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MARÍLIA KÖENIG POR UMA TEORIA NÃO-OFICIAL DA COMUNICAÇÃO: O JORNALISMO COMO TEMA DA OBRA RECORDAÇÕES DO ESCRIVÃO ISAÍAS CAMINHA, DE LIMA BARRETO TUBARÃO, 2005.

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  • MARLIA KENIG

    POR UMA TEORIA NO-OFICIAL DA COMUNICAO: O

    JORNALISMO COMO TEMA DA OBRA RECORDAES DO

    ESCRIVO ISAAS CAMINHA, DE LIMA BARRETO

    TUBARO, 2005.

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    MARLIA KENIG

    POR UMA TEORIA NO-OFICIAL DA COMUNICAO: O

    JORNALISMO COMO TEMA DA OBRA RECORDAES DO

    ESCRIVO ISAAS CAMINHA, DE LIMA BARRETO

    Dissertao apresentada ao Curso de Mestrado em Cincias da Linguagem como requisito parcial obteno do grau de Mestre em Cincias da Linguagem Universidade do Sul de Santa Catarina. Orientador: Prof. Dr. Fbio de Carvalho Messa

    TUBARO, 2005

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    MARLIA KENIG

    POR UMA TEORIA NO-OFICIAL DA COMUNICAO: O

    JORNALISMO COMO TEMA DA OBRA RECORDAES DO

    ESCRIVO ISAAS CAMINHA, DE LIMA BARRETO

    Esta dissertao foi julgada adequada obteno do grau de Mestre em Cincias da Linguagem e aprovada em sua forma final pelo Curso de Mestrado em Cincias da Linguagem da Universidade do Sul de Santa Catarina. Tubaro- SC, 21 de outubro de 2005.

    ______________________________________________________

    Prof. Dr. Fbio de Carvalho Messa (orientador)

    Universidade do Sul de Santa Catarina

    ______________________________________________________

    Prof. Dr. Fernando Simo Vugman

    Universidade do Sul de Santa Catarina

    ______________________________________________________

    Prof. Dr. Tnia Regina Oliveira Ramos

    Universidade de Federal de Santa Catarina

  • 4

    DEDICATRIAS

    Dedico este trabalho a todas as pessoas que me auxiliaram a chegar at aqui. Em especial a meus pais, meus grandes incentivadores, esta a minha maneira de demonstrar toda a minha gratido e expressar meu amor. Vencemos mais uma etapa!

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    AGRADECIMENTOS

    Agradeo, em primeiro lugar, a Deus, por me permitir dar mais este importante passo em direo ao crescimento pessoal e profissional. Tambm a meus pais, Teresinha e Clair, e minha irm Izabela, agradeo por terem me apoiado durante toda a execuo deste. Agradeo, por fim, equipe docente do Mestrado em Cincias da Linguagem, em especial ao meu orientador e amigo, Dr. Fbio de Carvalho Messa, que partilhou comigo o esforo e o fascnio de escrever sobre um tema complexo e, ao mesmo tempo, saudosista e atual, marca da obra de Lima Barreto.

  • 6

    Ler os livros de Lima Barreto (...) um exerccio de conscincia histrica que conta com a vantagem, como poucas vezes noutro escritor brasileiro, de um difcil testemunho: constatar como a vida, e nesta a opresso e o fracasso, se converte em literatura.

    Antonio Arnoni Prado

  • 7

    RESUMO

    Este trabalho se prope a analisar como o jornalismo tematizado em Recordaes do escrivo Isaas Caminha, de Lima Barreto (1909). Nesse sentido, ser visto de que maneira a referida obra descreve a prtica jornalstica e os valores da sociedade da poca, bem como suscita uma reflexo acerca do jornalismo da atualidade. As teorias da literatura e do jornalismo serviro de base para a identificao do jornalismo como tema na Literatura. Tambm o conceito de tema ser base para essa parte inicial. As concepes de polifonia e dialogismo (BAKHTIN, 1992, 2003), sero levados em conta a fim de que se possa compreender como o livro de Lima Barreto ora analisado se configura como uma possvel stira realidade vivida pelo autor. Verificar-se- de que modo este se configura como livro-resistncia em contraposio ao conceito de livro-espelho. Palavras-chave: Lima Barreto, resistncia, literatura, jornalismo.

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    ABSTRACT

    This work will analyze as the journalism is the theme of the in the novel Recordaes do escrivo Isaas Caminha, by Lima Barreto (1909). It will be seen how this history describes the journalistic pratices and the values of the society of time which it was written, and also how it excites a reflection about journalism nowadays. Theories of literature and the journalism will serve as base for the identification of journalism as a subject in the literature. Also the concept of theme will be base for this initial part. The conceptions of polyphony and dialogism (BAKHTIN, 1992, 2003), will be taken in account so that if it could be understood as the novel of Lima Barreto configures as a possible satire of the reality lived for the author. It will be verified which way the novel is configured as in agreement resistance work in contraposition to the mirror work concept. Key-words: Lima Barreto, resistance, literature, journalism.

  • 9

    SUMRIO

    SUMRIO.............................................................................................................................................................. 9

    1 INTRODUO ............................................................................................................................................... 11 1.1 PROBLEMA: DIRETRIZES DO TRABALHO..................................................................................... 11 1.2 OBJETIVOS ........................................................................................................................................... 12 1.3 JUSTIFICATIVA.................................................................................................................................... 13 1.4 METODOLOGIA ................................................................................................................................... 14

    2 O JORNALISMO COMO TEMA............................................................................................................ 15 2.1 CONTEXTUALIZAO DA OBRA .................................................................................................... 15 2.2 CONCEPES DE TEMA .................................................................................................................... 19

    2.2.1 O tema como crtica ........................................................................................................................... 24 2.3 O SUPOSTO CARTER AUTOBIOGRFICO ................................................................................... 26 2.4 RELAES DA TRAMA COM OS PRESSUPOSTOS DA TEORIA CRTICA ................................ 35

    2.4.1 Breve panorama das teorias do jornalismo ......................................................................................... 38 2.4.2 A crtica ao mito do interesse pblico................................................................................................. 43

    2.5 LITERATURA E RESISTNCIA.......................................................................................................... 46 2.5.1 Lima Barreto e a literatura de protesto: um salto na histria da literatura brasileira atravs da resistncia .................................................................................................................................................... 49

    2.6 A PRESENA DO AUTOR-NARRADOR ........................................................................................... 50 2.6.1 Os literatos e o jornalismo ............................................................................................................. 53

    2.7 BAKHTIN: ANLISE DO JORNALISMO COMO TEMA EM LIMA BARRETO............................ 56 2.7.1 A relao autor-personagem sob a tica bakhtiniana..................................................................... 58 2.7.2 Dilogo versus monlogo no campo de batalha social, a linguagem ............................................ 61 2.7.3 O contexto extra verbal da linguagem: o embate entre as foras centrpetas e as centrfugas....... 67

    3 A RELAO DA TRAMA DE LB COM A REALIDADE ......................................................................... 69 3.1 A CHAVE DA NARRATIVA DE LIMA BARRETO: UM AUTNTICO ROMAN CLF ................ 70

    3.1.1 LB: viso metonmica da sociedade por intermdio da stira............................................................. 73 3.2 O JORNALISMO NA BERLINDA ........................................................................................................... 74

    3.2.1 A fabricao de verdades................................................................................................................. 77 3.2.2 Inexistncia de tica............................................................................................................................ 82 3.2.3 Mediocridade ...................................................................................................................................... 83 3.2.4 Sensacionalismo.................................................................................................................................. 86 3.2.5 Ideologia dominante............................................................................................................................ 91

  • 10

    3.3 A NEGAO DO PURISMO LINGSTICO........................................................................................ 94 3.4 A CONTRIBUIO DE LIMA BARRETO PARA UMA IMPRENSA (AO MENOS) MAIS REFLEXIVA 100

    4 CONCLUSO ................................................................................................................................................ 102

    REFERNCIAS ................................................................................................................................................ 108

    ANEXOS ............................................................................................................................................................ 112

  • 11

    1 INTRODUO

    1.1 PROBLEMA: DIRETRIZES DO TRABALHO

    Este trabalho consiste na anlise do livro Recordaes do escrivo Isaas

    Caminha, de Lima Barreto, datada de 1909. Dentre os aspectos destacados, um deles, em

    especial, diz respeito tematizao do jornalismo enquanto objeto de observao e crtica.

    Vai abordar como o jornalismo foi tematizado na literatura. Nesse sentido, ser

    percebido, por intermdio da anlise da obra, como esta reflete a prtica jornalstica e expe,

    de forma metonmica, a crtica ao jornalismo e aos literatos como um repdio sociedade

    carioca da poca em que Lima Barreto viveu.

    A crtica ferina realidade vivenciada pelo protagonista da obra reflexo de uma

    crtica burguesia carioca. Tal fator faz de Recordaes de Isaas Caminha um romance de

    cunho social, oriundo da chamada literatura engajada ou, de acordo com algumas vertentes da

    crtica e historiografia literria nacional, um documento autobiogrfico.

    As teorias literrias serviro de base para a identificao do jornalismo como tema

    na literatura. Sero destacados os efeitos do cruzamento narrativo entre o jornalismo e a

    literatura. Tambm o conceito de tema ser base para o referencial terico.

  • 12

    As concepes de polifonia e dialogismo (BAKHTIN, 1992, 2003) sero levadas

    em conta a fim de que se possa compreender a como a trama de Lima Barreto ora analisada se

    configura como uma possvel stira realidade vivida pelo autor.

    1.2 OBJETIVOS

    O objetivo deste trabalho mostrar que Recordaes do escrivo Isaas Caminha

    constitui-se como livro-resistncia conforme a tipologia desenvolvida por Alfredo Bosi

    (2003), em contraposio ao conceito de livro-espelho.

    Um outro objetivo apontar como a crtica empreendida ao jornalismo pelo autor,

    ao longo da obra, reflete metonimicamente o seu protesto em relao aos valores da burguesia

    carioca e realidade dos meios de comunicao, uma vez que o jornalismo que descreve

    guarda semelhana com as prticas de veculos sensacionalistas da vida real, de acordo com

    os pressupostos da teoria crtica.

    A relao com o real, nesse sentido, significativa, uma vez que se confere obra

    um carter autobiogrfico. Pretende-se perceber, na trama, quais so os indcios da resistncia

    do autor aos padres lingsticos, literrios e sociais vigentes poca do lanamento.

  • 13

    1.3 JUSTIFICATIVA

    O tema foi escolhido, em primeira instncia, por se acreditar que a reflexo sobre

    a confluncia entre jornalismo e literatura produtiva. Mais especificamente, optou-se por

    este tema pelo interesse em estudar obras que se configurem como literatura de resistncia,

    tratando de temticas crticas e marcadas pela polmica, como o caso da obra ora analisada.

    Outro fator motivador foi a relevncia do trabalho de Lima Barreto, o qual, por sua

    militncia em favor de uma literatura mais prxima do real, se props a redigir na lngua do

    povo e criticar a excluso e o preconceito ao qual este era relegado.

    O jornalismo, sobretudo no romance jornalstico1, aproxima-se da literatura pela

    dimenso mais humanizada que se busca evidenciar nos relatos (como nas reportagens, por

    exemplo). Nestes relatos, a neutralidade exigida do reprter d lugar evidente

    subjetividade do autor-narrador, terminologia adotada para definir o foco narrativo desta obra.

    Este, ao se posicionar, deixa de ser observador (aparentemente) neutro, no

    ocultando o seu ponto de vista acerca de um acontecimento, sem, entretanto, ser infiel

    verdade dos fatos. Simultaneamente, assume a posio de narrador e personagem.

    1 Acerca do romance jornalstico, cabe destacar a anlise desenvolvida por Davi Arrigucci Jnior (cf. BIANCHIN, 1994, p. 22). Nela, o pesquisador destaca que narrativas como estas se utilizavam de tcnicas advindas do Naturalismo, cujas bases, deterministas, davam s narrativas um carter de mostra da realidade, tal como em O Cortio, de Aluzio de Azevedo (destacada por Bosi (1982) como a mais expressiva obra dessa fase da Literatura), alm de tcnicas prprias da narrativa jornalstica. Neila Bianchin (1994), na obra que trata da natureza do romance-reportagem discorre a respeito do trabalho de Rildo Cosson Mota. Para o autor, este compe um gnero autnomo a ser distinguido tanto do jornalismo quanto da literatura enquanto discursos sociais e esteticamente demarcados. Obras dessa natureza representam, portanto, um ponto de confluncia entre literatura e jornalismo. Nestas, fico e realidade se misturam por intermdio da utilizao de tcnicas jornalsticas (que tratam do real) s abordagens literrias (voltadas ao ficcional).

  • 14

    1.4 METODOLOGIA

    Para analisar a obra Recordaes do escrivo Isaas Caminha, sero observados

    alguns aspectos que aproximam a obra da realidade. Para tanto, a noo de tema ser um dos

    enfoques da anlise, a fim de se verificar as relaes de verossimilhana que a obra guarda

    com o contexto em que foi composta.

    Para vislumbrar o modo como o autor empreende sua crtica, tanto pela linguagem

    utilizada quanto pelas vozes que permeiam o seu discurso, os conceitos de dialogismo e

    polifonia institudos por Bakhtin (1992, 2003), sero fundamentais anlise, tendo em vista o

    carter de obra de resistncia, haja vista a militncia literria qual o autor dedicou sua vida.

    Nesse contexto, o entendimento do romance de Lima Barreto como fora centrfuga,

    desenvolvido tambm por Bakhtin (2003) levado em conta.

    Noes de tema - como crtica sociedade, de forma geral, e ao Jornalismo, em

    particular - sero discutidas ao longo do trabalho. Alm disso, a consonncia da trama com os

    pressupostos discutidos pela teoria crtica ser vislumbrada, tendose em vista a proximidade

    da crtica empreendida por Lima Barreto com tal corrente.

  • 15

    2 O JORNALISMO COMO TEMA

    2.1 CONTEXTUALIZAO DA OBRA

    Afonso Henriques de Lima Barreto estreou na Literatura em 1909 com a

    publicao de Recordaes do Escrivo Isaas Caminha. A crtica literria o considera o mais

    expressivo escritor pr-modernista brasileiro. Uma preocupao perceptvel na obra e que

    vale a pena ressaltar a necessidade de retratar o social e o indivduo inserido em um meio

    hostil.

    Lima Barreto viveu na poca em que o Rio de Janeiro conheceu suas primeiras

    greves e os primeiros distrbios sociais de massa que mobilizaram o operariado crescente,

    fatos que no escaparam da anlise do escritor. O autor, nesse contexto, est dentro dos

    padres da Literatura Engajada que marcaram do final do sculo XIX. Assim, toda a fico de

    Lima Barreto tem muito da realidade que ele registrava aps profundas observaes da vida

    durante os primeiros momentos da Repblica (BONDAN, 2002, p. 1).

    Nasceu a 13 de maio de 1881, no Rio de Janeiro. Recebeu o nome do padrinho, o

    Visconde de Ouro Preto. Era filho de um tipgrafo, Joo Henriques, e de uma professora

    primria, Amlia Augusta, ambos mestios. Aos sete anos de idade, perdeu a me. Ao ser

  • 16

    proclamada a Repblica, o pai de Lima Barreto foi demitido da imprensa nacional. Diante

    disso, vo morar na Ilha do Governador, onde o pai trabalhava como almoxarife na Colnia

    de Alienados.

    Em virtude da proteo do padrinho, Lima Barreto, ao completar os estudos

    secundrios, ingressou na faculdade de Engenharia Civil da Escola Politcnica, no ano de

    1898. No educandrio, que veio a abandonar em 1903, foi vtima de intenso preconceito

    racial. Sobre esse aspecto, cabe salientar o fato relatado por Carlos Faraco no suplemento

    Uma Literatura afiada, que est no posfcio da edio de 2001 de Os Bruzundangas (in

    LIMA BARRETO, 2003, p. 1).

    Contam que um dia um colega de faculdade comentou sobre Afonso: - Vejam s! Um mulato usar o nome do rei de Portugal! O tal colega deve ter vivido o suficiente para ver que a ousadia maior de Lima Barreto no foi portar nome de rei: foi desprezar o uniforme da classe dominante, preferindo vestir o traje de uma histria pessoal, que ele mesmo duramente se arriscaria a tecer. Tudo em nome de uma paixo exclusiva: a literatura.

    Ao longo do curso, no qual Lima colecionou reprovaes, uma vocao

    despontou de forma gritante: o dom de escrever. Preferia permanecer longas horas na

    biblioteca a freqentar as aulas, sendo este um dos fatores que acarretaram a sua desistncia.

    Culto, sem diploma, pistoles ou dinheiro, o mulato Lima Barreto ingressou no jornalismo e,

    por intermdio da crtica aos profissionais da rea, denunciou as injustias sociais e

    ideolgicas que marcaram a sociedade de seu tempo (COSTA, 2005, p. 59).

    O sarcasmo e a ironia, caractersticas marcantes de sua obra como escritor, j se

    faziam presentes nos artigos que escrevia para os jornais A Lanterna e Quinzena Alegre.

    Nestes, publicava, sob os pseudnimos de Alfa Z e Momento de Inrcia, verdadeiras

    caricaturas verbais de colegas e situaes da Escola, especialmente (ibid.).

  • 17

    Em sua carreira, as atividades que desenvolveu no mbito jornalstico o ajudaram

    a registrar, com preciso, os fatos que estavam ocorrendo no Rio do incio do sculo passado.

    Graas prtica, conseguiu um estilo mais despojado, longe da tendncia parnasiana que invadia as Letras na poca. A adjetivao torna-se econmica, a linguagem flui com clareza e preciso, se bem que no possvel presenciar a renovao no interior da frase ou na utilizao de uma linguagem coloquial como fariam os modernistas (ibid. , p. 2).

    Apesar de ter seu estilo narrativo influenciado pela prtica jornalstica, Lima

    Barreto compe uma crtica cida realidade dos veculos de comunicao impressa de sua

    poca, em especial, dO Globo, jornal em que o personagem Isaas Caminha trabalha como

    contnuo e posteriormente como reprter.

    Atentando ao possvel carter autobiogrfico da obra, o que ser mais bem tratado

    a seguir, Isaas compe uma extenso do autor, visto que, no protagonista, o leitor tem a

    oportunidade de vislumbrar as ideologias, os sonhos, as frustraes e as revoltas do escritor,

    tido como marginal das Letras (RODRIGUES, 2001, p. 01).

    O escritor sofreu as vicissitudes da vida turbulenta e dedicada Literatura.

    Mulato, sentia-se vtima do preconceito racial, que foi fortemente retratado em suas obras.

    Isaas o narrador e o personagem principal da obra, transformando-se, no decorrer da

    narrativa, numa espcie de alter ego do escritor que lhe deu conformao, pois nele e atravs

    dele pode o leitor contemplar boa parte da vida, das iluses e das ideologias de Lima Barreto

    (BONDAN, 2002, p. 3).

    Lima Barreto dedicou sua vida militncia por uma Literatura mais acessvel. Por

    essa razo, buscava escrever de forma mais coloquial, negando a utilizao do portugus

    castio, o que fez com que a seu tempo, fosse desprezado por grande parte dos literatos, que o

    tinham como persona non grata.

    Tal aspecto evidenciou-se quando do lanamento da obra, a primeira da carreira

    de Lima Barreto. Conforme Francisco de Assis Barbosa, (2004, p. 4) , a recepo ao Isaas

  • 18

    Caminha, quer da imprensa, quer da crtica, seria mais uma decepo a acrescentar s outras

    que o escritor vinha sofrendo desde a adolescncia. Sem amigos na direo dos jornais de

    prestgio, poucas foram as notas que apareceram, registrando o aparecimento do livro.

    A trama consiste na chegada do jovem Isaas Caminha ao Rio de Janeiro.

    Dedicado aos estudos e educado, tem o sonho de se tornar um doutor. ele o narrador e o

    protagonista da histria. Nessa conjuntura, o tio de Isaas, Valentim, recorre ao coronel

    Belmiro, que escreve uma carta de recomendao endereada ao deputado Doutor Castro.

    Com a carta em mos, parte para o Rio com a certeza de que obteria xito em seu intento.

    Aos 18 anos de idade, Isaas desembarca no Rio, aps uma longa e difcil viagem.

    Ao chegar no hotel em que se hospedou, d incio amizade com um comerciante de farinha,

    o padeiro Laje da Silva, que o acompanhou nas primeiras investigaes pela nova cidade.

    Nessas incurses, tambm conheceu o jornalista russo, Doutor Iv Gregorvitch Rostloff,

    ilustrado e simptico reprter, que impressionou Isaas por sua versatilidade lingstica.

    nessa fase que o personagem tem seus primeiros contatos com a imprensa e os literatos, sobre

    os quais ele enuncia ao longo de toda obra.

    O jornalismo , nesse caso, o alvo da crtica e do rano do protagonista. Ao

    tematizar a prtica jornalstica em Recordaes, Lima Barreto busca salientar, de forma

    contundente, que a informao est em ltimo plano. Por intermdio da crtica ao jornalismo,

    a trama promoveu uma desforra sociedade que tanto humilhou seu autor. As observaes de

    Isaas continuam colocando no s a rotina do jornal, em evidncia, como tambm suas

    prprias idias e sua vivncia. De certa maneira, esse contnuo simples e humilde tornou-se

    uma espcie de observador passivo dos homens que trabalhavam naquele ambiente, uma vez

    que pouco participava da rotina do jornal.

    Ao longo da trama, possvel perceber que, pouco a pouco, Isaas vai constatando

    que a rotina do jornal uma sucesso de enganos e estavam todos merc de um diretor

  • 19

    tirano e voluntarioso e conferiram a ele o tratamento dispensado a um deus, obedecendo-o

    cegamente. Cabe tambm a Isaas Caminha depositar confiana e admirao pela atuao de

    Ricardo Loberant, o diretor do Jornal O Globo. Pde concluir, ainda, que todos se

    desprezavam entre si, o que fazia do ambiente do jornal de uma atmosfera falsa, embora todos

    ali procurassem manter as aparncias a qualquer custo.

    Aps o dia em que flagra o patro num bordel, Loberant passou a cobrir Isaas

    Caminha de dinheiro e atenes. Levava-o a toda a parte elogiando-lhe o talento, a

    inteligncia e a cultura. O ex-contnuo e agora reprter manifestou vontade de abandonar o

    Rio, satisfazer seus mais simples anseios, como se casar, ter filhos. Nesse momento final da

    trama, ele manifesta uma forte angstia: a de ter se deixado seduzir e abarcar pelo universo

    que ele tanto criticara anteriormente...

    2.2 CONCEPES DE TEMA

    No que concerne obra de Lima Barreto, dentre os aspectos ora destacados, um

    deles, em especial, diz respeito tematizao do Jornalismo enquanto objeto de observao e

    crtica na obra literria. Isso reporta ao possvel conceito de tema e s correntes tericas que

    trataram da questo.

    Tema, no senso comum, faz referncia ao assunto, razo ou motivo de

    determinada abordagem, seja obra literria, reportagem, filme ou explanao pedaggica.

    Pelo objeto de estudo desse trabalho, interessa saber de que forma, no mbito das Cincias da

    Linguagem, o termo tem sido definido.

  • 20

    A primeira abordagem do que poderia vir a ser tema remonta potica de

    Aristteles, cujos ensinos constituem, at a atualidade, um importante legado teoria literria,

    filosofia, esttica e aos estudos da linguagem e da comunicao.

    Aqui, os conceitos de mimese, verossimilhana e catarse tm uma importncia

    fundamental. Para Aristteles, a arte teria funo de imitar a realidade. O que ele definiu

    como mimese no possui o mesmo sentido atribudo ao termo por Plato, para quem as artes

    mimticas eram a imitao de uma imitao (COSTA, 1992, p. 5). Na concepo aristotlica,

    a mimese representa uma releitura do real atravs de sua tematizao.

    Para Aristteles, pelo processo mimtico, surge uma interpretao possvel para a

    realidade, autnoma em relao ao que a arte representa. Assim, o critrio do verossmil, que

    merecera a crtica de Plato por ser apenas iluso da verdade, torna-se, com Aristteles, o

    princpio que garante a autonomia da arte mimtica (ibid, p.6).

    A verossimilhana, nesse caso, seria o efeito de similaridade com algo possvel de

    acontecer. Da sua relao com a realidade. Por intermdio dos gneros literrios (a tragdia, a

    comdia e a epopia), representavam-se os homens em ao, sendo estes seres melhores (na

    tragdia e da epopia), iguais ou piores (na comdia) que os homens reais. J a catarse teria

    relao com a purificao das emoes atravs do prazer advindo de emoes como o temor e

    a piedade suscitados pela tragdia (ibid., p. 52).

    Sobre a potica, cabe destacar a sua proximidade com a retrica. A base dessa

    separao dada pelas duas obras de Aristteles, a Retrica e a Potica. A diferena entre tais

    cincias seriam os objetivos da linguagem da poesia em relao da oratria.

    Mais prximo ao sentido emprico (tema como assunto principal, como motivo)

    a concepo trabalhada pelo Formalismo Russo. O movimento foi iniciado nos idos de 1914-

    1915 por intermdio da fundao do Crculo Lingstico de Moscou.

  • 21

    O mtodo formal teve o propsito de desenvolver uma cincia que tratasse da

    funo potica como fator essencial linguagem e que, nos estudos lingsticos, estaria em

    segundo plano. Para a referida corrente terica, somente a interpretao da obra em si era

    importante, sem que fosse necessrio recorrer, em primeira instncia, a recursos extra-

    literrios. Vale destacar que os preceitos do Formalismo Russo foram fundamentais

    estruturao dos estudos da Literatura.

    O mtodo formal, assim, no resulta (sic.) da constituio de um sistema

    metodolgico particular, mas dos esforos para a criao de uma cincia autnoma e

    concreta (EINKHENBAUM, 1969, p. 03). Estudou, assim, o especfico, o inerente

    literatura (SCHNAIDERMAN in EIKHEINBAUM, 1969, p. XII).

    Desse modo,

    o movimento voltava-se no somente a contar os excessos de crtica sociolgica e poltica, da submisso da esttica tica que havia caracterizado a crtica russa durante anos e anos, mas sobretudo e particularmente contra a metafsica e a religiosidade dos simbolistas russos, para quem o texto literrio aparecia com muita freqncia apenas como uma das maneiras para buscar o inefvel, o inconstil o extraterreno. O trabalho crtico dos chamados formalistas voltava-se para o contingente, o imediato, o palpvel, o analisvel (ibid., 1973, p. X).

    O Formalismo recusou, assim, todas as contribuies de reas como a filosofia, a

    sociologia e a psicologia como pontos de partida ao estudo de uma obra literria.

    Com relao ao conceito de tema, este exposto por Tomachvski na obra Teoria

    da Literatura: formalistas russos (in EIKHENBAUM, 1973). A definio de tema, aqui,

    estaria relacionada ao despertar de emoes no receptor e no caso da literatura, no leitor.

    Segundo o autor, toda obra deve possuir um tema fundamental, que deve ser escolhido de

    acordo com a aceitao, com o interesse do pblico. A narrativa giraria em torno deste tema.

  • 22

    Para ser atual, o tema deve ocupar-se dos problemas culturais do momento, e que,

    abordados pela literatura, satisfazem o leitor. Assim, segundo Tomachvski, no necessrio

    compreender a atualidade como uma representao da vida contempornea. Ele diz, por

    exemplo, que o interesse por uma revoluo pode ser visto como atualidade hoje, pela

    identificao de seus aspectos histricos com um fato atual.

    Isso significa dizer que um romance histrico (e aqui se pode fazer uma

    associao com a obra aqui analisada) que se proponha a descrever uma poca de movimentos

    revolucionrios, pode ser atual em qualquer tempo.

    Valorizou-se, nesse nterim, a relao do que tratado na obra literria com o

    contexto em que o leitor est inserido. Pela relao que guarda com os pressupostos da teoria

    crtica, a obra Recordaes do escrivo Isaas Caminha gerou essa identificao.

    Assim, quanto mais o tema for importante e de um interesse durvel, mais a

    vitalidade da obra estar assegurada (in EIKHENBAUM, 1973, p. 170). Os temas universais,

    que estariam relacionados a interesses universais como os problemas de amor e de morte,

    segundo o autor, so sempre os mesmos. Devem, contudo, ser alimentados com matria

    concreta e atual freqentemente.

    O desenvolvimento desses temas universais o que favorece a mobilizao do

    leitor. Atravs da obra literria, necessrio fazer o leitor simpatizar, indignar-se, rejubilar-

    se, revoltar-se. Dessa maneira, a obra torna-se atual no sentido do termo, porque o leitor deve

    ser orientado por suas emoes (ibid., p. 172).

    A proximidade com o real estaria expressa tambm por intermdio dos motivos

    realistas (verossimilhana) que compem o tema de uma obra ou de um fragmento dela.

    J na concepo de Bakhtin, o tema ou sentido tem sua histria, constituindo-se

    como algo particular, irrepetvel e concreto. O autor esclarece que o tema da enunciao

  • 23

    concreto, to concreto como o instante histrico ao qual ela pertence. Somente a enunciao

    tomada em toda a sua plenitude concreta, como fenmeno histrico, possui um tema (1992,

    p. 129).

    Bakhtin destaca que o sentido ou tema nico, no renovvel, individual. Por ser

    indissocivel do contexto, expressa a situao histrica no momento da enunciao. Se

    algum pergunta, por exemplo: Que horas so?, essa expresso tem um sentido em cada vez

    que usada. Dependeria no somente das variaes psicolgicas do emissor ou dos aspectos

    lingsticos da enunciao, mas tambm do contexto extraverbal em que ocorre (RECHDAN,

    2003, p. 02). A significao, porm, ser sempre a mesma.

    Esta, para Bakhtin, constitui um aparato para a realizao do tema e um fator

    responsvel por sua estabilizao. Ela resulta da interao, sendo indispensvel atribuio

    de sentido. O significado de tema, nessa perspectiva, estaria mais prximo do conceito de

    unidade temtica.

    O autor considera a entonao expressiva e o contexto socialmente determinado

    como fatores preponderantes da composio do tema. Assim, nas enunciaes, h tantos

    sentidos quanto os diversos contextos em que elas aparecem.

    Por isso, o tema pode ser investigado nas formas lingsticas e nos elementos no-

    verbais da enunciao, quais sejam: a apreciao, a entonao, o contexto, o contedo

    ideolgico e assim por diante. De acordo com Bakhtin (ibid., p. 130), o tema uma qualidade

    da enunciao completa. Pertencer a uma palavra somente se esta funcionar como uma

    enunciao total.

    Nesse sentido, a identificao da significao de um ou outro elemento lingstico pode, segundo a definio que demos, orientar-se para duas direes: para o estgio superior, o tema, nesse caso, tratar-se-ia da investigao da significao contextual de uma dada palavra nas condies de uma enunciao concreta. Ou ento ela pode tender para o estgio inferior, o da significao: nesse caso, ser a investigao da

  • 24

    significao da palavra no sistema da lngua, ou em outros termos, a investigao da palavra dicionarizada (BAKHTIN, 1992, p. 131).

    Ao definir tema, o autor prioriza a relao dos interlocutores, fixando-se no extra-

    textual, no relacional, diferentemente dos formalistas russos, do qual foi crtico. justamente

    esse aspecto que frisa nas definies de dialogismo e polifonia, identificando os intertextos

    presentes na obra de Dostoievski.

    2.2.1 O tema como crtica

    O jornalismo, no caso de Recordaes do escrivo Isaas Caminha, alvo do

    rano do protagonista. Ao tematiz-lo, Lima Barreto buscou salientar que, na prtica

    jornalstica, freqentemente, a informao est em ltimo plano. Da a escolha do romance

    como corpus deste trabalho. Como escritor pr-modernista (BOSI, 1983), desafiou os padres

    vigentes no contexto literrio, Lima Barreto abriu campo para a verdadeira revoluo

    promovida pelo Modernismo, anos mais tarde.

    Recordaes retrata a relao bem x mal presente no dia-a-dia do narrador-

    protagonista (ou narrador-testemunha, conforme a tipologia desenvolvida por Norman

    Friedman) (LEITE, 1994, p. 30). Houve, por parte do autor, a inteno de refletir,

    mimeticamente, a realidade, uma vez que expressa algo verossmil, independente de compor

    ou no sua autobiografia velada.

    Ao longo da trama, Lima Barreto realiza uma verdadeira cartografia do ambiente

    jornalstico d O Globo e das figuras que l atuam. Aspectos como a pseudo-erudio dos

    jornalistas, o despotismo do diretor e, sobretudo, os interesses mercantis e polticos que se

    impunham sobre a informao e a verdade dos fatos, so enfocados.

  • 25

    Na trama, Lima Barreto constri personagens caricatos, em que a devassido e a

    arrogncia, a falta de carter e os interesses mercantis so amplamente destacados, como o

    caso de Ricardo Loberant, diretor do jornal.

    O jornal onde trabalhava trazia novidade: alm de desabrimento de linguagem e

    um franco ataque aos dominantes, uma afetao de absoluta austeridade e independncia (...)

    O Globo levantou a crtica, ergueu-a aos grados, ao presidente, aos ministros, aos

    capitalistas, aos juzes, e nunca houve to cnicos e to ladres (BARRETO, 1909, p. 60).

    Outra personagem que merece destaque Leporace, o arrogante secretrio do

    jornal, "sumidade em literatura e jornalismo, rbitro do mrito, distribuidor de gnios e

    talentos (ibid., p. 61). A crtica a tais figuras carregada de ironia e acidez. Lima Barreto fez

    questo de, pela voz de Isaas, denunciar os valores que, na sociedade, definiam o que seria

    um bom literato. Essa foi a principal razo da rejeio que experimentou, ao longo de sua

    carreira.

    Frederico Loureno do Couto, o crtico literrio dO Globo, assinava artigos com

    o pseudnimo de Floc. Era tido como algum entendido em Literatura e assuntos

    internacionais e por isso era considerado a alta intelectualidade do jornal. No se metia em

    polmicas ou em escndalos. Isaas comparava-o a uma guia, mas detalhou, e forma irnica,

    os requisitos que, para Floc, consagravam um grande escritor.

    Iv Gregorvitch Rostolf, jornalista russo, era tido como a artilharia do jornal.

    Em estilo violento, tecia crticas aos adversrios. Em algumas passagens, seu carter agressivo

    fica evidenciado.

    Acerca das personagens da trama, Bondan (2002, p. 7), faz uma considerao

    interessante. Os mesmos, destaca o autor, so sempre apresentados como se fossem

    instrumentos principais ou secundrios de uma batalha em que cabia a cada um enquadrar-se

    ao sistema vigente, ao qual, tanto Lima Barreto quanto o seu Isaas estavam excludos...

  • 26

    Merece destaque, ainda, o corretor ortogrfico do jornal, Lobo, que acaba por enlouquecer

    devido obsesso pelo uso correto da gramtica. Ao criar tal personagem, Lima Barreto,

    seguramente, alfinetava a submisso dos literatos e da imprensa nacionais ao padro lusitano

    de escrita, ao modo bonito de escrever.

    2.3 O SUPOSTO CARTER AUTOBIOGRFICO DA OBRA

    Pela crtica que empreendeu, a trama se constri como a extenso dos dramas

    individuais de Lima Barreto, sobretudo o ressentimento acerca de sua condio de mulato e as

    dificuldades que teve de enfrentar na preconceituosa sociedade carioca do final do sculo XIX

    e incio do sculo XX. Assim, toda a fico de Lima Barreto tem muito da realidade que ele

    registrava aps profundas observaes da vida durante os primeiros momentos da Repblica

    (BONDAN, 2002, p. 2).

    Considerado um dos precursores do Modernismo, ironicamente, Lima Barreto

    falece justamente no ano da Semana de Arte Moderna, 1922. A prosa marcada pela ironia e

    pela contestao ao status quo, se afirma na poca e tem o Rio de Janeiro, capital recente do

    pas, como principal fonte instigadora e de contestao da hipocrisia e do caos social, atravs

    do relato dos acontecimentos que se passavam (ainda na tipologia de Bosi), do lado obscuro

    do espelho.

    exatamente isso que no artigo Fico, imagem e imaginrio na crnica de Lima

    Barreto, Mrcia Cristina Valdvia (2003) enfatiza, ao afirmar que a crnica-crtica de

    Lima Barreto, em geral, registra a cena obscena; o enfoque da urbe que se moderniza e que

    quer ocultar a realidade de uma cidade composta por trabalhadores e pobres estes

  • 27

    constituindo o quadro de desvalidos do poder pblico (2003, p. 01). Pela amplitude de temas

    por ele abordada em toda a sua produo literria, esta s pode ser comparada, no seu tempo e

    anteriormente, ao extenso itinerrio percorrido pela obra euclideana (SEVCENKO, 1989, p.

    161).

    Acerca da trama aqui estudada, segundo Francisco de Assis Barbosa na obra A

    vida de Lima Barreto (1981, p. 4), Lima Barreto intentou compor um romance diferente dos

    cnones consagrados, que tivesse algo de agressivo. Que atrasse enfim leitores, amigos e

    inimigos. Sustenta, nesse contexto, a tese de que a obra nada mais era do que uma stira ao

    Correio da Manh, poca o jornal mais influente e por isso, mais retratvel. Nelson Werneck

    Sodr (1983, p. 285), fala do surgimento do Correio da Manh, com a proposta de ser um

    jornal contestador.

    De acordo com o autor, na primeira edio, revela o nome verdadeiro de um dos

    personagens principais do romance. Nesse cenrio, Frederico Loureno do Couto, o Floc,

    responsvel pelas crnicas literrias era, na vida real, Joo Itiber da Cunha, o Jic, do Correio

    da Manh. Tal premissa parece confirmar-se numa das mais intensas passagens do livro, que

    descreve o suicdio deste, fato que Isaas descreve como se pudesse compreender/ ler o que,

    naquele momento, o crtico estava sentindo. O que fica expresso no perodo marcado pela

    metfora os olhos semicerrados tinham uma expresso longa e doce de sofrimento e

    perdo.2

    Floc esteve um instante com a cabea entre as mos, parado, tragicamente silencioso; depois, levantou-se firmemente, dirigiu-se muito hirto e muito alto para um compartimento prximo. Houve um estampido e o rudo de um corpo que cai. Quando penetramos no quarto, eu, o paginador e dois operrios, ele ainda arquejava. Em breve morreu. Havia um filete de sangue no ouvido e os olhos semicerrados tinham uma longa e doce expresso de sofrimento e perdo. Cado para o lado estava o revlver, muito claro e brilhante na sua niquelagem, estupidamente indiferente aos destinos e s ambies.

  • 28

    Diante de sua demora para redigir um texto, o chefe da oficina volta redao, e

    assim se dirige ao famoso crtico:- Seu Couto!! (BARRETO, 1909, p. 123), sendo que, na

    redao do Correio, segundo Barbosa Sobrinho, Jic era chamado de Seu Cunha.4

    Assim,

    o Correio da Manh era atingido duramente pela pena do romancista, que o descrevia qual um museu de mediocridades, tendo frente um diretor violento, mestre de descomposturas, destruindo reputaes em nome da moral, mas que no passava, na realidade, de um mulo de Tartufo, corrupto e devasso (BARBOSA, 1982, p. 5).

    Era a isso que Lima Barreto aludia ao tematizar o jornalismo. Tal fator, poca,

    fez com que no somente o Correio da Manh, como todos os veculos impressos do Rio de

    Janeiro praticamente ignorassem o romance. Ainda de acordo com Barbosa (ibid.), em

    Recordaes, figuras influentes nos mbitos jornalstico e literrio nacional no incio do

    sculo XX, como Joo do Rio, Edmundo Bittencourt, Leo Veloso, Coelho Neto e Afrnio

    Peixoto foram satirizados.

    No entanto, h quem refute a tese de que o romance seja autobiogrfico. No

    trabalho em que compara as contribuies de Lima Barreto e Coelho Neto (que tambm

    promove uma crtica realidade das redaes, embora de forma completamente distinta de

    Lima Barreto), Rodrigues (2001, p. 3), a partir da viso de Barbosa relata que as semelhanas

    entre o autor e o personagem Isaas Caminha so poucas. Tal aspecto pode ser vislumbrado no

    trecho a seguir:

    o autor-narrador tomado de uma apatia e se deixa engolir pelo mundo mesquinho que inicialmente criticara; o escritor-criador, ao contrrio, fez da Literatura sua razo de existir e foi coerente com seu projeto de arte militante at o fim da vida, conforme atestam todos os seus escritos. certo que um dos intentos do escritor era mostrar que um rapaz nas condies de Isaas, com todas as disposies, pode falhar, no em virtude de suas qualidades intrnsecas, mas batido, esmagado, prensado pelo preconceito (BARBOSA apud RODRIGUES, 2001, p. 4)

    4 Nota sobre o roman clf, que ser tratado a seguir, no captulo de anlise.

  • 29

    O protagonista Isaas Caminha tornou-se jornalista por acidente (assim como

    casualmente entrou como contnuo na redao dO Globo), ao passo que Lima Barreto

    exerceu a profisso por vontade prpria e com muita galhardia. Assim, se ele colocou o

    ambiente jornalstico e seus figures foi para escandalizar e chamar a ateno para a sua

    narrativa e no para produzir um documento autobiogrfico (RODRIGUES, 2001, p. 5).

    Independentemente desse aspecto, no somente neste livro, como em todo o

    legado de Lima Barreto, essa foi a forma encontrada pelo autor para denunciar as injustias

    presentes na sociedade em que vivia, falando moda do povo, fazendo de sua obra um

    documento de protesto, um livro-resistncia.

    E esse fator que fica mais evidente no momento que se l a obra.

    Independentemente de sua experincia no jornalismo, Lima Barreto fez uso de um

    denuncismo justamente para explicitar os valores que motivavam a produo d O Globo.

    O veculo, nesse nterim, corresponde sociedade que o oprimia como negro e

    como um marginal das Letras. Ao contrrio de literatos ditos acadmicos, como Coelho Neto

    (a quem verbalmente atacou, em um artigo), por exemplo, desafia a sociedade da poca at

    mesmo pelo uso de uma linguagem mais coloquial, negando o portugus castio. Sua

    narrativa, autobiogrfica ou no, em nenhum momento se quis objetiva ou desprovida de

    juzos de valor. Seu narrador, na obra ora exposta, algum que denuncia a prtica de um

    jornalismo que nada tem de objetivo e que pouco tem de verdadeiro.

    Desprezado por no se render ao estilo vigente na poca, Lima Barreto buscou

    fazer uma literatura combativa, criticando a chamada literatura do sorriso da sociedade.

    Esta ltima era alvo das implicncias do autor por tratar de temticas amenas; com o intuito

    de agradar os ricaos, fazia-se de escrever bonito (...) Era a literatura... a literatura do

  • 30

    bom-tom, da representao agradvel dos problemas de certas camadas sociais como se

    fossem os do Pas (FACIOLI in BARRETO, 2001, p. 5).5

    A linguagem de Coelho Neto, ao contrrio, mantinha-se elevada, rebaixando-se

    somente nas bocas dos trabalhadores, da gente pobre (o que denota preconceito) - ainda,

    assim, por meio do discurso direto, indicando o distanciamento do autor linguagem errada

    das camadas populares. Lima Barreto, ao contrrio, deixava o purismo lingstico em segundo

    plano, em favor da promoo da conscientizao atravs da literatura militante, a qual exerceu

    e propagou como verdadeira profisso de f. Nesse contexto, Nicolau Sevcenko (1989, p.

    162) ressalta que a funo crtica, combatente e ativista algo que est fortemente marcado

    no legado do escritor.

    O que Lima Barreto declarava em artigos publicados em peridicos da poca,

    estabelece uma relao de correspondncia com as observaes de Isaas Caminha acerca dos

    literatos da poca. Ser este um dos aspectos abordados na anlise a seguir, visto que o

    discurso da personagem perpassado pelo discurso do autor a todo o momento. Embora tenha

    uma proposta ficcional, a obra reproduz as convices de seu autor de forma veemente.

    Um exemplo dessa relao a crtica que faz a Coelho Neto.

    O senhor Coelho Neto o sujeito mais nefasto que tem aparecido em nosso meio intelectual... Ningum lhe pea um pensamento, um julgamento sobre a nossa vida urbana ou rural... Coelho Neto fossilizou-se na bodega do que ele chama estilo, msica do perodo, imagens peregrinas e outras coisas que so o cortejo da arte de escrever, mas no o fim prprio da literatura6

    5 Prefcio deOs Bruzundangas (edio de 2001). Na referida obra, Lima Barreto denuncia as desigualdades

    sociais e os valores da sociedade de uma nao fictcia denominada Repblica da Bruzundanga. Por intermdio do humor, da ironia e do sarcasmo, o autor constri uma stira sociedade brasileira. Comprometido com o ideal de fazer da literatura um canal de denncia aos problemas sociais, o livro, tal como o analisado neste trabalho, destaca a importncia do trabalho do autor.

    6 Antonio Arnoni Prado apud Rodrigues. Lima Barreto: o crtico e a crise. So Paulo: Martins Fontes, 1989, p. 40.

  • 31

    Embora Recordaes indique haver semelhanas entre a trajetria do escritor e as

    desventuras do jovem Isaas Caminha, a militncia literria a que Lima Barreto dedicou toda a

    sua vida era algo muito maior do que a simples a expresso de sua revolta por meio de suas

    obras.

    E, no obstante o protagonista de Recordaes expressar, de forma clara, a crtica

    e a ironia peculiares do autor, a obra tem projeto para uma vida inteira de militncia literria

    contra o preconceito, mas tambm contra os falsos intelectuais, contra um academismo

    espelhado no modelo europeu, contra uma literatura (sic.) s de deleite (RODRIGUES,

    2003, p. 7). Desde o incio, LB fixou como objetivo escapar s injunes dos mandarins

    literrios, aos esconjuros de toda a sorte (BARRETO apud SEVCENKO, 1989, p. 164).

    Autor de tese de doutorado que aproxima Lima Barreto e Euclides da Cunha, ao

    ser questionado sobre a razo que o levou a realizar tal paralelo, Nicolau Sevcenko destaca

    que ambos abraaram a Literatura com o propsito de edificar e contribuir para a melhoria

    social. Fizeram da Literatura muito mais que simples deleite do pblico leitor, mas agente

    catalisador da conscientizao, encarando a arte de escrever como comprometida misso.

    Para Sevcenko, na consolidao do regime republicano, ambos se sentiram

    frustrados. Cunha, pelo fato de o advento da Repblica significar a construo de uma

    sociedade mais igualitria e que daria possibilidade de uma reparao das mazelas sociais

    causadas pelo colonialismo e escravido e Lima Barreto por perceber que novo regime

    acabara por fortalecer o conflito entre as elites e as demais camadas sociais, nunca tendo

    ocultado seu profundo desgosto com a nova ordem (1989, p. 125).

    Ambos, conforme o autor, foram missionrios da literatura e desejavam a criao

    de uma sociedade de homens e mulheres iguais no pleno desfrute das possibilidades desse

    pas. Neste sentido, frisa o autor, os dois so fonte de inspirao para pensar um Brasil mais

  • 32

    justo7.

    No contexto de Recordaes, Isaas Caminha constitui, independentemente de o

    romance ser ou no uma autobiografia de Lima Barreto, uma voz que perpassada pelo

    discurso inflamado que caracterizou o autor como marginal das Letras, e, sua poca, fez

    com que ele recebesse o desprezo dos acadmicos, de forma geral.

    Atravs de sua militncia, Lima instaurou (...) uma crise na linguagem, por

    nunca ter se adequado a um estilo ou aceito o padro portugus de escrita, o qual expressava a

    dominao portuguesa sobre os aspectos scio-culturais brasileiros e, sobretudo, na ideologia

    do texto, que era a crise verdadeira das relaes de dominao das oligarquias (FACIOLI in

    BARRETO, 2001).

    Em setembro de 1918, o escritor recebeu carta de Monteiro Lobato, o qual

    expressou o desejo de publicar os trabalhos dele, pelo fato de o marginal das Letras fazer uma

    Literatura com razo de ser, contrariando o sorriso da sociedade.

    Prezadssimo Lima Barreto...

    A Revista do Brasil deseja ardentemente v-lo entre seus colaboradores. Ninho de medalhes e perobas, ela clama por gente interessante, que d coisas que caiam no gosto do pblico. E Lima Barreto, mais do que nenhum outro, possui o segredo de bem ver e melhor dizer, sem nenhuma dessas preocupaezinhas de toillete gramatical que inutiliza metade dos nossos autores. Queremos contos, romances, o diabo, mas moda do Policarpo Quaresma (in Barbosa, 1981, p. 266-267).

    Crtico, ferino, surpreendente. Em todo o seu legado, Lima Barreto buscou

    expressar o seu protesto. Como se pode vislumbrar em fragmento de artigo publicado no

    Correio da Noite (1911-1914). O nosso regime atual da mais alta plutocracia, da mais

    intensa adulao aos elementos estranhos, aos capitalistas internacionais, aos charlates tintos

    com uma sabedoria de pacotilha (SODR, 1983, p. 286). Tal aspecto est bem ilustrado, em

    7 Disponvel em . Acesso em 20 set. 2005.

  • 33

    Recordaes, na figura de Floc, o crtico literrio D O Globo, que para, Isaas, tinha parco

    conhecimento em literatura, por ser um leitor de pacotilha.

    Citando Lus Edmundo, Nelson Werneck Sodr destaca o surgimento do jornal

    Correio da Manh. Foi para combater esse estado de coisas e restabelecer, na imprensa do

    pas, naquele sentido patritico que fez a glria de Evaristo e criou, por muito tempo, a

    autonomia de nosso povo, que um jovem advogado (1983, p. 175). Veja-se a semelhana

    entre Edmundo Bittencourt (real) e Ricardo Loberant (na obra). Cheio de audcia, de

    energia e de civismo, pensou em lanar aqui, um peridico rompendo as normas que os

    outros, at ento, haviam estabelecido (ibid).

    O jornal, desde seu incio, caracterizou-se como veculo de oposio, o que lhe

    ocasionou grande aceitao junto s classes populares. O peridico de Bittencourt fora, no

    incio do sculo passado, o veculo, dos sentimentos e valores da pequena burguesia, levantou

    os protestos nas camadas mais baixas da sociedade, caracterizou-se pouco a pouco como uma

    empresa jornalstica (p. 61).

    Logo depois, Lima Barreto o tomava como tpico dessa conjuntura jornalstica.

    Neste contexto, o chamado marginal das Letras sentia a transformao da imprensa brasileira

    (...) A passagem ao jornalismo (sic.) de empresa era, entretanto, etapa histrica necessria

    (...) o jornalismo individual que estava superado (p. 225).

    Batista Cepelo (cf. SODR, 1983) destaca as figuras do jornalista venal (em

    Triste fim de Policarpo Quaresma) e de literato fracassado, peculiares fase de avano do

    capitalismo, despertou a ateno dos ficcionistas, tais tipos foram amplamente destacados por

    Lima Barreto no somente em Recordaes, como tambm em Numa e Ninfa e em Triste fim

    de Policarpo Quaresma.

  • 34

    Em 1917, faz participaes em O Debate e na ABC Revista. Nos textos, ele

    destaca que era chegada a hora de o povo se libertar de uma minoria opressora, vida e

    cnica (SODR, 1983, p. 319).

    No turbulento perodo presidencial de Hermes da Fonseca (1908), Lima Barreto,

    que pintara a poca com as fortes cores da crtica em Numa e Ninfa. Na trama, um discurso

    proferido fala sobre Rui Barbosa: O Rui falou, falou com aquela pretenso e aquela falta de

    viso que lhe so peculiares (ibid, p. 327).

    Tambm Numa e Ninfa retrata, tambm na forma de stira, a disputa entre o

    Correio da Manh e O Pas (Joo Laje e Fuas Bandeira) (SODR, 1983, p. 333). Mas os ditos

    medalhes reagem crtica ferina de Lima Barreto. A exemplo disso, veja-se o que Osrio

    Duque Estrada escreveu em O Imparcial (1916) sobre Triste fim de Policarpo Quaresma: h

    nela qualidade, mas deplora os defeitos e senes de forma. Condena a obra pela caricatura dos

    poderosos que esta promoveu, pois isso envenena a alma da juventude (ibid.).

    Em 1919, Lima Barreto candidata-se vaga aberta Academia Brasileira de Letras,

    disputando-na com Humberto de Campos e Eduardo Ramos, conquistando somente dois

    votos. Permanecia o chamado marginal das Letras ignorado pelos poderosos do seu tempo...

    Eu sou escritor, e seja grande ou pequeno, tenho o direito a pleitear as recompensas que no

    Brasil oferece aos que h anos se distinguem na sua literatura (1921, em A Careta). Apesar de

    no ser menino, no estou disposto a sofrer injrias nem a me deixar aniquilar pela gritarias

    dos jornais, frisou (SODR, 1983, p. 337).

    Por seu legado, Sodr tambm v Lima Barreto (LB) como o primeiro dos

    modernistas. Sabia da superficialidade dos letrados da cultura e conhecendo-os, no os

    poupava, no lhes prestava a menor homenagem, no lhes tinha o menor respeito (ibid.).

    Em A vida de Lima Barreto, Francisco de Assis Barbosa (1982, p. 315) destaca,

    ainda, um conselho dado pelo jovem reprter Pelegrino Jnior ao escritor. Recomendando ao

  • 35

    mestre que bebesse menos para no se prejudicar, ouviu o que prejudica nossos literatos no

    a bebida, mas a burrice (cf. SODR, 1983, p. 339).

    No tocante trama, esta, sendo autobiogrfica ou no, em nenhum momento se

    quis objetiva ou desprovida de juzos de valor, expondo um jornalismo que nada tem de

    objetivo, o que faz a relao de Recordaes com os pressupostos da teoria crtica. Acaba, nas

    palavras de Alfredo Bosi (1994) evoluindo, de um relato da adolescncia de Isaas Caminha

    para um roman clf.

    O autor realiza uma cartografia do Rio de Janeiro de seu tempo, expondo um Rio

    de Janeiro agitado e tenso, condensado mais nos seus vcios do que nas suas virtudes. Todas

    as personagens trazem a marca do seu meio e constituem o objeto privilegiado da crtica

    social do autor (...) todos concorrem para consagrar o destino militante da sua literatura

    (SEVCENKO, 1989, p. 162-163).

    2.4 RELAES DA TRAMA COM OS PRESSUPOSTOS DA TEORIA

    CRTICA

    Sob quais aspectos o jornalismo tematizado por Lima Barreto reflete as prticas

    da realidade? Visando a corroborar essa aluso ao real, em que as prticas miditicas esto

    fortemente condicionadas audincia e preocupao com a vendagem, cabe destacar os

    pontos de vista da teoria crtica (COSTA, 1997).8

    8 teoria crtica, corresponde uma espcie de rtulo, de bordo de interveno na esfera pblica alem, principalmente usado por Adorno e Horkheimer. A chamada teoria crtica, tornou-se o instrumento intelectual mais refinado e incisivo na anlise tanto do indivduo quanto da sociedade, aliando a teoria social psicanlise, mas sem se subordinar epistemologicamente outra (...), o pensamento da atualidade tem em si o mago da dialtica frankfurtiana. Trata-se na tica frankfurtiana, da viso contrria ao ideal iluminista: o contrrio; essa viso buscava um mundo melhor, mais justo. E o que se tem hoje (induzidos pelo frankfurtianos) justamente esse oposto: um mundo que ainda est condicionado s ideologias dominantes (REZENDE in In: Revista Cult, 92 ed., ano 8, maio de 2005, p. 12-17).

  • 36

    Lima Barreto, pode-se dizer, ao tematizar o Jornalismo em sua primeira obra,

    constituiu-se como um terico acidental da Comunicao, quando tocou em questes que

    passariam a ser discutidas mais tarde pelos tericos da Escola de Frankfurt.

    Nesse nterim, segundo Walter Benjamin (cf. COSTA, 1997), a citao e a

    tematizao so, de alguma forma, indcios de exterioridade, de um certo distanciamento em

    relao ao que citado ou tematizado. Benjamin, assim como os demais tericos da Escola de

    Frankfurt, acreditava ser o jornalismo uma narrativa destituda de aura, pelo fato de suas

    abordagens estarem presas factualidade e a objetividade dos fatos. Por ser produto do

    capitalismo, estaria a servio do status quo.

    No ensaio Jornalismo e Literatura, contido na obra Para ler Benjamin (1976),

    Flvio Kothe frisa tal crena. Importa destacar que Benjamin analisa o jornal como um

    grande instrumento do poder, cujas caractersticas ele tambm assume. Ele no serve

    basicamente para comunicar, mas sim para que a verdadeira comunicao entre os homens

    no se realize (KOTHE, 1976, p. 81).

    Uma outra contribuio elucidativa a de Genro Filho na obra O segredo da

    pirmide - para uma teoria marxista do Jornalismo (1987). Nela, o autor salienta a influncia

    das concepes do Funcionalismo, sobretudo dos trabalhos de Drkheim, sobre as cincias

    sociais e dentre elas a comunicao. Drkheim esmerou-se em estabelecer critrios para sanar

    as patologias sociais, reduzindo a condio social do homem a fatores biolgicos, concepo

    que, na opinio de Genro Filho, coisifica a sociedade.

    A perspectiva funcionalista, cujos alicerces estavam fundados em estudos de

    natureza empirista e em modelos matemticos, foi aplicada comunicao social aps a

    Primeira Guerra Mundial. Tal fator hegemonizou os estudos desse campo de conhecimento

    nos Estados Unidos e na Amrica Latina. De acordo com essa corrente, o desenvolvimento

    dos meios de comunicao e do prprio jornalismo so analisados como processos

  • 37

    independentes ao desenvolvimento global das foras produtivas e da luta de classes, ou seja,

    apartados do movimento histrico em seu conjunto (GENRO FILHO, 1987, p. 33).

    Como conceber uma comunicao dissociada dos aspectos sociais? Isso denota a

    vulnerabilidade, o curto flego terico de suas premissas (do Funcionalismo) que no

    permite responder (...) por que o jornalismo (sic.) assumiu determinadas configuraes

    especficas na organizao da informao e na estrutura de sua linguagem (...) (ibid., p. 38).

    No deixou, entretanto, de notar a autonomia relativa do fenmeno jornalstico e suas

    perspectivas histricas mais amplas, mesmo limitando suas possibilidades como forma de

    conhecimento.

    Disso decorreu a viso de que o jornalismo enquanto funo deveria ser o mais

    objetivo e neutro possvel, o que constitui as mitologias tratadas por Juremir Machado da

    Silva na obra A misria no jornalismo brasileiro (2000, p. 93). O Funcionalismo, assim,

    reduziu a prtica jornalstica mera reproduo social, embora, de modo vulgar, o tenha

    classificado como forma de conhecimento.

    Assim,

    que as notcias sejam transformadas em mercadoria no de se estranhar, pois, afinal, tratava-se precisamente do desenvolvimento do modo de produo capitalista (...) desde seu nascimento, o jornalismo (sic.) teria de estar perpassado pela ideologia burguesa e, do ponto de vista cultural, associado ao que foi chamado mais tarde de cultura de massa ou indstria cultural (GENRO FILHO, 1987, p. 36).

    Essa viso, na verdade, acabou dando margem a abordagens que nada tm de

    objetivas, mas que se deseja que sejam lidas como o retrato do real. O que no se sustenta,

    haja vista a impossibilidade de se expor os fatos em sua totalidade.

    Subtende-se, por essa tica que imps princpios naturais aos estudos sociais e

    comunicacionais, que a recepo seja um processo passivo, unilateral, em que os media

    transmitem as informaes a uma massa destituda de senso crtico (COSTA, 1997, p. 141).

  • 38

    Nesse contexto, em conformidade as idias dos tericos da Escola de Frankfurt,

    tanto Genro Filho quanto Costa criticam as premissas funcionalistas, as quais favorecem a

    chamada lgica do capital, contribuindo para o que Max Horkheimer definiu como esttica

    da barbrie.

    Os procedimentos da teoria tradicional (...) estendem-se para todas as esferas da sociedade capitalista, incluindo o universo do fluxo intercambivel de informaes e mercadorias simblicas (...) Na produo jornalstica, as informaes tambm so produzidas para satisfazer todo o tipo de aplicao, pois o conjunto das mensagens passa a estar funcionalmente condicionado temporalidade de circulao de fatos noticiosos, aos fins da indstria, do mercado (COSTA, 1997, p. 131).

    Em Recordaes do escrivo Isaas Caminha, o autor descreve as prticas do

    jornal O Globo. Sob o disfarce de defensor da moralidade pblica, o jornal buscava reforar

    que as suas abordagens nada mais eram do que um fiel retrato da realidade, para conquistar a

    credibilidade da populao carioca.

    Outros livros tematizaram a prtica jornalstica, tal como As iluses perdidas , de

    Honor de Balzac (1978). Nela, o Jornalismo exposto de forma semelhante descrio

    empreendida por Lima Barreto em Recordaes.

    Na anlise da trama a ser feita a seguir, aspectos como o sensacionalismo, as

    posturas destitudas de tica e a fabricao de verdades sero frisados. No contexto da obra,

    o jornal se utiliza de todos os artifcios para atingir a uma nica meta: vender, conquistando, a

    cada dia, um maior nmero de leitores, mesmo em detrimento da veracidade das informaes

    veiculadas.

    2.4.1 Breve panorama das teorias do jornalismo

  • 39

    Em sua obra Teorias do jornalismo: porque as notcias so como so, Nelson

    Traquina (2004) d destaque s principais correntes que estudaram a prtica jornalstica como

    um todo. Embora neste trabalho, esteja-se trabalhando dentro de uma tica mais generalista

    (teoria crtica, de modo geral), cabe mencionar algumas delas, cujos valores esto amplamente

    relacionados trama de Lima Barreto.

    Talvez a mais clebre (e mais controversa, diga-se de passagem), seja a chamada

    teoria do espelho. Nessa perspectiva, segundo Traquina (2004, p. 147-148), esta a teoria

    oferecida pela prpria ideologia profissional dos jornalistas (...) a teoria mais antiga e

    responde que as notcias so como so porque a realidade assim as determina.

    Aqui, o princpio da objetividade se encaixa perfeitamente, haja vista que, para a

    teoria do espelho, o jornalista apenas um observador neutro, atento realidade dos

    fatos, cuja finalidade transmitir uma imagem no expurgada real, com honestidade e

    equilbrio (ibid., p. 148).

    A teoria desenvolveu-se concomitantemente comercializao do jornalismo e

    profissionalizao dos jornalistas (sculos XIX e XX), fazendo com que o jornalismo

    opinativo desse lugar objetividade. Tal concepo surgida entre 1920 e 1930, ainda

    dominante no jornalismo ocidental. Desse modo, qualquer ataque ao pressuposto de que os

    jornalistas so os transmissores das verdades colocam em risco esse papel, porque a

    legitimidade e a credibilidade dos jornalistas esto assentes na crena de que as notcias

    refletem a realidade, que os jornalistas so imparciais devido ao respeito s normas

    profissionais e asseguram o trabalho de recolher a informao e de relatar os fatos, sendo

    simples mediadores que reproduzem o acontecimento da notcia (TRAQUINA, 2004, p.

    149).

    Mas nessa conjuntura, quem definiria o que ser ou no publicado? Nesse

    contexto, entra em cena a teoria do gatekeeper desenvolvida por David Manning White nos

  • 40

    anos 50. O termo gatekeeper refere-se a algum que tem de tomar uma deciso numa

    seqncia de decises. Na referida teoria, o processo de produo da informao visto como

    um processo em que o fluxo de notcias deve passar por crivos, portes (os gates). Ou seja,

    so reas de deciso, em relao s quais o gatekeeper (o editor, neste caso, tem de escolher

    se uma determinada notcia vai ou no passar pelo porto.

    Embora se imponha tanto captao e redao das notcias quanto sua seleo

    uma aura de objetividade, tal processo sempre subjetivo e arbitrrio, conforme concluiu o

    prprio David White, autor da teoria, em sua pesquisa. Ele constatou que as decises do

    jornalista era altamente subjetivas e dependentes de juzos de valor, baseados no conjunto de

    experincias, atitudes e expectativas do gatekeeper (TRAQUINA, 2004, p. 150-151).

    Essa teoria, para Traquina, constitui uma abordagem micro-sociolgica, porque se

    situa ao nvel do profissional, individualizando uma funo que tem uma dimenso

    burocrtica inserida numa organizao (ibid). por assim dizer, uma viso limitada do

    processo de produo noticiosa.

    Nelson Traquina destaca, ainda, a teoria organizacional, a qual, diz o autor, insere

    o jornalista em seu contexto mais imediato. Por esse fato (estar subordinado hierarquia

    organizacional), o jornalista se conformaria mais com as normas editoriais da poltica editorial

    do que com quaisquer outras crenas pessoais (...). O jornalista acaba por ser socializado na

    poltica editorial da organizao.

    Assim, nesta modalidade de teoria jornalstica, a nfase est num processo de

    socializao organizacional, em que sublinhada a importncia de uma cultura

    organizacional, e no da cultura profissional.

    J as teorias de ao poltica surgiram nos anos 60, como reflexo das teorias

    marxistas e da problemtica da linguagem. Essa nova fase de investigao foi marcada por um

    crescente interesse pelas questes ideolgicas. Nesta,

  • 41

    a relao entre o Jornalismo e a sociedade conquista uma dimenso central: o estudo do jornalismo (sic.) debrua-se sobre as implantaes polticas e sociais da atividade jornalstica, o papel social das notcias, e a capacidade do quarto poder em corresponder s enormes expectativas em si depositadas pela prpria teoria democrtica (TRAQUINA, 2004, p. 153).

    Nas teorias de ao poltica, os media noticiosos so vistos de forma

    instrumentalista, isto , servem objetivamente certos interesses polticos. Na verso de

    esquerda, os media noticiosos so vistos como instrumentos que ajudam a manter o sistema

    capitalista; na verso de direita, servem como instrumentos que pem em causa o capitalismo

    (ibid.).

    Tratando dessa perspectiva, Traquina destaca a premissa proposta por Herman e

    Chomsky. Para Herman, somente um conjunto de assuntos ou acontecimentos exposto

    populao, por meio de uma censura (seja oficial ou tcita). No h, por essa razo, uma

    significativa diversidade. Assim, se os temas, fatos e pontos de vista ficam limitados aos

    media, o resultado, ento, o que se pode denominar diversidade sem sentido ou

    marginalizada.

    Para Herman e Chomsky, o campo jornalstico uma arena fechada. A teoria dos

    autores destaca, nesse nterim, a existncia e o avano da chamada propaganda framework

    (modelo de propaganda). Nesse sentido, toda a vastido da cobertura dum acontecimento

    particular nos vrios meios de comunicao social tratada como uma campanha de

    publicidade macia (...) (ibid, 2004, p. 166).

    Freqentemente, frisa o autor, um certo tema ou acontecimento capaz de servir

    s relaes pblicas ou s exigncias ideolgicas de um grupo de poder. Estes temas, lembra

    o autor, so vistos ento como grandes estrias e podem ajudar a mobilizar a opinio pblica

    numa direo especfica. Tal como se v em Recordaes no episdio do motim contra o

    sindicato dos sapateiros fomentados pel O Globo.

  • 42

    Ao longo de sua obra, Traquina d destaque, ainda, s teorias construcionistas (p.

    192), para a qual as notcias so derivadas de uma construo acerca de fato, uma

    interpretao do real. Nega, por assim dizer, a teoria do espelho. Acredita-se, nessa corrente,

    que as notcias no podem ser transmitidas de modo neutro, uma vez que a linguagem no o

    sob esse ponto de vista. No h, por assim dizer, a negao da subjetividade do jornalista e da

    angulao das notcias, sendo esta parte do processo constitudo do real.

    O autor d nfase, ainda, teoria interacionista. Esta institui que os jornalistas

    vivem sob a ditadura da dead line, tendo, em seu cotidiano, o desafio constante de captar,

    acontecimentos e finalizar seu produto, seja ele uma matria, uma notcia, um telejornal,

    etc...

    Pressionadas por essa verdadeira tirania, cabe s empresas jornalsticas elaborar

    estratgias com a finalidade de ordenar tempo e espao, haja vista relao entre a

    imprevisibilidade dos fatos e o horrio de fechamento. Estendem, por assim dizer uma rede

    noticiosa.

    A formao de rede noticiosa e a forma como os jornalistas nela esto

    distribudos tm importncia terica, dado que so a chave da construo da notcia. O autor

    destaca, ainda, a teoria estruturalista, outra corrente macrossociolgica que tambm partilha

    da crena de que os media reproduzem a ideologia do status quo, embora, ao contrrio de

    outras teorias de base marxista (como a teoria de ao poltica), apregoe a autonomia

    relativa dos jornalistas em relao ao controle econmico. Servem (os media) por assim

    dizer, como um dos aparelhos ideolgicos do Estado, de acordo com a perspectiva

    estruturalista (TRAQUINA, 2004, p. 175-176)

    Stuart Hall apontado como um dos principais tericos da escola culturalista

    britnica. Na terminologia desta escola, as notcias, como parte da produo da indstria

  • 43

    cultural, contribuem para dar a origem hegemonia ideolgica (o que na terminologia

    bakhtiniana, corresponderia ao conceito de monologismo, a ser visto a seguir).

    2.4.2 A crtica ao mito do interesse pblico

    Conforme Silva (2000, p. 93) o mito do interesse pblico, presente nas

    abordagens jornalsticas, tambm expressa uma busca por legitimao. Isso reporta ao

    conceito de notcia.

    Historicamente, notcia corresponde articulao simblica que transporta a

    conscincia do fato a quem no o presenciou (LAGE, 1991, p. 49). Acerca do assunto, o

    autor destaca que, com a conquista do grande pblico a partir da Revoluo Industrial, as

    notcias passaram a ser artigos de consumo, sujeitos a acabamento padronizado, embalados

    conforme as tcnicas de marketing (ibid.).

    O conceito, porm, no possui uma definio estrita. Nesse nterim, Lage pontua,

    de modo bastante genrico, que notcia o relato de uma srie de fatos a partir do fato mais

    importante e este, de seu aspecto mais importante.

    Contudo, o que noticiado interessante para quem? Sob quais aspectos? Essa

    seleo feita, conforme Genro Filho, com base em valores anteriores notcia, tendo como

    parmetros julgamentos sociais, pessoais e mercadolgicos. Ser ou no ser um fato, ento,

    uma questo de uma ocorrncia x estar em relao a uma possibilidade determinada tanto

    da totalidade histrica quanto do fenmeno que, inserido nela vai adquirir seu sentido e

    significado (GENRO FILHO, 1987).

    Tambm Belarmino Costa (1997, p. 148), discorre sobre a inexistncia de

    objetividade na definio do que notcia. Assim, algo que se torna notcia e o enfoque dado

  • 44

    informao remetem ao agendamento dos veculos de comunicao quanto s preocupaes

    de natureza poltica, econmica e social, sobre as quais cabem a formao de opinies nas

    conversas interpessoais.

    Em contrapartida, diz o autor, as lacunas tambm identificam os temas a serem

    desprezados, definidos a priori como jornalisticamente desinteressantes. Leia-se:

    desinteressantes ao veculo, ao mercado...

    Pelas premissas discutidas por autores como Genro Filho e Costa, em diversas

    instncias jornalsticas da atualidade, notcia corresponde ao que vende mais, o que chama a

    ateno e no o que o povo quer, mas o que o status quo deseja que seja evidenciado. nesse

    princpio que est fundamentado o que Silva (2000, p. 94) define como mito do interesse

    pblico.

    Nesse cenrio, h ainda o eufemismo acerca da realidade, que consiste na

    suavizao e na ocultao da luta de classes, atuando como um poderoso artifcio ideolgico.

    Sublima-se, desse modo, a manipulao.

    Para conquistar credibilidade junto ao pblico, busca-se, constantemente, mexer

    com os impulsos de proteo (atravs de abordagens sobre animais, crianas, pessoas pobres),

    agressividade (atravs do uso de termos como batalha eleitoral) e de posse (por meio de

    matrias que incentivem o consumo). Outro recurso utilizado a mobilizao contra revoltas,

    atravs da idia de unio passada pelo esporte, por exemplo (LAGE, 1985).

    O valor do jornalismo como forma de conhecimento enfocado por Genro Filho

    (1987, p. 47). Para o autor, embora o jornalismo (sic.) expresse e reproduza a viso burguesa

    do mundo, ele possui caractersticas prprias enquanto forma de conhecimento social e

    ultrapassa, por sua potencialidade histrica concretamente colocada, a mera funcionalidade do

    sistema capitalista. Ele destaca a veiculao de abordagens que, ao lado das matrias

  • 45

    caractersticas do jornalismo propriamente dito, podem ter um maior ou menor grau de

    aproximao com o discurso jornalstico tradicional.

    O autor estabelece, assim, uma graduao, que parte desse jornalismo tpico

    (tcnico e pretensamente objetivo) em direo s mais variadas maneiras de representao

    simblica do real. Nessa escala, a cincia e a arte so as principais referncias.

    Nesta, podem-se enquadrar as abordagens oriundas do Novo Jornalismo, surgido

    da dcada de 1960 nos Estados Unidos e a categoria definida neste trabalho como romance

    jornalstico. Tais narrativas atuam na fronteira com a Literatura. Alis, todas as propostas de

    jornalismo (sic.) rotuladas normalmente como opinativo, interpretativo ou crtico, atuam,

    em algum grau, nas reas limtrofes com as diversas cincias sociais (1987, p. 47).

    Genro Filho destaca que os fenmenos so objetivos, mas sua essncia somente

    pode ser apreendida atravs da relao com a totalidade. Haveria, segundo o autor, um

    componente subjetivo inevitvel na composio do fato social. Por esse motivo, captar a

    essncia implica, necessariamente, um grau de adeso ou solidariedade em relao a uma

    possibilidade determinada, tanto da totalidade histrica quanto do fenmeno que inserido nela

    vai adquirir seu sentido e significado (ibid., p. 49).

    Tal premissa est em total consonncia com a relao que Bakhtin (1992) traa

    entre o tema de uma enunciao e a sua significao, a qual se d no relacionamento com o

    outro, que somente possvel ocorrer no contexto.

    Frente disseminao dos fatos, o jornalismo promove uma simulao da

    imediaticidade. Por seu carter referencial, reproduz o acontecimento. Contudo, o real j est

    distante, uma vez que no momento que ocorre que o fato constitui-se como singularidade

    (LAGE, 1985, p. 39).

  • 46

    Noticiar, porm, no consiste somente em transmitir uma determinada informao

    condicionada a valores mercadolgicos. Cabe tambm ao jornalismo a tarefa de promover

    educao. Tal premissa compe uma contra-resposta ao mito do interesse pblico.

    Zuenir Ventura, nesse sentido, tem um posicionamento interessante, quando

    afirma que:

    se (o jornalismo) se demitir da tarefa pedaggica que tem, em respeito a um princpio de que o leitor est sempre com a razo, e por isso deve-se fazer s o que o que l quer, a imprensa corre o perigo de uma espcie de submisso obscurantista (...) No sendo exigido intelectualmente, no sendo provocado em sua preguia mental, em sua inrcia, tender sempre a emburrecer (...) como que se pode ampliar o universo cultural do leitor sem introduzir o desconhecido, sem aceitar o novo, sem substituir a redundncia pela informao oficial (in AZEREDO, 2002, p. 46).

    2.5 LITERATURA E RESISTNCIA

    No prefcio da edio de 2001 da obra Os Bruzundangas, Valentim Facioli

    ressalta, em Lima Barreto, a urgncia em evidenciar seu interesse em fazer, de sua literatura,

    um protesto s chamadas narrativas do sorriso. Estas, to combatidas pelo marginal das

    Letras, eram, no seu entendimento, obras concebidas nica e exclusivamente com o propsito

    de abstrair, de divertir e, sobretudo, de agradar sociedade.

    Pela militncia literria que empreendeu, Lima Barreto no poderia compreender

    uma Literatura que no tivesse o propsito de denunciar os problemas sociais. Nesse quadro,

    frisa Facioli, a literatura do sorriso da sociedade era a distrao e passatempo das elites

    letradas e ociosas, ornamento e distino mundanos e inconseqentes, completamente alheia

    aos problemas sociais e s contradies entre trabalho e capital (2001, p. 4).

  • 47

    Em contraposio a essa Literatura descomprometida com os reais problemas da

    sociedade, Lima Barreto buscou, por intermdio de seu legado, exercer sua luta. Para ele, a

    misso da Literatura seria a de promover a comunicao e integrar os indivduos, reforando

    aspectos como a solidariedade e o respeito mtuo como caminhos resoluo das

    dificuldades.

    Assim, tanto atravs das temticas crticas que abordou, como a negao ao

    padro lusitano vigente, o qual recusou e veementemente combateu, Lima Barreto se props a

    escrever de forma que pudesse ser compreendido, falando a lngua do povo. Temos em Lima

    Barreto um registro da lngua brasileira do incio do sculo XX e um ritmo, a despeito dos

    tropeos de seu estilo inconstante, genuinamente nacional na literatura brasileira, que

    prenunciava a linguagem modernista (RODRIGUES, 2003, p. 11).

    Mostrar o lado avesso do espelho da sociedade (a literatura do sorriso). Eis o

    objetivo maior da obra de Lima Barreto. Ao se analisar o legado de LB, percebe-se que, de

    fato, ele impunhou a bandeira da resistncia, tanto no mbito ideolgico quanto no estilstico.

    Est, por assim dizer, em ampla consonncia com a definio de obras-resistncia destacada

    por Alfredo Bosi (in MORENO, 2003, p. 1-5). Cabe destacar a declarao do autor em

    entrevista jornalista Leila Kyiomura Moreno do Jornal da USP (2003): o espelho tem um

    lado transparente que reflete a nossa imagem, mas tambm tem um lado opaco, o seu avesso.

    Nesse lado opaco h uma resistncia imagem. A sociedade no o v porque o oposto da

    imagem dominante.

    Na entrevista, Alfredo Bosi lana mo dessa analogia para definir a diferena

    entre as obras que corroboram e as que desafiam e se prope a desconstruir o status quo, os

    quais correspondem, respectivamente, ao lado que reflete e ao lado obscuro de um espelho.

    Frisa o autor:

  • 48

    Existe, ento, uma dialtica. A literatura tem as duas funes: a do espelho, onde est a imagem especular, e tem um lado resistente, que o avesso da ideologia dominante, que a prpria sociedade no percebe. Porm, os bons escritores percebem. Acredito que 99% dos livros que esto nas livrarias so espelhos.

    Espelhar a sociedade, fazer rir, absorvendo o leitor e o alienando. Desse modo,

    atuam as obras que apenas refletem o social, cujo percentual altssimo nas prateleiras das

    bibliotecas.

    Nesse contexto, Bosi complementa:

    a literatura no s o espelho da sociedade. Ela , s vezes, resistncia sociedade (...) uma leitura que compreenda o texto em sua complexidade. Sigo a hermenutica de Paul Ricoeur, para quem a obra literria deve ser compreendida de forma ampla e no ser reduzida a uma mera explicao cientfica, do tipo estruturalista. 9

    Nesse trecho, Bosi toca num ponto nevrlgico no cenrio da Literatura. Como

    forma de conhecimento, tal como o Jornalismo, no pode ser reduzida mera finalidade (tal

    como na perspectiva funcionalista) de distrair a massa. Ao contrrio, deve servir de fonte de

    engajamento e ao. Bosi pontua ainda, que:

    devemos buscar os pontos de ruptura na histria literria, seus elementos contraditrios. o que denomino dialtica negativa. O desafio est em escolher os textos que apresentem essa luta. Ler resistir.

    9 Entrevista concedida por Alfredo Bosi a Leila K. Moreno. Jornal da USP, 31 de maro a 4 de abril de 2003, p. 20. Ano XVIII n 636. Disponvel em . Acesso em 20 jan. 2005.

  • 49

    2.5.1 Lima Barreto e a literatura de protesto: um salto na histria da literatura

    brasileira atravs da resistncia

    Na tematizao do jornalismo que realiza em Recordaes do Escrivo Isaas

    Caminha, Lima Barreto expe, concomitantemente, o aspecto crtico e a resistncia ao status

    quo. Ele critica, numa relao de verossimilhana, as prticas jornalsticas e a sociedade do

    incio do sculo XX.

    O mote, aqui, est na linguagem utilizada pelo chamado marginal das Letras, que

    recebeu essa alcunha por seu estilo rebelde e no condicionado ao portugus castio.

    Ele manifestou o seu protesto, utilizando um padro lingstico e estilstico

    diferente do vigente poca em que a obra foi concebida. Atravs de seu aspecto crtico, tida

    como autobiogrfica, foi rejeitada pela maioria dos veculos de comunicao da poca.

    Sendo assim, as agruras do jovem Isaas Caminha seriam o relato sobre o racismo

    e a rejeio aos quais Lima Barreto fora submetido. Toda a discriminao por ser negro e,

    sobretudo, por contrariar os padres pr-estabelecidos indicam o carter de obra de

    resistncia de Recordaes, segundo a classificao feita por Bosi acerca da diferena de

    objetivos entre estas dos livros-espelho, ou seja, aqueles que expressam e confirmam o status

    quo.

    Para Bosi, tais livros refletem (e refratam) a ideologia dominante, com a proposta

    de se estabeleceram como verdade, como espelho do real. Em contraposio a estas, h

    aquelas que indicam o que ele chama de o lado do espelho que ningum v, ou seja, a viso

    outra, a histria no-oficial, o lado que se ignora, que se quer aniquilar, esquecer.

    Nesse contexto, sero identificadas as marcas que, no interior do texto, indiquem,

    de algum modo, a resistncia, atravs das figurativaes estilsticas ou da crtica direta que

    Lima Barreto faz ao jornalismo.

  • 50

    No cenrio da literatura brasileira, posteriormente, ainda por meio da relao

    literatura-fico, se buscava manifestar, pela via literria, a resistncia, fazendo disso um

    subterfgio censura durante a ditadura militar. Assim como em Lima Barreto, em que o

    autor nega os padres vigentes e critica a sociedade carioca de sua poca, em obras como

    Zero, de Igncio de Loyola Brando (1974), uma narrativa no-linear e aparentemente

    confusa na qual o protesto se manifestava, justamente por esse desvio, por essa negao dos

    padres literrios prosaicos.

    O intuito era o resistir, o renunciar ao que estava posto: os padres (lingsticos,

    literrios e sociais) excludentes, no caso de Lima Barreto; censura, no caso dos livros-

    reportagem citados.

    2.6 A PRESENA DO AUTOR-NARRADOR

    Esse aspecto est presente tanto nas abordagens em que o Jornalismo tematizado

    quanto naquelas em que atua como discurso prprio. Estas utilizam tcnicas que pretendem

    facilitar a compreenso do leitor. Isso sem esconder, sob a mscara objetiva, a viso do autor,

    uma vez que, segundo Luiz Gonzaga Motta na obra Narratalogia (2004, p. 15), nossas

    maneiras de descrever e de contar o mundo fsico e humano so sempre percepes

    particulares destes mundos, formas de perceber e de cont-los.

    Essa afirmao refora que no se pode chegar ao fato sem mediao. Mesmo nas

    obras literrias e nas matrias em que o foco narrativo aponta para uma possvel ausncia do

    narrador, como se o texto ou as personagens falassem por si s, ali est o narrador,

    implicitamente, comandando a narrativa.

  • 51

    A fidelidade verdade dos fatos, no jornalismo, e a retratao da realidade, na

    Literatura, seriam os traos objetivos. No h, porm, uma narrativa que possa ser construda

    sem interveno. Somente possvel ver a realidade pelos olhos do ficcionista ou do

    jornalista. O texto romanesco j no trata das musas, mas do social do homem (SCHLER,

    1989). O que h uma recriao da realidade, mesmo que se intente contar o fato tal como

    ocorreu.

    Sobre a relao fato-fico e a desconstruo de fronteiras que esta promove, faz-

    se oportuno destacar o que diz Fernando Resende (2002, p. 111). Na viso do autor, nos

    trabalhos resultantes do hibridismo jornalismo e a literatura, a literatura (sic.) do fato (...)

    quer deixar transparecer as verdades contidas, representar as narrativas cotidianas sem o rigor

    factual que as encerra, quer, enfim, brincar com a realidade dos fatos. Isso tem a ver com a

    mincia com a qual Lima Barreto constituiu sua narrativa em Recordaes, atravs da voz

    do narrador, Caminha, que configura um alter ego do autor.

    Esse aspecto, alis, evidencia-se pela relao do contedo da obra com as crticas

    barretianas que, publicadas nos jornais da poca, criticavam personalidades como Coelho

    Neto (chamado o virtuose). Pode-se traar um paralelo entre real e ficcional, aspecto de suma

    importncia no que diz respeito s obras do marginal das Letras.

    Em debate entre estudiosos da obra de Lima Barreto, Beatriz Resende destaca o

    registro desse submundo, o qual o escritor buscou registrar ao denunciar os fatos da cidade

    do Rio, do centro do Rio especificamente, onde fica evidente a presena da rua do Ouvidor e

    de algumas outras ruas importantes no perodo em que viveu11.

    11 Transcrio de debate em fita transcrio: fita XX Lima Barreto um grito brasileiro. Disponvel em:. http://www.mec.gov.br/seed/tvescola/Mestres/PDF/Roteiros/Roteiro%20-%20LimaBarreto.pdf).

    http://www.mec.gov.br/seed/tvescola/Mestres/PDF/Roteiros/Roteiro - LimaBarreto.pdf

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    No mesmo debate, Afonso Carlos Marques pontua que a relao de LB com a

    cidade do Rio de Janeiro uma relao visceral. Ele vivia a cidade assim como a cidade vivia

    dentro... dentro dele. E nesse sentido, a cidade para ele uma espcie de laboratrio para

    pensar o Brasil. E a cidade tambm o objeto de uma reflexo profunda sobre a sociedade

    brasileira do