portuguese official development aid and post-colonialist theories

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A Ajuda Pública ao Desenvolvimento Portuguesa e o Pós-colonialismo Este trabalho foi feito no âmbito do curso de Relações Internacionais da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra e visa analisar a política de Ajuda Pública ao Desenvolvimento (APD) portuguesa através da perspectiva teórica do Pós-colonialismo. O argumento inicial é de que a cooperação portuguesa hoje tem uma grande dificuldade em 1

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This was an essay written in my bachelor about Portuguese action in Lusophone africa analysed by the light of post-colonial theories.

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Page 1: Portuguese Official Development Aid and Post-colonialist theories

A Ajuda Pública ao Desenvolvimento Portuguesa e o Pós-colonialismo

Este trabalho foi feito no âmbito do curso de Relações Internacionais da Faculdade

de Economia da Universidade de Coimbra e visa analisar a política de Ajuda Pública ao

Desenvolvimento (APD) portuguesa através da perspectiva teórica do Pós-colonialismo. O

argumento inicial é de que a cooperação portuguesa hoje tem uma grande dificuldade em

produzir um discurso coerente e estruturado e acaba mesmo por obstruir lógicas de

desenvolvimento locais pela falta de substrato teórico da sua abordagem e pela sua

fragilidade institucional. O objetivo central é propor um novo enquadramento teórico,

baseado na teoria Pós-colonialista das Relações Internacionais, para melhorar a eficácia da

APD portuguesa e torná-la mais justa para os países que dela são beneficiários.

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1. Introdução e Contexto

Atualmente a Política de Ajuda Pública ao Desenvolvimento (APD) portuguesa, apesar de

sucessivos avanços, é ainda altamente descoordenada e dispersa entre diversos atores. Por

haver uma falta de direcionamento central há um fenômeno, considerado único no mundo,

que é uma grande diversidade ministerial no quadro da cooperação externa e de APD

(CAD, 2010: 54). Isto é, há uma abundância de atores que promovem políticas de

cooperação internacional o que, em conjunto com a falta de direcionamento político e de

enquadramento teórico contribui, inevitavelmente, para um quadro de desperdícios e

sobreposição de projetos (CAD, 2010: 56).

A falta de enquadramento teórico da cooperação transparece também na linguagem

que é usada nesse contexto. As propostas, diretivas e análises da ação externa portuguesa

ainda são marcadas, bem como de outras ex-potências coloniais (Stirrat, 1997: 70), por

uma linguagem pouco cuidada, e que pode ainda hoje ser vista como colonial1. Também se

evidencia, na forma como são tratados os países africanos de língua oficial portuguesa

(PALOP) no âmbito da APD, uma abordagem que ignora todo um passado histórico e

acaba por ter também uma visão também marcadamente colonial (Peixoto, 2010: 16).

Por outro lado, essa diversidade ministerial não é uma coisa nova, pelo contrário,

foi logo com a última onda de descolonização dos territórios ultramarinos, em 1974, que a

descoordenação se mostrou um problema para as políticas de cooperação portuguesas.

Segundo João Gomes Cravinho (2004: 49), essa característica é um reflexo direto das

realocações que foram feitas dos funcionários públicos com responsabilidades

administrativas nas ex-colônias. Ele argumenta também que muito, do inicio da cooperação

portuguesa, foi baseado em promover e proteger os interesses dos portugueses nas ex-

colônias, fazendo uso desses funcionários que ocupavam lá cargos administrativos e que

foram realocados para o Estado português, ele chama a esse fenômeno de “livre iniciativa

institucional” (2004: 51). Cravinho (2004: 52) argumenta ainda que:

“Caricaturizando (...), podemos dicir que a xénese da cooperación portuguesa está fortemente ligada a un proceso de apropiación descoordinada de recursos públicos por parte dalgúns funcionarios, co obxectivo de levar a cabo actividades cuxa xustificación se encontra no plano da relación afectiva que eses funcionarios nutrían con África.”.

1 Termos que são usados sem nenhum enquadramento teórico como “Comunidade local”, “população local”, contribuem para a construção de uma imagem que diferencia entre “nós” e os “outros” (Cook, 2001: 21)

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Foi apenas no início da década de 80 que os acordos oficiais de cooperação para o

desenvolvimento foram sendo organizados sistematicamente dentro de um quadro

relativamente unificador (Cravinho, 2004: 50). Com o tempo as ações foram estruturadas

de maneira a responder e a promover uma série de regras e objetivos comuns. Hoje é

possível afirmar que a cooperação portuguesa deu um salto qualitativo, reconhecendo suas

próprias limitações e procurando agir de acordo com diretivas internacionais do Comitê de

Apoio ao Desenvolvimento da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento

Econômico (CAD-OCDE)2. E, no entanto, apesar dos avanços, a APD portuguesa continua

sem um direcionamento teórico e sofre ainda de uma debilidade institucional, o que acaba

por permitir a discricionariedade dos atores nas políticas desta área.

Pode-se dizer ainda que a APD portuguesa ainda retêm um caráter passional que

adquiriu no início da sua história. Por essas razões tem da haver uma nova forma de pensar

a cooperação para que ela seja mais profissionalizada e possa ser mais eficaz em seus

projetos, respeitando, em primeiro lugar, os interesses dos países chamados de

beneficiários. Para que estes objetivos sejam conquistados, será aqui proposta uma nova

abordagem, alicerçada na teoria pós-colonialista e tendo por base os autores já referidos.

Esta análise tem por base estudos já realizados sobre a influência e os resquícios do

poder colonial nos países subdesenvolvidos, bem como sobre as suas novas formas.

Escobar (1995) construiu a ligação entre imperialismo e o desenvolvimento promovido

pelos países desenvolvidos através da teoria pós-desenvolvimentista. Da mesma forma

Cook (2001) e Vashee (1995) mostram-nos a forte influência dos países desenvolvidos na

administração e no fornecimento de APD. Dipesh Chakrabarty (1992), Gayatri

Chakravorty Spivak (1988), Edward Said (1975) e Siba Grovogui (2010) falam sobre a

teoria pós-colonialista e as respostas que esta dá aos problemas atuais.

2. O Pós-colonialismo

A preocupação central do discurso pós-colonial é em alterar as perspectivas das

teorias políticas e de Relações Internacionais. Por isso há, em primeiro lugar, um

reconhecimento de que as teorias que são hoje mais utilizadas e constantemente citadas têm

uma perspectiva que está situada no tempo e espaço. Isto é, corresponde e, por vezes,

2 Como ficou reconhecido na última análise do CAD em Portugal (2010: 11)

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reifica determinados interesses de um determinado grupo social de região e contexto

específicos (Nayak; Selbin, 2010: 2-3). Através dessa constatação, é possível perceber que

existe, efetivamente uma separação entre aqueles que criam conhecimento e são ouvidos

(as antigas metrópoles, o norte global ou ocidente3), e aqueles sobre os quais o

conhecimento é aplicado (antigas colônias, ou o sul global) (Santos, 2011: 30). Há,

portanto, um desfasamento entre sujeito e objeto da teoria, este é causado essencialmente

porque o conhecimento acerca do Sul/Periferia global era produzido por pensadores,

filósofos e teóricos da metrópole colonial ou Norte/Ocidente (Grovogui, 2010: 247). E para

além de ser produzido por um certo grupo sobre outro, esse conhecimento era e ainda é

produzido sem nem sequer ter em conta as experiências nativas, hierarquizando desde aí a

informação.

“The knowledge resulting from ‘observations’ of and about ‘natives’ was neither constitutively native knowledge nor based on native concerns. Finally, imperial knowledge was not universally accessible to natives. Not even the most dedicated metropolitan observers could make up for the political and economic processes that left vast majorities of colonial populations in abject poverty and illiteracy.” (Grovogui, 2010: 250).

Em um de seus textos mais difundidos, Dipesh Chakrabarty (1992: 2), fala da

necessidade dos historiadores do, até então, chamado Terceiro Mundo se remeterem

constantemente às obras europeias enquanto que, por sua vez, os historiadores europeus

não sentem a necessidade de reciprocar. Esse fenômeno mostra novamente a

hierarquização do conhecimento, posicionando o europeu, suposto conhecimento teórico e

universal, por cima do resto, visto como conhecimento prático, inaplicável em outros

contextos. Esta hierarquização leva à conclusão de que todo o conhecimento deve derivar

do europeu (Chakrabarty, 1992: 3), bem como todos os resultados devem convergir para o

mesmo lugar, visto que somente esse sistema é passível de ser universalizado. Sendo assim,

todo o resto do conhecimento deve ser apagado ou confinado à classificação de superstição.

Através desse discurso, em pouco tempo, histórias foram apagadas, tradições medicinais

foram rebaixadas a crendices e destituídas de valor, e muito do conhecimento tradicional

autóctone foi classificado como primitivo. Esse desfasamento entre sujeito e objeto serviu

também como uma reafirmação das teorias vindas do Norte e, como se fosse a confirmação

de uma profecia, motivou a perseguição, a utilização indiscriminada de vidas humanas, a

exterminação de sociedades inteiras e a desqualificação de culturas milenares em nome da

3 Fundada por Immanuel Wallerstein (1974), a teoria do Sistema Mundo Capitalista distingue entre países do Norte global, que concentram os centros de poder e do sul periférico, que obedecem/respondem ao centro e dificilmente se conseguem desvincular desta relação, que é fundamentalmente de dependência.

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construção de sociedades ditas civilizadas4. Muitas dessas violências, foram fruto direto ou

indireto de um discurso aparentemente despretensioso e ingênuo.

Edward Said argumenta em sua obra que esse discurso aparentemente

desinteressado e ingênuo contem um complexo aparato de manutenção da dominação do

Norte (Daddow, 2013: 235). Na sua obra Said analisa o Oriente e os mecanismos pelos

quais este foi definido por oposição ao ocidente e, por isso, representaria tudo aquilo que o

segundo não era. Said (1975: 42) mostra como essa exotização e monopolização do

discurso sobre outro perpetua, também na mentalidade do próprio colonizado, o

colonialismo e ainda vai para muito além da dominação colonial efetiva. Ele explica que

conjunto de ideias orientalistas

“(...) explained the behavior of Orientals; they supplied Orientals with a mentality, a genealogy, an atmosphere; most important, they allowed Europeans to deal with and even to see Orientals as a phenomenon possessing regular characteristics. But like any set of durable ideas, Orientalist notions influenced the people who were called Orientals as well as those called Occidental, European, or Western (…). If the essence of Orientalism is the ineradicable distinction between Western superiority and Oriental inferiority, then we must be prepared to note how in its development and subsequent history Orientalism deepened and even hardened the distinction.”.

Gayatri Spivak chamou a a essa monopolização do discurso e definição do outro de

violência epistêmica (1988: 281). No entanto, o objetivo destes autores não é propor uma

nova história ou uma mais bem contada, mas sim compreender as raízes e construções que

estão subjacentes na história oficial.

Através desta nova perspectiva será possível questionar o 'velho' conhecimento e

produzir num novo com base em novas fontes, fazendo justiça àqueles que nunca foram

ouvidos. O Pós-colonialismo se mostra especialmente útil para questionar e alterar as

perspectivas de países como Portugal que, como será argumentado a seguir, ainda mantêm

um discurso marcadamente colonial em relação às suas antigas colônias e,

consequentemente, continua por produzir desigualdades e injustiças utilizando esse tipo de

discurso na sua política de Apoio ao Desenvolvimento.

3. A Cooperação Portuguesa Hoje

Este ano foi lançado o documento Novo Conceito Estratégico da Cooperação

Portuguesa, este surge como uma tentativa de reorganizar as prioridades, os atores e as 4 Sobre algumas das violências coloniais ver Eduardo Galeano (2011).

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ferramentas de que Portugal dispõe para sistematizar todas as iniciativas no âmbito da

ajuda e da cooperação para o desenvolvimento. Este documento é um novo passo para uma

maior centralização governamental e, consequentemente, maior coerência e eficácia para a

cooperação portuguesa. No entanto, há ainda um longo caminho a percorrer para superar

alguns obstáculos, como a fragilidade da estrutura institucional dos órgãos de cooperação

portugueses, a ausência de enquadramento teórico dessas iniciativas e, fruto das anteriores,

a falta de diferenciação entre os efeitos e objetivos do investimento público do privado.

Neste trabalho serão analisados os dois primeiros e as implicações destes na concretização

das ações de cooperação para o desenvolvimento.

3.1 Fragilidade Institucional

Devido à sua curta e conturbada história, a cooperação portuguesa ainda não

conseguiu atingir um nível institucional estável. Houve desde o início, a já referida,

diversidade ministerial a qual até hoje o governo não conseguiu centralizar. Essa grande

descoordenação impede Portugal de alcançar patamares de excelência na sua ajuda. A

fragilidade pode ser verificada na quantidade de mudanças institucionais estruturais que

ocorreram em um período de apenas vinte anos. Desde 1994 foram criadas ou reformuladas

seis instituições de cooperação para o desenvolvimento5.

Muitas vezes as reformas foram encaradas com grande motivação, mas logo

voltavam a estagnar e geravam um sentimento de resignação (Cravinho, 2004: 54). Essas

constantes idas e vindas na visão estratégica da cooperação portuguesa mostram a clara

falta de solidez desses órgãos, ficando assim, sujeitos à discricionariedade dos atores e à

falta de profissionalismo dos mesmos6. No documento do IPAD sobre a cooperação

portuguesa de 1996 a 2010, o Presidente do organismo explicita que o instituto não

pretende fazer juízos de valor, e tampouco constranger a ação dos ministérios como atores

individuais da cooperação (Correia, 2011: 19), tornando latente, desde aí, a fraqueza do

organismo central como coordenador efetivo e colocando entraves à vontade de tornar a

cooperação portuguesa mais coesa e eficaz. A situação é ainda mais complicada se

verificarmos que, efetivamente, muitos ministérios agiam a revelia uns dos outros,

impedindo uma utilização eficaz dos recursos (CAD, 2010: 56). Em contrapartida, no

5 ICP, FCE, APAD, IPAD, SOFID, Camões I.P. (IPAD, 2011)6 Por exemplo a desarticulação de pontos importantes na cooperação com a entrada de Manuela Franco

como Ministra dos negócios Estrangeiros e das Comunidades Portuguesas (Cravinho, 2004: 65).

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prefácio do novo conceito estratégico para a APD o Secretário de Estado dos Negócios

Estrangeiros e da Cooperação, Luís de Campos Ferreira, reconhece o problema e afirma o

compromisso do Estado em resolvê-lo. No entanto, ao olhar de forma mais aprofundada

para o conceito, é possível perceber que esta será uma das questões centrais mais difíceis

de responder.

Para além disto, o contexto da economia portuguesa é pouco favorável. Portugal

encontra-se sob um Programa de Ajustamento Estrutural imposto por uma conjunção de

instituições, o que levou à perda de sua capacidade de decisão plena sobre seus orçamentos.

Essa incapacidade configura-se como um problema real para os órgãos de cooperação e

terá de ser superada através de outras iniciativas. Para isso, o maior esforço deve ser no

sentido de definir claramente os objetivos da cooperação e melhorar as formas de avaliação

dos projetos. Apenas assim poderá haver uma coordenação efetiva do organismo central,

identificando áreas de atuação e circunscrevendo os atores adequados a cada uma delas.

Essa resposta está diretamente associada com a outra questão central que é a falta de um

discurso coerente em termos teóricos nas propostas e avaliações portuguesas.

3.2 ausência de enquadramento teórico

Para melhor compreender as implicações deste problema, é útil observar o

questionamento feito por Grovogui (2010: 251) sobre algumas considerações teóricas de

Immanuel Kant. Será que os imperativos categóricos Kantianos podem ser uma resposta

completa para a criação de uma moral universal se ele nem sequer faz referência ou

questiona uma instituição tão poderosa e profundamente enraizada na sua sociedade

contemporânea como a escravidão? Da mesma forma, poucas tentativas foram feitas no

sentido de questionar a atuação portuguesa do passado para repensar a atuação presente.

Torna-se portanto extremamente problemático manter um discurso sem compreender as

implicações reais de se aplicar uma moral e ética universais que não foram questionadas. A

mera continuação da política de cooperação desde a época salazarista obscurece as raízes

da moral portuguesa na sua ajuda e facilita, assim, um discurso de moral neutral, universal

e inquestionável. Até mesmo o ponto de viragem da história portuguesa com as ex-

colônias, a guerra colonial, permanece axiomático, causando assim uma duplicidade de

histórias, aquela contada pelo ponto de vista da metrópole e a contada pela perspectiva das

colônias libertas.

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“De modo geral a abordagem portuguesa da guerra “colonial” está embebida numa recusa do reconhecimento de outras memórias sobre este conflito e numa falta de problematização dos conteúdos, das razões e dos projetos políticos ali envolvidos. Situação que parece reproduzir a ausência de uma verdadeira confrontação com o fenômeno colonial, isto é, o fato de que, em termos epistêmicos, Portugal nunca problematizou o que foi realmente a colonização. Pelo contrário, conservou, no essencial, uma leitura que justifica e não desafia a história ocidental da colonização. Na maioria das vezes a intervenção colonial é vista pelos portugueses como uma experiência positiva, de bons resultados. Sua essência, a violência de negar ao outro o direito de ser percebido como igual, é silenciada e relegada ao esquecimento.” (Peixoto, 2010: 17)

Por outro lado, esta falta de questionamentos não só atrapalha a APD portuguesa

como também pode vir a ser contraproducente. Portugal fornece muito da sua ajuda com

condicionalidades, ou seja, grande parte das ações tem de dar contrapartidas diretamente ao

Estado português. Isto mostra mesmo uma forma de neo-colonialismo, como argumenta

Manuel da Rocha (2004: 210) sobre o caso de Angola:

“Na verdade, o conjunto das suas exportações e importações representou praticamente 60% do respectivo Produto Interno Bruto em 1999, o que revela um continente africano voltado para fora, dirigindo-se a maior parte das suas exportações e provindo o grosso das suas importações principalmente da Europa. Esta geografia dos fluxos comerciais denuncia que os modelos coloniais de extroversão económica ainda não foram ultrapassados e que poderão mesmo estar reforçados por modalidades implícitas de neocolonialismo económico moderno, veiculadas pela ajuda pública ao desenvolvimento, que normalmente é condicionada e sujeita a uma série de regras e critérios, cujas consequências finais são o aumento das exportações dos países doadores e o regresso aos países de origem de mais de 80% da ajuda concedida.”.

Isto reflete claramente o que Grovogui (2010, 256) chamou de um aumento do défice

democrático. O grande paradoxo, ele argumenta, é que as preocupações humanitárias

passaram a ser um novo disfarce para um velho discurso de dominação.

Para além do risco de se utilizar o discurso humanitário como disfarce para a

dominação política, o Estado português reafirmou, no novo documento sobre a sua

estratégia de ajuda, o apoio a atuação de empresas nesta área (Governo de Portugal, 2014:

30), demonstrando haver ainda hoje o que Cravinho (2004: 60) chamou de “tradicional

confusão entre internacionalização e cooperação”. No novo discurso o que se sobressai é a

importância do mercado, a necessidade de internacionalização e de crescimento econômico

e a forte atuação dos privados sempre que possível (Governo de Portugal, 2014: 32). Esse

discurso é perigoso não tanto pelos seus instrumentos, mas pelos seus fins. Há poucas

referências à importância da responsabilidade no mercado e esta abordagem do

desenvolvimento pode resvalar para uma avaliação errônea dos efeitos da ajuda. Um país

pode se tornar mais estável e de economia mais aberta sem necessariamente haver um

avanço qualitativo na vida da sua população. Esta pode ser a imagem de uma nova forma

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de imperialismo, não mais baseado na dominação total e coerciva, mas sim na dependência

do mercado.

4. As propostas Pós-Coloniais

Não basta, portanto, que o Estado português forneça uma ajuda condicionada e que

este pense ser a mais adequada para o contexto africano, é preciso democratizar

verdadeiramente e permitir que haja amplas discussões, e especialmente, com os

beneficiários. É preciso dar voz àqueles que não a tem e nunca tiveram. É preciso

abandonar o caráter hierárquico, paternalista e neocolonial que o apoio ao desenvolvimento

assumiu desde o principio. Esta visão considera a Europa como o fim do contínuum atraso-

progresso. Termos como 'países menos desenvolvidos', 'subdesenvolvidos', 'em

desenvolvimento' estabelecem essa hierarquia e fortalecem a ideia de um continuum

evolutivo, cujo fim, onde a Europa está situada, é a representação máxima do progresso e

da modernidade (Chakrabarty, 1992: 3).

Ao fornecer APD sem sequer dar visibilidade aos seus resultados e aos interesses de

quem a propôs, estamos confinando o outro, ao que nós (ocidente) achamos que é melhor,

da mesma forma como a linguagem que é usada nos documentos portugueses o faz. O

termo cooperação é apenas ilustrativo, uma vez que dentro desses documentos os termos

usados passam a ser beneficiários, receptores, etc. transformando o outro em mero ouvinte

do processo. Converte o outro em ator passivo, destituído de vontade e de opinião, e leva a

concluir que não há proposições locais e nem desejos, sendo portanto possível apenas

exportar um modelo pré-definido, tanto para um país africano quanto para qualquer outro,

tendo sempre como ponto de referência a Europa. A construção que a Europa fez, como

descrito por Edward Said, com o oriente, Portugal fez com suas ex-colônias.

O pós-colonialismo assume aqui o papel de mediador entre discursos dominantes e

discursos periféricos. O objetivo não é negar tudo que está para trás, mas sim de abrir

espaços de discussão que permitam vozes dissonantes.

5. Conclusão

Depois de analisados o novo documento organizador da estratégia portuguesa de

cooperação para o desenvolvimento, é possível afirmar que ela permanece ainda com

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grandes problemas ao nível da sua definição e de seu planejamento. A falta de uma

perspectiva teórica e de um órgão centralizador das ações dificulta a coesão e acarreta

outros problemas, como a falta de capacidade para cumprir com os pontos assentes

internacionalmente sobre a efetividade da ajuda e da cooperação. Para além disso, a falta de

coesão põe em risco todos os avanços já feitos por Portugal em matéria de cooperação, e

pode levar a um retrocesso das ações e parcerias já estabelecidas. A falta de definição

teórica dificulta também a renovação do discurso e a percepção completa dos efeitos da

APD.

Assim sendo, a teoria pós colonialista pode servir de ponte entre o conhecimento da

metrópole e o das ex-colônias, criando sinergias culturais e identitárias para que seja

possível superar o legado de exclusão, exploração e dominação de um grupo social sobre

outro (Grovogui, 2010: 264). É, portanto, de extrema importância operacionalizar o Novo

Conceito Estratégico tendo em conta essas dificuldades para poder caminhar rumo a uma

verdadeira coerência da cooperação portuguesa, construindo, aos poucos, uma nova

narrativa mais justa, acessível, transparente e democrática. Para concluir, Peixoto (2010:

17) ao fazer referência sobre as construções históricas entre Portugal e Angola reafirma:

“Para escrever esta parte (e outras) de sua história os angolanos necessitam de fontes coloniais. Para reescrever sua história a partir de uma perspectiva pós-colonial os portugueses precisam aprender a valorizar as fontes produzidas pelos angolanos. Como chegar ao diálogo com estas outras narrativas é o grande desafio que os portugueses têm por enfrentar.”.

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