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327 POR UMA POLÍTICA DA DIFERENÇA ELIZABETH MACEDO Faculdade de Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro [email protected] RESUMO O artigo defende que a educação, para fazer face às sociedades multiculturais, precisa pensar a cultura como lugar de enunciação e não como repertório de sentidos partilhados. Inicial- mente, analisa os projetos conservadores, liberais e multiculturais para lidar com a diferença cultural, argumentando que esses projetos tratam a diferença como diversidade, não conse- guindo, dessa forma, responder, como se propõem às demandas de uma sociedade mul- ticultural. Para além desses projetos, discute perspectivas de tradução e diálogo entre cultu- ras, valendo-se, principalmente, das contribuições de Santos e Burbules, concluindo pela incomensurabilidade das culturas. Ainda que as culturas sejam incomensuráveis, a autora rechaça descrições fragmentadas da contemporaneidade, posicionando-se em favor da ne- gociação da diferença cultural. Para isso, apóia-se na noção de ambivalência de Bhabha e na noção de hegemonia, tal como é defendida por Laclau e Mouffe, Hall e pelo próprio Bhabha. Dessa forma, procura estabelecer uma agenda pós-colonial para pensar a diferença. POLÍTICAS EDUCACIONAIS – MULTICULTURAL – CULTURA – EDUCAÇÃO ABSTRACT FOR A POLICY TO DEAL WITH DIFFERENCES. This work advocates that, in order to face multicultural societies, it is necessary for education to think culture as a place of enunciation and not just as a repertoire of shared meanings. It starts by analyzing conservative, liberal and multicultural projects dealing with cultural difference, arguing that since they consider difference as diversity, they are not able answer, as intended, to the demands of a multicultural society. Besides these projects, this article also analyzes perspectives on translation and dialogue between cultures, relaying mainly on the contributions of Santos and Burbules. Thus, the present work acknowledges the incommensurability of cultures but refutes present-day Texto produzido a partir de discussões da pesquisa Currículo de Ciências: uma abordagem cultu- ral, financiada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq –, Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro – Faperj – e Programa Prociência da Universidade Estadual do Rio de Janeiro – Uerj. Cadernos de Pesquisa, v. 36, n. 128, p. 327-356, maio/ago. 2006

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327Cadernos de Pesquisa, v. 36, n. 128, maio/ago. 2006

Por uma política...

POR UMA POLÍTICA DA DIFERENÇA

ELIZABETH MACEDOFaculdade de Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro

[email protected]

RESUMO

O artigo defende que a educação, para fazer face às sociedades multiculturais, precisa pensara cultura como lugar de enunciação e não como repertório de sentidos partilhados. Inicial-mente, analisa os projetos conservadores, liberais e multiculturais para lidar com a diferençacultural, argumentando que esses projetos tratam a diferença como diversidade, não conse-guindo, dessa forma, responder, como se propõem às demandas de uma sociedade mul-ticultural. Para além desses projetos, discute perspectivas de tradução e diálogo entre cultu-ras, valendo-se, principalmente, das contribuições de Santos e Burbules, concluindo pelaincomensurabilidade das culturas. Ainda que as culturas sejam incomensuráveis, a autorarechaça descrições fragmentadas da contemporaneidade, posicionando-se em favor da ne-gociação da diferença cultural. Para isso, apóia-se na noção de ambivalência de Bhabha e nanoção de hegemonia, tal como é defendida por Laclau e Mouffe, Hall e pelo próprio Bhabha.Dessa forma, procura estabelecer uma agenda pós-colonial para pensar a diferença.POLÍTICAS EDUCACIONAIS – MULTICULTURAL – CULTURA – EDUCAÇÃO

ABSTRACT

FOR A POLICY TO DEAL WITH DIFFERENCES. This work advocates that, in order to facemulticultural societies, it is necessary for education to think culture as a place of enunciationand not just as a repertoire of shared meanings. It starts by analyzing conservative, liberal andmulticultural projects dealing with cultural difference, arguing that since they consider differenceas diversity, they are not able answer, as intended, to the demands of a multicultural society.Besides these projects, this article also analyzes perspectives on translation and dialoguebetween cultures, relaying mainly on the contributions of Santos and Burbules. Thus, thepresent work acknowledges the incommensurability of cultures but refutes present-day

Texto produzido a partir de discussões da pesquisa Currículo de Ciências: uma abordagem cultu-ral, financiada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq –,Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro – Faperj – e Programa Prociência daUniversidade Estadual do Rio de Janeiro – Uerj.

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fragmented descriptions, taking sides in favor of negotiating the question of cultural difference.With such purpose, Bhabha’s notion of ambivalence, as well as that of homogeneity, advocatedby Laclau and Mouffe, Hall and Bhabha himself, is put forward. In this way, it tries to build apostcolonial agenda for thinking the difference.EDUCATIONAL POLICIES – MULTICULTURALISM – CULTURE – EDUCATION

Temos presenciado no Brasil, ultimamente, uma ampliação do debatesobre ações afirmativas na esteira da política de cotas para ingresso tanto nasuniversidades públicas quanto em empregos conquistados por concurso. Tra-ta-se da mais nova conseqüência da ação do movimento negro legitimada,segundo Guimarães (2005), pela incapacidade da diplomacia brasileira de con-vencer os foros internacionais da inexistência de uma questão racial no Brasil.O paradigma da convivência pacífica entre as culturas, que apresenta o Brasilcomo um país mestiço, vem sendo superado paulatinamente. Embora a lutapelas cotas seja apenas uma das muitas áreas em que o movimento negro atuounos últimos anos – divulgação da cultura e religiosidades negras, educação bá-sica, direitos humanos, saúde pública, sexualidade, cursos pré-vestibulares –,sua visibilidade trouxe para o centro do debate questões multiculturais que sem-pre estiveram pouco presentes nas discussões sobre políticas educacionais dopaís. Ainda que seja necessário salientar todo o esforço de parte da sociedadepara tirar das cotas seu caráter racial – incluindo, por exemplo, classe social,renda familiar ou formação em escola pública –, a política de cotas respondeude alguma forma ao movimento negro e tornou mais visível a existência de de-mandas étnico-raciais no país.

Não é simples discutir o multiculturalismo nas políticas educacionais, por-que, ainda que o termo seja utilizado na maioria dos países, seus significados dis-cursivos deslizam em um terreno pantanoso. Como salienta Hall (2003), estetermo “só pode ser utilizado ‘sob rasura’” (p.51). Vou me valer neste artigo deuma distinção que tanto Hall (2003) quanto Santos e Nunes (2003) utilizam, eque no meu entender permite elucidar algumas das confusões que o termo com-porta. Refiro-me à distinção entre multiculturalismo “como descrição” e “comoprojeto”, como explicitam Santos e Nunes. Ou, nas palavras de Hall, entre mul-ticultural como termo qualificativo e multiculturalismo como doutrina política.

Quando falam em multiculturalismo como descrição ou em multicultu-ral como termo qualificativo, os autores estão tratando de algo que não é novo.

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Sociedades multiculturais sempre existiram, desde as primeiras diásporas commigrações de povos (e, portanto, de culturas), causadas por tragédias naturaisou por motivos políticos e religiosos, e constituem “as condições de definiçãosócio-histórica da humanidade” (Goldberg apud Hall, 2003, p.55). Esse cará-ter multicultural das sociedades teve momentos de intensificação, como nasconquistas que geraram os grandes impérios ou nas Grandes Navegações eu-ropéias, ou na internacionalização capitalista. Mais recentemente, além dos flu-xos migratórios do capitalismo transnacional, poderíamos considerar ainda ainteração cultural provocada pela ampliação do contato virtual entre as cultu-ras. Se, por um lado, os contatos interculturais se intensificaram graças ao de-senvolvimento tecnológico, por outro, a acentuação do caráter multicultural dassociedades contemporâneas deve-se em grande parte à contestação de comu-nidades imaginadas hegemônicas na Modernidade.

Ainda que os homens sempre tenham migrado, é muito comum, ao lon-go da história, que esses encontros de culturas diversas tenham sido marca-dos pela construção de ilusões de homogeneidade, quer por uma suposta as-similação do diferente, quer por sua exclusão na figura do “outro”. As idéiasde nação e de Estado Moderno foram talvez os mais poderosos instrumentosdessa construção, criando a ilusão de pertencimento pela via do nascimentoque, segundo Bauman (2005), como nada tinha de natural, precisava ser ga-rantida pela coerção e pelo convencimento. A manutenção da ilusão dependiade um projeto capaz de fazer com que um coletivo chamado nação se sobre-pusesse aos interesses individuais dos sujeitos, o que foi garantido pela “su-perposição do território domiciliar com a soberania indivisível do Estado” (p.27),cuja principal tarefa era a exclusão de tudo aquilo que pudesse pôr em risco oprojeto coletivo. Tarefa que, para Bauman, o Estado Moderno cumpriu commaestria, construindo uma identidade nacional que exigia exclusividade e es-tabelecendo para si a função de árbitro máximo sobre as identidades que se-riam toleradas. Outras identidades somente seriam aceitas se não pusessemem jogo a supremacia da identidade nacional, o que garantia ao Estado um certopoder de certificação dos demais pertencimentos.

A análise de Santos (1997), tanto do Estado liberal quanto do projetomarxista, corrobora a leitura de Bauman. Para o autor, embora o sujeito mo-derno, do liberalismo ao marxismo, apresente inúmeras variantes, poderíamosconsiderar que há algo que partilham: a subsunção das identidades à identida-

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de global do Estado e a “uma identidade simétrica do Estado, global e idênticaa ele – a sociedade” (p.143). Assim, Santos também avalia que todas as demaisidentidades foram incorporadas numa identidade una, fixa e supostamentepartilhada por todos, a identidade nacional.

A centralidade do Estado em nossa constituição identitária como sujei-tos da Modernidade é visível, inclusive quando a ênfase está nos movimentosreivindicatórios de identidades particulares. No recente debate sobre cotasraciais, foi freqüente a menção a uma característica própria do Brasil, onde asrelações raciais seriam harmônicas, em contraposição à realidade americana.A crítica às políticas afirmativas foi feita, portanto, tendo por base um pertenci-mento nacional de certa forma naturalizado. Além disso, a própria terminolo-gia utilizada para nomear identidades raciais acaba por remeter à idéia de na-ção (afro-brasileiros) assim como outras formas de organização social, porexemplo, indígenas, são nomeadas pelo epíteto de “nação” – nação ianomâmi.

Se a idéia de nação e a concepção de Estado tiveram e têm ainda umimportante papel no apagamento ou na subsunção de outras identidades, étambém perceptível um certo esgotamento de seu potencial de ação. Esseesgotamento, com o afloramento de tensões entre as diferentes culturas queconvivem num inventado espaço nacional, tem feito com que passemos a per-ceber as sociedades em que vivemos como multiculturais. Definir o que temproduzido tal impacto sobre os Estados nacionais não é, no entanto, tarefa fá-cil. É verdade que a nova fase do capitalismo, muito mais global, tem limitadoo poder dos Estados nacionais com uma nova configuração geopolítica em queblocos econômicos alteram, de alguma forma, as antigas soberanias nacionais.Mas é também verdade que todas essas alterações têm sido feitas dentro deuma moldura em que ainda há lugar para os Estados nacionais.

Para autores pós-coloniais, o questionamento da idéia de nação é pro-duto principalmente das lutas pela libertação das colônias, que tiveram forteinfluência sobre a forma como a nação foi teorizada. Chaterjee (2000) faz umadas mais amplas discussões pós-coloniais da idéia de nação, associando-a aosprocessos históricos de industrialização e democratização da Europa. Por talassociação, as nações surgiram para perseguir os valores universais doIluminismo europeu, tais como liberdade e progresso. A despeito de propa-gar esses ideais de liberdade e progresso, a manutenção da idéia de naçãodependeu historicamente de uma certa cumplicidade com formas autoritárias

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de governo e, especialmente, com a expansão colonial. Essa controvérsia,Chaterjee chamou de dilema liberal. Um dilema que desnuda o fato de que aidéia de nação é uma idéia européia que passou por cima das etnicidades e dasdiferenças culturais. Se isso permanecia pouco visível ao se tratar da Europa emesmo de países cujas colonizações políticas terminaram por volta da Revolu-ção Francesa, tornava-se evidente ao se observar a situação de países coloni-zados ainda na metade do século XX.

Na mesma linha pós-colonial, Bhabha (2003) argumenta que o fracassoda pretensão universalista da idéia de nação se deve ao fato de se tratar de umarepresentação frágil e instável, incapaz de garantir a unidade prometida. Há nosdiscursos sobre a nação uma ambivalência, produto da articulação de doismodos de representação contraditórios. Os discursos modernos, que busca-ram instituir a nação como comunidade imaginada, articularam duas tempora-lidades distintas – uma continuísta e pedagógica e a outra performática –, tor-nando a nação cindida entre dois opostos incompatíveis: a nação como umaessência fixa originária e como algo socialmente construído. Se a temporalida-de continuísta garante a homogeneidade na medida em que faz referência a umpassado comum, a sempre necessária ação performática permite que os su-balternos intervenham no processo de significação e alterem as representaçõesdominantes. Ou seja, na concepção de Bhabha, a nação jamais conseguiu ouconseguirá banir a diferença, uma vez que as contranarrativas irrompem no nívelperformático.

Hall (2003) traça um quadro histórico do ressurgimento das sociedadesmulticulturais, associando-o tanto ao fenômeno pós-colonial como à globaliza-ção e à ampliação da utilização dos princípios de mercado. Para o autor, a dis-tribuição desigual de poder e as relações de exploração que caracterizaram associedades coloniais permanecem na relação entre as nações e entre os gru-pos dentro de um mesmo Estado nacional. A globalização, mais fortementesentida a partir da segunda metade do século passado, se fez de forma estrutu-ralmente desigual, com franca dominância do que convencionalmente chama-mos Primeiro Mundo, mantendo um sistema assimétrico semelhante ao vividoem situações de colonialismo político. Também o fim da Guerra Fria teve efei-tos fortes na assimetria entre países e grupos dentro dos países. Hall lembra queprincípios como o mercado foram apresentados de forma abstrata, “sem con-siderar o envolvimento cultural, político, social e institucional que os mercados

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sempre requerem” (p.57); no entanto, os problemas do desenvolvimento nãosão vividos de forma semelhante por todo o planeta. Em resumo, o autor argu-menta que a globalização, por se assentar sobre a desigualdade, embora pro-ponha como tendência cultural dominante a homogeneidade, não pode “con-trolar ou saturar tudo dentro de sua órbita” (p.59). Nesse sentido, surgemformações subalternas, com suas contranarrativas nas palavras de Bhabha.

Tanto as leituras pós-coloniais de Hall, Bhabha e Chaterjee como as ex-plicações que relacionam o esgotamento da idéia de nação com a globalização eo maior desenvolvimento tecnológico são insuficientes para dar conta de algu-mas questões que permanecem inquietantes: se a idéia de nação é em si tãoambígua, tão frágil como princípio articulador da igualdade, como se sobrepôspor tanto tempo às particularidades, às etnicidades, às diferenças? Por que ascontranarrativas, as representações marginais não deram conta de superar ahegemonia da combinação entre Estado e nação? Por que agora essas represen-tações parecem ganhar terreno? E por que isso ocorre num momento em quea própria idéia de mercado é apresentada como universal inquestionável?

Não tenho a pretensão de responder a tais questões neste artigo. Apre-sento-as com um objetivo bem mais modesto, qual seja, deixar claro que nãobusco entender por que ressurgem preocupações multiculturais, mas apenaschamo a atenção para o fato de que vivemos num momento em que essaspreocupações estão na ordem do dia. Os sólidos princípios que pareciam vin-cular um sujeito ao seu lugar de nascimento estão se liquefazendo, como des-creve Bauman (2005). As estruturas e instituições sociais, muitas das quais sus-tentavam a idéia de nação, se tornaram fluidas. Nas palavras do autor, não sepode esperar “que a sociedade seja um árbitro das tentativas e erros dos se-res humanos (...) de quem se espera ser justos e de princípios” (p.58). Semárbitro, as diferenças ganham uma dimensão que se ocultava sob os consen-sos inventados. As tradições que irrompiam na Modernidade em formas mar-ginais já não têm mais um padrão que as empurre para fora do centro. Coabi-tam com outras tradições tentando “construir uma vida em comum ao mesmotempo em que retêm algo de sua identidade ‘original’ ” (Hall, 2003, p.52).

Ao fato de que as sociedades sejam vistas como multiculturais temcorrespondido, nas últimas décadas, o surgimento do multiculturalismo comoprojeto ou como doutrina política. O sem-número de adjetivações que acom-panham o termo multiculturalismo – que vão desde liberal e emancipatório talcomo utilizado por McLaren (1997) até, por exemplo, corporativo ou empre-

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sarial – já dão conta do fato de que nem todas as soluções políticas para umasociedade multicultural são progressistas. Na definição de Hall (2003), o multi-culturalismo pode ser visto como “estratégias e políticas adotadas para gover-nar ou administrar problemas de diversidade e multiplicidade gerados pelassociedades multiculturais” (p.52). Da mesma forma que o termo pode estarassociado a projetos contra-hegemônicos e emancipatórios, não se pode ne-gligenciar sua utilização para fazer referência a formas de regular e controlar adiferença. Iniciativas de discriminação positiva, assim como movimentos quelutam por uma política de identidade, dividem espaço na arena dos projetosmulticulturais com programas assistenciais e/ou compensatórios que visam do-mesticar a diferença. Não são poucos, por exemplo, os projetos que se apre-sentam como apolíticos, ou que, sendo políticos, se inserem nas reivindicaçõesde Estados nacionais, atribuindo status diferenciado a determinados grupos. Nocaso do Brasil, como lembra Guimarães (2005), as políticas multiculturais aindalutam contra o mito de que se trata de um país mestiço em que as políticas sociaisnão devem priorizar grupos étnicos, mas visar toda a população.

Sem pretender estabelecer uma classificação exaustiva dos projetosmulticulturais, até porque seria uma insensatez, na medida em que todos osprojetos são eles mesmos híbridos de sentidos, passo a discutir alguns deles.Sustento que, embora eles surjam como resposta ao caráter multicultural dasociedade, tendem a fixar a diferença transformando-a em diversidade. Comisso, acabam por não dar conta de atender aos anseios que se propõem a res-ponder. Não quero com isso desqualificar soluções multiculturais que vêmsendo criadas para lidar com propostas discriminatórias. Entendo, como Spivak(1994), que, embora algumas categorias que fixam a diferença não se susten-tem do ponto de vista teórico, foram até agora as únicas possibilidades com asquais pudemos construir políticas antidiscriminação.

OS PROJETOS MULTICULTURAIS

Muitos são os autores (McLaren, 1997; McCarthy, 1994; Santos, Nunes,2003; Hall, 2003) que vêm criando alguma sistemática para a análise dos pro-jetos multiculturais, havendo aproximações, mas também divergências, entreeles. De modo geral, a maioria das tipologias propostas dá conta da existênciade projetos conservadores, liberais e de outros que poderiam mais propria-mente ser chamados de multiculturais. Para além desses projetos, os autores

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têm apresentado propostas do que, em linhas gerais, identifica-se como mul-ticulturalismo crítico. Para McLaren (1997) e McCarthy (1994), por exemplo,a principal tarefa de um multiculturalismo crítico seria examinar a construçãotanto da diferença quanto da identidade, contrapondo-se a projetos que nãoconsideram a historicidade dessas diferenças. Apesar de defenderem que anegociação cultural não se dá num terreno sem contestação, sendo forjada em“esferas culturais incomensuráveis e assimétricas” (Mohanty, apud McLaren,1997, p.125), os autores explicitam pouco as formas como concebem proje-tos multiculturais críticos. Trazem, no entanto, uma importante contribuiçãoquando advogam que uma agenda multicultural precisa superar os projetosconservadores, liberais e mesmo multiculturais vigentes. Precisa, como propõeHall (2003), enfocar “o poder, o privilégio, a hierarquia de opressões e osmovimentos de resistência” (p.53), de modo a reconstruir os sistemas em queas diferenças são construídas. É essa contribuição que pretendo desenvolverneste artigo, pensando um projeto alternativo para tratar a diferença. Antes,porém, julgo relevante um panorama sintético dos projetos em curso para quepossamos perceber como, apesar de propalada, a diferença se mantém foradas agendas multiculturais.

Usarei para esse panorama, especialmente, as classificações de McLaren(1997), Santos e Nunes (2003) e McCarthy (1994). McLaren, cuja tipologia temsido muito utilizada nas discussões sobre multiculturalismo no Brasil (Candau,2005; Moreira, 1999; Moreira, Canen, 2001), salienta que o trabalho queempreende é apenas um recurso heurístico, uma “tentativa inicial detranscodificar e mapear o campo cultural de raça e etnicidade” (p.110). Julgoque podemos entender tanto as tipologias que usarei neste artigo quanto o usoque farei delas, fugindo assim da perspectiva positivista de que toda classifica-ção implica classes mutuamente exclusivas e tipos puros. Ao contrário, cons-truo o texto com a crença de que os projetos concretos para lidar com umasociedade multicultural, em geral, articulam e hibridizam características conser-vadoras, liberais e multiculturais propriamente ditas.

As propostas conservadoras podem ser caracterizadas como aquelas quenegam a descrição multicultural (Santos, Nunes, 2003), ou que, apesar de nãonegá-la, defendem uma cultura comum padrão (McLaren, 1997). De formageral, os conservadores se contrapõem tanto aos programas de discriminaçãopositiva quanto às alterações nos currículos escolares visando criar uma zona

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de visibilidade sobre as culturas das minorias. Vêem as culturas de grupos mi-noritários como manifestações inferiores que deveriam ser abolidas por umprojeto educacional que visa a igualdade. Criticam, portanto, qualquer políticaidentitária baseada na diferença e propõem a sua assimilação às tradições damaioria. As propostas conservadoras produzem uma ideologia da assimilação,pela qual pretendem que jovens de culturas minoritárias passem a participarda cultura iluminista como se fosse sua.

Stam (apud Santos, Nunes, 2003) resume as muitas críticas que os con-servadores têm feito aos projetos multiculturais. Salienta que, para eles, essesprojetos buscam promover a substituição de valores ocidentais por culturasinferiores e fragmentam a sociedade, pondo em risco o sentido de nação, cujapureza e integridade são ressaltadas. O autor destaca, ainda, que a crítica con-servadora vê o multiculturalismo como uma imposição de uma linguagem po-liticamente correta e como uma estratégia para aumentar a auto-estima degrupos minoritários que têm desempenho inferior não apenas na escola, masem outras esferas sociais. Portanto, longe de questionar regimes de verdadesracistas, o multiculturalismo conservador baseia-se em preconceitos e os re-força ao defender a valorização de padrões de desempenho claramente vin-culados às culturas hegemônicas.

Classicamente, os projetos educacionais conservadores alicerçaram-sena naturalização da diferença, especialmente tendo em conta distinções bioló-gicas entre os grupos. No que diz respeito à raça, por exemplo, muitos foramos estudos que buscaram mostrar a inferioridade de sujeitos não-brancos econstruíram suas propostas educativas baseadas nessa inferioridade. Se é pos-sível dizer que, atualmente, essas propostas são pouco expressivas, há resquí-cios do projeto conservador em muitas manifestações. No recente debatesobre cotas na universidade, alguns desses indícios ficaram claros. Podemosdestacar a insistência com que as cotas são relacionadas a uma diminuição dorendimento como parte da agenda conservadora que sempre se pautou poruma suposta diferença em medidas psicométricas dos grupos raciais1. Também

1. Além disso, a resposta a essas críticas vem, muitas vezes, de grupos engajados nas políticas deação afirmativa pela explicitação de que não há diferenças de rendimento entre cotistas e nãocotistas nas universidades. Nesse sentido, embora questionem a correlação estabelecida pe-los críticos conservadores, acabam por sustentar a própria comparação.

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a sugestão de que a universidade não é a única alternativa de educação, com avalorização do ensino profissional como opção preferencial para aqueles quenão têm acesso ao curso superior, traz a marca dos projetos conservadores.Por fim, vale assinalar que, mesmo com as propostas de discriminação positi-va, os currículos das universidades continuam a naturalizar a seleção de con-teúdos, tidos como universais, num visível privilégio da tradição ligada aoIluminismo europeu (Valentim, 2005).

Em comparação às propostas conservadoras que criticam as políticasmulticulturais, as abordagens tipificadas de forma genérica como liberais podemser consideradas progressistas (McCarthy, 1994), mas ainda falham na resolu-ção dos preconceitos contra a diferença. As teorias liberais são marcadas pelaaceitação do caráter heterogêneo da sociedade e pela compreensão de queas identidades sociais são definidas tendo em conta indicadores econômicos,culturais e/ou biológicos. McLaren (1997) entende que há propostas multicul-turais liberais cuja principal característica seria um certo humanismo, a crençaem um princípio de igualdade entre as pessoas, independente, por exemplo,de raça e gênero. A diferença, para os humanistas liberais, seria ocasionada porcondições desiguais do capitalismo, que fazem com que a competição socialseja desfavorável a membros de grupos minoritários. No entanto, ainda quereconheçam a diferença, as propostas liberais compartilham com os conser-vadores uma postura universalista, caracterizando-se por uma tentativa de in-tegração dos grupos culturais no padrão, baseado numa cidadania individualuniversal. As práticas particulares são aceitas, mas devem se limitar ao domí-nio privado. De forma geral, para os liberais, o culto à diferença ameaça ouniversalismo e a neutralidade do Estado, compromete a autonomia e a liber-dade individual e ataca a igualdade formal. Ao contrário, defendem a necessi-dade de uma convivência pacífica entre os grupos diversos dentro de umamesma nação (McCarthy, 1994). Afastam-se dos conservadores, no entanto,ao acreditarem na possibilidade de reversão das condições socioeconômicasque estariam na base da discriminação, especialmente com políticas integracio-nistas e compensatórias.

Para McCarthy (1994), as principais bases teóricas dos liberais são asteorias psicossociológicas e da privação cultural, a partir das quais explicam ofracasso das minorias nas escolas. O enfoque liberal é principalmente integra-cionista, propondo uma série de medidas para garantir a melhoria de acesso e

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permanência dessas minorias nas escolas. No geral, constituem-se em progra-mas compensatórios ou em reformas curriculares, com inclusão da história,idioma e conquistas das minorias. No Brasil, recentemente, a Lei n. 10.639/2003 obrigou a inclusão no currículo escolar dos temas História e Cultura Afro-Brasileira, além de História da África e dos africanos e a luta dos negros no Brasil,o que ainda não foi plenamente realizado. Na Universidade do Estado do Riode Janeiro, a primeira do país a adotar o regime de cotas, praticamente todasas intervenções propostas no cotidiano da universidade para lidar com a novasituação se assentam na idéia da privação cultural. Foram criados cursos derecuperação em conteúdos básicos – língua e matemática – e ampliadas asofertas culturais, como sessões de cinema, dentro de programas específicospara fazer frente à nova realidade. Políticas como essas reduzem as questõesraciais a um problema de rendimento acadêmico das minorias e à disposiçãoda escola de ajudar os alunos desses grupos. Dessa forma, a educação não éconsiderada como um lugar em que se produzem diferenças, sendo negli-genciadas as relações entre escolarização e as dinâmicas de raça, gênero eclasse.

Além do que tipifica como multiculturalismo liberal humanista, McLaren(1997) define uma versão de esquerda desse multiculturalismo, centrada noreconhecimento da diferença. Engloba as reivindicações de grupos minoritá-rios por escolas especializadas nas quais suas culturas sejam valorizadas, pro-posta que recebe muitas críticas quando se trata de escolas para negros ou ho-mossexuais, mas que é amplamente aceita quando se trata de grupos religiososhegemônicos – escolas católicas e protestantes, por exemplo. Trata-se, segundoo autor, de uma solução que inverte as posturas conservadoras, mantendo amesma lógica de um currículo monocultural e assentando-se na essencializaçãoda diferença. De forma geral, o pertencimento a um grupo cultural é entendi-do como garantia de autenticidade, o que torna a experiência de vida do sujei-to o fator primordial na construção de uma política de identidade. Embora tam-bém seja difícil hoje no Brasil encontrar projetos multiculturais deste tipo, algunsgrupos étnicos os têm defendido. Para McLaren (1997), isso é um equívoco,na medida em que a experiência da diferença se dá em um cotidiano rechea-do de ideologia, afetos e conhecimentos. As conclusões de McCarthy (1994)sobre a assincronia das diferenças caminham no mesmo sentido do questio-namento de uma identidade garantida por algum atributo essencial, seja ele

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biológico ou inclusive histórico. O autor demonstra, em uma série de exem-plos, como as reivindicações de minorias de classe, raciais e de gênero podemser antagônicas, em situações concretas. Nesse sentido, currículos centradosnuma variante cultural não hegemônica não implicariam a formação de sujei-tos com uma postura de defesa das culturas subalternas.

A tipologia de McCarthy (1994) inclui, para além dos projetos conser-vadores e liberais apresentados por McLaren (1997), a referência ao que de-nomina propriamente de projetos multiculturais. Trata-se de projetos que,dando conta da existência de diferentes culturas, buscam, de alguma forma,modos de regulá-la. Para o autor, foi o fracasso dos projetos liberais para lidarcom a sociedade multicultural que levou ao surgimento das alternativas mul-ticulturais, que podem ser subdivididas em três grandes discursos: da com-preensão cultural, da competência cultural e do empoderamento cultural.

O discurso da compreensão cultural lastreia-se no relativismo cultural,na aceitação da diferença como algo positivo e no diálogo entre os diferentesgrupos. Defende que os professores devem ser sensíveis às diferenças étnicas,buscando desenvolver atitudes positivas no que diz respeito a essas diferen-ças. No geral, assumem uma perspectiva benigna. No caso do Brasil, essapostura tem sido muito comum em propostas multiculturais2, tendo em vistaespecialmente a ideologia da miscigenação e da ausência de preconceitos ra-ciais. Por ela, a nação brasileira foi constituída por diferentes etnias e essa di-versidade é positiva na medida em que permitiu um desenvolvimento peculiardo país. A discriminação seria produto apenas de uma escola com currículosque não têm desenvolvido essa visão multicultural. A reversão dos preconcei-tos poderia ser atingida se as escolas assumissem uma visão mais positiva emrelação à diversidade cultural. A meta desse tipo de proposta multicultural é aausência de preconceitos, e por isso as atitudes dos sujeitos em relação a es-ses preconceitos desempenham um papel fundamental.

O discurso da competência cultural, por seu turno, advoga que o plura-lismo cultural deve ocupar um lugar central nos currículos, com a definição decompetências interculturais. Os programas mais comuns são os bilíngües,

2. Ver, por exemplo, o tema transversal Pluralidade Cultural dos Parâmetros Curriculares Na-cionais. Análise desse documento foi realizada por Macedo (2006).

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biculturais e étnicos baseados em valores pluralistas. Os alunos devem desen-volver a identidade étnica, o conhecimento e a competência em diversos sis-temas culturais. A educação intercultural pode ser um antídoto contra o pre-conceito, além de garantir a sobrevivência das culturas minoritárias. O objetivoé construir pontes entre as culturas. Essa opção privilegia uma mobilidade in-dividual sobre uma política de identidade coletiva. No caso do Brasil, relevan-te trabalho no sentido de uma educação intercultural vem sendo desenvolvi-do por pesquisadores nucleados em torno de Candau, cujas atividades emeducação e direitos humanos caminham no sentido do desenvolvimento devalores plurais. Nas palavras dessa autora,

...a educação na América Latina (...) somente assim poderá dar resposta aos

desafios do continente: assumindo uma configuração plural, reconhecendo o

conhecimento e as práticas educativas produzidas e acumuladas no continente,

fazendo da escola um lugar de cruzamento de saberes e linguagens, de educa-

ção intercultural e construção de uma nova cidadania. (2000, p.16)

Por fim, McCarthy (1994) identifica projetos vinculados aos discursos doempoderamento ou da emancipação cultural, centrados na história das mino-rias e na narrativa dos resultados que esses grupos vêm conquistando social-mente como instrumentos de favorecimento do sucesso escolar e econômi-co. Parte do princípio de que existe um desajuste entre o currículo e asexperiências vividas pelas minorias, uma vez que as escolas privilegiam os va-lores da classe média branca. Dessa forma, a escola tem um papel importantena produção da diferença, sendo necessário pensar uma reforma que dê igual-dade de oportunidades de êxito aos jovens das minorias. Para isso, o currículoprecisa incluir a história e as conquistas dessas minorias. A preocupação como empoderamento cultural tem estado presente, por exemplo, em muitas pro-postas educacionais ligadas aos subalternos e, no geral, por eles conduzidas,tais como os pré-vestibulares comunitários e as escolas ligadas tanto aos mo-vimentos sociais quanto às reivindicações indígenas. Um dos problemas queMcCarthy (1994) aponta em projetos desse tipo é que eles costumam assu-mir um tom otimista, passando por cima de relações sociais complexas que seestabelecem no interior da própria escola. Suas conclusões, a partir do estudoda realidade americana, é que trazer para os currículos materiais mais ligados

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às minorias não tem contribuído para diminuir a diferença nem no interior daescola nem na sociedade.

Essas tipologias certamente não dão conta do conjunto de possibilida-des que o termo multiculturalismo vem assumindo. Poderíamos, por exemplo,como Hall (2003), falar ainda em uma variante comercial, que reconhece adiversidade dos indivíduos com o objetivo de resolver os problemas da dife-rença por intermédio do consumo privado; ou em multiculturalismo corpora-tivo, em que as diferenças são administradas tendo em vista os interesses damaioria; ou de butique, privilegiando a comercialização e o consumo; ou mes-mo o que é chamado de gerencialismo multicultural, cuja semelhança com oapartheid é salientada por Maharaj (apud Hall, 2003). Ainda que não esgotemas possibilidades de pensar os múltiplos projetos para lidar com uma socieda-de multicultural, creio que esse panorama é suficiente para apresentar algunsindícios que me permitirão defender a necessidade de ir além de abordagensdesse tipo, por vezes incorporando parte de suas preocupações.

Entendo que não há dúvidas de que os projetos que têm sido classifica-dos como conservadores e liberais – por seu caráter monocultural, com oprivilégio das culturas hegemônicas ou com o endeusamento de uma cultura“subalterna” – precisam ser vigilantemente banidos de nossas experiências3.Quanto às variantes que McCarthy denomina multiculturais, essa certeza ne-cessita de argumentos que tento apresentar de forma mais orgânica. Como amaioria de nós defende, os projetos multiculturais buscam a solução das desi-gualdades, mas o fazem acreditando na “reversão de valores, atitudes e natu-reza humana dos atores entendidos como ‘indivíduos’” (McCarthy, 1994, p.87).

No caso de projetos educativos, a escola4 e o currículo assumem papelde relevo nessa reversão. São projetos que apostam na necessidade de inte-ração entre as culturas, diferenciando-se apenas parcialmente nas formas comoentendem que essa interação precisa ser realizada. A despeito de suas especi-ficidades, compartilham a idéia de adição ou substituição do que já está nocurrículo, seja na forma de novos conteúdos, seja de valores diferentes ou de

3. O que se torna mais difícil na medida em que muitas vezes não aparecem como projetosintegrais, mas como características hibridizadas em outros tipos de projetos, tal como desta-quei ao longo da seção.

4. Ou o lugar em que se dá o processo educativo.

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outras práticas pedagógicas. Essa adição somente se faz possível na medida emque as culturas são concebidas como repertórios partilhados de significados,fixos e homogêneos. Desses repertórios, caberia, então, selecionar um con-junto de práticas culturais a ser trabalhado pela escola, de modo que quantomais plural fosse a seleção, mais representativo seria o currículo. Trata-se deuma postura que, certamente, garante mais visibilidade a culturas não européias,freqüentemente marginalizadas pelas sociedades ocidentais. Isso abre a possi-bilidade de construção de alianças políticas para viabilizar uma abordagemrelacional que inclua os subalternos. No entanto, num mundo global, em queas relações de poder entre as culturas são francamente heterogêneas, não sepode falar em projetos multiculturais desse tipo sem questionar o lugar a serocupado pelas diferentes culturas nesse currículo plural. É possível uma inte-ração entre culturas na escola que não reproduza os preconceitos através dosquais as culturas subalternas são vistas socialmente? Ou a interação promovi-da em projetos multiculturais seria apenas mais uma forma de dominação a queas culturas subalternas estariam submetidas? Em outros termos: é possível umaconvivência entre culturas tendo em vista as relações de poder que permeiamsua própria existência?

O DIÁLOGO OU A TRADUÇÃO ENTRE AS CULTURAS É MESMOPOSSÍVEL?

As respostas às questões formuladas acima não são simples. Se, por umlado, a interação entre as culturas é marcada por relações de poder desiguais,por outro, a aposta na incomensurabilidade entre as culturas põe em questãoa função mesma da educação. Como indagam Burbules e Rice (1993), qual osentido de um projeto educativo como espaço intersubjetivo por excelênciase as culturas são incomensuráveis? Entendo que essa questão traduz um dosprincipais dilemas que o debate sobre a diferença apresenta à educação. Namaioria dos projetos multiculturais a interação entre as culturas é vista comouma somatória que, de forma um tanto quanto otimista, garantiria espaço paraa convivência intercultural. Para além da idéia de somatório, diversos autorestêm procurado tematizar a diferença cultural e pensar a articulação entre asculturas lançando mão de termos como diálogo (Burbules, Rice, 1993), tradu-ção (Santos, 2005) ou solidariedade (Gilroy, 2001).

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Moreira (2002), em estudo no qual busca compreender como a discus-são sobre multiculturalismo vem sendo incorporada ao campo do currículo,conclui que “a diferença e a crença no poder do diálogo para incrementar acompreensão entre as diferenças ocupam lugar de destaque nas falas e naspropostas pedagógicas de meus colegas” (p.21). Diz ainda que a preocupaçãocom o diálogo é mais forte para os autores que têm por objeto de estudo omulticulturalismo escolar do que para aqueles que se dedicam “mais à militân-cia política, (...) para [quem] vale mais a especificidade e a intensidade de cadaluta que o diálogo entre os diferentes grupos” (p.21). Embora a divisão dosteóricos em dois grupos seja questionável, ela explicita a tensão entre a idéiade que as culturas são incomensuráveis e a necessidade, sentida por alguns,de pensar formas de estabelecer uma ponte entre elas.

Assumo a idéia da incomensurabilidade entre as culturas, idéia que de-fenderei contrapondo-me às noções de tradução, tal como explicitada porSantos (2005), e de diálogo comunicativo como formulado por Burbules e Rice(1993). Fujo, porém, das teorizações de autores que apostam mais radicalmentena fragmentação, entendendo que a interação entre as culturas é necessária,mas deve ser pensada não como somatório ou equivalência (tradução) entrerepertórios de sentidos partilhados, mas como algo que se dá entre culturascomo espaço de enunciação.

Tal como salientado por Moreira (2002), a idéia de diálogo comunicati-vo é talvez a mais forte referência para autores que advogam a necessidade decriação de experiências interculturais na escola e no currículo. Em texto data-do de 1991, Burbules e Rice (1993) defendiam a necessidade de diálogointercultural, numa proposta fortemente influenciada pela teoria da ação co-municativa de J. Habermas. Nesse sentido, aceitavam que a comunicação li-vre de constrangimentos, embora impossível de se materializar em contextosespecíficos, devia ser o pressuposto de todo diálogo comunicativo. Sustenta-vam, assim, a idéia de uma razão universal, apesar das diferenças, voltada paraa necessidade de comunicação e de consenso.

Os autores acreditavam que o diálogo comunicativo seria capaz de cons-tituir identidades mais flexíveis e menos arbitrárias, de ampliar a compreensãodo outro e do próprio eu e de estabelecer “virtudes comunicativas”, dentre asquais a tolerância e o respeito às diferenças. Propunham, então, a criação deredes intersubjetivas tanto para criar significados comuns quanto para viabilizar

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“a compreensão, a tolerância e o respeito entre as diferenças” (p.194). Nesteúltimo sentido, os autores pensaram no diálogo como forma de permitir queas diferenças entrassem em contato, sem que necessariamente se chegasse aum acordo sobre as crenças e os valores a propósito dos quais se daria essediálogo. Seria possível um diálogo que não implicasse um acordo, mas em quese respeitassem as posições discordantes. E que permitisse o desenvolvimen-to de virtudes comunicativas para expressar uma “atitude afetiva e intelectual”com relação ao outro, uma disponibilidade que seria posta em ação em situa-ções contextuais específicas5.

Burbules e Rice (1993) tentaram fugir dos problemas representados peladistribuição desigual de poder entre as culturas, defendendo o diálogo comoestratégia. Assim, o produto da relação dialógica – o entendimento, fortementeinfluenciado pelas relações de poder – seria menos importante que o diálogomantido, que criaria a possibilidade de desenvolvimento de capacidades parao diálogo. No entanto, essa posição de Burbules e Rice é fortemente criticadapor Ellsworth (1997), com o argumento de que os limites da continuidade dodiálogo não são estabelecidos, o que torna impossível perceber, por exemplo,o lugar do inconsciente – com toda a sua descontinuidade – nas interações.Assim, o diálogo acaba por assumir um papel quase místico mediante o qual oentendimento se torna possível. Para a autora, ainda que fosse possível supri-mir as relações de poder no convencimento sobre as posições em diálogo, elasse explicitariam na própria obrigatoriedade do diálogo. Uma obrigatoriedadeque se estabelece pela excessiva positividade de que o diálogo é revestido,sempre associado à democracia e ao pluralismo. A ênfase na participação uni-versal, que Burbules e Rice simplesmente apagam, subjaz a essa mistificação,não intencional, da idéia de diálogo.

A argumentação de Ellsworth põe em questão a validade do própriodiálogo, denunciando o quanto sua obrigatoriedade conduz a um processo deexclusão. Apoiada na noção de modos de endereçamento, que traz do cine-ma, a autora considera que o discurso da participação universal controla aposição de sujeito que será assumida pelo “outro”. É nesse controle que resi-

5. Poderíamos dizer que uma posição semelhante é encontrada na noção de diálogo defendidapor Paulo Freire.

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de o poder que Burbules e Rice não percebem, o poder de definir quem é o“outro”. Um “outro” que pode participar do diálogo ou que será o sujeito detodos os vícios, aquele que desdenha a democracia. Nesse sentido, o diálogouniversal nada tem de universal, posto que repousa em uma exclusão. E o diá-logo plural não é capaz de, como apregoa, excluir a exclusão. Não se trata deum convite, mas de uma obrigatoriedade ao diálogo. Mesmo que, como argu-mentam Burbules e Rice, o diálogo pudesse redundar em respeito às posiçõesdiscordantes, essa discordância não inclui a opção pela não participação. Naspalavras de Ellsworth (1997), o que “o diálogo comunicativo não pode tolerar,o que ele tem que excluir, é aquele que diz: ‘nossas diferenças são tamanhasque você não pode me entender e eu não posso entendê-lo’. Isso rompe apossibilidade do diálogo” (p.107).

Para os autores que acreditam na necessidade de uma ponte entre asculturas, a idéia de tradução está muito presente, ao lado da noção de diálogocomunicativo. Entre os trabalhos que defendem a tradução intercultural des-tacam-se, pela importância crucial que vêm adquirindo na discussão da diferençano Brasil, os estudos de Santos (2001, 2003, 2005)6. O autor defende a arti-culação das diferenças na construção de um projeto alternativo contra-hege-mônico, articulação que repousa na crença da possibilidade de tradução entrerepertórios culturais diferentes. A noção de tradução é, para Santos (2005), umaalternativa às formas como a Modernidade lidou com as diferenças – criandouma teoria geral –, e também ao capitalismo global, ao neoliberalismo ou aoque denominaríamos lógica mercantil. O autor assume que a diversidade deculturas é uma realidade antiga que, tendo sido resolvida pela Modernidade coma alusão a noções como totalidade e teleologia, irrompe hoje como fragmen-tação e ausência de sentido de transformação social. Ainda que se preocupecom estas manifestações contemporâneas, defende que as respostas moder-nas foram igualmente problemáticas, na medida em que desperdiçaram expe-riências plurais e ricas que não cabiam nas totalidades construídas. Assim, adotauma posição muito própria, discordando das correntes que denomina pós-modernas celebratórias, que não vêem problemas na fragmentação e na au-

6. Santos é citado por Candau (2005), Moreira (2002), Moreira e Macedo (2002), Moreira eCanen (2001), entre outros.

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sência de sentido para a transformação social, mas, ao mesmo tempo, aceita-as como descrição da contemporaneidade. A proposta de Santos (2005) paralidar com o dilema contemporâneo tal como o apresenta é a instauração deuma razão cosmopolita, que se proponha “novas formas de pensar [as] totali-dades e de conceber [seus] sentidos” (p.801). Uma razão que viabilizaria “umajustiça cognitiva global”, necessária a uma “justiça social global” (p.813).

A razão cosmopolita centra-se em um trabalho de tradução que deveser levado a cabo por intelectuais cosmopolitas, ou seja, sujeitos enraizados naspráticas e saberes de seus grupos. A tradução seria, portanto, “o procedimen-to que permite criar inteligibilidade recíproca entre as experiências de mundo.(...) Trata-se de um procedimento que não atribui a nenhum conjunto de ex-periências nem o estatuto de totalidade exclusiva, nem o estatuto de partehomogênea” (Santos, p.802). Poderia se envolver saberes, na forma de umahermenêutica diatópica, ou práticas sociais e seus agentes.

Na perspectiva dos saberes, a tradução consistiria em identificar preo-cupações aparentemente semelhantes entre as culturas e as respostas que cadauma constrói. Está na base dessa proposta a idéia de que o diálogo entre asculturas não apenas é possível, mas capaz de ampliar as compreensões propi-ciadas por cada cultura pelo confronto entre posições divergentes. Todas asculturas são tidas como incompletas – universalismo negativo –, e a idéia deuma cultura universal é creditada ao fato de uma particularidade ocidental tersido erigida como universal. No que diz respeito às práticas sociais, Santos(2005) defende que a tradução objetiva “criar inteligibilidade recíproca entreformas de organização e entre objectivos de acção” (p.805). Trata-se de umapreocupação com os saberes aplicados que se torna mais evidente quando aspráticas são mais diversificadas do que os saberes que as informam. De formaanáloga à tradução dos saberes, a tradução das práticas busca determinar o queaproxima e afasta os diferentes movimentos. Dado que a tradução pode serealizar tanto entre a cultura hegemônica e as subalternas quanto entre estasúltimas, cria-se um espaço de articulação entre saberes e práticas subalternasrelevante para a construção de uma contra-hegemonia.

No campo das políticas culturais, a noção de tradução de Santos (2005)assenta-se na idéia de um consenso transcultural, que é tanto mais complexana medida em que as culturas em si também não são homogêneas. Para o autor,as culturas estão sempre em contato umas com as outras, criando zonas de

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contato, regiões de fronteira. São, portanto, híbridas. As relações que se esta-belecem nessas zonas são variadas, indo de relações coloniais a práticas detradução cosmopolitas. Nestas práticas, defende Santos, cada cultura define –e redefine continuamente – o que deve ser posto em contato, numa seleçãoque não é apenas ativa, mas também passiva. A seleção passiva é constituídafundamentalmente das ausências, algumas delas profundas, ocasionadas porformas diversas de opressões. As traduções que Santos destaca por seu po-tencial de transgressão são fundamentalmente as baseadas em experiências decarência que precisam ser superadas. Experiências de construção de outraszonas de contato em substituição às zonas coloniais observadas entre culturashegemônicas e subalternas. Experiências que são o “resultado de uma conju-gação de tempos, ritmos e oportunidades” (p.811) exercidas pelos diferentesgrupos sociais.

Ainda que Santos dê conta do hibridismo que caracteriza os contatosentre as culturas, percebendo a dinâmica que ocorre em zonas de fronteiracultural, seu trabalho de tradução é entendido como um trabalho argumenta-tivo. Essa característica traz algumas dificuldades para a idéia de tradução, es-pecialmente no que tange aos aspectos normativos que guiam o trabalho nazona de contato, muitas delas elencadas pelo próprio autor. Nessas zonas decontato onde se dá a tradução, é necessário um consenso básico válido sobrepremissas argumentativas, o que nos põe diante de questões de poder comoas que foram levantadas na discussão sobre a idéia de diálogo. Porém, maissérias ainda, são as dificuldades criadas pela percepção de que nem que todosos saberes e práticas são pronunciáveis em todas as línguas. Também os silên-cios que as constituem e alteram os sentidos do que é dito têm significadosdiferentes em culturas e línguas diversas. Essas dificuldades, especialmente noque se refere à linguagem, não são tratadas com profundidade por Santos eentendo que, apenas por isso, o autor pode defender uma proposta de tradu-ção entre culturas. Sustento que essas dificuldades dão conta de umaincomensurabilidade entre as línguas e entre as culturas, que por si sóinviabilizaria a experiência da tradução tal como apresentada pelo autor.

As críticas que procurei levantar às posturas que defendem a possibili-dade de algum tipo de equivalência entre as culturas – que viabilizariam tantoo diálogo comunicativo quanto a tradução como trabalho argumentativo – tra-zem a necessidade de pensar outras alternativas para essa interação. Noções

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como diálogo e tradução repousam sobre premissas de similaridade e diferençacomo instâncias relacionadas entre si. Necessitam que as diferenças sejamdefinidas tendo por base um padrão comum. Assim, as possibilidades tanto datradução (Santos, 2005) quanto do diálogo comunicativo (Burbules, Rice, 1993)acabam por reeditar, de alguma forma, a idéia de pluralismo, que sustenta tam-bém os projetos multiculturais. Fundamentam-se num tipo de pluralismo que,segundo Burbules7 (2003), “considera as diferenças como suplemento” (p.180).De forma diversa e me apropriando das palavras do próprio Burbules, enten-do que é necessária uma gramática da diferença, que explicite, sem essencializar,as diferenças, realçando-as em contextos em que elas não parecem significati-vas. Uma gramática na qual os sistemas em que se estabelecem as diferençassão postos em questão. Buscarei defender uma tal gramática valendo-me daidéia de que a cultura é um espaço de enunciação, e não apenas um repertó-rio partilhado de significados (Bhabha, 2003). Isso implica que a cultura seja vistacomo uma relação hegemônica.

SE AS CULTURAS SÃO INCOMENSURÁVEIS, QUAL O LUGARDA EDUCAÇÃO?

A incomensurabilidade e intraduzibilidade das culturas podem redundarem descrições de tal modo fragmentadas que não se pode sequer falar demediações entre as culturas particulares. Paradoxalmente, numa tal posição, oque sai de cena são as culturas particulares, na medida em que se fecham emsi mesmas e assumem o papel de totalidades constituídas em relação de opo-sição a outras totalidades. Essa ausência de mediação – além da clássica me-diação estruturalista entre igualdade/diferença – acaba por impedir a tematizaçãoda diferença como “diferença além”, “no interior” e “contra” (Burbules, 2003),restringindo-a a uma espécie de diversidade. Com isso, chego ao argumentocentral deste texto, qual seja, a necessidade – para que a educação tenha umarazão de ser como projeto – de uma negociação de sentidos entre as culturas

7. Burbules, em texto posterior ao analisado neste trabalho, publicado no Brasil em 2003, passaa considerar o diálogo comunicativo como uma impossibilidade e a defender aincomensurabilidade entre as culturas.

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particulares, uma negociação que será sempre política e que está na base dosprocessos democráticos.

Ainda que as posturas conservadoras e liberais quanto à forma como sedeve tratar a diferença na escola estejam presentes em práticas curricularescotidianas, creio que podemos afirmar que uma perspectiva essencial da dife-rença está sendo superada. De forma geral, os princípios do estruturalismotrouxeram ao centro da cena a idéia de que os processos de produção de sen-tido dependem da linguagem e de que a diferença é sempre um processorelacional. Assim, uma cultura particular só existiria em função de uma outraque se diferencia dela, não possuindo nenhuma característica interna que lhedê identidade. Essa visão não impede, no entanto, que as identidades cultu-rais, assim como as diferenças entre elas, sejam fixadas num processo cujosefeitos políticos se assemelham aos da essencialização. As referências que per-mitem tal fixação são mitos fundadores, constituídos por uma certa fidelidadeàs origens, às histórias comuns, à tradição. Ainda que mudem os marcos daidentidade – da biologia para a história e a tradição – a concepção binária dadiferença permanece, possibilitando a construção do eu e do outro a partir deuma oposição rígida entre o que está e o que não está incluído. Como ressaltaHall (2003), “a diferença cultural de um tipo rígido, etnicizado e inegociávelsubstituiu a miscigenação sexual enquanto fantasia pós-colonial primordial”(p.46). Projetos multiculturais que lidam com a cultura de forma orgânica, tra-tando os diferentes pertencimentos como experiências coletivas unitárias, nãosão incomuns. No campo educacional, a conceitualização da cultura comorepertório ou acervo de significados a serem manipulados ainda está muitopresente em propostas curriculares, mesmo quando explicitam preocupaçãocom a diferença8. Freqüentemente, a cultura é pensada como algo externo àsituação pedagógica de onde se deve tirar “os conteúdos” que serão trabalha-dos por um currículo inter/multicultural. Mesmo se contrapondo aos princípiosuniversalistas da nação ou mesmo do Iluminismo, acabam por estabelecer cul-turas particulares como totalidades.

8. Em textos anteriores abordei essa característica tanto em propostas curriculares, como osParâmetros Curriculares Nacionais – PCN (Macedo, 2006), quanto na produção teórica docampo do currículo (Macedo, 2004a).

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Apóio-me em Bhabha (2003) para tentar entender, de um lado, os me-canismos utilizados por essas culturas para se perceberem de forma holística,em contraposição aos “outros” culturais e, de outro lado, a ambivalência sem-pre presente nesse processo. De acordo com o autor, poderíamos falar de umacultura9 imaginada, de certa forma orgânica, marcada por uma temporalidadecontinuista que tira seus sentidos da história. É o que poderíamos denominardimensão pedagógica da cultura, dimensão que tende para a totalização ho-mogeneizante e cuja força no imaginário educacional nos ajuda a entender anoção reificada de cultura que predomina explicitamente em projetos inter/multiculturais. Uma reificação que fixa os sentidos da cultura nas tradições deum passado e implica na submissão da diferença à diversidade. Diversidade que,para Bhabha (2003), pode ser descrita como “o reconhecimento de conteú-dos e costumes culturais pré-dados; mantida em um enquadramento tempo-ral relativista, ela dá origem a noções liberais de multiculturalismo, de intercâm-bio cultural ou da cultura da humanidade” (p.63). Trata-se, portanto, de umaperspectiva que, mesmo não sendo essencial no sentido clássico do termo –associado à biologia ou à metafísica –, fixa e distorce a diferença.

Quero salientar, no entanto, a ambivalência entre essa dimensão peda-gógica e uma temporalidade performática da cultura, uma temporalidade quenega qualquer temporalidade anterior, qualquer referência a um passado es-sencialmente bom que seria a sua própria negação. A temporalidade perfor-mática introduz na coesão proposta por teorias orgânicas da cultura e da co-munidade – em que até mesmo gênero, classe, sexualidade são vistos comoexperiências coletivas unitárias – um elemento perturbador. A tensão entrerepetição e performatividade cria uma zona de ambivalência, um espaço-tem-po liminar que possibilita que a cultura se estabeleça como um lugar deenunciação onde a diferença cultural se constitui. O outro cultural que surgena temporalidade performática não é o negativo da cultura legitimada, mais uma ser somado às culturas já vistas na constituição de uma sociedade plural. ParaBhabha (2003), falar em cultura como lugar de enunciação é pensar em um

9. Bhabha (2003) trabalha a ambivalência dos conceitos de nação e de povo e não propriamen-te de cultura. No entanto, como define a nação ocidental como uma “forma obscura eubíqua de viver a localidade da cultura” (p.199), julgo possível utilizar os argumentos do autorpara tratar a cultura.

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entre-lugar onde as vozes marginais “não mais necessitem dirigir suas estraté-gias de oposição para um horizonte de ‘hegemonia’, que é concebido comohorizontal e homogêneo” (p.213). Ao contrário, o autor fala de uma luta quese dá entre “o tempo e a narrativa historicistas, teleológicos ou míticos dotradicionalismo – de direita e de esquerda – e o tempo deslizante, estrategica-mente deslocado, da articulação de uma política histórica de negociação” (p.64).

Na cisão entre uma temporalidade pedagógica e outra performática, queestabelece a cultura como lugar de enunciação, as identidades são sempre for-jadas num terreno movediço, em entre-lugares culturais, híbridos e comple-xos. Não podem ser concebidas com base numa oposição entre presença eausência absolutas, como proposto pelo estruturalismo10. Na perspectiva abertapor Bhabha (2003), seria mais produtivo pensar na diferença como defineDerrida (1991) no que denomina différance. Como no estruturalismo, a cul-tura é vista como um processo de atribuição de significados, significados estesque dependem de um sistema de diferenças. No entanto, na perspectiva pós-estruturalista de Derrida, tais significados não podem ser fixados de forma de-cisiva. Ainda que se mantenha a fantasia de um significado fixo, cabal, ele nun-ca será totalmente apreensível. Ao invés de oposições binárias fixas, a différance

introduz a incerteza que põe em interação as relações entre as culturas e osespaços que as distinguem, tornando a identificação dos sujeitos com deter-minadas culturas um processo ativo e contingente. Assim, o que muitas vezesdenominamos diferença entre culturas vistas como repertórios partilhados designificados nada mais é do que um retrato cristalizado de um momento parti-cular. Nesse sentido, quando, por exemplo, as políticas de ação afirmativas sãoquestionadas por uma suposta dificuldade de definição racial no Brasil, o queestá em jogo é uma atribuição externa de um epíteto racial aos sujeitos. Seanalisada da perspectiva da différance, essa crítica não se sustenta, pois o pro-cesso de identificação do sujeito com o grupo tem uma dimensão subjetiva eativa.

10. Na literatura sobre currículo, a idéia de que o outro é definido com base na oposição presen-ça/ausência é apontada com alguma freqüência como definidora de posturas pós-estruturalis-tas, o que segundo Peters (2000), é um equívoco comum na análise do estruturalismo e dopós-estruturalismo. A indistinção por vezes presente no campo do currículo dificulta atematização da diferença, aproximando-a da noção de diversidade ou pluralismo.

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A partir dessa noção de différance, Bhabha (2003) fala de um tipo detradução ou de negociação da diferença, como forma de subversão (Hall, 2003),que se distancia da tradução como explicitada por Santos (2005) e de propos-tas de diálogo comunicativo11. Trata-se de uma temporalidade em que elemen-tos antagônicos e até mesmo contraditórios se articulam sem a perspectiva dasuperação. Essa negociação cria espaços de luta híbridos, nos quais polarida-des positivas ou negativas, ainda que relativas, não se justificam. Ou seja, natemporalidade da negociação com a qual trabalha Bhabha (2003), não é pos-sível pensar em sentidos fixos, primordiais, que reflitam objetos políticos uni-tários e homogêneos. Categorias que têm alicerçado muitas de nossas lutaspolíticas – tais como negros, mulheres, gays, trabalhadores – só ganham sen-tido nos discursos que as constroem e, portanto, existem na tensão histórica,em que negociam espaço. Assim, elas próprias são um processo de tradução.Rearticulam os elementos que supostamente as constituem, contestando osterritórios que cada uma definiu para si. Nas palavras de Bhabha (2003), “cadaformação [identitária] enfrenta as fronteiras deslocadas e diferenciadas de suarepresentação como grupo e os lugares enunciativos nos quais os limites e li-mitações do poder social são confrontados em uma relação agonística” (p.55).Ao sustentar que essas categorias não implicam posições fixadas num espec-tro político claro, o autor não está propondo o fim da atuação política, mas anecessidade de se elaborar alternativas – políticas e teóricas – para um mundocontemporâneo marcado pela ambivalência dos pertencimentos identitários.Um mundo em que as formas divisionárias de identificação parecem mais for-tes do que as solidárias.

Mas, como pensar essa ação política? Que relações ela estabeleceria comos muitos projetos – conservadores, liberais ou multiculturais – em curso? Ima-gino que para dar uma resposta, ainda que provisória, a questões deste tipo énecessário revisar, como fazem Hall (2003), Bhabha (2003) e Laclau e Mouffe

11. A noção de tradução utilizada por Bhabha é um processo de construção de significado queenvolve uma interação entre as culturas. Como define Maharaj (apud, Hall, 2003), com baseem Derrida, “o tradutor é obrigado a construir o significado na língua original e depois imaginá-lo e modelá-lo uma segunda vez nas matérias da língua com a qual ele ou ela o está transmi-tindo. As lealdades do tradutor são assim divididas e partidas” (p.41). Nessa perspectiva, nãofariam sentido as dificuldades levantadas por Santos (2005) para a tarefa de tradução, tendoem vista que ela só é possível como processo de hibridação.

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(2001), a noção de hegemonia, entendida como categoria central das análisespolíticas. Apresento a questão tal como formulada por Bhabha, pois entendo queela dá conta dos dilemas contemporâneos enfrentados pelos movimentos sociais:

...poderão esses sujeitos divididos e esses movimentos sociais diferenciados,

que mostram formas ambivalentes e divididas de identificação, serem represen-

tados em uma vontade coletiva em que ecoa claramente a herança iluminista de

Gramsci e seu racionalismo? (2003, p.57)

Para Bhabha (2003), a hegemonia precisa ser pensada como um “pro-cesso de iteração e diferença”, no qual imagens diferentes vivem em antago-nismo com outras, tendo, portanto, uma “presença parcial”. Dessa forma, ahegemonia não pode, segundo o autor, ser entendida como “imagem da von-tade coletiva” (p.56). Tendo por horizonte epistemológico o pós-estruturalis-mo, e apoiando-se nos conceitos de desconstrução e de ponto nodal, Laclaue Mouffe (2001) suscitam uma discussão da noção de hegemonia que, a meuver, ajuda a pensar a questão tal como formulada por Bhabha.

Para Laclau e Mouffe, toda relação hegemônica assume, uma dimensãouniversalista, porém, é necessário reconceitualizar o sentido de universal, tendoem vista os sentidos que ele assumiu ao longo da história do pensamento oci-dental. Para o autor, esse sentido “resulta (...) de uma dialética específica entreo que chamamos de lógicas da diferença e lógicas da equivalência” (p.xiii). Deforma genérica, poderíamos dizer que toda cultura, ou mesmo todos os sujei-tos, assumem um lugar social particular, o que implicaria a inexistência de to-talidades, e redundaria não apenas na incomensurabilidade entre as culturas,mas na não-interação entre elas. Nessa perspectiva, não haveria particular,porque todo particular estaria fechado em si e se configuraria como uma tota-lidade. Ocorre que antagonismos sociais criam cadeias de equivalências entreparticulares, o que poderia ser aproximado da noção de solidariedade formu-lada por Gilroy12 (2001). No entanto, essa cadeia de equivalentes precisa as-sumir uma representação que transcende as particularidades, o que é realiza-

12. Entendo que a idéia de zonas de contato apresentada por Santos (2005) poderia ser pensadanessa perspectiva; no entanto, sua defesa da tradução como trabalho argumentativo reinstaura,em seu texto, uma perspectiva universal da razão que o distancia dessa abordagem.

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do quando uma particularidade assume a função universal13. É o que Laclau eMouffe (2001) caracterizam como uma relação hegemônica.

Assim, toda universalidade é contingente e reversível. Trata-se de umconceito político e, portanto, dependente das relações de força que se dãodentro das sociedades, que o autor denomina antagonismos sociais. Esses an-tagonismos são entendidos “não como relações objetivas, mas como relaçõesque revelam os limites da objetividade” (p.xiv). Nesse sentido, a discussão deLaclau afasta-se da idéia de diálogo, do que ele chama de “sacralização do con-senso” (p.xv) em que se movem muitos dos projetos políticos multiculturais.Toda negociação envolve, para o autor, uma relação hegemônica que impedesua total realização, o que é característico do projeto democrático. Na pers-pectiva de hegemonia defendida por Laclau e Mouffe (2001), os pertencimen-tos identitários mantêm a ambivalência de que fala Bhabha (2003). Ao mesmotempo em que defendem que as diferentes culturas são incomensuráveis, osautores se negam a aceitar algumas descrições pós-modernas em que as par-ticularidades se somam umas às outras sem nenhum tipo de mediação. Amediação, no entanto, não é estabelecida por nenhum princípio transcenden-te – como a vontade coletiva, por exemplo –, mas por decisões contingentes,que denominam hegemônicas.

As discussões de Bhabha e um conceito contingente de hegemonia pro-piciam uma nova forma de ver a ação política. Uma forma que difere tanto depropostas multiculturais em curso – que se alicerçam em uma mudança dasatitudes dos sujeitos —, quanto de posturas iluministas que personificam a re-sistência em um intelectual crítico, transformador ou cosmopolita. Ao invés deposições claramente definidas do tipo “o poder” e “a resistência”, a ação polí-tica pós-colonial de Bhabha se centra na “negociação na prática” (Hall, 2003,p.87), sempre agonística. Uma ação contingente levada a cabo por sujeitos quese definem “não como marginais, figuras de proa, profissionais ou acadêmicosatuando sozinhos, mas como cidadãos críticos cujo conhecimento coletivo eas ações pressupõem visões específicas da vida pública, da comunidade e docompromisso moral” (Giroux, 2001, p.19).

13. Aqui os autores se apropriam do conceito de ponto nodal, de Lacan, defendendo que todacultura particular pode assumir uma função universal, sem que nenhuma característica pró-pria dessa cultura seja a responsável por isso. Trata-se de um processo de identificação, quetorna possíveis transições hegemônicas dependentes do processo político.

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Parece-me central, no entanto, num tempo dominado por discursos glo-bais e homogêneos, por hegemonias que não se admitem transitórias, deixarclaro que o “negociar na prática” ou o negociar-com-a-diferença exige mobili-zação política. A argumentação de Bhabha (2003) de que toda cultura é híbri-da e de que não há, na interação entre culturas, a possibilidade de imposiçãoabsoluta (Macedo, 2004) não implica a desconsideração de estratégias que vi-sam à manutenção do poder colonial. Ainda que não seja absoluto, e apenaspor isso possa ser combatido, o poder colonial exige de nós uma articulaçãoestratégica dos saberes de diferentes grupos culturais sem que isso implique acontestação da singularidade da diferença. Como alerta o autor (2003), o po-der colonial não pode ser desprezado em suas tentativas de aniquilação dasculturas subalternas, com suas estratégias de estereotipar a diferença para re-duzi-la ao mesmo essencializado. Uma redução que busca controlar a ambi-valência da dominação, dificultando a luta subalterna. Contudo, é também ver-dade que essa dominação, por sua própria natureza híbrida, cria regiões defronteira em que se torna obrigatório negociar o inegociável, e é nessa regiãoque reside nossa esperança de construção de uma política da diferença. É cla-ro que não se trata de uma resistência capaz de surgir do nada, mas de umprocesso que pode ser construído por aqueles que habitam na fronteira entrediferentes identidades culturais e são capazes de traduzir “as diferenças entreelas numa espécie de solidariedade” (Bhabha, 2003, p.238). Uma agência pós-colonial necessita, como qualquer outra, de uma fundamentação, mas nãopodemos esperar construir uma fundamentação totalizada sob pena de estar-mos quebrando o jogo hegemônico necessário a um processo político demo-crático e realmente plural.

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Recebido em: fevereiro 2006

Aprovado para publicação em: março 2006