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ISABEL MENEZES: professores desempoderados dificilmente geram empoderamento FERNANDO ROSAS: o mundo está muito confuso estatuto dos professores Recomendação de Paris tem 50 anos direitos humanos, migrações, hospitalidade O momento da Pedagogia Social? apm completa 30 anos A Matemática não é um bicho-papão série II nº 207 verão 2016 www.apagina.pt 4 €

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Page 1: PORTUGAL É UMA REPÚBLICA SOBERANA, ROSAS: o mundo está muito ... João Barroso. Universidade de Lisboa, ... da guerra soltam os seus peões para matar e minar os elos de cultura

DE00252014RL/RCMN

PORTUGAL É UMA REPÚBLICA SOBERANA, BASEADA NA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E NA VONTADE POPULAR E EMPENHADA NA CONSTRUÇÃO DE UMA SOCIEDADE LIVRE, JUSTA E SOLIDÁRIA. [artigo 1º da Constituição da República Portuguesa – aprovada pela Assembleia Constituinte

em 2 de abril de 1976, entrou em vigor no dia 25 de abril de 1976, dois anos depois da

Revolução]

ISABEL MENEZES:

professores desempoderados

dificilmente geram empoderamento

FERNANDO ROSAS:

o mundo está muito confuso

estatuto dos professores

Recomendação de Paris tem 50 anos

direitos humanos, migrações,

hospitalidade

O momento da Pedagogia Social?

apm completa 30 anos

A Matemática não é um bicho-papão

a pá

gina

da

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ação

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Coleção a Página DISPONÍVEL NAS LIVRARIAS E NA PROFEDIÇÕESRua D. Manuel II, 51/C - sala 25 – 4050-345 Porto

www.profedicoes.pt

formação e desempenho Carlos Cardoso. Instituto Politécnico de Lisboa, Escola Superior de Educação

formação e trabalho Manuel Matos. Universidade do Porto, Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação

impasses e desafios António Teodoro. Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias, Instituto de Ciências da Educação Gustavo Fischman. Arizona State University (EUA), Mary Lou Fulton College of Education (EUA)Henrique Vaz. Universidade do Porto, Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação

lugares da educação Almerindo Janela Afonso. Universidade do Minho, Instituto de Educação e Psicologia, Departamento Sociologia da Educação e Administração EducacionalLicínio Lima. Universidade do Minho, Instituto de Educação e Psicologia, Departamento Sociologia da Educação e Administração Educacional Manuel António Silva. Universidade do Minho, Instituto de Educação e Psicologia, Departamento Sociologia da Educação e Administração Educacional Virgínio Sá. Universidade do Minho, Instituto de Educação e Psicologia, Departamento Sociologia da Educação e Administração Educacional

observatório Isabel Menezes. Universidade do Porto, Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação João Paraskeva. University of Massachusetts, Center for Policy Analysis (EUA)João Teixeira Lopes. Universidade do Porto, Faculdade de Letras

olhares de fora Ivonaldo Leite. Universidade Federal de Pernambuco (Brasil) José Miguel Lopes. Universidade Estadual de Minas Gerais (Brasil) Maria Antónia Lopes. Universidade Eduardo Mondlane (Moçambique) Petronilha Silva. Univ. de São Carlos (Brasil)

pedagogia social Adalberto Dias de Carvalho. Universidade do Porto, Faculdade de LetrasIsabel Baptista. Universidade Católica Portuguesa, Faculdade de Educação e Psicologia José António Caride Gomez. Universidade de Santiago de Compostela (Galiza), Departamento de Teoría de la Educación, Historia de la Educación y Pedagogía SocialJosé Luís Gonçalves. Escola Superior de Educação Paula Frassinetti, PortoPablo Souto. Universidade de Santiago de Compostela (Galiza)Paulo Delgado. Instituto Politécnico do Porto, Escola Superior de EducaçãoRosanna Barros. Universidade do Algarve, Escola Superior de Educação e Comunicação.Xavier Úcar. Universitat Autònoma de Barcelona (Catalunha), Departament de Pedagogía Sistemàtica i Social

quotidianos Carlos Mota. Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, Departamento de Educação e Psicologia

reconfigurações António Magalhães (c). Universidade do Porto, Faculdade de Psicologia e de Ciências da EducaçãoFátima Antunes. Universidade do Minho, Instituto de Educação, Departamento de Ciências Sociais da EducaçãoFernanda Rodrigues. Universidade Católica Portuguesa Mario Novelli. University of Sussex (Grã-Bretanha) Roger Dale. University of Sussex (Grã-Bretanha) Susan Robertson. University of Sussex (Grã-Bretanha) Xavier Bonal. Universitat Autònoma de Barcelona (Catalunha), Department de Sociología

saúde escolar Débora Cláudio. Nutricionista, ACeS Porto OrientalNuno Pereira de Sousa. Médico de Saúde Pública Rui Tinoco (c). Psicólogo clínico. ACES Porto Ocidental

textos bissextos Ana Laura Valadares M. Araújo. António Mendes Lopes. José Catarino Soares. Instituto Politécnico de Setúbal, Escola Superior de EducaçãoJúlio Conrado. Escritor Luís Souta (c). Instituto Politécnico de Setúbal, Escola Superior de EducaçãoSalvato Teles de Menezes. Fundação D. Luís I, Cascais

[trans]formações Ricardo Vieira (c). Instituto Politécnico de Leiria, Escola Superior de EducaçãoAna Vieira (c). Instituto Politécnico de Leiria, Escola Superior de Educação

visionarium João Arezes (c). Centro de Ciência do Europarque, Departamento de Conteúdos Científicos, S.M.Feira

escritas soltas Emanuel Oliveira Medeiros. Universidade dos AçoresTiago Pires. Universidade do Porto, Faculdade de Psicologia e de Ciências da EducaçãoJacinto Rodrigues. Universidade do Porto, Faculdade de Arquitectura José Maria Hernandez Díaz. Universidade de Salamanca, Faculdade de EducaçãoLuís Vendeirinho. Escritor Teresa Medina. Universidade do Porto, Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação Agostinho Santos Silva. EngenheiroAna Benavente. Universidade de Lisboa, Inst. de Ciências Sociais António Branco. Universidade do Algarve António Brotas. Professor Jubilado (Universidade Técnica de Lisboa, Instituto Superior Técnico)Cristina Mesquita Pires. Instituto Politécnico de Bragança, Escola Superior de EducaçãoJoão Barroso. Universidade de Lisboa, Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação

José Alberto Correia. Universidade do Porto, Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação Júlio Roldão. JornalistaManuel Pereira dos Santos. Universidade Nova de Lisboa, Faculdade de Ciências e Tecnologia Manuel Sarmento. Universidade do Minho, Instituto de Estudos da CriançaMaria Gabriel Cruz. Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, Departamento de Educação e PsicologiaRoberto da Silva. Universidade de São Paulo, Faculdade de Educação (Brasil)Rui Canário. Universidade de Lisboa, Faculdade de Psicologia e de Ciências da EducaçãoTelmo Caria. Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro Victor Oliveira Jorge. Universidade do Porto, Faculdade de LetrasAdelina Silva. Universidade Aberta, Centro de Estudos das Migrações e das Relações InterculturaisAntónio Mendes Lopes. Instituto Politécnico de Setúbal, Escola Superior de EducaçãoCasimiro Pinto. Universidade Aberta, Centro de Estudos das Migrações e das Relações InterculturaisFernando Faria Paulino. Universidade Aberta, Centro de Estudos das Migrações e das Relações InterculturaisFrancisco Marrano. Universidade Aberta, Laboratório de Antropologia VisualJoão Pedro da Ponte. Universidade de Lisboa, Faculdade de CiênciasJosé Guimarães. Universidade Aberta José Maria Trindade. Instituto Politécnico de Leiria, Escola Superior de EducaçãoMaria de Fátima Nunes. Universidade Aberta, Centro de Estudos das Migrações e das Relações InterculturaisMaria de Lurdes Dionísio. Universidade do Minho, Instituto de Educação e Psicologia Maria Emília Vilarinho. Universidade do MinhoMaria João Couto. Universidade do Porto, Faculdade de LetrasMaria Paula Justiça. Universidade Aberta, Centro de Estudos das Migrações e das Relações InterculturaisPaula Cristina Pereira. Universidade do Porto, Faculdade de LetrasPaulo Sgarbi. Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Brasil) Pedro Silva. Inst. Politécnico de Leiria, Esc. Sup. de Educação Ricardo Campos. Universidade Aberta, Centro de Estudos das Migrações e das Relações InterculturaisRui Santiago - Universidade de Aveiro Rui Vieira de Castro. Universidade do Minho, Instituto de Educação e Psicologia Sérgio Bairon. Univ. Aberta, Laboratório de Antropologia VisualSofia Marques da Silva. Universidade do Porto, Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação Susana Faria. Inst. Politécnico de Leiria, Esc. Sup. de EducaçãoJoaquim Escola. Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, Escola de Ciências Humanas e SociaisJosé Carlos Marques. Instituto Politécnico de Leiria, Escola Superior de Educação e Ciências SociaisMaria Teresa Santos. Universidade de Évora, Escola de Ciências Sociais

Um livro de leitura obrigatória para todos os educadores e pro-fessores, pedagogos e investiga-dores, pais e encarregados de edu-cação, bem como para políticos e cidadãos, já que percorre vários andamentos da nossa história contemporânea, analisados por José Paulo Serralheiro, entre feve-reiro de 1992 e abril de 2002, nas páginas d’a Página da Educação.

Com um título particularmente sugestivo e interpelante, Miguel Santos Guerra recorda que não há outra forma de viver a “apai-xonante questão da cidadania”, senão através de um compromis-so quotidiano com a prática da democracia enquanto escola de liberdade – liberdade teimosa-mente perseverante na defesa da convivência solidária, da justiça e da paz social.

Além da pertinência das análises, assume aqui particular evidência a articulação eficaz entre temas de política educacional, desenvolvi-dos no âmbito da produção acadé-mica, e preocupações emergentes dos contextos de ação, dando ori-gem a um discurso lógico, ainda que marcado pelo vivido. Nesta continuidade entre investigação, docência e vida, Almerindo Jane-la Afonso oferece-nos belíssimas páginas de esperança, de respon-sabilidade e de liberdade.

Uma aguda, oportuna e desafiado-ra visão das realidades educativas pelo prisma de quem abraçou a causa da qualidade da Educação para todos há dezenas de anos. Com este livro, David Rodrigues não procura criar consensos, mas, sobretudo, suscitar debates e energias de participação num sempre necessário debate sobre a Educação.

Conjunto de textos publicados nos últimos três anos, e outros utilizados em cursos de formação, que questionam os valores mais tradicionais e conservadores da Educação e procuram pensar um sistema educativo contemporâneo, equitativo e inclusivo. O livro de David Rodrigues é candidato ao Prémio Direitos Humanos, atribuí-do pela Assembleia da República.

Síntese de 10 anos de colaborações com A Página da Educação, este livro é o resultado da integração de textos escritos entre 2006-2016, agora recontextualizados, e de textos originais, mais longos, onde Ana Maria Vieira e Ricardo Vieira cruzam resultados de pesquisa e reflexão conjunta sobre Pedagogia Social, Educação Social e Media-ção Intercultural.

NOVIDADES

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S006. ISABEL MENEZES“[…] acho que faltam outros profissionais na escola, que poderiam coadjuvar o trabalho dos professores, libertar os professores para algumas tarefas e, nomeadamente, nas questões da mediação ou interação comunitária, favorecer essas redes de relação. […] há uma dinâmica própria do trabalho de ensino-aprendizagem e das exigências específicas do que os professores têm de fazer que muitas vezes lhes rouba tempo para outro tipo de atividades. Portanto, não era mau que as escolas fossem invadidas por profissionais com perfis diferentes e que pudessem contribuir para uma maior diversidade.” António Baldaia com Ana Alvim (fotografia)

014. Sim, senhor Ministro!Tiago Brandão Rodrigues herdou uma espécie de Chernobyl. Nuno Crato estendeu as radiações de efeitos nefandos às gerações vindouras; os caminhos para colmatar tudo isso não são simples, nem evidentes.José Rafael Tormenta

016. Gratuidade dos manuais ou gratuidade da medida?Admito pagar impostos para suportar um sistema de ensino gratuito; já não me agrada a ideia de pagar impostos para sustentar empresas com interesses comerciais.Henrique Vaz

018. Da relevância dos cursos profissionais A generalização dos cursos profissionais produziu efeitos que abriram reais perspetivas para o democratizar, contri-buindo para consolidar a diversidade das suas ofertas e a sua identidade.Domingos Fernandes

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Capa: Fotografia de Adriano Rangel

020. O direito dos adultos à educaçãoUma política, mesmo que modesta, aberta à pluralidade de modalidades, atores, saberes e agendas, seria certamente mais eficaz do que as derivas utilitaristas que pouco, ou nada, têm de educação.Licínio C. Lima

022. Carta a um menino que vai nascerChamar-se-á Guilherme. É o nosso primeiro neto e esta não é a carta que gostaríamos de lhe escrever. Ariana Cosme e Rui Trindade

024. ESTÁ ALGUÉM EM CASA?Portefólio de Maria João Leite

004. EDITORIALConstruir tempos de hospitalidade Isabel Baptista

028. Os espelhos de AliceA intolerância e a xenofobia proliferam quando os senhores-da guerra soltam os seus peões para matar e minar os elos de cultura. Mas então brota a escola cosmopolita, onde as histórias da história são escritas. A escola da comunicação surge sempre, porque há sempre quem a faça surgir.Pascal Paulus

030. Direitos humanos e migrações: por uma nova ci-dadaniaA cidadania não pode ser mais uma prerrogativa política que se confere ao conjunto de seres humanos de um Estado, mas antes uma prerrogativa humana que deve adquirir uma dimensão política universal concreta. Adalberto Dias de Carvalho

032. Refugiados, direitos humanos, hospitalidade e in-tegração – o momento da Pedagogia Social?A multiplicidade de iniciativas e projetos, bem como de protagonistas, merecia uma abordagem integradora quanto à dimensão socioeducativa implicada no acolhimento e na integração dos refugiados.José Luís Gonçalves

034. Repensando la integración educativaEn el proceso de integración se produce un intercambio más horizontal y recíproco, donde el grupo minoritario y el mayoritario colaboran y se enriquecen mutuamente.María Macarena Ossola

036. «El Principito» en la educación interculturalLa escuela debiera adoptar criterios firmes de acción pedagó-gica intercultural, para integrar e incluir, y no para expulsar a los niños que proceden de otras culturas, religiones, razas y lenguas o que pertenecen a otras etnias.José Hernández Díaz

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S064. ENTREVISTA Lurdes Figueiral“Não há soluções mágicas ou receitas milagrosas. A nossa busca é pela melhor forma de chegar aos alunos, para que os alunos compreendam, e existem diversas formas que têm a ver com o trabalho interativo na sala de aula, ou seja, dar mais protagonismo ao aluno.”Maria João Leite (entrevista) e Ana Alvim (fotografia)

070. Estudantes ocuparam colégios públicos no Rio de JaneiroEsta ação mostra que as juventudes estão mobilizadas para reivindicar direitos sociais básicos e de desenvolvimento social.Joana Ribeiro e Rebeca Brandão

072. Com a palavra, os alunos!Os estudantes têm feito manifestações que desafiam o neo-conservadorismo, renovando a esperança em uma juventude capaz de resistir a ameaças e golpes.Raquel Goulart Barreto

074. Novos cenários para a pesquisa em Educação no BrasilA mobilização estudantil contra a reorganização da rede escolar de São Paulo resultou no fechamento de 94 esco-las. Durante as ocupações, os estudantes transformaram as escolas em espaços de experimentação pedagógica como nunca antes visto.Roberto da Silva

076. O papel da educação no combate ao extremismo violentoOs programas de intervenção parecem mais direcionados para a vigilância e pacificação da juventude e a manutenção do status quo, e não para os desafios e obstáculos que os jovens muçulmanos de todo o mundo sentem.Mario Novelli

038. Quarenta anos da Constituição: algumas conside-rações impertinentesAté que ponto o caráter constitucionalista dos interesses que têm presidido às sucessivas revisões não tem pactuado com questões que representam verdadeiros bloqueios para o desenvolvimento do país?Manuel Matos

040. Recomendação OIT/UNESCO tem 50 anosNo dia 5 de outubro de 1966, a OIT e a UNESCO assi-naram em Paris uma recomendação relativa à situação dos docentes. A fixação do Dia Mundial dos Professores celebra aquela data.

042. Fenprof realizou congresso no PortoMaior organização sindical de professores evocou três efemérides: 50 anos da resolução OIT/UNESCO, 40 anos da Constituição Portuguesa e 30 anos da Lei de Bases do Sistema Educativo.

044. ORA DIGA LÁ… Fred Van Leeuwen O secretário-geral da Internacional da Educação esteve no Porto e falou à PÁGINA sobre os grandes desafios da organização.

046. Vozes do mundo da EducaçãoA Fenprof promoveu uma Conferência Sindical Interna-cional em que participaram 43 organizações. A PÁGINA falou com representantes de alguns sindicatos de diferentes latitudes do globo.

052. Afirmar o sindicalismo lusófonoSão várias as organizações sindicais de professores e traba-lhadores da Educação na CPLP-SE. Portugal está represen-tado pela Fenprof e pela FNE.

0568. Nova Lei privilegia acolhimento familiar e cen-tralidade dos afetosA prevalência do acolhimento familiar sobre o residencial será, provavelmente, a mudança mais significativa, pois reconhece o acolhimento familiar como um contexto mais adequado para o bem-estar da criança nesta faixa etária.Paulo Delgado

060. Austeridade high level e profissionais low cost A emergência decide habitualmente com base nos recursos sobrantes e nos serviços possíveis, e menos nos adequados. Nesta condição, é sempre possível baixar mais os níveis de apoio.Fernanda Rodrigues

062. A Matemática não é “bicho papão”Criada em 1986, a APM tornou-se num espaço de acom-panhamento dos associados, de reflexão e debate e de in-tervenção nas políticas educativas.Reportagem de Maria João Leite

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S078. ENTREVISTA Fernando Rosas “Para as pessoas da minha geração há duas vidas: uma até ao 25 de Abril e outra depois; acho que falo pelos portu-gueses em geral. É, sem dúvida, o dia mais importante da minha vida. Em todos os aspetos. Foi o dia em que tudo mudou, na nossa vida, no quotidiano, no trabalho, nas relações entre as pessoas, tudo mudou. Foi o fim de meio século de fascismo, de ditadura, de opressão, e o começo de uma vida em democracia, em liberdade.”Maria João Leite (entrevista) e Sufya Cacao (fotografia)

086. ConfessionárioPecadores e criminosos, assim nos quer a ordem social, uns mais pecadores, outros tantos menos criminosos, enquanto pecamos para matar a fome ou roubamos para sustentar o banquete.Luís Vendeirinho

087. HitchBook ou Tru(e)HitchNinguém tenta substituir a leitura de Truffaut, mas o filme de Jones é pelo menos tão importante na compreensão, na finalidade e no impacto do livro, tal como este foi na nossa compreensão dos filmes.Paulo Teixeira de Sousa

088. A des-moralização do futebolMessi, Ronaldo, Neymar, são artistas fora do comum e, como tal, deverão admirar-se, estudar-se e aplaudir-se. Mas que deles desponte ‘uma pedagogia da pergunta’ inarredá-vel: por que há tanto dinheiro para nós e tão pouco para a Educação, para a Saúde, para a Segurança Social?Manuel Sérgio

090. Cultura e EducaçãoUm organismo ministerial cuidará de promover e patrocinar tudo quanto leva à manifestação da identidade de um país, representada por uma história, uma filosofia, uma tradição e um desígnio. Tarefa difícil…Leonel Cosme

092. Passos PerdidosA coincidência de o apelido do anterior primeiro-ministro acomodar conexões com a denominação de um espaço é isco insinuante q.b. para atrair curiosos. Mas os amantes de boa literatura coloquial ficarão certamente agradados com o bónus que lhes é reservado nos diálogos do último terço do livro.

Júlio Conrado

094. Proposta modesta para dissipar confusão crónica Economistas e banqueiros confundem-se a eles próprios, desconhecendo onde acaba o ‘economês’ e começa o Por-tuguês. E o principal motivo da confusão é o bilião.José Catarino Soares

096. Comunicando no mundo das CoisasA novidade, além das pessoas, são as Coisas enquanto ‘comunicantes’. Coisas que não suportam redundâncias como os falantes.Francisco Silva

098. Focas e soldadosA seleção natural é positiva, negativa ou neutra, em termos éticos? Sabemos interpretar as lutas entre animais, mas continuamos a não interpretar cabalmente as intermináveis lutas entre humanos.Carlos Mota

100. A QueimaO Prof. S. ficou estupefacto com o convite. Apadrinhar uma turma de finalistas?! E logo de uma escola que não a sua! Nunca pensou que tal lhe poderia acontecer. Luís Souta

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A hospitalidade constitui um dos traços essenciais da mentalidade europeia, em conformidade com uma ampla tradição humanista, cosmopolita e acolhedora. Contudo, diante de atentados contra o dever universal de hospitalidade como aqueles que vem sendo praticados em relação a quem hoje bate às portas do velho continente, reclamando acolhimento, os ideais clássicos parecem ter perdido força e sentido. De certo modo, pode dizer-se que a morte trágica de mi-lhares de seres humanos nas águas do Mediterrâneo representará a morte da hospitalidade e, em última análise, a morte da própria ideia de Europa, enquanto entidade político-cultural irredutível a critérios de natureza meramente geográfica ou económica. A verdade é que onde se esperava que houvesse abertura, respeito e confiança, proliferam as lógicas de fechamento, os comportamentos excludentes e os sentimentos de medo e desconfiança, reforçados por um clima social cada vez mais marcado pela banalização da violência e do terror. Por outro lado, neste contexto, as inúmeras práticas de cidadania solidária desenvolvidas perseverantemente por uma multiplicidade de cidadãos, tendem a ser desvalorizadas e obscurecidas, gerando um fenómeno de invisibilidade social de consequências perversas e extremamente injustas em re-lação ao esforço real dos atores, coletivos e individuais.Convocando de modo especial o papel crucial da educação, tanto na sua vertente escolar como na perspetiva mais ampla da pedagogia social, pensamos que a resposta às tragédias humanitárias e às situações de urgência, designadamente aquelas que presentemente desafiam os universalistas de todo o mundo, é indissociável de uma cultura de hospitalidade prática, viva e ativa. Ou seja, não basta abrir as fronteiras ou apelar para as estruturas político-jurí-dicas nacionais e internacionais, é preciso que, nas diferentes esferas do viver em comum, nos domínios da economia, da justiça, da saúde, do trabalho, dos serviços públicos, do turismo e, necessariamente, da educação, saibamos afirmar uma verdadeira cultura de cooperação e respeito pelos direitos humanos. Só assim a Europa poderá continuar a representar um refe-rencial de democracia, de integração e de justiça social, conforme é sublinhado por um dos nossos entrevistados, Fernando Rosas. O conhecido historiador, ativista político e professor recentemente jubilado, fala-nos de Portugal, da Europa e do mundo, deste mundo que anda “muito confuso”, mas também das suas duas vidas pessoais: a anterior ao 25 de Abril e a que veio depois desse dia em que tudo mudou. Num ano em que se comemoram os 50 anos da Recomendação da OIT/UNESCO relativa ao estatuto dos professores, os 40 anos da Constituição da República Portuguesa e os 30 anos da Lei de Bases do Sistema Educativo, esta edição da PÁGINA coloca em foco a Recomenda-ção sobre as condições profissionais, materiais e morais necessárias ao exercício da docência, dando concretamente destaque a um conjunto de testemunhos recolhidos por ocasião do 12º congresso da Federação Nacional de Professores (Fenprof). Realizado no Porto, em abril últi-mo, e sob o lema “Valorizar a Profissão, Reafirmar a Escola Pública”, este congresso contou com a presença de 60 convidados, representando 39 organizações de professores de 26 países de todos os continentes, para além dos cerca de 600 delegados de todo o país. Há 50 anos, em

ADRIANO RANGEL

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Isabel Baptista

Construir tempos de hospitalidade

1966, a OIT/UNESCO apontava para a necessidade de considerar o ensino como profissão, isto é, como forma de serviço público que requer conhecimentos especializados, adquiridos e mantidos através de estudo rigoroso e contínuo. Admitindo que a questão do estatuto profis-sional estará, em boa medida, resolvida, o desafio coloca-se agora no plano da decisão sobre os modelos profissionais a privilegiar. Que ideais, que valores e que padrões de conduta estru-turam, ou deverão estruturar, os espaços de autoridade profissional docente? Remetendo para as palavras de Fred Van Leeuwen, secretário-geral da Internacional da Edu-cação (IE), lembramos a este respeito que a batalha por uma profissão qualificada, unida e reconhecida é indissociável da batalha por políticas educativas efetivamente sintonizadas com as exigências de humanidade, cidadania e democracia do nosso tempo. Para tal, como afirma por sua vez Isabel Menezes, em entrevista, precisamos de profissionais que sejam capazes de assumir a plenitude da sua condição cidadã. Citando palavras desta conhecida autora, docen-te e investigadora, colaboradora permanente da PÁGINA desde há muitos anos, a verdade é que “profissionais desempoderados dificilmente geram empoderamento”. Em alinhamento com estes pressupostos, é importante ainda salientar o papel dos sindicatos e das associações profissionais, como, por exemplo, a Associação de Professores de Matemática (APM), que este ano comemora 30 anos de existência. Como nos diz Lurdes Figueiral, atual presidente da APM, “juntos somos sempre mais do que a soma individual de todos nós”. Sem esquecer que uma comunidade profissional forte é uma comunidade lúcida em relação à sua identidade e, como tal, uma comunidade aberta, solidária e hospitaleira. De forma mais ou menos explícita, a noção de hospitalidade está muito presente nesta edição, reenviando concetualmente para a experiência relacional de alteridade e, dessa maneira, para o acontecimento humano por excelência. Um acontecimento aqui evocado simbolicamente através do portefólio sobre “batentes e aldrabas”, assinado pela nossa jornalista, Maria João Leite. Os batentes e as aldrabas são elementos constitutivos das portas, remetendo-nos assim também, e de forma singular, para a linguagem da hospitalidade. Situados no lado exterior da porta e revelando normalmente o gosto estético e a posição social do anfitrião, essas peças em-blemáticas tanto podem servir para “bater a porta” como para “bater à porta”, sendo utilizadas nuns casos como forma de fechar a casa com segurança, protegendo-a dos intrusos, e noutros como forma de a abrir, facilitando ao hóspede a tarefa de fazer-se anunciar, isto é, de chamar a atenção de quem está dentro. Seja como for, quando um batente ou uma aldraba se fazem ouvir, então alguém está à entrada da casa, um desconhecido, um visitante ocasional, um familiar, um vizinho ou um amigo. A um nível fundamental, o que importa sublinhar é a capacidade de abertura ao outro, seja qual for a sua identidade, a história ou o motivo da sua chegada. É, pois, sob o repto de uma cultura de hospitalidade a construir, em permanência, que, a PÁGINA se despede, prometendo voltar em dezembro com uma edição comemorativa dos seus 25 anos.

EDITORIAL

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CISABEL MENEZESProfessores desempoderados dificilmente geram empoderamento

Catedrática da Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação

da Universidade do Porto (FPCEUP), Isabel Menezes é doutorada

em Psicologia e tem como principais interesses de investigação a

participação cívica e política, intervenção comunitária, psicologia

política e educação para a cidadania. É membro efetivo do Centro

de Investigação e Intervenção Educativas (CIIE), onde coordena o

núcleo de investigação Desenvolvimento Pessoal, Empoderamento e

Participação Cívica e Política

Diretora do Programa Doutoral em Ciências da Educação da

FPCEUP, tem orientado investigação no domínio da participação

cívica e política de jovens e adultos, em especial no que concerne

a experiência de grupos em risco de exclusão em função de género,

orientação sexual, literacia, etnia, do estatuto de imigrante,

incapacidade ou da doença crónica, de que têm resultado várias

teses de doutoramento e de mestrado. É membro do Conselho Geral

da Universidade do Porto.

Colaboradora permanente da PÁGINA, é editora associada e membro

do comité editorial de várias revistas científicas. Como autora ou

coautora, publicou títulos como «Agência e Participação Cívica e

Política: Jovens e imigrantes na construção da democracia»

e «Intervenção Comunitária: Uma Perspectiva Psicológica».

António Baldaia(entrevista)

Ana Alvim(fotografia)

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Começo por uma questão, que não sendo inevitável, está na ordem do dia: os contratos de associação, o desinvestimento e a qualidade na escola pública… Como é que uma investigadora reage ao tema?É um bocadinho difícil, porque o assunto está profundamente inquinado. Claro que o desejável seria que o Estado conseguisse cobrir completamente o território nacional. Não o consegue, e nós sabemos que muitos contratos foram feitos na maior das boas fés, porque essas escolas cumpriram um papel muito importante. Mas também parece haver aqui negócios com envolvimento de ex-deputados, ou deputados, ou secretários de Estado… O que os torna pouco claros. Ou seja, aqui, a questão não é a liberdade de escolha; é que esta foi uma solução de recurso para resolver um problema, e percebo que isto tenha de ser regulado periodicamente. Evidentemente, também percebo os profissionais dessas escolas, que estão a defender o seu posto de trabalho. Posto isto, muitas das pessoas que agora empatizam com estes profissionais não empatizaram com os das escolas públicas, que também viram os seus postos de trabalho acabar nos últimos anos… Digamos que a forma como vejo isto é simples. As pessoas têm o direito de fazer os seus protestos; a questão é a legitimidade e a razão que assiste a quem quando se trata de regular o que de facto está desregulado. Já Isabel Alçada, quando também tentou criar algumas regularidades, teve grandes protestos. Não dos pais, que eu percebo que estejam preocupados com a escola dos filhos, não dos profissionais… Nós estamos a falar de colégios e escolas que, legitimamente, foram criados para ter lucro e, portanto, é também isso que está em questão. São estes interesses particulares que me preocupam. E esta empatia, que não foi análoga quando milhares de pro-fessores das escolas públicas se viram em situação de desemprego...

Este protesto ganhou uma particularidade cromáti-ca, digamos assim: o amarelo tornou-se a marca dos privados, enquanto os defensores da escola pública se afirmam de todas as cores… Como psicóloga, atribui alguma importância ao colorido destas manifestações?Há colegas meus que, de facto, se preocupam com o significado das cores… Eu não. Naturalmente, isso é revelador de uma estrutura organizada, e eu acho bem que as pessoas se organizem em protesto. Não podemos gostar de fazer investigação sobre participação cívica e política e, depois, estranhar quando as pessoas estão a protestar. Tem é que se pôr o contexto dos protestos em perspetiva, digo eu.

Participação, cidadania, democracia, educação... Uma das áreas de interesse da Isabel Menezes é a relação entre educação e democracia. Há tensões nesta relação que justificam um campo de observação específico?Bem… É um tema clássico, até no sentido em que este ano se comemora o centenário da publicação de «De-mocracia e Educação», de John Dewey. E é recorrente nas políticas educativas, com grandes oscilações. Há autores que dizem que há momentos em que as pessoas enfatizam muito as aprendizagens básicas – o back to basics, a ideia de que o importante é aprender Mate-mática, Português e Ciências – e depois há alturas em

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que o foco é colocado nas questões da cidadania, da participação, da capacitação de cidadãos… O Weiler diz que isto é cíclico, e eu subscrevo este ponto de vista. De facto, só temos de esperar: as reformas educativas, as reorientações curriculares, hão de vir afirmar a im-portância desta relação, ou desafirmá-la.O interessante é que a relação existe, queiram os minis-tros e as políticas ou não. As escolas são lugares onde, desde a Pré-Escolar, se aprende a viver democraticamente, a discutir com os outros, a negociar com aqueles que são diferentes… E isso acontece independentemente das políticas educativas e até da consciência explícita dos profissionais da educação. A Escola é um espaço de diversidade e a escola pública é-o acrescidamente. Aprender a lidar com a diferença, a falar, a ter um ponto de vista, a defendê-lo, a discordar… são aprendizagens democráticas centrais e tudo isto acontece na escola. Acho que é o Rui Canário que diz: a escola é onde se aprende a gostar da palavra, a gostar da expressão, a gostar da política, e esta aprendizagem acontece, quer as pessoas queiram, quer não.

Do lado da gestão, há um tema mal resolvido para muitos professores, que é o fim do processo de gestão democrática. Em muitos casos, parece que a direção unipessoal, e por nomeação, tende a criar distanciamen-tos e a influenciar negativamente a vivência da própria escola-comunidade. Por outro lado, por exemplo no 1º Ciclo, os professores sentem-se sub-representados e afastados dos centros de decisão… Como se percebe, profissionais desempoderados dificil-mente geram empoderamento e, portanto, profissionais que são cidadãos pouco capacitados e pouco participa-tivos seguramente também passam uma mensagem de falta de capacitação cidadã. Portanto, se o ambiente geral da escola é punitivo, orientado para os regulamentos burocráticos, caracterizado pela impessoalidade e por procedimentos autocráticos de tomada de decisão, é evidente que isso afeta a qualidade de vida democrática da escola no seu todo e não deixa de se repercutir na aprendizagem dos alunos. Conheço menos bem a realidade dos outros setores, mas no Ensino Superior essa também foi a tendência.

Continuamos a ter uma gestão democrática, mas a dimensão dos órgãos diminuiu substancialmente – por exemplo, o colégio eleitoral do reitor passou de uma assembleia de universidade, constituída por cerca de uma centena de pessoas, para um grupo de vinte e tal, que é o Conselho Geral. E isso, naturalmente, diminuiu a representatividade… Depois, ao nível de cada faculdade, mantém-se a possibilidade dessa lógica. Na Universidade do Porto, tivemos recentemente uma revisão dos estatutos, onde assumimos que o funcionamento de qualquer escola tem de ser numa lógica de presta-ção de contas e de vários contrapesos e de evitar as nomeações, exatamente para garantir que o sistema funciona, que há contrabalanço. É evidente que as mudanças que aconteceram nas escolas, com a criação de mega-agrupamentos onde a gestão de proximidade se torna difícil, criam condições para um sentimento de afastamento face ao poder – que muitas vezes está concentrado num sítio em que não se vê, nem se conhece – e afetam a qualidade de vida democrática nas escolas.

A EDUCAÇÃO PARA A CIDADANIA NÃO É EXCLUSIVADA ESCOLA

A educação para a cidadania é outro tema recorrente, e outra área do seu interesse, mas pouco consensual… Melhor: parece ser consensual que deve acontecer de forma transversal, mas depois também parece haver uma vertigem ‘curricularizante’, para a instituir como disciplina…O Hugo Monteiro e o Pedro Ferreira, daqui do Porto, falam que a escola tem tendência a ter um toque de Midas – tudo o que toca transforma em currículo… No sentido mais estrito, portanto, transforma em disciplina. A questão da educação para a cidadania como espaço instituído é relati-vamente antiga e, aliás, já tivemos várias soluções, das preocupações com a formação e o desenvolvimento pessoal e social às experiências no pós-25 de Abril, da educação cívica e politécnica, da introdução à política, do serviço cívico, etc.O que aconteceu nas experiências que fomos tendo é que sempre que não houve um espaço curricular e se assumiu que havia uma disseminação transversal… O problema da transversalização é sempre este: o professor de Língua Portuguesa, dependendo do seu reconhecimento ou interesse por estas questões, pode achar que talvez aquilo não tenha muito a ver; o de Matemática, com grande probabilidade, acha que não lhe diz muito respei-to; o de Ciências, se não estiver propriamente sensibilizado para a questão, também acha que as suas temáticas serão outras; o professor de História, normalmente, é aquele a quem os outros (e ele próprio) reconhecem haver uma ligação, mas também nada…

AUTORIDADE. A autoridade do professor é a auto-ridade de todos nós. Hoje questionamos muito mais a autoridade, e a ideia de figuras que se respeitem indepen-dentemente do que digam e do que sejam já não existe. O professor era uma dessas figuras de autoridade. O meu colega e amigo Joaquim Coimbra debate muito bem estas coisas: de facto, as sociedades contemporâ-neas questionam, e isso não é necessariamente mau. Boa parte desta autoridade conquista-se e é resultado de um processo, e não um ponto de partida – essa é a diferença que torna o processo difícil, mas que eu acho que não é um impossível, pelo contrário. Portanto, eu

acho que continua a haver autoridade do professor, desde que ele a tenha conquistado. A diferença é que antigamente era a priori, mas também era a priori para outras situações: a gente não discutia com o polícia, não discutia com o médico… Havia uma estrutura de autori-dade que nos fazia repousar muito na tradição, naquilo que era a experiência anterior para guiar a nossa vida. Hoje estamos um pouco mais entregues a nós próprios e, portanto, os profissionais com quem interagimos têm de se provar merecedores da confiança que uma função de autoridade implica; uma autoridade consentida, e não imposta por estatuto.

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Colaborou num projeto de análise de manuais escolares de Portugal e de Espanha… É um projeto que tenta perceber como a história do fascismo é representada nos manuais escolares em Portugal e algumas regiões de Espanha. Exata-mente, se é representada de maneira que permita ser um ponto de partida para a discussão do que é a democracia e a cidadania. Fizemos essa análise dos manuais e o que acontece? Claro que os manuais tentam apresentar uma visão equilibrada do passado, que é uma coisa terrível, porque uma visão equilibrada do passado corresponde muitas vezes a um branqueamento, e não é carne nem é peixe… O que não propicia muito a discussão. E os professores também não sentem que podem atravessar-se.

E qual é o significado disso?Um dos colegas entrevistados, relativamente a Espanha, dizia que é trágico, porque há uma geração que ainda viveu no franquismo e está a sair das escolas. E nós temos a mesma situação aqui, uma geração que ainda viveu a transição para a democracia e que, não tarda, vai deixar a escola. Há, de facto, este capital – esta geração tem esta memória e, dizia esse investigador espanhol, tem a responsabilidade de dar testemunho direto do que foi a transição para a democracia. Mas isso é pôr um peso complicado sobre os professores… Mas se os professores não sentirem que há uma legitimidade, voltamos ao mesmo problema: se definirmos que isto é responsabilidade ‘dos professores’, não havendo um espaço curricular próprio, porque todas as disciplinas contribuem, corremos o risco de esta preocupação ser respon-sabilidade de todos, em geral, e de ninguém em particular…

Voltando à questão de se devia existir um espaço próprio… Hoje em dia, acredito que sim, achando, no entanto, que não deve ser uma disciplina e que deve haver alguma discussão sobre que os conteúdos a abordar. A experiência que eu tenho é que muitas vezes estes espaços eram os da formação cívica, que muitas vezes eram contaminados com outras questões, por força do exercício das competências do diretor de turma. Mas um espaço de formação cívica, supostamente, não é um espaço de aborda-gem de questões da gestão do quotidiano da turma – que são importantes, sem dúvida, e se calhar até merecedoras de um espaço próprio. Mas, entre-tanto, como sempre, a formação cívica também foi suspensa, sem termos

um conhecimento alargado sobre o que acontecia nas escolas, se havia experiências que valia a pena revelar…

O velho hábito de quase nunca se saber porque é que as coisas começam e acabam…É sempre! Não há nenhum tipo de avaliação, o que é paradoxal. O Nuno Crato, que era uma pessoa que fa-lava muito da importância da avaliação, etc., suspende um conjunto de medidas sem fazer nenhuma avaliação do impacto que as medidas tinham nas aprendizagens dos alunos. Dou de barato que, após a avaliação, se chegue à conclusão de que aquilo funciona mal ou tem de ser alterado, mas o que é mesmo complicado é a tendência de mudança sistemática sem avaliação do impacto das medidas. Nalguns casos, as medidas são erradas e, portanto, a sua suspensão é o que faz sentido, mas noutros, nomeadamente neste… Nós tínhamos um capital de experiência acumulado no terreno que foi suspenso sem mais.

Aconteceu o mesmo com a Área de Projeto…Do meu ponto de vista, a Área de Projeto tinha até outro potencial… Devo dizer que já em ’89 havia um parecer da Comissão de Reforma do Sistema Educativo que sugeria que a Formação Pessoal e Social tivesse dois professores, para providenciar pluralismo. Isto é engraçado, a ideia de que um par pedagógico podia fazer sentido, porque eram duas cabeças, dois adultos inevitavelmente dife-rentes, e podiam aumentar o pluralismo. Depois, era uma área que, à partida, permitiria rela-cionar o saber livresco sobre o que é a cidadania com as experiências que os miúdos têm na escola e fora da escola, que é o que eu acho que tem faltado à educa-ção para a cidadania – a possibilidade de ligação a problemas concretos, como ponto de partida, porque também não é limitar ao real da minha rua, mas que a minha rua seja um ponto de partida para eu tematizar a humanidade ou o globo no seu todo. Para mim, esta é, de facto, uma questão essencial, e é por isso que, do meu ponto de vista, um espaço curricular – não uma disciplina – continua a fazer sentido.

INCLUSÃO. A escola inclusiva deveria ser o mínimo de civilidade a que éramos obrigados nas nossas socieda-des. As escolas públicas têm de acolher todos e devem acolher todos com qualidade, percebendo, no entanto, que o sucesso e a igualdade dependem de um tratamento desigual; ou seja, para nós atingirmos o mesmo nível de competência, de sucesso e de aprendizagem dos alunos, temos de o fazer com processos diferenciados. Portanto, inclusão sim, mas com reconhecimento da diferenciação de processos. Eu acho que, infelizmente, essas condições

não estão asseguradas, e os últimos anos levaram a que fossem ainda mais ameaçadas. Na prática, por exemplo, tivemos a retirada de apoio a milhares de crianças… Portanto, inclusão com certeza, mas é preciso reconhecer que isso implica um tratamento desigual. Se temos de ter rampas de acesso nos edifícios, não podemos achar que isso é uma condição excecional; é uma condição de cidadania de todos, de qualidade da escola de todos e de qualidade da sociedade de todos.

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Ou seja, fazer da escola um espaço onde também possam ocorrer experiências e aprendizagens de participação…Agora, tiremos o cavalinho da chuva… Não há capaci-tação cidadã, ou educação para a cidadania, que se faça exclusivamente na escola e que seja responsabilidade exclusiva da escola. Muitas das coisas que aprendemos sobre o que é ser cidadão, aprendemos na participação em associações de estudantes, nos sindicatos, na asso-ciação recreativa… Estas experiências são importantís-simas, como nos escuteiros, nas juventudes partidárias, nas associações juvenis… E, claro, as emergentes, com tudo o que tem a ver com os novos media e as redes sociais, que também são espaços de expressão cidadã e é importante que sejam aprofundados e discutidos e debatidos …

Defende a existência de um espaço onde, mais do que explicar aos alunos o que é a cidadania, se discuta com eles as experiências cívicas do dia-a-dia? Eu acho que isso funciona... Estava a lembrar-me de um trabalho que a Teresa Dias apresentou, com crianças da Pré-Escolar e do 1º Ciclo – mesmo os meninos da Pré têm uma discussão, eles veem televisão à noite com os pais, ouvem os pais falar sobre política… A política é qualquer coisa que está no nosso quotidiano.Há uns anos, tinha de escrever um artigo sobre o campo da psicologia política e da educação para a cidadania e comecei a pesquisar se havia alguma coisa publicada; encontro um texto publicado em 1906, pelo padre Sena Freitas, e que se chamava «A Psicologia Política do Conselheiro João Franco». O que eu achei engraçado foi como ele se queixava da tendência ‘politiqueira’ – dizia ele, negativamente – do povo português, porque toda a gente discute política. Ora, eu acho que essa é a grande vantagem do povo português.

E ultimamente, a Escola, tem sido um bom motivo. Toda a gente fala e opina sobre escola e educação…Está a ver? Eu acho não isso mal… A determinada altura, no tempo das grandes manifestações, a ministra Maria de Lurdes Rodrigues foi à televi-são e houve uma imensa manifestação de professores; perguntaram-lhe o que ela achou e sabe que eu fiquei triste por ela não ter dito: cumprimento os professores por terem feito esta grande manifestação. Porque a questão não é se a gente está de acordo; o importante, aqui, é que as pessoas estão a participar. Mas claro que há limites. Nestas manifestações recentes, traze-rem as crianças para a rua é um bocadinho… Portanto, há aqui limites que, eventualmente, estão a ser ultrapassados neste processo de participação, mas os protestos, as reclamações das pessoas, são saudáveis… Há interesses por trás? Sempre! Faz parte…

OS PROFESSORES ESTÃO ASSOBERBADOS COM TAREFAS BORUCRÁTICAS

Que perspetiva lhe oferece a formação de professores, muito questionada, quer ao nível da inicial, quer da contínua?Relativamente à formação pós-graduada, acontece que a maior parte das escolas faz formação de professores, mas não necessariamente os mestrados que capacitam para o exercício profissional. Nos anos 2000, imensos estu-dantes queriam muito ser professores e continuavam a encher a formação educacional, em ligação com as faculdades de ciências, nomeadamente. O que hoje acontece é que muitos professores vêm procurar formação, mas não já os mestrados de ensino. Portanto, a questão não é tanto de capaci-tação didática, mas de capacitação para o exercício profissional – o papel do professor que transcende as questões da didática. A minha experiência tem sido mais nesta formação de profissionais que já estão no terreno e que vêm procurar formação exatamente para poderem complexificar o seu ponto de vista, pensar em formas novas de intervir no contexto da escola. O que é interessante, porque continuamos a ter professores interessados nas questões da supervisão pedagógica e noutras dimensões da intervenção educativa e sociocomunitária.

A intervenção comunitária, que é outra das suas áreas de investigação, também se pode fazer através da escola…Só pode! Acho que é cada vez mais uma área que faz especial sentido. As escolas são polos de desenvolvimento comunitário fantásticos, com grande potencial. Sempre tiveram, mas nos últimos anos, a tendência foi mais no sentido de as virar para dentro do que para fora, e eu acho que a articula-ção com o exterior é essencial para a sobrevivência da escola como tal…

TEMPO INTEIRO. Se as atividades que se oferecem forem iguais às da escola a meio tempo, a escola a tem-po inteiro é uma jornada de trabalho. John Dewey tem uma referência engraçada no «Democracia e Educação» sobre como, na escola, só admitimos que os corpos das crianças possam existir se estiverem sentados e quietos. Se calhar, é importante reconhecermos que os corpos das crianças têm de se manifestar de outras formas. Nós temos um problema de base, porque não temos redes sociais que permitiriam que a escola funcionasse em horários diversos. E sabemos o quanto isso onera as famílias, portanto, a questão da escola a tempo inteiro

também visa responder a este problema social. Mas eu acho que podia ser uma solução fantástica, desde que a gente não ache que na segunda parte eles fazem o mesmo que fizeram na primeira, um bocadinho mais do mesmo. Portanto, se a gente reconhecer que os corpos deles po-dem fazer outras coisas… Mas ter tempo para brincar e para não fazer nada também é importante – o direito a não ter um mandato e a não ter que estar sempre nesta lógica. Nós sabemos que as crianças aprendem muito a brincar e a fazer outras coisas, mas o que está em causa é o direito a que nem todas as atividades sejam de aprendizagem, instrumentalizadas

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Quando ocorre esse fechamento, é porquê? Medo dos contextos exteriores, falta de tempo, falta de condições…Quando vamos às escolas, percebe-se que os professores estão assoberbados de tarefas e que há uma grande regulação dos comportamentos, agravando a componente burocrática do trabalho. No entanto, eu acho que, por via do papel das autarquias, hoje há mais ligação entre a escola e as institui-ções locais. O que, muitas vezes, não significa uma relação sem muros, de acesso livre, do interior ao exterior e do exterior ao interior. Não acho que seja por defeito, nem da escola nem das comunidades, mas por nós não imaginarmos um futuro onde a educação pudesse ser diferente e desenvol-ver mais a articulação com os contextos comunitários. Falamos tanto na necessidade de reconhecimento de alguns saberes, e a escola é um sítio de saberes fantástico, tem um corpo de profissionais altamente qualificado, com saberes altamente específicos e as pessoas da comunidade têm outro tipo de saberes. Mas temos tido a ideia de que são áreas de especialização diferentes e temos feito pouco esforço para as pôr em comunicação.

Mas são permeáveis… Pois são e deviam ser mais, a questão é um bocadinho essa.

Na Educação Pré- Escolar e no 1º Ciclo há, normalmente, uma boa arti-culação dos encarregados de educação com os auxiliares e os professores, articulação que acaba por se desvanecer nos outros ciclos. O professor--tutor pode ser um revitalizador dessa relação?Sim. E pode ser uma figura de referência. Mas a determinada altura também pode acabar por ficar assoberbado em papéis e processos. Estou a lembrar-me de experiências em escolas que conheço, onde esta figura do professor-tutor já existia há muitos anos por iniciativa da própria escola. E verdade seja dita, nalguns casos, este professor conseguiu ser uma figura de referência essencial – como o são, com certeza, muitos outros professores, indepen-dentemente de serem tutores ou não. A grande questão é se, nas escolas, os professores têm esse espaço de intervenção, de articulação com o que está fora. E aqui tenho de puxar um bocadinho a brasa à minha sardinha: eu acho que faltam outros profissionais na escola, que poderiam coadjuvar o trabalho dos professores, libertar os professores para algumas tarefas e, nomeadamente, nestas questões da mediação ou interação comunitária, favorecer essas redes de relação. Quando temos diplomados das Ciências da Educação a trabalhar em contextos escolares, percebemos o quanto eles podem ter esse papel de mediação com o que está fora, ajudando e sendo coadjuvantes. Porque, de facto, há uma dinâmica própria do trabalho de ensino-aprendizagem e das exigências específicas daquilo que os professores têm de fazer que muitas vezes lhes rouba tempo para outro tipo de atividades que se podiam realizar nas escolas. Portanto, não era mau que as escolas fossem invadidas por profissionais com perfis diferentes e que pudessem contribuir para uma maior diversidade. Acho que era uma melhoria para a qualidade de vida dos meninos e dos próprios professores.

É recorrente ouvir que faltam condições de trabalho. Mas de facto, nos últimos anos, as escolas têm melhores estruturas e equipamentos…Como nós sabemos, infelizmente, a intervenção nas escolas não foi equitativamente distribuída e se hoje temos escolas com condições fantásticas, e ainda bem, também continuamos a ter outras que… Eu não co-nhecia o Alexandre Herculano, mas estive lá há dois anos e achei o edifício lindíssimo, mas fiquei chocada com telhas partidas e coisas do género. E, de facto, a direção da escola dizia que estavam para entrar em re-cuperação, quando…

Veio Nuno Crato…E a troica, e a crise e tudo isto... Outro edifício emble-mático era o do Infante D. Henrique. Podia ser uma escola maravilhosa, hoje em dia, fazendo pelo ensino profissional aquilo que já fez durante décadas.

Mas em muitas escolas, mesmo novas ou renovadas, continuam, a faltar, por exemplo, espaços alternativos para atividades diversas do ‘dar aulas’, para os profes-sores trabalharem…Qual é a minha perceção?... Espaços de trabalho co-letivo, por exemplo, e rotinas de trabalho coletivo. Isto é capaz de já ser um clássico, toda a gente o diz há imensos anos, mas a ideia é que os professores são professores de uma turma e, portanto, faz sentido que trabalhem juntos, para discutirem as características da turma, as abordagens, as estratégias, etc. Eu sou professora e percebo muito bem quando a gente fala de autonomia versus isolamento do professor no con-texto da sala de aula. Por um lado, a sala de aula é um espaço claro do reinado do professor, mas por outro é um espaço de grande isolamento, e essa oportunidade de conversar, de discutir com os colegas, ‘eu fiz isto, o que achas?’, esse espaço de trabalho coletivo, eu acho que existe pouco. Não é uma tarefa fácil, é melhor dizer

INDISCIPLINA. É uma questão que nos preocupa a to-dos, claro, muito mediatizada por episódios particulares, quando, se calhar, os quotidianos das escolas são, desse ponto de vista, menos exuberantes do que as pessoas fantasiam. E aqui, mais uma vez, a importância do tra-balho coletivo dos professores: não há especialista que dê receitas relativamente a isto, e eu seguramente não dou, nem sei, mas tenderia a dizer que qualquer solução

tem de ser sempre contextualizada e encontrada para aquela escola, aquela turma e aquele aluno e discutida coletivamente pelos professores. Quaisquer outras coi-sas são medidas de cosmética - não há soluções, nem intervenção para a indisciplina que sejam à prova das pessoas e dos contextos onde vão ser implementadas. Portanto, é preciso ir fazendo abordagens específicas, definidas pelos profissionais que estão no terreno.

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do que fazer, porque implica que saiamos da nossa sala de aula e estejamos dispostos a partilhar o que correu fantástico, mas também aquilo que correu menos bem. A gente aprende nestes processos de discussão, onde dizemos que alguma coisa foi menos bem conseguida, que não conseguimos explicar muito bem. Porque nós temos consciência crítica, e ao contrário do que muitas vezes se diz, os professores avaliam-se muito – a função de avaliar os outros cria-nos uma grande predisposi-ção para nos autoavaliarmos. E eu acho que falta esse espaço de trabalho coletivo; não é apenas uma sala de professores, é uma sala de trabalho…

O PROFESSOR FAZ-SE NA FUNÇÃO

A questão relacional, as dinâmicas que as escolas esta-belecem, a cultura ‘de escola’, também são ‘condições de trabalho’…É um pouco isso. A perceção que eu tenho das escolas onde percebo que existe um sentido de compromisso coletivo, é de que existe também esse trabalho coletivo. Ou seja, existe um sentido de compromisso com o que é o sucesso na educação das crianças, mas também existem condições para o trabalho coletivo, para a discussão e para a articulação – que não são meramente uma dis-cussão e uma articulação que se fazem a propósito de questões burocráticas (‘excedeu o limite de faltas’, ‘é preciso falar com o pai’, ‘portaram-se mal’), mas sobre a natureza do próprio trabalho (‘isto não funciona, temos de experimentar aquilo’). Fazer um trabalho concertado, de modo a que os alunos sintam que têm uma frente unida de professores, seria uma boa estratégia para co-meçar a abordar o que quer que fosse. E esse espaço de trabalho coletivo, eu também acho que é uma questão menos física e mais relacional.

Outro problema com influência na dinâmica das escolas é o vai-e-vem no corpo docente… Isso são coisas que não controlamos. A minha ideia é muito que o professor faz-se na função. A formação inicial é muito importante, mas a gente faz-se professor ao estar numa escola, ao interagir com os colegas e com os alunos, etc. Por isso, seria importante um apoio à in-tegração de quem chega de novo, reconhecendo que nos primeiros dois-três anos as pessoas deviam ficar coloca-das numa escola, com um tutor para apoiar naquilo que são as dificuldades dos anos iniciais, de implementação. Mas parte-se do princípio de que quem fez um estágio de um ano está pronto... Desse ponto de vista, outros profissionais reconhecem que a complexidade do exercício da função exige uma formação mais longa. E eu, honestamente, não vejo por-que é que um médico demora tantos anos a formar-se e se acha que um professor se forma em cinco anos… Porque não forma! Portanto, mais do que um exame de acesso, era interessante um dispositivo desta natureza.

A Finlândia e os jesuítas da Catalunha estão a realizar uma mudança profunda ao nível dos respetivos modelos educativos: fim dos exames e das aulas tradicionais, participação dos alunos no desenho curricular, aprendizagem autónoma e grupos de aprendizagem variáveis, fim das disciplinas e trabalho por projetos ou tópicos…Não tenho acompanhado de todo… A questão da aprendizagem por pro-jetos tem vindo a ser ensaiada. Aliás, recentemente, num colóquio sobre o Dewey, foi falada uma experiência, nos Estados Unidos, em que a ques-tão é um currículo construído para cada um dos alunos, com o apoio de um professor, e esse currículo poder implicar atividades de aprendizagem na escola e fora da escola. Se o miúdo achar que para o currículo dele é importante uma experiência de voluntariado durante um mês, e isto for negociado como atividade de aprendizagem, que pode desenvolver os in-teresses dele naquela área, essa experiência é reconhecida curricularmente. O James Bean defendia há anos um currículo centrado em projetos, o que implicava uma estrutura alternativa. Mas se não fossem possíveis estrutu-ras alternativas, como é que tínhamos um modelo de monodocência no 1º Ciclo e não sei quantos professores no Básico e no Secundário? Significa que se pode aprender das duas maneiras, e há anos que a Dinamarca tem um professor (coadjuvado por dois ou três) até ao nono ano de escolarida-de. Portanto, eu não conheço as experiências em concreto, mas faz sentido imaginar. E o que percebo é que estamos no momento de mudar alguma coisa, mas não sabemos bem o quê. E ao falar de escola, estamos a falar de uma organização complexa e que arrasta muita gente.

Não é possível, entre os investigadores e/ou as instituições, consensualizar alguns sentidos de mudança que orientem quem decide e quem implementa as medidas?É difícil, porque a crise de autoridade não é só do professor, é também do conhecimento. Mas de qualquer das formas, há uma coisa em que tem ra-zão: nas Ciências da Educação, já sabemos o suficiente para sermos mais claros nas orientações que devemos dar. Se elas são seguidas ou não, essa é outra questão. Um exemplo: desde a década de 60 do século passado, há investigação e dados que mostram que a reprovação é uma má estratégia para lidar com dificuldades de aprendizagem. E no entanto, de cada vez que se fala nisso, parece que estamos a propor uma revolução ou a questionar uma coisa de pedra e cal. Portanto, saber suficiente para fazer recomen-dações, acho que temos, mas também temos resistência a ser normativos, no sentido de produzir orientações muito específicas que as pessoas vão fazer e implementar. Por outro lado, toda a arquitetura do sistema é muito complexa e nós também podíamos ser melhores a partilhar esta informação das universidades. Mas, para que as mudanças aconteçam, as informações, o trabalho de investigação e as conclusões têm que se transformar em es-tratégias de influência da tomada de decisão política…

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Que ainda é muito partidária, embora digam que não é ideológica...É sempre ideológica. Essa coisa de dizer que não é ideológica nem política não existe. O que em si mesmo não é mau, mas depois… Eu também não acho que a gente tenha de estabelecer grandes consensos, mas depois há os factos. Esta coisa das reprovações, insisto, é um equívoco: não se trata de diminuir a exigência, mas de dizer “tu vais ter que trabalhar mais aqui e o professor também, para garantir que tu recuperas as aprendizagens que não fizeste, porque o mais importante é que tu continues com o teu grupo etário e não que retrocedas”. Portanto, isto é mais exigente do que dizer “reprovas e fazes outra vez”, mexe mais com o sistema e com o próprio esforço dos alunos; ou seja, contraria claramente uma lógica de facilitismo. Mas se eu for dizer que defendo o fim das reprovações, as pessoas vão dizer “lá está ela a defender o facilitismo”. Ou seja, muitas vezes, mistificamos algumas destas discussões, que deviam ser com base na análise da mudança, e a partir do momento em que contaminamos a discussão com o facilitismo/não facilitismo, a meritocracia, etc., todos estes chavões influenciam a dis-cussão e dificultam o processo de tomar e de gerar uma discussão pública séria. Que é do que nós precisamos: uma discussão que permita às pessoas perceber quais são as implicações dessas questões.

E como é que se consegue fazer isso? Reconheço que é capaz de não ser fácil, mas enfim… Todos temos que fazer o nosso ponto, as universida-des e, naturalmente, os investigadores em Ciências da Educação. E também os profissionais da educação, que trazem as suas investigações para o doutoramento, que aprofundam conhecimento, e depois têm dificuldade em passá-lo para o seu quotidiano. De facto, esta questão da transferência de conhecimento não é fácil, nem para cima, para as políticas, nem para baixo, para as práticas.Podíamos ter acabado de uma forma mais esperançosa…

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Sim, senhor ministro!

ADRIANO RANGEL

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15UUm dos maiores atentados que Nuno Crato desferiu ao país foi a tentativa de disciplinarização no 1º Ciclo. Não equacionando agora a não existência de disciplinas essenciais, será coerente lembrar que quando pretendemos apa-nhar um autocarro acionamos – simultaneamente! – uma série de competências que nos permitem, por exemplo: decifrar o destino desse transporte público (leitura), inferir o seu itinerário (planeamento visual), estimar o tempo de deslocação até à paragem de acordo com a distância (cálculo), estugar a passada (controlo dos movimentos do corpo), entre outras.Howard Gardner anunciou há 33 anos a existência de várias esferas intelectuais de interação genética-ambiental e de diferentes comutações destas, impulsionadas por cada indivíduo (teoria das inteligências múltiplas). Definiu o conhecimento como uma capacidade que cada um desenvolve através de processos simbólicos próprios. Vinte anos depois (2003), Gardner disse que foram os professores quem mais abraçou a sua teoria. Porque a diferença dos perfis intelectuais implica a ideia de que os conteúdos devem ser abordados através de estratégias várias, com diferentes analogias, comparações, formas simbólicas. Esta diversidade de abordagens – para permitir que cada aluno possa aprender “melhor”, “à sua maneira”, do modo mais facilitado pelo seu cérebro – só é possível se as aprendizagens forem tratadas de forma pluri e interdisciplinar. Daí a necessidade de uma formação assaz qualifi-cada dos docentes do 1º Ciclo, espraiada num bom domínio didático e pedagógico e num bom conhecimento de todas as disciplinas. Todas, afinal, essenciais.Durante demasiados anos, o 1º Ciclo foi embebido em PEBs (professor do Ensino Básico, 1º e 2º ciclos), muitas vezes determinados – e bem – a lecionar Matemática, Ciências, Educação Musical, Educação Física, Português, Inglês, etc., no 2º Ciclo; mas com pouca vocação e pouca formação específica para o 1º Ciclo.

CONTRARRELÓGIO. Não é difícil trabalhar nas escolas de 1º Ciclo, se se estiver aberto ao trabalho colabora-tivo. A monodocência, tão necessária às crianças deste grupo etário, não significa um trabalho isolado na sala de aula. Pelo contrário, a aula – que pode não ser entre quatro paredes… – deve ser aberta:

i) à colaboração planificada de professores de outras classes e vice-versa, de acordo com gostos e competências adquiridas; ii) a projetos comuns a mais do que uma turma; iii) à comunidade cultural envolvente: museus, companhias de dança e de teatro, orquestras, clubes despor-tivos, etc.; iv) às instituições sociais onde as crianças podem aprender e aprender a ser solidárias; v) a todos os projetos solicitados pelo próprio ministério e por fundações.

Tiago Brandão Rodrigues, sendo capaz de resolver este problema que Nuno Crato tão imprudentemente ampliou, resolverá, por consequência, o problema de todos os outros ciclos do ensino obrigatório:

- por um lado, a organização dos curricula, perspetivando a resolução de problemas através do trabalho de projeto, de forma interdisciplinar e colaborativa e para além da (sala de) aula – só possível com o investimen-to, que parece estar a ser feito, quer na mudança, quer no reforço de práticas letivas de qualidade, em termos didáticos e pedagógicos;- por outro lado, pela centralização em aprendizagens emocionalmente adequadas à permanência durante toda a vida (e não em conteúdos, de média validade, decorados para os exames), concretamente através do acesso à fruição das áreas de expressão artística (dança, música, poesia, plásticas, cinema, teatro e outras), cada uma per si ou através da necessária interdisciplinaridade – não para que obrigatoriamente se aperfeiçoem artistas, mas para que se formem públicos habilitados, compostos por cidadãos sensíveis, solidários, responsáveis.

Tudo isto em prol de uma Escola Pública de qualidade, para todos. A velocidade a que Nuno Crato destruiu o que tínhamos de bom terá de ser dobrada por Tiago Brandão Rodrigues, porquanto sabemos ser mais fácil demolir do que edificar. Nisso, a que muitos têm tentado chamar precipitação, tem o meu total apoio. Sim, senhor ministro!

José Rafael Tormenta

Tiago Brandão Rodrigues herdou uma espécie de Chernobyl. O conservador

Nuno Crato estendeu as radiações de efeitos nefandos às gerações vindouras; os

caminhos para colmatar tudo isso não são simples, nem evidentes. Ninguém, desde

o tempo de Salazar, o tinha conseguido de forma tão abrupta e num curto espaço de

tempo. Crato não o fez só por opção política, mas sobretudo por uma sobranceria

frequentemente própria de quem tem desconhecimento, neste caso das mais recentes

teorias das Ciências da Educação.

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Gratuidadedos manuaisou gratuidadeda medida?

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17G

A gratuitidade dos livros de estudo no 1º ano do 1º Ciclo, medida implementada recentemente pelo governo em exercício, parece à primeira vista uma medida de inegável justiça social – ou traduz, pelo menos, aquilo que parece ser um regresso a uma responsabilidade efetiva do Estado pela Educação pública. Comece-se por aqui para mais tarde alargar a outros anos do sistema de ensino. Até aqui subscrevo por baixo: admito pagar impostos para suportar um sistema de ensino gratuito porque acredito que isso é uma forma de minorar a discricionariedade entre as crianças (e suas famílias) no acesso ao sistema de ensino. Simplesmente, penso que a questão está fortemente deslocada do eixo estruturante que a deveria suportar.A medida é tomada num contexto no qual se admite a inevitabilidade dos manuais escolares, assumindo claramente a dependência que o sistema de ensino tem, para funcionar, de um conjunto de entidades privadas que os elaboram. Ora, não sendo função do Estado elaborar os ditos manuais, mas sim as linhas diretrizes e programá-ticas daquilo que se deve ensinar nas nossas escolas, parece obnubilar-se de seguida o investimento que esse mesmo Estado faz na formação dos professores que atuam no seu sistema de ensino. O que é suposto, parece-me, é que o nível de formação destes profissionais permita equacionar, perante ‘pautas’ programáticas emanadas do Ministério da Educação, a capacidade destes para assegurar a construção de materiais para o ensino inscrito e pressuposto nessas mesmas pautas programáticas. Além de o Estado negar a sua própria competência na formação dos professores (ou das instâncias que a asseguram), obrigando-os a um exame de acesso à carreira, de seguida obriga-os não a comprometerem-se com o ensino de determinados saberes, mas a subordinarem-se a manuais interpretativos das ditas pautas programáticas, elaboradas por instituições que, independentemente da competência com que o fazem, subordinam a sua ação a uma racionalidade comercial. O direito do professor (da escola, do agrupamento) a escolher determinado manual, em detrimento de outros, evidencia uma hipotética concorrência livre e saudável, mas não deixa de mascarar um princípio, insistentemente abraçado pelo Ministério da Educação, de profundo descrédito pelas competências dos professores que o próprio Estado forma. Pareceria interessante, pelo menos, ter a ousadia não de eliminar o trabalho das edi-toras, mas de alimentar políticas conducentes a um trabalho de produção de materiais pedagógicos e didáticos por parte dos próprios professores, na convicção profunda de que os mesmos têm saberes e competências bastantes para o fazer.

TROCA DE PRIORIDADES. A sensação de ‘desperdício’ de saberes detidos por profissionais altamente qualificados, mas igualmente de desrespeito pelas suas quali-ficações e pelas pessoas concretas que as detêm – ao subordiná-los, não estritamente a um ‘programa’, mas igualmente aos modos de o ensinar –, não augura nenhum salto qualitativo relevante à medida agora tomada; fica tudo na mesma, o ónus ape-nas deixa de ser suportado pelas famílias para passar a ser suportado pelo Estado.Reafirmo: não questiono pagar impostos para suportar a gratuidade do sistema de ensino; já não me agrada tanto a ideia de pagar impostos para sustentar empresas com interesses comerciais. O investimento feito pelo Estado nestes recursos poderia, certamente, de modo muito mais eficaz, ser aplicado nas escolas para apoiar recursos que sustentassem a elaboração de materiais pedagógicos e didáticos por parte dos professores, afinal os verdadeiros profissionais da Educação.Recentemente, a equipa ministerial lançou o desafio para os professores se pronun-ciarem sobre as orientações curriculares, medida que me deixa um laivo de esperança, mas igualmente de estupefação: independentemente da capacidade dos professores para se pronunciarem sobre o que Chevaillard designa por transposição didática (o que é que do saber sábio se deve converter em saber a ensinar?), é mesmo a eles que compete este exercício? Até subscrevo, mas depois subordinam-se aos manuais elaborados pelas editoras? Pede-se aos professores aquilo que eles não têm forçosamente que dar – pronunciar--se sobre as metas e programas curriculares cujos contornos devem ser politicamente determinados – para depois lhes impor manuais de trabalho, justamente no campo das suas competências e onde elas deveriam ser maximizadas?A questão não é esta, insisto. Parece-me haver troca de prioridades, mas também de compreensão do alcance das medidas que o Ministério da Educação vem propondo.

Henrique Vaz

Gratuidadedos manuaisou gratuidadeda medida?

Admito pagar impostos

para suportar um sistema

de ensino gratuito

porque acredito que é

uma forma de minorar

a discricionariedade no

acesso ao sistema de

ensino; já não me agrada

a ideia de pagar impostos

para sustentar empresas

com interesses comerciais.

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19I1. Importa começar por referir que a identidade do Ensino Secundário tem que se afirmar através da diversidade das suas ofertas de formação, incluindo os cursos do Ensino Artístico Especializado, os cursos profissionais e os cursos científico-humanísticos, e não excluindo outras possibilidades já existentes ou a criar. Consolidar a diversificação é condição essencial para que o Ensino Secundário seja realmente um ciclo de ensino aberto, plural e atrativo. Um ciclo de oportuni-dades que respondam às necessidades, às aspirações e às legítimas ambições dos jovens, qualificando-os para ingressarem no chamado mercado de trabalho e/ou para prosseguirem os seus estudos. Mas a identidade do Ensino Secundário tem que passar, também, por um sistema de acesso ao Ensino Superior em que as universidades e os institutos politécnicos assumam integralmente a responsabilidade pela seleção dos seus estudantes. Por uma diversidade de óbvias razões, o país precisa de um sistema de acesso mais consistente com a configuração atual do sistema escolar e de instituições de Ensino Superior melhor preparadas para enquadrar todos os estudantes que as procuram. E assim se poderá libertar o Ensino Secundário de uma situação que muito tem limitado a sua identidade.

2. A efetiva diversificação do Ensino Secundário exige que todas as ofertas sejam igualmente valorizadas, dignifica-das e de elevada qualidade. É chegado o tempo em que, de uma vez por todas, se tem que entrar num decidido caminho de valorização e de credibilização dos cursos profissionais. Só assim, não tenho dúvidas, se poderão garantir dois importantes objetivos: o cumprimento da escolaridade obrigatória e a melhoria das qualificações dos jovens através do aumento do número dos que procuram o prosseguimento de estudos.Nestes termos, as políticas públicas de Educação têm que investir significativamente na formação dos profes-sores das áreas técnicas, tecnológicas e artísticas, nos equipamentos, na orientação dos projetos de vida dos

O alargamento da escolaridade obrigatória

até ao 12º ano ou até aos 18 anos de idade,

decidido em 2009, é uma medida de grande

alcance, que inevitavelmente nos leva a refletir

sobre o Ensino Secundário: a generalização

dos cursos profissionais produziu efeitos que

abriram reais perspetivas para o democratizar,

contribuindo para consolidar a diversidade

das suas ofertas e a sua identidade.

estudantes, na informação às famílias e à comunidade em geral, na conceção e desenvolvimento curricular e na clarificação das reais potencialidades dos cursos profissionais. É preciso trabalhar para mudar a pacóvia representa-ção que insiste em valorizar a relação retórica e verbal com o conhecimento, desvalorizando ou desprezando uma relação mais concreta, mais prática se quisermos, com esse mesmo conhecimento. Mas esta mudança exige medidas de política que, tão rapidamente quanto possível, introduzam no sistema educativo mecanismos que contribuam para acabar de vez com preconceitos sem sentido, cujas consequências se têm traduzido em escolhas desajustadas por parte dos estudantes, na re-tenção e no abandono precoce. Tais medidas deverão permitir que os cursos profissio-nais contribuam decisivamente para que a escolaridade obrigatória seja efetivamente cumprida e para que o país possa ter uma oferta tão credível como qualquer outra.

3. Os dados disponíveis (Direção Geral de Estatísticas da Educação e Ciência, PORDATA) mostram que, após a generalização dos cursos profissionais nas escolas secundárias públicas, em 2006/2007, começaram a ocorrer interessantes mudanças relacionadas com esta modalidade de ensino. O número de alunos que a frequentavam passou de 4.302 em 2006 para 66.269 em 2011, estando hoje perto dos 70 mil. A taxa real de escolarização, que nos anos 90 do século XX e no primeiro lustro deste século se manteve essencialmente abaixo dos 60 por cento, ul-trapassou finalmente (!!!) este valor, passando a situar-se acima dos 70%. Em 2014, 22,7% dos alunos dos cursos profissionais eram oriundos de famílias em que o nível dominante de escolaridade da família era um curso superior e em que 35,4% eram filhos de empresários, dirigentes e profissionais liberais. A população estudantil que frequenta os cursos profis-sionais deixou de ser homogénea quanto à sua origem social. Ainda que a maioria continue a ser proveniente de camadas sociais menos favorecidas, a verdade é que essa situação tem vindo a alterar-se significativamente nos últimos anos.

4. A política de generalizar os cursos profissionais produ-ziu efeitos que abriram reais perspetivas para democra-tizar o Ensino Secundário, contribuindo para consolidar a diversidade das suas ofertas e a sua identidade. Assim, parece incontornável que os cursos profissionais cons-tituam uma modalidade de ensino de primeira linha, a todos os níveis, pois é aquela que, realisticamente, pode ter um papel mais determinante no cumprimento da escolaridade obrigatória, na qualificação dos jovens e na democratização real do sistema educativo português. Por isso mesmo, a agenda das políticas públicas de Educa-ção não pode ignorar o decisivo desígnio de desenvolver as ações que se impõem para que os cursos profissionais tenham o reconhecimento e o lugar que lhes compete no sistema educativo e na sociedade portuguesa.

Domingos Fernandes

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O direito dos adultosà educação

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CO discurso político-

-educativo da falta

de qualificações dos

portugueses não apenas

desqualifica e apouca

os portugueses, mas

também tem contribuído

para desqualificar as

políticas educativas e

enfraquecer a realização

efetiva do direito dos

adultos à educação.

Uma política, mesmo

que modesta, aberta

à pluralidade de

modalidades, atores,

saberes e agendas,

seria certamente mais

eficaz do que as derivas

utilitaristas que pouco,

ou nada, têm de

educação.

Com presença da UNESCO e expressiva participação internacional, realizou-se em finais de abril, em Brasília, o Seminário Internacional de Educação ao Longo da Vida e o balanço intermediário da VI Conferência Internacional de Educação de Adultos, genericamente designado CONFINTEA Brasil+6.Semelhante iniciativa, em Portugal, seria tão urgente quanto improvável. Não fora o encontro nacional promovido, na mesma altura, pela Associação Portuguesa para a Cultura e Educação Permanente, bem como as iniciativas levadas a cabo pela Associação Portuguesa de Educação e Formação de Adultos, a par das ações de algumas associações e instituições de Ensino Superior, e bem se poderia afirmar que a educação de adultos portuguesa permanece totalmente fora do discurso público, como é hábito entre nós. O governo português, ao contrário do governo do Estado espanhol, não se fez repre-sentar, em linha com o que ocorrera já com a ausência, ainda mais significativa, de um governante português na CONFINTEA VI, de 2009, realizada em Belém do Pará. Isso não impediu que Portugal tivesse subscrito o Marco de Ação de Belém, assim englobado na frase épica com que abre aquele documento: “Nós, os 144 Estados-Membros da UNESCO…”, reconhecendo formalmente a educação de adultos como “um compo-nente essencial do direito à educação”. Mesmo quando o relatório nacional de 2009 se limitava à lógica das qualificações e ao reconhecimento de competências, incapaz de descrever as práticas de educação de adultos e o estado da arte no país, que era o que lhe solicitava a UNESCO.Apesar da afirmação de valores inclusivos, emancipatórios, humanistas e democráticos, tal como da consagração de uma aprendizagem e educação de adultos abrangente, incluindo aspetos gerais, vocacionais, de alfabetização e educação da família, cidada-nia, entre muitas outras áreas que visam ampliar direitos e criar condições para que os cidadãos adultos “assumam o controlo de seus destinos”, as políticas e as práticas, entre nós, ficam irremediavelmente aquém. Daí tem resultado uma apropriação retórica e seletiva da CONFINTEA VI, que aquele documento antecipa quando chama a atenção para “a frequente ausência da educa-ção de adultos nas agendas de agências governamentais”. E ainda o quase completo desaparecimento do próprio conceito de educação de adultos no âmbito das políticas educativas, quase sempre para dar lugar aos lugares-comuns que em torno das “qua-lificações dos portugueses” se vão elaborando.

A REBOQUE DE DÉFICES E LACUNAS. Nada que também o texto da CONFINTEA VI não admita, criticando a fixação na capacitação profissional e vocacional: qualifica-ções, competências, habilidades instrumentalmente orientadas para a competitividade económica. Esquecendo que os princípios antes invocados de forma eloquente não são compatíveis com o protagonismo, mais ou menos insular, da formação de seres humanos mais competitivos e úteis, dessa feita abdicando da contribuição para a constituição de pessoas mais humanas e livres. Insistindo, assim, em lógicas de modernização técnico--instrumental, de feição extensionista (como diria Paulo Freire), em vez de viabilizar dinâmicas de desenvolvimento sustentável, democrático, pessoal e comunitário.Impressiona, para quem acompanha a educação de adultos em Portugal e as suas intermitências e contradições, como os governantes ainda não compreenderam a centralidade do direito à educação por parte da população adulta, especialmente nos casos em que tais governantes parecem assumir, discursivamente e a espaços, tal preo-cupação genérica. Quase sempre para vir a reduzir tudo, drasticamente, a programas emergenciais e a metas, especialmente em torno da população ativa, para a economia e o emprego, sob o lema do “défice” de qualificações, das “lacunas” dos portugueses e das respetivas crenças pedagogistas nas propriedades salvíficas da agora chamada formação vocacional.Uma política estrutural e constante de educação de adultos, mesmo que modesta, mas consistente, aberta à pluralidade de modalidades, atores, saberes e agendas, seria certa-mente mais eficaz do que as derivas utilitaristas que pouco, ou nada, têm de educação. O discurso político-educativo da falta de qualificações dos portugueses não apenas des-qualifica e apouca os portugueses, mas também tem contribuído para desqualificar as políticas educativas e enfraquecer a realização efetiva do direito dos adultos à educação.

Licínio C. Lima

Mais informação sobre o CONFINTEA Brasil+6 em

http://confinteabrasilmais6.mec.gov.br/images/documentos/coletanea_textos.pdf

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Carta aum meninoque vainascer

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GComo gostaríamos, Guilherme, de te apresentar a um planeta onde fosse possível anunciar que, finalmente, a fome e a pobreza começaram a ser derrotadas; um planeta onde os responsáveis políticos e nós, os cidadãos, havíamos, finalmente, compreendido que não somos os donos dele, mas apenas transitórios habitantes que partilhamos com as plantas e os restantes animais, o mar, os rios, as montanhas, os desertos, as savanas e o futuro.Gostaríamos de te escrever sobre sociedades onde a democracia seria mesmo o melhor de todos os sistemas, de-pois de ter sido entendida como o menor dos males quando o confronto se estabelece com a tirania das ditaduras; sobre como nos deixamos de contentar somente com a possibilidade de votar em eleições que deixaram de ser decididas pela força do marketing e da informação que, nos jornais, na rádio e na televisão, controla e decide qual é a realidade que devemos conhecer.

Quando nasceres, continuaremos a viver em sociedades onde somos todos iguais, ainda qua alguns sejam mais iguais do que outros. Ainda verás os refugiados a atravessarem o Mediterrâneo, fugindo das atrocidades e da fome para um lado do mundo que os acolhe de má vontade, depois daqueles que decidem terem andado a semear a guerra e o caos, sempre em nome da felicidade dos mesmos que acabaram por transformar em refugiados.Aprenderás connosco que a mentira é desprezível, ainda que seja a mentira que, na maior parte das vezes, governa o mundo que te vai acolher. Aprenderás que os roubos são inaceitáveis, apesar de haver gente que tem o que tem porque há roubos que, não sendo ilegais, são imorais. Vais aprender a falar e a compreender como as palavras constroem o mundo, mas vais aprender, igualmente, que as palavras, só por si, mesmo quando se escrevem, podem significar coisas diferentes conforme as circunstâncias.

Apesar de tudo o que está a acontecer, esperamos ansiosos por ti. Queremos-te connosco!Não será o cinismo e a desfaçatez dos poderosos que nos irá impedir de te receber com toda a disponibilidade que tu, e todos os bebés do mundo, merecem da parte dos seus avós. Não escrevemos a carta que gostaríamos de te escrever, mas estamos aqui para assumir os compromissos que temos para contigo.Também nós estamos prontos para te acolher, embalar, dar banho, mudar fraldas, cantar baixinho e encantar. Descobriremos porque choras pelo modo como choras. Esperaremos pelo primeiro dente, a primeira de todas as esperas que a tua vida nos reservará. Serão os teus primeiros passos, as primeiras palavras, o primeiro desenho, o primeiro texto e todas as outras primeiras experiências que irão fazer de ti a pessoa que irás ser.É por ti, mas também pelos meninos e pelas meninas como tu, que temos mais uma razão para vivermos e lutar-mos por um mundo melhor. Um dia aprenderás que, ao contrário do que outros defendem, ninguém poderá ser completamente feliz enquanto, ao seu lado, houver quem não tenha as mesmas possibilidades de o ser.

Por isso, também por tua causa, temos mais um motivo para continuarmos empenhados na construção de uma Escola que deixe de discriminar os alunos pela sua origem social e cultural, étnica ou religiosa. Uma Escola onde a palavra inclusão não seja mais uma palavra vazia de uma ladainha que se invoca em discursos solenes. Uma Escola que seja um espaço culturalmente significativo e não um cemitério de ideias, uma espécie de monstro que a todos parece escapar e sobre o qual ninguém parece entender-se, enredados nas mil e uma armadilhas que não se resolvem e nos jogos de palavras sem sentido onde só ganha quem tem cartas escondidas na manga.Neste mundo onde acontecem coisas horríveis e onde há gente que nos faz duvidar se é mesmo gente como nós, também irás conhecer pessoas que não precisam da promessa do céu, das condecorações dos presidentes ou das primeiras páginas dos jornais para fazerem o que deve e tem de ser feito.Bem-vindo, Guilherme!

Ariana Cosme e Rui Trindade

Chamar-se-á Guilherme. É o nosso primeiro neto e esta não é a carta que

gostaríamos de lhe escrever. O que desejávamos era poder escrever uma mensagem

de boas-vindas a um mundo luminoso, de futuro esperançoso, que não estivesse

a ser governado ao ritmo e ao gosto do capital financeiro, cujo poder se encontra

plasmado nas siglas que todos conhecemos e nos rostos (sempre os mesmos) que

aparecem diariamente nas aberturas dos telejornais, nos debates televisivos e nas

redações dos jornais.

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ESTÁ ALGUÉM EM CASA?Fotografias de Maria João Leite,

criadora da página de Facebook “Batem Leve, Levemente”

(www.facebook.com/batemlevelevemente)

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Os batentes e as aldrabas são elementos constitutivos das portas, remetendo-nos assim também, e de forma singular, para a linguagem da hospitalidade. Situados no lado exterior da porta e revelando normalmente o gosto estético e a posição social do anfitrião, essas peças emblemáticas tanto podem servir para “bater a porta” como para “bater à porta”, sendo utilizadas nuns casos como forma de fechar a casa com segurança, protegendo-a dos intrusos, e noutros como forma de a abrir, facilitando ao hóspede a tarefa de fazer-se anunciar, isto é, de chamar a atenção de quem está dentro. Seja como for, quando um batente ou uma aldraba se fazem ouvir, então alguém está à entrada da casa, um desconhecido, um visitante ocasional, um familiar, um vizinho ou um amigo. A um nível fundamental, o que importa sublinhar é a capacidade de abertura ao outro, seja qual for a sua identidade, a história ou o motivo da sua chegada.

Isabel Baptista[retirado do editorial]

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Os espelhos de Alice

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AA intolerância e a xenofobia proliferam quando os senhores da guerra soltam

os seus peões para matar e minar os elos de cultura. Mas então brota a escola

cosmopolita, onde as histórias da história são escritas. A escola da comunicação

surge sempre, porque há sempre quem a faça surgir.

A PRAIA. Foi a primeira vez que ele viu a praia. Não tinha sido um passeio. Quando a coluna de soldados entrou na escola normal e na casa do diretor de serviços, seu pai, ele disse-lhe para pegar umas poucas coisas para partir. Levou um livro e um ursinho. Foram de comboio. Pouco tempo. As linhas tinham sido bombardeadas. Conseguiram uma boleia, em direção à costa. Objetivo: chegar ao Reino Unido. Entre Lille e Dunquerque, ficaram retidos numa estância balnear. Não havia barcos para civis, não se avançava. Ha-via confrontos entre soldados, mais atrás. Não se recuava. Restava-lhe ler histórias do livro para o irmão mais novo, que tinha dois anos, e para o ursinho do irmão; e fazia com que na escolinha improvisada passassem a ser três.

O CAMPO. Ela saiu com a mãe e com as irmãs, numa coluna de refugiados. O pai ficou, incumbido de chefiar o pelotão que seguraria a costa. Cada dia, em cada vila onde chegava, a coluna registava-se nas autoridades: “somos refugiados, seguimos amanhã.”Repetiram esta rotina até não conseguirem continuar viagem. Quarenta pessoas ficaram alojadas numa quinta, perto da fronteira espanhola. Durante o dia havia algum trabalho no campo, no qual podiam ajudar. À noite, conversava-se. Entre crianças e adolescentes, hóspedes e refugiados, im-provisaram uma “escola”.

O BECO. Vivia num beco, numa casa minúscula, por baixo do cheiro da fábrica de peles onde o pai trabalhava. Quando a fábrica de peles fechou, deixou de ver o pai. Alguns anos depois, mudou de país, de beco e de casa. Passou a frequentar a escola do bairro onde se falava uma língua incompreensível. No recreio, sim, tinha com quem falar.

A CIDADE DE LONA. Chegou à noite, depois de uma travessia num insuflável. Foi uma viagem que lhe ficou gravada, para sempre, na memória. Teve um medo que não consegue exprimir com palavras, quando uma onda envolveu o pequeno barco e todas as pessoas começaram a gritar. Rapidamente se organizaram e começaram a tirar a água de dentro do barco com chapéus e sacos. Alguns homens, entre eles o pai dela, penduraram-se borda fora e mantiveram o barco a flutuar. Uma embarcação militar encontrou o insuflável ao cair da noite. A pé, por terra, seguiram até à cidade de lona, onde as mães e alguns voluntários improvisaram uma pequena escola, para falar, desenhar e escrever o vivido, enquanto esperavam o que mais lhes iria acontecer.

A praia… Ele tinha dez anos. Voltou para a escola normal, parcialmente ocupada pela tropa alemã. A escola manteve--se aberta durante cinco anos, fintando os invasores. Ouvi a história muitas vezes, sempre que o meu pai falava da sua infância.

O campo… Ela tinha nove anos. Voltou para a costa bel-ga. A escola continuou, até ser bombardeada novamente, tal como a casa dela, cinco anos mais tarde, na altura da libertação. A minha mãe contou-mo tantas vezes.O beco… Ela tinha nove anos. Chegou à casa de bair-ro acompanhada pelo irmão. Em pequenos grupos, contando histórias e a sua história, aprendiam a língua flamenga com voluntários do bairro e do antigo beco operário. Contava a sua ainda curta infância, a minha vizinha da Turquia.A cidade de lona… As autoridades deixaram em pé a escola improvisada, uma das duas construções de madeira, quando se destruiu a cidade de lona onde a vizinha síria da minha irmã esteve alguns meses. Tem 13 anos. Traduz para esta nova língua estranha o que os pais dela não percebem do que lhes é dito no curso obrigatório de integração.

O ESPELHO. A intolerância e a xenofobia proliferam quando os senhores da guerra soltam os seus peões para matar e minar os elos de cultura. Mas então brota a escola cosmopolita, onde as histórias da história são escritas. A escola da comunicação surge sempre, porque há sempre quem a faça surgir. Entre os peões, há quem observe do outro lado do es-pelho, cultivando a ilusão de que não é usado. Como Alice, há quem atravessa o espelho. Partilha histórias com outros e ganha consciência, aspira a não mais ser usado. Como em toda a história da humanidade, em todo lado, também na Europa, entre 1939 e 2016.

Pascal Paulus

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Direitos humanos e migrações: por uma

nova cidadania

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31OOs direitos humanos, hoje, deverão considerar necessa-riamente a herança que a história nos transmitiu e aque-las que são as novas condicionantes e potencialidades do mundo contemporâneo, as quais, no seu conjunto, impõem não só a adequada perceção dos referenciais da vida de cada um e de cada sociedade por si e em con-junto, como também a própria conceção de cidadania enquanto expressão e fundamento dos direitos humanos.Destacamos, a este propósito, as seguintes constatações:

- a geografia do mundo contemporâneo não se con-fina mais a uma visão estaticamente territorialista e política, impondo-se antes a valorização de uma geografia social de movimento de populações que, transgredindo as antigas fronteiras, veem frequen-temente outras a serem erguidas; - a mundialização trouxe, entre outras valências, a proximidade do que era longínquo, suscitando tanto encontros inéditos como novos alheamentos e confrontos marcados pelos conflitos entre a pre-sença do outro e as representações cimentadas por preconceitos;- com a receção de contingentes significativos de migrantes, designadamente de refugiados, emergem renovadas perplexidades e tangências entre as ideias e vivências de identidade cultural, interculturalidade e trans-culturalidade, suscitando nomeadamente a irrupção de identidades híbridas, complexas, mul-tidimensionais e instáveis.

ALGUNS DADOS QUANTITATIVOS. O número espe-cial da revista Histoire, de dezembro de 2015, dedicado à problemática das migrações, ajuda-nos a compreender a importância e a dimensão dramática que este fenómeno assume nos nossos dias. Assim:

- desde logo, é fundamental tomar-se consciência de que o 24º “país” do mundo em população é o do exílio, com 60 milhões de pessoas exiladas em 2014 por causa da violência e, muito concretamente, por causa dos atentados aos direitos humanos;- em 2014, 660.000 pessoas pediram asilo na Euro-pa – entre junho e agosto de 2015, foram 367.929; ainda em 2014, 283.532 tentaram passar a fronteira externa da União Europeia de modo ilegal; parale-lamente, registaram-se 400.000 ordens de expulsão, das quais apenas 40% se efetivaram; entretanto, 441.780 estrangeiros habitavam na União Europeia (UE) de forma irregular;

A cidadania não pode ser mais uma prerrogativa política que se

confere ao conjunto de seres humanos de um Estado, mas antes uma

prerrogativa humana que, para ser consequente, deve adquirir uma

dimensão política universal concreta.

- Mas não há somente refugiados de guerra: assis-timos igualmente à progressão dos refugiados das alterações climáticas, frequentemente não reconheci-dos enquanto tais (a própria Convenção de Genève, único texto legal internacional de referência para os refugiados, não os contempla); todavia, em 2013, 22 milhões de pessoas abandonaram as suas terras devido a catástrofes naturais, calculando-se que, em 2050, serão 200 milhões; - os Estados acabam por delegar na Organização da Nações Unidas e em organizações não governamentais (ONG) um significativo espaço de soberania cons-tituído pelos campos de refugiados e de deslocados (no mundo, cerca de 2.500), criando uma situação complicada aos seus ocupantes, em termos de cida-dania – colocados nas margens dos Estados, qual o seu estatuto?;- uma das principais consequências do encerramen-to radical das fronteiras tem sido a diminuição do número de regressos, mesmo que as condições nos países de origem o permitam, a par do aumento ex-ponencial do número de clandestinos e das vítimas que tentam romper as barreiras criadas – acontece na fronteira dos Estados Unidos com o México e repete-se nas fronteiras externas da UE, onde nos últimos 25 anos morreram mais de 40.000 pessoas que tentavam entrar;- é falso que, por exemplo, com a crise da Síria, a maioria dos refugiados, em termos relativos, procure a Europa, onde não representarão mais de 2% da sua população – na realidade, só o pequeno Líba-no acolheu 1,7 milhões de refugiados; entretanto, na República Democrática do Congo, vivem cerca de três milhões de deslocados por força de outras calamidades e violências.

NOVA CIDADANIA. A cidadania não pode ser mais uma prerrogativa política que se confere ao conjunto de seres humanos de um Estado, mas antes uma prerroga-tiva humana que, para ser consequente, deve adquirir uma dimensão política universal concreta. A Escola, desde logo, mas igualmente todas as orga-nizações comunitárias da sociedade civil têm de ser impregnadas da consciência cívica que os dados aqui descritos e as reflexões que lhes são inerentes impõem. Em prol de uma nova cidadania…

Adalberto Dias de Carvalho

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Refugiados, direitos humanos, hospitalidade e

integração – o momento da Pedagogia Social?

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AA recente chegada de milhões de refugiados à União Europeia (UE), bem como a presença de pessoas nessas circunstâncias nos países limítrofes da Europa, constitui a maior crise humanitária que o continente enfrenta desde a Segunda Guerra Mundial. Face ao persistente impasse político verificado, o Comité Económico e Social Europeu identificou a necessidade de criar “um verdadeiro sistema europeu comum de asilo e uma distribuição equitativa dos refugiados”, além do estabelecimento de rotas seguras e regulares para a entrada dos refugiados na UE, a fim de evitar mais mortes, violações dos direitos humanos e a exposição ao contrabando e tráfico de seres humanos. O momento atual confronta-nos, pois, com duas grandes perguntas:a) Qual é o valor de uma pessoa? Como a maioria dos refugiados não pertence à esfera jurídica de nenhum país europeu, os sucessivos adiamentos de uma política europeia consen-sual de acolhimento destas pessoas assume ser, na prática, uma confissão de incompetência para elaborar um sistema universalmente válido capaz de medir o valor de uma pessoa. O que a situação dos refugiados vem denunciar é que, ao reconhecimento jurídico da pessoa na esfera estatal, e dos respetivos direitos humanos, deviam acrescer as componentes éticas e solidárias provenientes das outras esferas da vida pessoal e sociocomuni-tária, abrindo portas a uma salutar assimetria do reconhecimento do seu valor absoluto: como pessoas, somos iguais em valor/dignidade, para além das circunstâncias históricas em que nos possamos encontrar! Advogamos que o princípio do direito ético do estatuto de cada pessoa deve preceder o princípio dos direitos políticos, permitindo construir o universalismo dos direitos da pessoa que proteja a sua dignidade contra todas as formas de desrespeito ou ameaças à sua integridade.b) Que hospitalidade proporcionamos? A figura do hóspede encontra-se inevitavelmente indexada a um conjunto de representações sociais com designações ambíguas como são as de estrangei-ro (ou “estranho”), outro, convidado, visitante, cidadão, refém, emigrante, viajante ou outras figuras similares, e posto em relação com um conjunto de normativos jurídico-securitários como são a de Estado, direito nacional ou internacional, direitos humanos, de exílio ou de refugiado, de livre cir-culação, etc. E se não pode haver ingenuidade social, política e cultural no que diz respeito ao acolhimento de desconhecidos no interior das “nossas comunidades”, a perspetiva desconfiada e contratualista da hospitalidade deve ser repensada. Se é verdade que a hospitalidade é perpassada por sentimentos ambivalentes que oscilam entre a cautela e a desconfiança e a abertura ao outro sem pré-condições, pactos ou contratos, os modelos e projetos de acolhimento e de integração gizados nas sociedades europeias hão de revelar se o verdadeiro acolhimento do outro não o forçará a fazer prova diária da sua (forçada) identificação com o que é “nosso”...

IR MAIS ALÉM. Resolvidos os problemas mais urgentes, a dimensão so-cioeducativa da problemática do acolhimento e da integração dos refugiados nas nossas comunidades está, pois, colocada diante de nós. Em Portugal, têm-se multiplicado iniciativas e atores que protagonizam projetos meritó-rios tendo em vista estes objetivos. No âmbito da Pedagogia Escolar, há que referir o «Guia de Acolhimento: Educação Pré-Escolar, Ensino Básico, Ensino Secundário», que a Direção-

-Geral da Educação deu a conhecer, em março, concre-tizando, assim, a Agenda Europeia para as Migrações. No âmbito da sociedade civil, optamos por destacar a dinâmica de envolvimento de mais de 200 instituições, coordenada pela Plataforma de Apoio aos Refugiados (PAR). Um dos objetivos que a PAR materializa é a formação de centenas de técnicos e voluntários das instituições anfitriãs em regime de e-learning («Par(A)colher Melhor, Acolhimento e Integração dos Refugia-dos em Portugal»), dinamizada por uma parceria entre diversas instituições de Ensino Superior e instituições especialistas na área.E, no entanto, a multiplicidade de iniciativas e projetos, bem como de protagonistas envolvidos, merecia uma abordagem integradora quanto à dimensão socioeducati-va implicada no acolhimento e na integração desses refu-giados. Se, como afirma Zygmunt Bauman («Confiança e Medo na Cidade»), “viver na cidade significa viver em companhia de estranhos”, a convivência na cidade exige que se organizem as relações de proximidade-distância que se deseja fomentar, sendo a medida dessa distância, antes de tudo, uma construção psicossocial e cultural (Edward T. Hall, «A Dimensão Oculta»). Ora, carre-gando a Pedagogia Social a responsabilidade ética de fomentar o laço social significativo entre pessoas livres e iguais, através de projetos de aprendizagem social intersubjetivamente experienciados, a qualidade dessa experiência e desses laços atestará do grau de acolhimento e de integração das pessoas chegadas a nós na condição de refugiados. E se, num primeiro momento, importa congregar recursos e oferecer estratégias de integração dessas pessoas, visando a sua capacitação subjetiva e cívica – exemplo desta abordagem é o projeto Flucht Nach Vorn (Fuga Para a Frente), do Instituto de Pedago-gia Social de Berlim –, o ponto de vista situado entre o educativo e o social desta integração levanta um conjunto de interrogações mais amplas. A saber: será indiferente gizar modelos de integração social tendo por base uma noção de cultura ontologizada ou instrumental? Vai dar ao mesmo partir de uma conceção multicultural ou intercultural da inclusão? De que entendimento partem os projetos de inclusão quando apelam a políticas de solidariedade esquecendo as de alteridade? Não será este o momento oportuno para estabelecer uma parceria humilde, mas fecunda, entre investiga-dores e interventores em Pedagogia Social e dar um contributo socialmente útil para pensar os modos de ‘fazer sociedade’?

José Luís Gonçalves

A multiplicidade de iniciativas e projetos, bem como de protagonistas envolvidos,

merecia uma abordagem integradora quanto à dimensão socioeducativa implicada

no acolhimento e na integração dos refugiados.

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Repensando la integración educativa

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EEn el campo actual de la educación se ha fortalecido el uso del concepto “in-tegración” para dar cuenta de nuevos modos de establecer vínculos entre los grupos mayoritarios (o desmarcados) y aquellos grupos considerados como minorías (ya sean autóctonas, como el caso de los pueblos indígenas para los países latinoamericanos) o alóctonas (como los migrados desde África, Asia y América a los países europeos). En el «Diccionario de relaciones interculturales. Diversidad y globalización» (Universidad Complutense, 2007), Gunther Dietz señala que la noción de inte-gración surge como superadora de las nociones de aculturación o asimilación, donde se suponía que el grupo minoritario iba a perder sus rasgos característicos al insertarse en una sociedad mayoritaria. Así, se asume (idealmente) que en el proceso de integración se produce un intercambio más horizontal y recíproco, donde el grupo minoritario y el mayoritario colaboran y se enriquecen mutua-mente de los conocimientos culturales y lingüísticos de los todos.Sin embargo, el paradigma de la integración se sustenta en la ficción de la igual-dad de posibilidades socio-económicas que tienen los colectivos para participar activamente en los procesos de creación y transmisión de conocimientos, bienes y derechos (como aquellos vinculados a las esferas de la salud o la educación). Los críticos de este modelo han señalado la marcada desigualdad que caracte-riza a las sociedades capitalistas, la cual se expresa en diferentes posiciones y posibilidades de interlocución. Dietz recupera los planteos de Adrian Favell para indicar que el Estado-nación, en tanto entidad con gran capacidad de articulación de políticas públicas, se posiciona como receptor de las minorías, a las cuales debe hacerles un lugar “público” a través del establecimiento de determinadas medidas que se con-vierten en “filosofías públicas de la integración”.

UN NICHO FÉRTIL. Tales filosofías públicas se erigen a partir de visiones del mundo y representaciones de la realidad ligadas a contextos históricos particu-lares, encontrándose también fuertemente institucionalizadas. Estas filosofías públicas de la integración son producto y productoras de una contradicción que las caracteriza: mientras sus postulados indican que la política de la integración persigue la consecución de una inserción social en términos de mayor igualdad, en la práctica se ha demostrado que el medio para llevar a cabo la integración suele ser la hipervisibilización (y en muchos casos la estigmatización) de los sectores considerados diferentes.Desde la Antropología esta situación de contradicción entre los fines y los medios de los sistemas de integración ha sido abordada como la continuidad de un estilo de gobernanza que, tras el interés de permitir el acceso de mayor cantidad de población a los bienes y servicios estatales, esconde la intención de disciplinamiento, poder y desestructuración de los modos ‘otros’ de hacer frente a las necesidades humanas.Los antropólogos han encontrado en la “formulación de políticas de inclusión” un nicho fértil en el cual realizar preguntas (situadas y contextuales) sobre las visiones de sociedad – implícitas y/o explícitas –, que son proyectadas por los paradigmas vigentes, como el de la integración de las minorías. El estudio an-tropológico de la formulación de políticas públicas aparece como un campo sugestivo, desde el cual indagar el modo en el que los poderes estatales imaginan y construyen a los otros del Estado nación, es decir, brindan un corpus de infor-mación acerca de quiénes son y cómo piensan los gestores de políticas públicas, y los modos en que ellos imaginan que deben darse los vínculos entre individuos y colectivos en sociedades compuestas por diversos segmentos de población. El análisis de los modelos de integración es útil para entender cómo se crean y se recrean ideas hegemónicas sobre los “otros”. De igual manera, desde la Antropología de la Educación y la etnografía se puede conocer las formas en que las poblaciones “destinatarias” de las políticas educativas de integración (re)elaboran significados múltiples de tales iniciativas, apropiándose de ellas y rediseñándolas en base a sus propios fines y objetivos.

La noción de integración

surge como superadora de las

nociones de aculturación o

asimilación, donde se suponía

que el grupo minoritario

iba a perder sus rasgos

característicos al insertarse en

una sociedad mayoritaria. Así,

se asume que en el proceso

de integración se produce un

intercambio más horizontal

y recíproco, donde el grupo

minoritario y el mayoritario

colaboran y se enriquecen

mutuamente.

María Macarena Ossola,investigadora e professora de Antropologia

(Universidad Nacional de Santiago del Estero, Argentina);

pós-doutoramento no Instituto Politécnico de Leiria, ao abrigo do Erasmus Mundus Cruz del SurCumprindo o Estatuto Editorial, a PÁGINA respeita a grafia original do texto.

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«El Principito» en la educación intercultural

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EEs muy probable, casi seguro, que el lector ha tenido en sus manos y ha disfrutado de la lectura de esta be-lla y breve obra de la literatura universal, pensada y escrita para niños y para mayores, «El Principito», en portugués «O Principezinho». La novela de Antoine de Saint-Exupéry fue publicada en 1943, y en la actuali-dad está traducida a más de 250 lenguas y dialectos de todo el mundo.Traemos a colación este tema de la educación intercultural y la posible contribución pedagógica de «El Principito» porque recientemente ha defendido con brillantez su te-sis doctoral Olga María dos Santos Gordino sobre esta cuestión, O Principezinho, de Antoine de Saint-Exupéry, como recurso didático numa educação intercultural, y porque ante todo la obra puede sugerirse como un recurso pedagógico de gran atractivo para muchos profesores en sus tareas escolares cotidianas, para trabajar con los niños la educación intercultural.La sociedad de nuestro tiempo dista cada vez más de la homogeneidad y el uniformismo en su composición social. Los europeos, es obvio, no somos químicamente puros, ni siquiera genéticamente, y menos aún en lo cul-tural. Somos al fin el resultado de un complejo proceso histórico lleno de hibridaciones procedentes de pueblos y comunidades muy diversas. Si nos miramos al espejo de la historia, como sugiere por ejemplo el historiador J. Fontana, comprobamos que lo que somos hoy, euro-peos, es el resultado de numerosos cruces, encuentros y lejanías, llegadas y marchas, integraciones y expulsiones de comunidades de procedencia muy heterogénea. Algu-nos lamentables intentos de uniformismo hegemónico y excluyente a partir de la defensa de una raza superior (remitimos al holocausto del nazismo apostando por la raza aria) causaron millones de muertes de ciudadanos indefensos (judíos, gitanos, entre otros), mucho dolor personal y colectivo, y la posterior respuesta mayoritaria de una Europa que no desea nunca más volver a gene-rar y vivir un drama colectivo y genocidio semejantes.Las escuelas de hoy, sus instituciones y la compleja organización del sistema educativo, en nuestros países europeos y occidentales, son expresión viva de esta so-ciedad multicultural y diversa, y debieran tomar buena nota de ello para cumplir con justicia y éxito los obje-

tivos educativos que les pide cumplir la sociedad donde se insertan. En otras palabras, la escuela debiera adop-tar criterios firmes de acción pedagógica intercultural, para integrar e incluir, y no para expulsar a los niños que proceden de otras culturas, religiones, razas y len-guas, como consecuencia de la emigración por razones económicas o del exilio por otras de orden político, o que pertenecen a otras etnias que históricamente han permanecido al margen de los beneficios de la cultura y de la integración social, como ha sucedido con los gitanos entre nosotros.

PROPUESTA DIDÁCTICA. Es fácil deducir que nues-tra reflexión anterior guarda una estrecha relación con muchos de los elementos y valores que configuran el núcleo del mensaje de «El Principito». El autor de obra tan universal juega con la imaginación y el deseo de inclusión social con sus personajes. De manera en apa-riencia ingenua el principito visita planetas y culturas, propone valores de tolerancia y respeto, de acogida y amistad y no de expulsión y rechazo ante quien llega nuevo y diferente. Las diferentes narraciones construyen un discurso del encuentro y diálogo de culturas, por di-versas y lejanas que parezcan, porque al fin el mundo, el cosmos, pertenece a todos, y debemos escucharnos, hablar entre todos, entendernos.Lo interesante de la citada propuesta didáctica de Olga Gordino es que a través de experiencias de encuentro entre grupos de escolares de diferentes países europeos y con el uso de instrumentos informáticos relativamen-te asequibles se puede plantear un trabajo en las aulas explícitamente intercultural, tomando como base las lecturas y los debates que suscita «El Principito» a niños, padres y profesores. Merece la pena tomar nota de ello, porque no es una idea vaga, sino un material didáctico muy concreto que puede resultar muy provechoso para el trabajo intercultural en el aula, siempre que se den unas mínimas condiciones.En todo caso, siempre la lectura reposada de «El Princi-pito», una vez más, nos invita a la calma, a la reflexión, al cultivo de la humanidad, a pensar que es posible construir valores de amistad y no de competitividad y confrontación en la escuela y en la vida familiar, entre niños y adultos.

José Hernández Díaz

La escuela debiera adoptar criterios firmes de

acción pedagógica intercultural, para integrar

e incluir, y no para expulsar a los niños que

proceden de otras culturas, religiones, razas y

lenguas, como consecuencia de la emigración o

del exilio, o que pertenecen a otras etnias que

históricamente han permanecido al margen de

los beneficios de la cultura y de la integración

social.

Cumprindo o Estatuto Editorial, a PÁGINA respeita a grafia original do texto.

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40 anos da Constituição: algumas considerações impertinentesAD

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AA Constituição da República Portuguesa celebrou 40 anos de existência no dia 2 de abril. Ao longo deste período em que foi cuidando da sua maturidade, não se pode dizer que o tempo que lhe foi permitindo o desenvolvimento tenha sido particularmente tranquilo, designadamente na primeira década.Ciclicamente sujeita a revisões mais ou menos profundas (a primeira ocorreu quase seis anos depois, prolongando-se por ano e meio, e a segunda sete depois desta, em 1989), o tempo em questão passa do confronto marcadamente político a um tempo assumidamente sujeito a reivindicações e a exigências de retaliação económica de cujo processo resulta, em grande parte, a extinção dos traços revolucionários que caracterizaram o 25 de Abril. As revisões seguintes, particularmente as de 1992 e 1997, obedeceram a imperativos e desígnios de integração europeia decorrentes da aceleração e alargamento das condições do Tratado da União.Não obstante o caráter progressivamente contrarrevolucionário que foi caracterizando as diferentes revisões constitucionais (condição, aliás, indispensável à ‘normalização política’ do país no sentido da sua integração no contexto europeu), o processo de revi-são constituído pelas sucessivas medidas políticas de ajustamento às práticas europeias nunca excedeu o processamento democrático exigível pela própria Constituição, o que significará a flexibilização das suas disposições e princípios. A constitucionalização do regime – ou seja, a correspondência entre a vontade parlamentar dominante e a sua ex-pressão jurídico-política – acaba por ser, assim, uma das características mais marcantes destes 40 anos de regime.Se, formalmente, podemos aceitar este juízo sem grande contestação, o mesmo não se dirá quanto à concretização e aplicação das disposições legais favoráveis ao desenvolvimento socioeconómico, o que, evidentemente, não depende apenas da natureza institucional dos sujeitos em presença, que formulam o acordo das revisões, mas em grande parte condi-cionam o funcionamento da relação entre os sujeitos reais e os interesses materiais que constituem o fundo social do país.

INDIFERENÇA CONSTITUCIONAL. Nestes termos, não poderemos questionarmo-nos até que ponto o caráter constitucionalista dos interesses que tem presidido ao movimen-to das sucessivas revisões, designadamente das pós-revolucionárias, não tem pactuado com questões sociais, culturais e materiais que representam verdadeiros bloqueios para o desenvolvimento do país? A este propósito, e a título meramente ilustrativo, basta invocar a questão perpetuamente adiada do enriquecimento ilícito para nos darmos conta de que as tarefas da Constitui-ção obedecem a propósitos cuja conveniência está muito para além do entendimento do cidadão comum…Este caráter de constitucionalidade predominantemente indiferente aos problemas mais significativos do país pode reconhecer-se em outras áreas que, não sendo tão sensíveis como a acima invocada, não deixa de refletir um comportamento parlamentar muito problemático, dado o silêncio que cultiva face a determinados problemas socialmente chocantes e à realidade económica e cultural do pais que somos. É o que se passa, exem-plarmente, com a política adotada no domínio do ensino particular perante a atribuição de subsídios escandalosos a colégios recentemente construídos nas imediações de escolas públicas, quando a Lei prevê expressamente a atribuição de subsídios a “áreas carenciadas de rede pública escolar” (Lei 9/79).E o que dizer da total ausência de preocupação com o descalabro a que chegou a Edu-cação permanente em Portugal? Nada mais expressivo a esse respeito do que as palavras do presidente da Associação Portuguesa de Educação e Formação de Adultos (APEFA), Armando Loureiro, na Comissão de Educação e Ciência da Assembleia da República, no dia 10 de fevereiro:

“Portugal tem mais de meio milhão de cidadãos sem qualquer nível de escolaridade, sendo que uma percentagem considerável destes adultos se encontra na faixa etária dos 18 aos 65 anos. Em idade ativa, portanto.E o que fazemos? Que respostas apresentamos? Qual a estratégia integrada de forma-ção-educação-emprego aplicada a estes milhares de cidadãos, tão portugueses quanto qualquer um de nós, mas analfabetos, que não sabem ler nem escrever, e que tiveram de encontrar mecanismos para ludibriar o desconhecimento da leitura e da escrita?Senhoras e senhores deputados, nesta dimensão da Alfabetização, vivemos momentos de completa e absoluta estagnação, por constrangimentos operacionais e vazio legal”.

Será preciso ser mais explícito e frontal?

Manuel Matos

Até que ponto o caráter

constitucionalista dos

interesses que têm

presidido ao movimento

das sucessivas revisões,

designadamente das

pós-revolucionárias,

não tem pactuado

com questões sociais,

culturais e materiais que

representam verdadeiros

bloqueios para o

desenvolvimento

do país?

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RecomendaçãoOIT/UNESCO tem 50 anos

Valorização dos Professores

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OUA Recomendação Relativa à Condição do Pessoal Docente abrange todos os docentes, da Educação Pré-Escolar ao Ensino Secundário, do ensino público ou não, que assegurem ensino académico, profissional ou artístico, reconhecendo os seus direitos e responsabilidades e esta-belecendo padrões internacionais no que respeita às condições profissionais, materiais e morais necessárias para o exercício da sua missão. A formação inicial e contínua, o recrutamento, as promoções e a evolução na carreira, a se-gurança laboral e social, as obrigações e os direitos, bem como as condições de ensino-apren-dizagem, são alguns dos aspetos contemplados no documento de 1966, que defende como “indispensáveis” a estabilidade profissional e a segurança de emprego. São orientações que visam a valorização dos professores, o reconhecimento do seu contributo para o desenvolvi-mento humano, a garantia de que as condições de trabalho estão de acordo com a importância do seu papel e a defesa da sua participação na definição das políticas educativas, através das organizações que os representam. OIT e UNESCO lembram que a Educação deve, desde os primeiros anos escolares da criança, “visar o pleno desenvolvimento da sua personalidade humana e o progresso espiritual, moral, social, cultural e económico da comunidade, bem como incutir-lhe um profundo respeito pelos direitos humanos e pelas liberdades fundamentais”. Por isso, as duas organizações internacio-nais reconhecem o papel essencial dos professores no “progresso da Educação” e recomendam aos Estados-membros esse reconhecimento.O documento refere que a condição do pessoal docente deve responder às necessidades da Educação, definidas mediante os seus objetivos: “A realização perfeita destas finalidades e objetivos exige que os educadores desfrutem de uma situação justa e que a profissão docente goze do respeito público que merece.” Adianta, ainda, que a docência deve ser considerada uma profissão que presta um serviço público: “Esta profissão exige dos educadores não apenas conhecimentos profundos e competência especial, adquiridos e mantidos através de estudos rigorosos e contínuos, mas também um sentido das responsabilidades pessoais e coletivas que eles assumem para a Educação e bem-estar dos alunos a seu cargo.”Em 1993, o documento foi consagrado como orientador das medidas de política educativa relativas aos professores, garantindo a dignificação da profissão. Em 1997, foi adotada uma nova recomendação, que completa a anterior, abrangendo todos os docentes e investigadores do Ensino Superior.

Maria João Leite

No dia 5 de outubro de 1966, a Organização Internacional

do Trabalho (OIT) e a Organização das Nações Unidas

para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO)

assinaram uma recomendação aos governos dos Estados-

membros relativa à situação dos docentes, aprovada na

Conferência Intergovernamental Especial que decorreu em

Paris. A fixação do Dia Mundial dos Professores celebra

aquela data.

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“Valorizar a Profissão,

Reafirmar a Escola Pública”

Fenprof realizou congresso no Porto

Maior organização sindical de

professores evocou três efemérides

fundamentais: 50 anos da

Recomendação da OIT/UNESCO

sobre a condição docente, 40 anos

da Constituição da República

Portuguesa e 30 anos da Lei de

Bases do Sistema Educativo.

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CCerca de 600 delegados dos vários sindicatos constituintes da Federação Nacional dos Professores (Fenprof) estiveram reunidos no Porto, em finais de abril, no 12º Congresso da organização, subordinado ao tema “Valorizar a Profissão, Reafirmar a Escola Pública”. Que caminhos seguir para confirmar estas metas, numa altura em que ainda é preciso defender quer a dignidade profissional do professor quer a Escola que deve ser de todos e para todos?Nos dois dias de encontro, os delegados expuseram as suas preo-cupações e apontaram soluções em temas diversos em torno das condições de trabalho dos educadores e professores, dos seus direitos, da democracia nas escolas ou da inclusão. Do debate realizado, resultou a aprovação de um plano de ação em que se destacam duas iniciativas imediatas. “Uma delas em torno da gestão democrática das escolas. Vamos lançar o debate, através de um inquérito para ouvir a opinião dos professores, porque precisamos de recolocar esta questão. A gestão democrática é essencial para as escolas, porque separa efetivamente o pedagógico do administrativo, do financeiro, do que são competências de agentes exteriores à escola. E só num quadro de gestão democrática, de facto, pode haver autonomia”, explicou à PÁGINA o secretário-geral da Fenprof, Mário Nogueira. “A outra iniciativa tem a ver com as carreiras e com a profissão. Temos tido iniciativas desgarradas, umas em defesa da vinculação, outras em defesa de uma aposentação mais cedo ou dos horários de trabalho. E entendemos que era altura de fazer convergir todos estes justíssimos motivos de luta num espaço comum, porque, no fundo, tem a ver com todos.”O balanço deste encontro é positivo e pode ser resumido em pala-vras-chave como “mudança”, “diálogo”, “luta” ou “democracia”. Para o dirigente sindical, os professores perceberam que este não é um tempo de “apenas resistir”, embora ainda seja necessário fazê-lo. É tempo, também, de perceber que há “disponibilidade” do outro lado para dialogar. “Tivemos de pensar não apenas na resistência, mas também na construção, muito. Se o tempo que se anuncia de diálogo for de diálogo efetivo e consequente, permitirá de facto avanços grandes no plano da Educação.” E o trabalho de casa da Fenprof está já bastante adiantado…No ano em que se assinala o 50º aniversário da Recomendação da OIT/UNESCO relativa à situação dos professores, Mário No-gueira lembrou que esta é uma data com significado. “Na verdade, embora tenha sido feita há 50 anos, conseguimos encontrar nela uma grande atualidade. Muito do que ali está, está por cumprir, dentro de um contexto e de um quadro que é hoje.” Questões que têm a ver com a formação dos professores, a autonomia no exercício da profissão, a liberdade académica, a participação do-cente na definição das políticas educativas, entre outras, fazem parte do documento. “Está lá tudo!” Entre as datas redondas que se assinalam este ano, e que a Fen-prof evocou no congresso, estão também os 40 anos da Consti-tuição da República Portuguesa – “atualíssima, no essencial; em vez de andarmos muitas vezes a discutir se deve ser alterada ou não, devíamos era ver se está a ser respeitada; porque, para ser cumprida, há muito que fazer” – e os 30 anos da Lei de Bases do Sistema Educativo. “Um ano de anos certos”, efemérides para lembrar aos professores que “há direitos que, se deixarem de se exercer, um dia acabam”. Estas datas “são fundamentais e nunca devemos esquecê-las”.

Partilha de RealidadesA anteceder o congresso, propriamente dito, a Fenprof promoveu uma conferência sindical internacional dedicada ao tema “Um sindicalismo progressista ao serviço da Educação para todos”. Foi um espaço de partilha de realidades e um momento de re-flexão e de união de esforços que contou com a presença de 60 convidados, representando 39 organizações de 26 países de todos os continentes. E se há problemas que são transversais à grande maioria dos países, outros são únicos e contextualizados. Os ataques aos professores e à qualidade do ensino público, a sobrecarga dos horários, os cortes nos salários, as alterações cur-riculares, as desigualdades no acesso à Educação, a desvaloriza-ção da profissão, as negociatas e a privatização do ensino, foram alguns dos assuntos e preocupações partilhadas pelos dirigentes sindicais de grande parte dos países.Alguns deles, contudo, atravessam momentos de grande instabili-dade, e não só no que toca à Educação: países em guerra ou onde a democracia sofre rudes golpes, territórios ocupados e oprimidos, escolas ocupadas para se tornarem bases militares ou hospitais de campanha, países onde apontar as falhas pode levar à prisão ou à morte. “Não conseguimos defender o direito à Educação sem antes defender o direito à vida”, sublinhou Bayram Erkul, dirigente turco. Ou, como contou o dirigente da Colômbia, Luís Ibarra, “os professores são mortos, porque são os que trazem a paz e a democracia, o que é um obstáculo às plataformas de ne-gócios”. Algumas destas realidades foram ouvidas pela PÁGINA e são reportadas mais adiante. Por isso, é essencial o fortalecimento dos laços entre professores e sindicatos de todo o mundo e a realização de ações conjuntas, solidárias e de luta, por uma Educação de qualidade. Na abertura da conferência, Manuela Mendonça – coordenadora do Sindicato dos Professores do Norte (SPN) e do Departamento Internacional da Fenprof – lembrou Nelson Mandela, “a Educação é a arma mais poderosa que podemos usar para mudar o mundo”, e acrescentou: “Sem Educação não há democracia, porque sem conhecimento não é possível saber quais as escolhas que nos interessam. Sem Educação não há progresso, porque é através dela que se forma o capital humano, ou seja, a riqueza mais valiosa e sustentável de qualquer país.” Tudo isso faz com que “a exigência de uma Educação para todos seja a primeira bandeira da luta sindical”.

Maria João Leite

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A IE representa organizações de vários países, pelo que reúne também uma diversidade de problemas e desafios. Quais são as grandes lutas?Bem, há três grandes lutas e estão todas relacionadas. Temos uma primeira batalha, pela pro-fissão; as condições de trabalho e o estatuto dos professores estão a deteriorar-se e esta é uma importante batalha, que nós vamos ganhar. Uma segunda é sobre os sistemas escolares; os governos estão menos inclinados a fazer os in-vestimentos necessários na Escola Pública – as escolas públicas estão a ficar mais fracas e isso acontece em quase todo o lado, não é só em Portugal, não é só na Europa…

É um problema global.É um problema global. O setor privado está a preencher o vazio e a entrar no domínio público. Pensamos que é errado. Não porque somos concorrentes – eles ajudam-nos na produção de material escolar, na construção de escolas, e não temos nenhum problema com isso –, mas a partir do momento em que começam a administrar as nossas escolas e a organizar a Educação na base do “lucro”, aí temos de dizer basta, pois não é isso que acreditamos que o futuro das nossas crianças merece. Acreditamos fortemente que os governos são responsáveis por uma Educação de qualidade, no Ensino Primário e Secundário. Esta é uma batalha muito compli-cada, porque também tem a ver com a globalização das economias. Há quem queira que a Educação se torne uma comodidade e nós acreditamos que é um direito. E enquanto o direito dos investidores prevalecer sobre os direitos dos estudantes, e os direitos humanos na genera-lidade, não há espaço para cooperações no domínio público.

A Internacional da Educação (IE) é a maior federação de sindicatos do

mundo: representa mais de 30 milhões de profissionais da Educação, de

cerca de 400 organizações. O secretário-geral Fred Van Leeuwen esteve

no Porto, para participar no 12º Congresso Nacional dos Professores,

e falou à PÁGINA sobre os grandes desafios da IE e a importância dos

sindicatos no caminho rumo a uma Educação de qualidade.

ORA DIGA LÁ

Fred Van Leeuwen

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E qual é a terceira batalha?A terceira é para proteger os direitos dos sindicatos, proteger os nossos direitos e participar no desenvolvimento das políticas educativas. Não queremos estar à margem; acreditamos que os professores e os sindicatos de professores são os especialistas no que se refere à Educação e os go-vernos não podem simplesmente impor o que se vai fazer. Portanto, são três batalhas: a profissão, o sistema e os sindicatos.

Sindicatos, que têm um papel importante...Sim, embora também precisemos de olhar para nós de forma crítica. Um dos problemas que eu acredito que muitas organizações de professores estão a enfrentar é a falta de compromisso dos professores mais novos. Os professores mais jovens já não encontram uma lógica óbvia em per-tencer a uma organização e aí temos de ter muito cuidado. Por isso, há muito trabalho para fazer, não apenas externamente, mas também internamente. Temos de ter o cuidado de não ficarmos ir-relevantes. A geração mais nova de educadores já não faz parte dos sindicatos, o que significa que, apesar de ser muito difícil, o movimento sindical precisa de se “despolitizar”. Muitos jovens não estão minimamente interessados.

Isso pode ser resultado das políticas referentes à Educação?Sim, está tudo relacionado. Um desenvolvimento gera outro desenvolvimento. Mas precisamos de ter cuidado para não terminar numa espiral descendente. Eu acredito nestas três importantes bata-lhas, sendo a batalha pela profissão a mais importante, porque, se formos bem sucedidos na tarefa de fortalecer a profissão docente, todas as outras coisas vêm a seguir. Iremos tornar-nos uma parte tão crucial de qualquer decisão política em Educação que os governos não vão poder contornar a profissão. Podemos compará-la com os médicos, os advogados, os arquitetos. Nós estamos nessa categoria. O problema é que… O que é uma profissão? Uma profissão é um grupo de pessoas que determina os seus parâmetros; elas decidem quais são os seus padrões profissionais, como é o caso dos médicos, dos arquitetos, dos advogados. É o caso da maioria das profissões, mas não dos professores. Já foi, há muitos anos, mas não é mais. Por isso, outros que se autoproclamam especialistas decidem quais são os nossos parâmetros e acho que é algo que nós precisamos mesmo de mudar. Estou muito contente por ver que o tema do congresso é “Valorizar a Profissão”. É isso!

O que fazer para atrair os professores mais novos?É importante fazer da profissão docente uma proposta mais atraente. Em vez de, como agora, em muitos países, ser a última escolha. Ou seja, se eles falham numa meta satisfatória na vida pensam sempre que há a possibilidade de ser professor. Isso é muito importante, mas não apenas para atrair gente nova. É também para fortalecer realmente a profissão, para nos fazer mais fortes e indepen-dentes no que toca ao desenvolvimento dos critérios da profissão.

Também por isso, iniciativas como o 12º Congresso Nacional dos Professores são importantes?Bem, nós temos vindo a assistir a uma mudança na comunidade internacional; vemos cada vez mais organizações que apoiam os esforços dos professores na recuperação do controlo da sua profissão, como a UNESCO ou a OCDE, por exemplo. Elas apoiam os nossos esforços para fortalecer e recon-quistar a profissão. E conferências com esta definitivamente ajudam, enquanto geradoras de energia.

Passam agora 50 anos sobre a Recomendação da OIT/UNESCO sobre a Condição da Profissão Docente. É uma data especial...Sim. E posso revelar um segredo: a recomendação foi escrita por uma das organizações-membro da IE. Isto é, foi escrita por profissionais da docência. Os governos alinharam, mas estou certo de que pensaram que era apenas uma recomendação, e não uma convenção, e que não iria fazer mal [risos].Mas é uma recomendação excelente! Descreve exatamente o que acreditamos que a profissão deve ser e os seus direitos; tem todos os elementos que referi quando falava da batalha pela profissão. No entanto, no círculo das organizações de professores, ficou conhecida como um dos segredos mais bem guardados – ao longo dos anos, tenho vindo a falar com ministros da Educação e muitos deles não sabiam sequer da sua existência. Tivemos e temos de chamar a atenção deles para isso. Em se-tembro, durante a Assembleia Geral das Nações Unidas, vamos organizar um evento para celebrar o aniversário da recomendação e vamos juntar vários professores e sindicatos de professores. Não queremos deixar passar a data sem que se fale disto.

Maria João Leite

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Antecedendo a realização do 12º Congresso Nacional dos Professores, a Fenprof

promoveu uma Conferência Sindical Internacional sob o lema “Um Sindicalismo

Progressista ao Serviço de uma Educação para Todos”, em que participaram as

43 organizações internacionais presentes no congresso. A PÁGINA falou com

representantes de alguns sindicatos de diferentes latitudes do globo sobre a situação

política e social dos respetivos países, a educação, os sindicatos e as grandes lutas,

e ainda sobre a recomendação da OIT/UNESCO sobre a condição da profissão

docente.

Vozes do mundoda Educação

ROBERTO LEÃO.Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE, Brasil)

• O que nós temos hoje no Brasil é uma situação de golpe contra uma presidente eleita com 54 milhões de votos. Na verdade, é uma tentativa de desmontar, de destruir, um projeto político que valorizou as pessoas, um projeto político que trabalhou na perspetiva da dignidade de vida para os brasileiros que viveram durante séculos sem isso. Por exemplo, muitos brasileiros não conheciam a luz elétrica e passaram a ter acesso a esse bem, a partir de um programa do Governo Lula. Foram criados programas sociais que valorizam os trabalhadores e os filhos dos trabalhadores, que tira-ram da linha da miséria 30 a 40 milhões de brasileiros. Isso é o que está a ser combatido, por trás desse golpe, por uma classe dominante que não se conformou em perder as eleições. Eles querem voltar a colocar em prática um programa que visa entregar as nossas riquezas, que caminha para privatizar a Educação e a Saúde. Mas nós não aceitaremos nenhum retrocesso nos nossos direitos.

• No Brasil, pela Constituição, 25% dos impostos municipais e estaduais têm de ser aplicados em Educação. E temos uma estrutura de financiamento que foi construída ao longo do tempo, que é o resultado da luta histórica dos trabalhadores da Educação. Trabalhamos agora no Plano Nacional de Educação, que foi aprovado na Câmara. Mas querem acabar com tudo isso. Por exemplo, no meu Estado, São Paulo (o mesmo do senador José Serra, que querem colocar no Ministério da Educação e que é contra a vinculação de verbas à Educação), a Educação é absolutamente sucateada. Nós, professores, ganhamos mal, não tivemos nenhum reajuste no ano passado e neste, provavelmente, também não vamos ter.

• Hoje, a luta é pela democracia. A defesa da democracia está a unificar artistas, intelectuais, gran-des juristas, o movimento social, a maioria dos partidos políticos de esquerda... Relativamente à Educação, é a concretização do que está aprovado no Plano Nacional de Educação (PNE). Tivemos um avanço muito grande nesse período Lula/Dilma, com a criação de um mecanismo de financia-mento de toda a Educação Básica, que não existia no Brasil. E os mecanismos de financiamento estão agora em risco. Então, queremos que, por exemplo, em todos os Estados haja políticas de contratação dos trabalhadores por concurso público. Temos um número muito grande de professores

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contratados que não têm direitos; queremos que isso acabe, para que possamos ter uma Educação de qualidade. E para isso, é preciso que os trabalhadores tenham condições dignas e que trabalhem felizes. O PNE foi construído com essa lógica.

• Não tenho dúvidas que, depois desse ataque ao Governo, eles vão atacar a organização social, porque o grande foco de resistência são as organizações sociais, os sindicatos, as organizações dos estudantes, os movimentos sociais. Esse vai ser um dos próximos alvos, não tenho dúvidas disso.

• Há 50 anos, o mundo entendeu que precisaria de valorizar os trabalhadores, que o professor e o funcionário não são sacerdotes, são profissionais e precisam de ser valorizados como tal. Temos uma profissão diferente, que lida com gente e que, portanto, tem de ser feita com amor, com carinho, com muita compreensão e muito sentimento de humanidade. Para o professor fazer isso precisa de ser valorizado, precisa de estar tranquilo para exercer a sua profissão, coisa que infelizmente não acontece numa enorme quantidade de países. Este é, então, um momento de muita reflexão, que deve servir de incentivo para que a nossa luta continue a existir cada vez mais forte.

GERTRUDES PIÑEDA. Sindicato Nacional de Trabalhadores da Educação, da Ciência e do Desporto (SNTECD, Cuba)

• A situação política e social do país data dos 57 anos da revolução, à qual dedicamos o melhor da nossa vida e que preparou tudo para o futuro a pensar na melhoria do povo. Implementamos isso nestes anos, apesar de estarmos bloqueados pelos Estados Unidos desde essa altura, tanto a nível político como económico. Recentemente houve uma abertura nas relações diplomáticas, mas na realidade a situação não mudou: a tentativa política de asfixiar Cuba, de matá-la de fome, da falta de todo o tipo de recursos continua. Mas a posição de Cuba continua firme, com os nossos princípios revolucionários. O programa social é nosso e continuamos a desenvolvê-lo. Temos duas conquistas, que são a Educação e a Saúde, que continuam iguais, apesar das limitações do bloqueio.

• A Educação em Cuba é gratuita e está protegida. É um dos princípios da Constituição da Repú-blica, assim como a proteção da Saúde. Vê-se pela quantidade de educadores, trabalhadores do desporto e médicos que temos a cumprir missões e colaborações em mais de 45 países. Essa é a maior gratidão que temos, como cubanos, como profissionais e como dirigentes sindicais. A Edu-cação em Cuba está garantida desde o nível Pré-escolar e inclui o programa “Educa o teu filho”. É obrigatória desde o Ensino Primário até ao Pré-universitário.

• Nós não temos uma luta antagónica, porque temos a possibilidade de relações de trabalho com os três ministérios a que atendemos: da Educação, da Educação Superior e o Instituto Nacional de Desporto, Educação Física e Recreação. Quando os trabalhadores têm reivindicações, elas são apresentadas e analisadas e quando se chega à Conferência Nacional já há um conjunto de soluções e respostas às reivindicações. O Comité Central do Partido [Comunista] tem uma pessoa designada para atender cada sindicato. A administração e o sindicato estão de acordo em dar solução à rei-vindicação dos trabalhadores. Portanto, nós não temos lutas antagónicas, pelo contrário, os inter-câmbios que temos é para que os empregadores, a administração responsável pelos trabalhadores dê uma sugestão para os atender melhor.

• Os trabalhadores veem-se representados nos sindicatos porque atendemos o seu problema. E fa-zemos a mediação entre os trabalhadores e a administração, para que eles possam desempenhar a sua função com melhores condições de trabalho.

• Em Cuba cumprem-se este ano os 55 anos da Campanha de Alfabetização, os 50 anos da consti-tuição do nosso sindicato, os 55 da declaração do caráter socialista da Revolução… Cumprem-se os 55 anos da criação do Instituto Nacional de Desporto, Educação Física e Recreação e do Ciclo Infantil. Assim, temos muitas motivações para continuar a trabalhar e para continuar a represen-tar os nossos trabalhadores. Todas estas motivações permitem-nos continuar a avançar em favor da Educação. Porque nós já garantimos uma Educação de qualidade em Cuba. Neste congresso, notámos que, independentemente da situação que prevalece nos países, há uma maior procura da privatização. Há a vontade dos dirigentes sindicais de fazer uma Educação Pública de qualidade, porque é muito importante para um indivíduo aprender a ler e a escrever, aprender a ser livre. E isso só se alcança com uma educação pública, mas de qualidade. Nós garantimos há muitos anos a Educação como é contemplada na Constituição da República.

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TRUDY KERPERIEN. União Geral da Educação (AOb, Holanda)

• A situação em geral é melhor do que na maioria dos países que estão aqui representados [Conferência Sindical Internacional]. Mas também temos alguns desafios, consequência das medidas tomadas pelo Governo por causa da crise. Eles aproveitaram-se da crise para mudar aquilo que queriam mudar.

• Nos últimos tempos, houve medidas muito más para os professores, para a profissão e para a qualidade da Educação. Por exemplo, já tínhamos o problema de salários modestos relativamente a outras profissões com as mesmas qualificações universitárias e já tínhamos problemas em atrair pessoas para a profissão. Então, em 2009, os salários congelaram, primeiro na Educação Primária, depois no Secundário e outros setores. E apenas agora, desde há dois meses, é que sabemos que va-mos ter um pequeno aumento. Mas os salários são ainda piores do que antes, porque a inflação fez aumentar os preços. Tudo mudou, mas os salários dos professores não. Por isso, agora temos um número reduzido de professores. Somos um país rico, que não deveria ter problemas, mas temos. Por exemplo, no Ensino Secundário, temos vários professores com pouca qualificação. A profissão não é atrativa, porque os salários são baixos, estão congelados, não há perspetivas, é preciso tra-balhar muitas horas e às vezes em situações difíceis…

• A grande luta é a valorização da profissão. A nossa profissão foi-nos retirada: à parte do problema do salário, outros decidem sobre o que temos de fazer, quando e como. E temos uma ministra que diz que não fala com sindicatos, que fala com professores. O que não faz sentido, porque somos todos professores. Ela fala com cinco professores, mas nós representamos muitos mais! Há algumas pessoas no Governo que pensam que a Educação é algo que qualquer pessoa na rua pode transmitir. E, tal como vocês em Portugal, outros estão a tentar decidir sobre o que os professores devem fazer, sobre os exames, as constantes avaliações… O que não é valorizada é a componente humana, que é muito mais do que aprender competências para o mercado de trabalho. Uma das nossas batalhas é fazer com que a profissão volte para as nossas mãos. E tentar fazer com que a Educação volte a ser o que deve ser e não apenas um treino para o mercado de trabalho. O nosso Governo quer fazer tudo mais eficiente e mais excelente, mas com todas as medidas tomadas nos últimos anos o orça-mento para a Educação foi reduzido e foram bloqueados alguns meios alternativos para os alunos. Um relatório da Inspeção da Educação revelou que o fosso entre as perspetivas e os resultados das crianças mais desfavorecidas e das mais ricas é cada vez maior.

• Eles tentam ignorar os sindicatos, mas temos feito sempre muita pressão. É uma batalha que todos temos de travar. Tentamos pôr todos os assuntos importantes em cima da mesa; temos negociações para acordos coletivos na Educação Primária e Secundária. Devemos assinar em breve, para os dois setores, um novo acordo coletivo com um aumento salarial. É a primeira vez em muitos anos. Por isso, parece que todos os nossos esforços tiveram um efeito.

• É importante que as pessoas pensem nos professores, porque eles fazem parte da vida dos seus alunos, são os profissionais que sabem como ajudar uma criança a encontrar o seu caminho na sociedade, no seu país, na economia, na vida.

TAKAYA DANBARA. Sindicato dos Professores e Trabalhadores Japoneses (ZENKYO, Japão)

• Há cada vez mais intervenções políticas na Educação. Como professores, sentimos que temos direito de decisão e que a nossa liberdade está ameaçada pelo poder político. Pensamos que isso tem um impacto direto nas crianças e que cada vez mais os alunos não gostam de ir para a escola aprender.

• A maior batalha consiste na mudança da situação que descrevi. E uma maneira de fazer isso é aumentando o Orçamento de Estado para a Educação.

• Os sindicatos são importantes no caminho da luta por mais qualidade na Educação. No Japão, o Governo está a tentar reduzir o poder dos sindicatos. Acredito que se o Governo está a tentar fazê-lo é porque eles mesmos acreditam que os sindicatos têm o poder de mudar a situação política e social no país. Por isso, eles têm medo de nós.

• Acreditamos que a Recomendação é muito importante. Com base nela, nós fizemos já diversas rei-vindicações, como por exemplo sobre o acesso à profissão e sobre problemas dos professores que estão a adquirir competências para ensinar e trabalhar com crianças. Mais recentemente, fizemos uma outra alegação relativamente à condição dos professores que fazem uma ‘maratona’ de horas a trabalhar.

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MOHAMED EL HANACH. União Geral de Trabalhadores de Saguia el Hamra e Rio de Ouro (UGT SARIO, República Árabe Saharaui Democrática)

• O nosso território está ocupado por Marrocos desde 1975 e estamos divididos em duas partes. Há pessoas que vivem no território ocupado e outras como refugiados. É uma situação muito perigosa, mas estamos a lutar. Fizemos um acordo de paz com Marrocos para que possamos fazer um referen-do para sermos livres, mas Marrocos não quis fazer nada até ao momento. Nos acampamentos, a situação é dura, porque vivemos apenas de ajudas, não temos nada. Mas temos de aguentar. Temos de lutar até que o nosso país seja livre e esperamos que este conflito tenha uma solução justa, porque a nossa causa é justa. Necessitamos de ajuda política, porque na Europa, por exemplo, os governos não reconhecem a República Árabe Saharaui Democrática. Somos reconhecidos por quase 80 países do mundo, mas não pela Europa, não sei se por medo ou por causa de negócios.

• Até 1975, quase todo o povo era analfabeto, mas o primeiro governo saharaui fez um esforço grande contra o analfabetismo. Construímos escolas, acertamos relações com outros países, como Cuba, Argélia ou Líbia, para que os alunos pudessem estudar lá. Agora todos sabem ler e escrever. Todos os professores e todos os encarregados são saharauis. E quase 80% do corpo docente são mulheres. As mulheres são tão importantes como os homens. Outra coisa importante é não termos nenhum problema de linguagem. O espanhol é a nossa segunda língua, mas há quem tenha estu-dado russo ou português, por exemplo. Construímos um país, agora precisamos da independência.

• Queremos uma cooperação com os sindicatos europeus, para que nos transmitam a sua experiência, uma vez que os nossos existem há poucos anos. A grande batalha para sair disto é podermos fazer um trabalho conjunto para resolver os problemas. Mas é preciso referir que agora os professores trabalham gratuitamente, são voluntários, porque não há dinheiro. É mais difícil. São os professores, os médicos, etc. Porque é uma revolução. Podíamos vir para a Europa trabalhar, mas não – temos uma causa que é a independência do nosso povo.

• A força dos sindicatos é importante. Nós trabalhamos, fazemos tudo como se o nosso país fosse independente, mas falta muito… Mas temos esperança na independência.

• É uma data especial para todos os professores. A Recomendação tem 50 anos e nós temos este problema... A UNESCO faz todos os anos uma visita aos nossos acampamentos, porque somos refugiados. Para nós, está muito tranquilo, mas há gente nossa que vive no território ocupado e, para esses, tudo está fechado. Por isso, queremos a solidariedade da Europa.

GASTÃO FERREIRA. Sindicato dos Professores e Educadores de São Tomé e Príncipe (SINPRESTP)

• Temos conhecido alguns progressos ao nível da Educação. Neste momento, temos quase 95 por cento das crianças no 1º Ciclo do Ensino Básico e o Governo tem estado a intensificar a ação para a inclusão das crianças no Pré-Escolar, porque é um nível de ensino facultativo e querem torná--lo obrigatório, para que as crianças tenham uma base de continuidade para os anos seguintes. A Educação não é má no nosso país, mas temos alguns constrangimentos. Somos um país pequeno. Mas, tendo em conta a atual taxa de natalidade e a redução do paludismo (o que tem levado à diminuição de mortes infantis), temos neste momento um grande número de crianças a entrar para o sistema educativo. E não nos preparamos antecipadamente para acolher todas essas crianças.Temos poucas salas de aula e, assim sendo, é urgente encontrar uma solução para o excesso de alunos. Nesta altura, o Governo também tem estado a apostar bastante na capacitação e formação dos professores e pretende, nos próximos cinco anos, ter todos os professores dentro do sistema educativo com formação.

• Temos de lutar para minimizar a situação socioeconómica dos professores, que é precária. Aqui-lo que os professores auferem mensalmente está muito aquém do que é digno. Nós, professores, temos de optar por outros trabalhos complementares, fora da Educação, para haver o mínimo de sobrevivência. Outra luta que temos prende-se com o número de alunos por turma. Neste momen-to, temos turmas com 80 ou 90 alunos numa sala de aula. Isso tira a capacidade do professor dar resposta a uma Educação de qualidade. Outro problema, devido à escassez de recursos financeiros do país, é não termos livros didáticos suficientes; muitas vezes trabalhamos com sebentas e obriga-toriamente temos de tirar fotocópias dos livros. Isto é apenas um alerta: não teremos uma Educação de qualidade se não tivermos condições e meios didáticos suficientes para que possamos ilustrar com verdade a matéria.

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• O sindicato está atento. Estamos a fazer os possíveis para assumirmos um papel de relevância. Nós e o Governo temos de trabalhar de mãos dadas. Somos parceiros. Mas o contraditório tem de existir. E em democracia muitas vezes o contraditório é visto como oposição, como inimigo, como aquele que quer pôr em causa a governação. Pensamos o contrário. Por isso, vamos continuar a lutar e, quem sabe, em breve encontraremos uma solução airosa para dar resposta a uma Educa-ção de qualidade. Podemos conhecer um retrocesso se o sindicato não fizer o seu verdadeiro papel. Numa altura de crise, os financiamentos têm sido escassos. E não havendo investimento na Escola Pública, esta perde a sua qualidade, o que vai fortalecer as escolas privadas. Portanto, o sindicato tem de estar muito atento para não cair neste erro e pôr em causa a Escola Pública.

• É um documento de extrema importância, porque a classe docente sofre alguns constrangimen-tos, por exemplo, financeiros. O que os professores auferem não é o condigno com o trabalho que prestam, e em África a situação é pior. Por isso, nós temos tido uma luta árdua pela implementação do Estatuto da Carreira Docente. Nos últimos tempos, travámos uma batalha com o Governo – chegámos a estar em greve – para a melhoria salarial dos professores e para a implementação do Estatuto, que já foi publicado em Diário da República. Estamos em crer que, com força, coragem e união, vamos alcançar as metas desejadas. E se assim for, vamos encontrar um meio caminho para a valorização dos professores, pois só assim teremos uma Educação de qualidade. Por mais projetos que se criem no mundo, a Educação de qualidade depende daquele que estiver dentro da sala de aula. Então, o professor tem um papel extremamente importante, quer nos ensinamentos aos alunos, quer na construção do futuro.

DEMBA THIAM. Sindicato Autónomo dos Professores do Secundário Médio do Senegal (SAEMSS)

• Apesar de algumas falhas, estamos a viver em democracia. Já conseguimos duas alternâncias po-líticas, o que significa que as pessoas começam a ter uma certa maturidade política e a interessar--se pela política. Há muitas melhorias do ponto de vista político. Mas há certas escolhas que não são livres e isso fragiliza um pouco a liberdade política e a liberdade dos cidadãos. Mas podemos dizer que o Senegal é um país democrático; os senegaleses exigem o respeito pela Constituição que todos votaram.

• Um dos focos do Programme Décennal de l’Education et la Formation (PDEF) é o acesso à Edu-cação. Há muitas dificuldades e as condições são difíceis para os alunos estudarem. Nas aldeias, os professores dão aulas em abrigos provisórios – provisórios, muitas vezes, durante décadas… Além disso, quase não há livros. Há turmas, há alunos, mas há um problema de infraestruturas. Enquanto sindicalista, visito algumas regiões e encontro os colegas a dar aulas em condições difíceis. Mas, apesar disso, tentam ser sempre muito profissionais. Os professores tentam dar o melhor e os senegaleses desejam poder gozar de um direito, de um bem primordial, que é a Educação. Nós encorajamos e damos ânimo, e vamos lutar para resolver com o Governo estes problemas.

• Estamos numa luta que começou em março, porque em África os políticos não respeitam os com-promissos. Fizemos uma greve no ano passado, acreditamos que tudo ia ficar resolvido, mas os compromissos não foram respeitados. A Escola Pública senegalesa sofre alguns problemas, como a precariedade de muitos professores. Há professores temporários, mas não são pagos por horas efetuadas. E vão ser temporários até quando? Há professores que estão a dar aulas e sem perspeti-va profissional. Estamos a lutar para que eles tenham formação. Também temos alguns problemas relativamente às mudanças de grau e aos salários. Os professores não estão a ser tratados da mesma forma que os colegas do mesmo nível hierárquico de outros quadros da Função Pública. Isso cau-sa, naturalmente, uma certa frustração e nós pedimos justiça. Queremos igualdade no tratamento salarial entre os agentes da Função Pública.

• Os professores sabem que sem os sindicatos não vão ser respeitados. Com os sindicatos ganhamos no passado muitos proveitos, mas temos de continuar a lutar. Não pedimos mais do que os outros, pedimos só para sermos tratados de forma igual, temos o direito de pedir o mesmo tratamento entre trabalhadores da Função Pública com o mesmo nível de qualificação profissional. Só estamos a pedir justiça. Não estamos a pôr na mesa do Governo novas reivindicações, estamos em greve apenas para exigir o respeito pelos compromissos. Mas infelizmente, às vezes, os governantes não hesitam em oprimir, privando os trabalhadores de exercer os seus direitos.

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BAYRAM ERKUL. Sindicato dos Trabalhadores da Educação e da Ciência (EGITIM SEM, Turquia)

• A Turquia faz parte do caos no Médio Oriente. Cultural, económica e socialmente, a Turquia está em perigo, perto de um desastre. A guerra na Síria espalhou-se por todo o Médio Oriente e nós agora temos também uma guerra civil no nosso país, na parte do Curdistão, que vive momentos de muita violência. A Turquia é uma parte dessa guerra agora. E além disso o Governo turco tem uma nova filosofia e comporta-se de acordo com isso; tenta cumprir todos os objetivos imperialis-tas e quem está contra isto vai para a prisão, é morto ou oprimido. E as pessoas estão fartas disso.

• Podemos centrar os problemas da Educação na Turquia em três tópicos: a guerra civil que está a acontecer no país; a ideologia do Governo; e as políticas neoliberais do sistema capitalista. Sobre a guerra civil na parte curda, são cinco as cidades onde não houve aulas este ano; as escolas foram fechadas e evacuadas pelos militares, para as usarem como bases militares; há recolher obrigató-rio, há bombas nas cidades e os civis estão a morrer. Então, não podemos falar de Educação nestes sítios. No aspeto ideológico, nos últimos anos, os governos quiseram mudar o sistema educativo e, por acaso, foram bem sucedidos em algumas coisas. Mudaram o currículo, tornaram-no mais religioso, mas apenas num setor do islamismo, o sunita; tentaram mudar o estilo de vestuário dos estudantes e querem mudar as escolas de acordo com critérios religiosos, e isso origina sistemas re-ligiosos radicais nas escolas; e há também abuso sexual de crianças. Do ponto de vista das políticas neoliberais e da privatização da Educação, o problema é global. E na Turquia, nos últimos quatro, cinco anos, a privatização aumentou 60/70%. O Governo está a dar apoio às empresas privadas para abrirem novas escolas, pagam às famílias para enviarem os filhos para as escolas privadas, mas não pagam nada para as escolas públicas.

• Estamos numa altura em que precisamos da solidariedade internacional, dos movimentos sindi-cais fortes de todo o mundo. Na Turquia, o Governo vê-nos como criminosos: pelo que quer que façamos, seja uma pequena nota de imprensa ou uma pequena manifestação, somos investigados, presos, oprimidos. Por isso, não podemos fazer trabalho sindical, não podemos trabalhar enquan-to sindicato. A nossa manifestação em outubro foi atacada pelos terroristas e o Governo não os parou, nem tentou encontrá-los. Nós perdemos mais de 100 camaradas e 400 foram feridos, mas ainda assim eles castigaram-nos, em vez de irem procurar os criminosos que nos atacaram. Eles sabem que, embora existam outros sindicatos na Turquia, nós estamos contra esta política, e é por isso que somos os criminosos e estamos sob pressão. Mas não paramos, vamos continuar a lutar!

• Os professores têm o poder de moldar a sociedade, de formar as crianças. Temos o poder de transmitir os valores universais da democracia e da liberdade, mas agora, infelizmente, na situação em que o mundo se encontra, só tentamos proteger os nossos direitos e ter alguma segurança social. Nós não conseguimos atingir a nossa missão de formar a sociedade tão facilmente, é a nossa maior dificuldade enquanto professores. Por isso, não estamos no lugar que merecemos, como professores e como sindicatos. Ainda temos um longo caminho a percorrer, mas mantemos a esperança. Vamos lutar por isso, quer a nível nacional, quer a nível internacional.

Maria João Leite

• É uma data muito importante para todos os professores. Estas medidas permitiram que muitos trabalhadores começassem a ser respeitados e a gozar de certos direitos – claro, em países que per-mitem a ação sindical, porque há outros onde reivindicar é o mesmo que ir parar à prisão ou ser mortalmente castigado. Mas isto é importante, porque o professor passou a sentir-se protegido, in-tegrado e capaz de reivindicar os seus direitos no sentido de melhorar as suas condições de trabalho.

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CPLP-SINDICAL DE EDUCAÇÃO

Afirmar o sindicalismo lusófono

ANA ALVIM

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AAngola, Brasil, Cabo Verde, Guiné Bissau, Moçambique, Portugal, São Tomé e Príncipe e Timor-Leste são os países representados na CPLP-SE, que conta ainda com a Confederação Intersindical Galega (CIG), que aderiu pelas relações de proximidade e intercâmbio com Portugal e por ter nos seus currículos o ensino do Português. “A CPLP-SE surgiu da vontade de juntar forças para podermos trabalhar no sentido da solidariedade”, explicou à PÁGINA Armin-da Bragança, secretária-coordenadora da organização, que cessou funções na V Conferência, realizada no Porto, no início de maio.Existe uma relação de colaboração entre as organizações-membro e, nos últimos três anos, além do reforço da estrutura organizativa, a formação sindical foi uma das apostas mais fortes. “Temos um grande trabalho de cooperação. As organizações com mais experiên-cia trabalham com as restantes. Sobretudo no que diz respeito aos países africanos, que necessitam urgentemente de sindicatos fortes e organizados. Consideramos que as democracias sem sindicatos fortes não são democracias e, por conseguinte, trabalhamos nessa perspetiva de os ajudar. Muitos deles saíram de guerras recentes e, por exemplo, nos últimos três mandatos, não conseguimos ir à Guiné Bissau, por causa da instabilidade política.”Outra preocupação da CPLP-SE, consagrada nos estatutos, é “a valorização da Língua Portuguesa”. E um dos objetivos passa por mostrar a força do sindicalismo lusófono, fazendo um “lobby saudável” junto dos governos dos diferentes países, “respeitando totalmente a identidade e tendo o cuidado de não haver ingerên-cia nesses países”, junto da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa e da Internacional de Educação (IE).“A maior parte das nossas organizações estão afiliadas na IE, que tem um departamento de cooperação muito forte, onde as organizações se juntam pela língua. Há um fortíssimo lobby anglófono e um fortíssimo lobby francófono. Sendo que as or-ganizações de Língua Portuguesa na IE abrangem para cima de 400 milhões de pessoas, estamos a tentar estabelecer também um grupo lusófono. E estão criadas ótimas condições para que isso aconteça, uma vez que temos representantes do Brasil e de Portugal no Comité Executivo Mundial. Será a altura ideal para conseguirmos fazer um protocolo com a IE, no sentido de se criar um grupo lusófono, e forte.” [N.R. Como a PÁGINA deu conta na última edição, Manuela Mendonça, coordenadora do Sindicato dos Professores do Norte e secretária nacional da Fenprof, foi eleita para o Comité Executivo Mundial da IE – é a primeira participação portuguesa na direção da maior organização mundial de trabalhadores da Educação.]

Cooperação e solidariedadeAs realidades sociais e os problemas de cada um dos países/regiões são bem distintos. É neste fórum, criado em 2008, que encontram solidariedade e cooperação. “O grande problema é a heterogeneidade das realidades dos países. São totalmente dife-rentes, quer do ponto de vista educativo e do acesso à Educação,

quer do ponto de vista económico.” No entanto, as organizações “mais fortes” são solidárias e trabalham com as que são “menos capazes” do ponto de vista económico. “O espírito de interajuda é muito grande”, frisa Arminda Bragança.Apesar de “todos os obstáculos e problemas” que existem em Portugal ou no Brasil, ainda há um “grande e penoso” cami-nho a percorrer relativamente a muitos dos países africanos de Língua Portuguesa. Exemplificando, a ex-dirigente lembra que São Tomé e Príncipe tem entre 80 e 90 alunos por turma e que algumas zonas de Angola têm 50 estudantes em cada sala. “Para não mencionar os salários miseráveis dos professores, exceto em Angola, onde eles fizeram um bom trabalho e subiram muito os salários dos professores. Mas os outros… Na Guiné estão sem receber salários penso que desde novembro do ano passado, e as escolas estão fechadas. E a ideia da Educação para todos, ou de Objetivos do Milénio, não funciona em África.”Mas, apesar das dificuldades, o balanço do último triénio é “muito positivo. Houve de facto um trabalho muitíssimo bom de partilha e de confluência de ideias em termos daquilo que a CPLP-SE significa.”

Renovação e crescimentoPara Arminda Bragança (FNE), terminar o percurso sindical nesta organização é “um privilégio”, e as expectativas em relação ao futuro são boas, porque entra “gente nova”. “A nossa geração tem de dar lugar aos mais novos, e sobretudo em lugares em que eles tenham responsabilidade, oportunidade e espaço para mostrar e criar as suas próprias dinâmicas.”Na V Conferência, o Secretariado Permanente da CPLP-SE pas-sou a ser constituído por José Augusto Cardoso (Fenprof), como secretário coordenador, Pedro Barreiros (FNE) e ainda dirigentes do Brasil, Angola e Cabo Verde. Para o Conselho Fiscal entraram dirigentes de Moçambique, São Tomé e Príncipe e Guiné Bissau. E a nova equipa está “entusiasmada”, disse à PÁGINA o novo coordenador da CPLP-SE, lembrando as principais traves-mestras da organização. “Cada país tem a sua diversidade, mas existem dois aspetos transversais: a democratização da Escola e do sis-tema educativo e a defesa dos direitos sociais e profissionais dos professores.”Levar a formação sindical a África, afirmar o sindicalismo lusó-fono e tornar a CPLP-SE mais conhecida e reconhecida, defender a Língua Portuguesa e trabalhar para que seja uma ‘língua de trabalho’ na IE, são algumas das frentes de trabalho. Entre os objetivos imediatos, está a realização de um seminário interna-cional. “A única coisa que pode bloquear a sua concretização é o orçamento, mas se conseguirmos algum apoio, nomeadamente da IE, pode ser possível. É um desafio!”

Maria João Leite

São várias as organizações sindicais de professores e trabalhadores da Educação na

Comunidade dos Países de Língua Portuguesa - Sindical de Educação [CPLP-SE].

O Português une-as e é a partir deste ponto que a estrutura existe, para valorizar

quer o sindicalismo lusófono quer a própria Língua Portuguesa, que tem milhões de

falantes pelo mundo fora. Portugal está representado pela Federação Nacional dos

Professores (Fenprof) e pela Federação Nacional da Educação (FNE).

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TTraduzindo o olhar comprometido e singular dos autores sobre as dimensões da alteridade humana e da diversidade cultural, os textos que integram esta obra constituem-se como uma interpe-lação particularmente estimulante e atual, colocando-nos diante da imperiosa necessidade de refletir sobre a forma como nos rela-cionamos com o outro, o outro próximo, o familiar, o amigo e o vizinho, mas também o outro distante, o desconhecido e o diferente, aquele que não é da nossa terra e não fala a nossa língua. Como esse outro que, por razões de desumanização, privação e violência, sê vê hoje forçado a bater à nossa porta, pedindo acolhimento. As questões da educação, escolar e social, surgem-nos aqui pers-petivadas num horizonte amplo de cidadania, de uma cidada-nia desejavelmente mais cosmopolita, mais hospitaleira, mais comprometida e mais solidária. Todavia, estamos certos de que, dirigindo-se de modo especial aos investigadores, aos estudantes e aos profissionais da educação e das ciências sociais, esta é uma obra que, pela sensibilidade e especificidade do seu conteúdo, se afigura de grande interesse para todos os leitores e leitoras. [Isabel Baptista]

Antes como agora, a educación – ás veces dun xeito mais implícito que explícito – sempre foi desafiada a tomar partido: nas palabras e cos feitos, asumindo a complicada misión que supón conciliar os saberes inherentes á intelixencia in-formada polas capacidades que emanan das emocións, individual e colectivamente construi-das. Unha educación que, por selo, sempre devén nunha acción--intervención mediadora, culturalmente contextualizada, coa que se pretende dar resposta a necesidades e demandas que trascenden a cada suxeito particular, para afirmarse na súa caracterización como unha práctica pedagóxica e social. Unha circunstancia arredor da que a Pedagoxía Social leva décadas posicionándose – mesmo con certa radicalidade – poñendo énfase na súa vocación cívica (trans)formadora, como reiteradamente expresan no seu texto os profesores Ana María e Ricardo Vieira.Unha obra que os/as que nos dedicamos á Pedagoxía e á Educación (Social) agradecemos e desexamos encontre nos seus potenciais lectores e lectoras –estudiosos e profesionais do socioeducativo– un dos seus mellores destinos, engadidos aos que proporcionen na

Pedagogia Social, Mediação Intercultural e (Trans)formações

ANA MARIA VIEIRA E RICARDO VIEIRA são professores na Escola Superior de Educação e Ciências Sociais (Instituto Politécnico de Leiria) e colaboradores permanentes da PÁGINA. São investigadores integrados do Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais (CICS.NOVA.IPLeiria) e membros da RESMI (Rede de Ensino Superior de Mediação Intercultural).Doutorados, respetivamente, em Ciências da Educação e Antropologia Social, as suas áreas de investigação são múltiplas e diversas: mediação intercultural, sociopedagógica e sociocultural, educação e pedagogia social, trabalho social e indisciplina (Ana); histórias de vida e identidades (pessoais e profissionais, nos idosos, metaformoses), antroplogia da educação, diversidade cultural, mediação intercultural, pedagogia social (Ricardo).

era da dixitalización os rexistros e os anaqueis das bibliotecas, os repositorios documentais, as bibliografías ou as pantallas.[José Antonio Caride]

A finalidade desta obra é aprofundar os alicerces da Pedagogia Social e criar pontes assentes em pilares de mediação intercultural e de educação social em que os profissionais do trabalho social e da educação encontrem estratégias para desenvolver projetos sociopedagógicos, num clima de convivência e coexistência pa-cíficas, assumindo os Direitos Humanos e a transformação da realidade de uma forma emancipadora.A leitura desta obra, além de ser uma experiência gratificante e enriquecedora, permite ampliar os fundamentos da Pedagogia Social e tomar consciência dos desafios praxiológicos da media-ção intercultural como um valioso contributo para os processos de mudança e transformação social. Dirige-se a educadores e a professores, a profissionais da ação social e a investigadores, mas também a estudantes e estudiosos das ciências da educação, das ciências humanas e sociais e a todos aqueles que acreditam que o diálogo interdisciplinar, interprofissional e interinstitucional ajuda a aproximar as pessoas e as culturas e favorece a mestiçagem e a convivência. [Américo Peres]

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NNão há melhor metáfora sobre a vida do que a viagem. A vida representada como uma viagem mais longa, mais insegura e incer-ta do que as que planeamos e fazemos, em turismo ou trabalho. Tal como as viagens, a vida lucra muito em ser contada: torna-se reflexão e aprendizagem. Assim, deve ser compartilhada e repar-tida com quem a queira ouvir, desfrutar e aprender com as suas peripécias, aventuras e desventuras. «Direitos Humanos e Inclusão» é um livro de viagens pela vida – talvez lhe pudéssemos chamar um livro de vidagens. Conta os espantos, os deslumbramentos, as razões que fazem a vida valer a pena. Valer a pena por poder ser uma alternativa e um lenitivo à pena que sentimos pelas limitações da nossa existência e do nosso mundo. Sem este registo e reflexão sobre as viagens, estaríamos mais vulneráveis a pensar que a viagem é errática, inútil e sem razão de ser. E daqui brota a razão primeira desta publicação: mapear a viagem e mostrar que, mesmo com os inerentes percalços e contratempos, ela tem um rumo e um caminho consequente. Trata-se de uma viagem pelos caminhos dos Direitos Humanos, da Educação e da Inclusão. À semelhança de faróis, estes valores organizam e orientam as nossas crenças e práticas. No ano em que se comemoram os 500 anos da publicação de «Utopia», de Thomas More, é tempo de reafirmar a omnipresença, a utilidade e o pragmatismo da utopia. Este livro é, em muitos aspetos, a continuação do anterior «Equidade e Educação Inclusiva», publicado nesta mesma edi-

Livro de vidagens

CANDIDATO AO PRÉMIO DIREITOS HUMANOS. O sexto volume da Coleção a Página é candidato ao Prémio Direitos Humanos, instituído pela Assembleia da República em 1998. Da autoria de David Rodrigues, colaborador permanente da PÁGINA, «Direitos Humanos e Inclusão» é uma seleção de textos publicados nos últimos três anos e de alguns documentos que utilizados em cursos de formação orientados pelo autor – textos que questionam os valores mais tradicionais e conservadores da Educação e procuram apresentar alternativas para pensar um sistema educativo organizado em função de valores contemporâneos, equitativos e inclusivos.Destinado a reconhecer e distinguir o alto mérito da atividade de organizações não governamentais ou original de trabalho literário, histórico, científico, jornalístico, televisivo ou radiofónico, de autoria individual ou coletiva, que contribuam para a divulgação e respeito dos direitos humanos ou para a denúncia da sua violação, o Prémio Direitos Humanos (25.000 €) é atribuído anualmente pelo presidente da Assembleia da República, ouvida a Conferência de Líderes, mediante proposta do júri, constituído por Pedro Bacelar de Vasconcelos (presidente), José de Matos Correia (PSD), Filipe Neto Brandão (PS), Telmo Correia (CDS/PP), António Filipe (PCP), Sandra Cunha (BE) e José Luís Ferreira (PEV).

tora (ProfEdições, 2013). No prefácio, António Nóvoa escreveu: “O livro de David Rodrigues recorda-me a melhor literatura pe-dagógica, escrita em textos curtos, pensamentos breves, histórias reais ou imaginadas. São iluminações, perspetivas, pontos de vista, contributos para um debate necessário sobre as questões da Equi-dade e da Educação Inclusiva.” Eu acrescentaria que são fotografias da viagem, tiradas em lugares que consideramos emblemáticos, em momentos que consideramos especiais, em acontecimentos que consideramos inusitados ou exemplares – as minhas fotografias de viagem a fazerem lembrar aos leitores as suas viagens; as minhas opiniões a desassossegarem as suas. Fernando Pessoa escreveu que “quanto mais diferente de mim alguém é, mais real me parece, porque menos depende da minha subjetividade.” Neste encontro entre diferentes viagens (vidagens), desejo que aprendamos a conhecer mais reflexivamente a nossa experiência e a dos outros e, enfim, descubramos que respeitadas todas as diferenças, todos somos viajantes. [David Rodrigues]

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AAs vozes soltas que contam, que protagonizam estas histórias, congregam-se numa só voz, a de Angelina Carvalho, autora dos textos que consubstanciam o seu discurso.Quem a conheceu, quem com ela conviveu ou trabalhou, reco-nhece-a de algum modo em todas as vozes que ao longo destas páginas vamos ouvir e que são porta-vozes das suas concepções sobre as escolas, os alunos – crianças e adolescentes – e família, a sociedade, as pessoas.Nestes escritos também encontramos a sua alegria, o seu humor, a sua simplicidade, a valorização dos afetos e sentimentos, a sua atitude interventiva, a sua ética de cidadania, o seu pensamento elaborado e complexo, mas transmitido de forma clara e límpi-da. E original.Dificilmente se encontra literatura sobre Educação com opções por tipos de texto aparentemente leves como as narrativas que a autora escreveu e publicou continuadamente ao longo de vários anos. A narrativa que, como o diálogo, acompanha o ser humano desde a infância. Recorrendo às palavras de Italo Calvino, podemos dizer que na escrita de Angelina Carvalho emerge, “como função existencial, a procura da leveza como reacção ao peso de viver”. […]

A escola e as escolas são lugares que Angelina Carvalho conhece muito bem, de forma informada e não enformada, enquanto aluna, professora ou presidente da direcção, formadora, investigadora, não só nas suas práticas e experiências, mas também nos seus espaços e territórios e no fio do tempo.Com enorme implicação e criatividade, Angelina Carvalho abre portas, escancara janelas, dá a ver horizontes que vão de transfor-mações radicais nas instituições e no sistema educativo a sugestões de pequenas iniciativas ou mudanças de atitude e comportamento e de dinâmicas relacionais que poderão ter lugar em vários dos espaços convocados.O efeito no leitor é a descoberta, súbita e inesperada, à medida que o texto progride, de problemáticas a cuja compreensão ha-bitualmente só se acede pela leitura de textos de outra natureza.Um pequeno acto pode mudar a escola, uma pequena pincelada pode mudar o nosso entendimento. E cada pequena pincelada transporta consigo uma mensagem educativa, sem nunca ser prescritiva, dogmática ou moralista.

O livropóstumoda Angelina

Livro póstumo da autoria de Angelina Carvalho (1951-2014), «Vozes à Solta - Narrativas da Escola» foi apresentado em março, na Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto. O auditório encheu-se de amigos e seguidores, que evocaram a memória da autora com emoção e saudade. Além das narrativas de Angelina Carvalho, originalmente publicadas na PÁGINA (2006-2014) e no jornal Rumos (1996-1998), o volume acondiciona textos de Maria José Matos Frias, Milice Ribeiro dos Santos, Maria Emília Brederode Santos, José Matias Alves e José Alberto Correia.Colaboradora permanente da PÁGINA, Angelina assinava a rubrica Dizeres, onde, a cada edição, inscrevia um episódio revelador da importância que atribuía à escola e aos professores (enquanto dinamizadores de transformação social) e à humanização da relação pedagógica e dos espaços/tempos da ação educativa – ou convocava a memória de tempos “em que ir para escola era tão difícil e até impossível para tantos”, como escreveu no último dizer (Os Sapatos, dezembro-2014).

A reforçar esta marca, os textos terminam quase sempre com uma abertura – traduzida numa pergunta ou numa última frase que não é final – a diversas possibilidades e que, além de retirar o fechamento, retira também um possível cunho demasiado pres-critivo. “Que distância terei eu criado, também como directora de turma, com outros pais, noutros espaços e noutras situações?” As abordagens das diversas temáticas revelam olhares que podem ser positivos e cúmplices, mas também críticos, incrédulos, inter-rogativos, reivindicativos, polémicos, raramente de desencanto, atravessados com frequência por um subtil humor muito próprio e jogos que constituem momentos divertidos, suscitando leveza mesmo no peso.Cada texto é uma crónica do quotidiano educativo e do social que nos são dados a ver, desvenda e impõe, levando-nos serenamente por baixo das histórias a participar nas vidas das personagens que são postas na nossa frente como pessoas reais, com ilusões e desi-lusões, tristezas e alegrias, esperanças e frustrações e com quem é inevitável criar empatia e relações simbólicas. [Maria José Matos Frias e Milice Ribeiro dos Santos, coord., excerto de “Entrada”]

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VVivíamos o ano de 1972 e ambas estávamos chegadas da pro-víncia, tu da Régua, eu de Braga, e éramos alunas do curso de Filologia Românica da Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Ano agitado, aquele!Os Cavalos (nome que dávamos à nossa faculdade, por ser vizi-nha do quartel da GNR, no Carmo, e por pairar sempre nele um cheiro forte a excrementos que ainda hoje não sei bem de qual das duas espécies animais que habitavam o edifício exalavam) fervilhava de agitação. No anfiteatro, por vezes e subitamente, aconteciam meetings convocados por passa-palavra e pequenas tarjas. A PIDE podia aparecer e tinha matado a tiro, numa facul-dade de Lisboa, um estudante em situação semelhante. Era preciso atuar. Era preciso concentrar nos Leões e seguir em manifesta-ção através de Cedofeita, contra o sentido do trânsito, e com o propósito de acabar com a Queima das Fitas, as suas praxes e cortejos fascizantes. Depois foi a carga repressiva da GNR, que saltava com os cavalos sobre os manifestantes que se protegiam como podiam entrando mesmo pelos vidros das montras das lojas que logo estilhaçavam. Acabámos com a Queima e seus cortejos. Nas aulas de Letras daquela época, nos Cavalos, os alunos, em algumas das aulas comuns aos vários cursos, estendiam-se pelo corredor ou sentavam-se no chão, quase saíam pelas janelas se queriam ouvir o professor.E eu não sei ao certo se te vi pela primeira vez num destes aconte-cimentos, ou numa destas aulas, ou nos corredores dos Cavalos. A mais antiga memória que tenho dos teus olhos curiosos e falan-tes é de um momento em que nos cruzámos na porta do Piolho, nossa sede. Olá! Olá! E nesse tempo quase mais nada dissemos.

Alguns anos mais tarde, quando fui colocada na Escola Preparató-ria do Cerco do Porto, percebi que não tinha havido necessidade de muitas mais palavras para sabermos que estávamos do mesmo lado da barricada. Estávamos e estivemos. O território era de in-tervenção prioritária e não podíamos fazer cócegas pedagógicas. Aí sim, tive oportunidade de perceber o teu olhar. E o teu sorriso. E a tua imensa capacidade de agir, sobretudo perante a situação limite, o precipício.A imensa ravina que era a nossa escola, o Cerco, que tu dirigias, punha à mostra esse teu dom de perscrutar a pessoa, de a radiogra-far e saber do que ela era capaz, do que precisava, o que esperava de ti, de nós. A escola era uma ágora onde se debatiam processos pedagógicos, sociológicos, didáticos, organizativos, autonómi-cos, integradores, diferenciados. Enfim uma ágora fervilhante

Tecedeirade histórias

Hermínia Bacelar

de debate em ação. A Escola para um professor interessado no progresso da comunidade. A Escola. E era o teu sentido dinâmico de ver o que te rodeava, de ouvir os outros, entrelaçar opiniões construindo ideias e projetos, confiar nos que te rodeavam sempre com o olho no processo, cultivando a autocrítica, a reformulação quando necessária, as responsabilidades partilhadas que faziam do dia a dia do corpo docente, dos funcionários, dos alunos e pais pessoas em construção.Nesta labuta constante que nos divertia imenso e de que não nos cansávamos, maratonas horárias nos períodos críticos do ano letivo, os nossos filhos brincavam aos professores e alunos numa das salas da escola enquanto esperavam por nós, que trabalhá-vamos no gabinete do CD. Criaram amizades, cumplicidades que penso inesquecíveis e que ainda lhes irão ser úteis na fase adulta.Deste mundo intenso que era a nossa vivência, o Livro de Bordo (caderno A4 onde tu e a tua equipa apontavam tudo o que de relevante ia ocorrendo ao longo do dia, até as dúvidas, e que es-pelhava o trabalho da permanência em serviço no nosso gabinete de direção) ia contando também a tua opinião sobre assuntos ou pessoas deste e daquele dia através de desenhos que ias rabiscando enquanto ouvias. No final do ano bastava folheá-lo. E às vezes as gargalhadas eram explosivas porque os teus desenhos contavam a pessoa e o assunto. Contavam as histórias daquele ano. Os de-senhos a que depois juntavas palavras e gestos, a que misturavas a tua visão do mundo com complacência lúcida, ciente de que Roma e Pavia não se fazem num dia.

Assim tecias as histórias que narravas com tanto encanto e en-tusiasmo, tornando tudo possível e real. A urdidura estava aos nossos olhos, na sociedade envolvente e tu conseguias vê-la. A trama criava-la tu, nesse teu jeito de aparente improviso que nos deixava perplexos, crentes e prontos para agir. A lançadeira que usavas era feita de palavras simples, olhar perspicaz e sorriso humilde. Ninguém ficava indiferente às tuas tecelagens.Eu que te encontrei (ou foste tu que me encontraste?) aprendi contigo a usar a lançadeira dos meus dias, no trabalho e na casa, na cidade. Todos os que te encontraram, de uma forma ou de outra, melhor ou pior, aprenderam a tecer. Hoje, qual pássaro tecelão, continuamos a criar ninhos, nichos que irão, sei lá quan-do, tornar a sociedade melhor. Uns sabem-no outros não. Todos aprendemos contigo.

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Proteção de crianças e jovens em perigo

Nova lei privilegia o acolhimento familiar e a centralidade dos afetos

ADRIANO RANGEL

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AA alteração da Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo (Lei nº 142/2015, de 8 de setem-bro) introduz significativas alterações no sistema de acolhimento de crianças e jovens em perigo, esperadas e desejadas, com especial relevância para o acolhimento familiar. Entre as circunstâncias sociais e históricas que rodearam a revogação parcial da Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo podem referir-se, nomeadamente:

- o elevado número de crianças e jovens a viver em instituições, e o escasso número a viver em famílias de acolhimento – menos de 5% do total, o que afasta Portugal dos países de modelo industrial ou pós-industrial, com os quais partilha maiores afinidades culturais e sociais; - as recomendações feitas pelo Committee on the Rights of the Child (2014) sobre o terceiro e quarto relatórios periódicos apresentados por Portugal, advertindo para a necessidade de fortalecer a prestação de cuidados de base familiar e de se desenvolver uma estratégia de de-sinstitucionalização dos serviços de acolhimento; - a recomendação nº 112/2013, da Comissão da União Europeia, que declara como objetivo evitar confiar crianças a instituições e fazer o reexame regular dos casos de institucionalização; - o consenso generalizado na comunidade científica acerca da necessidade de assegurar às crianças que são retiradas das suas famílias a possibilidade de viverem em ambientes familiares, capazes de satisfazer as suas necessidades de desenvolvimento.

A tendência comum nos países de modelo semelhante ao nosso, nas últimas décadas, tem sido a redução do recurso ao acolhimento residencial em prol da utilização do acolhimento familiar. A intervenção protetora obedece agora, com a nova redação do artigo 4º, a um conjunto de prin-cípios, entre os quais se destacam:

- a continuidade de relações de afeto de qualidade e significativas, sem prejuízo da consideração que for devida a outros interesses legítimos no âmbito da pluralidade dos interesses presentes no caso concreto;- a prevalência das medidas que integrem a criança ou jovem em família, quer na sua família biológica, quer promovendo a sua adoção ou outra forma de integração familiar estável;- a preservação das relações afetivas estruturantes, de grande significado para a criança e jovem, devendo prevalecer as medidas que garantam a continuidade de uma vinculação securizante.

FAMILIAR VS RESIDENCIAL. A Lei de Proteção faz prevalecer, deste modo, as relações afetivas que a criança mantém relativamente aos laços familiares, que se caraterizam pela ausência das condições necessárias para o seu desenvolvimento. O essencial é garantir a possibilidade de viver num contexto familiar seguro, individualizado, com estabilidade e afeto. No acolhimento residencial, esse relacionamento é impraticável, uma vez que os profissionais têm de encontrar e manter a necessária distância relativamente às crianças, o que dificulta ou inviabiliza essa relação de proximidade, de dedicação incondicional e afeto. A criança relaciona-se com rostos diferentes, com distintas regras e rotinas e tendo consciência de que as pessoas que trabalham na instituição têm uma família, a sua família, para a qual regressam ao fim do dia e com a qual pas-sam os fins de semana, as datas festivas e as férias. A Educação fica muitas vezes comprometida, tal como a aprendizagem dos afetos e a possibilidade de ter uma vida social normal, como ter uma rede de amigos, poder ir às compras, ao parque ou ao cinema. Por fim, o artigo 46º estabelece que a aplicação da medida de acolhimento familiar prevalece so-bre a de acolhimento residencial, em especial relativamente a crianças até aos seis anos de idade, salvo em circunstâncias excecionais e específicas, que têm de ser fundamentadas, ou quando se constate impossibilidade de facto. Esta será, provavelmente, a mudança mais significativa operada pela revogação parcial da Lei de Proteção, pois reconhece o acolhimento familiar como um con-texto mais adequado para o bem-estar da criança nesta faixa etária. E impõe, simultaneamente, que se invista decisivamente em campanhas para selecionar e formar um número de famílias de acolhimento que possam oferecer a resposta desejada, de modo a garantir os cuidados adequados às necessidades das crianças e dos jovens e a educação necessária ao seu desenvolvimento integral.

Paulo Delgado

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Austeridade high level

e profissionais

low cost

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OOs designados tempos de austeridade, que mais precisamente são tempos de políticas (es-colhas) de austeridade, têm-se oferecido a ponderações várias sobre as suas consequências em muitos campos societais. É de estranhar (ou não será?) que nestas análises se tenha tor-nado mais visível as (não) performances económicas e financeiras. Estamos preenchid@s de mensurações e apreciações que depressivamente nos vão avisando de que estamos no bom caminho, apesar de tal não se ter traduzido ainda (advérbio esperançosamente repetido) nas condições de vida perdidas ou não alcançadas por milhões de portugueses e portuguesas.Este tem sido também um tempo de prova para muit@s profissionais e, de entre estes, para quem se inscreve nas designadas profissões sociais. Conheço melhor o campo profissional d@s assistentes sociais, onde são notórios os efeitos das políticas de austeridade. A precariza-ção das condições de trabalho trivializou-se e alguns dos argumentos para vínculos laborais incertos (chamam-lhes flexíveis) é de que mais vale assim do que o desemprego. Sim, porque por mais inusitado que pareça, o agravamento da pobreza e exclusão social tem-se desenvol-vido a par do acréscimo de desemprego entre esses profissionais. Além disso, argumenta-se que, tratando-se de profissionais que trabalham junto d@s que vivem em situação de maior carência, se espera a sua boa vontade e que apliquem o critério benemérito de ajuda ao pró-ximo. Assim se confundem as exigências de profissionalismo com os pilares da ação volun-tária, historicamente relevante e cuja ação não deixou de ter campo e razões de existência.

A LÓGICA DA EMERGÊNCIA. Uma outra marca da austeridade por relação às profis-sões tem sido a imposição (diplomaticamente aludida no Memorando de Entendimento) da desregulação profissional como vantajosa e amiga das “novas” condições de ajustamento estrutural. Trata-se, a meu ver, de uma outra forma de erosão profissional, que desvanece as razões e na sua ausência deixa lugar para condições laborais casuísticas sempre em busca da melhor combinação entre trabalho qualificado e remunerações low cost (aproveitando o défice da procura perdida).Mais especificamente no campo do Serviço Social, uma marca trazida pela austeridade prende--se com a imposição de serviços emergenciais e de agravada seletividade. Que contornos são os destas orientações? A emergência decide habitualmente com base nos recursos sobrantes e nos serviços possíveis e menos nos adequados. Nesta condição, é sempre possível baixar mais os níveis de apoio, vigorando a lógica clássica suportada pelo ditado português “quem dá o que tem...” Só que no caso, o ‘quem’ reporta-se ao Estado e o que se ‘tem’, foi o que se elegeu distribuir no (des)concerto das prioridades. Este exercício tem permitido enaltecer como tem sido possível para alguns que vivam com tão pouco (viver, neste caso, quer dizer sobrevivência low cost). A lógica da emergência tem tido, ao longo das políticas de austeridade, um efeito de contágio por relação ao conjunto dos benefícios de proteção, não só pelo abaixamento e inadequada restrição a que força os cidadãos, mas também porque se apresenta como uma ‘lição’ sempre invocada de outras formas de resposta às necessidades (nem que sejam permanentes e não esporádicas). Este efeito de contágio mais ou menos prolongado permite falar, hoje, de um viés de emergencialização na proteção social, mais visivelmente invadindo o historicamente sacrificado campo da Assistência Social.

DIREITOS LOW COST? A emergencialização tem no seu bojo a ideia de que se pode adiar a proteção adequada. E mais, que não há necessidade de clareza quanto aos critérios de transparência – mas precisam dela, as necessidades estão à vista e a insuficiência de recursos também. E assim se penalizam sobretudo os cidadãos, os abrangidos e os que se autocontêm para não recorrer aos apoios – é sempre possível encontrar quem esteja mais no fim da linha, ou mesmo fora dela – e deixá-los para os que mais precisam. E neste contexto todos saem pobremente assistidos e sub-protegidos. Mas saem também penalizados os profissionais (designadamente os da linha da frente) que se tornam mal-amados por todos (cidadãos e dirigentes), no contexto de uma lógica que acrescenta o número dos mal servidos pelo (ainda designado) bem-estar. É assim que, em contexto de uma austeridade de alto teor de discricionariedade, se ofende também a profissionalidade, que passa a ser tanto mais adequada quanto mais low cost se revela (em termos das condições de exercício e dos padrões de resposta aos cidadãos). E não fica por aqui o padrão low cost, pois o ambiente democrático é também atingido por grandes níveis de ameaça e desconfiança.E se guardássemos os padrões low cost para outros campos da vida que não fizessem perigar a existência digna e com direitos? Quase me esquecia desta palavra...

Fernanda Rodrigues

A emergência decide

habitualmente com

base nos recursos

sobrantes e nos

serviços possíveis,

e menos nos

adequados. Nesta

condição, é sempre

possível baixar mais

os níveis de apoio,

vigorando a lógica

do “quem dá o que

tem...” No caso,

‘quem’ reporta-se ao

Estado e ‘tem’ é o que

se elegeu distribuir,

no (des)concerto das

prioridades.

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APM comemora 30 anos

A Matemáticanão é umbicho-papão

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63AA APM foi criada com o intuito de promover o desen-volvimento do ensino da Matemática a todos os níveis e a participação ativa dos professores na discussão e implementação de novas práticas pedagógicas, bem es-timular o intercâmbio de ideias e experiências. Corria o ano de 1986, um ano depois do primeiro ProfMat, En-contro Nacional dos Professores de Matemática – maior e “mais querida” iniciativa promovida pela associação. Portalegre, que acolheu a segunda edição do ProfMat, viu nascer a APM, uma associação que já se impunha, dados os movimentos internacionais. E era importante que abrangesse os professores de todo o país e de todos os níveis de escolaridade, da Educação Pré-Escolar ao Ensino Superior.“Havia uma grande necessidade de criar a associação, devido à corrente internacional de mudança no ensino da Matemática. Na época, alguns professores portugueses tinham contacto com os Estados Unidos ou a França, com os quais nós tínhamos contacto cultural e para onde foram estudar, trabalhar e preparar-se alguns dos nossos professores, e onde havia um movimento muito amplo em mudanças no ensino da Matemática não superior”, referiu à PÁGINA Lurdes Figueiral, atual presidente da direção da APM. “Em Portugal não havia essa capaci-dade de congregar os professores, de os unir à volta da necessidade dessas mudanças nas práticas educativas. E foi assim que surgiu a necessidade das pessoas se começa-rem a encontrar. Isso ainda demorou dois ou três anos.”Na cerimónia de abertura do ProfMat deste ano, que se realizou em março, a primeira presidente da associação sublinhou que este era “um sonho já antigo, que vinha de longe”. Um pequeno grupo de professores não desistiu perante o percurso árduo, com “avanços e recuos”, que se estendeu até ao encontro de Portalegre. Leonor Filipe

lembrou as colaborações esperançosas que se revelaram desilusões ou que ficaram na gaveta e ainda a elevada participação nos primeiros encontros, já depois da cria-ção da APM, reveladora da “fome” que os professores tinham de se juntar e de partilhar experiências.E essa partilha levou à procura de soluções para os gran-des desafios do ensino da Matemática. A APM produziu diversos documentos, alguns dos quais estiveram na base da reforma de Roberto Carneiro para o ensino da disciplina. É por isso uma comunidade importante e que pretende continuar a ser ouvida, de forma a contribuir para um ensino de qualidade. “Escolhemos uma profissão apaixonante e desafiadora. Nem sempre é fácil, mas ver as descobertas dos nossos meninos compensa. Hoje, as competências que os alu-nos têm de ter são diferentes, são mais transversais. De facto, temos de preparar os alunos para os desafios do século XXI. Como educadores não podemos esquecer os valores que são comuns a todo o ser humano”, afirmou Leonor Filipe, acrescentando que ser professor “é uma arte” e que, a propósito de um sermão do padre António Vieira, deixa “pegadas”, marcas que ficam nos alunos.

Mitos e preconceitos O que é isso de ter jeito para a Matemática? Será que nesta matéria o “jeito” ou a influência genética exercem algum poder sobre a compreensão da disciplina? Será a Matemática só para alguns? Estas são algumas das dúvidas que se levantam quando se fala de resistência em relação à Matemática. A disciplina é tida por muitos como uma “seca” e quem se dedica a ela é tido como carrancudo ou demasiado sério. São muitos os mitos e preconceitos que ainda rodeiam a disciplina. Na conferência sobre o tema, que decorreu no ProfMat, António Machiavelo referiu estes e outros “equívocos”: é uma capacidade genética, demasiado abstrata e pouco divertida para os “outros”. Sim, porque quem se dedica à Matemática é uma pessoa “(essencialmente) diferente das outras”.Para a atual presidente da APM, entre as soluções para dar a volta ao problema está a divulgação matemáti-ca através das mais diversas iniciativas, de maneira a que a sociedade tenha noção da presença da disciplina em quase todas as atividades do quotidiano – às vezes nas áreas “mais insuspeitas e inesperadas” – e da sua relação com outras áreas do conhecimento. Ou seja, mostrar que a Matemática não é um bicho-papão e que contactamos com ela nas mais pequeninas coisas, por exemplo, nos pesos, nas medidas, nas formas, nos padrões, no tempo, no espaço...Um cuidado a ter para evitar a propagação dos pre-conceitos é fazer uma abordagem, na sala de aula, que não afaste ou assuste os alunos. “Pelo contrário, que inclua e seja capaz de levar cada vez mais alunos a um desempenho que lhes permita, pelo menos, ter aquilo a que chamamos literacia matemática”, defende Lurdes Figueiral – ser capaz de compreender, argumentar e ter um sentido crítico. Independentemente dos métodos adotados pelos pro-fessores, uma coisa é certa: a Matemática pode ser divertida. A prova? Faz-se já aqui ao lado! [do filme “A Canção de Lisboa”, de José Cottinelli Telmo (1933)].

Maria João Leite

Criada em 1986, a Associação de Professores

de Matemática (APM) surgiu na sequência

dos movimentos de renovação do ensino

da disciplina, que iam surgindo um pouco

por todo o mundo. Tornou-se num espaço

de acompanhamento dos associados, de

reflexão e debate e de intervenção nas

políticas educativas. Como se não bastassem

as preocupações (naturais) do ensino, os

professores têm ainda a difícil tarefa de

provar, como dois mais dois são quatro, que a

Matemática não é um bicho-papão.

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Numa altura em que a

Associação de Professores de

Matemática (APM) assinala 30

anos de existência, a presidente

Lurdes Figueiral falou à

PÁGINA dos desafios com que

a associação se tem deparado

no seu percurso, da resistência

que ainda existe à disciplina e

das expectativas para o futuro.

Ser professor de Matemática

é uma “dupla arte”, porque

além dos problemas com que

todos os docentes se deparam,

estes ainda têm de lutar contra

os mitos e preconceitos que

envolvem a disciplina. Por

isso, Lurdes Figueiral defende

que é necessário olhar para o

futuro com “esperança” e com

os professores unidos: “Juntos

somos mais do que a soma

individual de todos nós.”

LURDES FIGUEIRAL

O futuro constrói-seno presente

Maria João Leiteentrevista

Ana Alvimfotografia

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Como têm sido os 30 anos da APM?Os 30 anos de atividade da associação quase coincidem com os meus 30 anos de vida profissional. Quando comecei a dar aulas, a APM estava a nascer e, logo no segundo ano de existência da associação, inscrevi-me e comecei a participar nos encontros. Como professora associada, devo à APM toda a atualização e formação que fui tendo em todas as áreas que têm a ver com a prática profissional, como as didáticas específicas e as metodologias; devo à APM a formação, o incentivo e o gosto pela atualização permanente neste desafio que é ensinar Matemática às crianças e aos jovens. Fora da minha experiência pessoal, os 30 anos da asso-ciação significam uma grande intervenção na reforma curricular que se fez a partir da aprovação da Lei de Bases do Sistema Educativo, em 1986, ano em que a APM nasceu. A associação foi criada em ‘86, mas há um movimento prévio, desde 1982/84, quando começam a chegar a Portugal os primeiros mestres que fizeram es-tudos em Didática em Boston e que iniciam uma grande renovação. O grande movimento de renovação do ensino da Matemática faz-se, desde meados dos anos 80, um pouco por todo o mundo, nomeadamente nos Estados Unidos, onde esses professores estudaram e de onde nos veio muita influência em termos das abordagens e da atualização necessárias para o ensino da Matemática.

A criação da APM inscreve-se, portanto, nesse movi-mento de renovação.Sim, e desde logo começa a ter muita importância na re-forma curricular que Roberto Carneiro inicia. Em 1987, com um ano de vida, organizámos um seminário, em Vila Nova de Milfontes, para a renovação do currículo da Matemática. E os documentos aí trabalhados e pro-duzidos estiveram na base dos documentos da reforma de Roberto Carneiro para o ensino da Matemática. A partir daí, a APM tem-se destacado, por um lado, para os sócios e para os professores de Matemática, por um trabalho de formação, de acompanhamento, de partilha, de reflexão e debate e, por outro lado, pela intervenção nas políticas educativas, como proponentes, críticos, analisadores. Portanto, estamos sempre atentos às questões das refor-mas educativas, em geral, e com o ensino da Matemática, em particular. E sobretudo nestes últimos quatro anos, elas têm sido tão fortes e, em nosso entender, tão mal encaminhadas, que passámos de um papel de trabalho conjunto – ao longo destes 30 anos, tivemos um traba-lho de apoio às reformas curriculares, ao exercício e à formação dos professores – para uma atuação de uma grande crítica e denúncia das reformas do ministro Nuno Crato. Entendemos que foi um retrocesso enorme. Para quem não está dentro destes mecanismos e da história destes processos, dentro dos movimentos internacionais e do que foi a nossa própria experiência em Portugal, é difícil perceber com profundidade até onde estes qua-tro anos foram, de facto, desastrosos para o ensino em geral, mas – atrevo-me a dizer – muito particularmente para o ensino da Matemática.

Em que sentido?Primeiro, num entendimento muito sectarista da Escola e da Educação, muito elitista, muito segregadora, baseado

em processos de aprendizagem repetitivos, no treino de rotinas, com muito pouca valorização da compreensão e das interações matemáticas com outras áreas do Co-nhecimento, com as áreas sociais, com a vida quotidiana dos alunos, com o uso das tecnologias… Sobretudo uma abordagem que não prevê, nem valoriza o trabalho de descoberta do aluno. O aluno é apenas um recetáculo, que deve ser treinado para adquirir algum tipo de com-petências muito técnicas e de aplicação direta, e não é ajudado a desenvolver o raciocínio, a compreensão, a capacidade de resolver problemas. Tudo isso passou a ser muito desvalorizado. Além do mais, é uma abordagem muito formalista da Matemática, muito precocemente. E tudo isso causou muita perturbação, sobretudo quando tínhamos programas acabados de ajustar e que estavam no terreno. De repente, mudou tudo.

De que forma é que as mudanças políticas podem afetar o ensino da Matemática?A questão das constantes mudanças é um preconceito. É algo que se instalou na opinião pública, que estamos sempre em mudanças. É evidente que os governos têm passado e cada ministro da Educação, com toda a legitimidade, e com a ideia que tem do que é melhor em Educação para o país, deixa a sua marca. E fazem--no no sentido de querer melhorar. O que nunca tinha acontecido até Nuno Crato é que essa mudança fosse tão radical. Ou seja, desde a aprovação da Lei de Bases, têm alternado governos de várias sensibilidades políti-cas, mas o trabalho na Educação tem sido, de alguma forma, continuado; sobretudo em termos de currículo e programa, são basicamente mudanças de continuida-de. Os ajustamentos e as alterações feitos ao longo de 30 anos foram no sentido de ir fazendo pequenos ou grandes ajustamentos; o que o governo anterior fez foi mudar tudo profundamente. O rigor é sermos capazes de, na sala de aula, avaliar os alunos e ensinar para que aprendam. Isso é que é o rigor, não é andar a treinar para fazer exames. Penso que essa ideia de que chega um ministro e que tudo muda criou raízes e está a ser um travão para as mudanças que são, de facto, precisas, como repor a normalidade anterior a Nuno Crato.

E que mudanças necessárias são essas?Nuno Crato introduziu uma mudança extremamente radical, para modelos que já tinham sido postos de parte desde os anos 50, pelo menos nos países com Educação mais desenvolvida. Em Portugal, inclusivamente antes do 25 de Abril, com a reforma de Veiga Simão, já se começava a apontar noutro sentido. Com Nuno Crato mudou tudo. E agora vamos precisar de tempo, de pa-ciência e de sabedoria para sermos capazes de repor a normalidade num sentido de continuidade e de melhoria daquilo que estava a acontecer na Educação antes de Nuno Crato. Compreendo que haja muita resistência, também porque – justiça seja feita – quem maltratou os professores, reduzindo-os a meros funcionários, sem tempo para estar e para trabalhar com os alunos, sem condições, sem ambientes de escola humanos, foi o ministério de Maria de Lurdes Rodrigues. Tendo tido medidas muito importantes, inclusive para a Matemá-tica, teve uma postura para com os professores… E

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nessa época houve alterações ao Estatuto da Carreira Docente e à gestão das escolas que introduziram graves perturbações nas escolas e provocaram o esgotamento dos professores, que neste momento, obviamente, também sentem resistência a mais mudanças.

E entre os professores, há agora mais competitividade.Muito mais, claro. Esta mentalidade muito neoliberal de avaliar tudo, de justificar tudo, de haver papéis para tudo, grelhas para tudo… Isto é insano! E o que é importante no ensino, que é a relação próxima dos professores, das direções – dos conselhos executivos, que era o que havia antes, que res-pondiam perante os professores e que tinham uma relação de proximidade com eles e com os seus alunos –, tudo isso foi cortado e já está a ter con-sequências; tudo isso fez com que as escolas e os professores estejam num estado de esgotamento e de não valorização. Este desgaste torna-se difícil de ultrapassar, depois de tantos contratempos e com todos os constrangimen-tos que convergem na Escola: problemas sociais, familiares, educativos. Os professores, que se viravam do avesso para enfrentar todas essas situações, de repente viram-se sem chão, assoberbados por uma burocracia estúpida. Nos últimos oito anos, em Portugal, a Escola conheceu um retrocesso, le-vou uma machadada tal que, agora, provavelmente e infelizmente, vamos precisar do dobro de tempo para recuperar.

Nestes últimos anos assistiu-se a uma “valorização” do Português e da Matemática em relação, por exemplo, às Expressões…Esse é um caso que até parece que nos valoriza, mas é uma má valorização. Retirar a Matemática e o Português do equilíbrio curricular dá-lhes impor-tância, sobretudo, de uma função selecionadora. Não quero meter-me na questão do Português, que não conheço em termos de didática, mas parece que o ensino do Português também é um bocado perturbado pela mentalidade muito pragmática de obter resultados rapidamente, quando o importante, sobretudo nos primeiros anos de ensino, é o desenvolvimento equilibrado, harmonioso e completo das crianças. Portanto, não faz qualquer sentido que as disciplinas de Português e Matemática sejam privilegiadas de uma forma que as torna muito seletivas para os alunos e que, no caso da Matemática, agrava a tendência, que estávamos a ultrapassar, de olhar para a disciplina como bicho-papão, que ninguém consegue entender. É muito importante ultrapassar estes tabus, porque as crianças, e mesmo as famílias, incorporam uma espécie de quase fatalismo genético para não serem capazes de obter qualquer desempenho matemático válido.

Antes de continuarmos a falar dos preconceitos em relação à Matemática e do reconhecimento da disciplina, há várias formas de a ensinar, dife-rentes métodos...Claro. Não há soluções mágicas ou receitas milagrosas. A nossa busca é pela melhor forma de chegar aos alunos, para que os alunos compreendam, e existem diversas formas que têm a ver com o trabalho interativo na sala de aula, ou seja, dar mais protagonismo ao aluno. A APM não segue um método, mas defende métodos interativos, que desenvolvam a compreensão, que coloquem o aluno como sujeito da sua aprendizagem, com um grau de autonomia que deve ir crescendo ao longo dos anos, mas sempre neces-sitando de um professor. O aluno tem de ser levado ao desenvolvimento de um raciocínio, de uma capacidade analítica e crítica dos conteúdos, da capacidade de resolução de problemas não triviais – os problemas que apa-recem no atual programa são problemas de aplicação, de fim de capítulo, que até aparecem descritos passo a passo… Isto é o contrário daquilo que é a resolução de problemas. Qualquer metodologia baseada na resolução de problemas confronta o aluno com uma situação não inteiramente conheci-da, ou seja, perante uma situação nova, ele é desafiado a encontrar formas novas e diferentes de resolver um problema que não é rotineiro, baseado nos conhecimentos que tem, mas muito na sua intuição. Portanto, tudo isto faz apelo a métodos interativos, em que o aluno tem o protagonismo e uma ação preponderante na construção da sua própria aprendizagem, obviamente sempre acompanhado pelo professor.

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É essa busca constante que carateriza a evolução do ensino da Matemática?É. Com evolução e com regressão, porque ao que nós estamos a assistir atualmente é a uma involução, a um retrocesso do que entendemos que deve ser o ensino da Matemática. Que cada vez mais é necessário, também pela complexidade dos desafios sociais e culturais que hoje enfrentamos e que, no futuro próximo, os alunos vão ter de enfrentar. E, certamente, não é a memorizar muitas coisas ou a treinar muitos procedimentos que serão capazes de enfrentar esses desafios do futuro.

Voltando à resistência…Neste momento, a resistência à Matemática está a au-mentar outra vez, exatamente porque os alunos são con-frontados com currículos completamente desadequados. Houve uma altura em que a situação esteve melhor (não bem), mas também não devemos esquecer que esta é uma área de conhecimento que tem o seu grau de abstração.

E é isso que gera a resistência?Provavelmente isso causa alguma dificuldade. De facto, na sua essência, a Matemática é uma disciplina muito abstrata. Mas não podemos confundir a ciência ma-temática, a Matemática do Ensino Superior, com as abordagens matemáticas das crianças desde os primeiros anos de contacto com a escola. Se enfrentam logo essa Matemática, vão criar resistência, porque lhes está a ser dado algo que não são capazes de digerir. Por isso é que temos insistido em que estes programas são maus; não porque tenham erros matemáticos, mas porque têm erros didáticos, inclusivamente daquilo que é o programa, as abordagens dos conteúdos matemáticos. Isso está muito desajustado. Não há aprendizagem consistente apenas na repetição de procedimentos que não compreendem, que mecanizam e não compreendem. Um exemplo muito claro é o desenvolvimento do sen-tido do número, um trabalho que o anterior programa do Ensino Básico desenvolvia. O importante é que uma criança, confrontada com um número ou uma operação, perceba o que está a acontecer em termos da grandeza do número, do sentido que aquele número tem. Porque se apenas memoriza e treina algoritmos, ou seja, processos de chegar a um resultado, muitas vezes sem compreender, está apenas a mecanizar um procedimento. A criança que faz as somas do ‘e vai um’ não tem qualquer noção dos números com que está a trabalhar. O cálculo mental não é desenvolvido utilizando estes procedimentos e as crianças não aprendem a desenvolver um sentido de número que lhes permita olhar para um resultado com sentido crítico. Os atuais programas não desenvolvem isso, não preparam para isso.

Ciência abstrata e, no entanto, tão exata. É que dois mais dois são quatro, não há outra hipótese.A Matemática tem muitas abordagens, mas na sua es-sência trabalha com a abstração pura. O que é o dois? Já é uma abstração. No entanto, está muito presente, rodeia-nos por todos os lados. Nos padrões, nas regula-ridades… Nas engenharias, nas arquiteturas, nas econo-mias, que são áreas muito valorizadas, a Matemática é uma ferramenta muito importante. Mas também é mais do que isso, e nem todos os jovens vão seguir áreas de

trabalho que têm a ver com a aplicação dessa Matemática. No entanto, todos têm de saber compreender, de saber analisar um resultado, saber fazer uma argumentação ou uma conjetura. Tudo isso é trabalho que deve ser feito com as crianças no seu desenvolvimento harmonioso, com coisas que elas sejam capazes de compreender, de manipular intelectualmente e, muitas vezes, com as próprias mãos.

A sociedade reconhece a importância da Matemática em todas a áreas?Reconhece, mas também afasta muitas vezes a Mate-mática das pessoas. Quer dizer, é tão importante, tão importante, que é só para alguns... Nesse sentido, é uma importância que afasta a Matemática daquilo que devia ser a experiência matemática dos alunos.

Ainda há muitos mitos e preconceitos?Há muitos. Por exemplo, o preconceito do rigor – sendo uma ciência rigorosa, tem um grande grau de incerteza em muitas áreas; o preconceito da inacessibilidade, de ser só para alguns; ou de que há um gene inato para se gostar ou não gostar. O preconceito de que os matemáti-cos são pessoas muito sérias, sisudas, muito quadradas. Tudo isso são preconceitos.

O que pode ser feito para a Matemática deixar de ser vista como bicho-papão?Há duas vertentes. Uma é a questão da divulgação: desde há muitos anos que temos tido exemplos de divulgação que chama a atenção da sociedade, e dos alunos em par-ticular, para aspetos que não estamos muito habituados a ver associados à Matemática – por exemplo, o «Isto é Matemática» [SIC Notícias] e programas desse tipo chamam a atenção da ligação da Matemática com todas as áreas de atividade e da vida quotidiana, e às vezes com as mais insuspeitas e inesperadas. Mas depois há outro trabalho, que não chama tanto a atenção, que é o ensino, o trabalho de sala de aula. E aí, volto a insistir, é preciso uma abordagem matemática, um trabalho com os alunos que não os afaste, que não lhes dê uma sensa-ção de impotência, de incapacidade. Pelo contrário, que inclua e seja capaz de levar cada vez mais alunos a um desempenho que lhes permita ter, pelo menos, aquilo a que chamamos literacia matemática. Não é o ‘ler, escrever e contar’ da escola do Estado Novo, mas ser capaz de compreender, de argumentar, de ter um sentido crítico sobre aquilo que aparece como algo que é perfeito. A Matemática é muito manipulável. Por exemplo, na Es-tatística, é manipulável e muito manipuladora. Muitas vezes pode utilizar-se o rigor dos números ou os números com aparência de rigor para enganar as pessoas. Por isso, é muito importante trabalhar a literacia estatística dos nossos alunos como deve ser, como área do conhe-cimento que envolve grandes números e a descrição de fenómenos sociais que precisam de ser analisados com grande sentido crítico.

Que expectativas tem para o futuro?O que posso dizer em relação ao futuro e às expectativas é olhar sempre com esperança. O futuro tem uma coisa muito boa que é ser sempre o amanhã, o território onde habita a esperança. Podemos sentir que está tudo muito

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negro e que não há futuro, mas o futuro há sempre. E constrói-se com os nossos esforços, no presente. Podemos não ser tantos como há 20 anos, o movimento associa-tivo conheceu um grande decréscimo, por via de uma sociedade muito mais individualista e competitiva, e o que é próprio de um movimento associativo é a cola-boração e a partilha. O pagamento de quotas também foi afetado por tantos cortes que os profissionais têm conhecido. E tudo isto se junta num fenómeno que é o isolamento das pessoas, dos profissionais, dos profes-sores em particular. Mas aquilo que a APM continua a dizer é que é importante estarmos juntos. Uma associa-ção, uma comunidade, seja qual for, é uma mais-valia, porque juntos somos mais do que a soma individual de todos nós, juntos podemos mais. Continuamos a ser um grupo coeso, um grupo interessado, que continua a lutar por uma Educação de qualidade, com significado para os alunos. Por muito negro que seja o horizonte, acreditamos que o nosso trabalho deixará pegadas e não passos (como recorda a nossa primeira presidente, a propósito de um sermão do Padre António Vieira), porque os passos passam e as pegadas ficam. E são a semente de um futuro para o qual temos de olhar sempre com muita esperança.

Exatamente, a primeira presidente da APM, Leonor Filipe, disse que ser professor é uma arte. E concreta-mente, ser professor de Matemática?É uma arte muito especializada, exatamente porque tem de lutar contra fortes preconceitos da sociedade e dos alunos. Além das dificuldades que todos os professores têm para passar aos alunos e às famílias a importância do conhecimento e do estudo, o professor de Matemá-tica tem de ultrapassar o grande preconceito de que a Matemática é inacessível, de que é muito difícil… É, por isso, uma dupla arte. E uma prova de resistência.

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Estudantes ocupam colégios públicos no Rio de Janeiro

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71OOs movimentos de ocupação chegaram às escolas pú-blicas do ensino médio do Rio de Janeiro. As recentes mobilizações de estudantes se deram em apoio à greve de professores do Estado do Rio de Janeiro, que passa por uma crise financeira em que servidores de diver-sas categorias estão com salários atrasados e com o 13º salário de 2015 parcelado. Os estudantes têm suas próprias reivindicações e fazem denúncias, como: a falta de docentes em diversas discipli-nas; a redução das verbas enviadas às escolas; a carência de recursos básicos, como água e material de higiene; a estrutura precária das escolas; a falta de merenda; a carência de funcionários; a inutilidade dos aparelhos de ar condicionado existentes nas salas, etc. Reivindicam que o currículo seja voltado para o Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM), representação estudantil nas escolas através de eleições para o grêmio, eleição direta para cargo de diretor(a) das escolas e aumento da carga horária das disciplinas de Filosofia, Sociologia, Artes e Língua Estrangeira, entre outras coisas.Em 2013, após muitas cenas de violência na repressão policial ao movimento grevista dos profissionais da educação, passaram a ser comuns as palavras de or-dem O professor é meu amigo. Mexeu com ele, mexeu comigo. O incômodo causado por estas repressões vio-lentas, agravadas quando da proximidade da Copa do Mundo de Futebol no Brasil, ganhou as redes sociais e parte da mídia. Estudantes e responsáveis acompanha-vam as assembleias, prestavam solidariedade à luta dos profissionais da educação, davam informes, etc. Esta participação acabou fazendo com que os estudantes vivessem experiências que talvez não fizessem parte dos cotidianos da maioria das escolas, como a organi-zação das assembleias, as discussões em torno da luta de classes, o acompanhamento das negociações com o governo, a atenção aos informes jurídicos, realização de atos de protesto nas ruas, etc.

EXERCÍCIO DE CIDADANIA. Em conversa com um estudante da primeira escola ocupada no Rio de Janeiro, percebemos os “agenciamentos” (Deleuze & Guattari) que esses jovens tecem com as tantas redes de conhecimentos-significações com as quais tiveram contato nos movimentos mais recentes no mundo. Tais ocupações se assemelham aos movimentos de ocupação de escolas de São Paulo (Brasil) e Chile, e também de outros movimentos, como Occupy Wall Street (EUA) e 15-M (Espanha). Nas pesquisas que desenvolvemos percebemos que as redes sociais da internet evidenciam aquilo que há muito tempo os praticantes-pensantes fazem: compartilhar saberes-fazeres, que, por sua vez, tomam direções diversas.O processo de ocupação ainda está acontecendo [em junho, quando o texto foi recebido] e não sabemos que rumos e conquistas teremos ao fim desse processo. Nessas ocupações, os estudantes passam a fazer grande limpeza nas escolas; pinturas de paredes; cozinhar para alimentar os que estão dormindo nas escolas; buscar contatos para continuarem estudando, promovendo currículos diferenciados, etc. As marcas que ficam hoje são de um levante popular, estudantil, jovem que dialoga com rappers, funkeiros, professores, atores, líderes sindicais, líderes partidários, etc. Suas referências são muitas, mas não se deixam cooptar, pois tomam para si o protagonismo de suas reivindicações. Esse processo, por si só, já é potente: mostra que as juventudes estão mobilizadas para rei-vindicar direitos sociais básicos e de desenvolvimento social e, assim, estão a nos ensinar muito.

Joana Ribeiro e Rebeca Brandão,doutorandas no Programa de Pós-Graduação em Educação da

Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Brasil

O Colégio Estadual Prefeito Mendes Moraes, o primeiro a ser ocupado por alunos, em 21 de março, foi desocupado no dia 16 de maio, após algumas reivindicações terem sido garantidas. Foram 56 dias de resistência, que ‘valeram’ a exoneração do diretor, o fim do sistema de avaliação do Estado do Rio de Janeiro, uma reunião da Secretaria de Estado com os outros colégios ocupados e um projeto de lei que prevê a eleição de diretores das escolas. Entretanto, no fim de maio, dezenas de colégios estavam ainda ocupados pelos estudantes.

Esta participação acabou fazendo

com que os estudantes vivessem

experiências que talvez não

fizessem parte dos cotidianos da

maioria das escolas e mostra que

as juventudes estão mobilizadas

para reivindicar direitos sociais

básicos e de desenvolvimento

social.

Cumprindo o Estatuto Editorial, a PÁGINA respeita a grafia original do texto.

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Com a palavra,os alunos!

THE FALL OF MAN , CORNELIS CORNELISZ. VAN HAARLEM (1562-1638); ÓLEO SOBRE TELA, 1592;(PORMENOR).

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SSegundo um velho ditado popular, em aula, “a palavra é de prata e o silêncio é de ouro”. Era a concepção de que a fala cabia ao professor e a expectativa era a de que os alunos ouvissem e obedecessem aos seus comandos. Falar sem ser solicitado era gesto de indisciplina e uma das atribuições fundamentais do professor era mantê-la com mão firme (havia quem dissesse “rédea curta”), com adequado manejo de classe, aqui sem aspas porque a expressão estava presente em diferentes documentos e manuais de didática.Era a ditadura empresarial-militar, tempo de autoritarismo explícito, o que não impedia que os alunos questionassem o lugar a eles atribuído quando lhes era franqueada a palavra. Um deles, ainda criança, disse: “O aluno devia ser mais importante. A escola é feita prá gente. Se não tivesse aluno, o terreno ia ser usado pra outra coisa.” De lá pra cá, inegáveis avanços e ameaças de retrocesso. Em se tratando do uso da palavra, o projeto “Escola Sem Partido” remete a um duro golpe na liberdade de expressão de professores e alunos. Supondo a neutralidade impossível, prevê uma espécie de escola sem ideologia, sem discussão, sem valores, sem educação.Aprovado no Estado de Alagoas, o projeto tem sido objeto de embate nos demais. As bancadas evangélicas, por exemplo, alegam a existência de uma “doutrinação de esquerda” e chegam a propor penas para professores. Querem afastar quaisquer discussões políticas, como a de gênero, etc. Querem Adão e Eva em lugar de Darwin. Enquanto isso, a precarização da educação pública tem enfrentado resistências dos sujeitos envolvidos. No Estado do Rio de Janeiro, os professores estão em greve por melhorias salariais e das condições de trabalho. Os alunos, em turmas superlotadas e com merenda empobrecida, não apenas têm se solidarizado, mas assumido a ocupação de cerca de 70 escolas, como já o tinham feito os de São Paulo e Goiás.

ESPERANÇA NA RAPAZIADA. Os alunos se auto-organizam de forma de-mocrática na defesa de seus direitos, na perspectiva de uma educação eman-cipadora. Têm resistido a diferentes pressões, como cortes de luz, bem como socializado as consequências concretas das suas falas, produzindo melhorias no espaço físico e verificando que existem muitos recursos não distribuídos, como dicionários e livros didáticos. Eles assumem a administração das escolas ocupadas. Divulgam listas de doações necessárias, limpam e cozinham, além de promoverem aulas com convidados e várias atividades culturais. Já o “diálogo” proposto pela Secretaria de Estado de Educação tem correspondido à decretação de férias antecipadas para as escolas ocupadas e à abertura da possibilidade de que parte dos alunos descontentes venha a obter transferência para unidades em funcionamento. Como no Estado de São Paulo, a precarização envolve o desvio de verbas que seriam destinadas à merenda escolar, os alunos ocupam o plenário da Assem-bleia Legislativa para tentar conseguir as assinaturas necessárias à instauração de uma Comissão Parlamentar de Inquérito. Uma das alunas, interpelada por uma autoridade, afirmou que aquela é a Casa do Povo e que, portanto, seu lugar também é lá. Das salas de aula ao conjunto das escolas e a outros espaços públicos, enfren-tando a tendência à criminalização dos movimentos sociais, os alunos têm dito e feito manifestações que desafiam o neoconservadorismo, renovando a esperança em uma juventude capaz de resistir a ameaças e golpes, atualizando a música de Gonzaguinha, “E vamos à luta” (1980), com o refrão Eu acredito é na rapaziada...

Raquel Goulart Barreto

Eu acredito é na rapaziada... Os estudantes têm feito manifestações

que desafiam o neoconservadorismo, renovando a esperança em

uma juventude capaz de resistir a ameaças e golpes e atualizando

aquele refrão de Gonzaguinha.

Cumprindo o Estatuto Editorial, a PÁGINA respeita a grafia original do texto.

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OO Brasil está longe de viver uma Primavera Árabe, tal qual aconteceu no Oriente Médio e no Norte da África a partir de 2010, com amplas manifestações populares (Tunísia, Egito, Líbia, Síria, Argélia, Bahrein, Djibuti, Iraque, Jordânia, Omã, Iémen) e protestos menores (Kuwait, Líbano, Mauritânia, Marrocos, Arábia Sau-dita, Sudão, Saara Ocidental). O cenário brasileiro que pode ser embrionário para manifestações semelhantes é a extensão da Operação Lava Jato e as denúncias de corrupção que afeta parte significativa da classe política, sem poupar sequer os principais mandatários da nação.No âmbito da Educação, mais especificamente do mo-vimento estudantil, a reminiscência que nos interessa é a Revolta dos Pinguins, que abalou o Chile em 2006 e 2011, levando para as ruas milhares de estudantes de escolas públicas e privadas que reivindicavam uma Educação pública, gratuita e de qualidade. Sem qualquer risco de plágio, de copiar experiências estrangeiras ou de transplantar para terras brasileiras experiências de outros países, estudantes secundaristas brasileiros se apropriaram da cartilha “Como ocupar um colégio?”, escrita por estudantes argentinos e chilenos, um simples libelo de quatro páginas, para desencadear a maior mobilização estudantil que o país conheceu no século XXI e que, pela primeira vez, colocou na defensiva grupos políticos que há mais de 20 anos não enfrentavam nenhuma oposição ou contestação séria e consequente, principalmente no Estado de São Paulo, onde reina o PSDB (Partido da Social Democracia Brasileira).

SONHOS E DESEJOS. As manifestações contestavam a proposta de reorganização da rede estadual de ensi-no, que previa a destinação das escolas para atender exclusivamente ao Ciclo I (de 1º ao 5º ano), Ciclo II (de 6º ao 9º ano) e Ensino Médio, o que resultaria no fechamento de 94 escolas e realocação de alunos de uma escola para outra.Com manifestação favorável da Justiça, que entendeu ser a ocupação legítima na defesa do direito à educação pública, gratuita e de qualidade, o Governo do Estado não teve outra alternativa senão voltar atrás em suas intenções e aceitar a demissão do secretário de Estado da Educação e parte de sua equipe.A decisão política só foi tomada depois que cerca de 200 escolas foram ocupadas na cidade de São Paulo e que a popularidade do governo despencava cerca de 30% junto à opinião pública e o movimento começava a se multiplicar em outras cidades e estados do país. Vale ressaltar que em 2014 o Brasil contava com cerca de 190 mil salas de aulas, onde estão cerca de 43 milhões

Apropriando-se da cartilha

“Como ocupar um colégio?”,

a maior mobilização estudantil

brasileira deste século contestava

a proposta de reorganização da

rede escolar de São Paulo, de que

resultaria o fechamento de 94

escolas. Durante as ocupações,

os estudantes transformaram

as escolas em espaços de

experimentação pedagógica como

nunca antes visto.

de alunos matriculados e atendidos por cerca de 2,1 milhões de professores.Quando alunos adolescentes e jovens se apropriaram da escola, podendo repensar seu uso, sua organização, os conteúdos curriculares, as formas de participação da família e da comunidade e as relações de poder, o que emergiu como expressão dos seus sonhos e desejos é uma escola bem próxima da materialização de concei-tos teóricos que embasam a legislação social brasileira, mas que tem sido de difícil operacionalização, tais como gestão democrática da escola pública, controle social das políticas públicas e de exercício da cidadania ativa.A pesquisa educacional, que sempre tangenciou estes te-mas em busca de experiências concretas de sua realização na rede pública de ensino, agora passa a ter uma referência importante, mostrado espontaneamente pelos próprios estudantes, que durante a ocupação transformaram suas escolas em espaços de experimentação pedagógica como nunca antes visto na história da Educação no Brasil.

Roberto da Silva

Novos cenários para a pesquisa em Educação no Brasil

Cumprindo o Estatuto Editorial, a PÁGINA respeita a grafia original do texto.

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O papel da educação no combate ao extremismo

violento

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77NNo rescaldo dos ataques terroristas do ano passado, em Bruxelas, Ancara, Beirute e Paris, o medo do terror disseminado pelo ISIS [grupo Estado Islâmico] alastrou para além do seu local de nascimento (Iraque/Síria) e tornou-se global. Tal como outros trá-gicos eventos desde de 11/09, a resposta das elites políticas ocidentais tem sido o poder militar, a intervenção no exterior e o aumento da vigilância e da segurança domésticas. Desde a invasão e ocupação do Afeganistão, a intervenção militar ocidental – seja através de ‘aliados’ locais, bombardeamentos aéreos, drones, capitulações e torturas extraor-dinárias – pouco tem contribuído para que os seus cidadãos se sintam mais seguros e muito tem contribuído para inflamar as tensões. Embora compreensível, é uma resposta destinada, mais uma vez, a exacerbar as tensões, a ampliar os campos de batalha, a pro-vocar a morte de mais civis e a tornar o mundo mais perigoso, em vez de mais seguro.Juntamente com os tambores de guerra, um número crescente de Estados, agências e atores internacionais discutem a forma como a educação pode contribuir para o Combate ao Extremismo Violento (CEV) e foram criadas uma série de iniciativas educacionais.Enquanto a linguagem do CEV surge como ampla e genérica, o seu foco está claramente direcionado para a juventude muçulmana. Muitas iniciativas no âmbito da educação estão centradas no fornecimento de competências e oportunidades económicas, outras centram-se no desporto e atividades extracurriculares, com base na lógica de que “mãos ociosas fazem a obra do diabo”. Outros programas estão focados na dimensão psicos-social, na perspetiva de que a propensão para a radicalização está ligada a doenças e inseguranças, isto é, uma patologia propensa a reagir e a ser desencadeada por certos eventos/contactos/experiências. Estes tipos de compromissos procuram levar os jovens em risco a ver o erro dos seus caminhos, a hipocrisia das organizações, ou das ideologias que seguem, e a traçar um caminho para a ‘desradicalização’. Embora estes programas captem certos aspetos do problema (tanto económicos, como psicossociais), ao individualizarem a questão no ‘cliente’, muitas vezes tendem a evitar as interações mais complexas entre agentes, estruturas e sociedade, e a história do pro-blema. Ou seja, concentram-se em tratar o radical e não fazem a pergunta sobre as con-dições e os contextos que produzem o ambiente em que o ‘radicalismo’ parece florescer.

PARAR PARA PENSAR. O elefante na sala, pelo menos em parte, é a islamofobia, a relação do Ocidente com a Arábia Saudita, a hipocrisia do próprio Ocidente e dos criadores de programas CEV, que evitam qualquer ideia de que possamos ser ‘nós’ os responsáveis pela radicalização: desde o financiamento dos Mujahideen, no Afeganistão, quando os soviéticos ocuparam o país na década de 1980, usando Osama Bin Laden como agente de recrutamento e financiamento, e criando um currículo de ódio para ser usado nas escolas, nos campos de refugiados afegãos, ao longo da fronteira com o Paquistão/Afeganistão – financiado pela Agência dos Estados Unidos para o Desenvol-vimento Internacional (USAID) e escrito por consultores da Universidade de Nebraska. Desde as últimas invasões do Afeganistão e Iraque, Abu Ghraib, ao financiamento de milícias sunitas anti-Assad na Síria, por um lado, e um governo xiita, apoiado no Iraque, por outro, o papel do Ocidente parece cada vez mais o de um agente provocador, e não o de um interveniente humanitário. Tanto esta geopolítica hipócrita como a islamofobia subtilmente escondida, predominantes nestes programas de educação, estão claramente ausentes do escrutínio crítico do seu conteúdo pedagógico.Uma ideia fundamental para esta discussão é compreender porque é que os jovens se ‘radicalizam’ e a relação entre os fatores estruturais e psicossociais. Esta análise é im-portante, precisamente, porque os programas de intervenção expressam esta ‘teoria da mudança’ através dos tipos de práticas com que estão comprometidos. Muitos parecem mais direcionados para a vigilância e pacificação da juventude, e para a manutenção do status quo, e não para o enfrentamento e correção dos desafios e obstáculos sociais, económicos, políticos e culturais, e a alienação que os jovens muçulmanos de todo o mundo sentem. Desta forma, num momento em que os tambores da guerra soam e a educação e a segu-rança (financiamento, política e programação) estão cada vez mais interligadas, vamos respirar fundo, olhar para o espelho e refletir sobre as questões que temos pela frente. Vamos pensar como chegamos até aqui, e onde e como a educação se pode tornar um veículo de transformação social, para reduzir desigualdades e reconstruir a esperança.

Mario Novelli

É fundamental

compreender porque

é que os jovens ‘se

radicalizam’ e a relação

entre os fatores estruturais

e psicossociais. Os

programas de intervenção

(CEV) expressam a ‘teoria

da mudança’ através dos

tipos de práticas com que

estão comprometidos,

e muitos parecem mais

direcionados para a

vigilância e pacificação da

juventude e a manutenção

do status quo, e não

para o enfrentamento e

correção dos desafios e

obstáculos que os jovens

muçulmanos de todo o

mundo sentem.

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RÀ mesa familiar, a política fazia parte do menu. E a influência

do avô materno, preso pelo Estado Novo na luta contra a

ditadura salazarista, está presente desde muito cedo na sua

vida. É a este pedaço de História, a par da Primeira República,

que Fernando Rosas se dedica particularmente.

Professor, historiador e político (também é conhecido por ser

um dos fundadores do Bloco de Esquerda, em 1999),

jubilou-se no final de abril. Mas a “Última Lição” não passa de

uma designação académica, já que vai continuar a lecionar

a cadeira de História dos Fascismos, na Faculdade de

Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa,

e a dirigir projetos de investigação no Instituto de História

Contemporânea.

Em entrevista à PÁGINA, Fernando Rosas falou de Portugal, da

Europa e do mundo. Deste mundo que anda “muito confuso”.

Falou também das suas duas vidas: a anterior ao 25 de Abril

e a que veio depois da Revolução, o dia em que “mudou tudo”.

Com o professor, historiador e homem político percorremos a

História dos livros e alguns capítulos da sua vida.

Maria João Leiteentrevista

Sufya Cacao

fotografia

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79RFERNANDO ROSAS

O MUNDO ESTÁMUITO CONFUSO

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Aderiu muito cedo à militância política. O que o atraiu?Fui levado para a militância política pelo ambiente familiar em que vivia. Desde muito cedo, a política lá em casa estava à mesa. O pai da minha mãe, o meu avô Filipe Mendes, era um republicano ativo contra a ditadura salazarista. O meu pai não, mas a família da parte do meu pai, pelo contrário, era uma família salazarista, que apoiava a situação. E portanto, as questões da política e da intervenção política estavam muito vivas. O meu avô foi preso pelo Estado Novo e eu lembro-me de, com seis anos, ir visitá-lo à Cadeia do Aljube, no Natal. O meu avô foi muito influente na minha juventude, com o seu otimismo, a sua determinação de lutar contra a ditadura. E depois é preciso ver o que eram os anos 60 em Portugal, em que os jovens eram colocados muito cedo perante decisões muito importantes da sua vida. Aos 18 anos dava-se o nome para ir para a tropa – os estudantes universitários ainda tinham um período de adiamento até acabar o curso – e eram quatro anos de tropa, dois cá e dois lá. Era uma interrupção na vida. De repente, a vida era partida ao meio e muito cedo havia que decidir se se havia de tomar posi-ções políticas, se se queria ir, se não se queria ir. Havia os que entendiam que se devia desertar, que não se devia ir; havia os que entendiam que se devia ir, mas fazer lá dentro trabalho político; havia os indiferentes, mas que iam contrariados. As circunstâncias, não só da ditadura em si como da guerra, precipitavam escolhas políticas precoces. No caso da minha família, mais precoces ainda, por causa do ambiente, com presos políticos desde muito cedo.

Fez parte dos movimentos estudantis.E havia também o movimento estudantil... Em 1962, começam as crises académicas, a grande crise. Começa até um bocadinho mais cedo, com a luta contra o decreto 40.900; há aí uma mo-vimentação importante, mas em ‘62 é a grande explosão contra a opressão, contra a repressão política, contra o caráter vetusto e arcaico daquela universidade. Depois houve as lutas de 1965 e as de 1969, e a partir daí uma universidade praticamente in-governável. Estou longe de ser um caso particular. Na minha geração, a política era convocada para a vida das pessoas muito cedo. E eu também fui. Fui militante do Partido Comunista em 1961, tinha 15 anos.

Tirou o curso de Direito também por influência do avô. Na al-tura, a História não era uma opção?A História sempre me apaixonou, seguramente desde o meu sexto ano do liceu. Tive uma grande professora de História, a doutora Fernanda Espinosa, mulher do professor Oliveira Marques. Essa senhora teve uma grande influência na minha paixão pela Histó-ria. Mas a História que nessa altura se fazia nas universidades era completamente desinteressante. A História de Portugal terminava por volta de 1640. A partir daí eram os políticos, os comunistas, os agitadores que queriam meter-se na História Contemporânea – o Estado Novo nunca se interessou por um discurso académico da História Contemporânea. O passado de glória, da reconquista e da expansão, era esse passado que interessava ao Estado Novo. A História Contemporânea não era um investimento, pelo contrário, era uma coisa que se devia esquecer. E quem queria investigar a História Contemporânea eram uns suspeitos agitadores, que an-davam por ali a querer fazer política. Eu tinha um grande interesse pela História, mas um grande desin-teresse por frequentar a História tal como ela existia na Faculdade de Letras. Por outro lado, o curso de Direito era o curso de quem queria intervir politicamente, tanto à Direita como à Esquerda. A Faculdade de Direito era a faculdade onde se preparava a política. Além das cadeiras propriamente jurídicas, tinha uma

componente de Ciências Económicas e Ciências Políticas, e essa formação, jurídica, política, de política económica e financeira, era interessante, era um atrativo. Portanto, fui para o curso de Direito por influência do meu avô, que era advogado, e pelo meu investimento na política e na intervenção política na luta contra a ditadura. Mas sem nunca perder o interesse pela História.

A História chegou mais tarde. Como pode descrever o seu per-curso até lá?Na luta contra o regime, acabei por ter de ir para a clandestini-dade. Fui preso duas vezes e para não ser preso a terceira tive de me esconder. Depois veio o 25 de Abril e aqueles anos de brasa, e quando parei já não regressei ao Direito. Ainda estagiei num escritório de advogados, mas o Direito desinteressou-me comple-tamente. Com o respeito possível pela profissão, nada daquilo me atraía. E em 1980, quando finalmente abandonei a política como atividade profissional, à qual me dediquei ainda uns dez anos, regressei já completamente determinado a fazer História. Matriculei-me aqui no primeiro mestrado de História Contempo-rânea que abriu no país e fui o primeiro mestre de História Con-temporânea. E ainda antes de acabar o mestrado fui convidado para assistente e aqui fiquei.

A História também pode ser uma ferramenta política.Sim, a História ajuda os políticos a pensar. Um político que não usa a História para interpretar o passado e entender o presente é um político medíocre, mas há muitos assim. Agora, fiz História, fiz a carreira na História, fiz o mestrado, o doutoramento, depois passei a professor associado, fiz a agregação e fui catedrático em História. O que não me impediu de retomar alguma atividade política a partir da fundação do Bloco de Esquerda. Fui um dos fundadores, em 1999, ainda fui deputado durante oito anos, mas abandonei quando achei que tinha cumprido a minha par-te. Abandonei a Assembleia da República em 2010 e regressei à universidade, a tempo inteiro, onde estou atualmente. Jubilei-me há dias, mas a ‘Última Lição’ é unicamente um título que a praxe académica dá a estas coisas.

A LUTA CONTRA O REGIME ERA MUITO CONTROLADA E QUALQUER TENTATIVA DE MANIFESTAÇÃO ERA BRUTALMENTE REPRIMIDA

Dedica-se muito ao salazarismo e ao Estado Novo. Porquê este pedaço da História?Eu dedico-me a fazer a História do século XX e, no caso da História de Portugal, tenho-me dedicado à História da Primeira República e à História do Estado Novo. Até porque nisto não há compartimentos estanques. O Estado Novo vem da ditadura mi-litar, que vem da queda da Primeira República, que vem da queda da Monarquia… E, portanto, é preciso perceber esse percurso, acompanhá-lo e tentar explicá-lo. O interesse pelo Estado Novo tem muito a ver com a minha militância política antifascista; quer dizer, uma perplexidade que se colocou à minha geração, à gera-ção que combateu o regime, foi tentar perceber como é que um regime destes tinha durado meio século do século XX português.

E como é que aconteceu?Até acabei por escrever um livro sobre isso, «Salazar e o Poder. A arte de saber durar», onde proponho uma tentativa de explicação para essa capacidade de durar que o Estado Novo demonstrou e que tem a ver com fatores de ordem vária, complexos. As explicações que no meu tempo se davam eram muito insatisfatórias. Tinha a

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repressão, mas nenhuma repressão explica uma duração de meio século. O povo apoiava, mas também não apoiava, houve os dois tipos de situações. Em certas conjunturas, as classes intermédias tenderam a apoiar o regime, as classes contrárias foram sempre vítimas do regime, mas não chegava para explicar tantos anos. Os regimes de caráter totalitário, que não entraram na II Guerra, duraram muito tempo e por razões idênticas, nomeadamente, o Portugal salazarista e a Espanha franquista. Quer a Itália quer a Alemanha, naturalmente, foram fatores da guerra e caíram com a guerra, com a derrota. Mas Portugal e Espanha não, mantiveram-se fora da guerra e duraram. Porque fizeram uso determinado, diferente em Portugal e Espanha, da violência, porque souberam controlar as Forças Ar-madas nos momentos históricos essenciais, porque estabeleceram relações duráveis com a Igreja Católica, como força legitimadora desses regimes, porque a organização corporativa foi eficaz para conciliar interesses e porque foram regimes de caráter totalitário, ou totalizante, ou seja, preocuparam-se com os interstícios do quotidiano, a família, a escola, o lazer, e criaram organizações especializadas de controlo de todos os níveis da sociabilidade. Es-tabeleceram uma linha invisível no quotidiano entre aquilo que se pode fazer e aquilo que não se pode. Em cima dos que transgridem cai a violência repressiva, os outros estão sujeitos àquela que se chama violência preventiva, que é a violência das organizações de controlo, na escola, nos lazeres, no trabalho; organizações de vigilância e controlo relativamente ao comportamento das pessoas e que as intimidam. O medo está no interstício do dia a dia e essas organizações são muito eficazes para fazer durar. O conjunto destes fatores, a meu ver, funcionou. Até que há um dia em que deixam de funcionar.

E um dia o regime caiu à mão de um poder que deixou de controlar.Há um dia em que as contradições são mais fortes do que os fatores de controlo. No caso de Portugal, a guerra colonial foi determinante. E essa é uma diferença entre Portugal e Espanha. Em Espanha, a transição parte do próprio regime, que pilota a transição. Cá, o regime é completamente incapaz de gerar uma solução endógena para o seu próprio futuro e, portanto, há uma rotura, um golpe de Estado, uma revolução a seguir. O regime perdeu todas as oportunidades históricas de transição. Não as quis aproveitar, teve medo. Era um regime que vivia demasiado à sombra da Igreja, do Exército, da Polícia, um regime muito con-servador e que tinha medo da própria sombra. E nunca arriscou em nada, na Economia como na Política. Perante a guerra, não quis arriscar uma política de descolonização e a partir de certa altura o dilema era este: ou o regime encontrava uma solução política para a guerra, correndo os riscos disso, ou a guerra aca-bava com o regime. E na incapacidade de se realizar a primeira, verificou-se a segunda.

Foi preso duas vezes e entrou na clandestinidade. Como descreve essa experiência?Este era um país que se caracterizava por as liberdades funda-mentais não estarem consagradas. Havia a censura à imprensa, ao cinema, à rádio, à televisão; todos os meios de comunicação social eram sujeitos à censura prévia. Era um regime que proibia a liberdade de associação e de manifestação, e que praticava uma associação política e ideologicamente controlada pelo Estado e pela Igreja. Um regime que tutelava os tempos livres dos trabalha-dores, através de uma organização especial que se chamava FNAT (Federação Nacional para a Alegria no Trabalho), que proibia a greve, que proibia os sindicatos livres. Era um regime de caráter totalitário, totalizante, que não deixava as pessoas respirarem e

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que tinha generalizado a ideia de que o melhor era nin-guém se meter na política – a minha política é o trabalho; a política é lá para alguém que sabe, que está lá longe a cuidar de nós. A política estava reservada para uma elite, um olimpo de dirigentes dos negócios, do regime, uma típica oligarquia. Portanto, a luta contra o regime era muito complicada, porque havia poucos espaços de legalidade. Algumas pessoas infiltravam-se nos sindicatos, algumas associa-ções culturais podiam ter atividade, alguns cineclubes, as associações de estudantes, enquanto não foram proi-bidas. A luta contra o regime era muito controlada e qualquer tentativa de manifestação, ou qualquer coisa semelhante, era brutalmente reprimida pela PSP e pela Guarda Republicana, não era só pela PIDE. A PIDE era o centro do sistema de justiça política, que teve vários nomes, mas articulada com a Guarda Republicana, a Polícia de Segurança Pública e as Forças Armadas. Portanto, qualquer alternativa no campo político estava fora de questão, e no campo cultural ou social, não tinha possibilidade nenhuma de se expressar. E se tentasse manifestar-se ou associar-se, era também alvo de proi-bição e de repressão. Todo o regime na sua ideologia e na sua prática convidava as pessoas a estarem quietas.

E tendo em conta os relatos de prisão e de tortura... Quem não estava quieto, sujeitava-se à violência repres-siva, que consistia em ser preso, torturado. E é preciso perceber que a polícia política tinha poderes latíssimos, até porque os agentes e funcionários eram equiparados a magistrados. Os polícias podiam prender qualquer pessoa por um período de seis meses, renovável por mais seis meses, por mais seis meses... Durante esses seis meses, o preso não tinha direito a visitas, a não ser que a polícia autorizasse, e não tinha direito à assistência do advogado. A PIDE tinha as pessoas lá durante seis meses para fazer o que queria delas, e fazia: tortura de sono, espancamentos, choques elétricos, enfim, violências que eles foram utilizando ao longo desses anos contra milhares de presos. O centro da repressão do regime nunca deixou de ser a polícia política, e por isso, ao fim da tarde do dia 25 de Abril, o povo marchou sobre a polícia.

Nesse dia, a que soube a liberdade?Foi o começo de outra vida. Para as pessoas da minha geração há duas vidas: uma até ao 25 de Abril e outra depois; acho que falo pelos portugueses em geral. É, sem dúvida, o dia mais importante da minha vida. Em todos os aspetos. Foi o dia em que tudo mudou, na nossa vida, no quotidiano, no trabalho, nas relações entre as pes-soas, tudo mudou. Foi o fim de meio século de fascismo, de ditadura, de opressão, e o começo de uma vida em democracia, em liberdade. Por muitos acidentes que a vida democrática tenha; não há nada que se compare. Está fora de questão.

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CONTINUO A SER UM HOMEM POLÍTICO E A TER INTERVENÇÃO POLÍTICA, MAS MAIS SECUNDARIZADA

Durante quase 20 anos não teve atividade partidária, embora tivesse intervenção política. O que o levou, em 1999, a alinhar no projeto do Bloco de Esquerda?O Luís Fazenda, que nessa altura era o coordenador da UDP, convidou-me para ajudar a juntar vários setores da esquerda radical, que eu como independente teria possibilidade de o fazer. E assim foi. Falámos uns com os outros, com o Francisco Louçã, que era do PSR, com o Miguel Portas, que era de um grupo dissidente do PCP, e lá fomos conversando… A ideia era concorrer juntos às eleições desse ano. O Bloco correspondia a um setor de opinião à esquerda do PS, mas que não se reconhecia no PC e que não estava representado na vida política.

Havia necessidade de criar mais uma força à esquerda?Havia espaço social e político para criar uma força que agrupasse as pessoas que estavam à esquerda do Parti-do Socialista e que não se reconheciam na orientação ideológica do Partido Comunista. Foi esse espaço que o Bloco de Esquerda partiu a conquistar, e devo dizer que foi a existência desse espaço político que veio per-mitir, passados uns anos, romper o monopólio do bloco político ao Centro, da alternância permanente entre o PS e o PSD. A prazo, foi isso que se demonstrou, a pos-sibilidade de haver uma força política que oferece uma alternativa ao bloco central.

E que balanço faz dos seus anos como ativista parti-dário e deputado?Foram anos muito enriquecedores e onde aprendi. Agora, eu sou um historiador e um professor de profissão. Conti-nuo a ser um homem político e a ter intervenção política, mas mais secundarizada. Sou do Bloco de Esquerda, não saí do partido, mas a minha vida partidária está muito diminuída; ainda que me interesse pela vida política do Bloco de Esquerda, que dê a minha opinião quando me pedem e que participe na medida das minhas possibili-dades. Sou professor, sou historiador, a minha profissão é esta, e a certa altura achei que era contraproducente continuar nisso. Até porque se formou uma nova geração a quem o Bloco de Esquerda foi muito bem entregue.

E o que é que se pode esperar das novas gerações po-líticas?Do Bloco de Esquerda pode-se esperar muito. Acho que o Bloco ficou muito bem entregue a uma geração de gente nova, inteligente, interventiva, com imaginação e que acho que vai ter um brilhante futuro. Agora, as dificuldades do país são muito grandes, as dificuldades da Europa são muito grandes, as dificuldades do país nesta Europa são maiores ainda e, portanto, o futuro não está fácil. O futuro para os meus netos não vai ser fácil.

Pela primeira vez, os partidos da esquerda estão na base de um Governo...Isso é um fenómeno novo. Na Europa não há nenhum caso paralelo, e a Europa precisa absolutamente de alternativas às políticas neoliberais de austeridade que estão a ser seguidas e que estão a destruir a Europa como

conceito, como projeto económico e político. O que se passa com os refugiados é uma vergonha, e a subida do racismo e da extrema-direita é altamente preocupante.

O que se passa em Portugal pode ser um ponto de partida?Pode. É por isso, a meu ver, que a Comissão Europeia está tão empenhada em liquidar esta experiência. É por isso que a Comissão está a fazer uma ativa e escandalo-sa ingerência na política interna em Portugal, tentando boicotar, do ponto de vista financeiro, a viabilidade desta experiência. Por isso é que é preciso resistir.

A Grécia também teve uma viragem à esquerda...O único ensinamento que é possível tirar da Grécia, neste momento, é que é preciso estar preparado para sair. É preciso estar preparado para sair, se for caso dis-so, se não nos derem outra alternativa. A Grécia nunca se preparou para sair do Euro e, portanto, quando os encostaram à parede, capitularam.

E Portugal está preparado?Nós temos de nos preparar, para o caso de ser neces-sário, se nos empurrarem para isso. Ninguém sai do Euro porque quer, mas temos de estar preparados para isso, porque eles podem encostar-nos à parede sem dó nem piedade.

HÁ UMA ESPÉCIE DE CAPITULAÇÃO DOS PODERES CENTRAIS EUROPEUS, DE RENDIÇÃO AO NEOLIBERALISMO

Com tantos problemas pelo mundo fora, vivemos num barril de pólvora? Vivemos uma situação muito inquietante desde que se rompeu o equilíbrio bipolar. Ou seja, desde a implosão da União Soviética, a tentativa de hegemonização unilateral dos Estados Unidos, sobretudo com Bush, as guerras do Afeganistão e do Iraque… Neste momento, a situação internacional é caracterizada por haver vários polos com pretensões imperiais, disputando hegemonias mundiais ou regionais. E o enfraquecimento da capacidade dos organismos internacionais de mediação deixa antever a possibilidade de multiplicação de conflitos regionais: a China tem conflitos com o Vietname, as Filipinas e o Japão, acerca da delimitação das zonas de influência; a Rússia quer recuperar territórios da antiga União Sovié-tica, e daí a pressão de Putin sobre a Ucrânia e os países do Cáucaso; o Médio Oriente é um barril de pólvora. A Síria, neste momento, é uma grande complicação, porque o fundamentalismo islâmico é indiretamente apoiado pela Arábia Saudita, pelos Emirados e pela própria Turquia, que tem uma política dúplice nesse aspeto: compram petróleo e fornecem armas. Os curdos estão a criar um território independente, que é mais ou menos hostilizado por todos os países de onde vêm. E as grandes potências ocidentais não querem meter tropas lá, e a meu ver, bem. A Síria é um problema com uma solução tão complicada como o Iraque, a Palestina e o Estado de Israel.

É uma fase complicada da História.Tudo isto são períodos de convulsões múltiplas, que

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não só não têm uma resolução à vista como não existe um polo de forças progressistas que polarize soluções alternativas emancipatórias. Quer dizer, não há um polo de esperança, o que deu origem a que muitas resistên-cias ao imperialismo, à injustiça, à miséria, estejam a ser capitalizadas por ideologias radicais fascizantes. O fundamentalismo islâmico é parecido em muitas coisas com o fascismo, só que faz-se em nome de uma religião. Mas a opressão das mulheres, a opressão do outro, a barbaridade contra o que é diferente, o culto de um chefe supremo, a expansão territorial… Tudo isso são características muito similares aos fascismos dos anos 30. A distância entre o norte e o sul, a distância entre a riqueza e a pobreza, a tremenda ameaça ambiental que pesa sobre a humanidade, tudo isso não encontrou, ainda, um grande polo de resistência em alternativa, o que faz com que muito do descontentamento existen-te seja polarizado por forças sinistras. O mundo está muito confuso.

E a Europa?A Europa podia ser um referencial de democracia, de integração, de justiça social… Porque isso é que faz a diferença da Europa: o desenvolvimento económico e social, a justiça política e a democracia. Essa é que é a diferença. Não é o poder militar da Europa que a indi-vidualiza, mas o seu paradigma civilizacional, as ideias, os valores, as práticas, a igualdade, a liberdade, a fra-ternidade, a justiça social, etc. Com o neoliberalismo, a Europa está a perder isso.

A História repete-se, em circunstâncias e contextos diferentes?Marx dizia que a História só se repetia como tragédia ou como comédia. A História não se repete, mas as circunstâncias históricas podem ser semelhantes. Vou explicar. A segunda grande depressão do capitalismo, em 2008/2009, tal como nos anos 30, foi pretexto para a explosão de ideologias que querem reverter as conquistas sociais de parte da humanidade. Ou seja, a ideologia neo-liberal pretende fazer uma espécie de vingança histórica relativamente às aquisições do pós-guerra, em termos de Estado social, de democracia política e social. E esta reversão só não recorre à violência com que recorreram os fascismos porque, nos anos 30, havia uma grande ameaça que vinha da revolução russa e da onda revo-lucionária do pós-guerra. E foi preciso recorrer a meios extremos de violência para fazer face a essa ameaça. Na Europa há uma espécie de capitulação dos poderes centrais europeus, uma espécie de rendição ao neolibe-ralismo. E essa rendição dispensou o uso de violência. O que se está a passar é uma espécie de aniquilação da democracia por esvaziamento. Os parlamentos no Ocidente nasceram para aprovar os orçamentos, agora os orçamentos aprovam-se em Bruxelas, por equipas de burocratas que ninguém elegeu. A criação de um poder supranacional europeu não foi acompanhada pela democratização desse poder supranacional. Se diminuirmos a soberania dos Estados e a transferimos para um poder que não é eleito, que não é legitimado pelo voto, de repente quem manda no país são os po-deres que dominam esse poder central. E essa não é a ideia que pelo menos eu tenho da Europa. Eu quero uma

Europa de países soberanos, que cooperem entre si no que é essencial, no Estado Social, nas políticas fiscais, na política financeira, etc. Mas o que se está a verificar é uma espécie de esvaziamento. Mantemos as formas da democracia política, mas a certa altura elas estão em poderes que ninguém elegeu.

É a ingerência nas soberanias dos Estados.Por isso a experiência portuguesa é tão importante como tentativa de resistência a esta política. Por isso era tão importante uma coisa semelhante em Espanha. E dar força à Grécia para alterar o círculo de destruição sanguinária que está a acontecer. O mundo está difícil. As esquerdas socialistas emancipatórias tiveram uma grande derrota com a implosão da União Soviética. A ofensiva neoliberal, que nasce no período da Thatcher, do Reagan, etc., funda-mentou-se, do ponto de vista da ideologia, na derrota que o marxismo teve com a implosão do chamado socialismo real. Essa derrota ideológica foi muito profunda e abriu caminho a que, de repente, fosse o mercado, o lucro, a concorrência individual, todos os valores mais sinistros do capitalismo selvagem, a imperarem como valores do-minantes. Isso foi uma grande derrota para as esquerdas, a nível internacional. E nós estamos a recuperar disso. Esses valores não morreram, e estas pequenas vitórias, como tivemos em Portugal, são importantes. Vamos ver se aguentamos… Sobretudo se o Partido Socialista aguenta as pressões da Europa, que vão ser terríveis.

Também vivemos uma crise de refugiados, que tem levado a uma crise de valores. Não aprendemos com o passado?A História não é um processo excecional de desenvolvi-mento, como pensavam os positivistas do século XIX. A História tem altos e baixos, avanços e recuos. Quem é que pensava que no país que era o centro mundial da Ciência, da Tecnologia, do espírito que era a Alemanha dos anos 20 ou 30, podia aparecer a tremenda aberração do nazismo? As circunstâncias históricas moldam as ideias e os acontecimentos. E ainda que eu ache que há qualquer coisa que fica, pode haver recuos muito grandes na hegemonia. A hegemonia que é o domínio das ideias varia de acordo com as conjunturas históricas. E saber se a memória fica ou não fica faz parte daquilo que nós conseguimos fazer do uso da memória. Portanto, a luta pela hegemonia manifesta-se também, e muito, no uso que queremos fazer da memória. Aquilo que nós queremos ter como memória é determinante para sabermos o que queremos ter como presente e como futuro.

Mas há muitos exemplos na História que nos poderiam tornar melhores...Não há uma lição única da História. Não há uma ver-dade absoluta. Há é uma luta acerca dos ensinamentos que queremos tirar da História. Isso há, uma luta pela hegemonia.Tudo depende das interpretações que fazemos da His-tória?Em larga medida, sim, apesar de haver um sedimento que fica. Ou seja, as pessoas aprenderam o que era o nazismo, e apesar de tudo não é fácil renovar esse tipo de experiência. Mesmo as experiências de extrema--direita que hoje avançam na Europa têm o cuidado

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de se tentar demarcar formalmente do nazismo e do fascismo… Algumas, outras nem isso. Mas não há uma leitura da História, a História não tem uma moral. A memória não é uma coisa que esteja metida numa ga-veta à espera que soprem o pó e que a peguem. A me-mória é uma construção social, que deriva da luta pela hegemonia em torno dela. Que memória é que se quer ter? E essa abordagem pode fazer-se quer pela História, propriamente dita, quer pelo uso político da memória. Mas de uma forma ou de outra, o que está em causa é saber que tipo de explicação e interpretação do passado queremos usar no presente. E isso varia de acordo com a conflitualidade ideológica de cada época. E é por isso que, no presente, as lutas pela memória são tão intensas.

A PROFISSÃO DOCENTE SOFREU UMA GRANDE DEGRADAÇÃO DE ESTATUTO E DE CONDIÇÕES DE EXERCÍCIO

Como vê o estado da Educação e da Investigação em Portugal?Vejo com simpatia os esforços que este Governo está a fazer para reverter a reversão anti-Escola Pública que o ministro Crato realizou no governo anterior. A direita fala muito do que este Governo está a reverter, esquecendo-se que a principal reversão, por exemplo em matéria de Educação, foi a política que Nuno Crato protagonizou: em matéria curricular, de estruturação dos cursos, de política científica, de cortes orçamentais, des-pedimentos de professores, revisão curricular no sentido conservador, apoio à escola privada com os contratos de associação, ataque à Escola Pública, redução do campo da Escola Pública… O Governo anterior tentou fazer uma espécie de contrarrevolução nessa matéria, e acho que o presente Governo está a tentar progressivamente repor as coisas nos termos que a Constituição manda, que é colocar a Escola Pública como eixo e como centro principal do esforço educativo, pelo menos para o en-sino obrigatório a que o Estado está obrigado. E nesse sentido, de uma forma geral, quer do ponto de vista dos contratos de associação, que é a polémica do momento, quer da organização curricular, vejo com simpatia o que o Governo está a fazer.

Assinalam-se este ano os 50 anos da Recomendação da OIT/UNESCO sobre a condição dos professores. Considera que a profissão docente tem vindo a ser desvalorizada?Muito desvalorizada. Os professores são hoje uma componente importante do proletariado moderno. Os professores como massa assalariada, sujeita à maior pre-cariedade imaginável, a salários baixos, a condições de trabalho por vezes inenarráveis, que estão na profissão há dezenas de anos e que continuam sem um lugar ga-rantido no quadro, são naturalmente uma profissão que

sofreu uma grande degradação de estatuto e de condições de exercício da profissão. Assim, acho que tudo o que sejam reformas no sentido de melhorar o ensino, através do mais criterioso e racional emprego dos professores, é bem-vindo. Ou seja, turmas mais pequenas, reforço da Educação Especial, melhor acompanhamento dos alunos, tudo isto permitiria integrar um número muito razoável de professores no sistema formal de ensino. Depois há as ‘Novas Oportunidades’, que agora não se chamam assim, mas há o regresso a esse tipo de coisas que o Governo anterior tinha acabado.Portanto, acho que ainda há lugar no sistema formal de ensino para o emprego de professores, com vantagem para a oferta do ensino; há espaço em tarefas de que eles foram expulsos em nome de princípios economi-cistas, aumentando turmas e reduzindo a qualidade da prestação dos serviços de ensino. Esta é uma data a ser lembrada e acho que uma das coi-sas com que este Governo tem de ser preocupar é com a devolução aos professores do estatuto que devem ter. Por outro lado, acho que os professores não têm de ter receio de serem avaliados, porque eu acho que há aí um certo preconceito contra a avaliação – os professores têm de ser avaliados como todas as profissões são avaliadas, com critério, com justiça. E não devem dar a imagem de que têm receio de ser avaliados por pessoas que não sejam exclusivamente seus pares. Acho que é preciso voltar a esse assunto...

Sobre a sua “Última Lição”, foi um dia especial?Foi um dia bonito, de amizade e de solidariedade. Es-tou muito grato, naturalmente. Sensibilizou-me muito.

E que planos tem para o futuro?Vou continuar a lecionar uma cadeira, que criei há três anos, de História dos Fascismos. Vou continuar como investigador do Instituto de História Contemporânea, onde estou a dirigir alguns projetos de investigação. Neste momento, estou a escrever o argumento para uma nova série de televisão, sobre Portugal e África, que vai estrear no ano que vem. Continuo com muita atividade, continuo a fazer o que sempre fiz.

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CBBATINAS HÁ MUITAS. E pecadores, ou criminosos, muitos mais. Severos no ajuizar da conduta alheia, quantas vezes prenhes pelos ouvidos, aliviamo-nos da perceção das nossas culpas à sombra das manhas que a subjetividade alimenta. Porém, a culpa rói-nos até ao tutano, dissimulada, maquilhada por gestos e palavras, ao ponto de nos afundarmos irreconhecíveis sempre que assobiamos para o lado ou aplaudimos por receio de sermos ferrados como ovelhas-negras. Ajoelhamos e fazemos a vénia ante os nossos mais desprezados juízes, engolindo o próprio silêncio, penitentes que só logramos ver argueiros na vista dos poderosos e acusamos de ce-gueira quantos ousam arrancar-nos a máscara. Respeita-dores de leis, juramos a inocência que nos falta, crentes de mandamentos, nem ousamos cobiçar castrados no desconforto da carne. Vamos assim na procissão, por tradição, erguemos o punho, por ambição, e se, num momento de fraqueza, a honestidade nos seduz, somos dados como inimputáveis ou carentes da inteligência tão conforme o estatuto dos homens de bom sucesso. Não apetecem trabalhos forçados, arrependimentos, idolatrias, grades ou alucinações. A mentira, a verdade camuflada, aprendemo-la em jeito de eufemismos, de esquecimento ou do desrespeito pelas obrigações éticas da cidadania. Pecadores e criminosos, assim nos quer a ordem social, uns mais pecadores, outros tantos menos criminosos, enquanto pecamos para matar a fome ou roubamos para sustentar o banquete. E se, porventura, não houver argumento suficiente para nos fazer admitir as faltas que não cometemos ou provar desmandos pelos quais não fomos responsáveis, caímos nesse purgatório, nesse labirinto, na rede de malha fina destinados àqueles fora da fé e do braço da lei: os malcomportados. Pior

Confessionáriosina do que a ignorância, maior submissão que a barra da justiça, as artes da difamação fazem obesa a coisa pública, onde tudo se digere com exceção da lucidez de espírito. Há laivos de sadomasoquismo coletivo no comportamento social, redimidos das nossas fragilidades por conta de credos e subserviências, e quantas vezes por conta de discursos cuja erudição foge ao escrutínio das pessoas simples: gato por lebre, cujos temperos justificam o elogio da ementa. Batinas há muitas, seus palermas. Desde tenra idade que as confissões nos são favoráveis, promissoras de perdões, mas a culpa entranhou-se a coberto do antagonismo entre bem e mal, sem que se nos exija a clarividência de notar que o mal, por vezes, usa e abusa da artimanha de vestir a indumentária do bem. Entregues com os nossos pecados ao julgamento dos poderes, abdicamos de nos conhecermos na singula-ridade da nossa natureza, mas ávidos de podermos deter uma porção desse poder, imaculados e irrepreensíveis na nossa imagem.

… FORA DO PENICO é fazer asneira da grossa. A mi-nha bacia não era muito larga, apesar de fazer pouco de cada vez. Vamos tratando a uretra e usando um pouco a inteligência e a personalidade, como fontes de bom viver entre os outros, com os outros e para os outros.As prestações a gente pobre dão um minuto de pão e dois copos de alegria a muitas casas. Quando tiramos um naco de pão e bebemos um copo, apenas no nosso interesse, sem sermos convidados, fica um travo de amargura em cima da mesa.

Luís Vendeirinho

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87CPara o Orlando, parceiro de muitas aventuras no cinema

Com este título, que o Adriano adorou, escrevi na PÁGINA nº 83, de Se-tembro de 1999, um artigo sobre o livro. Desta vez escrevo sobre o filme.Este documentário, Hitchcock/Truffaut, como o livro – um “humilde li-vro” – conseguiu mudar o cinema para sempre. Em 1962, o então quase estreante jovem realizador francês François Truffaut, brilhando de confiança depois de ter realizado Les 400 Coups e Tirez Sur le Pianiste, escreveu a Hitchcock – ele num pico da sua carreira após Psycho – perguntando se o “Mestre” não se importava de se “submeter a uma série de entrevistas sobre a sua carreira”.As intenções de Truffaut eram claras: desenhar a experiência de indústria, juntando a prática de um crítico e realizador neófito à de um realizador experimentado, para provar a sua, e dos jovens turcos dos Cahiers du Ci-néma, teoria da “politique des auteurs”.Nós, hoje, temos o privilégio de viver numa época em que a Internet está inundada de cineastas que se debruçam sobre as sequências principais.

CHOQUE CULTURAL. O documentário de Kent Jones, co-escrito com o crítico e ex-director dos Cahiers, Serge Toubiana, sugere exactamente aquilo que a revelação do livro terá sido para sucessivas gerações de ciné-filos e candidatos a realizadores. Vários exemplos aparecem, desde Martin Scorcese a Kyoshi Kurosawa, Olivier Assayas, Richard Linklater... O seu testemunho sugere que nos encontramos perante um choque cultural – é o momento em que os filmes ditos comerciais estão a ser levados pela primeira vez a sério. As entrevistas de Truffaut aventuram-se para além do técnico-biográfico. Uma espécie de encontro com o pai idolatrado, que dis-seca a sua própria obra e ao mesmo tempo expõe os seus pecadilhos. Dois homens de tendências diferentes – o humanista francês e o showman sem vergonha – que se encontram algures no meio, definindo assim a agenda para os moviebrats americanos posteriores, assim como o programa de es-tudos de cinema para o século XXI. Este filme poderia ter ficado a um nível estritamente académico, convidando apenas realizadores para falar de um realizador que fala com um grande realizador. No entanto, Jones reconhece que este projecto nunca teria ido tão longe sem a presença de Helen Scott,

a intérprete, que fez a ponte entre as duas personagens, que sem ela não teriam a mínima hipótese de comunicar.

O MELHOR DE DOIS MUNDOS. Onde Truffaut nos fez “ver” cenas cuidadosamente seleccionadas, Kent Jones pode mostrar-nos a cena do milheiral, de North by Northwest, para ilustrar os comentários feitos por Hitchcock, e o ataque da lareira de The Birds para mostrar o preenchimento do espaço do écrã, sublinhando o design de precisão de cada movimento da câmera. As gravações audio originais são uma autêntica benção: há algo extraordinário ao ouvir a lascívia na voz de Hitchcock quando descreve o que Kim Novak estava a fazer no quarto de banho em Vertigo, re-velando mais sobre a personalidade dele do que qualquer número de palavras impressas.O resultado é o melhor de dois mundos, uma ‘adapta-ção’ do tipo que nos leva de volta ao livro e aos filmes analisados. E se Vertigo e Psycho dominam a discussão, Jones e Toubiana garantem alguns filmes de segunda linha, por exemplo I Confess e The Wrong Man, que também recebem a sua análise. Ninguém tenta substituir a leitura de Truffaut, que perdura na crítica de cinema rigorosa, mas o filme de Jones é pelo menos tão importante na compreensão, na finalidade e no impacto do livro, tal como este foi na nossa compreensão dos filmes.

Paulo Teixeira de Sousa

HitchBook ou Tru(e)HitchNinguém tenta substituir a leitura de Truffaut, mas o filme de Jones é pelo menos tão importante na compreensão, na finalidade e no impacto do livro, tal como este foi na nossa compreensão dos filmes.

O autor do texto não escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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MMiguel Real, filósofo e escritor, admirável e com a for-ça dos homens que se não dobram, escreveu um livro («Portugal, um país parado no meio do caminho: 2000-2015», Antígona, 2015) que continua e desenvolve o espírito que percorre o “pequeno volume” de Manuel Antunes, editado pela Multinova em 1979, «Repensar Portugal». Miguel Real e Manuel Antunes são dois auto-res que não dispenso, no meu dia a dia de modestíssimo “amante da sabedoria”. Manuel Antunes pergunta: “Que espécie de sociedade desejamos? Que espécie de sociedade deseja o povo português? Ouso interpretar. De resto é essa uma das funções, se não a principal função do intelectual na ci-dade. Além, claro, da missão de defender o seu próprio ideal e as suas próprias opiniões, mesmo quando esse ideal e essas opiniões não vão ao sabor dos senhores da hora. O intelectual não deve ter medo de ser ou de parecer diferente dos outros, de querer escapar ao nivelamento universal em que, por via de regra, esses mesmos senhores pretendem razoirar os que, de certa forma, lhes estão sujeitos.”Por sua vez, Miguel Real, depois de salientar as “duas profundíssimas revoluções mentais e culturais que os portugueses sofreram”, ou seja, a perda do Império, em 1975, e a assunção do destino europeu de Portugal, não esconde que o nosso país, “do ponto de vista ético, se transformou num país existencialmente desorientado, historicamente bloqueado nas suas legítimas ambições europeias, descendo, na escala dos valores, a um nível de rebaixamento e humilhação ímpares, trocando dig-nidade e consciência histórica por dinheiro (…). Por motivos semelhantes, a população saiu à rua em 1890, aquando do Ultimatum inglês. Hoje, recolhe-se a casa, vendo telenovelas e relatos de futebol”. De facto, vivemos num mundo onde se sacraliza o lucro e se cantam loas ao neoliberalismo atomista e excluden-

te, onde grande parte dos próprios políticos parecem pessoas de duvidosa proveniência e onde o poder se exerce mais contra o povo do que em seu favor e proveito.

DESPORTO NÃO É NEUTRO. Nesta sociedade, onde o poder é reconhe-cido como qualidade primeira do Estado, mas em que, demasiadas vezes, o Estado se encontra nas mãos de pessoas impreparadas para uma verdadeira democracia; onde alguma Comunicação Social parece “mais tendente ao supérfluo do que ao acolhimento dos grandes valores nacionais” (Baptista--Bastos, «Tempo de Combate», Parsifal, 2013); onde os escândalos financeiros se repetem, perante o sonambulismo inalterável do povo – nesta sociedade, o desporto mais aplaudido não é neutro politicamente, como não é neutra qualquer infraestrutura e superestrutura social. O desporto, quase sempre na sua forma de espetáculo, é uma instituição que pode servir (e serve, frequentemente) à criação de hábitos de subser-viência à competição, ao rendimento, à medida, típicos da ‘sociedade de mercado’ que nos governa. O habitual espectador de futebol, se acéfalo e acrítico, aceita, com naturalidade, a competição económica e social da sociedade capitalista. E aceita, com a mesma naturalidade, os mitos e os semideuses, que por aí proliferam, pois que o seu papel na sociedade é este mesmo: aplaudir, embevecido, os muitos mitos e semideuses do desporto, da economia, da política. Como já o tenho dito, sou um amante do futebol, e no futebol encontrei amigos que não esqueço. Mas assim como o capitalismo é um sistema, com as suas categorias específicas, a alta competição desportiva, designadamente o futebol-espetáculo, reflete (e leva à interiorização) as mesmas medidas que servem ao progresso e desenvolvimento da sociedade de mercado. Como já o tenho referido inúmeras vezes, eu não sou contra uma sociedade com mercado, como na social-democracia; sou contra, de facto, uma ‘sociedade de mercado’, como no sistema neoliberal, onde a hostilidade à presença do Estado, na regulação social, visa a sua substituição por mecanismos não estatais, nomeadamente o mercado.

TUDO É SISTEMA! O Messi que, pela quinta vez, mereceu o galardão de Bota de Ouro 2015, ou seja, foi justamente reconhecido como o melhor futebolista do mundo em 2015, o Cristiano Ronaldo, com a força ilumi-

Messi, Ronaldo, Neymar, são artistas fora do comum e, como tal, deverão admirar- se,

estudar-se e aplaudir-se. Mas que neles se descortine também uma compreensão da

sociedade de que são produto, que deles desponte ‘uma pedagogia da pergunta’

inarredável: por que há tanto dinheiro para nós e tão pouco para a Educação, para a

Saúde, para a Segurança Social?

A des-moralizaçãodo futebol

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nante, empolgante do seu futebol e o Neymar que se apresta para ser, também, dentro em breve, o melhor futebolista do mundo (e mais nomes poderia citar) têm lugar, e com destaque, na minha Utopia; quero eu dizer, no meu sonho de um mundo mais justo e mais fraterno. Para mim, são artistas fora do comum e, como tal, deverão admirar-se, estudar-se e aplaudir-se. Mas que neles se descortine também uma compreensão da sociedade de que são produto, que deles desponte ‘uma pedagogia da pergunta’ inarredável: por que há tanto dinheiro para nós e tão pouco para a Educação, para a Saúde, para a Segurança Social, etc.? Eles, porque os seus feitos chegam ao mundo todo, são um fator de massificação. Mas só de jogadas e golos magistrais? Se assim é, o seu valor resume-se a transitórios êxitos, não passam de máquinas de mais ou menos espantosas performances. Não, não se lhes pede uma variada erudição. “Um jornalista fran-cês que recentemente redigiu um espesso volume, anunciado para renovar todo o debate de ideias, alguns meses depois explicava o seu falhanço pelo facto de que lhe teriam faltado leitores, mais que faltado ideias. Declarava portanto que estamos numa sociedade onde não se lê e que, se Marx publicasse hoje «O Capital», iria uma noite explicar as suas intenções numa emissão literária da televisão e, no dia seguinte, já se não falava disso” (Guy Debord, «Comentários Sobre a Sociedade do Espetáculo», 1995). Mas, se não se lhes pede erudição extensa e variada, que brilhasse em tudo o que dizem a ‘coisa mesma’ que, em termos hegelianos, significa não só o conteúdo do discurso, como as múltiplas rela-ções que o sustentam. Porque, afinal, no meu modesto entender, em tudo há circunstância. Em poucas palavras: tudo é sistema! E assim que, ao falarem do futebol, de que são grandes e singu-laríssimos intérpretes, não esquecessem as relações que existem entre o ‘desporto-rei’ e o “espírito do tempo”. Porque, sem este, aquele não se compreende.Começa, também aqui, a des-moralização do futebol em especial e do desporto em geral.

NECESSÁRIA UMA METAMORAL. “Também, aqui?” per-guntar-me-ão, surpresos, alguns leitores. Sim, na falta de ética! E vou distinguir já a ética da moral. A ética, no meu pensar, é uma reflexão sobre os fundamentos da moral. O que a ética designa? Não um conjunto de regras próprias de uma cultura, como a moral, mas uma metamoral, desconstrutora, fundadora, enunciadora dos princípios ou fundamentos últimos da moral. Só que, com a ‘morte de Deus’ e a ‘morte das ideologias’, e ainda a ‘morte das grandes narrativas’, descambou-se num niilismo tal que é um deserto axiológico o que se estende à nossa frente… e a perder de vista! E assim nasceu o individualismo! Como uma clausura irremediá-vel. Surge, então, o indivíduo doentiamente narcísico, que olha em seu redor e descobre uma sociedade atomizada numa poeira infinita de coisas sem valor. Por isso, Apel e Habermas apontam a necessidade de uma macroética e Hans Jonas de uma ética da responsabilidade. O vazio ético assusta, de facto, deixando inoperantes as morais tradicionais. Sem referências éticas, a des-moralização torna-se inevitável. Há, portanto, necessidade de uma metamoral, de uma teoria fundadora, para além dos enunciados morais particulares. Poderia folhear Spinoza, Kant, Nietzsche, Wittgenstein e Heidegger, mas quedo-me pelas minhas pobres ideias, vinculando-me a uma nova razão prática, assente num consenso universal (Habermas, Rawls). Há, em Portugal, um Código de Ética Desportiva, elaborado pelo Instituto Português do Desporto e Juventude. Mas quem o lê e o vive?... Não são, decerto, aqueles dirigentes que dis-cursam, diariamente, verdadeiros monumentos de hipocrisia. A impreparação, o arrivismo, o mórbido clubismo desta gente são o principal obstáculo ao progresso do nosso desporto. Só que eles são incapazes de uma autocrítica, e os que os aplaudem, pacoviamente, também. Termino com um abraço ao Miguel Real. Além de um ser huma-no excecional, um intelectual (com todas as letras!), este artigo nasceu da leitura de um livro da sua autoria.

Manuel Sérgio

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TTambém no domínio da Educação e da Cultura, quem pensar que só há uma espécie de homens que fazem falta (os que acrescentam algo de novo ao que já temos ou sabemos), ao ser confrontado com o currículo do ministro da Cultura, Luís Filipe Castro Mendes, há de esperar que com a sua ação, ainda que em área limitada, se altere, finalmente, o velho e costumeiro jogo do rapa na política partidária, em que o piorro governa segundo a prática do rapa-tira-deixa-põe.Para já, ao que parece, não está prisioneiro de “arcas encouradas” guardando feridas que não cicatrizam, como o seu antecessor, antes predisposto para “fin-gir que não nos damos conta/ do desprezo daninho a crescer à nossa volta”, já que “a conclusão final/ é que todos somos inteiramente dispensáveis”, como assevera num verso de um seu livro publicado recentemente. Na verdade, repita-se, há só uma espécie de homens que fazem falta: os que acrescentam algo de novo ao que já temos ou sabemos.O atual ministro é apresentado como tendo sido formado em Direito pela Universidade Nova de Lisboa, em 1954, ingressando, no ano seguinte, na carreira diplomática, que o levou a Luanda, Madrid, Paris, Rio de Janeiro, Budapeste e Nova Deli. Em 2010, ocupou a vaga de Manuel Maria Carrilho em Paris, como embaixador da UNESCO, e ultimamente representava Portugal no Conselho da Europa.A par de uma considerável obra literária em prosa e poesia, iniciada em 1983, é de crer que até agora não incorreu no ‘pecado’ de concluir, como Flaubert, que “o único meio de suportar a existência é o de aturdir-se na literatura como numa orgia perpétua” – ‘pecado’ que acomete muitos notáveis escritores a quem a literatura modificou a relação do homem consigo mesmo, parafra-seando Eduardo Lourenço num artigo publicado num semanário português, “criando-lhes uma imagem sem a qual se pode dizer que não tinham imagem”.Calcorreador de uma considerável parte do mundo – incluindo aquela em que se fala a língua portuguesa, onde o mais importante acontece (para o bem e para o mal) –, não lhe foi preciso ir a Roma para ouvir o Papa Francisco dizer que “a sociedade está embriagada com o consumismo, a aparência e a extravagância”. Ele já tinha dito o mesmo, por outras palavras, num poema inédito, citado pelo Jornal de Letras: “O dinheiro nunca teve cor, mas agora não tem mundo nem maneiras.”

INSTRUIR E EDUCAR. Com tal background (passe o anglicismo), o embaixador-poeta está apetrechado para responder às exigências da defesa e propagação da Cultura portuguesa em Portugal (em conexão com o ensino) e no mundo, onde o turismo a confina com o interesse dos estrangeiros pela amenidade do clima, o calor das praias, o gosto da culinária, o bucolismo da paisagem e a hospitalidade dos indígenas. Um geógrafo--etnólogo diria que também isto são traves e alicerces da Cultura, como sendo tudo o que o homem junta à natureza, em atos e pensamentos. Mas um sociólogo acrescentaria que a Educação é o meio de alcançar a essência, servindo-se das práticas e das artes criativas. Ora, um organismo ministerial cuidará de promover e patrocinar tudo quanto leva à manifestação da identi-dade de um país, representada por uma história, uma

Um organismo ministerial cuidará

de promover e patrocinar tudo

quanto leva à manifestação

da identidade de um país,

representada por uma história,

uma filosofia, uma tradição e um

desígnio. Tarefa difícil, porque

se confronta com o imperialismo

dos negócios e do poder e com a

pusilanimidade das massas, mas

também porque “educar a mente

sem educar o coração, não é

Educação”

filosofia, uma tradição e um desígnio. Diga-se que, neste aspeto, terá a contribuição do Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, a confiar no seu pendor para transpor fronteiras e, como um griot em África, na sua aptidão para arauto dos verdadeiros ativos nacionais, que não incluirão a gloríola de fazer passar gatos por lebres. Tarefa difícil a de ambos os governantes, porque se confronta com o imperialismo dos negócios e do poder e com a pusilanimidade das massas, mas também porque, como já prelecionava Aristóteles, “educar a mente sem educar o coração, não é Educação”.Não pensando, certamente, em dicotomias existenciais, o grande filósofo do saber e do sentir só poderia querer dizer que também a sensibilidade modela a razão, pelo que – dizemos nós agora, contrariando alguns professores de ocasião – a uma Escola democrática tanto compete instruir como educar, não confinando na família o ex-clusivo de “educar o coração”. E por simples razões: a família é pobre, iletrada e socialmente desclassificada, e não tem meios nem recursos para livrar os filhos da obscuridade; ou é rica, instruída e socialmente classifica-da, e tem todas as possibilidades de dar aos filhos uma vida luminosa, igual ou melhor do que a dela própria. Só uma coisa é comum aos dois: a natureza do coração, feita do que se vê e sente, suscetível de levar o mais pe-queno dos mortais a reagir como o poeta: “Eu sou do tamanho do que vejo e não do tamanho da minha altura.”

Leonel Cosme

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93MMuita da ficção de Ernesto Rodrigues (ER) mais pró-xima de nós ressente a infatigável predisposição do autor, também ensaísta, professor universitário, poeta e crítico literário, para vasculhar na História o pão e o chão de que necessitam as suas narrativas de modo a integrarem, com toda a justiça, a categoria de romance histórico. Assim foi com O Romance do Gramático, assim aconteceu com A Casa de Bragança, que prece-deu o livro de que agora me ocupo, Passos Perdidos, e que têm no já longínquo A Torre de Dona Chama a sua referência primordial, digamos, a sua matriz, à qual ER jurou lealdade, tendo até hoje cumprido. Todavia, em plena trajetória, um romance intruso obriga o autor a fazer agulha para diferente destino e o pro-blema dos refugiados modernos que ele veicula altera de alguma maneira uma linha de orientação, já escru-tinada, inerente à investigação contida em páginas e páginas sobre o nosso passado comum. Deixarei este surpreendente momento de viragem para outra ocasião, concentrando-me em Passos Perdidos (Âncora, 2014), quer por razões de espaço, quer porque ainda não li Uma Bondade Perfeita (Gradiva), acabado de chegar aos escaparates (março).Importa acentuar que a tendência de ER, ao insistir em achar conteúdo romanesco (ou de não ficção) no filão da História de Portugal, se reporta às épocas mais renhidamente polémicas em termos parlamentares e jornalísticos, de que dão impecável testemunho traba-lhos como Crónica Jornalística do século XIX, Mágico Folhetim, Cultura literária oitocentista e uma infinidade de visitas ao inesgotável ‘armazém’ camiliano, de onde brota o ‘ar do tempo’, constitui um excelente vício cuja cura não está, por enquanto, à vista. Mas não se pense que só os ‘oitocentos’ fascinam ER. A herança de Fernão de Oliveira, autor da primeira gramática portu-guesa, perseguido pela Inquisição (1532), ‘rendeu-lhe’ O Romance do Gramático, e em A Casa de Bragança surpreende Pedro e Inês no auge da sua ligação amo-rosa em confidencial teste à hospitalidade bragançana ao que parece ter os contornos de uma real escapadela. Coisas factuais, ocultas por razões de Estado ou outras

A coincidência de o apelido do anterior

primeiro-ministro acomodar conexões com

a denominação de um espaço do Parlamento

e com o título do livro é isco insinuante

q.b. para atrair curiosos, mas os amantes de

boa literatura coloquial ficarão certamente

agradados com o bónus que lhes é reservado

nos diálogos do último terço do livro.

igualmente caprichosas, mas de imperativa circunstância, são hoje um manancial de se lhe tirar o chapéu, sobretudo quando o escrúpulo da análise moderna põe à mostra os alçapões da versão oficial da memória coletiva. Como o logra ER. E o centenário da República também lhe deu pretexto para assinalar a efeméride com um precioso livro de recolha de depoimentos dos contemporâneos dos acontecimentos. A História foi, por conseguinte, a fonte de que manou a energia que percorre o grosso desta literatura, às vezes difícil de penetrar, mas tão desafiadora na demonstra-ção das suas capacidades de utilização da língua que nela o leitor mais obstinado na identificação dos nexos narrativos sempre encontra pretextos para não dar por perdidos os passos gastos nessa tarefa de paciência.

TRIBUTO A CAMILO. Este romance de ER, tal como os demais, impõe que o mesmo seja fruído enquanto encontro de linguagens cujo potencial irónico, aqui posto à prova no tratamento de uma questão de gran-de acuidade, que recai no cotejo do parlamentarismo português dos nossos dias com o parlamentarismo de há 150 anos, na tão certeira ilustração que dela faz Camilo Castelo Branco, em A Queda de um Anjo. O tributo que o romance camiliano recolhe em Passos Per-didos é-lhe prestado por um capítulo assim intitulado mais um discurso parlamentar (Um Discurso e Pêras), decalcado da chamada de atenção dirigida ao plenário pelo morgado Calisto de Barbuda. A par e passo vai ER desvendando com acerto e saboroso cinismo, de riso mal camuflado, semelhanças entre com-portamentos tão acintosamente ‘eternas’ que a estória, à medida que adensa discussão nas justas das bancadas partidárias, vai também ganhando a significação literá-ria e política que o leitor informado não pode deixar de interpretar como uma bem humorada, mas corrosiva crítica à coligação que cumpriu e até ultrapassou as ‘recomendações’ do Fundo Monetário Internacional (FMI) para reduzir a dívida soberana através do ataque à poupança e ao direito ao trabalho dos portugueses. A coincidência do apelido do então primeiro-ministro acomodar conexões com a denominação de um espaço do edifício do Parlamento e com o título do livro é já isco insinuante q.b. para atrair curiosos ao ‘recado’ ins-crito nestas páginas, mas os amantes de boa literatura coloquial ficarão certamente agradados com o bónus que lhes é reservado nos diálogos de qualidade com que o autor sonoriza o último terço de Passos Perdi-dos. Como nessa escrita derradeira é desvendada uma vibrante história de amor (olá, intertextualidade!), nada melhor do que a linguagem do desejo para remunerar quem chegou ao fim da operosa experiência de leitura que o livro exige, agasalhando sem esforço esse esforço num fino e cúmplice sorriso.

Júlio Conrado

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Proposta modesta para dissipar confusão crónica

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CComo se constata, cada número de B a G é mil vezes maior do que o anterior e o nome dos números muda de seis em seis zeros. Esta nomenclatura, a es-cala longa dos grandes números, vigora em quase todos os países da Europa continental. É simples e fácil de entender para qualquer falante português da língua portuguesa, salvo se for economista ou banqueiro. Para os eco-nomistas e banqueiros, ou para muitos deles, porque há exceções, simples e fácil é dizer um bilião relativamente a (B); um trilião relativamente a (C); um quatrilião relativamente a (D); um quintilião relativamente a (E), um sextilião relativamente a (F) um septilião relativamente a (G). Porquê? Porque a maioria dos economistas e dos banqueiros fala economês. E em economês, uma gíria ad usum delphini, o vocabulário utilizado é quase todo importado do Inglês e, havendo dúvidas, da sua variante americana, que fala mais alto do que todas as outras. Ora, nos EUA vigora a escala curta para a nomenclatura dos grandes números, em que cada número da lista é mil vezes maior do que o anterior (mais três zeros), mas muda de nome de cada vez que isso sucede. Por isso, a partir de (B), os utentes do economês começam a falar dos grandes números com palavras portugue-sas, dando-lhes porém um significado que não têm, mas que, para eles, faz todo o sentido, porque as pensam em Inglês americano. Quando dizem um bilião (1012), querem de facto dizer one billion (109) ou um bilhão, como no Brasil. Quando dizem um trilião (1018) querem de facto dizer one tri-llion (1012) ou um trilhão (como no Brasil). Quando dizem um quatrilião (1024) querem de facto dizer one quadrillion (1015) ou um quatrilhão (como no Brasil), quando dizem um quintilião (1030) querem de facto dizer one quintilion (1018) ou um quintilhão ou um quinquilhão (como no Brasil).Isto tem alguma importância?

NÚMEROS BARALHAM. Não teria se os economistas e os banqueiros se limitassem a falar o seu economês uns com os outros. Mas eles falam para o mundo inteiro, todos os dias, e a comunicação social amplifica a sua voz como se fosse a voz dos deuses do Olimpo. Deste modo, a confusão espalha-se no público que os ouve e já se infiltrou nos dicionários e pron-tuários ortográficos. Há inclusive uma gramática de referência que refere o bilião (1012) como mil milhões (109). Os próprios economistas e banqueiros confundem-se a eles próprios com o que dizem, desconhecendo onde acaba o economês e começa o português. Segundo Daniel Amaral (no Expresso), o motivo principal de confusão é o bilião. Este economista explicou que é muita a confusão no mundo finan-ceiro entre o bilião e o billion, mesmo com escalas diferentes. Segundo ele, o bilião utilizado pelos seus colegas de ofício é o “americano” (isto é, o billion = 109). João Duque, professor do Instituto Superior de Economia e Gestão, confirma e acrescenta que a confusão entre o “bilião” dos econo-mistas e o bilião do resto da população portuguesa “é um problema que se põe na informação financeira” (Expresso). A confusão é patente nesta declaração de Carlos Santos Ferreira, presiden-te do BCP-Millenium: “A exposição do BCP-Millennium à dívida grega é de 700 milhões [de euros], menos de 1 por cento dos seus ativos, que são 100 biliões. (…) Comparados com os 140 biliões de dívida grega que tem o BCE [Banco Central Europeu] e, até, os 60 biliões detidos pelos bancos alemães…» (na TVI). Como observou o jornalista José Mário Costa, “nem o banco português, este ou qualquer outro, conta com 100 biliões de euros de , nem o BCE detém 140 biliões de dívida grega, nem a dos bancos alemães é de 60 biliões. É a habitual desatenção com a diferença entre o bilião [1012]

Como se diz, em português de Portugal: (A) 1 000 000 (106)? Um milhão. (B) 1 000 000 000 (109)? Mil milhões (ou um milhar de milhões). (C) 1 000 000 000 000 (1012)? Um bilião. (D) 1 000 000 000 000 000 (1015)? Mil biliões. (E) 1 000 000 000 000 000 000 (1018)? Um trilião. (F) 1 000 000 000 000 000 000 000 (1021)? Mil triliões. (G) 1 000 000 000 000 000 000 000 000 (1024)? Um quatrilião. Temos ainda o quintilião (1030), o sextilião (1036), o septilião (1042), o octilião (1048) e o nonilião (1054).

e os mil milhões [109]. Uma abissal diferença de contas em que, está visto, nem um banqueiro consegue acertar” (Ai os biliões! Ciberdúvidas da Língua Portuguesa). O economista e também banqueiro Silva Lopes, recente-mente falecido, sabia fazer a destrinça: “Na economia um bilião com 9 zeros [leia-se, o billion do Inglês americano] é um número importante, enquanto o bilião com 12 zeros [leia-se, o bilião português ou, ainda há 42 anos, o billion do Inglês britânico] é pouco utilizado”. Para este banqueiro, “as confusões entre o bilião ‘europeu’ e o bilião ‘americano’ terminariam com a uniformização da linguagem. Nem que se tivesse de inventar outra palavra” (Expresso).

O MILHARDÃO. Sabemos o que uniformização da linguagem quer dizer, neste caso como em todos os ou-tros: aceitar a lei do mais forte ou a do mais endinhei-rado, frequentemente encarnadas na mesma entidade. Significaria mudar da escala longa para a escala curta e alinhar o significado de todos os nomes portugueses dos grandes números pelos dos nomes americanos, como fez o Brasil há mais de 60 anos e o Reino Unido a partir de 1974. Mas inventar uma nova palavra (e uma só) parece-me ser uma boa ideia, mais do que não seja para não ficarmos à mercê do economês neste particular. Proponho, pois, um novo nome a incluir na nomen-clatura portuguesa dos grandes números: o milhardão (= 109 = mil milhões). Não se destina a substituir nenhum dos nomes existentes, mas tão-só a permitir aos econo-mistas e banqueiros não fazerem figuras tristes quando confundem bilião com billion. Não lhes cobraremos nada se o utilizarem quando falam connosco. É absolutamente grátis, mesmo para aqueles que ensinam que nada é grátis.Além disso, cumpre todos os requisitos necessários para o fim em vista: está impecavelmente construído de acordo com os recursos morfológicos da língua portuguesa; é uma palavra curta e fácil de pronunciar; e tem muitos primos mais velhos exatamente com o mesmo significado: o milliard francês, dinamarquês e norueguês; o miliard catalão, romeno, búlgaro, albanês e polaco; o milliárd húngaro; o miliardo italiano; o millardo castelhano; o milliarde alemão e austríaco; o miliarda checo, eslovaco e esloveno; o miljard holandês, sueco e estónio; o miljards letão; o milijarda sérvio, esloveno, croata, bósnio, mon-tenegrino e macedónio; o milijardas lituano; o miljardi finlandês e o miljarður islandês.

José Catarino Soares

O autor do texto não escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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97OO alvo é, na atualidade, além da (tele-)comunicação entre e para as pessoas, o da evolução para um ambiente – um ‘ecossistema’ – de Comunicação generalizada, também com e entre as Coisas... Uma comunicação aparelhada por aplicações (APP) dedicadas a tal fim, à comunicação num ambiente com milhares de milhões de coisas; biliões, mesmo, no longo prazo, para os mais entusiastas! Por-tanto, uma comunicação com e entre as Coisas que vão sendo fabricadas enquanto expressão das necessidades das pessoas no dia a dia, expostas independentemente das causas e de como são assumidas.Estas necessidades de atuação das Coisas são tanto as dirigidas ao ‘consumo’ – desde o comando e monoto-rização de eletrodomésticos nas residências às próteses corporais para fins de saúde, passando pelas ajudas à condução automóvel – como as dirigidas às infraestru-turas de fornecimento de energia ou água ou, nas fu-turas cidades “sustentáveis e espertas”, as que passam pela iluminação pública, pela gestão de tráfego, pela segurança, etc. E se esta última área (sustainable and smart cities) se tem constituído como uma área-chave, onde diversos setores estão a atuar lado a lado, levando a uma enor-me necessidade de interoperação dos diversos sistemas de comunicação, já se perfila também no horizonte o projeto de mutação na área da produção. Produção ulti-mamente tão esquecida, como sendo coisa velha, da era industrial, incluindo a produção na agricultura, agora que estaríamos na Sociedade dos Serviços - indústria que seria mais uma questão dura e suja de sociedades como a chinesa e outras da Ásia. Mais a mais, nas sociedades ‘desenvolvidas’ já se teria chegado ao cume, depois das três fases: mecanização, automatização e automação... Tudo cada vez mais feito por robôs, agora também na fábrica do mundo, a China e as suas subsidiárias. Robôs que fazem muitas coisas que eram feitas pelos trabalhadores…

Comunicandono mundo das Coisas

IV REVOLUÇÃO. Mas eis que, também devido a agu-lhantes necessidades de reprodução do capital, se fala já de uma smart manufacturing (manufaturação esperta) nomeando-se mesmo uma Industrie 4.0 – a designação vem da Alemanha. A Quarta Revolução Industrial como já se refere! Em curso, pois, uma reconsideração integradora das partes do conjunto dos processos de produção em tempos de complexas cadeias mundiais de fornecimentos de componentes, e partes em geral, e das suas integrações nos produtos finais. As séries temporais, a sua baixa tolerância a falhas, etc., enfim, a necessidade acrescida de tratar os críticos processos de produção maciça de bens e de serviços.Todos estes domínios de Coisas requerem uma nova prática de comunicação. Uma prática que acabe com o isolamento das coisas em ‘silos’, que permita a comuni-cação com todas elas, dos diversos fabricantes e mesmo para a totalidade dos produtos de um mesmo fabricante. Pensem só nos equipamentos das casas.A novidade, além das pessoas, são, pois, as Coisas en-quanto ‘comunicantes’. Coisas que não suportam, por exemplo, redundâncias como os falantes. E para que o possam ser em escala alargada, existe em crescendo uma disciplina de ontologias e respetivas semânticas – não apenas dos objetos em si, mas também das atuações necessárias nos momentos requeridos. E para tratar desta nova Babel, a primeira coisa a conseguir é criar ontologias de referência que intercomuniquem com as principais já existentes. Mas não só atar e pôr ao fumeiro. Pois aí se está!

Francisco Silva

A novidade, além das pessoas, são as Coisas enquanto ‘comunicantes’.

Coisas que não suportam, por exemplo, redundâncias como os falantes.

E para que o possam ser em escala alargada, existe em crescendo uma

disciplina de ontologias e respetivas semânticas.

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99AAdoro os programas de televisão sobre a vida dos animais. Vêm-me à memória as imagens de um combate entre duas focas machos que se batem por uma fêmea. Os golpes são duros, mas a voz off do apresentador tranquiliza-me. “Aqui não se mata. Desde que o sangue começa a escorrer, a luta cessa. O vencedor não atormenta o vencido que abdica da luta.” “Graças ao progresso dos conhecimentos científicos”, prossegue o comentador, “já sabemos interpretar estas lutas, aparen-temente tão cruéis. Temos de ver nelas manifestações da seleção natural, o mecanismo da evolução das espécies, desde a bactéria ao ser humano”. Ligo para outro canal e como tudo fica diferente! Emite uma retrospetiva histórica da guerra de 1914-1918. Aqui mata-se. Em longas filas, as macas são levadas até às trincheiras; o comentador fala do desespero destes homens, forçados a sair, de arma em punho, sob o fogo das metralhadoras inimigas. E o absurdo desta guerra inútil e inter-minável, que não tem mais razões para acabar do que tivera para começar. Pergunta ingénua: não serão estes belos soldados, que marcham para o açougue, o produto dos admiráveis mecanismos da seleção natural, tal como os bebés focas? (Hubert Reeves, «A Hora do Deslumbramento»).Este texto levanta uma série de questões que persistem. A seleção natural é positiva, negativa ou neutra, em termos éticos? Sabemos interpretar as lutas entre animais, mas continuamos a não interpretar cabalmente as intermináveis lutas entre humanos. Pode dizer-se que é natural. Ao es-tudar o ‘homem’, o estudioso estuda-se a si mesmo, há uma sobreposição sujeito-objeto, que não sucede nos estudos sobre a natureza em geral. Pode argumentar-se que não é o mesmo o ‘homem’ que estuda a Humanidade. Esse homem estuda outros homens. Mas seja lá o que isso for, partilha com os outros homens uma caraterística: a Humanidade. Um conjunto pode definir-se por extensão (enumerando os seus elementos) ou por compreensão, enunciando uma propriedade comum aos seus elementos. Porquê falar do desespero dos soldados, “forçados a sair, de arma em punho, sob o fogo das metralhadoras inimigas”? Se são forçados, por que não se revoltam? E as focas, são ‘forçadas’ (bem como os outros animais) a abster-se de matar dentro da sua espécie? Os humanos descobriram que o assassínio intraespecífico é seu apa-nágio. Saberão por que razão? Sempre houve guerras e violência, sempre houve desigualdades (daí a cadeia hierárquica); sempre houve “muitos com pouco e poucos com muito”. Temos hoje uma situação complexa – porque remete para indeterminações – em termos do nosso destino. Procure num motor de busca o vídeo “Universitários americanos falam sobre identidade de género” – verá estudantes da Universidade de Washington concordarem com a hipótese de um entrevistador cau-casiano de 1,79m ser uma mulher chinesa de 2m.

Carlos Mota

Focas e soldadosEste texto levanta uma série de questões que persistem.

A seleção natural é positiva, negativa ou neutra, em termos éticos?

Sabemos interpretar as lutas entre animais, mas continuamos a

não interpretar cabalmente as intermináveis lutas entre humanos.

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Pedagogia (a)crítica no Superior

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Pedagogia (a)crítica no Superior

A Queima

OO Prof. S. ficou estupefacto com o convite. Apadrinhar uma turma de finalistas?! E logo de uma escola que não a sua! Nunca pensou que tal lhe poderia acontecer. Isso só era possível porque aqueles estudantes de um curso pós-laboral desconheciam o seu histórico de recusa (ostensiva) que alardeava aqui e ali.Detestava a bênção, a queima, as “praxes estúpidas, humilhantes e de uma grosseria difícil de imaginar num canto da Europa que se julga civilizado” (Paulo Castilho, O Sonho Português, 2015). Enquanto estudante, nunca tinha passado por ritos similares. Pelo contrário, tinha-se oposto aos resquícios ba-fientos que teimavam em persistir por Coimbra. Na altura, as prioridades político-sociais do movimento associativo, em que se empenhara activamente, eram outras e bem mais sérias.Fora o Prof. S. leccionar numa escola congénere (ou concorrente?), em regime de acumulação, por duas razões: 1) sempre defendera que os professores do Superior deviam ‘rodar’ por diferentes estabelecimen-tos de ensino; conhecer outras culturas escolares era um plus na experiência docente. Infelizmente, o sistema ia do 8 (imobilismo no Superior) ao 80 (itinerância no Básico e no Secundário); 2) a filha mais nova, nesse mesmo ano, tinha entrado no Ensino Superior, numa turma pós-laboral. Ele que nunca leccionara à noite quis conhecer essa população, dita difícil, de estudantes-trabalhadores que “não têm tempo para nada, designadamente estudar”.Havia sido professor daquela turma em duas UC de opção – uma no 2º ano e outra no 3º – e, do gru-po, só três não foram seus alunos. Apesar do arranque, em Setembro, não ter sido fácil – tratava-se de uma UC nova, ‘semi-periférica’ no seu CV, e nos primeiros trabalhos de grupo emergiram as tensões no seio da turma – tudo se encarreirara com o início dos role-playing. De facto, aquele grupo veio a tornar-se único, como nunca teve outro igual. Ficou-lhe grato porque o levaram a pôr na gaveta uma série de pré-conceitos sobre o ensino nocturno, os trabalhadores-estudantes, os maiores de 23 anos,…Acabou, naturalmente, por aceitar o convite.

INTERVENÇÃO CURTA. No Dia Mundial da Criança realizou-se a Queima das Fitas. Excelente es-colha numa Escola de Formação e Educação. A bênção começou quando um jovem sacerdote, vestido (quase) ‘à civil’, a estola como único paramento, subiu ao improvisado palanque atapetado de vermelho. Munido do hissope, aspergiu de água benta as pastas pretas com as fitas multicores dos finalistas. As suas litúrgicas palavras, breves e plenas de lugares-comuns, foram os primórdios da festa-maratona.Do ‘caderno de encargos’ do padrinho constava a obrigatoriedade de proferir ‘umas palavras’ na cerimónia pública. Levou aquilo a peito. Até alinhavou um paper (escorreito), mas não se precaveu para aquele soberbo dia de sol – fez-lhe falta o panamá para amenizar a torreira. Já estava à beira de um escaldão quando foi chamado ao palco. À sua frente, uma multidão de ‘pinguins’ – assim os via, trajados de capa-e-batina – e de familiares babosos, vindos das berças suburbanas. Foi curta a sua intervenção, terminando deste jeito:“Num percurso profissional que já ultrapassa os 35 anos, confesso estar a viver um final de ano lectivo muito original! Assisti, pela primeira vez, a uma Queima das Fitas, em meados de Maio último (antes, nunca por lá andei, quer na formação universitária, quer no exercício da docência), quando a minha filha C. festejou o fim da sua licenciatura, na Escola do Estoril.Neste momento, estão vocês a vivenciar o ritual de passagem que, no passado, marcava o fim do ciclo académico e a entrada na vida laboral. Tal não é assim para um número significativo de trabalhadores--estudantes desta turma. Para os outros, o contexto actual (com a troika acabada de se instalar) parece indiciar o ‘não-emprego’. E nesse porvir, resta-lhes dar sentido ao conceito de ‘educação e formação ao longo da vida’ (a Tuna bem vos avisou, numa das canções acabada de interpretar, “esta vida é para sempre!”): prosseguirão estudos pós-graduados uns a seguir aos outros, fintando as estatísticas do desemprego. Mas como lembra a sabença popular: “Não há mal que sempre dure...” Os jovens são sinónimo de Esperança e Futuro. Apesar de pouco dados a acatarem conselhos, aqui vos deixo a eru-dição de dois escritores lusófonos, agraciados com o Prémio Camões, e que muito aprecio: Mia Couto – “não viver é o que mais cansa” (Jesusalém, 2009), e Vergílio Ferreira – “o futuro, que é uma variante modesta da eternidade” (1983), de um livro cujo título se apropria à minha despedida: Para Sempre.”

Luís Souta

Este texto está redigido segundo a ‘antiga’ e identitária ortografia

“Esta depressão que me anima” (Naifa, 2010)

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RUBRICAS NOTAS DATAS31/dez/15 31/dez/14

ACTIVOActivo não corrente Activos fixos tangíveis 5 1 609,71 € 550,75 € Propriedades de investimento Activos intangíveis 6 Investimentos financeiros Accionistas / Sócios

1 609,71 € 550,75 €Activo corrente Inventários 9 71 461,88 € 72 023,13 € Clientes 15 -305,90 € 487,72 € Adiantamento a fornecedores Estado e outros entes publicos 14 672,44 € 1 353,90 € Accionistas / Sócios Outras contas a receber 15 7 886,09 € 15 289,49 € Diferimentos 18 9 414,00 € 9 713,00 € Outros activos financeiros 15 Caixa e depósitos bancários 15 14 336,31 € 9 757,97 €

103 464,82 € 108 625,21 €105 074,53 € 109 175,96 €

Total do activo 105 074,53 € 109 175,96 €

CAPITAL PRÓPRIO E PASSIVOCapital próprio Capital realizado 5 000,00 € 5 000,00 € Acções (quotas) próprias Outros instrumentos de capital próprio Prémios de emissão Reservas legais 1 000,00 € 500,00 € Outras reservas 9 511,13 € 8 338,96 € Resultados transitados 77 862,76 € 77 862,76 € Excedentes de revalorização Outras variações no capital próprio 12

Resultado liquido do periodo 77,71 € 1 672,17 €

Total do capital próprio 93 451,60 € 93 373,89 €

PASSIVOPassivo não corrente Provisões 11 Financiamentos obtidos 15 Outras contas a pagar 15

Passivo corrente Fornecedores 15 11 167,30 € 11 251,61 € Adiantamentos de clientes Estado e outros entes publicos 14 455,63 € 750,10 € Accionistas / Sócios Financiamentos obtidos Diferimentos 18 Outras contas a pagar 15,16 3 800,36 € Outros passivos financeiros

11 622,93 € 15 802,07 €Total do passivo 11 622,93 € 15 802,07 €Total do capital próprio e do passivo 105 074,53 € 109 175,96 €

A Gerência

Carlos Alberto Marques Midões

O Técnico Oficial de Contas nº 54277

Jorge da Silva Cruz

BALANÇO EM 31 de Dezembro de 2015

ProfEdições

Balanço e demonstração de resultados

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A Gerência

Carlos Alberto Marques Midões

O Técnico Oficial de Contas nº 54277

Jorge da Silva Cruz

RENDIMENTOS E GASTOS NOTAS PERÍODOS31/dez/15 31/dez/14

Vendas e serviços prestados 10 63 256,85 € 73 144,06 € Subsidios à exploração 9 Variação nos inventários da produção Custo das mercadorias vendidas e das materias consumidas 9 -561,25 € -8 936,68 € Fornecimentos e serviços externos -45 573,86 € -44 905,14 € Gastos com o pessoal 16 -15 761,19 € -16 642,19 € Imparidade de inventários 9 Imparidade de dívidas a receber 9 Provisões 11 Outras imparidades Aumentos/reduções de justo valor 15 Outros rendimentos e ganhos 18 71,33 € 856,60 € Outros gastos e perdas -891,17 € -756,45 €

Resultado antes das depreciações 540,71 € 2 760,20 €

Gastos de depreciação e amortização 5,6 -463,00 € -599,17 €

Resultado operacional 77,71 € 2 161,03 €

Juros e rendimentos similares 0,00 € Juros e gastos similares suportados 0,00 €

Resultados antes dos impostos 77,71 € 2 161,03 €

Imposto sobre o rendimento do periodo 14 -488,86 €

Resultados liquido do periodo 77,71 € 1 672,17 €

DEMONSTRAÇÃO DOS RESULTADOS POR NATUREZAS em 31 de Dezembro de 2015

ADRIANO RANGEL

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CONTACTOS

T: (00 351) 226 002 790F: (00 351) 226 070 [email protected]

EDIÇÃO IMPRESSA BianualPREÇO 4 euros TIRAGEM 16.000IMPRESSÃO Multiponto, S.A.EMBALAGEM Notícias DirectDISTRIBUIÇÃO Logista Portugal - Distribuição de Publicações, S.A.

DEPÓSITO LEGAL nº 51.935/91REGISTO ERC nº 116.075ISSN 1647-3248

PROPRIEDADE Profedições, Lda. A PÁGINA publica textos nas variantes de Português (adota a norma do AO90,

exceto quando solicitado pelos autores), Mirandês, Galego e Castelhano. Os

textos escritos noutras línguas são traduzidos para Português.

SEDE

Rua D. Manuel II, 51/C - 2º4050-345 Porto (Portugal)

CONTRIBUINTE nº 502 675 837REGISTO NA C.C. Porto 49.561CAPITAL SOCIAL 5.000 eurosCOMPOSIÇÃO DO CAPITAL

Sindicato dos Professores do Norte (90%), Abel Macedo (5%), João Baldaia (5%)CONSELHO DE GERÊNCIA

Carlos Midões, João BaldaiaSECRETARIADO / ASSINATURAS / PUBLICIDADE

T: (00 351) 226 002 790F: (00 351) 226 070 [email protected]ÇÕES [email protected]

rubricascolaboradorespermanentes a escola que (a)prende David Rodrigues. Professor universitário. Presidente da Pró-Inclusão – Associação Nacional de Docentes de Educação Especial

afinal onde está a escola Regina Leite Garcia (c). Universidade Federal Fluminense (Brasil), Grupo de Investigação em Alfabetização das Classes Populares - GrupAlfa

cinema Paulo Teixeira de Sousa. Conservatório de Música do Porto coisas do tempo Betina Astride. Escola Básica de Ciborro, Montemor-o-Novo Joaquim Marques. Instituto das Comunidades Educativas Pascal Paulus. Escola Básica Amélia Vieira Luís, Outurela Rui Pedro Silva. Universidade do Minho, Centro de Investigação em Ciências Sociais

comunicação e escola Felisbela Lopes. Universidade do Minho, Instituto de Ciências Sociais, Departamento de Ciências da Comunicação Manuel Pinto. Universidade do Minho, Instituto de Ciências Sociais, Departamento de Ciências da Comunicação Raquel Goulart Barreto. Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Brasil)Sara Pereira. Universidade do Minho, Instituto de Estudos da Criança, Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade cultura e pedagogia Marisa Vorraber Costa (c). Universidade Federal do Rio Grande do Sul e Universidade Luterana do Brasil

da ciência e da vida Francisco Silva. Engenheiro Margarida Gama Carvalho. Universidade de Lisboa, Faculdade de Medicina, Instituto de Medicina MolecularRui Namorado Rosa. Universidade de Évora, Departamento de Física

da criança Raúl Iturra. Instituto Superior das Ciências do Trabalho e da Empresa

discurso direto Ariana Cosme. Universidade do Porto, Faculdade de Psicologia e de Ciências da EducaçãoRui Trindade. Universidade do Porto, Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação

dizeres Angelina Carvalho. Centro de Investigação e Intervenção Educativas (Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação, Universidade do Porto)

do primário José Pacheco. Escola da Ponte, Vila das Aves

do secundário Arsélio de Almeida Martins. Escola Secundária José Estêvão, Aveiro Domingos Fernandes. Universidade de Lisboa, Instituto de EducaçãoFernando Santos. Escola Secundária Filipa de Vilhena, Porto Jaime Carvalho e Silva. Universidade de Coimbra, Faculdade de Ciências

educação desportiva André Escórcio. Escola Básica/Secundária Gonçalves Zarco, Funchal Gustavo Pires. Universidade Técnica de Lisboa, Faculdade de Motricidade Humana Manuel Sérgio. Professor Jubilado (Universidade Técnica de Lisboa, Faculdade de Motricidade Humana)

educação e cidadania Américo Peres. Universidade de Trás-os--Montes e Alto Douro, Departamento de Educação e Psicologia Jurjo Torres Santomé. Universidade da Coruña (Galiza), Departamento de Pedagoxía e Didáctica Miguel Santos Guerra. Universidad de Málaga (Andaluzia), Departamento de Didática y Organización EscolarOtília Monteiro Fernandes. Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, Departamento de Educação e Psicologia

em português Leonel Cosme. Escritor e investigador entrelinhas e rabiscos José Rafael Tormenta. Escola Secundária de Oliveira do Douro, V.N.Gaia

era digital José da Silva Ribeiro (c). Universidade Aberta, Centro de Estudos das Migrações e das Relações Interculturais

fora da escola também se aprende Nilda Alves (c). Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Brasil), Laboratório Educação e Imagem

DIRETORA Isabel BaptistaDIRETORA ADJUNTA Ana Brito JorgeEDITOR António Baldaia

CONSELHO EDITORIAL

Américo Nunes Peres, Ariana Cosme, Fátima Antunes, Fernando Santos, Henrique Borges, José Rafael Tormenta, Paulo Teixeira de Sousa, Rui Trindade

REDAÇÃO Maria João Leite, Sílvia Enes (secretariado)

COLABORARAM NESTA EDIÇÃO

CAPA Adriano RangelPORTEFÓLIO Maria João Leite

DIRETOR DE ARTE Adriano RangelEDITORIA FOTOGRÁFICA Ana Alvim

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Coleção a Página DISPONÍVEL NAS LIVRARIAS E NA PROFEDIÇÕESRua D. Manuel II, 51/C - sala 25 – 4050-345 Porto

www.profedicoes.pt

formação e desempenho Carlos Cardoso. Instituto Politécnico de Lisboa, Escola Superior de Educação

formação e trabalho Manuel Matos. Universidade do Porto, Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação

impasses e desafios António Teodoro. Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias, Instituto de Ciências da Educação Gustavo Fischman. Arizona State University (EUA), Mary Lou Fulton College of Education (EUA)Henrique Vaz. Universidade do Porto, Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação

lugares da educação Almerindo Janela Afonso. Universidade do Minho, Instituto de Educação e Psicologia, Departamento Sociologia da Educação e Administração EducacionalLicínio Lima. Universidade do Minho, Instituto de Educação e Psicologia, Departamento Sociologia da Educação e Administração Educacional Manuel António Silva. Universidade do Minho, Instituto de Educação e Psicologia, Departamento Sociologia da Educação e Administração Educacional Virgínio Sá. Universidade do Minho, Instituto de Educação e Psicologia, Departamento Sociologia da Educação e Administração Educacional

observatório Isabel Menezes. Universidade do Porto, Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação João Paraskeva. University of Massachusetts, Center for Policy Analysis (EUA)João Teixeira Lopes. Universidade do Porto, Faculdade de Letras

olhares de fora Ivonaldo Leite. Universidade Federal de Pernambuco (Brasil) José Miguel Lopes. Universidade Estadual de Minas Gerais (Brasil) Maria Antónia Lopes. Universidade Eduardo Mondlane (Moçambique) Petronilha Silva. Univ. de São Carlos (Brasil)

pedagogia social Adalberto Dias de Carvalho. Universidade do Porto, Faculdade de LetrasIsabel Baptista. Universidade Católica Portuguesa, Faculdade de Educação e Psicologia José António Caride Gomez. Universidade de Santiago de Compostela (Galiza), Departamento de Teoría de la Educación, Historia de la Educación y Pedagogía SocialJosé Luís Gonçalves. Escola Superior de Educação Paula Frassinetti, PortoPablo Souto. Universidade de Santiago de Compostela (Galiza)Paulo Delgado. Instituto Politécnico do Porto, Escola Superior de EducaçãoRosanna Barros. Universidade do Algarve, Escola Superior de Educação e Comunicação.Xavier Úcar. Universitat Autònoma de Barcelona (Catalunha), Departament de Pedagogía Sistemàtica i Social

quotidianos Carlos Mota. Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, Departamento de Educação e Psicologia

reconfigurações António Magalhães (c). Universidade do Porto, Faculdade de Psicologia e de Ciências da EducaçãoFátima Antunes. Universidade do Minho, Instituto de Educação, Departamento de Ciências Sociais da EducaçãoFernanda Rodrigues. Universidade Católica Portuguesa Mario Novelli. University of Sussex (Grã-Bretanha) Roger Dale. University of Sussex (Grã-Bretanha) Susan Robertson. University of Sussex (Grã-Bretanha) Xavier Bonal. Universitat Autònoma de Barcelona (Catalunha), Department de Sociología

saúde escolar Débora Cláudio. Nutricionista, ACeS Porto OrientalNuno Pereira de Sousa. Médico de Saúde Pública Rui Tinoco (c). Psicólogo clínico. ACES Porto Ocidental

textos bissextos Ana Laura Valadares M. Araújo. António Mendes Lopes. José Catarino Soares. Instituto Politécnico de Setúbal, Escola Superior de EducaçãoJúlio Conrado. Escritor Luís Souta (c). Instituto Politécnico de Setúbal, Escola Superior de EducaçãoSalvato Teles de Menezes. Fundação D. Luís I, Cascais

[trans]formações Ricardo Vieira (c). Instituto Politécnico de Leiria, Escola Superior de EducaçãoAna Vieira (c). Instituto Politécnico de Leiria, Escola Superior de Educação

visionarium João Arezes (c). Centro de Ciência do Europarque, Departamento de Conteúdos Científicos, S.M.Feira

escritas soltas Emanuel Oliveira Medeiros. Universidade dos AçoresTiago Pires. Universidade do Porto, Faculdade de Psicologia e de Ciências da EducaçãoJacinto Rodrigues. Universidade do Porto, Faculdade de Arquitectura José Maria Hernandez Díaz. Universidade de Salamanca, Faculdade de EducaçãoLuís Vendeirinho. Escritor Teresa Medina. Universidade do Porto, Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação Agostinho Santos Silva. EngenheiroAna Benavente. Universidade de Lisboa, Inst. de Ciências Sociais António Branco. Universidade do Algarve António Brotas. Professor Jubilado (Universidade Técnica de Lisboa, Instituto Superior Técnico)Cristina Mesquita Pires. Instituto Politécnico de Bragança, Escola Superior de EducaçãoJoão Barroso. Universidade de Lisboa, Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação

José Alberto Correia. Universidade do Porto, Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação Júlio Roldão. JornalistaManuel Pereira dos Santos. Universidade Nova de Lisboa, Faculdade de Ciências e Tecnologia Manuel Sarmento. Universidade do Minho, Instituto de Estudos da CriançaMaria Gabriel Cruz. Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, Departamento de Educação e PsicologiaRoberto da Silva. Universidade de São Paulo, Faculdade de Educação (Brasil)Rui Canário. Universidade de Lisboa, Faculdade de Psicologia e de Ciências da EducaçãoTelmo Caria. Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro Victor Oliveira Jorge. Universidade do Porto, Faculdade de LetrasAdelina Silva. Universidade Aberta, Centro de Estudos das Migrações e das Relações InterculturaisAntónio Mendes Lopes. Instituto Politécnico de Setúbal, Escola Superior de EducaçãoCasimiro Pinto. Universidade Aberta, Centro de Estudos das Migrações e das Relações InterculturaisFernando Faria Paulino. Universidade Aberta, Centro de Estudos das Migrações e das Relações InterculturaisFrancisco Marrano. Universidade Aberta, Laboratório de Antropologia VisualJoão Pedro da Ponte. Universidade de Lisboa, Faculdade de CiênciasJosé Guimarães. Universidade Aberta José Maria Trindade. Instituto Politécnico de Leiria, Escola Superior de EducaçãoMaria de Fátima Nunes. Universidade Aberta, Centro de Estudos das Migrações e das Relações InterculturaisMaria de Lurdes Dionísio. Universidade do Minho, Instituto de Educação e Psicologia Maria Emília Vilarinho. Universidade do MinhoMaria João Couto. Universidade do Porto, Faculdade de LetrasMaria Paula Justiça. Universidade Aberta, Centro de Estudos das Migrações e das Relações InterculturaisPaula Cristina Pereira. Universidade do Porto, Faculdade de LetrasPaulo Sgarbi. Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Brasil) Pedro Silva. Inst. Politécnico de Leiria, Esc. Sup. de Educação Ricardo Campos. Universidade Aberta, Centro de Estudos das Migrações e das Relações InterculturaisRui Santiago - Universidade de Aveiro Rui Vieira de Castro. Universidade do Minho, Instituto de Educação e Psicologia Sérgio Bairon. Univ. Aberta, Laboratório de Antropologia VisualSofia Marques da Silva. Universidade do Porto, Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação Susana Faria. Inst. Politécnico de Leiria, Esc. Sup. de EducaçãoJoaquim Escola. Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, Escola de Ciências Humanas e SociaisJosé Carlos Marques. Instituto Politécnico de Leiria, Escola Superior de Educação e Ciências SociaisMaria Teresa Santos. Universidade de Évora, Escola de Ciências Sociais

Um livro de leitura obrigatória para todos os educadores e pro-fessores, pedagogos e investiga-dores, pais e encarregados de edu-cação, bem como para políticos e cidadãos, já que percorre vários andamentos da nossa história contemporânea, analisados por José Paulo Serralheiro, entre feve-reiro de 1992 e abril de 2002, nas páginas d’a Página da Educação.

Com um título particularmente sugestivo e interpelante, Miguel Santos Guerra recorda que não há outra forma de viver a “apai-xonante questão da cidadania”, senão através de um compromis-so quotidiano com a prática da democracia enquanto escola de liberdade – liberdade teimosa-mente perseverante na defesa da convivência solidária, da justiça e da paz social.

Além da pertinência das análises, assume aqui particular evidência a articulação eficaz entre temas de política educacional, desenvolvi-dos no âmbito da produção acadé-mica, e preocupações emergentes dos contextos de ação, dando ori-gem a um discurso lógico, ainda que marcado pelo vivido. Nesta continuidade entre investigação, docência e vida, Almerindo Jane-la Afonso oferece-nos belíssimas páginas de esperança, de respon-sabilidade e de liberdade.

Uma aguda, oportuna e desafiado-ra visão das realidades educativas pelo prisma de quem abraçou a causa da qualidade da Educação para todos há dezenas de anos. Com este livro, David Rodrigues não procura criar consensos, mas, sobretudo, suscitar debates e energias de participação num sempre necessário debate sobre a Educação.

Conjunto de textos publicados nos últimos três anos, e outros utilizados em cursos de formação, que questionam os valores mais tradicionais e conservadores da Educação e procuram pensar um sistema educativo contemporâneo, equitativo e inclusivo. O livro de David Rodrigues é candidato ao Prémio Direitos Humanos, atribuí-do pela Assembleia da República.

Síntese de 10 anos de colaborações com A Página da Educação, este livro é o resultado da integração de textos escritos entre 2006-2016, agora recontextualizados, e de textos originais, mais longos, onde Ana Maria Vieira e Ricardo Vieira cruzam resultados de pesquisa e reflexão conjunta sobre Pedagogia Social, Educação Social e Media-ção Intercultural.

NOVIDADES

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DE00252014RL/RCMN

PORTUGAL É UMA REPÚBLICA SOBERANA, BASEADA NA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E NA VONTADE POPULAR E EMPENHADA NA CONSTRUÇÃO DE UMA SOCIEDADE LIVRE, JUSTA E SOLIDÁRIA. [artigo 1º da Constituição da República Portuguesa – aprovada pela Assembleia Constituinte

em 2 de abril de 1976, entrou em vigor no dia 25 de abril de 1976, dois anos depois da

Revolução]

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