por uma lente amarelada perspectivas de uma fotografia
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Há um século ...............................................................................… 02
Retrato de um imediato amor de olhares, cores e dores .................. 03
Depoimento de Seu Manoel ................................................................. 03
Depoimento de Eduardo ....................................................................... 04
Entre os arcos e a casa de Deus ......……….................................…...... 05
Depoimento de Esteban ....................................................................... 05
Estudo em Amarelo ......................................................................... 06
Depoimento de Fabrício ......................………................…...…...……....... 06
Depoimento de Odile …..........………….........................................…........ 07
Depoimento de Laurent .………………………............................................. 08
Depoimento de François ..........................................................……..... 09
Ler-se ......……….................................…............................................ 10
Depoimento de Miguel .................................………………….....………….... 10
Depoimento de Francisco ..................................…… ……........…….......... 11
O poste e a Prece ............................................................................ 12
Depoimento de Piérre ........................................................................... 12
Depoimento de Maria das Graças ........................................................ 13
Infelicidade de gás acetileno ........................................................... 14
Depoimento de Romeo .......................……...………………………................. 14
Depoimento de Seu Jóca ...................................................................... 15
A memória como remetente ........................................................... 16
Depoimento de Edit.............................……...………………………................. 16
Depoimento de Isabel ........................................................................... 17
Ficha Técnica ................................................................................... 18
Sumário:
Florianópolis - Setembro de 2011 Travessa em Três Tempos Ano II N° 05
O fotógrafo desconhecido flagra a mulher anônima sob o poste de luz a gás acetileno, na rua Trajano, no Centro de Florianópolis. No primeiro plano está o adro da Igreja de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito, enquanto o muro sinuoso e o pequeno bosque deixam entrever (ao fundo) as fachadas de edificações alteradas pela platibanda. O cartão postal de 1904 integrava a “Collecção Luz no 1” e foi encontrado em Paris em 2001. Um francês de nome Roméo, estando de passagem pela Ilha, enviou o postal — datado de 2 de fevereiro de 1908 — ao parisiense Monsieur René Lachal, morador da Rue du Louvre, 34. No verso, está escrito: Mon cher René. Je suis ici, maintenant, à Sainte Cathérine, en voyage de trois mois, dans un bateau de guerre. (Meu caro René. Estou aqui agora, em Santa Catarina, em viagem de três meses num navio de guerra). Postado em 3 de fevereiro, chegaria por via marítima a Paris em 7 de março de 1908.
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Há um século
Retrato de um imediato amor de olhares, cores e dores
Eu viera de longe, sem saber precisar donde. Sei que muito andei, e em meio do caminho
conturbado, fui presenteado com uma máquina de fotografia por um barbudo enfermo que
nada mais perderia. Quando cheguei à região Catarina, fui muito falado; era o único fotógrafo
da ilha e toda hora me solicitavam num canto para registrar tal momento. Certa vez me
pagaram para fotografar cartões postais e, posso dizer, sem contesto, que fiquei em dívida
com o senhor que me requereu aquelas fotografias.
Um dos postais que fiz, e mais belo não há, representava uma moça numa rua escura
sob um poste de luz que pouco ou quase nenhum brilho emitia quando comparado ao fulgor
dos olhos da menina. O dono da gráfica dos postais de certo perdeu dinheiro por querer
retratá-la de costas. Para posar ao postal, estava pronta de saia solta e cabelo preso numa
trança que o vento já se encarregava de desmanchar. Deveras, ela se bastava. Nas noites que
se sucederam, em nada além daquela singela beleza pensei. Sonhava com seus olhos - que ora
sorriam, ora exibiam um epítome de vida – adentrando minh’alma sem bater na porta e se
instalando em meu mais profundo sossego. Ao acordar, afogado por seu olhar, prometi-me
que encontraria novamente a moça e eternizaria a que já estava em papel, dessa vez, em mim.
Durante uma dúzia de dias permaneci sentado àquela rua do postal, fazendo-a de meu
leito e navio. Ali, presenciei-a pela primeira vez. Ali, na espera, travei batalhas em sonhos
noturnos e naveguei mares, céus e olhares. E ali fui, novamente, prestigiado com a sua
comparecência. Ela veio - eu nem podia crer - em minha direção. Suficiente foi um olhar,
complementador foi um toque, e, em um segundo, um minuto ou um mês – já não lembro e
nem importa mais – passamos a viver no mesmo corpo, usar o mesmo óculos, nos
alimentarmos da mesma semente.
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Florianópolis - Setembro de 2011 Travessa em Três Tempos Ano II N° 05
Depoimento de Seu Manoel
O fotógrafo que enlouqueceu? Conheci sim, ele ficou encostado na Trajano por umas duas
semanas. Eu sei bem, porque ele ficava a uns metros da porta da minha loja. Se bebia ou comia
alguma coisa era porque minha irmã tinha pena dele e ia o alimentar. Ela disse que nunca trocou
uma palavra com ele, o máximo que o homem conseguia era sussurrar um nome por entre os
dentes. Ele segurava a foto da francesa que foi encontrada morta perto da catedral, dizem que foi
suicídio. Minha irmã acha que eles tiveram um caso e que agora ficava esperando por ela, como se
ela fosse chegar a qualquer momento - minha irmã disse que ele parecia estar doente. Há uns dois
dias ele desapareceu, a última notícia que tivemos foi que ele estava queimando a dita fotografia.
Deve ter se dado conta que estava chorando por uma morta.
Depoimento transcrito por [M.B.]
Entre nós, nenhuma palavra precisou ser pronunciada: o olhar poupou-nos disso. Nunca
precisou abrir a boca para falar-me e meu ouvido jamais ouviu sua voz. Bastava existirmos
para que ouvíssemos juntos, e um ao outro. Se, quando nessa cidade cheguei, eu somente
sabia que viera de longe, agora compreendia que viera para ela. Passamos a viver mergulhados
num céu denso e tremulando em infinito oceano. Foram tardes esplendorosas e noites de
entrega. Foram os nossos dias.
Lamento, e lamento muito, por estar tão cego de amor a não perceber a moléstia que
tomava conta dela. Em uma manhã, a moça, doente não só de amor, derradeiramente
despejou suas hipnóticas íris sobre meus olhos e, diftérica, partiu. Não era digna a minha dor,
nunca foi. Senti como tivessem me arrancado pedaço da alma, do corpo, da vida. Diferente de
meu interior, o único retrato em que ela ainda se perpetuava permanecia inundado por meu
pranto. O seco tempo que se passou foi vão, de modo que dois ou mais calendários anuais
tornaram-se arcaicos sem que eu sequer percebesse. Sucessivas estações precisaram decorrer
até eu perceber que, enquanto sempiterna em papel, o pesar eternizar-se-ia aqui. Até que um
dia, e esse não tão nosso, tateei meus pertences e apanhei o isqueiro. As mãos tremiam, o
corpo desidratava, a saudade pedia que não, mas a consciência suplicava para que eu fizesse. E
fiz.
As cores, que com o tempo estavam desbotando, agora flamejam fervorosas numa
chama alaranjada. O papel, que dantes ilustrava, desfaz-se em cinzas. Os nossos dias, que até
hoje choro por não mais serem, no passado ficaram aprisionados. As lágrimas, que de modo
onipresente me acompanharam, sem demora são secadas pelo vazio que cá dentro se
expande. E, finalmente, o fogo, que um dia ardeu por ti, moça, prontamente arde por nós,
executando tua lembrança material, mas conservando-se incapaz de apagar-te de mim.
Historieta narrada por Ma. Epítoma
Florianópolis - Setembro de 2011 Travessa em Três Tempos Ano II N° 05
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Depoimento de Eduardo
O Joaquim estava mesmo enrabichado por aquela francesa. Eles tiveram um caso rápido
antes do acontecido dela... bem, você sabe. Estive com Joaquim depois que ele recobrou a
consciência e ele me contou o que aconteceu. Disse que depois que a moça morreu tudo o que
conseguia fazer era olhar para aquela fotografia, segundo ele a última que tirou na vida, pois já
quebrou sua máquina. Com o passar dos dias, ainda sentado na Trajano, começou a enxergar as
coisas de uma maneira diferente – me refiro à visão mesmo. Disse que tudo começou a ficar
amarelado, e em poucos dias tudo o que conseguia ver era um borrão em tons de amarelo. Foi aí
que, segundo ele: ela voltou! A via todos os dias, no mesmo horário, disse que ela brilhava no mais
belo tom de amarelo que já tinha visto. Fiquei em dúvida se contava que a moça que ele via na
verdade era a irmã do Seu Manoel que ia lhe levar comida?!
Depoimento transcrito por [M.B.]
Entre os arcos e a casa de Deus O viajante viu a mulher que olhava o horizonte, e suspirava. Negra como não havia em
sua terra, ela estava perto da casa de seu Deus. Por um momento ele invejou ou teve sincera
complacência por quem recebia tal apelo. Tal como ele esperava que um dia a pessoa que não
queria lhe amar suspirasse. Fechou os olhos e imaginou o amado com os olhos no horizonte a
sua espera.
Sabia que não era possível. Não passou pela cabeça do nômade que algum dia seu ente
querido fosse lhe amar. Por isso fugia - em fato. Seu amado amava outra, ou assim lhe
indicavam os fatos. Não explicara aonde ia, tampouco cabia explicar-lhe, pois assim não seria
uma fuga legítima. Fuga por amor e por causa de núpcias; diferente das fugas de amantes,
aquela era um abandono. Abrira mão de lutar pelo seu ente amado. Cansou de suspirar ao seu
lado, resolveu suspirar a bordo de um navio.
Indagou-se: seria a fotografia o próprio dia do juízo? Um momento colado no presente
eternamente. Mesmo que nunca houvesse falado com a mulher que suspirava, sentiu tamanha
comunhão com seu ato que o perpetuou. Um suspiro pelo amante que parte ao lado de Deus.
Agradeceu a Ele, que tão perto se encontrava e resolveu enviar para seu amado platônico e
verdadeiro. Contando seu paradeiro, talvez o nômade também virasse alvo de um suspiro.
Não que René soubesse onde era Santa Catarina ou mesmo rezasse para o negro santo
Benedito. Da foto, René se interessaria apenas pela arquitetura tímida do canto: morava na
rue du Louvre porque tinha como esquina a linda cúpula de “La Halle” e o encantava seus
portais arredondados. Das arábias à França até a pequena ilha de Santa Catarina. Talvez a
nostalgia tivesse aguçado as lembranças de Roméo.
O fotógrafo poderia fingir que o principal eram os portais no fundo da foto, no entanto,
ela continuava sendo um tributo ao suspiro da negra. Mesmo de uma mulher, Roméo o
invejava. Entre o nômade e os portais em arcos, Monsieur René Lachal já deveria estar casado
por ora. Não havia como um fotógrafo competir com uma jovem dama no centro de Paris.
Historieta narrada por Ivan.
Florianópolis - Setembro de 2011 Travessa em Três Tempos Ano II N° 05
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Depoimento de Esteban
Yo nací en el mar! Quando tive a oportunidade de me alistar a tripulação do General Cortázar, não
pensei duas vezes. Um navio de guerra era tudo o que tinha desejado para minha vida de marujo.
Quando criança cogitava a pirataria, mas já não era uma coisa vista aos bons olhos da lei; e eu
nunca quis arrumar problemas com ela. A vida de marinheiro é dura, muitos se tornam homens de
sentimentos duros por causa do tempo no mar, muitos sentem falta da família que abdicaram,
outros tantos sofrem em silêncio quando vêem que o mar não era como imaginavam. Conheci um
marujo, um dia. Este foi o único que nunca ouvi reclamar da maré. Quando embarcou no Cortázar
tinha os olhos marejados por aquilo que imagino eu fossem horas de lágrimas. Foi o único
momento que o vi falar de seus sentimentos, dissera que os tinha enterrado em um postal
enviado à Paris. Nunca tive coragem de perguntar ao que ele se referia.
Depoimento transcrito por [M.B.]
Estudo em amarelo
Posso garantir a vocês que o museu do Louvre é um lugar interessante e misterioso.
Talvez isso ocorra, pois essas são características típicas do passado: interessante e misterioso.
Faz quatro anos que trabalho no museu. Sou estudante de História na Sorbonne, e devo dizer
que consegui um ótimo emprego – bem, ao menos era o que eu pensava no começo, mas na
realidade nem sempre foi assim. No começo fui obrigada a fazer de tudo, desde limpeza até
servir café. Depois me mandaram para o atendimento ao público – ou seja, os turistas – pois
domino muito bem o inglês, o alemão, e consigo enganar com o italiano, além do francês,
evidentemente. Contudo eu sempre quis ser remanejada para o acervo do museu. Faz apenas
dois meses que finalmente consegui esse posto, e vocês não sabem como é incrível! Os
visitantes acham o Museu do Louvre algo descomunal, colossal, mas não fazem idéia do
verdadeiro tamanho da pérola de Paris! Galerias e mais galerias se estendem por debaixo das
ruas da cidade luz com os quadros, vasos, estátuas, e jóias mais valiosas do mundo. Um
verdadeiro labirinto subterrâneo. Um labirinto cheio de poder, riqueza, sangue, paixão, arte e
passado; cheio de passado.
Lembro que quando comecei a trabalhar no museu, François, meu ex-namorado (que já
trabalhava no acervo) estava organizando junto com a equipe uma série de postais antigos
vindos do Brasil – vocês não fazem a mínima idéia das coisas que vem parar aqui no Louvre - e
as imagens ficaram guardadas em minha memória. Não sei bem o porquê, acho que foi porque
eu sempre quis conhecer o Brasil. Alguns dias atrás meu supervisor me mandou a uma das
galerias pegar uma série de mapas do explorador Marco Polo que iriam subir para a exposição.
Dentro de um desses ditos mapas encontrei uma série de cartas, escritas em português,
datadas do começo do século passado. O que cartas em português estavam fazendo dentro de
um mapa de Polo?! Como eu disse, é típico do passado ser misterioso. Como o português é
uma língua que não domino (ainda) mandei as cartas para o Fernando, um amigo português
que já
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Depoimento de Fabrício
Nasci na beira do mar e passei toda minha infância desejando descobrir o que existia além do
horizonte. Mas naquela época o máximo que tinha conseguido alcançar não passava de algumas
léguas para além da praia. Meu pai era pescador, o que significava que eu era o primeiro
tripulante de sua velha canoa de pesca. Porém, o que eu queria mesmo era desbravar os mares. Já
tinha deixado de lado essa ideia quando chegou ao porto de Florianópolis um navio de guerra
vindo de Madrid. No momento em que o navio atracava no porto conheci dois franceses, um
chamado Pièrre e outro Romeo. Fizemos grande amizade e decidimos partir juntos no General
Cortázar. Mas antes que finalmente ganhássemos o mar, Pièrre me pediu que transcrevesse uma
carta para seu irmão mais velho René. Romeo aproveitou para enviar um postal para Paris, mas
nunca comentou sequer o nome do destinatário.
Depoimento transcrito por [M.B.]
Florianópolis - Setembro de 2011 Travessa em Três Tempos Ano II N° 05
que já mora na França há algum tempo. Quando a tradução ficou pronta, lembrei
imediatamente de um dos postais, aqueles do Brasil, dos quais falei antes. Não sei se foi
coincidência ou se foi destino, mas de alguma – misteriosa - forma os dois estavam
conectados, segue a tradução:
Querido René,
Devo começar esse meu relato pedindo desculpas por ter desaparecido dessa forma, você
deve ter ficado preocupado – além de zangado – no entanto irei explicar minhas razões e espero
que você as leve em consideração. Você bem sabe que eu nunca fui o mais extrovertido entre nós,
muito menos o mais inteligente ou o mais bonito, contudo pensei que se eu não era o melhor em
nada, então Deus me faria o mais saudável. Tolice de minha parte! Você deve se lembrar do mal
que acometeu nosso pai antes de sua morte; a cegueira. Nós dois crescemos escutando os
médicos alertarem que era possível que tal mal nos acometesse também. Creio que não irá
acontecer com você, pois você também é o mais sortudo, no entanto, aconteceu comigo! Foi
surgindo aos poucos. Primeiro a dificuldade em enxergar detalhes, depois as sombras, depois
tudo começou a ficar turvo e amarelado. Não contei nada a você, pois tinha vergonha de minha
doença e sempre fiz o máximo para evitar que as pessoas percebessem.
Meu caro irmão, eu passei a minha vida toda em Paris. A vida toda olhando os prédios,
ruas, mercados, museus, cafés e esquinas da maldita Paris! E para quê?! Para depois ficar cego?!
Eu não tive a chance de olhar o mundo, meu irmão, e isso me deixou muito triste. Também pouco
tive a chance de ver o amor, pois só deslumbrei uma dama nua uma única vez antes que a
cegueira começasse. Decidi então que se não poderia ver o mundo, ao menos iria senti-lo!
Comecei a viajar, assim mesmo, sem me despedir, e novamente peço que me perdoe.
Desde então passei por muitos lugares desse mundo, da gélida Rússia à árida Etiópia. Hoje
estou no Brasil, ao sul do Brasil, em uma ilha chamada de Florianópolis. Dizem que é um lugar
bonito,
Florianópolis - Setembro de 2011 Travessa em Três Tempos Ano II N° 05
Depoimento de Odile
Trabalhei na recepção do Louvre durante um tempo, duas semanas – graças a Deus. Me
irritavam aqueles milhares e milhares de turistas mal educados entrando e saindo infinitamente.
Eu não gosto de turista. Aceitei o trabalho no Louvre, pois estava precisando ocupar meu tempo e
o cara da recepção era um gato. Enfim, um dia chegou um doido dizendo que trazia uns mapas do
Marco Polo para doação. Eu ia colocar aquilo tudo fora, desde quando mapa raro do Marco Polo
chega pela recepção? Mas resolvi mexer naquilo tudo para ver o que era. Bem, os mapas eram
velhos mesmo e cheiravam a mofo, mas tinha uma carta no meio que me chamou a atenção. Era a
de um cego que provavelmente queria fazer as pazes com o irmão; tinha uma foto junto da carta,
era realmente muito bonita. Separei a foto, pois achei que ela valia alguma coisa. Quando ia
colocar os mapas no lixo, chegou meu supervisor e me demitiu. Achei o máximo.
Depoimento transcrito por [M.B.]
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bonito, eu não sei, só sei que é amarelo assim como todo o resto, mas imagino que seja uma bela
ilha mesmo. Tudo é amarelado, meu irmão, pois Deus está no amarelo, hoje eu entendo, hoje
posso sentir coisas que antes não podia. Sábios foram os egípcios que veneravam o Sol! No
entanto essa carta não vem carregada só de melancolia e lamentação, oh não René, ela também
traz boas novas. Eu descobri um novo modo de enxergar! Através da fotografia!
Essa nova técnica não pode devolver minha visão, mas pode fazer com que as pessoas
vejam o que eu estou olhando! Não é fantástico?! Quando passamos por New York, há alguns
meses, comprei um equipamento fotográfico para mim. Estou começando, ainda sou um
principiante, mas as pessoas estão dizendo que eu tenho talento! O mais curioso é que não tenho
como saber se as pessoas estão falando a verdade ou só falam isso para serem gentis, para
serem gentis com o pobre cego. É por isso, querido irmão, que mando junto dessa carta uma de
minhas fotografias. Eu quero a sua opinião e sei que você é incapaz de mentir. A cena foi
planejada, pedi para a mulher se posicionar próxima ao poste, mas não tenho como saber se ela
me obedeceu, enfim, espero que goste.
Em breve partiremos para a Argentina e em seguida para o Uruguai e para a Patagônia
Chilena. Estou pegando carona em um navio de guerra espanhol, o General Cortázar. Há muitos
navios de guerra hoje em dia, parece que por todo o lugar os povos estão se preparando para
uma Grande Guerra. Temo que algo assim aconteça em breve, mas esses são apenas devaneios.
Estou muito excitado com a idéia de fotografar as geleiras da Patagônia! Não pretendo voltar à
Paris enquanto viver. Espero que você prospere com os negócios do papai e que nossos destinos
voltem a se cruzar em algum outro momento, em algum outro lugar.
Claro, já ia me esquecendo. A língua estranha dessa carta é o português. Ditei ela ao
Fabrício, um jovem amigo meu, espero que ele tenha escrito exatamente o que falei, mas confio
nele. Deve ter alguém por Paris que saiba traduzir esse idioma para o francês.
De seu irmão mais velho, Pièrre.
Florianópolis - Setembro de 2011 Travessa em Três Tempos Ano II N° 05
Depoimento de Laurent
Conheço os irmãos Tardin, desde que trabalhava com seu pai Jacques. Um dia Pièrre saiu de casa e
nunca mais voltou, ninguém soube o motivo do desaparecimento. Sophia, a mais nova, era a mais
ligada ao irmão e sofreu em silêncio por anos. Um dia, eu estava em nosso velho escritório, era
uma sala aconchegante no andar de baixo da casa onde a família morava antes de Jacques falecer,
o carteiro bateu na porta. Surpreendi-me, pois aquele endereço não era mais utilizado para
correspondências. Passara lá para pegar uns antigos mapas que Jacques pedira para doar ao
Louvre. Ao pegar o envelope e ver o remetente, fiquei tão admirado que corri para a casa de René;
antes passei no Louvre para entregar os mapas já que era caminho. Quando cheguei ao destino
não consegui mais encontrar a carta, procurei dentro do carro, voltei ao escritório e nada. René
achou que eu estava lhe contando uma piada de mau gosto.
Depoimento transcrito por [M.B.]
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A história do fotógrafo cego me interessou muito, me interessou tanto que fui pesquisar
quem eram essas pessoas. Não custei muito a descobrir: Pièrre e René Tardin. Herdeiros
diretos de uma das maiores editoras de livros da França, a Ecos, fundada pelo pai dos irmãos,
Jaques Tardin. A Ecos é muito famosa por deter os direitos autorais de edição sobre as obras
de Victor Hugo. Evidentemente eles eram abastados financeiramente. Fiz algumas pesquisas
em jornais e descobri que René Tardin continuou os negócios do pai e ficou muito rico sem
muito esforço, no entanto, morreu precocemente, aos 54 anos, por causa da cirrose. Devia
beber muito, eu presumo. Mas isso não fez com que as portas da Ecos se fechassem, a editora
continuou, e ainda, prosperou sobre a direção de Sofia, a caçula da família, que não é
mencionada na carta de Pièrre, o primogênito. Fico me perguntando o porquê disso? Haveria
alguma desavença entre irmão e irmã? Ou Pièrre teria uma relação mais íntima somente com
René? Enquanto ao paradeiro de Pièrre, o fotógrafo cego, é algo que permanece tão turvo
quanto a sua cegueira, ou melhor, amarelado.
No próximo mês, estarei indo de férias para Madri, visitar um primo. Vou procurar pelos
arquivos espanhóis algo que fale sobre o destino do navio General Cortázar, por mais que eu
ache muito improvável que Pièrre Tardin apareça na lista de marujos. Desde então venho
procurando, no próprio acervo do Louvre, mais fotos de Pièrre; tudo em vão. Ainda há certos
aspectos em toda essa curiosa história que me intrigam: teria René recebido a carta e a foto? O
que ele teria pensado de tudo isso? Qual seria a sua opinião sobre a foto? Onde estava Sofia
nesse momento? Por onde mais terá viajado Pièrre Tardin? E ainda mais: como a foto e a carta
se separaram quando chegaram ao Louvre? Ou ainda: como a carta foi parar dentro de um
raríssimo mapa de Marco Polo? Creio que minha curiosidade de historiadora não será sanada
tão cedo e nem de forma tão simples, mas, como eu venho dizendo ao longo desse relato, é
típico do passado ser interessante e misterioso e cabe a nós aceitá-lo dessa forma.
Historieta narrada por Posseiro das Palavras
Florianópolis - Setembro de 2011 Travessa em Três Tempos Ano II N° 05
Depoimento de François
Trabalho no acervo do Louvre há dois anos e posso dizer que foi a melhor coisa que pôde
me acontecer. Decidi estudar História numa visita muito inspiradora ao Louvre, quando ainda
tinha uns 10 anos. Não me lembro muito bem da ocasião, mas lembro da sensação sublime que
senti nos dias que seguiram a visita. Tudo o que eu queria era me perder e me encontrar nas
galerias do Louvre. Quando fui admitido como estagiário quase não acreditei, e no dia que fui
promovido ao acervo vi meus sonhos de historiador se realizando. Bem, nesses anos vi muita coisa
interessante no acervo. Mas o caso mais curioso que me aconteceu foi encontrar uma fotografia
tirada no Brasil, em Florianópolis. Ela estava sem referência, mas podia-se ler no verso: René, je
crois que la photo est belle, Romeo m’a demandé une copie. [René, creio que a foto é bonita,
Romeo pediu uma cópia]. Mais tarde fui descobrir que fora um fotógrafo cego quem tirou a foto.
Depoimento transcrito por [M.B.]
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Ler-se
“Por que agora me lês se não te importas comigo? Pensei alto. Não há o que fingir,
sejamos honestos. E diretos! O que escrevo é apenas mais um relato meu para mim e mais
ninguém. Nada que será escrito é novo - ainda continuarás me lendo? - Continuei falando
alto comigo.
Postergo minha vida por alguns dias. Não é muito fácil conviver com a idéia de ser
uma suicida que ainda vive. Falhar no ato de libertação é um erro que talvez nem o general
Crasso fosse capaz.
De qual parte vim, em qual parte estou e para qual parte irei... Demasiadas idéias que
circundam e traçam uma tautologia etílica de uma mulher francesa. Ao ler-me, comecei a já
não mais desfrutar os prazeres da vida. Tornou-se compulsiva essa busca pelo auto-
descobrimento-destrutivo. Conhecer-se é perceber-se mais humano, mais desumano, o
menos possível. É se destruir naquilo que supostamente se acreditava estar construído:
algum caráter.
Ao me mudar, não me vi mudar. Apenas percebi algum egocentrismo que estava em
estado latente de hibernação em mim. Escondido por desculpas multiplicadas com o passar
do tempo: não é minha culpa, pensava.
Florianópolis - Setembro de 2011 Travessa em Três Tempos Ano II N° 05
Depoimento de Miguel
Margot viera da França para conhecer o calor dos trópicos, e acabara conhecendo um
fotógrafo francês cego, de nome Pièrre, que lhe contratou para pousar encostada em um poste.
Mas acontece que a modelo que pousou para o cego aquele dia foi outra. Uma completa
desconhecida que resolveu descansar na hora errada e no lugar errado [ou certo], fazendo da foto
completamente espontânea. Margot, que tinha seu lado estrela, achou que o francês tinha lhe
traído e de raiva pediu para que um jovem fotógrafo da capital lhe fotografasse na mesma pose.
Pretendia humilhar o cego fazendo com que todos comentassem que a foto de outro era mais
bonita que a dele, mas acabou sendo encontrada morta no mesmo dia em que foi fotografada. As
evidências apontaram suicídio, mas o fotógrafo que eternizou seu derradeiro brilho até hoje
acredita que ela não morreu naquele dia, e sim de doença, semanas depois.
Depoimento transcrito por [M.B.]
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Deveria - ao me mudar para o Brasil, descobri que o modo indicativo futuro do
pretérito é o favorito daqueles que fracassam nesse País onde a ginga do futebol e do
samba comprometem de algum modo ainda não muito esclarecido o esclarecimento da
população: deveria - ter ficado na cidade do iluminismo, onde nasci. A língua que não me é
comum, a comida feita por negras alforriadas que não é nada comum, distanciam-me cada
vez mais de mim.
E tem a paixão... “
O diário de Margot termina aqui. Fotografei-a no último dia em que ela “leu-se”. Na
imagem, vê-se a jovem na cidade de Florianópolis - está junto a essa carta que te mando,
meu caro amigo René. Horas após de tê-la visto, soube que o corpo foi encontrado à beira
da Igreja Nossa Senhora do Desterro. Estava morta e curiosamente segurava apenas uma
página da sagrada escritura com os seguintes dizeres: “o senhor é meu pastor e nada me
faltará.” Mas algo faltou. Afinal, quem se importa?
Romeu.
Historieta narrada por L!
Florianópolis - Setembro de 2011 Travessa em Três Tempos Ano II N° 05
Depoimento de Francisco
Meu amigo Joaquim nunca foi muito bom dos miolos. Chegou à Florianópolis com uma mão
na frente e outra atrás, seu único bem era uma máquina fotográfica que segundo ele havia
ganhado de um moribundo. De fato, a máquina fotográfica foi sua salvação e perdição. Com
dificuldade conseguiu juntar um dinheirinho tirando umas fotografias para uma gente granfina.
Depois disso melhorou de vida e chegou a ser conhecido como o primeiro fotógrafo de
Florianópolis. Um dia foi contratado para retratar cartões postais, foi quando as coisas começaram
a desandar. Conheceu uma francesa de nome Margot, se apaixonou pela dama e parece que até
tiveram um caso rápido. Sua última foto foi dessa moça, ela tinha arranjado briga com um tal
fotógrafo cego e queria lhe dar o troco. A foto ficou realmente perfeita, mas a moça foi
encontrada morta horas depois. Foi aí que Joaquim perdeu completamente o juízo.
Depoimento transcrito por [M.B.]
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O poste e a Prece
Acordara cedo naquele dia, sem qualquer pretensão de mudar de vida. Pôs chinelos nos
pés cansados, aqueles pés de pele grossa e calcanhar de pedra; de pedra sua resignação e seu
coração.
As cores do céu que se alumiava com os primeiros momentos da manhã de Florianópolis
nem passavam por seus olhos, preocupados com coisas mais importantes que qualquer matiz
de cor. Cinza e azul eram o mesmo para ela, que precisava se levantar a qualquer custo.
Por mais fria que estivesse a brisa que entrava pela janela mal feita de seu quarto, saiu
debaixo das cobertas surradas e deixou o marido ressonando ali pelos derradeiros minutos.
Também ele não via o céu desde a meninice.
Um dia foram, ele e ela, protagonistas de um curto período de paz a dois. Tendo
descoberto juntos o que o amor dos poetas pretendia ser, uniram-se sem muito o que dividir,
resistindo a todo tipo de adversidade, e às vezes ela sentia o amor dos dois ainda presente.
Como fosse a fumaça de um cachimbo que se apaga, mas que por alguns momentos persiste
no ambiente fechado de um escritório.
A saia xadrez e o casaco folgado, os cabelos negros presos por grampos. E ela saía de
casa, todo dia, rumo às ruas onde vendia o alimento que às vezes lhe faltava. Naquele dia
sentia que não obteria muito lucro.
Enquanto isso, noutro bairro, noutras circunstâncias, um fotógrafo se levantava,
apreciando a fria brisa que o faz sentir vivo. Os ares do céu azul que ele lamentava não poder
captar colorido com seu filme davam-lhe inspiração.
Florianópolis - Setembro de 2011 Travessa em Três Tempos Ano II N° 05
Depoimento de Pièrre
Fazia dias que vinha criando aquela foto em minha amarelada imaginação, já estava tudo
combinado com uma modelo. No grande dia a cidade estava reluzente num amarelo que eu
jamais tinha visto. Cheguei empolgado ao local combinado, achando que tudo correria bem.
Recebi a notícia de que a modelo estava atrasada, mas não me abalei pois tudo estava
amarelamente lindo. Enquanto me posicionava próximo ao poste onde a modelo iria posar,
Romeo me indicou o local mais adequado, senti que uma mulher se aproximou do poste. Imaginei
que a modelo havia chegado, mas naquele dia ela emanava um amarelo tão mais brilhante do que
quando nos conhecemos. Aproveitei que já estava posicionado e bati a foto, senti um olhar e um
sorriso; sorri de volta. Alguns segundos depois Romeo me avisou que a modelo acabara de chegar,
mandei dispensá-la e até hoje não sei quem foi a bela dama que me serviu de modelo naquele dia.
Depoimento transcrito por [M.B.]
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Seu olhar artístico via a cidade de Florianópolis como um cenário bem arranjado, pronto
para ser congelado em poses e enquadramentos para a posteridade. Qualquer passante que
lhe chamasse atenção era um modelo em potencial.
Desceu as escadas do hotel, passando pelo hall e sem tomar café ou coisa que o valha,
apenas com seu aparato fotográfico. As ruas acordavam preguiçosas, tímidas, como uma
donzela que receasse ser flagrada no filme; estava ansioso pelas inúmeras fotos que
idealizava.
Enquanto isso, a mulher de saia xadrez se cansava da manhã que ia passando sem
muitas vendas. A resignação que lhe conferia força ia fraquejando junto com suas pernas. Ao
avistar a igreja, percebeu que talvez algum santo poderia se compadecer de seu cansaço.
No caminho do santuário ela parou. O poste ali, e ela recostada.
O fotógrafo parou – era isso! – e apontou sua câmera enfim para a melhor foto do dia.
A mulher, cansada, ouviu o barulho da máquina e virou-se preguiçosamente. Seu olhar
cansado pousou alguns segundos sobre o artista satisfeito.
O fotógrafo percebeu a humildade da modelo, e por alguns segundos sentiu-se
constrangido. Ela lhe sorriu um sorriso de agradecimento e seguiu seu caminho, tristonha.
Enquanto elevava os prelúdios de suas preces ao Senhor, ali encostada no poste, a
sensibilidade do homem do outro lado da rua a imortalizava, como fotografia.
Historieta narrada por Belo-Mar
(com notas de agradecimento a Tiago Quiquio,
Michelle Martins de Oliveira e Marcela de Leon – minha mãe.)
Florianópolis - Setembro de 2011 Travessa em Três Tempos Ano II N° 05
Depoimento de Maria das Graças
Andei ouvindo por aí que a moça que posou para aquele postal maravilhoso que causou o
maior falatório na cidade, foi a Chiquinha minha criada. Não acredito nisso não. Como uma criada
posaria tão bem para um postal tão lindo? Só não é um absurdo maior do que falarem que foi um
fotógrafo cego que tirou a fotografia. E desde quando cego é fotógrafo? Quem tirou aquela foto
foi o Joaquim, eu mesma o contratei para tirar as fotos do casamento da minha filha. Ele não é de
alta classe como eu, mas tira boas fotografias. A modelo foi com certeza a querida da Margot, a
conheci assim que chegou de Paris, que sotaque encantador tinha aquela moça – foi uma tragédia
o que aconteceu com ela. Ainda que Joaquim eternizou seus derradeiros momentos naquele
postal maravilhoso. Dizem que ele ganhou uma nota com o trabalho e foi para Paris, matar as
saudades que sentia de Margot.
Depoimento transcrito por [M.B.]
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Infelicidade de gás acetileno
Recostada no poste, a moça imagina os tempos que virão. O vento cálido de fevereiro
ondula a saia que ela mesma costurou, e o sol que se põe a transforma em mais uma
sombra no meio da Trajano. Mas o que mais ela era, além disso? Só uma sombra que
caminhava entre as outras sombras, que sempre eram maiores do que ela, porque
desenhavam em si chapéus, maletas de trabalho, certo volume no bolso, onde vai a carteira
com o dinheiro que sobrava ao final do quarto período de lua.
Nunca a ensinaram a ser grande assim.
Seu rosto demonstrava que o tempo passava depressa. Suas mãos demonstravam
que trabalhar é doloroso. Seus cabelos não demonstravam nada, os fios estavam sempre
unidos em um emaranhado que durava o tempo do dia e de noite eram soltos, lavados,
escovados e perfumados pra seduzir ninguém. Carregava consigo a noção que a lembrava a
todo segundo do quanto ela era solitária; sua solidão tão vivamente presente sempre a
deixava entristecida. Buscava nas preces algum tipo de conforto, de força ou de afeto, mas
não sabia se alguém escutava, anotava e faria do pedido realidade. Segundo a receita
popular, a fé é feita de uma parte de crença, uma parte de prece, uma parte de choro e
trinta partes de paciência.
Florianópolis - Setembro de 2011 Travessa em Três Tempos Ano II N° 05
Depoimento de Romeo
Foi a mulher mais linda que já vi. Entenda, ela não era bonita em seus traços, mas carregava
uma tranqüilidade em si. Andava com passos de quem procurava por si mesma no horizonte. Vi
naquela moça, beleza que jamais tinha visto em nenhuma mulher. Vi ela se aproximando do poste
enquanto Pièrre se posicionava para fazer a foto que tinha imaginado há dias, Margot estava
atrasada. Ele tinha encontrado uma maneira de se distrair enquanto esperava a modelo. Deixei
com que a moça se aproximasse do cenário da fotografia sem detê-la, Pièrre provavelmente nem
perceberia sua presença. Se bem que ele fala que enxerga mais do que alguém que pode ver – só
que em amarelo. Bateu a foto com uma estranha no lugar da modelo que tinha contratado,
mandou que dispensasse Margot – ela ficou furiosa. Eu achei que a foto ficou muito mais
encantadora do que os ensaios, quis mandá-la à René, então fiz uma cópia.
Depoimento transcrito por [M.B.]
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Naquele dia, resolveu cessar as infinitas vozes de seus pensamentos por alguns
instantes e apenas imaginar o que os próximos tempos traziam em seus ombros. Os
próximos tempos que vinham do mar, com seus cabelos feitos de espuma. Ou os próximos
tempos que vinham da terra, com seus pés argilosos. Saiu de seu lar singular e passeou
incansavelmente pelas ruas enquanto o sol passeava em sua trilha de parábola no céu.
Já anoitecia quando seus olhos escuros percorreram o ambiente ao redor: a Igreja a
cumprimentava, o muro abraçava o bosque, as casas no morro distante observavam. Ao
seu lado, um poste, cuja luz era produto do gás acetileno que cheirava a alho, serviu de
recosto. A luz do acetileno era incontestavelmente poderosa e soberba pelo brilho. E ela
iluminou a moça que imaginava os tempos que viriam. E iluminou a noite que vinha sem
estrelas, enquanto o sol se punha e transformava tudo em sombra, inclusive a moça. Mas o
que mais ela era, além disso?
Historieta narrada por Raio de Sol
Florianópolis - Setembro de 2011 Travessa em Três Tempos Ano II N° 05
Depoimento de Seu Jóca
Eu vi a cena da escadaria da Igreja do Rosário. Primeiro veio um cego - eu acho que ele era
cego porque tinha alguém que o carregava no braço e o mudava de lugar. Depois chegou uma
moça, uma formosura de moça, ela tinha o olhar distante, encostou-se ao poste e ficou olhando
pro pôr-do-sol por alguns minutos. Vi um clarão amarelado e percebi que alguém tinha tirado uma
foto, acho que era o cego – que a essa altura não devia ser mais cego, porque virou fotógrafo. A
moça viu que foi fotografada e foi embora. Depois chegou uma madame toda cheia de pose, o
cego falou alguma coisa pra ela e ela saiu dando uns pulinhos e soltando uns gritinhos estridentes.
O cego foi embora com o amigo; depois de um tempo chegou de volta a madame com um rapaz –
acho que era fotógrafo também porque tava carregando uma parafernália gigantesca – aí teve
mais um clarão. E depois foi todo mundo embora.
Depoimento transcrito por [M.B.]
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A memória como remetente
Era uma manhã ensolarada em Paris, era dia 07 de março de 1908. Minha vizinha,
Madelene, saiu cedo para comprar, ela mesma, as flores na floricultura da esquina. O dia
realmente inspirava esse tipo de atitude. Em dias mais chuvosos, quem saía cedo era René,
elegante, pisando firme, irresistível, para tentar encontrar a flor mais bonita para Madelene.
Ele sempre demorava mais ou menos uma hora, porque ia até a floricultura mais próxima à
Eiffel. Ela radiava de felicidade com sua vinda, iluminando os dias foscos. Era sempre daquela
casa que saía aquele clarão que inundava toda a rua e, inclusive, minha casa.
Naquele dia, era a rua que irradiava aquele amarelo mais ardente. Acho que se eu
enxergasse, me roeria a córnea e eu cegaria de novo, por sua intensidade. E foi ela que,
naquele dia, saiu para comprar as flores. Eu sei, porque o barulho da saída deles é diferente, é
identificável o bater da porta de um irresistível e de uma radiante.
Eu já morava lá há uns bons cinco anos; sozinha. Meu irmão, que também se chama
René, me visitava de vez em quando; era o único. Minha mãe e meu pai já não estavam mais
aqui há algum tempo e Pièrre, meu outro irmão, era um ingrato. Acho que soube que eu
herdei a doença do pai e não quis mais saber de mim, devia sentir vergonha. Apesar disso,
ainda sinto muito a falta dele, e acho que reconheceria seu cheiro, caso ele voltasse, sem
muito esforço. Eu sempre fora muito apegada a ele, conheço-o como conheço os trajetos
possíveis de minha casa, depois de tanto tempo de cegueira.
Enfim. Naquele dia, ela quem fora comprar as flores. Deviam ser orquídeas,
provavelmente amarelas, porque cheiravam muitíssimo bem, mesmo com René, marido de
Madelene, criando odores ao misturar ao cheiro do café que preparava. Mas não parecia
somente café...
Todo o dia, o carteiro passava logo depois que eles se levantavam da mesa e começavam
a lavar as louças.
Florianópolis - Setembro de 2011 Travessa em Três Tempos Ano II N° 05
Depoimento de Edit
Nós éramos um sexteto, Sophie e Pièrre – René já era velho demais para nossas
brincadeiras de rua – eu, Madelene, Romeo e René Lachal. Estávamos sempre juntos. A rue du
Louvre era onde passávamos as tardes inteiras inventando traquinagens. Durante a adolescência
René Lachal e Madelene se apaixonaram e começaram a namorar; ninguém acreditou quando eles
deram a notícia. Mas a verdade é que sempre combinaram. Quem pareceu não gostar da
novidade foi Romeo. Ele mudou completamente depois do início do namoro dos dois. Depois, se
afastou de nós; o único com quem conversava era Pièrre. René e Romeo tiveram uma briga
terrível quando o primeiro anunciou seu noivado com Madelene – ninguém nunca soube o motivo
ao certo. Mas semanas depois, Pièrre e Romeo sumiram, disseram que iam viajar e ninguém teve
mais notícias. René e Madelene compraram a casa ao lado de Sophie; ainda somos amigos.
Depoimento transcrito por [M.B.]
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O tilintar soava alto, assim como suas vozes e gargalhadas de casal feliz; eu gostava
muito de senti-los pela manhã. Madelene, como sempre, ia recolher as cartas na porta. Mas
nesse dia, logo, as gargalhadas findaram, o tilintar também e o cheiro, nossa, cada vez mais
forte, me deixava tonta. Ouvi Madelene elogiar muito um cartão-postal, dizendo ser de muito
bom gosto e beleza, mas só até ler o nome do remetente. Romeo! A porta foi batida num
estrondo, e ela gritando, dizia que achava que aquela história já tinha acabado. René, aflito, foi
até a janela. Senti o cheiro incrivelmente forte, misturado às flores.
O cheiro... era Pièrre, meu irmão! O desnaturado do meu irmão. Esperei que a
campainha tocasse, para que ele viesse se desculpar pelo sumiço, e eu o desculparia, com todo
o coração mole que tenho, mas nada aconteceu. René, ainda na janela, chorava. O cheiro que
eu sentia, era da carta. Algo na carta tinha meu irmão, o toque, talvez o olhar, o cheiro... mas
ela não veio para mim. Pensei: como pode Pièrre conhecer René, meu vizinho, para mandar
aquela carta? O que Pièrre queria falar com René, será que descobrira onde eu morava? Será
que estava buscando uma reconciliação?
Foi aí que, junto a minha angústia por aquele cheiro tão familiar e a expectativa da
visita, René, em meio ao choro incontrolável, disse em voz alta o conteúdo da carta “Mon cher
René. Je suis ici, maintenant, à Sainte Cathérine, en voyage de trois mois, dans un bateau de
guerre.”
Logo após, Madelene bateu a porta de entrada dizendo que não voltava mais. Trocou
sua saída radiante, por uma raivosa, também facilmente identificável. René ainda passou dias
chorando, sozinho, sem flores, sem tilintar, sem gargalhadas. O cheiro de Pièrre continuava
entrando pela janela. E até hoje não sei o motivo...
Historieta narrada por [H.]
Florianópolis - Setembro de 2011 Travessa em Três Tempos Ano II N° 05
Depoimento de Isabel
Conheci Pièrre e Romeo assim que chegaram a Florianópolis; fiz logo amizade com o
primeiro, um homem de meia idade com o sorriso de quem vê o mundo em amarelo. Aliás, era o
que ele falava: Le monde est jaune. Eu sorria, pois não entendia nada de francês, e me traduziam.
Contou-me muitas histórias: as minhas preferidas eram sobre Sophie, sua irmã caçula. Dizia que
seu rosto era uma das poucas coisas que lembrava em cores, apesar de achar que ela combinaria
muito com o amarelo. Queria muito saber dela, mas não tinha coragem de lhe escrever. Pièrre
escrevia algumas cartas e enviava junto com suas fotografias – mas nunca para Sophie. Esqueci de
dizer que mesmo cego ele era um ótimo fotógrafo. Certo dia Romeo pediu uma cópia de uma de
suas fotos para enviar como postal – Romeo nunca escrevia cartas – curioso, Pièrre perguntou
para onde iria a carta e chorou quando ouviu a resposta: rue du Louvre.
Depoimento transcrito por [M.B.]
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Atenção! As historietas, depoimentos e nomes contidos nesse exemplar são todos fictícios.
Documento Base:
Fotografia/cartão postal e texto retirados do número 72 da Revista Ô Catarina!, produzida pela Fundação Catarinense
de Cultura – FCC. Distribuída gratuitamente e disponível para download no link:
http://www.alquimidia.org/fcc4/index.php?mod=pagina&id=5316
Textos de Redatores:
Ana Terra de Leon
Luccas Neves Stangler
Hellen Martins Rios
Taiane Santi Martins
Tainah Lunge
Autores Participantes:
Iulla Portillo
Nícolas Mastrocola García
Mateus Cavalcanti Melo
Capa:
Foto: Mariana Rotili
Arte e design: Taiane Santi Martins
Ficha Técnica:
Edição e Diagramação:
Taiane Santi Martins
Revisão:
Hellen Martins Rios
Idealização:
Taiane Santi Martins
Equipe Travessa em Três Tempos:
Ana Terra de Leon - Hellen Martins Rios
Luccas Neves Stangler - Mariana Rotili
Taiane Santi Martins - Tainah Lunge
Apoio e Orientação:
Prof° Márcia Ramos de Oliveira
Laboratório de Imagem e Som – LIS
Para participar da Travessa:
O edital de chamada de textos para a 6ª edição, cujo tema
principal é “cinema”, ficará aberto entre 01 e 30 de
setembro. Os interessados deverão entrar no site da revista
para mais informações.
Endereço para contato:
[email protected] - @revistatravessa
http://revistatravessaemtrestempos.blogspot.com
www.wix.com/revistatravessa/travessaemtrestempos
Ficha Técnica: