portela_v_f_agricultura familiar urbana em boa vista
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL
FACULDADE DE CINCIAS ECONMICAS
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM ECONOMIA
VALDINEI FORTUNATO PORTELA
AGRICULTURA FAMILIAR NO ESPAO URBANO DA CIDADE DE BOA VISTA -
RORAIMA
Porto Alegre
2011
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VALDINEI FORTUNATO PORTELA
AGRICULTURA FAMILIAR NO ESPAO URBANO DA CIDADE DE BOA VISTA -
RORAIMA
Dissertao submetida ao Programa de Ps-
Graduao em Economia da Faculdade de
Cincias Econmicas da UFRGS, como
quesito parcial para obteno do grau de
Mestre em Economia, modalidade
Profissional, do curso de Mestrado
Interinstitucional UFRGS/UFRR.
Orientador: Prof. Dr. Eduardo Ernesto Filippi
Porto Alegre
2011
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DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAO NA PUBLICAO (CIP)
Responsvel: Biblioteca Gldis Wiebbelling do Amaral, Faculdade de Cincias Econmicas da UFRGS
P843a Portela, Valdinei Fortunato
Agricultura familiar no espao urbano da cidade de Boa Vista -
Roraima / Valdinei Fortunato Portela. Porto Alegre, 2011. 111 f. : il.
Orientador: Eduardo Ernesto Filippi.
Dissertao (Mestrado profissional interinstitucional em Economia) Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Faculdade de Cincias
Econmicas, Programa de Ps-Graduao em Economia, Porto Alegre,
2011.
1. Agricultura familiar. 2. Espao urbano. 3. Espao rural. I. Filippi,
Eduardo Ernesto. II. Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
Faculdade de Cincias Econmicas. Programa de Ps-Graduao em
Economia. III. Ttulo.
CDU 631.115
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VALDINEI FORTUNATO PORTELA
AGRICULTURA FAMILIAR NO ESPAO URBANO DA CIDADE DE BOA VISTA -
RORAIMA
Dissertao submetida ao Programa de
Ps-Graduao em Economia da Faculdade
de Cincias Econmicas da UFRGS, como
quesito parcial para obteno do grau de
Mestre em Economia, modalidade
Profissional, do curso de Mestrado
Interinstitucional UFRGS/UFRR.
Aprovada em: Porto Alegre, 17 de janeiro de 2012.
BANCA EXAMINADORA:
_____________________________________________
Prof. Dr. Orientador: Eduardo Ernesto Filippi UFRGS
_____________________________________________
Prof. Dr. Francilene dos Santos Rodrigues UFRR
____________________________________________
Prof. Dr. Leonardo Xavier da Silva UFRGS
_____________________________________________
Prof. Dr. Ana Monteiro Costa UNIPAMPA
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Para meu filho, Filipe Cau Lima Portela
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AGRADECIMENTOS
A realizao desta dissertao, somente foi possvel com a ajuda e apoio de muitas
pessoas e instituies, e chegado o momento de agradecer publicamente a todos.
Ao Ncleo de Estudos Comparados da Amaznia e do Caribe NECAR/UFRR, que a
partir do convnio com o Programa de Ps-Graduao em Economia PPGE/UFRGS
permitiu a realizao desse Mestrado, em especial aos professores Haroldo Amoras,
coordenador do NECAR, Mauro Schmitz, Alberto Martinez, Gilberto Hissa, Ana Zuleide
Barroso, Romanul Bispo, Jaime de Agostinho, Edson Damas e a todos os servidores que
sempre estiveram presentes nessa caminhada, fazendo um link com a coordenao geral no
PPGE e tentando resolver nossos problemas.
Aos professores do Programa de Ps-Graduao em Economia - PPGE, que cruzaram
o Pas e fizeram com que tudo isso pudesse acontecer no estado mais ao Norte do Brasil, em
especial ao professor Ronald Otto, coordenador geral do Minter.
Ao meu Orientador Eduardo Filippi, pela pacincia e dedicao, pelas sugestes de
textos, enfim, por ter abraado o meu problema pesquisa. Muito obrigado.
Agradeo aos meus amigos e colegas de mestrado, especialmente ao Allex Jardim que
me doou entre outras coisas a passagem de ida e volta a Porto Alegre, ao Jos Rogrio, que
dividiu o quarto do hotel comigo e organizou uma arrecadao (vaquinha) entre os demais
mestrandos, ao Andr Paulo, Kelvim, Jarbas Ernani e Natalino que sempre me incentivaram e
custearam de certa forma, parte da minha estadia em Porto Alegre. Enfim, a todos os demais
colegas do mestrado, Alberto Jorge, Ariosmar Barbosa, Daniely de Souza, Elialdo Oliveira,
Emerson Ba, George Amaro, Herundino Ribeiro, Joo Augusto Monteiro, Joo Flix, Joo
Henrique, Jofre Luis, Jos Edival Braga, Leonardo Frota, Maria Aparecida de Oliveira
(Cidinha), Oridete Ramalho (Detinha), Osvair Mussato, Raimundo Keler, Marcos Mendona,
Cludia Regina, ngela Patrcia, Frederico Jnior e Camila de Albuquerque, pelos momentos
compartilhados, pela ajuda financeira e pessoal, pela convivncia harmoniosa e de
aprendizagem.
A professora Ana Zuleide que doou as passagens areas para que eu pudesse retornar a
Porto Alegre para cumprir a segunda e ltima fase do estgio obrigatrio.
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Aos professores do Centro de Cincias Humanas da Universidade Federal de Roraima
em especial as professoras France Rodrigues e Ana Lcia do Departamento de Cincias
Sociais, que encabearam uma arrecadao (vaquinha) entre os amigos e professores de
diversos departamentos da UFRR para que eu pudesse viajar e me manter em Porto Alegre,
por conta do estgio obrigatrio.
Da mesma forma agradeo ao Centro Acadmico de Cincias Sociais, da UFRR e a
todos os alunos do Departamento em especial a ex aluna, agora Sociloga e ex presidente do
Centro Acadmico, Mariana que foi uma das idealizadoras da referida vaquinha.
A Comunidade catlica Nossa Senhora Auxiliadora, que realizou um bingo e
arrecadou dinheiro para que eu pudesse ter condies de pagar a estadia em Porto Alegre.
A Luzileide Correia que fez o abstract da dissertao e a Wanessia Noronha que fez
correes gramaticais, ambos gratuitamente.
Agradeo igualmente aos agricultores familiares urbanos de Boa Vista que deram vida
a esse trabalho, que mais que ceder um pouco do seu tempo, expuseram e socializaram
momentos de suas vidas alm de no se negaram a responder aos meus questionamentos.
Ao Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica (IBGE/RR), na pessoa de chefe da
diviso estadual, Vicente de Paula Joaquim, ao Instituto de Terras de Roraima (ITERAIMA)
na pessoa de Jos Maria ou como conhecido, Tio Z do Departamento Fundirio, a
Secretaria Municipal de Gesto Participativa e Cidadania (SEMGEP), atravs do Programa
Braos Abertos da Prefeitura Municipal de Boa Vista, em especial aos funcionrios do
Departamento de Gesto Documental e a Superintendncia Municipal de Agricultura
Familiar, Economia e Agronegcio, que disponibilizaram sem entraves os documentos e
informaes solicitados.
Finalmente, quero agradecer a meu pai, Noel Gomes Portela, a minha me, Gilda
Fortunato Portela, a minha tia Irac Portela e meus primos e primas, irmos e irms, sobrinhos
e sobrinhas e, finalmente a minha esposa, Maria Gilmar Lima Pereira e ao meu filho, Filipe
Cau Lima Portela que souberam compreender os meus momentos de ausncia.
Muito Obrigado.
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... Eu no quero mais falar da violncia na cidade
Eu no quero nem saber qual a grande novidade
Eu no tenho pacincia para poltica e o poder
Eu no vou dizer mais nada se eu no sei o que
dizer
muita informao e pouco contedo (muita
informao)
muito grave, muito mdio, muito agudo (muito
grave)
muita pretenso e muito pouco estudo (muita
pretenso)
muita festa, muita coisa, muito tudo (muito tudo)
E eu queria mudar o mundo... O mundo pra voc!
Mas s vezes, sinto que o mundo me muda
Eu no tenho saco pra gente que s pensa em
dinheiro
Que no se d conta de que tudo isso passageiro
Essa euforia, essa angstia, esse desespero
De emergente, de pr-sal, de emprego e o sonho
brasileiro...
Paulo Ricardo, Luiz Schiavon RPM (2011).
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RESUMO
Essa dissertao trata da agricultura familiar em espao urbano, mais especificamente na
cidade de Boa Vista, capital do Estado de Roraima. A apario do Programa Nacional de
Fortalecimento da Agricultura Familiar (PRONAF) marca um momento singular na trajetria
do processo de interveno estatal na agricultura e no mundo rural do Brasil. As
transformaes na agricultura brasileira e a falta de estruturas mnimas de sobrevivncia dos
agricultores nas reas de assentamentos agrcolas na Amaznia e, em especial no Estado de
Roraima, fez com que esses trabalhadores buscassem alternativas, principalmente a migrao
para as reas urbanas. As discusses sobre as transformaes no espao rural e a agricultura
no espao urbano longe de mostrarem-se consensuais encontram-se em fase de acirrado
debate. Desse modo, este trabalho visa contribuir para o atual debate em torno das diferentes
leituras que vem sendo efetuadas sobre a dinmica da agricultura no Brasil, dando nfase
agricultura nas reas urbanas em especial na cidade de Boa Vista, estado de Roraima.
Palavras-chave: Agricultura familiar. Espao urbano. Espao Rural. Boa Vista. Roraima.
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ABSTRACT
This dissertation deals with the family farming in urban space, specifically in the city of Boa
Vista, Roraima state capital. The appearance of the National Program for Strengthening
Family Farming (PRONAF) marks a unique moment in the trajectory of the process of state
intervention in agriculture and in rural areas of Brazil. The transformations in Brazilian
agriculture structures and lack of minimum survival of farmers in the areas of agricultural
settlements in the Amazon, and in particular, the state of Roraima, meant that these workers
seek alternatives, particularly migration to urban areas. Discussions on the changes in rural
areas and agriculture in the urban space is far from consensual show are being heated debate.
Thus, this paper aims to contribute to the current debate about the different readings that have
been made about the dynamics of agriculture in Brazil, with emphasis on agriculture in urban
areas especially in the city of Boa Vista, Roraima state.
Keywords: Family farming. Urban space. Rural Areas. Boa Vista. Roraima.
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LISTA DE FIGURAS
Figura 1 - Volume das imigraes em Roraima: 1975-1980, 1986-1991 e 1995-2000............36
Figura 2: Propriedade com vrias estufas doada pela prefeitura e estufas abandonadas e/ou
sem manuteno........................................................................................................................65
Figura 3: Estufas com produo e sem manuteno.................................................................66
Figura 4: Cidade de Boa Vista..................................................................................................70
Figura 5: Localizao das hortas amostradas nos bairros de Boa Vista...................................71
Figura 6: Populao por faixa etria.........................................................................................72
Figura 7: Escolaridades das pessoas maiores de 15 anos..........................................................73
Figura 8: Escolaridade do (a) chefe de famlia.........................................................................74
Figura 9: Chefe de famlia por sexo..........................................................................................74
Figura 10: Profisso do(a) chefe de famlia..............................................................................75
Figura 11: Estado de naturalidade do (a) chefe de famlia.......................................................76
Figura 12: ltimo estado que morou antes de vir para Roraima..............................................77
Figura 13: Tempo de residncia em Roraima...........................................................................78
Figura 14: Tempo de residncia em Boa Vista.........................................................................79
Figura 15: Residiu anteriormente em rea rural?......................................................................79
Figura 16: Hortas com imagem ao fundo de residncia dos agricultores.................................80
Figura 17: Quem trabalha na propriedade?...............................................................................81
Figura 18: Processos de produo.............................................................................................82
Figura 19: Variedades de produo..........................................................................................83
Figura 20: Aspectos da comercializao...................................................................................87
Figura 21: O trabalho com a agricultura a nica fonte de renda da famlia?.........................89
Figura 22: Fontes de renda externa a propriedade....................................................................90
Figura 23: Renda bruta familiar mensal obtido com a agricultura (em R$).............................92
Figura 24: Renda familiar mensal somando todas as fontes de renda (em R$)........................93
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LISTA DE TABELAS
Tabela 1 Principais movimentos migratrios para Roraima: 1975/2000...............................39
Tabela 2- Principais fluxos migratrios internos/RR - 1975/2000...........................................40
Tabela 3 Populao Residente. Roraima - 1950/2010...........................................................43
Tabela 4 Populao residente por municpio/ Roraima.........................................................45
Tabela 5: Culturas cultivadas nas propriedades........................................................................84
Tabela 6: Razes para praticar a agricultura na rea urbana.....................................................86
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LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
CEVAE Centro de Vivncia Agroecolgica
CF Constituio Federal
COOPHORTA Cooperativa Hortifruti do Projeto Estufa de Boa Vista
CTN Cdigo Tributrio Nacional
EUA Estados Unidos da Amrica
FAO Organizao das Naes Unidas para Agricultura e Alimentao
HORTIVIDA Associao dos Hortifrutigranjeiros de Boa Vista
IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica
INCRA Instituto Nacional de Colonizao e Reforma Agrria
IPTU Imposto Predial e Territorial Urbano
ITERAIMA Instituto de Terras de Roraima
ITR Imposto sobre Propriedade Territorial Rural
MDS Ministrio do Desenvolvimento Social
PEA Populao economicamente ativa
PRONAF Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar
RR Roraima
SAN Segurana Alimentar e Nutricional
SEBRAE Servio Brasileiro de Apoio as Micros e pequenas Empresas
SEMGEP Secretaria Municipal de Gesto Participativa e Cidadania
UNESCO - Organizao das Naes Unidas para a Educao, a Cincia e a Cultura
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SUMRIO
1 INTRODUO....................................................................................................................15
CAPTULO II - TRANSFORMAES NA AGRICULTURA BRASILEIRA: UMA
REVISO................................................................................................................................19
2.1 A transformao do campons em agricultor familiar....................................................28
2.2 Fronteira agrcola amaznica..............................................................................................32
CAPTULO III OCUPAO E POVOAMENTO DE RORAIMA...............................35
3.1 Deslocamentos inter e intra-estadual..................................................................................36
3.2 Fronteira agrcola ou fronteira urbana? A transio urbana em Roraima...........................41
3.3 A rede urbana em Roraima.................................................................................................47
CAPTULO IV ESPAO AGRCOLA NA PAISAGEM URBANA.............................50
4.1 Espao urbano X espao agrcola no Brasil........................................................................53
4.2 A dificuldade de definir o espao urbano e os problemas para a anlise do fenmeno
rural...........................................................................................................................................57
4.2.1 Regra-matriz de incidncia do Imposto Predial e Territorial Urbano - IPTU .................59
4.2.2 Regra-Matriz de incidncia do Imposto sobre propriedade Territorial Rural - ITR........60
4.2.3 Conflito entre o IPTU e o ITR.........................................................................................61
CAPTULO V - ESPAOS AGRCOLAS NA CIDADE DE BOA VISTA......................63
5.1 Polticas pblicas voltadas para a agricultura urbana em Boa Vista Roraima.................64
5.2 O desafio da agricultura orgnica.......................................................................................67
5.3 A pesquisa de campo...........................................................................................................68
5.4 Resultados e Discusses......................................................................................................68
5.4.1 Os agricultores urbanos de Boa Vista..............................................................................69
5.4.2 Populao.........................................................................................................................72
5.4.3 Dinmica populacional....................................................................................................76
5.4.4 Processo de trabalho e aspectos da produo .................................................................81
5.4.5 Aspectos scio-econmicos e associativos......................................................................85
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5.5 A pluriatividade na agricultura urbana de Boa Vista..........................................................88
5.6 As narrativas dos agricultores.............................................................................................93
6 CONSIDERAES FINAIS..............................................................................................96
REFERNCIAS.....................................................................................................................99
ANEXOS................................................................................................................................103
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AGRICULTURA FAMILIAR NO ESPAO URBANO DA CIDADE DE BOA VISTA -
RORAIMA
1 INTRODUO
Este estudo resultado da inquietao a cerca da dinmica populacional no estado de
Roraima, juntamente com a transio urbana e conseqentemente, a produo agrcola na rea
urbana de Boa Vista. Em Roraima, mais especificamente na sua capital, o debate sobre esse
novo modelo de agricultura ainda est numa fase de iniciao.
O tema agricultura familiar muito difundido nos meios de comunicao, nos
programas de governos, nos meios acadmicos, no dia-dia da populao em geral. No entanto,
em Boa Vista, quando se fala em agricultura urbana, as pessoas tendem a se espantar, como se
no houvesse agricultura na rea urbana, ou como se agricultura fosse para ser praticado
somente na rea rural do Estado.
Ento procuramos nesse trabalho analisar os agricultores familiares que produzem na
rea urbana de Boa Vista. Para tanto, uma reviso da literatura sobre a agricultura familiar no
Brasil de grande importncia para que se perceba a dinmica nas nomenclaturas e polticas
pblicas na agricultura brasileira.
A discusso sobre a agricultura familiar est freqentemente presente nos discursos
dos movimentos sociais rurais, dos rgos governamentais, dos segmentos acadmicos e,
especialmente, dos estudiosos que se ocupam do tema agricultura e mundo rural. O espao
conquistado tanto social, poltico, como acadmico pelo debate sobre a agricultura familiar
evidente.
Embora tardiamente, se comparada tradio dos estudos sobre esse tema nos pases
desenvolvidos, a expresso agricultura familiar emergiu no contexto brasileiro a partir de
meados da dcada de 1990, quando o Estado criou o Programa Nacional de Fortalecimento da
Agricultura Familiar - PRONAF. A centralidade da agricultura familiar no debate da reforma
agrria responde ao impacto de dois grandes vetores: de um lado, a presso dos movimentos
sociais em favor de transformaes estruturais e da democratizao das polticas pblicas, e,
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de outro, o reconhecimento do seu status cientfico enquanto categoria analtica por parte da
intelectualidade brasileira.
As transformaes ocorridas no meio rural brasileiro em virtude do processo de
industrializao e urbanizao suscitaram inquietaes a respeito dessas mudanas e
complexidades, tendo como eixo principal a relao cidade-campo.
Nessa perspectiva, temas at ento pouco presentes nos debates acadmicos ressurgem
com novas configuraes, como o caso da agricultura familiar em espaos urbanos. O objeto
deste trabalho justamente, a agricultura familiar no espao urbano da cidade de Boa Vista.
Com o enorme crescimento da pobreza urbana, do desemprego e da insegurana
alimentar, a autoproduo de alimentos tornou-se uma das alternativas para uma populao de
excludos, desempregados e com pouco ou nenhum grau de instruo. Dessa forma,
compreender o processo de estruturao do rural no urbano torna-se fundamental, medida
que esse entendimento possibilitar a elaborao de polticas pblicas.
Ademais, o trabalho com a agricultura urbana permite uma importante abordagem dos
hbitos culturais e de alimentao, oferece nova alternativa alimentares, trabalha a questo de
mudana de hbitos, de um maior consumo de verduras, hortalias e legumes, assim como
recupera hbitos alimentares saudveis.
A hiptese que subsidiou esse trabalho que os agricultores urbanos de Boa Vista
seriam remanescentes dos assentamentos rurais, e/ou com forte tradio na agricultura que os
mesmos migraram para a cidade, por no terem as mnimas condies de sobrevivncia na
rea rural, o que foi comprovado no decorrer do trabalho de campo.
O objetivo deste estudo fazer uma anlise do perfil socioeconmico e da trajetria
migratria dos agricultores familiares que vivem em Boa Vista, buscando mostrar como a
agricultura familiar se estruturou no espao urbano da capital de Roraima, analisando o
processo de estruturao e organizao social do espao urbano, o processo de trabalho, de
produo e comercializao.
Para tanto, foi necessrio fazer uma reviso da literatura sobre a agricultura familiar no
Brasil, passando pelos conceitos de pequeno agricultor, campons, entre outros, analisando
parte da histria agrria brasileira. Mostrou-se necessrio tambm, falarmos da abertura da
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fronteira agrcola na Amaznia e a ocupao do que hoje o estado de Roraima, juntamente
com o aumento demogrfico e a transio urbana, e conseqentemente a atividade agrcola na
cidade de Boa Vista.
Para desenvolver este estudo, foi empregado a tcnica da entrevista semi-dirigida, o
que permite um mnimo de liberdade e aprofundamento. As entrevistas foram realizadas de
duas formas: uma apenas com anotaes e, outras gravadas, como forma de reter a narrativa
textual dos entrevistados. Recorri tambm aos dados estatsticos, na perspectiva de
complementaridade do entendimento sobre o fenmeno da agricultura em espao urbano.
Como tcnica de pesquisa utilizei da observao participante, como forma de entender essas
famlias em seu ambiente de trabalho e moradia. As conversas iniciais serviram como forma
de estabelecer laos e conquistar a confiana.
Foram coletados tambm, dados nos arquivos do Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatstica (IBGE/RR), Instituto de Terras de Roraima (ITERAIMA), programa Braos
Abertos da Secretaria Municipal de Gesto Participativa e Cidadania (SEMGEP) e
Superintendncia de Agricultura familiar, Economia e Agronegcio da Prefeitura Municipal
de Boa Vista.
Aps essa introduo, o captulo dois trata da reviso da literatura sobre a agricultura
familiar, mostrando as origens da agricultura familiar dando nfase s transformaes
ocorridas na agricultura brasileira e a ocupao da Amaznia, atravs da chamada fronteira
agrcola.
O captulo trs procura apresentar um apanhado histrico da formao da sociedade
roraimense a partir dos movimentos migratrios. O primeiro movimento d-se a partir da
explorao da atividade de minerao nos anos de 1930, o segundo a partir da instalao do
Territrio do Rio Branco nos anos 1940, a abertura das rodovias e implantao dos projetos
de colonizao nos anos 1970 e o terceiro com a descoberta de ouro e diamantes na poro
setentrional de Roraima, em meados dos anos 1980. Esse movimento trouxe centenas de
migrantes ao estado. Vale destacar que esse movimento migratrio, dos anos 1980, conciliou
os atrativos da fronteira agrcola com a frente garimpeira. Este captulo mostra, ainda, a
mudana na distribuio populacional cuja maior parte concentrava-se na rea rural para,
depois, tornar-se uma populao de maioria urbana, os deslocamentos inter e intra-estadual,
os principais movimentos migratrios e a formao da rede urbana de Roraima.
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O captulo quatro apresenta um pouco dessa transio urbana no Brasil e a utilizao
do espao urbano para a produo agrcola, onde o espao agrcola se confunde com o espao
urbano e vice-versa, mostrando que essa dificuldade de definio do espao urbano e do
espao rural pode trazer problemas de cunho socioeconmico, uma vez que a tributao
desses espaos passa a ser conflituosa, pois no se percebe de forma clara onde rural e onde
urbano e a incidncia de uma tributao como o Imposto Predial e Territorial Urbano -
IPTU numa propriedade agrcola pode levar esse agricultor a abandonar as prticas agrcolas.
No quinto captulo sero apresentados os resultados da pesquisa de campo, mostrando
onde esses agricultores esto localizados dentro da cidade de Boa Vista, o que produzem,
como vivem, como se estabelece o processo de trabalho, juntamente com os aspectos da
produo, os aspectos econmicos e sociais, a pluriatividade como forma de
complementaridade da renda agrcola na agricultura urbana de Boa Vista e, por ltimo, s
narrativas dos agricultores onde os mesmos falam sobre as diferenas da agricultura na rea
urbana e na rea rural, entre outras.
E por fim, apresentarei as consideraes finais, trazendo uma sntese das abordagens
desenvolvidas neste estudo.
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CAPTULO II
TRANSFORMAES NA AGRICULTURA BRASILEIRA: UMA REVISO
Evidentemente, impossvel apresentar aqui uma anlise completa da histria agrria
brasileira. Minha inteno, bem mais modesta, a de indicar elementos que a caracterizam, a
fim de situar as anlises, tendo como lcus de investigao o espao urbano da cidade de Boa
Vista, estado de Roraima.
A agricultura familiar no Brasil foi profundamente marcada pelas origens coloniais da
economia e da sociedade brasileira, caracterizada pelas grandes propriedades, pelas
monoculturas de exportao e pela escravatura. Na esteira das monoculturas, situam-se os
ciclos econmicos sucessivos que correspondem evoluo do mercado internacional. A
fragilidade e a dependncia social e poltica dos produtores do campo so reforadas, em toda
parte, por mentalidades forjadas pelas antigas relaes do tipo senhor/escravo. (LAMARCHE,
1993)
De acordo com Altafin (2010), os nossos livros de Histria pouco registram sobre o
papel dos produtores de alimentos na construo do pas, sendo o passado contado apenas sob
a perspectiva da grande agricultura escravista, monocultora e de exportao o ciclo do
acar, o ciclo da borracha e o ciclo do caf exemplificam essa tendncia. No entanto, a
recente historiografia brasileira tem buscado resgatar o papel do campons como ator social
atuante, identificando suas especificidades e diferentes configuraes.
O incio da colonizao do territrio brasileiro se fez com a doao de grandes
extenses de terra a particulares, denominadas sesmarias. Surgiram, assim, os latifndios
escravistas: a necessidade de exportar em grande escala e a escassez de mo-de-obra na
colnia uniu-se existncia de um rentvel mercado de trfico de escravos.
Segundo Graziano da Silva (1990), todas as atividades produtivas no Brasil colnia
giravam em torno da agricultura e do comrcio, praticamente no havendo indstria. A
finalidade bsica do latifndio escravista, era a produo para o mercado externo. A produo
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mudava de acordo com os interesses da metrpole, ou seja, primeiro foi o acar, e no final da
escravido, o caf.
... o latifndio escravista era o eixo de atividade econmica da colnia,
definindo as duas classes sociais bsicas: os senhores e os escravos. Mas em
torno deles, havia uma massa heterognea de brancos que no eram senhores,
de negros libertos que no eram escravos, de ndios e de mestios que
desempenhavam uma srie de atividades, entre elas a agricultura. Esses
agricultores ocupavam certos pedaos de terra, onde produziam sua
subsistncia e vendiam parte da produo nas feiras das cidades. A est a
origem da pequena produo no Brasil e sua estreita ligao com a produo
de alimentos. (GRAZIANO DA SILVA, 1990, p. 23).
Os latifndios do perodo colonial tambm produziam gneros alimentcios. Na
maioria das vezes essa produo era feita por pequenos agricultores, que pagavam uma renda
pela utilizao de suas terras, alm da obrigatoriedade de prestar diversos servios ao
proprietrio. Outras vezes, a produo de alimentos era feita pelos prprios escravos nos seus
tempos livres, como os domingos, feriados e aps a rotina de trabalho dirio.
A produo de alimentos do latifndio variava muito em funo do preo do seu
produto principal destinado exportao. Quando o preo do acar, por exemplo e, mais
tarde, do caf subia no mercado internacional, todas as terras e os escravos eram utilizados
para expandir essa produo, diminuindo assim a produo de alimentos. Nesses perodos
havia fome na colnia e as autoridades estimulavam os camponeses a expandirem sua
produo para abastecer, no s as vilas e cidades como, s vezes, o prprio latifndio.
No incio do sculo XIX, a extino do regime de sesmarias, aliada a outra legislao,
que regulava a posse das terras devolutas, provoca uma rpida expanso das pequenas
propriedades rural. Em meados desse mesmo sculo, comea a declinar o regime
escravocrata. Em 1850, o Brasil probe o trfico negreiro e, nesse mesmo ano, criada uma
nova legislao a Lei de Terras, que definia o acesso propriedade, preconizando que todas
as terras devolutas s poderiam ser apropriadas mediante a compra e venda e que o governo
destinaria os rendimentos obtidos nessas transaes para financiar a vinda de colonos da
Europa. (GRAZIANO DA SILVA, 1990, p. 25).
O perodo compreendido entre a proibio do trfico negreiro e da Lei de Terras at a
abolio, entre 1850 1888, marca a decadncia do sistema latifundirio-escravista. Aps
1888, comea a se consolidar no pas um segmento formado por pequenas indstrias de
chapus, louas, fiao e tecelagem. A pequena propriedade agrcola camponesa, alm da
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produo de alimentos, produz matrias-primas para as indstrias nascentes, como por
exemplo, o algodo e o tabaco, entre outros. No entanto, o latifndio persiste e monopoliza a
produo destinada exportao: o caf.
As alteraes de preos do caf no mercado internacional provocam crises peridicas,
desde o incio do sculo XX, atingindo o pice em 1932, como reflexos da crise de 1929 sobre
o setor cafeeiro. Entre 1931 e 1938 o governo brasileiro passou a comprar grande parte dos
estoques de caf para, imediatamente, destru-los. Alm disso, muito caf colhido foi
queimado ao longo das estradas e muitos cafezais mais velhos foram igualmente devastados.
Nesse perodo foram destrudos cerca de 70 milhes de sacas de caf. (TEIXEIRA; TOTINI,
1989, p. 171)
O perodo que se estende de 1933 a 1955, marca uma nova fase de transio da
economia brasileira. Nesse perodo, o setor industrial vai se consolidando paulatinamente e o
centro das atividades econmicas comea, vagarosamente, a se deslocar do setor cafeeiro
exportador. A indstria, gradativamente, vai assumindo o comando do processo de
acumulao de capital e o pas vai deixando de ser eminentemente agrcola.
Segundo Graziano da Silva (1990), o desenvolvimentismo, entendido como o processo
de modernizao promovido por meio de pesados investimentos no setor industrial e, que
buscou modificar a tradicional base econmica, fundamentalmente agrcola, das economias
nacionais latino-americanas, comeou nos anos de 1930 com a poltica de substituio das
importaes e atingiu seu auge entre 1955 e 1960.
O poder poltico da oligarquia latifundiria diminui gradativamente devido estratgia
governamental de transferir recursos da agricultura para o setor industrial como forma de
desenvolver o pas. Essa estratgia, por um lado acelerou a industrializao, provocou um
enfraquecimento do poder oligrquico, e por outro, fez crescer a pobreza e o xodo do meio
rural, abrindo espaos para mobilizaes e reivindicaes camponesas por terra e melhores
condies de vida.
Para viabilizar o processo de substituio das importaes,1 cujo objetivo era favorecer
a produo interna, tornava-se fundamental a implementao da indstria pesada no pas, ou
1 Um determinado produto que era comprado no exterior, passa a ter sua produo estimulada no pas atravs de
barreiras alfandegrias, que incluam desde impostos elevados at a prpria proibio da importao.
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seja, siderurgia, petroqumica, material eltrico, entre outros, concretizada no perodo de 1955
a 1961.
No incio da dcada de 1960, que corresponde ao final da fase de industrializao
pesada no Brasil, instalam-se no pas as fbricas de mquinas e insumos agrcolas e se
estabelece s indstrias de tratores e equipamentos agrcolas, fertilizantes qumico, raes,
medicamentos veterinrios, entre outros. Para garantir a ampliao desse mercado, o Estado
criou um conjunto de polticas agrcolas destinadas a incentivar aquisio, pelos produtores
rurais, de produtos desses novos ramos da indstria. (GRAZIANO DA SILVA, 1990).
No perodo da crise econmica, entre os anos de 1961 a 1967, ocorre um aumento
generalizado dos tamanhos das propriedades. A organizao dos trabalhadores rurais, atravs
das Ligas Camponesas, dos partidos polticos de esquerda e do movimento sindical, nos anos
de 1961 a 1964, passou a exercer presso social para que o governo levasse adiante a idia de
reforma agrria. Em 1964, o governo assinou um decreto que desapropriava terras s margens
das grandes rodovias. Duas semanas aps, o presidente estava deposto e o pas entrava para a
fase do regime militar (1964 1988).
Com o golpe militar de 1964 e a perseguio aos partidos de esquerda, os movimentos
organizados no campo so fortemente afetados, especialmente a partir da desarticulao das
Ligas Camponesas. Isso resulta, necessariamente, na reduo do espao social para insero
do conceito de campesinato.
Por outro lado, dentro da lgica do modelo de desenvolvimento adotado para o campo,
voltado modernizao tecnolgica em produtos agrcolas de exportao, o conjunto de
agricultores passa a ser classificado quanto ao tamanho de suas reas e de sua produo,
dividido em pequenos, mdios e grandes. Interessava assim escamotear desigualdades como o
acesso a terra, por exemplo, e estabelecer categorias operacionais, visando aplicao
diferenciada das polticas pblicas como o crdito rural, a pesquisa e a extenso rural. Os
camponeses passam ento a ser tratados como pequenos produtores. De acordo com Porto
(1997):
[...] pode-se afirmar que o conceito de pequena produo contribuiu para uma
relativa despolitizao do tema. [...] ao conceito de campesinato associava-se,
sobretudo um contedo poltico e ideolgico que se torna profundamente
nuanado no conceito de pequena produo. (PORTO, 1997, p. 29).
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A poltica dos governos militares persistia na linha do desenvolvimentismo, que
tornou ainda mais grave e dramtica a questo agrria. A concentrao da propriedade da
terra, aprofundada pela modernizao e o conseqente xodo rural ampliaram os antigos e
gerou novos conflitos no meio rural, que o governo tentou resolver por meio da criao de
uma lei agrria, da instituio da represso poltica e da criao de projetos de colonizao.
O governo militar, pressionado por interesses internacionais para eliminar os conflitos
e pela possibilidade do agravamento de tais confrontos, foi forado a encontrar formas de
controlar as agitaes que se espalhavam pelo pas. A ao do governo ocorreu em duas
direes, aparentemente contraditrias. De um lado, o Congresso foi obrigado a aprovar o
Estatuto da Terra, em 1964 e, de outro, todos os movimentos agrrios e suas lideranas
passaram a ser violentamente perseguidos e reprimidos at o fim do regime em 1988.
De acordo com Sauer (1998, p. 33), a inteno dos militares ao editar o Estatuto da
Terra no era promover a reforma agrria. O intuito do governo era, simplesmente, criar um
instrumento legal capaz de controlar as demandas camponesas. O Estatuto foi criado com a
finalidade militar estratgica de assegurar que as lutas populares no campo seriam mantidas
num mbito politicamente administrvel, ainda que os grandes latifundirios pudessem
encar-lo como uma ameaa s suas propriedades e ao seu poder poltico.
J no perodo seguinte, 1967 a 1972, que corresponde ao perodo de crescimento e
auge do que ficou conhecido como milagre brasileiro, aumentou o nmero de grandes
propriedades.
No perodo de 1972 a 1976, que coincide com uma forte expanso da fronteira
agrcola na Amaznia, h novamente uma multiplicao das pequenas propriedades, embora
haja, tambm, um crescimento ainda maior das grandes propriedades, especialmente as
ligadas as empresa multinacionais. Isso significa basicamente que a possibilidade de
multiplicao da pequena propriedade s se materializaria por ocasio da expanso da
fronteira agrcola, sendo posteriormente engolida, quando da consolidao da estrutura agrria
nessas regies em funo do movimento de ascenso cclica da economia.
Graziano da Silva (1990) v a dinmica da recriao/destruio da pequena
propriedade nas dcadas de 1960 e 1970 no Brasil da seguinte forma:
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Na fase da subida do ciclo econmico, as pequenas propriedades so
engolidas naquelas regies de maior desenvolvimento capitalista no campo e
empurradas para a fronteira, na maioria das vezes na forma de pequenos
parceiros. Na fase de descenso do ciclo, as pequenas propriedades se
expandem mesmo em certas regies de maior desenvolvimento capitalista
e/ou de estrutura agrria consolidada. (GRAZIANO DA SILVA, 1990, p. 32)
As transformaes que estavam ocorrendo na agricultura brasileira nos anos 1970 a
1980 eram analisadas como similares quelas ocorridas nos pases capitalistas avanados,
tanto em seus aspectos positivos como nos negativos. Na dcada de 1970, sustentava-se que a
chamada "questo agrcola" havia sido superada pelo processo de modernizao, baseada na
mecanizao e na utilizao de variedades selecionadas de sementes e de insumos qumicos.
Nos anos 1980, sustentava-se que este processo de modernizao aprofundara a integrao da
agricultura com os capitais industriais, comerciais e financeiros que a envolviam, formando o
que foi chamado de "complexos agroindustriais. (BUAINAIN; ROMEIRO; GUANZIROLI,
2003).
Dentro deste quadro analtico, a reforma agrria vista como anacrnica,
desnecessria e insustentvel.
Para ser competitivo e sobreviver, preciso adotar um "pacote" tecnolgico
que exige elevados investimentos, bem como possuir uma rea mnima
relativamente grande ou ocupar um nicho de mercado, sobretudo pela
integrao ao complexo agroalimentar. O movimento de concentrao da
produo agropecuria em um nmero cada vez menor de estabelecimentos
cada vez maiores era considerado parte de uma tendncia "natural" e
necessria que j ocorrera nos pases capitalistas desenvolvidos e que,
portanto, no poderia ser freada, sob pena de provocar um atraso tecnolgico
no setor agropecurio, com impactos negativos no prprio processo de
desenvolvimento econmico. (BUAINAIN; ROMEIRO; GUANZIROLI,
2003, p. 313-314).
Na dcada de 1990 a reduo relativa do crescimento do emprego rural, estritamente
agrcola em contraposio ao aumento do emprego rural no-agrcola, apresentada como
mais uma evidncia de que [...] a criao de empregos no-agrcolas nas zonas rurais ,
portanto, a nica estratgia possvel capaz de, simultaneamente, reter essa populao rural
pobre nos seus atuais locais de moradia e ao mesmo tempo, elevar o seu nvel de renda.
(GRAZIANO DA SILVA, 1999, p. 26).
Esse fenmeno interpretado como resultado de um processo histrico. Seriam
evidncias de que a estrutura produtiva do setor agrcola brasileiro se aproxima daquela dos
pases capitalistas desenvolvidos, tornando desnecessrias uma reforma agrria que no fosse
apenas de cunho social.
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Nesse sentido, tal como ocorreu nos anos de 1970 e 1980, esta viso do novo rural2,
presta-se como justificativa intelectual para polticas que, em ltima instncia, mantm o
status quo agropecurio do pas, caracterizado por forte desigualdade econmica, social e
elevados nveis de pobreza.
Com efeito, nos ltimos anos, o argumento do novo rural vem sendo utilizado para
justificar a necessidade de abandonar polticas agrrias e agrcolas voltadas para os setores
mais fragilizados da produo agrcola familiar, em benefcio de polticas de gerao de
empregos rurais no-agrcolas.
Dessa forma, limita-se o apoio s atividades propriamente agrcolas das famlias
rurais, em contraposio quelas consideradas competitivas, por ocuparem nichos de mercado
de produtos especiais de alto valor agregado, cuja produo requer o uso intensivo de mo-de-
obra.
Como no passado, essas anlises no levam em conta as especificidades que
distinguem a situao do Brasil daquela dos pases capitalistas desenvolvidos. No Brasil a
proporo da populao economicamente ativa (PEA) vive em reas rurais, ou seja, pouco
menos de um quarto do total da populao economicamente ativa similar quela observada
nos EUA e nos pases europeus, mas um abismo separa suas condies de insero no
mercado de trabalho daquelas observadas nesses pases, fruto de processos histricos distintos
de desenvolvimento rural. Para comear, cerca de 65% dessa populao trabalha em
atividades estritamente agrcolas contra, por exemplo, cerca de 10% nos EUA. (BUAINAIN;
ROMEIRO; GUAZIROLI, 2003, p. 315).
preciso considerar ainda que, nos EUA, o decrscimo da populao
ocupada na agropecuria foi fruto de um processo relativamente equilibrado
de xodo rural. Equilibrado, na medida em que impulsionado principalmente
pela expanso das oportunidades de emprego urbano-industrial. Durante um
longo perodo, uma fronteira agrcola aberta garantiu s ondas de imigrantes
que l aportavam a possibilidade de acesso a terra. O esgotamento da
fronteira agrcola, por sua vez, coincide com o arrefecimento do ritmo da
imigrao. A elevao do custo de oportunidade do trabalho, por sua vez,
constituiu-se no fator decisivo no apenas para moldar o processo de
modernizao (principalmente da mecanizao) da agricultura americana
como para elevar os salrios urbanos e toda a conformao da economia
americana. O fato que o xodo rural nos EUA se explica principalmente
pela atrao exercida pelo setor urbano-industrial e no pela repulso da falta
2 Jos Graziano da Silva coordenou um projeto cujo objetivo consistia em analisar o que denominou de "novo rural
brasileiro", em aluso emergncia expressiva das atividades rurais no-agrcolas e da pluriatividade no meio rural
brasileiro. (GRAZIANO DA SILVA, 1999).
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de alternativas de sobrevivncia minimamente condigna no campo.
(BUAINAIN; ROMEIRO; GUAZIROLI, ibidem).
Com relao evoluo do emprego rural no-agrcola nos EUA, inicialmente seu
crescimento decorreu da modernizao, associada expanso de atividades industriais e de
servios, a montante e a jusante das atividades estritamente agrcolas. Com o tempo,
indstrias de outros setores comearam, tambm, a buscar distritos rurais para expandir suas
instalaes.
Paralelamente, o emprego rural no-agrcola se expande com o aumento da afluncia
de pessoas, tendo por base um processo de redistribuio dinmica da renda como, por
exemplo, servios gerados pela expanso das residncias secundrias campestres e com a
busca de reas rurais por citadinos fugindo do stress das grandes cidades e/ou devido s novas
possibilidades de trabalho a domiclio, oferecidas pela expanso dos sistemas de comunicao
informatizados.
Como resultado desse processo, a grande massa de residentes rurais composta de
populaes de origem urbana, com nveis de escolaridade e/ou formao profissional mdio e
alta, exercendo todo tipo de atividades industriais e, principalmente, comerciais e de servios.
(SCHNEIDER, 2003).
Comparando esse quadro com o ocorrido no Brasil, a situao inversa, o acesso s
terras livres pelas massas de imigrantes e libertos foi bloqueado e, como resultado, as massas
rurais permaneceram cativas da insegurana da posse da terra, como reserva de trabalho
barato de uma classe de latifundirios, com algumas excees no Sul do pas onde, por razes
estratgicas de segurana das fronteiras criou-se uma forte base de produtores agrcolas
familiares.
A forte concentrao da renda no campo, decorrente dessas condies e o tipo de
insero do pas na diviso internacional do trabalho, limitando a expanso do setor urbano-
industrial, constitui elementos que esto na raiz dos fortes desequilbrios distributivos
observados no processo de urbanizao no Brasil. Cada vez mais, o xodo rural configurou-se
como um xodo de refugiados do campo, ao contrrio do que ocorreu nos EUA e na Europa,
onde os fatores de atrao predominaram sobre os fatores de expulso.
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Segundo Buainain, Romeiro e Guanziroli (2003, p. 317), as conseqncias
socioeconmicas desse processo so conhecidas. Os que permaneceram no campo
continuaram em situao precria, sem acesso ou com acesso limitado a terra, educao e
demais servios de infra-estrutura social e aos benefcios da poltica agrcola.
Estudos realizados (FAO/INCRA, 2000) mostram que, para a maior parte da grande
massa da PEA rural no Brasil, ou seja, cerca de 65%, que se encontra ocupada em atividades
agrcolas, expanso a partir dos anos de 1980, dos empregos rurais no-agrcolas, representa
no uma ampliao das oportunidades de trabalho para os membros da famlia, mas sim uma
chance de sobrevivncia, em geral precria, para produtores sem acesso ao progresso tcnico,
terra suficiente, ao crdito, etc.
Em outras palavras, o produtor familiar3, quando recebe apoio suficiente, capaz de
produzir uma renda total, incluindo a de autoconsumo, superior ao que ele ganharia
trabalhando como empregado. Neste sentido, no so corretas as analogias com a situao nos
pases desenvolvidos, onde as remuneraes obtidas com atividades no-agrcolas elevam a
renda mdia do setor rural. No Brasil, o potencial de gerao de renda do setor agrcola
familiar est longe de ser plenamente utilizado.
Os fatos e a histria mostram claramente que, apesar de todas as mudanas ocorridas e
das oportunidades perdidas, ainda se faz necessrio no pas, como condio para a eliminao
da pobreza e de suporte essencial a um processo de redistribuio dinmica da renda, um
projeto de desenvolvimento rural apoiado na produo familiar. Produo familiar
predominantemente descapitalizada ou pouco capitalizada, mas que nenhum bice
tecnolgico impede que inicie um processo de modernizao e se torne, progressivamente,
mdia e grande.
No entanto, h que se ter cuidado na definio dos critrios de corte do que ou no
agricultura familiar, sob pena de excluir um contingente importante de produtores, hoje
marginalizados no por uma inviabilidade estrutural, mas precisamente pela ausncia de
polticas pblica de apoio.
3 Segundo Lamarche (1993, p. 218), a identidade dos agricultores no Brasil, exprime-se em duas categorias centrais: a
de produtor rural e a de trabalhador rural. Portanto, toda vez que aparecer produtor familiar, considere como sinnimo de agricultor familiar.
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2.1 A transformao do campons em agricultor familiar4
Primeiramente vamos resgatar algumas caractersticas bsicas do conceito clssico de
campons. Cardoso (1986, apud Altafin, 2010) destaca quatro:
a) Acesso estvel a terra, seja em forma de propriedade, seja mediante algum
tipo de usufruto; b) Trabalho predominantemente familiar, o que no exclui o
uso de fora de trabalho externa, de forma adicional; c) Auto-subsistncia
combinada a uma vinculao ao mercado, eventual ou permanente; d) Certo
grau de autonomia na gesto das atividades agrcolas, ou seja, nas decises
sobre o que e quando plantar, como dispor dos excedentes, entre outros. (CARDOSO, 1987 p. 56, apud ALTAFIN, 2010 p. 2).
Portanto, produo camponesa aquela em que a famlia ao mesmo tempo detm a
posse dos meios de produo e realiza o trabalho na unidade produtiva, podendo produzir
tanto para sua subsistncia como para o mercado.
De acordo com Altafin (2010), um aspecto importante na compreenso do campons
tradicional, o seu sistema produtivo diversificado que adotado pela famlia camponesa.
Essa diversificao de culturas configura-se como parte da estratgia, que tem na combinao
com a criao de animais sua alternativa de fertilizao dos solos e melhoria na produtividade
dos cultivos. Nesse aspecto, vale ressaltar que, diferente da situao clssica,
[...] o campons no Brasil sempre ocupou espaos deixados pela grande
agricultura. Devido a esse carter marginal, encontra dificuldades para
implantar sistema produtivo do tipo policultura-pecuria. A ausncia de
criaes ou a pouca rea para as mesmas sempre afetou a possibilidade de
fertilizao natural, o que o campons compensava (e ainda compensa) com
constantes deslocamentos em busca de reas de cultivos. (ALTAFIN, 2010,
p. 3).
A mobilidade espacial sempre foi sua forma de assegurar o projeto para o futuro. O
compromisso com a reproduo da famlia se dava pela prtica de uma agricultura itinerante e
pelo sistema de posse precria da terra. De certa forma, o patrimnio transmitido era o prprio
modo de vida. (WANDERLEY, 1999, p. 38).
4 Segundo Wanderley (1999), a agricultura camponesa tradicional uma das formas sociais de agricultura
familiar, uma vez que agricultura camponesa se funda no trip propriedade, trabalho e famlia. Dessa forma, as
transformaes na agricultura brasileira so muito mais conceituais do que prticas.
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Segundo Silva (2010) a expresso agricultura familiar comea a ser utilizada, a
partir dos anos 1980 para caracterizar a produo assentada no trabalho da famlia: ao mesmo
tempo moderna e integrada aos circuitos comerciais e industriais.
A afirmao da agricultura familiar no cenrio social e poltico brasileiro esto
relacionados legitimao que o Estado lhe emprestou ao criar, em 1996, o PRONAF. Esse
programa, formulado como respostas s presses do movimento sindical rural desde o incio
dos anos de 1990, nasceu com a finalidade de prover crdito agrcola e apoio institucional a
categoria de pequenos produtores rurais que vinham sendo alijados das polticas pblicas ao
longo da dcada de 1980 e encontravam srias dificuldades em manter-se em atividade.
(SCHNEIDER, 2003).
A partir do surgimento do PRONAF, o sindicalismo rural brasileiro, sobretudo aqueles
localizados nas regies Sul e Nordeste, passaram a reforar a defesa de propostas que
vislumbrassem o compromisso cada vez mais slido do Estado com uma categoria social
considerada especfica e que necessitava de polticas pblicas diferenciadas, tais como juros
menores, apoio institucional entre outros.
Segundo Lamarche (1993), a explorao familiar5 corresponde a uma unidade de
produo agrcola em que propriedade, trabalho e famlia esto intimamente ligados. A
interdependncia desses trs fatores no funcionamento da explorao agrcola engendra,
necessariamente, noes mais abstratas e complexas, tais como a transmisso do patrimnio e
a reproduo da explorao.
O PRONAF, ao estabelecer critrios e requisitos para os produtores beneficirios do
programa, define agricultor familiar da seguinte forma:
Os beneficirios do referido programa so aqueles que exploram parcela da
terra na condio de proprietrios, assentados, posseiros, arrendatrios ou
parceiros e atendem, simultaneamente, aos seguintes quesitos: utilizam o
trabalho direto seu e de sua famlia, podendo ter, em carter complementar,
at dois empregados permanentes e contar com a ajuda de terceiros, quando a
natureza sazonal da atividade agropecuria assim o exigir; no detenham, a
qualquer ttulo, rea superior a quatro mdulos fiscais6, quantificados
segundo a legislao em vigor; tenham, no mnimo, 80% da renda familiar
5 Lamarche usa a expresso explorao familiar como equivalente agricultura familiar.
6 Mdulo fiscal uma unidade de medida expressa em hectares, fixada para cada municpio, e que estabelece a
rea mnima necessria subsistncia do produtor e sua famlia. Como um mdulo fiscal corresponde, em mdia
25ha, ser considerada agricultura familiar aquela cuja propriedade tenha no mximo 100ha.
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bruta anual originada da explorao agropecuria, pesqueira e/ou extrativa; e
residam na propriedade ou aglomerado rural urbano prximo (PRONAF).
Disponvel em: http://www.bcb.gov.br/?PRONAFFAQ Acesso em:
18/02/2011.
As diretrizes do PRONAF tm como referncia s experincias europias,
principalmente a da Frana, que elegeram a agricultura familiar como a forma de produo
sobre a qual se implementou, no ps-guerra, a modernizao da produo agrcola e da
sociedade rural.
Assim como na Europa, o padro de organizao da produo privilegiado pelo
PRONAF e a sua funo social, no desenvolvimento econmico do pas, esto sustentados,
implicitamente, nas noes de produtividade e na rentabilidade crescentes, o que resultaria,
segundo os formuladores desse programa, em uma contribuio do setor para a
competitividade da economia nacional e, em conseqncia, na melhoria da qualidade de vida
da populao rural. Na Frana, a revoluo agrcola se realizou com o esforo de vrios
setores da sociedade interessados em transformar o campesinato a base social histrica da
agricultura francesa em um setor produtivo dinmico, ao mesmo tempo produtor e
consumidor. (LAMARCHE, 1993, p. 98).
Ao contrrio do que ocorreu no Brasil, em que a modernizao da agricultura se
sustentou nas grandes empresas e no benefcio da acumulao do capital privado, na Frana a
agricultura repousa historicamente na produo familiar, seja na gerao de valores, seja em
relaes sociais de produo, o que justifica a deciso poltica de se processar a chamada
industrializao da agricultura sobre as bases de uma fora de trabalho e de um capital
essencialmente familiar e de mdio porte. (LAMARCHE, 1993, p. 99).
Para Sauer (1998), o termo agricultura familiar tem trazido dificuldades conceituais e
o seu uso, apesar de muito freqente na literatura sobre o setor agro brasileiro, est longe de
um consenso. O universo da agricultura familiar tem sido freqentemente definido a partir do
regime de trabalho e do modo de gesto da unidade produtiva. Para o autor, as caractersticas
centrais de agricultura familiar so:
A gesto da unidade produtiva e os investimentos nela realizados so feitos
por indivduos que mantm laos de consanginidade e casamento; a maior
parte do trabalho realizada pelos prprios membros da famlia; e, a
propriedade dos meios de produo (nem sempre da terra) pertence famlia.
(SAUER, 1998, p. 89).
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Cumpre destacar que as opinies se dividem em torno dos avanos obtidos pelo
PRONAF, desde sua legitimao em 1996. De um lado, h os que apostam na idia de que o
mesmo est conseguindo produzir o ambiente institucional necessrio ampliao da base
social da poltica nacional de crdito e de desenvolvimento rurais (ABRAMOVAY; VEIGA,
1999, p. 45-46), ao passo que outros, criticam-no, com base no carter contraditrio de uma
poltica que aposta no desenvolvimento local e na potencializao das atividades diversificada
via industrializao, como turismo ou lazer, mas que, paradoxalmente, insiste na nfase
profissionalizao e ao apoio ao "verdadeiro agricultor" (CARNEIRO, 2000, p. 124),
entendido como aquele produtor cujos rendimentos originam-se essencialmente da
agricultura.
Ao buscarmos na literatura as contribuies para a delimitao conceitual da
agricultura familiar, encontramos diversas vertentes, dentre as quais destacamos duas: uma
que considera que a moderna agricultura familiar uma nova categoria, gerada no bojo das
transformaes experimentadas pelas sociedades capitalistas desenvolvidas. E outra que
defende ser a agricultura familiar brasileira um conceito em evoluo, com significativas
razes histricas.
Tendo como foco o caso europeu, a primeira corrente citada considera que no h
significado em buscar as origens histricas do conceito, como, por exemplo, estabelecendo
uma relao com a agricultura camponesa. [...] uma agricultura familiar altamente integrada
ao mercado, capaz de incorporar os principais avanos tcnicos e de responder s polticas
governamentais no pode ser nem de longe caracterizada como camponesa.
(ABRAMOVAY, 1992, p. 22).
Apesar do carter familiar, esse autor considera que h uma distino conceitual, cuja
origem estaria nos diferentes ambientes sociais, econmicos e culturais que caracterizam cada
uma. A prpria racionalidade de organizao familiar no depende... da famlia em si
mesma, mas, ao contrrio, da capacidade que esta tem de se adaptar e montar um
comportamento adequado ao meio social e econmico em que se desenvolve.
(ABRAMOVAY, 1992, p. 23).
Nesse mesmo sentido, Claude Servolin considera a predominncia de agricultores
familiares modernos como um fenmeno recente, sem qualquer vnculo ou herana do
passado. O que ele denomina agricultura individual moderna considerada um novo
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personagem, diferente do campons, e gestado a partir dos interesses e das iniciativas do
Estado (SERVOLIN apud WANDERLEY, 1999, p. 34).
Para a segunda corrente de pensamento, a qual ser adotada neste trabalho, as
transformaes vividas pelo agricultor familiar moderno no representam ruptura definitiva
com formas anteriores, mas, pelo contrrio, mantm uma tradio camponesa que fortalece
sua capacidade de adaptao s novas exigncias da sociedade. Nessa linha, argumentos
reunidos por Huges Lamarche (1993) e Nazareth Wanderley (1999) explicam a agricultura
familiar como um conceito genrico, que incorpora mltiplas situaes especficas, sendo o
campesinato uma dessas formas particulares.
Para o caso brasileiro, Wanderley considera que o agricultor familiar, mesmo que
moderno inserido ao mercado, [...] guarda ainda muitos de seus traos camponeses, tanto
porque ainda tem que enfrentar os velhos problemas, nunca resolvidos, como porque,
fragilizado, nas condies da modernizao brasileira, continua a contar, na maioria dos
casos, com suas prprias foras. (WANDERLEY, 1999, p. 52).
Na seo a seguir, procuraremos dar visibilidade para a ocupao da Amaznia com a
chamada fronteira agrcola, fazendo uma aproximao com a ocupao e povoamento do
Estado de Roraima.
2.2 Fronteira agrcola amaznica
O debate sobre a fronteira se desenvolve em torno do significado da participao de
pequenos produtores e grandes empreendimentos capitalistas e das conseqncias dessa
participao. De acordo com Becker (1998, p. 9-10), a tese dos campesenistas a do
fechamento das terras da Amaznia, antes livres, paras os camponeses, devido
implantao macia dos grandes projetos, envolvendo um confronto entre duas lgicas
opostas e incompatveis de pensar e utilizar a terra: o modo campons, em que o direito de
posse gerado pelo trabalho, e o modo capitalista, baseado na propriedade da terra.
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33
Num outro ngulo, situa-se o mito da imagem oficial difundida sobre a fronteira como
espao vazio, noo que estrategicamente serve tanto como vlvula de escape para os
conflitos sociais em reas densamente povoadas como tambm como campo aberto para
investimento.
Segundo Becker (1998, p. 11-12), o povoamento da Amaznia, a partir de projetos de
ocupao e colonizao, se fez sempre em surtos devassadores vinculados expanso
capitalista mundial. O primeiro devassamento foi o da floresta tropical de vrzea, ao longo
dos rios, em busca das drogas do serto, utilizadas como condimento e na farmcia
europia.
Outro devassamento significativo foi o ciclo da borracha, demandada pela
industrializao dos EUA e da Europa. A partir do perodo compreendido entre 1920 e 1930,
tm incio as frentes pioneiras7 agropecurias e minerais espontneas oriundas do nordeste,
intensificadas nas dcadas de 1950 e 1960. As novas reas ou fronteiras agrcolas foram
criadas para receber posseiros e camponeses sem-terras, pois ao desloc-los para as novas
reas diminuam a presso social nas regies mais populosas, deixando as terras abertas para o
processo de modernizao e aumentando a concentrao da propriedade.
Para Graziano da Silva (1982, p. 118), a fronteira, no plano social, representa uma
orientao dos fluxos migratrios, especialmente das populaes rurais. Ela o lcus da
recriao da produo camponesa, expulsa das regies mais desenvolvidas. A fronteira o
destino dos pequenos produtores expropriados e dos excedentes populacionais, especialmente
do nordeste, do sul e do sudeste do Brasil.
No plano econmico, a fronteira uma espcie de armazm regulador dos preos de
gneros alimentcios de primeira necessidade consumidos pela populao urbana,
especialmente a de mais baixa renda; e, no plano poltico, tem sido a vlvula de escape das
tenses sociais no campo.
Os projetos de colonizao foram criados pelos militares, baseados em dois grandes
pressupostos ideolgicos: a existncia de terras vazias e baratas nas regies norte e centro-
oeste; e a ocupao espacial como caminho natural para resguardar as fronteiras contra
possveis invases, baseada na doutrina de segurana nacional. (SAUER, 1998, p. 38).
7 Conforme definio de Martins (1975, p.45) a frente pioneira exprime um movimento social cujo resultado imediato
a incorporao de novas regies pela economia de mercado. Ela apresenta-se como fronteira econmica.
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Por um lado, as reas de colonizao se tornaram cenrios de violncia, porque os
antigos posseiros eram expulsos e as populaes indgenas, freqentemente dizimadas. Por
outro lado, as famlias que conseguiram terra foram abandonadas no meio de um ambiente
hostil, isolado e sem infra-estrutura. Tal populao era afetada por doenas tropicais como a
malria e, aps muito trabalho para abrir a mata e preparar o solo, no tinha condies de
comercializar a produo. Muitos foram forados a abandonar suas reas, deslocando-se
novamente para as cidades ou de volta para suas regies de origem, deixando as terras prontas
para a criao extensiva de gado de corte. (SAUER, 1998, p. 40).
Esses agricultores, na maioria das vezes, destitudos de bens materiais, esquecidos
pelo poder pblico e excludos social e economicamente, contam apenas uns com os outros
para a sobrevivncia e adaptao na fronteira.
Em Roraima, o processo de ocupao da fronteira teve seu auge na dcada de 1980
com a abertura dos projetos de colonizao, principalmente na regio sul, e a descoberta de
novos garimpos, como ser observado no prximo captulo.
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CAPTULO III
OCUPAO E POVOAMENTO DE RORAIMA
Em virtude da distncia do centro do poder econmico, Roraima manteve-se
esparsamente povoada por sculos. Mesmo durante o auge da extrao da borracha (1850-
1911), a ocupao econmica e demogrfica da regio foi irrelevante, sendo que sua
populao mal chegava a 10.000 habitantes em 1900. A derrocada da economia da borracha,
fomentada pela concorrncia das plantaes do sudeste asitico, engendrou um pronunciado
refluxo populacional e muitos indivduos retornaram aos seus estados de origem. Com isso, a
populao tornou-se ainda menor, chegando a 7.424 indivduos em 1920. (SILVEIRA;
GATTI, 1988).
Com o fim do ciclo da borracha, a minerao tornou-se a principal atividade
econmica. A descoberta de minas de ouro e diamantes no norte de Roraima fomentou a
chegada de garimpeiros de toda a regio Amaznica. Ao longo da dcada de 1930, outras
minas de diamante foram encontradas, revitalizando a economia local, fazendo com que a
populao chegasse a 10.509, em 1940. (RODRIGUES, 1996).
A implementao do Territrio Federal do Rio Branco no ano de 1943, desencadeou
as primeiras tentativas em promover a ocupao mais efetiva da regio, impulsionada pelo
sentimento de segurana nacional a fim de resguardar o territrio contra possveis invasores
em especial onde o Brasil, teve no sculo XIX, problemas de fronteira (Frana/ Amap;
Inglaterra/ Rio Branco; Bolvia/ Acre e Rondnia). (FREITAS, 1997)
Os movimentos migratrios desencadeados pela atividade de minerao8 nos anos de
1930, a instalao do Territrio do Rio Branco nos anos 1940 e a abertura das rodovias e a
implantao dos projetos de colonizao nos anos 1970 no tiveram a mesma intensidade que
o movimento migratrio dos anos 1980 que conciliou os atrativos da fronteira agrcola com
a frente garimpeira.
8 Incorpora a concepo de minerao partir de Rodrigues (1996, p. 92), para quem a palavra minerao funciona
como sinnimo de garimpagem, medida que no Estado de Roraima no h atividade de minerao industrial.
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3.1 Deslocamentos inter e intra-estadual
Para melhor compreender a recente histria de Roraima, faz-se necessrio analisar os
movimentos de deslocamentos inter e intra-estaduais a partir do final das dcadas de 1970,
1980 e 1990. Para a identificao dos imigrantes inter e intra-estaduais, trabalhamos com os
dados sobre migrao disponveis nos censos de 1980, 1991 e 2000, empregando-se uma
periodizao qinqenal, nos seguintes termos: 1975-1980, 1986-1991 e 1995-2000.
Dessa forma, trabalhou-se com informaes do tipo data fixa disponveis nos censos
de 1991 e 2000. Mas, como o censo de 1980 no concede dados de migrao do tipo data-
fixa, buscou-se uma alternativa compatvel, aplicando-se um filtro no qual foram
selecionados aqueles indivduos que tinham em 1980 tempo de residncia inferior a cinco
anos nos municpios de Roraima e idade igual ou superior a cinco anos9.
Em relao aos deslocamentos inter-estadual, merece destacarmos o crescente nmero
de imigrantes que buscaram Roraima como destino ao longo das ltimas dcadas. Note-se que
no final da dcada de 1970 chegaram ao ento Territrio de Roraima 11.729 imigrantes. Esse
nmero quase triplicou ao final da dcada seguinte, chegando 33.086. Novo acrscimo deu-
se no final dos anos de 1990, quando outros 45.491 imigrantes chegaram ao estado de
Roraima. (Figura 1).
Figura 1 - Volume das imigraes em Roraima: 1975-1980, 1986-1991 e 1995-200010
.
Fonte: Diniz; Santos, 2006.
9 Para os dados de deslocamentos inter e intra-estadual, utilizei os resultados e metodologia de Diniz e Santos
(2006), com algumas adaptaes. 10
Para os dados sobre movimento migratrio em Roraima no foi possvel a aproximao com a data atual, uma
vez que as informaes do Censo 2010 esto sendo disponibilizados aos poucos.
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Segundo Rodrigues (1996), os principais motivos desse crescimento foram os
incentivos imigrao atravs dos projetos de assentamento e colonizao agrcola
implantados a partir de meados da dcada de 1970 e a descoberta de novos garimpos na
regio noroeste, principalmente a partir de 1980.
Alm do crescente nmero de imigrantes, tambm chamaram a ateno as
significativas mudanas ocorrida nas ltimas dcadas em relao aos principais estados de
procedncia desses imigrantes. Os estados do Maranho e Amazonas eram os principais
fornecedores de imigrantes no final da dcada de 1970. No entanto, ao fim da dcada de 1980
outros fluxos surgiram como fornecedores de imigrantes, como o caso dos estados do Cear
e do Par. At o final da dcada de 1990, o estado do Maranho constitua-se no principal
estado de procedncia dos imigrantes, seguido por Par e Amazonas.
No plano dos municpios de destino, Boa Vista mantm a primazia, sendo a principal
rea de atrao de imigrantes que buscam o Estado. Nas dcadas de 1980 e incio de 1990,
Boa Vista era o principal ponto de referncia aos garimpeiros que, estabeleciam residncia na
cidade e utilizavam-na como centro de apoio para a empreitada mineradora.
Como os rgos responsveis pela regularizao fundiria, como o Instituto Nacional
de Colonizao e Reforma Agrria (INCRA) e o Instituto de Terras de Roraima
(ITERAIMA), encontram-se sediadas na capital, parte dos agricultores que chegam a Roraima
em busca de terras, tambm estabelece residncia na cidade de Boa Vista.
Portanto, comum entre os imigrantes recm-chegados estabelecerem residncia em
carter temporrio na cidade at conseguirem acesso aos lotes nas reas de assentamento
agrcola do estado. Mesmo depois de assentados na zona rural de Roraima, a capital Boa Vista
continua a exercer grande atrao, isso porque a cidade constitui-se no maior mercado para
produtos agrcolas, sendo prtica comum entre os agricultores o deslocamento semanal para
vender os seus produtos. (DINIZ, 2003)
Segundo Castells (1983), o sistema produtivo se reorganiza em funo dos interesses
da sociedade dominante que, geralmente est concentrada nas capitais e nos grandes centros
urbanos.
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Para compreender o movimento populacional para o estado de Roraima deve-se
resgatar as transformaes estruturais inerentes ao processo de evoluo da fronteira agrcola,
conforme descritos por Diniz (2003), como:
... altera a realidade dos assentamentos rurais, transformando reas marcadas
por agricultura de subsistncia e ausncia de mercados de terra e de trabalho
em reas mais proximamente incorporadas economia nacional. Neste
processo, a penetrao do modo de produo capitalista termina por expulsar
os imigrantes pioneiros, que se deslocam, no mais das vezes, para as reas
urbanas do Estado, em especial para a cidade de Boa Vista. Para l acorrem
levas de re-migrantes, atrados, sobretudo, pelo setor tercirio e pela relativa
facilidade de se conseguir local para a construo de habitaes na periferia
da cidade. Do mesmo modo, muitos colonos frustrados com as precrias
condies inerentes s reas de assentamento agrcola, doenas tropicais,
falta de infra-estrutura adequada e isolamento fsico, so prevalentes, acabam
sucumbindo a atrao exercida por Boa Vista. (DINIZ, 2003, p.368).
Com a oferta de terras em novos projetos de colonizao e a criao de postos de
trabalho no mbito urbano, com a criao dos novos municpios em meados da dcada de
1990, os recm criados municpios de Rorainpolis, Iracema e Cant, aumentaram sua
populao na dcada de 2000 a uma taxa de 216,46%, 121,03% e 112,05%, respectivamente.
No final da dcada de 1970, os principais fluxos migratrios para Roraima tinham
como destinos os municpios de Boa Vista e Caracara e a procedncia desses migrantes era
preponderantemente dos estados das regies norte e nordeste, sobretudo dos estados do Cear
e Maranho. Subjacentes a esses fluxos existem importantes processos histricos,
principalmente desde o ciclo da Borracha. Essas vinculaes histricas parecem ter se
perpetuado, fato que explicaria os fluxos migratrios ligando esses estados a Roraima.
(VALE, 2006).
At a dcada de 1940, a rea hoje conhecida como Estado de Roraima pertencia ao
Estado do Amazonas, logo sob influncia direta de Manaus. Vale ressaltar as fortes
vinculaes de Roraima e sua relao de dependncia com as cidades da regio norte,
sobretudo em relao Manaus que se apresenta como a base logstica dessa regio, ou
seja, uma base ou ponto de apoio para a expanso colonizadora. (DINIZ; SANTOS, 2006).
Tais fatores histricos explicam, pelo menos parcialmente os intensos fluxos entre as cidades
da regio norte e Roraima, mas tambm so dignos de nota os fluxos oriundos de cidades do
interior do Estado do Par, como Itaituba e Santarm e do estado do Maranho, especialmente
Imperatriz, Santa Luzia, Bacabal e Santa Ins no mesmo perodo. (Tabela 1).
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Tabela 1 Principais movimentos migratrios para Roraima: 1975/2000
Procedncia 1975/1980 1986/1991 1995/2000 Total
AM Manaus 1985 2300 5170 9455
Total 1985 2300 5170 9455
PA Belm
Santarm
Itaituba
Xinguara
Rurpolis
374 712 670 1756
157 705 1691 2553
- 1564 4627 6191
- 295 - 295
- - 436 436
Total 531 3276 7424 11231
CE Fortaleza
Aracati
319 946 422 1687
114 - - 114
Total 433 946 422 1801
MA Imperatriz
Santa Luzia
So Luis
Bacabal
Santa Ins
Joo Lisboa
Vitorino Freire
Z Doca
Aailndia
564 1555 521 2640
562 - - 562
241 567 447 1255
263 498 714 1475
132 703 532 1367
120 - - 120
205 - - 205
- 785 829 1614
- 306 - 306
Total 2087 4414 3043 9544
RJ Rio de Janeiro 131 556 445 1132
Total 131 556 445 1132
AC Rio Branco 96 - - 96
Total 96 - - 96
GO Goinia - 376 - 376
Total - 376 - 376
PI Teresina - 362 - 362
Total - 362 - 362
SP So Paulo - 354 - 354
Total - 354 - 354
RO Porto Velho - - 620 620
Total - - 620 620
Total geral 5263 12584 17124 34971 Fonte: Diniz; Santos, 2006. (Com adaptaes)
A intensificao desses fluxos estaria associada entre outras coisas, ao boom do
garimpo, desencadeada pela descoberta de ouro e diamantes em sua poro setentrional, em
meados da dcada de 1980. (RODRIGUES, 1996). No bojo desse intenso movimento de
chegada de pessoas, no coincidncia a procedncia de outras reas de garimpo ativas ou
declinantes na Amaznia, como o caso de Itaituba e Santarm.
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Outra modificao que merece destaque em relao aos principais fluxos migratrios
do final dos anos 1990 o fato de que pela primeira vez os fluxos inter-municipais em
Roraima rivalizaram com os inter-estaduais. Este o caso de vrios fluxos originrios no
municpio de Boa Vista em direo aos municpios de Cant, Pacaraima, Caracara e Bonfim.
Como revelado anteriormente, esse aspecto da migrao intra-estadual, est associada
expanso da oferta de terras em novos projetos de colonizao alm dos postos de trabalho
gerados em virtude da criao dos novos municpios nos anos de 1994/1995. (Tabela 2).
Tabela 2- Principais fluxos migratrios internos/RR - 1975/2000000
Perodo Total
Procedncia Destino 1975/1980 1986/1991 1995/2000 1975/2000
Boa Vista Caracara 131 - 708 839
Boa Vista Cant - - 957 957
Boa Vista Pacaraima - - 781 781
Boa Vista Bonfim - - 681 681
So J. da Baliza Boa Vista - 443 - 443
Alto Alegre Boa Vista - 403 552 955
Mucaja Boa Vista - 288 - 288
Caracara Boa Vista - - 498 498
Total 131 1134 4177 5442 Fonte: Diniz; Santos, 2006. (Com adaptaes)
No final da dcada de 1970, o deslocamento populacional entre os dois municpios do
estado, Boa Vista e Caracara, alm de exguas, geravam baixos nmeros entre os municpios.
Na dcada de 1980, com a intensificao dos deslocamentos dentro do estado de Roraima, o
municpio de Boa Vista sobressai-se com expressivo nmero de migrantes, enquanto os
demais municpios do estado contabilizaram perdas migratrias.
No incio da dcada de 1990 a atividade de garimpagem proibida pelo governo
federal. Milhares de garimpeiros so obrigados pela Polcia Federal e Exercito brasileiro a
deixar as reas de garimpo que se encontravam na sua grande maioria na rea indgena
Yanomami. Muitos garimpeiros voltaram para seus Estados de origem, enquanto outros
continuaram em Roraima e, de diversas formas, passaram a tirar seu sustento e da sua famlia.
At meados da dcada de 1990, a facilidade de se conseguir lotes urbanos em Roraima
fez com que as famlias dos agricultores se dividissem, ficando os homens e os filhos mais
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velhos na rea rural, enquanto as mulheres e os filhos em idade escolar estabelecem residncia
no mbito urbano.
Desta forma, os migrantes usufruam as oportunidades econmicas tanto do mundo
rural, quanto urbano. Durante as fases que demandam trabalho intensivo na agricultura, como
a colheita, por exemplo, os membros urbanos da famlia passam temporadas nos lotes rurais.
Por outro lado, os membros rurais da famlia visitam regularmente a cidade, para rever os
familiares, comprar e vender vveres e fazer uso dos servios urbanos como, clnicas, igrejas,
atividades de lazer, entre outros.
Em processo descrito por Diniz (2003), a ocupao demogrfica de reas inabitadas
ou pouco habitadas se d em etapas, sendo forjada pela chegada de ondas distintas de
imigrantes. Essa tambm uma caracterstica da fronteira agrcola.
A mobilidade na fronteira fortemente baseada em canais informais de informao e
migraes por corrente. Neste processo, um determinado agricultor (inovador) chega
fronteira em busca de terra. Durante toda a sua estadia, este ator mantm contato direto com o
local de origem e, to logo obtenha acesso a um pedao de terra e alguma estabilidade,
deflagra-se a segunda onda de migrantes (seguidores), que chegam fronteira, inspirados pelo
sucesso e pelo apoio do inovador.
Esta invaso de reas de assentamento por indivduos de mesma origem geogrfica se
intensifica, uma vez que to logo a primeira onda de seguidores ganha acesso a terra,
sucessivas ondas de migrantes seguidores, com algum grau de relao, chegam ao destino.
Situaes nas quais os migrantes mantm contato direto com os locais de origem, seja atravs
de cartas, telefonemas e visitas regulares, fazem com que a migrao acabe representando e
promovendo no destino a expanso da comunidade de origem. (DINIZ, 2003)
3.2 Fronteira agrcola ou fronteira urbana? A transio urbana em Roraima
O status de Territrio Federal, juntamente com a criao das colnias agrcolas, teve
um profundo impacto na populao local. O censo de 1950 contabilizou 18.116 indivduos,
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80% acima da contagem de 1940. A tendncia de crescimento continuou durante os anos
1950, culminando com uma populao de 28.304 habitantes em 1960.
Apesar de todas essas mudanas, Roraima permaneceu esparsamente povoado e
economicamente isolado. O maior impedimento a ocupao e desenvolvimento do territrio
era a sua grande dependncia do rio Branco para o transporte. O rio no era navegvel por
barcos de maior calado durante a estao seca devido a presena de corredeiras ao longo do
seu curso. Esse impedimento s foi resolvido em 1976 quando a estrada de rodagem BR 174,
estabeleceu o primeiro elo terrestre entre Boa Vista e Manaus. A estrada foi mais tarde
estendida at a divisa com a Venezuela e concluda em 1998. importante mencionar a
construo da rodovia Perimetral Norte, conhecida em Roraima como BR 210, que abriu o
flanco sudoeste do Estado colonizao. (BARROS, 1995)
A construo dessas estradas marcou o incio de uma nova era de ocupao na regio,
uma vez que garantiu a ligao via terrestre durante todas as estaes do ano e permitiu que
vastas reas fossem exploradas em diversos projetos de colonizao.
Conseqentemente a populao que era de 28.304 habitantes em 1960, chegou a
40.885 em 1970. A tendncia de crescimento se manteve durante a dcada seguinte, chegando
a 79.159 pessoas. Segundo Diniz e Santos (2006), esta poca foi tambm marcada pela
criao de incentivos a ocupao do territrio para solucionar dois problemas crnicos: o
primeiro, de cunho geopoltico, que significava ocupar os espaos vazios do territrio,
tendo em vista a antiga preocupao dos governos centrais em defender as fronteiras
internacionais do pas; o segundo, de cunho scio-econmico, que residia na questo regional
nordestina cuja soluo seria a criao de colnias agrcolas para transferir a populao de
regies empobrecidas e castigadas pela seca para regies mais midas e supostamente
agricultveis.
Assim, as famlias de migrantes poderiam ter acesso a fraes de terra para sua
subsistncia, servindo ento como um grande fator de atrao e auxiliando,
concomitantemente, aos interesses geopolticos.
Nas ltimas duas dcadas, tem ocorrido uma concentrao da populao nos centros
urbanos. Esta tem sido uma tendncia geral em todo o pas e, em Roraima, tambm. Nas
dcadas de 1960 e 1970, a populao rural/urbana manteve-se estvel. Na dcada de 1980,
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ocorreu uma inverso significativa quando a populao urbana chegou a representar 62%. Em
1991 a populao urbana era de 68%, em 2000 representava 76%, mantendo-se praticamente
estvel em 2010, demonstrando assim o forte processo de urbanizao do Estado. (Tabela 3).
Tabela 3 Populao Residente. Roraima - 1950/2010
R U R A L U R B A N A
ANOS TOTAL Habitantes (%) Habitantes (%)
1950 18.116 12.984 72 5.132 28
1960 28.304 16.156 57 12.148 43
1970 40.885 23.404 57 17.481 43
1980 79.159 30.425 38 48.734 62
1991 217.583 70.814 32 146.769 68
2000 324.397 77.381 24 247.016 76
2010 450.479 105.620 23 344.859 77
Fonte: IBGE. Censos demogficos
Entre 1970 e 1980, a populao de Roraima praticamente duplicou, apresentando uma
taxa anual de crescimento na ordem de 6,83% ao ano. Tambm nesse perodo, Roraima sofreu
profundas transformaes na estrutura populacional, com destaque para a consolidao da
transio urbana do Estado, que ocorreu na dcada de 1980, como mostrado anteriormente.
Esta tendncia concentrao urbana em Roraima explicada em parte pelo resultado
dos esforos, sem grandes sucessos, dos empreendimentos dos governos, federal e estadual,
na implementao de polticas de colonizao e incentivo migrao para rea rural.
(BARBOSA, 1994).
Outro fator que contribuiu para a concentrao urbana foi a corrida do ouro na
dcada de 1980. Como a maioria dos garimpos estava localizada em reas distantes de
ncleos urbanos como as vilas, povoados e as pequenas cidades, as referncias de apoio para
os garimpeiros eram as cidades maiores, mais precisamente a capital Boa Vista que tornou-se
desta forma o ncleo de atrao dessa populao, por possuir maior e melhor infra-estrutura
de servios e de diverses como bares, cabars, boates, alm do comrcio para abastecimento
de produtos e equipamentos para a minerao. (RODRIGUES et al, 2002).
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Todavia, apesar da natureza rural dos atrativos populacionais das atividades de
garimpagem e dos assentamentos agrcolas, Roraima um estado com populao
eminentemente urbana.
J na dcada de 1990 o estado de Roraima foi o que mais cresceu populacionalmente
entre todos os estados da regio norte a uma taxa de 10,64% ao ano, enquanto que o estado de
Rondnia na mesma dcada apresentou uma taxa de crescimento populacional de 7,87% e o
Amap 4,65%.
A esse crescimento computado a intensa atividade mineira que praticamente
triplicou os nmeros absolutos da populao do estado que passou de 79.159 em 1980, para
217.583 na dcada seguinte. Alm da migrao para atividades de minerao, outro fator que
contribuiu para o aumento dos fluxos migratrios foram as polticas de assentamentos rurais,
predominantemente no sul do Estado.
A minerao, por ser uma atividade conduzida de maneira clandestina em parques
nacionais e reservas indgenas foi proibida pelo governo Federal que removeu os garimpeiros
e proibiu tal atividade, gerando um g