguns dos pressupostos do processo educativo, o aviso aos
navegantes necessário, por entre as águas das artes do fazer relacional, centra-se,
principalmente, em sujeitos cujas obras e reflexões buscaram orientar seus pósteros no
sentido da desconfiança, da suspicácia e da dialética.
II. No sentido da compreensão, o primeiro trabalho de enfrentamento com relação
aos conceitos fundamentais
O conceito de mediação, enquanto prática pressuposta para além dos âmbitos
educacionais e jurídico, referindo-se a possibilidades de relacionamento no universo das
artes, é relativamente novo. Talvez tal prática tenha sido instituída e mais desenvolvida
entre nós em propostas de visitas monitoradas a museus. Tendo em vista as densas
camadas de significado de obras visuais, a figura do guia-orientador, lançou-se mão de
uma figura que pudesse orientar a leitura, compreensão das obras. Se isso for verdadeiro, o
conceito insere-se na vida cultural incorporando, de certo modo, o sentido educativo e o
jurídico: interpretação de obras supostamente inacessíveis ao padrão comum das gentes.
Derivado do latim, interpretação tem, em sua raiz pretium, uma palavra cujo sentido
concerne a preço. Desse modo, não é incorreto afirmar que toda interpretação pressupõe
um juízo pelo qual se paga um preço. Etimologicamente, mediatîõne, do ponto de vista
histórico, abriga o divergente e a prática da meação. O conceito, portanto, abriga em si uma
relação de oposição entre aquilo que pertence, meio a meio, a dois. Resolver as querelas
intrínsecas a qualquer questão pressuporia, no mínimo, a exposição dos dois lados em
processos de litígio. Em processos mais formais, principalmente em querelas judiciais, para
apresentar um veredicto, dois sujeitos: advogados de defesa e de acusação, ao imiscuir-se
em uma contenda, apresentam aspectos (ou lados de uma mesma questão). A
ambiguidade e evocação de motivos díspares acerca de alguém são tão intensas que
parecem serem duas a pessoa de que se fala. Evidentemente, em razão disso, nos
processos de mediação jurídicos, inquestionavelmente, há muito de tendenciosidade,
portanto, em casos dessa natureza, caem por terra os corolários segundo os quais a justiça
é neutra e arbitra tomando como mote a verdade. Juízes de práticas desportivas, também -
e do mesmo modo, ponderam, arbitram, julgam pelo percebido – interferem em uma ação
de contenda.
Preso aos interesses liberais, no sentido de criar uma lei para legitimar os direitos de
propriedade, nos livros jurídicos e também nos dicionários das ciências sociais, o conceito,
cujo sinônimo, genericamente, apresenta-se como conciliação, é apresentado do seguinte
modo:
A meação pode decorrer do regime de bens adotado no casamento. Se o casamento for o da comunhão universal, o cônjuge tem o direito à metade de todos os bens, sejam eles adquiridos antes ou depois do casamento, com exceções previstas na lei. No regime da comunhão parcial, a meação somente tem lugar com relação aos bens adquiridos durante o casamento. O mesmo se dá no regime da participação final nos aquestos, introduzido pelo atual Código. Dessa forma, quando morre um dos cônjuges, primeiro apura-se a meação do viúvo, se houver, tendo em vista o regime de bens do casamento. O restante constitui a herança, que é o patrimônio deixado pelo falecido e que é transmitido aos sucessores legítimos ou
testamentários (http://www.dicionarioinformal.com.br/meacao/ consulta em 06/10/2013, 16h42).
Como qualquer outro, o conceito de mediação não é absoluto. Diversas são as
concepções e teorias que vêm sendo construídas no sentido de trazer à tona os
pressupostos desse processo de troca. De modo clássico, pensa-se o conceito como ato
exercido por um sujeito, conjunto deles ou instrumental, cuja função específica concerne a
traduzibilidade. Nesse processo, ocorre uma aproximação entre dois universos. Por esse
ponto de vista, profissionais da educação medeiam o processo relacional entre eles e a
passagem/ transmissão de saberes, tanto existentes quanto aqueles a serem produzidos.
Com relação ao conceito de tradução, lembra George Steiner que: “[...] Pode não ser por
acaso que as raízes semânticas de ’traição’ e ‘traduction’ (em inglês ‘difamação’) não
estejam muito distantes da de ‘tradição’. Essas mesmas reverberações de significados e
intenções fazem-se sentir no conceito, já por si constantemente desafiador, de ‘tradução’
(translatio)” (2005: 13).
Em razão do exposto, pode-se articular dois pontos de vista, igualmente importantes
e significativos para pensar a prática da mediação. O historiador inglês Eric Hobsbawm,
sobre determinado procedimento de mediação, afirma:
Eu costumava pensar que a profissão de historiador, ao contrário, digamos, da de físico nuclear, não pudesse, pelo menos, produzir danos. Agora sei que pode. Nossos estudos podem se converter em fábricas de bombas, como os seminários nos quais o IRA aprendeu a transformar fertilizante químico em explosivo. Essa situação nos afeta de dois modos. Temos uma responsabilidade pelos fatos históricos em geral e pela crítica do abuso político-ideológico da história em
particular (2006: 17-8).
Mesmo fazendo alguns senões a determinadas concepções e modos de conceber a
mediação, afirma George Steiner:
O verdadeiro magistério pode ser um empreendimento terrivelmente perigoso. O mestre tem nas mãos algo muito íntimo de seus alunos: a matéria frágil e inflamável de suas possibilidades. Ele toca com as mãos no que concebemos como alma ou as raízes do ser, toque esse do qual a sedução erótica é a versão menor, ainda que metafísica. Ensinar sem grave apreensão, sem uma reverência inquietante pelos riscos envolvidos, é uma frivolidade. Fazê-lo sem se preocupar com quais podem ser as conseqüências individuais e sociais é cegueira. Ensinar com grandiosidade é despertar dúvidas no aluno, é treiná-lo para divergir. É preparar o discípulo para partir (“Agora deixem-me”, ordena Zaratustra). O verdadeiro Mestre deve, no final, estar só (2005: 128).
Em tese, para além de uma troca e confiança recíprocas, qualquer prática de
mediação pode destruir, de diferentes modos, seus supostos parceiros de relação. Mestres
podem fazê-lo, eficazmente, de modo psicológico (e, raramente, de modo físico),
sobretudo ao subjugar os espíritos ou supostos vícios comportamentais e de pensamento
dos estudantes.
Nos processos educativos, a prática da mediação ocorre permanentemente. Em
concepção libertadora, pensa-se e pratica-se a dialética como intrínseca ao processo de
aprendizagem. Nessa concepção, em tese, o mestre aprende com o discípulo e tende a
modificar-se nessa inter-relação (que é de troca e de doação recíprocas). Steiner,
fundamentado em Foucault, afirma que:
[...] ensinar pode ser considerado um exercício de poder, assumido ou não. O mestre possui poder psicológico, social, físico. Pode premir ou punir, excluir e promover. O saber, a própria práxis, definidos e transmitidos por um sistema pedagógico, por instrumentos de escolarização, são formas de poder (idem, ibidem: 14).
Feitas tais considerações, que podem ser pensadas em outras formas relacionais,
ainda que por meio de certo exageramento, característico da religiosidade do autor, talvez
seja pertinente considerar, porque a questão concerne ao processo de mediação, o
pensamento de Steiner:
O ensino ruim, a rotina pedagógica, um estilo de instrução cínico – quer seja o cinismo consciente ou não – são perniciosos. Destroem a esperança pelas raízes. O mau ensino é, quase literalmente, assassino e, metaforicamente, um pecado. Ele diminui o aluno, reduz a uma insanidade abjeta o assunto apresentado (idem, ibidem: 31).
Não existe mediação sem riscos; não existem processos de mediação que não
sejam atravessados por todo tipo de interesse, sobretudo aqueles de natureza ideológica,
porque o viver é fundamentalmente cultural. A mediação, em processos educacionais e,
também, naqueles ligados às chamadas artes da representação fundamentam-se, em
tese, no conceito de paradidomena (concerne àquilo que está sendo transmitido agora, na
presentificação do ato). Desse modo, para encerrar essa parte, buscando articular
algumas questões anteriormente apontadas, a traduzibilidade, que também tem conotação
de traição e difamação, do ponto de vista semântico, não se afastam do conceito de
tradição. Assim, do mesmo modo como para o ensino, a mediação, migrando para outras
áreas do vida, pressupõe a articulação entre o quê? O a quem? E o com quais propósitos e
expedientes o ato pode se concretizar.
III. Os processos de mediação no teatro: das trocas relacionais mais livres e abertas
àquelas coercitivas e encerradas em espaços considerados sagrados
Como já mencionado, muito antes de a representação transformar-se em linguagem
simbólica, a representação já vinha sendo praticada em espaços públicos, abertos ou
fechados, com diferentes interesses. Na tradição da popular, homens e mulheres
ressignificaram os espaços públicos para neles, apresentarem seus pontos de vista,
sobretudo com relação aos seus algozes, de qualquer natureza; suas crenças; suas
necessidades. Pelo fato de nos espaços públicos, a concorrência com inúmeros outros
agentes (passantes, às vezes com corifeus ou corifeias destacados; silhueta da cidade,
com seus odores, ruídos e armadilhas), invariavelmente, se buscou o trânsito com
tratamentos mais contundentes: o cômico, no sentido de consolidar a comunhão, e reverter
as normas sociais foi um tratamento bastante buscado. Desse modo, tendo em vista as
tradições ligadas ao fenômeno representacional, não é tão arriscado afirmar que nesse
procedimento, de natureza partilhada, havia a mediação de homens e mulheres que se
colocavam na condição de sujeitos que imitavam seus algozes, expondo-os à execração
pública pelo riso.
Durante o período chamado de clássico, na Grécia da Antiguidade, as práticas
representacionais, foram “tomadas” aos populares e ressignificadas pelo Estado. No
processo de nova roupagem, o ato representacional, na condição de mediação com
intervenção de autoridades constituídas e impostas, ganha características da literatura
(desenvolvida principalmente pelas narrativas épicas e construídas pelos interesses do
alto) de Homero; do sistema de representação político, decorrente da democracia grega e
dos rituais de natureza religiosa. Na nova roupagem, os populares são expulsos da ágora e
o teatro passa a ser patrocinado e mediado pelo Estado.
O teatro, do ponto de vista etimológico (theatron) significa “lugar de onde se vai ver”,
ao longo do processo histórico a linguagem foi estabelecida, mesclando mimese e diegese;
cenário, figurinos e maquiagem; inserção de música, de luz e outros expedientes de
natureza épica e performativa. A constituição de uma linguagem, muito sofisticada, que
congrega em si, diversas outras linguagens artísticas: música, artes visuais, cinema, dança
etc, em sua origem, recebeu o nome do lugar em que ficava o público. Plateia, em grego
(plastós) tem o significado de coisa manipulada por gesso, argila e cera... Nessa
perspectiva, o teatro, durante a Antiguidade clássica era concebido como uma forma de
linguagem constituída por símbolos por meio da qual o mundo dos fenômenos
(phainómenon) seria imitado e celebrado através de rituais. Portanto, fica bastante
compreensível, à luz do exposto, que o interesse do Estado, sobretudo com relação à
tragédia, seria promover uma identificação de natureza identificatório-emocional (catarse)
de homens e mulheres comuns. Ao depurar o espírito de seus vícios corriqueiros, a
tragédia tenderia a recolocar o humano de acordo com os interesses do Estado.
A primeira grande ação do Estado foi a criação dos Festivais de teatro. Por meio de
um intermediário ou, mais corretamente, mediador (corego ou corágo), representado pela
figura de um cidadão próspero que patrocinava e organizava a produção das peças. Cabia
a ele contratar e pagar um salário a uma espécie de diretor (corodidáscolo), pagar comida
e bebida, manter o local de ensaios e comprar todo o equipamento necessário à montagem
da obra escolhida. Ao proceder de acordo com os interesses do Estado, o corego era
prestigiado e benesses decorriam daí. Além de patrocinar os espetáculos, parece claro que
o “empresário”, também, promovia algo próximo a um processo de censura e
patrulhamento, no sentido de as obras louvarem e apontar as glórias e conquistas daquela
civilização, seus mitos e heróis. Dentre tantas outras obras importantes sobre o contexto
que aqui se trata, consultar, especialmente: Mary Renault. A máscara de Apolo. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1983. Arnold HAUSER, Arnold. História social da literatura e da
arte. São Paulo: Mestre Jou, s/d. (2vol.).
Desse modo, o primeiro tipo de mediação pública, ou interferência, de não
artistas, (caso da cultura popular) em teatro, ocorreu por intermédio de cidadãos a serviço
do Estado. Nesse processo de paracensura, o teatro para além da diversão e
entretenimento – alicerçado grandemente na farsa e na sátira -, ganha uma conotação
cívica, religiosa e política. O corego ou corágo, ao acatar as ordens e interesses exarados
pelo Estado, selecionava gente e revisava os assuntos apresentados em uma estrutura,
inicialmente literária, e, posteriormente, construída como um fenômeno, na condição de um
espetáculo, a partir de formas teatrais estruturadas para esse fim (tragédias, comédias e
dramas satíricos).
Ao longo de sua história, a linguagem teatral passou por múltiplas mudanças. Do
século V até o século XI – período batizado como Alta Idade Média, não há documentação
disponível sobre a linguagem teatral. Sabe-se, entretanto, mesmo pela total ausência de
documentação, pelo fato de nos concílios de bispos, realizados de tempos em tempos, a
linguagem teatral e os artistas serem condenados a todo tipo de sevícia, inclusive a morte.
Os grandes mediadores, na condição de censores, no mundo ocidental foram os
representantes da Santa Madre Igreja. Ao perceberem que mesmo sob todo o tipo de
ameaça e proibição, os artistas populares (re)apareciam como erva daninha e o povo deles
gostava, a partir do início da Baixa Idade Média, os representantes da Igreja tomam para si
a linguagem teatral e promovem, em toda a Europa, verdadeira euforia teatral. O teatro
inicia-se dentro das igrejas, desloca-se para as fachadas destas e ganha toda a comuna. A
Igreja, por intermédio de seus ideólogos e carrascos, provia e intervinha na vida, em todos
os aspectos, caracterizando-se como mediadora institucional; de modo algo próximo, os
senhores feudais e os artesãos, na condição de mediação, podiam ser apresentados como
pequenas autoridades a serviço dos clérigos, e instituídos como “mediadores-mores” (em
ato), intermediavam e o teatro reapareceu. Nesse processo, e atendo-se às práticas
teatrais, é importante mencionar que as obras ligadas à linguagem pautavam-se em
expedientes de natureza performática, tanto pelas proibições e perseguições da Igreja
quanto pelo resultado decorrente da arte mediada e repleta de tantas proibições.
Durante o renascimento, sobretudo em Espanha e Inglaterra, o teatro chegou ao
paroxismo, em termos de sistema de mediação estatal. A própria soberana Elisabeth I
(1533-1603), investiu e estimulou outros nobres a fazê-lo, na linguagem teatral e, ela
mesma, prestigiava muitos dos espetáculos apresentados em espaços especialmente
construídos para esse fim (teatro elisabetano). A partir de Felipe II (1527-1598), rei de
Espanha, e seus sucessores, durante o chamado Siglo de Oro, muito se incentivou o
teatro: tanto o popular quanto o erudito. No século XVII, na França o cardeal Richelieu
(1585-1642) – espécie de arquiteto e ideólogo do absolutismo -, não apenas protegeu
como legislou sobre a produção teatral no reinado de Luis XIII. Ao impor a tragédia como
gênero oficial, Richelieu, por meio de mediação estatal, acabou por criar opositores em
todos os países europeus, em período posterior.
Com a vitória da burguesia, em 1789, no século XIX, principalmente, surge o drama
burguês. Antes de o gênero ser instituído, o Estado francês, de 1843 a 1853, promove uma
ajuda oficial a todos os autores que ajudassem a louvar o ideário burguês, em oposição ao
teatro romântico. Por intermédio de um edito governamental, foi criada a École du Bon
Sens (Escola de Bons Modos – que concerne aos modos e virtudes burguesas). Nesse
pequeno intervalo de tempo ocorre novo processo de intervenção no teatro, à semelhança
do que o cardeal Richelieu já havia feito. Por meio desse tipo de mediação para ajuste
estético, o Estado recupera, principalmente, a obra de Denis Diderot: Discurso sobre a
poesia dramática (1758), que interessado em outro contexto, pondera sobre o teatro de seu
tempo e solicita mais naturalismo nos temas e na interpretação, que se louvassem as
virtudes do homem comum (nesse caso a nascente burguesia) e que se criasse uma
espécie de alvenaria imaginária para separar artistas do público.
Com a imposição do drama, na condição de gênero teatral hegemônico, a tranche
de vie (fatia de vida) ilusionista tende a instaurar processos de naturalização da cena. Em
tese, ter-se-ia em cena uma reprodução da vida. A vida como ela se apresentaria...
Apresentando uma paráfrase a versos de O guardador de rebanhos, de Alberto Caeiro,
ter-se-ia, exatamente, a reprodução da “[...] cruz que há no céu e que serve de modelo às
outras.” A arte na condição de simulacro. De certo modo, e sem tantas ponderações, o
teatro realista, mostrando e se escondendo da condição de imitação de certa classe social,
instauraria um tipo de mediação conscientemente camuflada. De outro modo, afinado
aos pressupostos da ideologia liberal, que alardeia e espraia na vida a necessidade de
ascensão social. Decorre desse processo, que cria um suposto e universal padrão de
qualidade e de gosto (o drama e seus expedientes arquetípicos), a divulgação de um tipo
de mediação quase universal.
Apesar disso, duas foram as oposições mais explícitas à forma hegemônica do
drama, já no século XIX, e inserida na produção erudita: o naturalismo e o simbolismo. As
primeiras denúncias apresentadas por Emile Zola (1840-1902) podem ser apreendidas por
intermédio de sua obra Romance experimental, de 1880. Por intermédio do manifestado
apresentado na obra citada, o autor francês lança as bases do naturalismo na literatura.
Em tese, o autor contesta a tranche de vie burguesa, alegando que a realidade social é
constituída não apenas por burgueses, mas por burgueses em permanente embate com os
proletários. Desse modo, ao recortar a realidade social, seria fundamental apresentar os
embates entre as duas classes. Ainda que aprisionado ao darwinismo, ao determinismo e
ao evolucionismo, o autor lança algumas bases para que as artes, na condição de assunto,
apresentassem as oposições de classe. Seu romance Germinal (1885) caracteriza-se em
obra fundamental à criação, a partir de Paris, dos chamados teatros livre. Livres das
injunções e proibições do Estado espalham-se por toda a Europa associações de
espectadores, de trabalhadores que, ao se organizarem, acabam por burlar os
cerceamentos e censuras institucionalizadas pelos governos em exercício. Na Alemanha,
a chamada Freie Volksbühne de Berlin (cena popular livre), ao ser criada e coordenada por
Erwin Piscator (1893-1966), cria uma espécie de mediação-inventário do teatro
burguês. Tratava-se de criar um teatro novo que inventariasse o mundo burguês e
denunciasse as infindas mazelas de exploração da burguesia. O teatro se politiza
finalmente, e, nessa perspectiva, chega ao seu paroxismo dialético e panfletário com o
teatro criado por Bertolt Brecht (1898-1956): a este processo de intervenção e de
desvelamento das estruturas naturalizadas se pudesse nomear de mediação pelo
espanto.
Muitas mudanças ocorreram no mundo, mas com relação à linguagem teatral - em
razão de sua natureza intrínseca, compreendendo o caráter relacional, de obra
apresentada ao vivo, com ou sem quarta parede -, pode-se afirmar que esta não mudou.
Múltiplos arranhões surgem com experiências radicais levadas a cabo pelo simbolismo
francês. No movimento, que basicamente recupera algumas características do último
romantismo alemão, os autores e criadores do movimento afirmam que, para haver teatro
seria necessário apenas um sofá. Assim, sentado em um sofá, espectadores teriam tudo o
que seria necessário para instaurar o sonho e o devaneio. Desse modo, talvez se pudesse
afirmar que, por meio desse teatro fundamentado na polissemia ao paroxismo e o uso de
múltiplos enigmas, se estivesse no âmbito de um processo de mediação inexpugnável e
para dentro de si.
Tendo o Romantismo como uma espécie de pai e o simbolismo como uma espécie
de mãe, ou vice-versa, aparecem os manifestos contrários à burguesia, seu ideário,
ideologia e manifestação artística, apresentado como “império do simulacro”. Ao
reteatralizar-se e assumir-se como teatro, na primeira década do século XX surgem, na
Alemanha o movimento expressionista e na Itália o futurismo italiano; na década de 1910,
surge na Suíça o dadaísmo e na Rússia o cubo-futurismo; na década de 1920, surge em
Paris o surrealismo. Apesar de algumas diferenças, tanto estéticas quanto estratégicas,
esses movimentos surgem a partir de manifestos; todos têm como escopo chocar e
denunciar certos acomodamentos e singularidades da belicista burguesia e vislumbram o
choque. Ao criar espetáculos em que todas as linguagem confluem e se performatizam, as
vanguardas históricas demovem tudo o que fora até então consolidado, imbricam
expedientes do teatro erudito e do popular, juntam “tudo ao mesmo tempo agora” e
propõem uma espécie de antimediação.
Invadida literalmente a “cidade luz” pelos nazistas, Jean-Paul Sartre, em 1943, tem
publicada sua obra O ser e o nada. Homens nadificados e em estado de suspensão,
desesperançados das razões de ser. A liberdade de um concerne à de todos. Surge, ainda
que sem manifestos, interesses comuns, aproximações de seus artistas, o teatro dito da
absurdidade (tomando de empréstimo conceito da obra de Albert Camus), como
manifestação sufocante, catastrófica, de memória traumática. Daí, a estupidificação
descompromissada do Dadaísmo, em sua apologia de negação a tudo: redimensiona-se;
apologias irrefreadas ao onírico (dogmatizado por Breton) buscado pelos mais heterodoxos
expedientes; aliada à consciência arquetípica do “nada a fazer” resulta em sua
superconsciência: a vida e a arte negadas em processos vitais precisam ser (re)ritualizadas
em grandes coletivos e grandes cerimoniais improvisacionais e psicodramáticos. Dessa
necessidade surge, em 1960, no Café de la Paix (na Praça de l’ Ópera, em Paris), para os
iniciados ou para aqueles que quisessem iniciar-se, o, então, teatro pânico. Originalmente,
a partir de um grupo denominado Burlesque (juntando o burlesco e o gongórico2, os já
multiartistas e primeiros arautos da tendência: Fernando Arrabal, espanhol (1932), o
chileno Alejandro Jodorowisky (1930), e o francês Roland Topor (1938), depois de tertúlias
amistosas e grande clima de camaradagem: preconizam uma espécie de caráter endêmico
(entre iguais, literalmente). Em 1962, trocam o nome Burlesque por Pânico, por conta
também do conhecimento e de certa adesão aos princípios do movimento criado em 1945,
denominado Postiço (alusão a pós tudo). No movimento havia a crença, por exemplo, que
uma revista deveria “morrer” sempre no número 1. Visualmente, os pressupostos vão de
Bosch a Matisse, tomando assento em Duchamps. Em literatura, de Góngora a Strindberg,
tomando assento em Calderón, Kafka e Poe. O movimento não veio para ficar, mas para
fincar um tipo de mediação pelo aturdimento. A raiz do nome encontra-se a palavra grega
pan, referindo-se, de certa forma, à totalidade. Retomando o conceito de “tudo ao mesmo
2 Alusão ao poeta dos séculos XVI e XVII, Luís de Góngora y Argote, como excesso de metáforas,
antíteses e inversões, amalgamando, ainda, Goya e Valle-Inclán.
tempo agora”, a ação, de recorrência mítica, ritual e psicodramática pressupõe o trânsito
com frenesis entusiasmados ou irrisões anímicas: ser absoluto na efemeridade do
irrepetível, busca no efêmero coletivo - na comunidade ritualístico-provisória - estados de
criação. De modo, absolutamente redutor, os performers do pânico buscavam, a partir de
uma obra existente, mas não partiturizada ou encerrada em si, “tirar o teatro do teatro”. O
efêmero resultante disso seria o cerimonial pânico, que deveria ser desenvolvido em
terrenos baldios, bosques. Assim como as performances futuristas, cubo-futuristas,
dadaístas/surrealistas, tais cerimoniais chamavam-se velada (do espanhol serão, sarau),
próximo das soirées e dos happenings.
Decorrente, sobretudo, das especulações irracionais dos simbolistas, criadores de
monodramas (dramas de uma única consciência), ao teatro de Luigi Pirandello
(1867-1936), surgem obras teatrais premidas pelo peso da existência, decorrentes de duas
grandes guerras mundiais. O mundo, pelo menos em grande parte da Europa, apresenta-se
inabitável. O cenário é catastrófico e a existência nadificada. Os homens, incluindo aí as
mulheres, nada podem contra um mundo arbitrário e violento. Viver é um exercício de
insuportabilidade. Da consciência do nada a fazer, desenvolve-se certa dramaturgia
desesperada e catastrofista. Alguns autores que escrevem para denunciar os terrores de
um mundo em total dissolvência. Autores como Camus, Sartre, Ionesco, Adamov, Arrabal,
Genet, de modos diversos, apresentam seus ensurdecedores e mudos gritos dissolventes.
Dentre esses autores todos, Samuel Beckett (1906-1989) se caracteriza naquele que mais
radicalizou seus assuntos e achados. Viver nadificado significa ter a consciência quanto à
suportabilidade de suportar um tríplice peso existencial: o fígado, à semelhança de
Prometeu, sendo devorado todo dia; o carregamento do mundo nas costas, à semelhança
de Atlas; a repetição sem o menor sentido, à semelhança de Sísifo. Metaforizando de modo
meio óbvio, com a dramaturgia característica do teatro do absurdo, pode-se afirmar que
tanto a dramaturgia de texto quanto a dramaturgia de cena passam a ser pesadas. Por
intermédio dessa linguagem denúncia, o sem sentido da existência chega ao seu
paroxismo. De fato, o contato com obras tão desarvorantes não permitem mais a saída
impune do teatro. Principalmente, com Beckett, o tipo de relação que se estabelece com o
teatro vai pressupor um tipo de mediação pasmada e, permanentemente, incerta.
Depois de tantas combinações e experimentações radicais, a partir de determinado
momento histórico, passou-se a usar o nome pós-modernismo com relação às obras que
coligiam momento histórico a expedientes de grande teatralidade. No âmbito do
pós-modernismo, mais próximo do momento atual, apareceu o nome-febre, pelo menos em
São Paulo, de teatro pós-dramático. De fato, decorrente das especulações desse tipo de
teatro, em que o dramático e o épico entraram em uma crise sem saída, surge o
pós-moderno e pós-dramático. De modo absolutamente redutor, mas não leviano, e na
exata medida em que se está permanentemente a representar, o único espaço para que as
“razões de ser” possam ser recuperadas e justapostas ao “ser”, será o palco. Sai a
personagem e a figura e (re)aparece a persona: num ritual de exposição a partir dos
imbricamentos entre o si o ser. O intérprete representa a si mesmo, na condição de
persona. O teatro ganha um caráter confessional e ritualístico no qual o ser se apresentaria
em potência. O processo decorrente de tal tipo de exposição talvez possa ser chamado de
mediação ensimesmada.
Na medida em que as mediações em teatro, ao longo da história, foram praticadas a
partir dos mais diversos interesses e interveniências, no sentido de autoproteção ou
condenação do diferente, realmente não se pode afirmar que processos dessa natureza
sejam “bons em si”, que a mediação seja sempre positiva. Dentre outras questões, é
preciso buscar a compreensão e os motivos da mediação ou sujeito mediador: em nome de
quê ou de quem se age. Analisar contextos e contendores nesse processo de embate é
sempre fundamental.
No sentido de apresentar, mesmo provisoriamente, uma tese e um ponto de vista
decorrentes da reflexão aqui desenvolvida, ainda que estes possam provocar polêmica,
penso ser fundamental questionar: Além dos sujeitos da criação (que fazem uma série de
escolhas para se colocar em situação), a mediação em teatro corresponde/ instaura-se
fundamentalmente pelo conjunto de expedientes de que se lança mão para a apresentação
de um espetáculo.
De outro modo, o que ocorre no momento em que o fenômeno teatral (espetáculo)
se apresenta? Que tipos de relação decorrem e se instauram do espetáculo, na condição
de mediador? Nesse processo socialmente relacional, tomando o universo simbólico
(refletindo ou refratando o real) como se entende os interesses emocionais e ideológicos da
forma?
Parafraseando Bertolt Brecht, novamente, e agora a partir do poema Perguntas a
um trabalhador que lê: “Tantas histórias./ Tantas questões.”
IV. Apontamentos sobre o essencial em processos de mediação teatral na
contemporaneidade
A cidade não conta seu passado, ela o contém como as linhas da mão, escrito nos ângulos das ruas, nas grandes janelas, nos corrimãos das escadas, nas antenas dos para-raios, nos mastros das bandeiras, cada segmento riscado por arranhões, serradelas, entalhes, esfoladuras.
As cidades invisíveis. Ítalo Calvino.
Em obra absolutamente memorável, Walter Benjamin desenvolve reflexão sobre a
produção teatral, tomando como referência as obras de Bertolt Brecht (1898-1954), o teatro
épico-dialético e a consideração segundo a qual o teatro se caracteriza em um experimento
estético-social. Dos diversos aspectos levantados e analisados por Benjamin, ganha
destaque as possibilidades de relação estabelecidas efetivamente no palco, e que
pressupõem um rico processo de confrontos e de contradições muito mais importantes do
que aqueles demandadas pelo texto. Nessa perspectiva, é preciso, segundo o filósofo
alemão, aterrar o fosso de orquestra, que se caracteriza (também peal sua origem sagrada
– orkestra) em uma espécie de abismo separatista entre intérpretes e público. Por
intermédio das proposições de Brecht, ao ganhar novos significados o palco se transforma
em uma espécie de pódio. Desse modo, ao comparar o público do teatro àquele do
romance, no jogo pressuposto pelo fenômeno teatral, ou da passagem do eu do romance
para o coletivo do teatro, o jogador deveria sentir-se bem e relaxado para cumprir,
efetivamente, seu papel estético: que é também político.
O palco, na condição de pódio, abre espaço tanto para a inserção dos proletários no
espaço de representação e na condição de público. As características exigidas por um
texto para que este transforme o palco em pódio (e, nessa perspectiva, é importante não
perder de vista que o palco é um espaço privilegiado para discussão, também, dos grandes
problemas) liga-se, principalmente, a um repensar das relações: cena/público;
texto/interpretação; encenador/atores. Verdadeiro processo de embate precisa ser
estabelecido entre atores e público, a partir de assuntos históricos significativos e seus
modos de apresentação buscando o espanto e a denuncia, de diferentes modos, do
supostamente naturalizado. O palco, entendido como um espaço para transmissão e
produção de conhecimento, desenvolve um jogo no qual se ensina e, por isso, se aprende.
No teatro há permanentemente um confronto entre o que é mostrado no processo cênico
(decorrência de um longo processo de ensaio) e o comportamento na cena, tendo em vista
ser um fenômeno que só acontece com a presença do público. O antigo ator, às vezes,
avizinhava-se do pároco, no teatro épico pretende-se que esteja mais próximo do filósofo.
Dentre outras, a função do teatro épico pressupõe uma alteração das relações
pouco mudadas ao longo dos séculos. Assim, ao invés de pensar o teatro formando um
espaço mágico, seria preciso concebê-lo como um local de exposição de teses, ideias e
atitudes favoravelmente localizado. Teatro não deve ser concebido como um espaço de
produção de efeitos, mas como um local facilitador de apresentação de teses que podem
provocar novas atitudes, olhares, inquietações e posicionamentos. Nessa perspectiva,
intérpretes não devem mais ser concebidos como um imitador, mas como uma espécie de
“funcionário” que inventaria seu papel social, no contexto de que faz parte.
Com relação aos elementos da realidade, tomados como experimentos de natureza social,
afirma Brecht que é no fim, e não no começo dessa experiência, que se concentram as
situações concretas. Nessa perspectiva, o jogo estabelecido entre intérpretes e público
finaliza, quando ao final da obra, se puder debater os conteúdos da obra e o modo como
ela foi organizada e apresentada. A proposição de debater a obra caracteriza-se em
proposição socrática, segundo a qual se deve “despertar o interesse no espantado”. De
outro modo, principalmente em razão de a obra não apresentar uma resposta aos
problemas que levanta e aponta, mas pelo fato de ela apresentar pontos de vista (inclusive
classistas) diferenciados. Nesse jogo, um dos maiores desejos de Brecht se apresenta,
quer seja: a criação de uma analogia aproximativa do teatro como um ginásio de esportes,
no qual todos opinam e se caracterizam em juízes, posto seu interesse e conhecimento
com relação à prática desenvolvida: ameaçando os “saberes” e privilégios dos críticos são
ameaçados. O gesto, para além da significação dada à personagem, significa uma
ampliação social da dialética. Dessa forma, é fundamental, de acordo com as proposições
de Brecht, que “As dificuldades que surgem para o diretor em uma encenação não podem
ser resolvidos sem uma visão concreta do corpo da sociedade.” O gesto só pode ser
imitado em certa medida; desse modo, quanto mais habitual for o gesto mais difícil
apresentá-lo.
Como síntese, e de acordo com Benjamin, o teatro épico brechtiano, pressupõe, com
relação:
ao público - a criação de um lugar que deve satisfazer uma assembleia de
interessados (não uma massa hipnotizada), cujas exigências, de diferentes naturezas,
devem ser satisfeitas;
à interpretação - a representação não significa virtuosismo, mas um domínio rigoroso
do fazer teatral;
à representação - o texto já não é fundamento, mas um sistema de coordenadas no
qual se inscreverão, com novas aquisições, os resultados obtidos ao longo do ensaio e
aos achados durante a apresentação;
aos intérpretes - o encenador não dá indicações a obter um efeito determinado, mas
teses que implicam uma tomada de decisão;
ao encenador – o intérprete não é um comediante cuja função é assumir um
determinado papel, mas um trabalhador encarregado de fazer o inventário do papel
que desempenha.
Em razão do apresentado, e já atravessando toda a primeira década do século XXI,
diversos grupos de teatro da cidade, e como decorrência, principalmente da Lei 13.279/02,
que institui o Programa Municipal de Fomento ao Teatro para a Cidade de São Paulo, têm
trabalhado com diversas proposições do teatro épico. Em tese, o épico pressupõe o
trabalho com assuntos de natureza histórica, muitas vezes harmonizando o subjetivo com o
objetivo e explicitamente social; desenvolve-se buscando o trabalho com teatralidade
potencializada; não se escraviza a proposições ilusionistas; divide-se fabularmente a partir
de obra episódica; não impõe ou submete o público a quartas paredes; desenvolve-se a
partir de partitura não totalmente fechada; apresenta o trabalho de interpretação
desenvolvido por meio de polifonia, na qual os discursos da personagem e do intérprete
harmonizam-se ou contrapõe-se.
Além das características apresentadas acima, boa parte dos grupos de teatro da
cidade tem trabalhado em processos colaborativos, instituídos pela divisão de todas as
tarefas na criação e execução do espetáculo. Nessa perspectiva, pode-se afirmar que os
processos de mediação desenvolvidos na cidade, em parte significativa dos coletivos em
atividade, que transitam com o épico, desenvolvem-se por intermédio de obras que se
consolidam na condição de experimentos estético-sociais.
V. À guisa de conclusão
Atores e atrizes podem ser apresentados como mediadores do processo de criação,
antes de a obra se transformar em espetáculo. São os intérpretes os sujeitos que
apresentam, no espaço representacional – e não importa qual seja ele -, a obra que se faz
“no por entre” dos dois tipos de criadores, compreendendo os artistas e o público. O
espetáculo é fruto de um trabalho coletivo, cujas mãos de todos os sujeitos se
presentificam, de diferentes modos, mesmo que seus corpos não estejam materializados
em cena. O espetáculo é recepcionado, analisado, apreendido pelo público que - de acordo
com seus saberes e quereres -, vai traduzindo a obra simbólica e sofisticada que se faz no
aquele-agora da obra. Portanto, no espetáculo cumpre-se o processo mediatório,
decorrente de múltiplas e nem sempre harmônicas escolhas. Por meio dos símbolos
escolhidos e dos expedientes de que se lança mão, no momento do espetáculo, que é uma
obra epifânica (todo espetáculo é uma epifania) tem-se a consumação de um experimento
estético-social.
Bibliografia consultada
BENJAMIN, Walter “O que é teatro épico?” (1ª e 2ª versões), in: Walter Benjamin. São
Paulo: Brasiliense, 1985. Col. Grandes Cientistas Sociais.
BRECHT, Bertolt. Histórias do Sr. Keuner. São Paulo: Editora 34, 2006.
_________. Bertolt Brecht – Poemas 1913-1956. São Paulo: Editora 34, 2000.
CAMUS, Albert. O mito de Sísifo. Rio de Janeiro: Editora Guanabara, 1989.
COLASANTI, Marina. “Eu sei, mas não devia”, in: Eu sei, mas não devia. Rio de Janeiro:
Rocco, 1996.
HAUSER, Arnold. História social da literatura e da arte. São Paulo: Mestre Jou, s/d. (2vol.).
HOBSBAWM, Eric. Sobre história, 2a ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
RENAULT, Mary. A máscara de Apolo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1983.
STEINER, George. Lições dos mestres. Rio de Janeiro: Record, 2005.