porque-nao ensinar gramatica escola

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  • SRIO POSSENTI

    POR QUE (NO) ENSINAR GRAMTICA NA ESCOLA

  • DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAO NA PUBLICAO (CIP)

    (CMARA BRASILEIRA DO LIVRO, SP, BRASIL)

    _________________________________________________________________

    Possenti, Srio

    Por que (no) ensinar gramtica na escola / Srio Possenti Campinas, SP :

    Mercado de Letras : Associao de Leitura do Brasil, 1996. (Coleo Leituras

    no Brasil)

    ISBN 85 85725-24-9

    1. Portugus - Gramtica - Estudo e ensino I. Ttulo II. Srie.

    96-3880 CDD-469-507

    _________________________________________________________________

    ndice para catlogo sistemtico

    1. Gramtica : Portugus : Estudo e ensino 469.507

    COLEO LEITURAS NO BRASL

    Coordenao: Luiz Parcival Leme Britto

    Conselho Editorial: Glucia Mollo Pcora, Valdir Heitor Barzotto,

    Maria Jos Nobrega, Wilmar da Rocha D'Angelis e Mrcia Abreu

    Capa: Vande Rotta Gomide

    Copidesque: Nvia Maria Fernandes

    Reviso: Marlia Marcello Braida

    DIREITOS RESERVADOS PARA A LNGUA PORTUGUESA:

    MERCADO DE LETRAS EDIO E LIVRARIA LTDA,

    Rua Barbosa de Andrade, 111

    Fone: (19) 3241-7514

    13073-410 - Campinas SP Brasil

    www. mercado-de-letras. com. br

    E-mail: [email protected]

  • ASSOCIAO DE LEITURA DO BRASIL

    Faculdade de Educao/Unicamp

    Cidade Universitria "Zeferino Vaz"

    13081 -970 - Campinas SP Brasil

    Fone: {19} 3289-4166

    6 reimpresso

    2000

    Proibida a reproduo desta obra

    sem a autorizao prvia dos Editores.

    Sumrio

    APRESENTAO .............................................................................................................................. 5

    INTRODUO ............................................................................................................9

    O PAPEL DA ESCOLA ENSINAR LNGUA PADRO ........................................... 11

    DAMOS AULAS DE QUE A QUEM? ........................................................................ 14

    NO H LNGUAS FCEIS OU DIFCEIS ............................................................... 17

    TODOS OS QUE FALAM SABEM FALAR ............................................................... 20

    NO EXISTEM LNGUAS UNIFORMES .................................................................. 24

    NO EXISTEM LNGUAS IMUTVEIS ..................................................................... 27

    FALAMOS MAIS CORRETAMENTE DO QUE PENSAMOS .................................... 31

    LNGUA NO SE ENSINA, APRENDE-SE ............................................................... 35

    SABEMOS O QUE OS ALUNOS AINDA NO SABEM? .......................................... 38

    ENSINAR LNGUA OU ENSINAR GRAMTICA ? ................................................... 41

    INTRODUO ................................................................................................................................. 44

    CONCEITOS DE GRAMTICA................................................................................. 47

    GRAMTICAS NORMATIVAS .................................................................................. 48

    GRAMTICAS DESCRITIVAS.................................................................................. 49

  • GRAMTICAS INTERNALIZADAS ........................................................................... 52

    REGRAS ................................................................................................................... 56

    LNGUA ..................................................................................................................... 57

    ERRO ........................................................................................................................ 60

    ESBOO PRTICO .................................................................................................. 64

    APRESENTAO

    Este livro tem basicamente duas origens, ambas um pouco antigas, e sua estrutura

    as reflete ainda. Ele vem de dois textos menores que, por sua vez, resultaram de

    pequenos desafios propostos a mim por outros pesquisadores. Os dois desafios tm mais

    ou menos a mesma data, ou, o que importa, a mesma datao intelectual e ideolgica.

    No h, entre um e outro, mudana de posio de minha parte, no que se refere aos

    temas em questo. Alis, minha posio em relao a esses temas mais ou menos a

    mesma h quinze anos, e exatamente por isso que decidi transformar aqueles dois

  • textos em livro.

    Acho que foi em 1982. No Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp, como

    decorrncia da criao do curso de Letras, isto , do ingresso de alunos que seriam por

    hiptese professores de Portugus nas escolas de primeiro e/ou segundo graus (at

    ento s funcionava no Departamento que deu origem ao Instituto um bacharelado em

    lingustica), veio baiIa a questo da necessidade ou no de haver, no currculo de

    letras, disciplinas de ensino de gramtica normativa. At ento, no bacharelado em

    lingustica, e no currculo qne o curso de letras herdava daquele bacharelado, elas no

    existiam. Supunha-se, por um lado, que os alunos j tinham estudado suficientemente as

    gramti- cas tradicionais, e era chegada a hora de eles aprenderem a analisar fatos de

    lngua segundo outras teorias, mais sofisticadas. Por outro lado, muitos dos professores

    do Departamento de Lingustica estvamos convencidos, j, de que ensinar lngua e

    ensinar gramtica so duas coisas diferentes. E achvamos que nosso trabalho era

    formar professores que ensinassem lngua, e no professores de gramtica. Alm disso,

    achvamos que ensinar mais gramtica tradicional era de certa forma intil, dado que at

    nossos privilegiados alunos ainda achavam que deviam ter aulas da matria, aps cerca

    de dez anos de estudos! Alguns alunos entendiam a questo da mesma forma. Outros

    insistiam que no sabiam gramtica e que deveriam aprend-la para poder ensin-la nas

    escolas. Por essas duas razes, tal contedo deveria ser contemplado no currculo.

    Houve seminrios sobre a questo, com alunos e professores participando de discusses

    (s vezes, bate-bocas) bastante animadas.

  • Um dia, num encontro casual, o professor Roberto Schwartz me perguntou em que

    tipo de discusso estvamos metidos, afinal, no caso do ensino de gramtica. Queria

    saber como os linguistas viam essa histria do padro lingustico e da gramtica,

    inclusive porque, a seu ver, percebia-se a falta de um conhecimento mnimo de tais

    questes nos trabalhos que os alunos escreviam sobre textos literrios. Tentei dizer-lhe,

    em poucas palavras, o que alguns de ns pensvamos e dizamos, entre ns e nos

    seminrios. Ele me props, ento, que escrevesse um texto "inteligente" sobre a questo.

    Sugeriu-me at o ttulo, "Gramtica e poltica". Disse-me que, se o texto ficasse bom, ele

    tentaria faz-lo passar no Conselho Editorial da revista Novos Estudos Cebrap. Suponho

    que ele tenha gostado, pois o texto saiu naquela revista, no volume 2, n 3, de 1983.

    Cerca de um ano depois, ao organizar seu livro O texio na sala de aula, J. W. Geraldi

    incluiu "Gramtica e poltica".

    Passado mais um ano, em reunies com a equipe da CENP (um rgo ligado

    Secretaria de Educao do Estado de So Paulo) para negociar a participao de alguns

    professores do Departamento de Lingustica do Instituto de Estudos da Linguagem no

    Projeto IP, um membro daquela equipe declarou que o texto sobre gramtica poderia

    ser algo como o meu "Gramtica e poltica", mas numa linguagem um pouco mais

    acessvel aos professores da rede. Rodolfo Ilari e eu, ento, escrevemos essa nova

    verso, que foi publicada pela secretaria da Educao do Estado de So Paulo, com o

    ttulo de Portugus e ensino de gramtica, em 1985.

    Acho que foi em I984, quem sabe em 1983. Um dia, o professor Mercer, do

    Departamento de Letras da Universidade Federal do Paran, convidou-me para participar

  • de um ciclo de palestras que ele coordenava, em Curitiba, sobre lingustica e ensino de

    portugus. Disse-me ao telefone que, em primeiro lugar, esperava que eu aceitasse e,

    em segundo, que eu fosse a Curitiba para dizer que no havia nenhuma relao entre as

    duas coisas. Eu lhe disse que aceitava e que ia a Curitiba para dizer que havia uma

    relao importante entre as duas coisas, mas, de qualquer forma, eu esperava

    surpreend-lo com meu discurso. que eu imaginava, j, como resultado de algumas

    leituras e muitas conversas com colegas, como consequncia de debates relativamente

    numerosos com professores de segundo grau e de faculdades do interior, e tambm,

    relevantemente, de uma posio poltica clara (modestamente, ainda penso isso) em

    relao questo, que as principais contribuies da lingustica para o ensino da lngua

    no tm muito a ver com a introduo de gramticas melhores na escola (embora isso

    seja eventualmente de enorme interesse), mas, fundamentalmente, com a colocao em

    cena de atitudes diversas dos professores em relao ao que sejam uma lngua e seu

    processo de aprendizado (ou aquisio). Basicamente, tratava-se de eliminar

    preconceitos e de redizer algumas coisas bvias sobre o funcionamento real da

    linguagem na vida real dos falantes, insinuando que esse uso real o que deve ser

    priorizado na sala de aula. No sei se consegui surpreender o professor Mercer ou

    qualquer outra pessoa. O que fiz foi extrair das principais correntes de estudos de

    linguagem, que eu conhecia de algum modo, um conjunto de enunciados resumidores

    (quase slogans) e atitudes pedaggicas correspondentes. Um ano depois, mais ou

    menos, fui convidado a participar de uma mesa redonda num Seminrio do Grupo de

    Estudos Linguis- ticos do Estado de So Paulo (GEL), e, para a ocasio, escrevi um texto

  • que chamei de "Para um novo perfil do professor de portugus". Nesse texto, eu falava

    de cinco princpios indispensveis para que o ensino de lngua materna fosse bem

    sucedido. Na verdade, eu queria dizer que eram coisas que todos os alunos de letras

    deveriam aprender nas universidades, e que isso era bastante fcil de fazer. Bastava ler

    uns dez artigos bem escolhidos. Falei muito sobre isso, nos anos subsequentes, para

    plateias diversas, e os cinco princpios acabaram se transformando em dez. Uma espcie

    de declogo do professor de portugus, que, alis, Giraldi incluiu em sua nova verso de

    O texto na sala de aula (So Paulo, tica).

    Pois bem, esse o desenvolvimento desses dois textos antigos, apresentados na

    ordem inversa da apresentao feita aqui de sua histria. Tal desenvolvimento se deve

    crn grande parte ao fato de que fui arranjando argumentos para defender tais princpios

    em numerosas apresentaes e discusses que j fiz em vrios lugares e para variadas

    plateias. Eu precisava convencer os outros e, s vezes, me defender deles.

    Fica implcito, assim, que este livro no trata de problemas de ordem textual. Mas,

    de fato, acho que nesse "nvel", o do texto, que residem os principais problemas

    escolares, na disciplina dedicada ao ensino de lngua materna. Aqui, minha contribuio

    ao desenvolvimento das capacidades de domnio do texto por parte dos alunos apenas

    indireta: se diminuir na escola o espao da gramtica, poder aumentar automaticamente

    o do texto. Alm do mais, parece que no "nvel" da textualidade as regras so menos

    claras ou gerais; pelo menos, seu estudo est ainda menos desenvolvido, embora j

    tenhamos boa e numerosa produo sobre o tema. Mas, no o tomarei aqui como objeto.

    Na primeira parte, aquelas dez teses bsicas so apresentadas e relativamente

  • justificadas. Na segunda parte, esto expostos os conceitos de gramtica relevantes para

    uma proposta de ensino, e seu lugar na escola , tentativamente, desenhado. Quem

    conhece o texto como Ilari e eu o publicamos pela CENP verificar que algumas

    passagens permaneceram praticamente como estavam. Espero que ele ainda acredite no

    que escrevemos h dez anos.

    Qualquer leitor poder ver que se trata de um livro de divulgao. Como disse

    acima, trata-se de coisas velhas, bvias, elementares. Sinto-me vontade para public-

    las apenas porque percebo, quando falo sobre esses temas, que, para muitos pessoas, o

    que aqui se poder ler , ao mesmo tempo, de alguma forma, novo e, alm disso, de

    interesse.

    PRIMEIRA PARTE

  • INTRODUO

    A primeira parte deste livro apresenta um conjunto de teses correntes em

    lingustica, seguidas de pequenas justificativas. No se trata de aumentar o conhecimento

    tcnico de ningum a respeito do portugus. Trata-se de um conjunto de princpios, um

    tanto dspares entre si (as tarefas de ensino exigem que se compatibilizem

    conhecimentos dspares), destinado mais a provocar reflexo do que a aumentar o

    estoque de saberes. Tenho a convico de que, se o conhecimento tcnico de um campo

    fundamental na maior parte das especialidades, talvez o mesmo no valha (pelo menos

    da mesma forma) para o professor de lngua materna. Mais que o saber tcnico, um

    conjunto de atitudes derivadas dos saberes acumulados talvez resulte em benefcios

    maiores, por razes que, espero, ficaro claras abaixo. Inclusive porque, a rigor, sem

    estas atitudes, sequer seria possvel um conhecimento de tipo cientfico, isto , um

    aumento de saber tcnico, quando se trata de linguagem. que este conhecimento

    tambm exige rupturas com princpios que fundamentam o tipo de saber anteriormente

    aceito.

    Uma deciso que considero importante, no domnio do ensino de lngua materna,

    que no se faam experincias. Sou absolutamente contrrio a transformar alunos em

    objeto de experimentos com teorias novas. que, se o experimento fracassa, no se de

    desperdiam amostras de materiais, mas de pedaos de vidas, pates de projetos dos

    alunos, s vezes vidas e projetos inteiros. Por isso, as teses que exporei aqui so todas

    bvias. Nenhuma delas recente, inclusive. Trata-se de aquisies bastante slidas da

    lingustica deste sculo (at do anterior, s vezes). Se elas ainda precisam ser ditas

  • porque, por razes que seria interessante explicitar, elas no so difundidas. De fato, no

    h, por exemplo, divulgao de descobertas "cientficas" no domnio das lnguas. Ou se

    divulgam curiosidades anedticas ou se repetem sempre apenas as teses conservadoras

    e normativas.

    Frequentemente, pesquisadores so chamados para falar a professores, na

    esperana de que aqueles apresentem a estes um programa de ensino que funcione. Em

    certas circunstncias, espera-se que tal programa funcione sem qualquer outra mudana

    na escola e nos professores. Espera-se que os especialistas tragam propostas "prticas".

    Em geral, um pesquisador no fornece tais programas. Nem adiantaria faz-lo. que,

    para que o ensino mude, no basta remendar alguns aspectos. necessrio uma

    revoluo. No caso especfico do ensino de portugus, nada ser resolvido se no mudar

    a concepo de lngua e de ensino de lngua na escola (o que j acontece em muitos

    lugares, embora s vezes haja discursos novos e uma prtica antiga).

    Seguem-se, pois, teses bsicas em relao ao problema do ensino de lngua

    materna. Se as teses fossem transformadas em prticas, muitas das atividades atuais

    seriam substitudas. Se as teses expressarem verdades, sua aplicao resultar em

    considervel melhoria do ensino.

  • O PAPEL DA ESCOLA ENSINAR LNGUA PADRO

    importante que este tpico fique claro, e esteja na memria do leitor, quando

    estiver eventualmente achando estranha alguma das teses seguintes. Talvez deva repetir

    que adoto sem qualquer dvida o princpio (quase evidente) de que o objetivo da escola

    ensinar o portugus padro, ou, talvez mais exatameme, o de criar condies para que

    ele seja aprendido. Qualquer outra hiptese um equvoco poltico e pedaggico. A tese

    de que no se deve ensinar ou exigir o domnio do dialeto padro dos alunos que

    conhecem e usam dialetos no padres baseia-se em parte no preconceito segundo o

    qual seria difcil aprender o padro. Isto falso, tanto do ponto de vista da capacidade

    dos falantes quanto do grau de complexidade de um dialeto padro. As razes pelas

    quais no se aprende, ou se aprende mas no se usa um dialeto padro, so de outra

    ordem, e tm a ver em grande parte com os valores sociais dominantes e um pouco com

    estratgias escolares discutveis. Vou expandir um pouco e justificar as afirmaes

  • acima. Antes, preciso dizer que considero que estamos todos de acordo sobre um ponto:

    que o problema do ensino do padro s se pe de forma grave quando se trata do ensino

    do padro a quem no o fala usualmente, isto , a questo particularmente grave em

    especial para alunos das classes populares, por mais que tambm haja alguns problemas

    decorrentes das diferenas entre fala e escrita, qualquer que seja o dialeto (mas, insisto

    sobre a hiptese de que, provavelmente, tais problemas sejam mais de tipo textual do

    que de tipo gramatical).

    Como toda a boa tese, a que estou defendendo aqui afirmada contra alguma

    outra, real ou hipottica, s vezes atribuda aos linguistas. Dentre as que defenderiam

    que a funo da escola ensinar portugus padro, aquelas que vale a pena comentar

    so basicamente duas. Uma de natureza poltico-cultural. Outra, de natureza cognitiva.

    A tese de natureza poltico-cultural diz basicamente que uma violncia, ou uma

    injustia, impor a um grupo social os valores de outro grupo. Ela valeria tanto para guiar

    as relaes entre brancos e ndios quanto para guiar as relaes entre para simplificar

    um pouco pobres e ricos, privilegiados e "descamisados". Dado que a chamada lngua

    padro de fato o dialeto dos grupos sociais mais favorecidos, tornar seu ensino

    obrigatrio para os grupos sociais menos favorecidos, como se fosse o nico dialeto

    vlido, seria uma violncia cultural. Isso porque, juntamente com as formas lingusticas

    (com a sintaxe, a morfologia, a pronncia, a escrita), tambm seriam impostos os valores

    culturais ligados s formas ditas cultas de falar e escrever, o que implicaria em destruir ou

    diminuir valores popu1ares. O equvoco, aqui, parece-me, o de no perceber que os

    menos favorecidos socialmente s tm a ganhar com o domnio de outra forma de falar e

  • escrever. Desde que se aceite que a mesma lngua possa servir a mais de uma ideologia,

    a mais de uma funo, o que parece hoje evidente.

    Isso poderia parecer bvio, mas aqui que comea a funcionar o outro equvoco,

    o de natureza cognitiva. Ele consiste em imaginar que cada falante ou cada grupo de

    falantes s pode aprender e falar um dialeto (ou uma lngua). Dito de outra maneira: a

    defesa dos valores "populares" suporia que o povo s fala formas populares, e que elas

    so totalmente distintas das formas utilizadas pelos grupos dominantes. O que vale para

    formas lingusticas valeria para outras formas de manifestao cultural. A hiptese supe

    tambm que o aprendizado de uma lngua ou de um dialeto uma tarefa difcil, ou, pelo

    menos, difcil para certos grupos ou para certas pessoas. Ora, todas as evidncias vo no

    sentido contrrio. Qualquer pessoa, principalmente se for criana, aprende com

    velocidade muito grande outras formas de falar, sejam elas outros dialetos ou outras

    lnguas, desde que expostas consistentemente a elas. Em resumo, aprender outro dialeto

    relativamente fcil. Portanto, nenhuma das razes para

    no ensinar o dialeto padro na escola tm alguma base razovel.

    Em que consistiria o domnio do portugus padro? Do ponto de vista da escola,

    trata-se em especial (embora no s) da aquisio de determinado grau de domnio da

    escrita e da leitura. evidentemente difcil fixar os limites mnimos satisfatrios que os

    alunos deveriam poder atingir. Mas, parece razovel imaginar, como projeto, que a escola

    se proponha como objetivo que os alunos, aos 15 anos de vida e 8 de escola, escrevam,

    sem traumas, diversos tipos de texto (narrativas, textos argumentativos, textos

    informativos, atas, cartas de vrios tipos etc.; pode-se excluir a produo de textos

  • literrios dos objetivos da escola, j que literatos certamente no se fazem nos bancos

    escolares; o mximo que

    se pode esperar que eles a no se percam) e leiam produtivamente textos tambm

    variados: textos jornalsticos, como colunas de economia, poltica, educao, textos de

    divulgao cientfica em vrios campos, textos tcnicos (a includo o manual de

    declarao do imposto de renda, por exemplo) e, obviamente, e com muito destaque,

    literatura. No final do segundo grau, deveriam conhecer a literatura contempornea e os

    principais clssicos da lngua. Seria bom que conhecessem tambm, nesse nvel de

    formao escolar, pelo menos alguns dos principais clssicos da literatura universal, pelo

    menos nas edies condensadas.

    Para que as posies aqui defendidas faam sentido, preciso antes ler claro que

    tal objetivo certamente no atingido atuaImente, como regra, So relativamente poucos

    os alunos egressos do segundo grau que executam esses dois tipos de atividade com

    frequncia e naturalidade. Mas, gostaria de deixar claro que no se est propondo um

    projeto inexequvel, nem novo. apenas o bvio. O que proponho que o bvio seja

    efetivamente realizado. Uma das medidas para que esse grau de utilizao efetiva da

    lngua escrita possa ser atingido escrever e ler constantemente, inclusive nas prprias

    aulas de portugus. Ler e escrever no so tarefas extras que possam ser sugeridas aos

    alunos como lio de casa e atitude de vida, mas atividades essenciais ao ensino da

    lngua. Portanto, seu lugar privilegiado, embora no exclusivo, a prpria sala de aula.

    As razes pelas quais s vezes a escola fracassa na consecuo desse

    objetivo so variadas. Como disse acima, as razes podem ser de ordem metodolgica

  • (pedaggica) ou decorrentes de valores sociais complexos. Alguns desses empecilhos

    podem ser destrudos na prpria escola.

    Outros, no. Alguns dos problemas que levam ao fracasso tm a ver com a forma como

    se concebem a funo e as estratgias do ensino de lngua. A nica opo de uma

    escola comprometida com melhoria da qualidade do ensino est entre ensinar ou deixar

    aprender... Qualquer outra implica em conformar-se com o fracasso ou, pior, em atribu-lo

    exclusivamente aos alunos.

    DAMOS AULAS DE QUE A QUEM?

    Pode-se discutir o grau de clareza necessrio para a execuo de projetos. Por

    exemplo, certamente possvel trabalhar bem em certos pontos de uma "linha de

    produo" sem conhecer o projeto global ou mesmo o produto final. Mas, duvidoso que

    isso possa ser feito adequadamente quando se trata de escola e de alunos. Para que um

    projeto de ensino de lngua seja bem sucedido, uma condio deve necessariamente ser

    preenchida, e com urgncia: que haja uma concepo clara do que seja uma lngua e do

    que seja uma criana (na verdade, um ser humano, de maneira geral). A melhor maneira

    de obter tal concepo sem ter que passar por uma vasta literatura de lingustica e de

    psicologia ler meia dzia de textos escolhidos. Se bem escolhidos e bem lidos, eles

    podem tomar-nos bons observadores dos fatos, em especial do que as crianas fazem

    diariamente ao nosso redor. Poderemos pensar o que quisermos das crianas, mas

    provavelmente no estaremos autorizados a dizer que elas, mesmo as menos dotadas do

    ponto de vista das condies materiais, so incapazes de aprender lnguas. Todos

  • podemos ver diariamente que as crianas so bem sucedidas no aprendizado das regras

    necessrias para falar. A maior evidncia disso que falam. Se as lnguas so sistemas

    complexos e as crianas as aprendem, de uma coisa podemos ter certeza: elas no so

    incapazes. Podemos duvidar que as lnguas sejam sistemas complexos? Quem tiver tal

    dvida, que tente estudar qualquer uma delas, e ver como qualquer idia contrria

    desaparecer. Enquanto estes dois pontos no ficarem claros, continuaremos reprovando

    na escola exatamente aqueles que a sociedade j reprovou, enchendo as salas especiais

    e curtindo o fracasso dos nossos projetos.

    Podemos utilizar alguns testes para saber que tipo de concepo temos do que

    seja uma lngua. Por exemplo, quando o ex-ministro Magri produziu a forma "imexvel",

    que se tornou conhecida e foi muito comentada, o que que ns pensamos? Que ele era

    um ignorante porque disse uma palavra que no est no dicionrio? Ou que pelo menos

    em uma coisa ele era bom? Convenhamos, ele errou muito nas suas funes de ministro.

    Na verdade, s mostrou virtudes no campo da derivao morfolgica... De fato, a palavra

    "imexvel" se deriva de "mexer" pelos mesmos caminhos pelos quais "intocvel" se deriva

    de "tocar", por exemplo. Ora, sendo "intocvel" indiscutivelmente uma palavra, deve-se

    concluir que a faanha de Magri consistia em seguir regras, e no em viol-las. Se uma

    palavra no est no dicionrio, podemos pensar duas coisas: que a palavra no existe na

    lngua ou que o dicionrio tem deficincias. O fato de desconfiarmos de um dicionrio

    revela, em princpio, uma viso mais adequada de lngua do que o fato de desconfiarmos

    de (ou no percebermos) um processo gramatical produtivo. Se nossas perguntas so

    sempre sobre o que certo ou errado, e se nossas respostas a essas perguntas so

  • sempre e apenas baseadas em dicionrios e gramticas, isso pode revelar uma

    concepo problemtica do que seja realmente uma lngua, tal como ela existe no mundo

    real, isto , na sociedade complexa em que falada. Os dicionrios e as gramticas so

    bons lugares para conhecer aspectos da lngua, mas no so os nicos e podem ate no

    ser os melhores. (Nos prximos captulos, comentarei aspectos relevantes para uma

    concepo adequada de lngua, tanto do ponto de vista de critrios mais cientficos

    quanto do seu ensino.)

    A outra questo importante a concepo do que seja um humano. Claro que se

    poderiam formular muitas perguntas sobre numerosos aspectos ou caractersticas do

    seres humanos. Mas, do ponto de vista do ensino (e do aprendizado) apenas uma a

    questo verdadeiramente importante: como ns pensamos que os homens aprendem?

    Como os animais, ou de maneira diferente e especfica? Uma forma mais sofisticada de

    formular esta questo talvez seja supor que nem tudo se aprende da mesma forma.

    Ento, a pergunta seria: ser que tudo o que os seres humanos aprendem resultado

    das mesmas estratgias? Por exemplo, os processos utilizados para transformar algum

    num bom goleiro, num bom cobrador de lances livres no basquete, ou para aprender a

    comer com faca e garfo sem atrapalhar-se so os meamos processos pelos quais

    aprendemos matemtica e, principalmente, lnguas? provavelmente verdade que

    necessrio repetir exaustivamente certos movimentos para criar reflexos apurados num

    goleiro ou para ser um bom datilgrafo. Ou seja, h tipos de comportamentos que os

    seres humanos certamente adquirem de formas semelhantes s utilizadas pelos animais

    para adquirir certos comportamentos condicionados (realizar certas evolues num circo,

  • por exemplo). Mas h tipos de "comportamento" que os seres humanos adquirem de

    forma que poderamos chamar de criativa, isto , que no dependem de repeties

    numerosas, mas de hipteses constantemente propostas e testadas pelo prprio

    aprendiz.

    Ter uma concepo clara sobre os processos de aprendizagem pode ditar o

    comportamento dirio do professor de lngua em sala de aula. Por exemplo, se ele d aos

    alunos exerccios repetitivos (longas cpias, exerccios estruturais, preenchimento de

    espaos vazios etc.), porque est seguindo (saiba ou no da a importncia de ter

    ideias claras!) uma concepo de aquisio de conhecimento segundo a qual no h

    diferenas significativas entre os homens e os animais em nenhum domnio de

    aprendizagem ou de comportamento.

    Certamente, esta a concepo dominante no Brasil. Mas, h fortes evidncias

    de que mais correto, o que seria tambm mais produtivo para a escola, aceitar que os

    homens aprendem certos tipos de coisas em especial, lnguas sem treinamento. O

    que no quer dizer sem condies adequadas, dentre as quais, eventualmente, muito

    esforo e trabalho. Pense-se, por exemplo, na velocidade com que uma criana de trs

    anos que tenha ido morar em um pas estrangeiro aprende a lngua local, apenas em

    contato com outras crianas, sem sequer ter tempo para ser treinada.

    Disse acima que basta observar cuidadosamente o quer as crianas fazem ao

    nosso redor para nos convencermos de que so criativas. Por exemplo: se realmente as

    ouvssemos, jamais imaginaramos que necessrio ensinar uma criana a fazer frases,

    porque veramos que j sabem faz-las, e muito menos pensaramos que s podemos

  • lhes apresentar frases bem "simples", por que as ouviramos produzindo numerosas

    frases bem mais complexas do que as que lhes oferecemos nos primeiros anos de

    escola, nos primeiros livros e nos primeiros exerccios.

    NO H LNGUAS FCEIS OU DIFCEIS

    Uma das mais interessantes descobertas, do ponto de vista europeu, produzida

    pelas anlises de numerosas lnguas indgenas, isto , lnguas faladas nos continentes

    que os europeus "descobriram", que no verdade que existem lnguas simplificadas,

    ou, para utilizar um termo mais corrente, primitivas. Era um lugar comum (pode ser que o

    seja ainda hoje, para muitos, por desinformaao) imaginar que a civilizao europia

    constitua progresso, melhoria, desenvolvimento, avano. O ponto mximo at ento

    atingido pela humanidade. Mesmo no sculo XIX, muito depois, portanto, do Iluminismo

    [no interior do qual se gestou essa ideia de progresso), ainda se imaginava, por influncia

    das teorias correntes sobre a evoluo, que as civilizaes e as sociedades estavam

    submetidas a uma evoluo similar das espcies (talvez isso seja mais lamarckismo,

    mas, deixemos os detalhes de lado, por enquanto). Parecia bvio pensar o seguinte: h

    povos atrasados, que mal conhecem o fogo e o tacape, que nem agricultores so.

    Parecia lgico pensar que, se so primitivos no que se refere a sua sobrevivncia e a

    suas artes, deve ser porque ainda no desenvolveram "totalmente" as capacidades

  • tpicas dos seres humanos, vale dizer, a razo, a inteligncia. Logo, devem falar uma

    lngua primitiva, mais prxima dos grunhidos dos gorilas do que da sofisticao de uma

    lngua como o gregos o latim, o ingls, o francs, o alemo. Ora, esse raciocnio s foi

    possvel como decorrncia do desconhecimento das estruturas internas dessas lnguas.

    Quando os prprios europeus analisaram as lnguas indgenas, isto , quando

    missionrios e linguistas descreveram as gramticas de tais lnguas, fizeram descobertas

    surpreendentes (para os preconceituosos). Descobriram que lnguas consideradas

    primitivas podem ser classificadas ao lado de lnguas ditas civilizadas (segundo Mattoso

    Cmara, Hill afirma a existncia de semelhanas estruturais entre o latim e o esquim,

    Nida mostra que os processos morfolgicos tornam "aparentadas" lnguas como o latim, o

    snscrito e o grego com o nwtal, do Mxico e o hauss, da frica, por exemplo).

    Afirmar que h lnguas primitivas um equvoco equivalente a afirmar que a Lua

    um planeta, que o Sol gira ao redor dia Terra, que as estrelas esto fixas em uma

    abbada. Tais equvocos foram correntes, mas hoje h um argumenlo forte contra eles: o

    conhecimento cientfico. Da mesma maneira, hoje sabemos que todas as lnguas so

    estruturas de igual complexidade. Isto significa que no h lnguas simples e lnguas

    complexas, primitivas e desenvolvidas. O que h so lnguas diferentes. Uma anlise de

    qualquer aspecto de qualquer das lnguas consideradas primitivas revelar que as razes

    que levam a este tipo de juzo no passam de preconceito e/ou de ignorncia. No

    decente, neste domnio, basear-se no preconceito ou no "ouvi dizer". Hoje, a bibliografia

    sobre lnguas do mundo abundante: qualquer pessoa interessada pode descobrir que,

    h muito tempo, os estudiosos mostraram que ridcula a ideia de que h lnguas

  • primitivas, s porque so faladas por povos pouco cultos, segundo nossos critrios por

    exemplo, no escrevem, no moram em prdios de apartamemos, no tm armas

    sofisticadas... De certa forma, essa revoluo copernicana, no domnio das lnguas, ainda

    no se tornou conhecida do grande pblico...

    A tese que rejeita a oposio primitivo versus civilizado forte tambm em

    antropologia. Os estudiosos das chamadas comunidades primitivas mostraram

    convincentemente que elas so frequentemente diferentes das nossas, o que mais ou

    menos bvio, mas que impossvel mostrar que sejam simples, qualquer que seja o

    sentido dessa palavra. Isto , o conjunto de leis e regras que governam seu

    funcionamento est longa de ser banal. Nada mais falso do que imaginar que sociedades

    "primitivas" tm organizao mais semelhante ao de uma comunidade de animais que ao

    de uma sociedade civilizada. Mas, esta ainda uma viso que perdura.

    A tese de que nao h lnguas primitivas e civilizadas, ou seja, lnguas simples e

    lnguas complexas, tem uma aplicao didtica imediata. comum que alunos e ex-

    alunos justifiquem seu mau desempenho escolar no domnio da lngua com uma desculpa

    do tipo: "Tambm, que lngua difcil o portugus! Como tem regras! E as excees,

    ento!" Ora, esse tipo de afirmao equivocada. No resiste menor anlise. Nenhuma

    lngua tem um nmero de regras substancialmente diverso do de outra. O portugus

    uma lngua to fcil que qualquer criana que nasce no Brasil (e em alguns outros

    lugares) a aprende em dois ou trs anos. E to difcil que os gramticos e linguistas no

    conseguem explic-la na sua totalidade. E o mesmo vale para o chins, o guarani, o

    alemo, o bantu, o japons etc. A questo exatamente igual em cada pas ou para cada

  • lngua. (No se deve confundir capacidade ou dificuldade de aprender uma lngua com a

    de aprender a escrever segundo determinado sistema de escrita...)

    A ideia de que no h lnguas piores do que outras pode talvez ser aceita com

    relativa facilidade, at porque no nos afeta diretamente. Ou, pelo menos, no nos afeta

    gravemente, exceto pela afirmao corrente sobre as dificuldades escolares que oferece.

    O mais problemtico analisar os dialetos da mesma forma. Mas, na verdade, o que vale

    na comparao entre lnguas vale na comparao entre dialetos de uma mesma lngua.

    Dialetos populares e dialeios padres (ou cultos) se distinguem em vrios aspectos, mas

    no pela complexidade das respectivas gramticas. Ou seja, no h dialetos mais

    simples do que outros. O que h, tambm neste caso, so diferenas (alis, nem tantas

    quanto s vezes se pensa). As diferenas mais importantes entre os dialetos esto

    menos ligadas variao dos recursos gramaticais e mais avaliao social que uma

    sociedade faz dos dialetos. Tal avaliao passa, em geral, pelo valor atribudo pela

    sociedade aos usurios tpicos de cada dialeto. Ou seja: quanto menos valor (isto ,

    prestgio) tm os falantes na escala social, menos valor tem o dialeto que falam.

    Se no h lnguas mais simples do que outras, se no h dialetos mais

    complexos nem mais simplificados do que outros, as concluses bvias so: a) no

    mais difcil aprender um dialeto do que aprender outro; b) quem conhece um dialeto no

    nem mais capaz nem mais incapaz do que quem conhece outro. Quem no acredita

    nessas concluses poderia tentar: a) estudar um dos dialetos chamados simples, para

    verificar se redmente ele o ; b) analisar sem preconceito o desempenho de pessoas

    diferentes, cada uma em seu dialeto, para verificar se verdade que h quem no saiba

  • falar direito.

    TODOS OS QUE FALAM SABEM FALAR

    Pode ser que seja verdade que os sentidos nos enganam. Esta uma antiga

    questo filosfica. O exemplo mais invocado para mostrar como o que vemos pode no

    estar acontecendo a velha histria de o Sol girar ao redor da Terra. o que vemos,

    mas no o que acontece. Nosso posto de observao ruim, e assim nos enganamos.

    Se pudssemos ver de fora, provavelmente no nos enganaramos. Mas, se, em relao

    ao Sol e Terra, acreditamos durante muito tempo que o que vamos era verdade, em

    relao s lnguas nunca acreditamos muito no que ouvimos. Os grupos que falam uma

    lngua ou um dialeto em geral julgam a fala dos outros a partir da sua e acabam

    considerando que a diferena um defeito ou um erro. Da pensarmos, em geral, que os

    outros no sabem falar. Ou, ainda mais gravemente, acabarmos convencidos de que ns

    tambm no sabemos falar, se falamos de forma um pouco diferente daqueles que so

    para ns os modelos de comportamento lingustico. O preconceito mais grave e

    profundo no que se refere a variedades de uma mesma lngua do que na comparao de

    uma lngua com outras. As razes so histricas, culturais e sociais. Aceitamos que os

    outros (os que falam outra lngua) falem diferente. Mas, no aceitamos pacificamente que

    os que falam ou deveriam falar a mesma lngua falem de maneira diferente.

  • Ora, se abrssemos os ouvidos, se encarssemos os fatos, eles nos mostrariam

    uma coisa bvia: que todos os que falam sabem falar. Pode ser que falem de formas um

    pouco peculiares, que certas caractersticas do seu modo de falar nos paream

    desagradveis ou engraadas. Mas isso no impede que seja verdade que sabem falar.

    As crianas, a partir dos trs anos (arredondemos, para simplificar), falam durante muitas

    horas por dia. Ora, no poderiam fazer isso se no soubessem faz-lo. As crianas

    brasileiras falam o dia todo em portugus (e no em chins, alemo etc.). Logo, sabem

    portugus. Os brasileiros cuja situao social e econmica no lhes permitiu que

    estudassem muitos anos (s vezes, nenhum) falam o tempo todo. claro, falaro como

    se fala nos lugares em que eles nascem e vivem, e no como se fala em outros lugares

    ou entre outro tipo de gente. Logo, falam seus dialetos. Logo, sabem falar.

    Qualquer um poderia objetar que todos falam, mas errado. Por ora, diria que a

    definio de erro um problema complexo, e no apenas uma questo de norma

    gramatical da lngua escrita. Para antecipar um pouco uma reflexo que dever ser feita

    adiante, diria que os erros que condenamos s so erros se o critrio de avaliao for

    externo lngua ou ao dialeto, ou seja, se o critrio for social. Mas, se adotssemos esse

    critrio para todos os casos, deveramos tambm concluir que so erros todos os modos

    diferentes de falar, mesmo os que so tpicos de outras lnguas.

    Saber falar significa saber uma lngua. Saber uma lngua significa saber uma

    gramtica. (Oportunamente, esclareceremos melhor alguns conceitos de gramtica).

    Saber uma gramtica no significa saber de cor algumas negras que se aprendem na

    escola, ou saber fazer algumas anlises morfolgicas e sintticas. Mais profundo do que

  • esse conhecimento o conhecimento (intuitivo ou inconsciente) necessrio para falar

    efetivamente a lngua. As crianas, por exemplo, no estudam sintaxe de colocao

    antes de ir escola, mas, sempre que falam sequncias que envolvem, digamos, um

    artigo e um nome, dizem o artigo antes e o nome depois (isto , nunca se ouve uma

    criana dizer "casa a", mas sempre se ouvem crianas dizerem "a casa" (pode ser at

    que elas digam "as casa", dependendo do dialeto que falam; pode ser que no gostemos

    disso; mas, temos que reconhecer que, mesmo nesse dialeto do qual eventualmente no

    gostamos, nunca se dir nem "casa as", nem "a casas", o que no pouca coisa).

    Resumidamente, poda-se dizer que saber uma gramtica saber dizer e saber

    entender frases. Quem diz e entende frases faz isso porque tem um domnio da estrutura

    da lngua. Mesmo diante de uma frase "incompleta", por exemplo, o falante capaz de

    fazer hipteses de interpretao.

    Considere-se o seguinte exemplo, uma piada de um programa de TV: Uma

    personagem diz: "Sua me est a. Voc no vai receber?" A outra responde:

    "Receber por qu? Por acaso ela me deve alguma coisa?"

    Certamente, os falantes de portugus (mesmo aqueles alunos que tiram notas

    baixas) interpretam a primeira ocorrncia de "receber" como se esse verbo fosse

    completado por "sua me" (ou "ela", "a", dependendo do dialeto). Isto , interpretam a

    pergunta como se ela fosse: "Voc no vai receber sua me?" Depois da fala da segunda

    personagem, quem ouve esta piada se d conta de que o complemento de "receber" no

    "a me", mas alguma coisa vaga, algo como "dvida", "dinheiro" etc. E tambm se d

    conta de que se trata, ento, de dois sentidos do verbo "receber" ('recepcionar', na

  • primeira fala, e 'ter de volta', 'ganhar', 'ser pago', na segunda fala). Ora, esse tipo de

    saber muito complexo e todos os falantes o possuem. Se ocorrer que alguns falhem na

    interpretao dessa piada, isso no significa que falharo em outros casos. O que pode

    mostrar que nem todos sabem tudo, mas todos sabem muito.

    Se entendermos dessa forma o que seja saber uma lngua, podemos dizer, com

    absoluta conscincia de estarmos dizendo a maior das verdades, que a escola de fato

    no ensina lngua materna a nenhum aluno (pode ensinar uma lngua estrangeira,

    dependendo da metodologia escolhida). A escola recebe alunos que j falam (e como

    falam, em especial durante nossas aulas!...). Se as lnguas e dialetos so complexos

    vimos esse tpico no captulo anterior e se os falantes os conhecem, j que os falam,

    ento os falantes, inclusive os alunos em incio de escolarizao, tm conhecimento de

    uma estrutura complexa. Portanto, qualquer avaliao da inteligncia do aluno com base

    na desvalorizao de seu dialeto (isto , medida apenas pelo domnio do padro e/ou da

    escrita padro) cientificamente falha. A consequncia a tirar que os alunos que falam

    dialelos desvalorizados so to capazes quanto os que falam dialetos valorizados,

    embora as instituies no pensem assim.

    No se conclua do que se disse acima que as escolas no teriam mais o que

    fazer, segundo este ponto de vista. A quem conclusse isso, relembraria a primeira tese

    defendida aqui: a funo da escola ensinar o padro, em especial o escrito (relembre-

    se que foi dito acima que, na verdade, os grandes problemas escolares esto no domnio

    do texto, no no da gramtica). At porque, quando a escola ensina, o que ela ensina

    mesmo a modalidade escrita dessa lngua, mas no propriamente a lngua. Inclusive,

  • para ensinar a modalidade escrita, deve pressupor e pressupe de fato um enorme

    conhecimento da modalidade oral. Ora, mesmo para ensinar "s" a escrita padro, a

    escola tem tarefas imensas. Mas, deve-se reconhecer que so bem menores do que

    seriam se os alunos no soubessem nem falar! No dia em que as escolas se dessem

    conta de que esto ensinando aos alunos o que eles j sabem, e que em grande parte

    por isso que falta tempo para ensinar o que no sabem, poderia ocorrer uma verdadeira

    revoluo. Para verificar o quanto ensinamos coisas que os alunos j sabem, poderamos

    fazer o seguinte teste: ouvir o que os alunos do primeiro ano dizem nos recreios (ou

    durante nossas aulas), para verificar se j sabem ou no fazer frases completas (e ento

    no precisaramos fazer exerccios de completar), se j dizem ou no perodos

    compostos (e no precisaramos mais imaginar que temos que comear a ensin-los a ler

    apenas com frases curtas e idiotas), se eles sabem brincar na lngua do "p" (talvez

    ento no seja necessrio fazer tantos exerccios de diviso silbica), se j fazem

    perguntas, afirmaes, negaes e exclamaes (ento, no precisamos mais ensinar

    isso a eles), e assim quase ao infinito. Sobrariam apenas coisas inteligentes para fazer na

    aula, como ler e escrever, discutir e reescrever, reler e reescrever mais, para escrever e

    ler de forma sempre mais sofisticada etc.

  • NO EXISTEM LNGUAS UNIFORMES

    Algum que estivesse desanimado pelo fato de que parece que as coisas no

    do certo no BrasiI e que isso se deve ao "povinho" que habita esse pas (conhecem a

    piada?) poderia talvez achar que tem um argumento definitivo, quando observa que "at

    mesmo para falar somos um povo desleixado". Esse modo de encarar os fatos de

    linguagem bastante comum, infelizmente. Faz parte da viso de mundo que as pessoas

    tm a respeito dos campos nos quais no so especialistas. Em outras palavras, uma

    avaliao falsa. Mas, como existe, e como tambm um fato social associado

    linguagem, deve ser levado em conta. Por isso, para quem pretende ter uma viso mais

    adequada do fenmeno da linguagem, especialmente para os profissionais, dois fatos

    so importantes: a) todas as lnguas variam, isto , no existe nenhuma sociedade ou

  • comunidade na qual todos falem da mesma forma; b) a variedade linguistica o reflexo

    da variedade social e, como em todas as sociedades existe alguma diferena de status

    ou de papel entre indivduos ou grupos, estas diferenas se refletem na lngua. Ou seja: a

    primeira verdade que devemos encarar de frente relativa ao fato de que em todos os

    pases (ou em todas as "comunidades de falantes") existe variedade de lngua. E no

    apenas no Brasil, porque seramos um povo descuidado, relapso, que no respeita nem

    mesmo sua rica lngua. A segunda verdade que as diferenas que existem numa lngua

    no so casuais. Ao contrrio, os fatores que permitem ou influenciam na variao

    podem ser detectados atravs de uma anlise mais cuidadosa e menos anedtica.

    Um dos tipos de fatores que produzem diferenas na fala de pessoas so

    externos lngua. Os principais so os fatores geogrficos, de classe, de idade, de sexo,

    de etnia, de profisso etc. Ou seja: pessoas que moram em lugares diferentes acabam

    caracterizando-se por falar de algum modo de maneira diferente em relao a outro

    grupo. Pessoas que pertencem a classes sociais diferentes, do mesmo modo (e, de cena

    forma, pela mesma razo, a distncia s que esta social) acabam caracterizando sua

    fala por traos diversos em relao aos de outra classe. O mesmo vale para diferentes

    sexos, idades, etnias, profisses. De uma forma um pouco simplificada: assim como

    certos grupos se caracterizam atravs de alguma marca (digamos, por utilizarem certos

    trajes, por terem determinados hbitos etc.), tambm podem caracterizar-se por traos

    lingusticos. Para exemplificar: podemos dizer que fulano velho porque tem tal hbito

    (fuma cigarro sem filtro, por exemplo), ou porque fala "Brasil" com um "l" no final (ao invs

    de falar "Brasiu", com uma semivogal,como em geral ocorre com os mais jovens). Ou

  • seja, as lnguas fornecem meios tambm para a identificao social. Por isso,

    frequentemente estranho, quando no ridculo, um velho falar como uma criana, uma

    autoridade falar como uma pessoa simples etc. Por exemplo, muitos meninos no podam

    ou no querem usar a chamada linguagem correta na escola, sob pena de serem objeto

    de gozao por parte dos colegas, porque em nossa sociedade a correo considerada

    uma marca feminina.

    Tambm h fatores internos lngua que condicionam a variao. Ou seja, a

    variao de alguma forma regrada por uma gramtica interior da lngua. Por isso, no

    preciso estudar uma lngua para no "errar" em certos casos. Em outras palavras, h

    "erros" que ningum comete, porque a lngua no permite. Por exemplo, ouvem-se

    pronncias alternativas de palavras como caixa, peixe, outro: a pronncia padro incluiria

    a semi vogal, a pronncia no padro a eliminaria (caxa, pexe, otro). Mas nunca se ouve

    algum dizer peto ou jeto ao invs de peito e jeito. Por que ser que os mesmos falantes

    ora eliminam e ora mantm a semi vogal? Algum pode explicar por que o i cai antea de

    certas consoantes e no diante de outras? Algum pode explicar por que o u cai antes de

    t (otro) e o i no cai no mesmo contexto (peito, jeito)? Certamente, ento, o tipo de

    semivogal (i ou u) e a consoante seguinte so parte dos fatores internos relevantes para

    explicar esse fato que, de alguma forma, todo falante conhece.

    Outro exemplo: podem-se ouvir vrias pronncias, em vrios lugares do pas, do

    som que se escreve com a letra l em palavras como alguma: alguma, auguma, arguma. A

    variao tambm existir em palavras como planta: planta ou pranta (mas nunca

    ouviremos puanta). Mai, o l ser sempre um l em palavras coma lata. Ou seja: no fim da

  • slaba, ele varia; no meio, tambm (embora no com o mesmo nmero de variantes).

    Mas, no incio, nunca. E isso vale para falantes cultos e incultos.

    Mais exemplos: poderemos ouvir "os boi", "dois cara", "Comdia dos Erro", mas

    nunca "o bois", "um caras" ou "Comdia do erros". Ouviremos muitas vezes "ns vai",

    mas nunca "eu vamo(s)". Assim, as variaes lingusticas so condicionadas por fatores

    intemos lngua ou por fatores sociais, ou por ambos ao mesmo tempo.

    Alguns sonham com uma lngua uniforme. S pode ser por mania repressiva ou

    medo da variedade, que uma das melhores coisas que a humanidade inventou. E a

    variedade lingustica est entre variedades as mais funcionais que existem. Podemos

    pensar na variao como fonte de recursos alternativos: quanto mais numerosos forem,

    mais expressiva pode ser a linguagem humana. Numa lngua uniforme talvez fosse

    possvel pensar, dar ordens e instrues. Mas, e a poesia? E o humor? E como os

    falantes fariam para demonstrar atitudes diferentes? Teriam que avisar (dizer, por

    exemplo, "estou irritado", "estou vontade", "vou trat-lo formalmente")?

    E como produzir a uniformidade, se a variedade lingustica fruto da variedade

    social? Esta uma questo sem dvida interessante. Pesquisas feitas em vrios pases

    mostram que h uma diferena na fala de homens e de mulheres, por exemplo. A fala

    das mulheres mais semelhante norma culta do que a dos homens. Isso seria

    resultado de um comportamento lingustico mais "correto" por parte das mulheres,

    comportamento que resulta de valores que fazem com que esperemos comportamentos

    diferentes por parte de homens e de mulheres, sendo que esperamos comportamentos

    mais corretos (o que quer que sejam) por parte das mulheres. Comportar-se como

  • homem, era nossa sociedade inclui ser menos correto do que uma mulher (menos gentiI,

    menos educado, mais descuidado). O resultado de tais valores que, para um homem,

    falar corretamente mais ou menos como usar uma saia, segundo ilustrativa comparao

    do sociolinguista ingls Peter Trudgill.

    O que fazer para uniformizar a linguagem de homens e mulheres? No

    necessrio imaginar uma soluo radical, como eliminar um dos sexos. Mas, poder-se-ia

    questionar seriamente os valores machistas que produzem esta diferena. Nesse sentido,

    uma discusso sobre valores sociais pode ser uma aula de portugus mais valiosa e

    frutfera do que uma aula com exerccios para eliminar grias, regionalismos e solecismos.

    NO EXISTEM LNGUAS IMUTVEIS

    Uma das coisas que aprendemos na escola que o portugus veio do latim. Ou

    seja, que o portugus uma lngua que no foi sempre o portugus, no foi sempre como

    . Se estudssemos um pouco mais esse tipo de assunto, aprenderamos que tambm o

    latim uma lngua que veio de outras lnguas, e que o latim provavelmenie no foi a

    lngua falada pelos primeiros seres humanos. Isto : a) o latim no uma lngua

    totalmente pura; b) o latim tambm uma lngua que no permaneceu sempre igual a si

    mesma, qualquer que seja o estgio escolhido para anlise; c) as coisas no terminam

    com um exemplo em latim.

    Os fatos, grosseiramente, so da seguinte ordem: 1) o latim nem sempre foi o

    latim de Ccero, Csar, Virglio etc. Antes de s-lo, foi uma lngua "pouco cultivada". Em

  • primeiro lugar, apenas falada; em segundo, falada principalmente por pessoas no cultas,

    pois no havia "no incio" do latim tais pessoas cultas, como ocorreu mais tarde; 2) depois

    de ter sido lngua de Csar, Ccero etc., o latim mudou tanto que, entre outras coisas,

    veio a ser o francs, o italiano, o espanhol, o portugus etc.

    Ora, o que ocorreu com o latim no ocorreu por castigo ou por azar. Ocorreu com

    outras lnguas, como o alemo, o ingls, o grego, o portugus. Na verdade, com todas as

    lnguas. E continua ocorrendo. No h lngua que permanea uniforme. Todas as lnguas

    mudam. Esta uma das poucas verdades indiscutveis em relao s lnguas, sobre a

    qual no pode haver nenhuma dvida.

    Suponhamos que esta verdade fosse divulgada, que se soubesse desta

    caracterstica das lnguas como se sabe que a Terra gira ao redor do Sol, ou como se

    sabe que existem microorganismos que no vemos, mas que atuam, tanto que so

    responsveis por doenas, ou pela fermentao. Sem eles no teramos, por exemplo,

    paralisia infantil, aids (o que seria bom) e cerveja e champanhe (o que seria mau).

    Conhecida, esta verdade poderia, ento, ter consequncias, tanto no que se refere ao

    que pensamos sobre as lnguas no dia-a-dia quanto em relao aos princpios adotados

    no seu ensino. Por exemplo, no h razo de ordem cientfica para exigir que alunos

    ou outras pessoas conheam formas arcaicas, que nunca ouvem e que so raras

    mesmo nos textos escritos mais correntes. Dito de outro modo: se temos claro que as

    lnguas mudam, fica claro tambm por que os falantes no conhecem certas formas

    lingusticas: que elas no so mais usadas na poca em que os falantes se tornam

    falantes. Se no so usadas, no so ouvidas. Se no so ouvidas (e ouvidas muitas

  • vezes), no podem ser aprendidas.

    Ns nos acostumamos a pensar que h formas da lngua que no so mais

    usadas, que s os dicionrios registram e, por isso, so chamadas de arcasmos. Mas,

    nos acostumamos tambm a pensar que os arcasmos so sempre formas realmente

    antigas. Ora, isso um engano. H arcasmos mais arcaicos do que outros. H muitas

    formas que ns eventualmente pensamos que ainda so vivas, porque so ensinadas

    na escola e por isso so utilizadas eventualmente, mas, na verdade, j esto mortas, ou

    quase, porque no so mais usadas regularmente. Por exemplo, quem que encontra

    falantes reais que utilizam sempre as regncias de verbos como assistir, visar, preferir

    etc. como as gramtics mandam? O que estou sugerindo que, de fato, devemos

    considerar formas como "assistir ao jogo" como arcasmos e, consequentemente, formas

    como assistir o jogo como padres, "corretas". Simplesmente por uma razo: no

    portugus de hoje, 'ser espectador de' se diz assistir, e no assistir a. E quem que ouve

    falantes dizendo que lero, dormiro, comero? Se tais formas ocorrerem, ocorrero

    [olha a!) raramente, de preferncia na escrita, e como consequncia de um ensino

    explcito, quase como se se tratasse de formas de uma lngua estrangeira. Ou seja, tais

    formas so a rigor arcasmos, no se usam mais. Todos esto dizendo que "vo ler, vo

    dormir, vo comer". Por qu? Porque o portugus de hoje assim, aprendemos a falar

    assim porque todos falam assim. Mesmo as pessoas cultas. s ouvir suas entrevistas e

    discursos.

    A questo no , entretanto, saber se h ou no algum com autoridade (um

    gramtico, por exemplo) dizendo que agora se pode dizer assim ou assado. Que agora

  • falar assim ou assado est certo. O argumento interessante de outra natureza, no o de

    autoridade. O que estou afirmando que os fatos lingusticos so esses. E que contra

    tais fatos, no adianta espernear. Se ns espernearmos contra esses fatos, deveramos

    espernear contra todas as formas de mudana, inclusive as que ocorreram nos sculos

    III, X, XII, XVII etc. Porque s os fatos de hoje so ruins e devem ser desprezados? E tem

    mais: tais fatos podem ser explicados. Alm de poderem ser explicados, eles explicam,

    por sua vez, porque nossos alunos (ou nossos vizinhos) falam como falam. Alm de,

    evidentemente, explicarem tambm porque ns mesmos falamos assim... Ou seja,

    explicam porque falar assim no errado, mas simplesmente falar segundo as regras

    da lngua de hoje, do portugus vivo. Se pensssemos dessa forma em relao s

    lnguas, sem defender, explcita ou implicitamente, que as formas antigas so as nicas

    corretas ou, pelo menos, que so melhores que as atuais, nossa pedagogia das lnguas

    mudaria. Por exemplo, todos perceberamos que gastar um tempo enorme com regncias

    e colocaes inusitadas , a rigor, intil. A prova que a maioria dos que as estudam no

    aprende tais formas, ou, pelo menos, no as usa.

    H boas justificativas para defender a hiptese de que o ensino de formas raras e

    arcaicas no deveria ser importante na escola. Mas, que fique claro: no se trata agora

    de incentivar um preconceito contra o domnio dessas formas "escorreitas". No se trata

    de achar agora que aqueles que utilizam formas mais antigas que esto errados. Traia-

    se apenas de no haver preconceito contra o domnio e a utilizao das formas

    lingusticas mais recentes, ou que mais recentemente se tomaram, de fato, o novo

    padro. Ou, melhor dizendo, trata-se de aceitar que se utilizem tambm nos textos

  • escritos formas lingusticas mais informais (o que no quer dizer aceitar todas), que em

    geral consideramos aceitveis apenas na fala. A razo que estas formas, na verdade,

    so hoje as corretas, so elas que constituem a lngua padro, porque j so faladas e

    escritas pelas pessoas cultas do pas coisa de que elas, eventualmente, no se do

    conta.

    Haveria certamente muitas vantagens no ensino de portugus se a escola

    propusesse como padro ideal de lngua a ser atingido pelos alunos a escrita dos jornais

    ou dos textos cientficos, ao invs de ter como modelo a literatura antiga. Falo em

    literatura antiga porque, na moderna, se ns a lssemos, encontraramos muitas formas

    condenadas pelas gramticas. Seria certamente ridculo que condenssemos alunos por

    no utilizarem corretamente o verbo haver, e depois lssemos na aula o clebre poema

    de Drummond que comea assim: "No meio do caminho tinha uma pedra/ tinha uma

    pedra, no meio do caminho...". Ou, mesmo que o prestgio literrio do autor no seja igual

    ao de Drummond, seria estranho condenar um aluno por escrever (ou falar) como Chico

    Buarque: "Tem dias que a gente se sente/ como quem partiu ou morreu...".

  • FALAMOS MAIS CORRETAMENTE DO QUE PENSAMOS

    Uma das frases mais correntes sobre alunos ou outros cidados pouco cultos

    que falam tudo errado. Ela tem sido empregada tanto em relao a alunos quanto em

  • relao a pessoas de certas classes sociais, ou de outras regies do pas. No h nada

    mais errado do que pensar que aqueles de quem se diz que falam errado falam tudo

    errado. Ns j sabemos que a ideia segundo a qual se fala errado (quando no se fala

    como falamos ou como gostaramos que se falasse) uma ideia cientificamente

    problemtica, para dizer o mnimo. J vimos quanto preconceito h embutido nela. Mas,

    mesmo que admitssemos que falar diferente seja falar errado, deveramos, pelo menos,

    analisar os fatos para sermos objetivos na avaliao dos erros. Quais so mesmo os

    erros e quantos so? Qual o percentual de formas erradas numa pgina escrita ou em

    quinze minutos de fala? A resposta s pode vir depois de uma anlise. Fora disso,

    preconceito, ou pura impresso. Equivocada, em geral.

    Quando ouvimos a fala de algum, principalmente se se trata de algum diferente

    de ns (mais pobre, mais ignorante, de outra regio do pas), certamente percebemos em

    sua fala algumas caractersticas que nos chamam a ateno. A algumas dessas

    caractersticas estamos acostumados a chamar de erros. A tentao ser dizermos que

    Fulano fala tudo errado. Ou que fala de forma esquisita. O que acontece, de fato, que

    tal pessoa, na maior parte do tempo, fala exatamente como ns. Mas, as caractersticas

    diferentes, mesmo que sejam pouco numerosas, chamam muito a nossa ateno. Por

    isso, caracterizamos a fala do outro como se ela contivesse apenas formas "erradas".

    Para se ter uma ideia de quanto isso verdade, basta dizer que Labov, o sociolinguista

    mais conhecido, percebeu que as aparentemente numerosas diferenas de pronncia

    entre os diversos grupos de falantes de Nova York poderiam ser resumidas, na verdade,

    a sua pronncia de cinco sons: a ocorrncia ou no do r ps-voclico, a pronncia do th

  • surdo, do th sonoro, e o grau de abertura das vogais e e o. No que no haja outras

    diferenas. que estas chamam a ateno, diferenciam falantes, enquanto que outras

    diferenas no so consideradas pelos ouvintes. Ou seja, se um falante de Nova York

    disser the boy, ele ser classificado pelo ouvinte como bom ou mau falante, como mais

    ou menos culto etc., a depender da pronncia adotada para o primeiro som do artigo "the"

    e da vogal da palavra "boy". Isso quer dizer que no se presta ateno pronncia do "e"

    de "the", nem pronncia do "b" e do "y" de "boy".

    Transponhamos o problema para o portugus: se algum diz v sa (sem o

    ditongo de "vou" e sem o "r" de "sair"), ns praticamente no percebemos que houve um

    "erro". Mas, se algum disser "ns foi", esse "erro" percebido. que uma dessas

    formas j no distingue falantes, j que falantes de todos os grupos sociais a utilizam. A

    outra forma distingue falantes, porque certos grupos a utilizam e outros, no.

    Esse um lado da questo. Repetindo: h "erros" que chocam e "erros" que no

    chocam mais. Mas, o mais importante dar-nos conta de que no verdade que aqueles

    que "erram" erram tudo. De fato, se utilizarmos bons critrios para contar os "erros" e os

    acertos, concluiremos logo que rela-tivamente pequena a diferena entre o que um

    aluno (ou outro cidado qualquer) j sabe da sua lngua e o que lhe falta saber para

    dominar a lngua padro. Uma comparao bem feita entre o que igual e o que

    diferente na fala de pessoas diferentes de um pas como o Brasil mostra que as

    semelhanas so muito maiores que as diferenas. Isso, alis, verdadeiro tanto para o

    portugus do Brasil quanto para o ingls dos Estados Unidos. Para concluir isso, pode-se

    mesmo dispensar uma anlise em profundidade, que demandaria tempo e muito dinheiro

  • para ser feita. Uma anlise de um conjunto significtivo de textos escritos ou de falas

    gravadas de nossos alunos revelaria que isso sem dvida verdadeiro. Anlises um

    pouco cuidadosas mostram: a) que alunos acertam mais do que erram; b) que os erros

    so em geral hipteses significativas (se a comunidade de falantes no as aceita, elas

    so frequentemente abandonadas); c) que os erros so sempre os mesmos; d) que o

    nmero de erros bem maior do que os tipos de erros, o que provavelmente significa que

    a substituio de uma hiptese por outra que elimine um tipo de erro elimina muitos erros.

    Esclareamos melhor, custa de alguma repetio, duas coisas: a) como contar

    os erros; b) h mesmo mais acertos do que erros?

    H duas maneiras de contar erros: uma contar os erros individualmente, sem

    classific-los: a outra contar tipos de erros, isto , contar erros classificando-os. Se, ao

    invs de contar os erros, contarmos os tipos de erros, a impresso de que eles so pouco

    numerosos fica mais forte. Suponhamos que encontremos quem diga "os livro", "as casa",

    "os amigo". Trs erros? Depende do modo de contar. Eu diria que no. Que s h um

    erro (na comparao entre esta forma de falar e a forma considerada padro,

    "gramatical", bem entendido). Se um aluno tem esse tipo de problema na disciplina de

    portugus, o professor no ter que trabalhar para eliminar trs problemas, mas s um:

    para simplificar, trata-se de trocar uma regra de concordncia por outra. Ou de aprender

    tambm outra regra. Quando o aluno vier a dizer "os livros", ter aprendido uma regra

    alternativa e estar em condies de dizer, igualmente, "as casas" e "os amigos".

    Portanto, numa contagem inteligente, esse aluno teria cometido um erro, no trs, porque

    essa a contagem relevante para a aprendizagem, j que aprendemos por regras, no

  • por casos individuais. Imaginemos um aluno que diga (ou escreva) "As casa to boa".

    Alguns ficam aterrorizados com tais ocorrncias. Certamente, se se tratar de um aluno de

    colegial e ele escrever de tal forma por no conhecer outra, isso ser um srio problema

    (da escola...). Mas, imaginemos que queiramos comparar formas lingusticas, mais do

    que avaliar alunos. Comparemos esta forma com a forma dita correta, padro. Os "erros"

    seriam de concordncia de nmero, e a forma do verbo "estar" (to). Mas, vejamos o que

    h de correto, de igual ao padro: a concordncia de gnero est perfeita (isto , no h

    formas como "Os casa", "As casa to bom"); a sintaxe de colocao a mesma do

    portugus padro, isto , esse falante no est dizendo, por exemplo, "Casas as boa

    to", "As to boa casas"," As boa to casa" etc. Ou seja, para uma dezena de erros

    possveis, nosso mau aluno hipottico cometeu s dois!

    Professores desesperados poderiam verificar duas coisas nos textos de seus

    alunos que cometem erros de ortografia: classificar os tipos de erros (os que dependem

    da pronncia local, os que se devem a incoerncias do sistema ortogrfico etc.) e, em

    seguida, fazer contagens do seguinte tipo: para cada tipo de erro possvel, quantas vezes

    os alunos acertam e quantas vezes erram. Minha experincia que os acertos so

    sempre mais numerosos do que os erros. Na hora de avaliar, os professores aceitariam

    tirar um ponto para cada erro e dar um ponto para cada acerto?

  • LNGUA NO SE ENSINA, APRENDE-SE

    Um dos ainda numerosos "mistrios" em relao ao ser humano diz respeito ao

    fato de que todos os indivduos da espcie salvo por algum problema muito grave

    aprendem a falar com uma rapidez espantosa, se considerarmos a complexidade do

    objeto aprendido, uma lngua. Poder-se-ia objetar que alguns aprendem porque falam de

    forma simplificada, ou porque sua lngua um tanto primitiva etc. J vimos que

    afirmaes como essa refletem apenas preconceitos, desconhecimento da verdadeira

    natureza das lnguas, que so muito complexas, mesmo no caso daquelas que pensamos

    que so simples e mesmo no caso dos dialetos que pensamos que so os mais simples

    das lnguas que acreditamos serem as mais simples.

    O que ainda mais espantoso que todos aprendem com velocidade espantosa

    um objeto complexo, e sem ser ensinados. De fato, os pais, ou adultos em geral, no

    ensinam as lnguas s crianas. No, pelo menos, se entendermos por ensino aquele

    conjunto de atividades que se do, tipicamente, numa escola. Alguns, um pouco mais

    maldosos mas talvez no muito distantes da verdade talvez venham a pensar que

    as crianas do mundo todo, de todas as pocas, aprendem suas lnguas exatamente

    porque no so ensinadas exatamente porque pais no agem com elas como se

    houvesse necessariamente fases, mtodos, exerccios...

  • Pode ser que esta opinio no esteja muito longe da verdade. Disse acima que a

    questo da aquisio da linguagem um tanto misteriosa. De fato, ningum sabe muito

    bem o que se passa na mente humana, ou, mesmo, o que h nela eventualmente de

    inato, de herana biolgica. O fato observvel que todos falam, e muito, e bem, a partir

    dos trs anos de idade. E, por mais que seja efetiva e constante a presena dos adultos

    junto s crianas, por mais que haja entre eles atividades lingusticas, no h nada que

    se assemelhe a urn ensino formal de uma disciplina, e, muito menos, algo que se

    assemelhe a. exerccios.

    Isso no significa que se aprenda facilmente. Na verdade, o trabalho dos adultos

    e das crianas contnuo e, s vezes, difcil. Principalmente, constante. Ou, mais

    fundamental ainda uma atividade significativa. Esta parece ser a questo principal e

    crucial. Qualquer que seja a teoria que adotemos sobre o que seja uma criana j

    falamos disso mais acima , isto , quer sejamos inatistas, interacionistas ou

    camportamentalistas, com todas as variaes que esses rtulos permitem, de qualquer

    forma temos que reconhecer que os adultos no propem exerccios de linguagem s

    crianas na vida cotidiana. Deixados de lado detalhes (s vezes certamente importantes),

    o que podemos observar que ocorre um uso efetivo da linguagem, um uso sempre

    contextualizado, uma tentativa forte de dar sentido ao que o outro diz etc. E, certamente,

    nenhum de ns faria, nem conhece quem faa, coisas como as seguintes: propor a uma

    criana de dois anos (ou menos) que faa tarefas como completar, procurar palavras de

    um certo tipo num texto, construir uma frase com palavras dispersas, separar slabas,

    fazer frases interrogativas, afirmativas, negativas, dar diminutivos, aumentativos, dizer

  • alguma coisa vinte ou cem vezes, copiar, repetir, decorar conjugaes verbais etc. Tudo

    isso so exemplos de exerccios. Tudo isso se faz nas escolas, em maior ou menor

    quantidade. Nada disso se faz na vida real, porque nada disso ajuda ningum a aprender

    uma lngua. Em resumo, poderamos enunciar uma espcie de lei, que seria: no se

    aprende por exerccios, mas por prticas significativas. Observemos como esta afirmao

    fica quase bvia se pensarmos em como uma criana aprende a falar com os adultos

    com quem convive e com seus colegas de brinquedo e de interao em geral. O domnio

    de uma lngua, repito, o resultado de prticas efetivas, significativas, contextualizadas.

    A escola poderia aprender muito com os procedimentos "pedaggicos" de mes, babs e

    mesmo de crianas. O fato do que as crianas no faam exerccios, no repitam formas

    fora de um contexto significativo no significa que no sejam expostas suficientemente s

    lnguas. que pode no parecer, mas falamos tanto e as regras so relativamente to

    poucas que acabamos por aprender. Por isso, crianas com alguns anos de idade

    utilizam o tempo todo formas que sequer imaginamos, mas que veramos claramente que

    conhecem, se examinssemos sua fala com cuidado. Perguntam, afirmam, exclamam,

    negam, produzem perodos complexos e consideram significativamente o contexto

    sempre que lhes parecer relevante ou tiverem oportunidade. Como aprenderam?

    Ouvindo, dizendo e sendo corrigidas quando utilizam formas que os adultos nao aceitam.

    Sendo corrigidas: isto importante. No processo de aquisio fora da escola existe

    correo. Mas no existe reprovao, humilhao, castigo, exerccios de fixao e de

    recuperao etc.

    O modo de conseguir na escola a eficcia obtida nas casas e nas ruas "imitar"

  • da forma mais prxima possvel as atividades lingusticas da vida. Na vida, na rua, nas

    casas, o que se faz falar e ouvir. Na escola, as prticas mais relevantes sero, portanto,

    escrever e ler. Claro que se falar s pampas na escola, e, portanto, se ouvir, na mesma

    proporo (um pouco menos, um pouco mais...). Mas, dado o projeto da escola, ter e

    escrever so as atividades importantes. Como aprendemos a falar? Falando e ouvindo.

    Como aprenderemos a escrever? Escrevendo e lendo, e sendo corrigidos, e

    reescrevendo, e tendo nossos textos lidos e comentados muitas vezes, com uma

    frequncia semelhante frequncia da fala e das correes da fala. claro que o

    aprendizado no ser muito eficiente se tais atividades forem apenas excepcionais. Mas,

    se forem constantes, com as cabeas que temos seja l o que for que tenhamos

    dentro delas ou associado ao que temos dentro delas certamente seremos leitores e

    "escrevinhadores" sem traumas e mesmo com prazer, em pouco tempo. S no

    conseguiremos se nos atrapalharem, se nos entupirem de exerccios sem sentido.

    Falar um trabalho (certamente menos cansativo que outros). Ler e escrever so

    trabalhos. A escola um lugar de trabalho. Ler e escrever so trabalhos essenciais no

    processo de aprendizagem. Mas, no so exerccios. Se no passarem de exerccios

    eventuais, apenas para avaliao, certamente sua contribuio para o domnio da escrita

    ser praticamente nula. Para se ter uma ideia do que significaria escrever como trabalho,

    ou significativamente, ou como se escreve de fato "na vida", basta que verifiquemos

    como escrevem os que escrevem: escritores, jornalistas. Eles no fazem redaes. Eles

    pesquisam, vo rua, ouvem os outros, lem arquivos, lem outros livros. S depois

    escrevem, e lem e relem e depois reescrevem, e mostram para colegas ou chefes,

  • ouvem suas opinies, e depois reescrevem de novo. A escola pode muito bem agir dessa

    forma... desde que no pense s em listas de contedos e em avaliao ''objetiva".

    SABEMOS O QUE OS ALUNOS AINDA NO SABEM?

    De uma certa forma, tudo o que foi dito anteriormente so apenas coisas bvias,

    de bom senso. Mas, talvez o que se vai ver agora seja ainda mais bvio. Nlson

    Rodrigues diria que se trata do bvio ululante. De todas as teses sobre lngua e seu

    ensino que estou defendendo aqui, a que se segue a mais evidente de todas e, talvez,

    a menos praticada. Em relao s outras, bem ou mal, as atitudes, em geral, so um

    pouco heterogneas. Mas, em relao aos contedos de ensino, parece-me que a atitude

    dos profissionais dos diversos escales, desde os das Secretarias de Educao at os

    professores, passando por coordenadores e diretores, de "seriedade" e cerimnia

    tamanha que merece ser desmistificada.

    Nos cursos de didtica que fazemos nas faculdades ou nos cursos de magistrio,

    aprendemos a elaborar planos de cursos, com objetivos, estratgias e quejandos. N

    minha opinio, trata-se de trabalho e papelada inteis. Por isso, vou fornecer aqui uma

    "receita" bvia para estipular programas de ensino para lngua materna nos diversos anos

    escolares (com a ressalva de que jamais me refiro alfabetizao, pelo menos nos

    estgios iniciais refiro-me, portanto, a programas de portugus para alunos que j

    lem e escrevem minimamente). O princpio o mais elementar possvel. O que j

    sabido no precisa ser ensinado.

    Seguindo esse princpio, os programas anuais poderiam basear-se num

  • levantamento bem feito do conhecimento prtico de leitura e escrita que os alunos j

    atingiram e, por comparao com o projeto da escola, uma avaliao do que ainda lhes

    falta aprender Nada de consultar manuais e guias para saber o que se deve ensinar, por

    exemplo, numa sexta srie. Nada, portanto, desses programas pr-fabricados para ir do

    simples ao complexo, presos a uma tradio que no se justifica a no ser por ser

    tradio. Por exemplo: para descobrir o que os alunos de uma prxima sexta srie j

    sabem e o que ainda no sabem, basta analisar os cadernos e demais materiais dos

    alunos que acabaram de concluir a quinta srie na mesma escola, com um professor

    conhecido na escola e com quem se pode discutir alternativas. Adotando esse critrio

    para todas as sries, saberemos o que os alunos j dominam realmente e o que lhes falta

    ainda, em relao ao portugus padro (escrito, principalmente). Descobriremos que

    livros j leram, como escrevem, quais os principais problemas que ainda tm (se ainda os

    houver), aps determinado nmero de anos na escola. Com base em tal levantamento,

    organizaremos os "problemas" em sries, segundo sua especificidade e eventual

    dificuldade, definida com base tambm na psicologia de aprendizagem que adolamas na

    escola. Assim, alguns dos problemas sero postos como prioritrios, exatamente aqueles

    que achamos que alunos tpicos de determinada srie podem eliminar. Outros, podero

    ser deixados para sries mais avanadas (ou, peIo menos, no sero os prioritrios numa

    determinada srie). No se pode esquecer, alm disso, que o passar do tempo um fator

    importante de aprendizado lingustico, porque, na nossa sociedade, como em outras, o

    aumento da idade dos jovens implica numa diversificao e sofisticao da interao

    social, o que acarreta uma multiplicao dos recursos de linguagem que eles aprendem a

  • manipular, alm de descobrir o valor social associado a tais recursos isto , aprendem

    a distinguir estilos diversos e avali-los. Alm disso, se a escola tiver um projeto de

    ensino interessante, atravs da leitura esse aluno ter tido cada vez mais contato com a

    lngua escrita, na qual se usam as formas padres que a escola quer que ele aprenda. Se

    fizermos este tipo de levantamento de forma adequada por vrios anos, cada escola

    acabar por saber com bastante clareza o que lhe cabe no ensino do padro e o que os

    alunos aprendem fora da escola.

    Assim, por exemplo, provavelmente concluiremos que no necessrio estudar

    gnero, nmero, concordncia etc., a no ser quando os alunos efetivamente erram e

    naqueles casos em que erram. Ou seja: h uma grande probabilidade de que, na maioria

    absoluta dos casos em que a estrutura da lngua prev a ocorrncia do fenmeno da

    concordncia, os erros sejam pouco numerosos. Provavelmente haver mais casos

    problemticos de concordncia verbal do que de concordncia nominal. Neste ltimo

    caso, haver problemas apenas nos lugares de sempre: palavras com "gnero duvidoso"

    (ou seja, com variao de gnero), casos de sujeitos compostos com elementos

    masculino e feminino e alguns outros casos raros. Diria que estes casos no so do tipo

    em que melhor prevenir do que remediar. Se ocorrerem problemas, que se trabalhe

    sobre eles. Se no ocorrerem, no h porque trabalhar com eles. O mesmo vale para

    numerosas outras lies de gramtica normativa. Por exemplo: provavelmente uma

    enorme perda de tempo ensinara alunos de primeiro grau que existem diminutivos e

    aumentativos, para, em seguida, solicitar que efetuem exerccios do tipo "d o diminutivo

    de", "d o aumentativo de". S vale a pena trabalhar sobre tais questes para chamar a

  • ateno para os valores de tais formas, para o fato de que h formas peculiares (como

    "copzio" e "corpsculo", por exemplo). Mesmo nesses casos, necessrio estar atento

    ao uso e ao sentido reais de tais palavras, para que no ocorra que se ensine que

    "corpsculo" o diminutivo de "corpo" em qualquer contexto; para isso, basta dar-se

    conta de que em circunstncias e com sentidos diferentes que dizemos "que corpinho!"

    e " h corpsculos visveis apenas com instrumentos como os microscpios".

    Em resumo, parece razovel ensinar apenas quando os alunos erram,

    exatamente como fazem os adultos com as crianas. Se os alunos utilizam estruturas

    como "os livro", que essas estruturas sejam objeto de trabalho; mas se nunca dizem

    "vaca preto", para que insistir em estudar o gnero de "vaca"?

    Vou fazer uma comparao com o ensino de outra lngua para que as coisas

    fiquem bem claras, para que se possa perceber claramente qual o esprito que preside

    o ensino de lngua materna para alunos que j falam. Em geral, a tradio to forte que

    no conseguimos ver o que de fato fazemos quando ensinamos uma lngua que os

    alunos conhecem fazendo de conta que eles no a conhecem. Tentemos colocar-nos em

    outra posio, para efeito de raciocnio: pensemos o que seria ensinar ingls, no Brasil,

    para crianas que, por alguma razo, aparecessem nas nossas escolas falando em

    ingls. Certamente, no lhes ensinaramos o que lhes ensinamos, isto , uma lngua

    "desde o incio". Por que temos que "comear do comeo" nas aulas de ingls? Porque

    nossos alunos no falam ingls. Mas, por que fazemos coisas semelhantes nas aulas de

    portugus, se os alunos falam portugus o tempo todo? No seria melhor ensinar-lhes

    apenas o que no sabem?

  • ENSINAR LNGUA OU ENSINAR GRAMTICA ?

    Todas as sugestes feitas nos textos anteriores s faro sentido se os

    professores estiverem convencidos ou puderem ser convencidos de que o domnio

    efetivo e ativo de uma lngua dispensa o domnio de uma metalinguagem tcnica. Em

    outras palavras, se ficar claro que conhecer uma lngua uma coisa e conhecer sua

    gramtica outra. Que saber uma lngua uma coisa e saber analis-la outra. Que

    saber usar suas regras uma coisa e saber explicitamente quais so as regras outra.

    Que se pode falar e escrever numa lngua sem saber nada "sobre" ela, por um lado, e

    que, por outro lado, perfeitamente possvel saber muito "sobre" uma lngua sem saber

    dizer uma frase nessa lngua em situaes reais. Para dar um exemplo bvio, sabe

    evidentemente mais ingls uma criana de trs anos que fala ingls usualmente com os

    adultos e outras crianas para pedir coisas, chingar, reclamar ou brincar, do que algum

    que tenha estudado a gramtica do ingls durante anos, mas no tem condies de guiar

    um turista americano para passear numa cidade brasileira.

    No vale a pena recolocar a discusso pr ou contra a gramtica, mas preciso

    distinguir seu papel do papel da escola que ensinar lngua padro, isto , criar

    condies para seu uso efetivo. perfeitamente possvel aprender uma lngua sem

    conhecer os termos tcnicos com os quais ela analisada. A maior prova disso que em

    muitos lugares do mundo se fala sem que haja gramticas codificadas, e sem as quais

  • evidentemente no pode haver aulas de gramtica como as que conhecemos. Espero

    que ningum diga que no sabem sua lngua os falantes de sociedades grafas, isto ,

    nas quais no h escrita e muito menos gramticas, no sentido de listas de regras ou

    procedimentos de anlise. Mas, no s entre os que poderiam ser chamados

    preconceituosamente de primitivos que isso ocorre. Tentemos responder a seguinte

    pergunta: que gramtica do grego consultaram squilo e Plato? Ora, no existiam

    gramticas gregas (a no ser na cabea dos falantes, isto , eles sabiam grego). As

    primeiras obras que poderiam ser chamadas de gramticas (mas, mesmo assim, eram

    bastante diferentes das nossas), surgem no segundo sculo antes de Cristo apenas, e

    no surgem para que possam ser aprendidas pelos falantes, mas para orgenizar certos

    princpios de leitura que permitissem ler textos antigos, exatamente porque o grego ia

    mudando e, sem poder aprender o grego antigo, como poderiam os novos falantes

    entender textos antigos?

    Ou seja, os gregos escreveram muito ames de existir a primeira gramtica

    grega, o mesmo valendo, evidentemente, para os escritores latinos, portugueses,

    espanhis etc. Seria interessante que ficasse claro que so os gramticos que consultam

    os escritores para verificar quais so as regras que eles seguem, e no os escritores que

    consultam os gramticos para saber que regras devem seguir. Por isso, no faz sentido

    ensinar nomenclaturas a quem no chegou a dominar habilidades de utilizao corrente e

    no traumtica da lngua.

    Quando se discute ensino de lngua e se sugere que as aulas de gramtica

    sejam abolidas, ou abolidas nas sries iniciais ou, pelo menos, que no sejam as nicas

  • aulas existentes na escola, logo se levantam objees baseadas nos vestibulares e

    outros testes, como os concursos pblicos, nos quais seria impossvel ser aprovado sem

    saber gramtica. Claro que este fato deve ser considerado. Mas, adequadamente. Se

    verificssemos os fatos e no nossa representao deles (fora o achismo!), veramos que

    o conhecimento explcito de gramtica no to relevante nessas circunstncias. Por

    vrias razes: a) quem elabora provas de portugus so, em geral, professores de

    portugus basta, portanto, que os especialistas mudem de estratgia de avaliao; b)

    em muitos vestibulares e outras provas, h questes de gramtica, verdade. Mas h

    tambm questes de literatura e de interpretao de textos. Por que, ento, damos tanta

    nfase gramtica, ao invs de invertermos ou pelo menos equilibrarmos os critrios de

    importncia, dando mais espao em nossas aulas literatura e interpretao de textos?

    c) em muitos testes, vestibulares includos, a redao eliminatria. Portanto, no

    verdade que crucial para a aprovao a gramtica; d) admitindo que a gramtica fosse

    importante, ento, deveramos estar formando alunos que teriam notas prximas de dez

    em provas de gramtica. Mas, o que se v so alunos que, depois de uma dcada de

    aulas de gramtica, tiram notas mais prximas de um do que de dez. Ou ser que no

    porque no sabem gramtica que tm notas baixas? Se for, s h uma explicao: que

    as provas no sao compostas apenas de questes de gramtica. Mas, ento...

    Falar contra a "gramatiquice" no significa propor que a escola s seja "prtica",

    no reflita sobre questes de lngua. Seria contraditrio propor esta atitude,

    principalmente porque se sabe que refletir sobre a lngua uma das atividades usuais

    dos falantes e no h razo para reprimi-la na escola. Trata-se apenas de reorganizar a

  • discusso, de alterar prioridades (discutir os preconceitos certamente mais importante

    do que fazer anlise sinttica eu disse mais importante, o que significa que a anlise

    sinttica importante, mas menos...). Alm do mais, se se quiser analisar fatos de

    lngua, j h condies de faz-lo segundo critrios bem melhores do que muitos dos

    utilizados atualmente pelas gramticas e manuais indicados nas escolas.

    Por ltimo, para coroar uma srie de obviedades, uma ltima: as nicas pessoas

    em condies de encarar um trabalho de modificao das escolas so os professores.

    Qualquer projeto que no considere como ingrediente prioritrio os professores desde

    que estes, por sua vez, faam o mesmo com os alunoscertamente fracassar.

  • SEGUNDA PARTE

    INTRODUO

    Na primeira parte, apresentei um conjunto de argumentos que, penso, poderiam

    convencer os leitores de que completamente desnecessrio ensinar gramtica na