por uma ética em profissão: rumo a uma nova paideia · buscar a paideia era, para os antigos...

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9 Por uma ética em profissão: rumo a uma nova paideia BOTO, C. In favor of professional ethics: in search of a new paideia, Interface _ Comunic, Saúde, Educ, v.6, n.10, p.9-26, 2002. Carlota Boto 1 1 Professora do Departamento de Ciências da Educação, Faculdade de Ciências e Letras, Universidade Estadual Paulista/Unesp/Campus de Araraquara. <[email protected]> This article discusses the current nature of the concept of paideia, in the light of the interweaving between the original Greek frame of reference and the operative category of what we will call, in this article, “professional ethics”. It is a study that intends to formulate guidelines for thinking about the themes of teaching and learning, methodologically, starting from the idea of interdisciplinary studies. This will allow us to recompose the art of pedagogical thinking, avoiding the fragmented specializations of this field, but including in it its chief ethical aspects. We believe that, in this way, it will be possible to establish a new and modern paideia, for contemporary teachers and students in the third millenium. KEY WORDS: paideia (a Greek work, not translated); education; professional ethics; learning; teaching. O presente artigo procura discutir a atualidade do conceito de paideia, à luz do entrelaçamento entre o original referente grego e a categoria operatória do que aqui nomeamos uma “ética em profissão”. Trata-se de um estudo que busca formular algumas diretrizes para se pensar o tema do ensino e do aprendizado, metodologicamente partindo da acepção de interdisciplinaridade. Assim, poder-se-á, fugindo das fragmentárias especializações do campo, recompor a arte do pensamento pedagógico, incluindo nela seus essenciais aspectos éticos. Desse modo, supomos possível estabelecer para professores e estudantes contemporâneos desse terceiro milênio uma nova e moderna paideia. PALAVRAS-CHAVE: Paideia; educação; ética profissional; aprendizagem; ensino. Interface - Comunic, Saúde, Educ, v6, n10, p.9-26, fev 2002

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Por uma tica em profisso:rumo a uma nova paideia

BOTO, C. In favor of professional ethics: in search of a new paideia, Interface _ Comunic, Sade, Educ, v.6, n.10,

p.9-26, 2002.

Carlota Boto 1

1 Professora do Departamento de Cincias da Educao, Faculdade de Cincias e Letras, Universidade Estadual Paulista/Unesp/Campusde Araraquara.

This article discusses the current nature of the concept of paideia, in the light of the interweaving between theoriginal Greek frame of reference and the operative category of what we will call, in this article, professional ethics.It is a study that intends to formulate guidelines for thinking about the themes of teaching and learning,methodologically, starting from the idea of interdisciplinary studies. This will allow us to recompose the art ofpedagogical thinking, avoiding the fragmented specializations of this field, but including in it its chief ethical aspects.We believe that, in this way, it will be possible to establish a new and modern paideia, for contemporary teachersand students in the third millenium.

KEY WORDS: paideia (a Greek work, not translated); education; professional ethics; learning; teaching.

O presente artigo procura discutir a atualidade do conceito de paideia, luz do entrelaamento entre o originalreferente grego e a categoria operatria do que aqui nomeamos uma tica em profisso. Trata-se de um estudoque busca formular algumas diretrizes para se pensar o tema do ensino e do aprendizado, metodologicamentepartindo da acepo de interdisciplinaridade. Assim, poder-se-, fugindo das fragmentrias especializaes do campo,recompor a arte do pensamento pedaggico, incluindo nela seus essenciais aspectos ticos. Desse modo, supomospossvel estabelecer para professores e estudantes contemporneos desse terceiro milnio uma nova e modernapaideia.

PALAVRAS-CHAVE: Paideia; educao; tica profissional; aprendizagem; ensino.

Interface - Comunic, Sade, Educ, v6, n10, p.9-26, fev 2002

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CARLOTA BOTO

No serei o poeta de um mundo caduco

Tambm no cantarei o mundo futuro

Estou preso vida e olho meus companheiros

Esto taciturnos, mas nutrem grandes esperanas

Entre eles considero a enorme realidade

O presente to grande, no nos afastemos

No nos afastemos muito ....

.....O tempo minha matria

O tempo presente,

Os homens presentes,

A vida presente.

(Carlos Drummond de Andrade, Mos dadas)

O termo paideia, carregado como da perspectiva de unidade cultural,procura traduzir prticas pedaggicas que, na Grcia Clssica, vinham pelaconfluncia. A paideia era, ento, essencialmente o entrelaamento daformao humana, da idia do florescimento de uma cultura ampla e tidapor geral, dos sentidos da civilizao e do referente educativo. Paideiaconsistia, para o mundo grego, um dado ideal do cultivo e da conduta:instruo, educao, capacidade para aprender, talento para repartir oaprendizado e multiplic-lo, curiosidade intelectual, desejo de saber e decomungar do saber com o outro. Nada mais prximo da profisso professor(Nvoa,1991); nada mais condizente com a vocao do educador.

Buscar a paideia era, para os antigos gregos, procurar algo do homemem sua pretendida essncia; era construir um discurso que engendrasse autopia da aretai: conceito grego relativo s virtudes da polis clssica:bravura, ponderao, justia e piedade quando se tratasse da alma;sade, fora e beleza, quando se compreendia o fsico (Jaeger, 1995,p.534). Da idia da aretai derivaria o conceito de paideia, que, nos termosde Jaeger, coincidia com uma dada propenso da alma, um certodesenvolvimento do esprito, a ser atingido mediante ideal de formaohumana posto no entrecruzamento da capacidade de assimilao, na boamemria e na nsia de saber dos homens (Jaeger, 1995, p. 558). Aret epaideia eram noes voltadas, ambas, para a mais plena revelao da utopia.Uma utopia construda, sobretudo, com vistas criao e ao fortalecimentodos laos entre os homens; uma utopia voltada essencialmente para odesenvolvimento de lastros de formao, capazes de conferir a mximadignidade condio de homens livres, e por isso homens de ao para aesfera pblica.

Como se sabe, Scrates, em sua procura incessante de um verdadeiromestre que jamais encontraria, recusa o conceito tradicional da virtude dapolis. Andarilho da incerteza, descobre sempre bons especialistas em camposdistintos do conhecimento especializado. Nas palavras de Jaeger (1995,p.557), o filsofo conferia

as grandes pretenses dos outros por um conceito novo de paideia,

que o faz[ia] duvidar da legitimidade daqueles, mas que leva[va] em

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considerao que nem sequer este conceito novo correspond[ia] ao

seu ideal. E atravs dessa ironia socrtica descobre-se a conscincia

da misso da verdadeira educao e da magnitude de sua

dificuldade, da qual o resto do mundo no tem a menor idia.

Ora, se entendermos com Mannheim (1986, p.229) que so utpicas todasas idias situcionalmente transcendentes (no apenas projees dedesejos) que, de alguma forma possuam um efeito de transformaosobre a ordem histrico-social existente, poderamos situar a perspectivade uma nova paideia como uma necessria utopia da ao educativa; oensino como uma marca. Para tal ofcio, preciso o discernimento, aprudncia e a humildade que nos oferece o preparo terico. Para tal ofcio, preciso tambm uma dada inteligncia prtica, s com o hbito, com aexperincia e com o amadurecimento adquirida: inteligncia prtica que nosdeve possibilitar viver, com a mesma serenidade e firmeza, tanto a glriaquanto a adversidade; inteligncia prtica que nos conduz a aprender com asnossas conquistas, mas tambm com os erros que invariavelmentecometemos; revelando-nos um percurso reflexivo e sempre em curso,enquanto em curso for a vida em profisso...

Prtica essencialmente humana, a educao tende a refletir osparadigmas e o imaginrio coletivo da sociedade de onde fala, reproduzindovalores, saberes, prticas, crenas, tradies; mas tambm vicissitudes,incertezas, perplexidades e contradies que permeiam o tecido social. Aotornar-se pedagogia, a educao passa a constituir objeto especfico de umestudo sobre o ser humano por vir. Compreender a prtica educacionalsupe, portanto, contemplar um dado vir a ser, admirar-se com ele, tentarcompreend-lo e, finalmente, desvend-lo. Na utopia da posteridade sempreem construo, o educador projeta sonhos, demarca utopias, apostadesgnios, mesclando desejo de permanncia com propostas detransformao.

Se compreendermos a Didtica Magna de Comenius como o primeirogrande tratado moderno que, no sculo XVII, sublinhava o tema daeducao, colocando a preocupao educativa no prprio cerne da refernciado mtodo, poderemos ler como uma das causas do atraso da instruo oseguinte:

as disciplinas, que, por natureza, so conexas, eram ensinadas sem

atender s suas relaes mtuas, mas mantendo-as separadas. Por

exemplo: queles que principiavam a estudar os primeiros

elementos das lnguas, ensinava-se apenas a ler, deixando-se para

alguns meses depois o ensino da escrita (...) Embora todas essas

coisas (ler e escrever, palavras e coisas, aprender e ensinar) devam

ser feitas to simultaneamente como, quando se anda, se levantam

e se abaixam os ps, quando se conversa, se ouve e se responde,

quando se joga a bola, se atira e se recebe, como vimos j atrs, nos

seus devidos lugares. (Comnio,1957, p.274-5)

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A idia da interdisciplinaridade, se tomarmos o excerto aqui recordadoestaria j, tambm, posta como uma tentativa moderna de substituio doperdido rumo da paideia grega.

J no podendo, entretanto, compreender o antigo termo que explicava aantiga Grcia, irrompe a Modernidade educativa, mediante a acepo de umano nomeada interdisciplinaridade em sua Didtica - inventada esta comoparmetro, referncia e mtodo, com o fito de ensinar melhor a mais gente. de se notar que o prprio subttulo da magna obra de Comenius revela,talvez, a utopia da paideia dos modernos:

tratado da arte universal de ensinar tudo a todos ou processo

seguro e excelente de instituir, em todas as comunidades de

qualquer reino cristo, cidades e aldeias, escolas tais que toda a

juventude de um e outro sexo, sem excetuar ningum em parte

alguma, possa ser formada nos estudos, educada nos bons

costumes, impregnada de piedade, e, dessa maneira, possa ser, nos

anos da puberdade, instruda em tudo que diz respeito vida

presente e vida futura, com economia de tempo e de fadiga, com

agrado e solidez (Comnio, 1957, p.43):

mais uma vez, procurar-se-ia a conjuno entre o bem, o belo e o bom...

Com o paulatino fortalecimento de um moderno sentimento de infncia ede famlia, a escola ganharia, desde o sculo XVII, novo lugar institucional.Havendo um aumento da procura por parte de populaes urbanas emercantis, organizam-se redes escolares, ainda que, muitas vezes, sob agide clerical: a famlia delegara escola a parcela de sua responsabilidadeeducativa concernente a uma dada cultura letrada o ler, o escrever, e ocontar. O territrio da escola o primeiro espao seu que a criana tem. Aescola o tempo da juventude. Na escola, as famlias deixam de ter oprotagonismo, e a criana passar a lidar com um outro repertrio, comoutros cdigos e signos de saber e de poder. A escola, em certa medida,retrata e recompe a vida social. Por outro lado, a escola cria e produz essamesma vida social mediante o descortinar de smbolos e de valores que so,a cada nova gerao, recompostos e reatualizados. Se a escola, efetivamente,reflete a vida coletiva, essa mesma sociabilidade poder ser sempre alteradapor deciso do conjunto de seus atores sociais. A escola exerce, pois, no serhumano, o papel de adeso a valores que ele mesmo se impe. A sociedadeescolhe seu repertrio e seu script; a escola talvez ensaie a pea... Asociedade e a escola so, portanto, ambas feitas por opes; por escolhas.

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Desde o sculo XIV, a escola foi progressivamente compreendida como umainstituio para a qual a famlia delega parte de sua competncia educativa.Portanto, espera-se que a escolarizao prepare para a vida. Mas o que vema ser, ao fim e ao cabo, essa preparao para a vida, que tanto se espera daescola?

O esprito do Iluminismo aprofundaria o conceito de ensino e deaprendizado humanista, agora procurando alguma matriz de especializao.No Discurso Preliminar da grande Enciclopdia francesa do sculo XVIII, oseditores Diderot e DAlembert consagravam as metforas do labirinto e darvore para referirem-se ao sistema do entendimento humano. Nestaoscilao, quando a idia era a da rvore, as ramificaes tornavamnecessrias as passagens por infinitas encruzilhadas do conhecimento.Quando, por seu turno, o saber era comparado a um labirinto, fazia-senecessrio ao esprito proceder a escolhas por trajetos excludentes. O sculoXVIII convive, nesse pndulo, entre duas aproximaes que se enfrentavamuma outra: o conhecimento como uma rvore complexa e o conhecimentocomo um labirinto intrincado. Optar pela metfora significava, no caso,escolher uma direo, um rumo, um determinado tipo de relao com oconhecimento.

Para retomarmos o texto da Enciclopdia,

o sistema de nossos conhecimentos composto de diferentes

ramos, vrios dos quais tm um mesmo ponto de reunio; e, como

partindo do mesmo ponto, no possvel embrenhar-se ao mesmo

tempo em todas as estradas, a natureza dos diferentes espritos

quem determina a escolha. Por isso, bastante raro que um mesmo

esprito percorra ao mesmo tempo um grande nmero delas. No

estudo da natureza, os homens esforaram-se, a princpio, como de

comum acordo, por satisfazer as necessidades mais prementes, mas

quando chegaram aos conhecimentos menos absolutamente

necessrios, tiveram de partilh-los e avanar cada um por seu lado

com passos mais ou menos iguais. Assim, vrias cincias foram, por

assim dizer, contemporneas; mas a ordem histrica dos progressos

do esprito, somente podemos abarc-las sucessivamente.

(Enciclopdia, 1989, p.49)

Para o Iluminismo, as idias da instruo, da virtude e da felicidade vinhamirremediavelmente atadas. O ato pedaggico era, conseqentemente, umanecessria ruptura. A palavra Enciclopdia continha em si a etimologia dapaideia, enquanto crculo de cultura. H nisso uma dimenso prospectivade formao humana, de

herana, bagagem de conhecimento adquiridos pelos antigos e de

que o indivduo poderia usar sua vontade: (...) das disposies a

cultivar, dos hbitos a desenvolver, da formao mental... O ser

educado aspira a, projeta tornar-se aquilo que , realizar a sua

pessoa enquanto homem. Se, enquanto ser em transformao, pode

considerar-se perfeito em cada estdio do seu desenvolvimento,

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continua imperfeito relativamente ao ser perfeitamente

desenvolvido que pode realizar-se na idade madura. O

enkyklopaideia o meio de se tornar plenamente humano, de

atualizar o seu prospectivo dever ser humano. (Morin, 1976, p.120)

O pacto de secularizao provocado pela Revoluo Francesa, os anseios pelafundao de um contrato radicalmente novo, postulado a partir de projetosde igualdade e de liberdade, vislumbrado a partir da primeira derrocada deprivilgios nobilirquicos, referenciariam as grandes bandeiras quepassavam a se apresentar como emblemas da educao democrtica dostempos contemporneos: escola nica, universal, leiga, obrigatria egratuita. A formao da escola de Estado, como poltica nacional privilegiadaentre os sculos XIX e XX, daria substrato histrico a tal iderio. A escola severia defendida como templo da repblica, artefato privilegiado paraformao de almas em um novo tempo, para um novo homem, de ptriasregeneradas...

A escola do sculo XIX postula o primado da cidadania, da cincia e damodernidade, como substratos alternativos ao princpio da religiosidade.Contudo, o mesmo sculo XIX , tambm, o tempo das especializaes.Consagra-se nele a idia de que a ordem do saber s pode penetrarsucessivamente no esprito. Firmavam-se e vincavam-se domniospretensamente autnomos de um conhecimento que se repartia e seseparava em espaos de segregao. A separao, cada vez mais evidente,entre distintos e mltiplos territrios do saber, por um lado, estreitava aconscincia; por outro, dirigia o olhar. O Foucault de Vigiar e Punir dir quea disciplina s vezes exige a cerca, a especificao de um localheterogneo a todos os outros, fechado em si mesmo (Foucault, 1991,p.131); embora, freqentemente os aparelhos disciplinares se valessem deoutros princpios, para alm da acepo de clausura:

cada indivduo no seu lugar; em cada lugar um indivduo. Evitar as

distribuies por grupos; decompor as implantaes coletivas;

analisar as pluralidades confusas, macias ou fugidias. O espao

disciplinar tende a se dividir em tantas parcelas quantos corpos

inteiros h a repartir (...) Procedimento, portanto, para conhecer,

dominar e utilizar. A disciplina organiza um espao analtico.

(Foucault, 1991, p.131)

No campo da pedagogia, a prpria estruturao da cientificidade do objetocontribuiu para compor o quadro bsico do que posteriormente passariam ase chamar Cincias da Educao. No campo da Medicina, a especializaodos saberes foi uma tendncia progressivamente contraposta aos preceitosprimeiros da sua origem hipocrtica; do mdico que, antes da doena,observa por inteiro o ser humano que a contraiu.

O sculo XX percorreu o caminho progressivo e regressivo daespecializao. Junto com seu apogeu, percebeu o declnio da unilateralidadedos saberes cientficos e dos campos do conhecimento fracionados. Hoje,retoma-se, com bastante nitidez, o projeto multifacetado, transdiciplinar,

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que era dominante no esprito renascentista e no sculo XVII; o projetoenciclopdico, to caro cultura geral requerida pelos ilustrados do sculoXVIII. Em movimento cclico, dinmico, e at mesmo dialtico, atualmentecompreende-se como necessrio e urgente o entretecer de saberes. Camposdo conhecimento ultra-contemporneos no podem, sequer, sercontemplados por uma nica especificidade cientfica qualquer que seja ela.As cincias cognitivas; o projeto genoma; as cincias da computao; osestudos ecolgicos pertencem a qual rea particular do saber humano?

Ser, possivelmente, um novo modelo de interlocuo transdisciplinar -capaz de fazer dialogar inmeros cenrios do conhecimento humanopesquisado e produzido em diferentes domnios da cincia - que conquistara curiosidade intelectual, o desejo de saber dos cientistas e da universidadede maneira geral. Academicamente, cabe propugnar, nos dias que correm,um novo encontro humanstico com o conhecimento para a descoberta denovo paradigma. H, contudo, para tanto, cercas a serem transpostas. Aprimeira delas o restrito e unilateral territrio das especialidades. Oconhecimento de uma nica rea do saber torna duvidoso o prprio domniodaquela rea particular que se pretende saber. Compete ao profissional dofuturo uma agenda exposta justamente perante o neologismo recm-criado:interface... Tomando a liberdade de nos valermos da apresentao donmero 1 desta revista Interface de matriz transdisciplinar, retomaramos oseguinte texto; recompondo, obviamente seu contexto de produo e decirculao:

No atual momento de transio e crise, em que o pensamento

cientfico liberta-se das certezas, Interface nasce comprometida com

o dilogo, propondo um espao plural que assegure a comunicao

entre o que diverso, sem perder a perspectiva de um projeto de

organizao, construo e difuso do conhecimento. Surge como

um objeto-fronteira, socializando estudos, debates e experincias

concretas de diferentes perspectivas.... do conhecimento como

construo de relaes e apreenso de significados, numa rede

heterognea, acntrica...propondo-nos a leveza, a rapidez, a

exatido, a visibilidade, a multiplicidade e a consistncia, como

valores universais a desafiar as formas de comunicao do prximo

milnio, ao mesmo tempo em que refora a idia de rede e do

conhecimento como enciclopdia aberta e acena para a necessidade

de uma outra forma de conhecimento, esta marcada por uma

racionalidade mais plural, por um discurso mais literrio e,

sobretudo, pela certeza de que no estamos pessoalmente

separados daquilo que estudamos. (Interface, v.1, n.1, p.5)

Os tempos deslocaram e recriaram as fronteiras: fronteiras histricas, queindagam o repertrio dos processos de colonizao; fronteiras geo-polticasem tempos de crise das clssicas demarcaes herdadas do Estado Nacional;fronteiras de um tempo no qual as anteriores convices e os paradigmasuniversalizantes que marcaram a Modernidade j no atendem sinquietaes intelectuais que nos so contemporneas. Alm disso, a prpria

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relao do homem com o conhecimento tem sinalizado para tecnologiasintelectuais inovadoras, que - se, em alguma medida, ampliam o potencial deuma cultura global - devero alterar substancialmente os padres educativose, sem dvida alguma, as prticas de leitura da sociedade futura.

Trazer para o debate educacional a interseco transdisciplinar doconhecimento supe a procura daquilo que Jorge Nagle (1976) chamava halgum tempo de pluridimensionalidade. As fronteiras epistemolgicas entreo territrio da histria da cultura, as formas de educao contemporneas eos processos de compreenso do mundo deslocam-se, repartindo, talvez, sobnovos parmetros, os modos de conhecer, de produzir e de reproduzir asrelaes culturais. As cincias cognitivas - entre a herana da Antropologia, olegado da Sociologia e os avanos da Biologia - certamente tm algo novo adizer para psiclogos e educadores. A escolarizao na era da informtica,da cultura digital e miditica passa a disputar, com os antigos, os novos, eos ultra-novos instrumentos, o lugar de multiplicadora e transformadora dacultura do impresso. A educao da atualidade, na interlocuo com suapoca, debrua-se sobre impasses do presente e expectativas de uma escolado futuro. Por sua vez, o campo da cultura abandona alguma pretensototalizadora da Modernidade, sem, contudo, necessariamente abrir mo depostulados, ainda, tidos por universalmente humanos. H sentido, sob talenfoque, a preservao de contedos clssicos, ou de um fundo de culturacomum. H sentido, tambm, no ato de se recolocar o tema da igualdade nasinalizao das diferenas.

Trabalhar a educao ter por objeto as geraes mais jovens; palmilhar por elas o futuro; falar de perto ao corao da utopia.Referenciada pelo futuro, a prospeco da utopia situa-se na tnue fronteiraentre o sonho e o projeto. Aceitar como compromisso o desafio de sermetodologicamente utpico requer do profissional, por vezes, ousadia noenfrentamento das prprias organizaes, com o objetivo de despertarnovas conscincias e recriar, no dia-a-dia, as mesmas organizaes, comalicerces recriados; mais amplos, mais integradores. Ameaa ao presente eantecipao do indito, a utopia emerge nos sonhos de liberdade, nosanseios por igualdade, na luta por uma sociedade, enfim, mais fraterna (e,por tal razo, talvez, mais terna). Pela atmosfera da possibilidade da utopia,o futuro surge-nos sempre em aberto, em suas indeterminaes einterrogaes, mas em aberto; portanto, o futuro poder sempre serdiferente. Haver utopia onde e quando houver histria; onde e quando emalgum futuro, sempre impreciso, pudermos escutar os brejeiros rudos doacaso; haver utopia onde houver sonho de mudana onde a capacidade dese admirar se fizer acompanhar da inconsolvel coragem de se indignarperante a injustia e, contra ela, propor transformaes; haver utopia ondeexistir juventude se as geraes mais jovens se dispuserem a acreditar queo direito diferena s ganha legitimidade quando acoplado ao requisito daigualdade.

Se, no dilogo sempre inquieto entre mestre e discpulo, a verdade seconstri necessariamente por um encontro a dois, que ter comoterritrio o mundo da cultura (Gusdorf, 1970), existe uma condioessencial para a existncia do ato educativo: a deciso de ensinar. No nos

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convencendo jamais da veracidade de nossas palavras, no podemos, por talrazo, deixar de diz-las. Isso conduz a que a aula seja, todos os dias, umenlace entre a mais atrevida inveno e a mais cmoda repetio:representao do indito e reedio do antigo. A dvida que angustia, todosos dias, o educador compromissado com a busca de sua prpria paideiaexpressa-se na aparente banalidade de uma questo recorrente: o que voudizer hoje a meus alunos?

A fora prpria ao mestre , acima de todas, responsabilidade

assumida. Primeiro, responsabilidade para com os outros, pois o

mestre descobre que tem cura de almas. Vivera at ento da

confiana que nos outros tinha, agora so os outros que devem

confiar nele. As primeiras impresses nada tm de triunfal; mais se

sente o fardo de um peso a vencer do que dum peso vencido. At

agora, contentara-me com uma verdade de emprstimo; agora terei

que dar aos outros, que de mim esperam que lhes diga a verdade,

que a indique .... Mas o mestre no se torna um mestre apenas

porque os outros aguardam dele a verdade. ... Para l da esfera do

ensino, a ordem da irradiao do mestre supe ... que se ponha de

novo em causa os valores humanos ... Por outras palavras, o aluno

no pode interrogar o mestre sobre o que ser mestre, sem que

este, antes, tenha interrogado a si prprio ... O consentimento

mtuo que impe o mestre aos seus discpulos tem, pois, por

condio inicial, um consentimento consigo prprio, esse novo

nascimento por si prprio dum homem que se descobre s e

responsvel; duma responsabilidade no apenas material, mas

espiritual. (Gusdorf, 1970, p.132-3)

Produzindo e reproduzindo, a cada instante, o jogo social de que ela mesmafaz parte, a escola , muitas vezes, resistente a mudanas. Para o educador,porm, est ali o territrio da utopia; a matria-prima da construo de suapaideia uma sala de aula que se torna classe quando povoada porcrianas e por jovens. So gestos, expresses, trocas de olhares, duaspalavras. A aula, no esquadro do educador, , sobretudo, o registro de suaidentidade. Mais do que isso, sendo cada aula a primeira e cada turma anica, uma aula construda pelos mesmos critrios que validariam a obrade arte: inteno esttica, reconhecimento pblico, resistncia ao tempo.

Ser profissional, na plena acepo da palavra, requer de ns a firmeza deprincpios, o entusiasmo das estrias e a serenidade que apenas o tempo e o

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hbito esto aptos a conferir. H de se buscar, na vida em magistrio,habilidade para lidar com o outro e com o diferente; ser professor sugere,ainda, que sejamos capazes de confrontar cada etapa de nossa vidaprofissional com o transcurso j efetuado e optar por caminhos que nemsempre sero os mais fceis; mas se colocam, dentre todos os que, em cadasituao, se apresentam, como os mais ticos, os mais corretos, os maisvalorosos.

Ser profissional convida-nos, finalmente, a tomar a metfora dacolegialidade como nosso campo e nosso projeto. Segundo Antnio Nvoa(1991), somente a prtica do convvio profissional, da partilha, da troca e dasensibilidade para com os colegas possibilita o sucesso . Eu recebo o que meucolega me acrescenta; eu ofereo aquilo de que meu colega pode seracrescido. Ao agir assim, ambos crescemos, ambos nos empenhamos em umaprtica salutar e cidad de convvio pblico, ambos transformamos oquotidiano da escola em um exerccio de formao continuada. Para viver acolegialidade como proposta profissional coletiva, deve-se, contudo,favorecer o dilogo e muito particularmente o dilogo entre professor ealunos. Esse dilogo atravessa as rotinas, as prticas, os usos e costumes daao educativa.

Os adultos tm o que ensinar aos jovens, como ordenar seus

sonhos, dominar seus sonhos (o que no significa, de modo algum,

renunciar a eles), ir alm de sua histria pessoal e das tentaes do

narcisismo, esforando-se para ser objetivos. Existe como que uma

efervescncia na juventude, que pode se perder e cair no ceticismo.

A influncia adulta pode contribuir para transform-la em impulso

autoconsciente, em tarefas possveis e mesmo necessrias,

consideradas certas condies histricas. Mas com a juventude

que se conta para insuflar como que uma febre criadora. a

capacidade de amar o mundo, de anim-lo, contra tudo e contra

todos, que os jovens tm a transmitir aos adultos. Quando a

juventude esfria, o resto do mundo treme. pela influncia, pela

ao dos jovens que os mais velhos tm uma chance de escapar a

um dos mais graves riscos que os ameaa: a indiferena. Os adultos

tm necessidade de provar a si mesmos, admirando de novo o que

eles admiravam outrora, que no esto decadentes. ... Encontrar

enfim a soluo do problema que a infncia lanou: o que uma

grande vida seno um pensamento de juventude executado pela

idade madura? A juventude sonha e muitas vezes sonha certo, mas

na falta de meios e instrumentos eficazes, permanece em estado de

sonho. A vida adulta, para que o imaginado assuma formas efetivas,

torna-se criao, construo, cultura, conservando-se os gostos da

criana que brinca, do jovem que deseja. (Snyders, 1996, p.62-3)

Acreditando ser possvel ajudar a juventude a se conhecer para, com ela,reaprender o dom de amar, Snyders ressalta como alicerce da aopedaggica a recuperao da capacidade de se admirar; to presente entre

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as novas geraes. O entusiasmo de um particular modo de olhar, deobservar e de mirar pode traduzir-se, no ato da instruo, em umaoportunidade de fascnio e encanto propiciado pelo contato com o saberclssico. Aprender a conhecer seria, assim, um ato de emancipaointelectual, sem dvida; mas tambm um ato de alegria de entusiasmo peladescoberta e o desejo de mergulhar na descoberta... Metaforicamente,poderamos dizer, tomando de emprstimo as palavras de Jorge Larrosa(1998, p.175):

O professor, quando d a lio, comea a ler. E seu ler um falar

escutando. O professor l escutando o texto, escutando-se a si

mesmo enquanto l, e escutando o silncio daqueles com os quais

se encontra lendo. A qualidade da sua leitura depender da

qualidade dessas trs escutas. Porque o professor empresta sua voz

ao texto, e essa voz que ele empresta tambm sua prpria voz, e

essa voz, agora definitivamente dupla, ressoa como uma voz

comum nos silncios que a devolvem, ao mesmo tempo

comunicada, multiplicada e transformada.

O bom professor pode ser, portanto, compreendido como aquele que serevela a seus alunos por transmitir conhecimentos: chaves culturaisherdadas e preservadas como saberes socialmente cultivados. Mas o bomprofessor, que revela o conhecimento, e o transforma em sabedoria, faz issopor palavras e pelo hbito; pela coerncia entre aquilo que diz e as maneirasde atuar em pblico. O bom professor conjuga habilidades e competnciastcnicas, acadmicas, interpessoais, institucionais, com o requisitoimprescindvel da busca sempre presente de uma vida digna, pautada porprocedimentos de justia para com o semelhante e de cuidado para quemest prximo.

A vida justa sempre e invariavelmente a vida com os outros; mas tambm uma arte, a ser quotidianamente palmilhada: o domnio progressivodos cdigos ticos da conduta pblica; dos modos cotidianos de se revelarpara os outros. Para tanto, preciso lisura; mas fundamental tambm osentido de auto-preservao. Dizia Aristteles que, em geral, o bem est nojusto meio entre dois extremos: fazer o bem tomar por pressuposto aigualdade, sem deixar, contudo, naufragar a tolerncia para com as outraspessoas, quando, tantas vezes, desejamos encontrar em quem est ao nossolado um nosso idntico; e, ao fazer isso, perdemos o que h de rico e desingular nas diversas identidades.

Seguir o justo-meio da tica ter na liberdade um caro emblema, mas tambm agregar nessa liberdade o valor da responsabilidade, que, pordefinio, precisa acompanhar o territrio dos direitos. De qualquer modo, aao tica uma prtica, um hbito, que ningum tem no ponto de partida,mas que deve ser percorrido todos os dias, quando pretendemos tornarnossa existncia profissional uma narrao dotada de sentido (Camps,1995); quando projetamos nossa vida recolhendo do passado significados eprocurando pistas para projetar adiante nossas utopias. A capacidade paraelaborar utopias viveis requisito para o acontecer das transformaes.

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pela tica que poderemos fazer isso e tica s para valer no exercciocontinuado e refletido de nossa alma em direo ao bem comum. Bemcomum, por sua vez, valor compartilhado. De acordo com Victoria Camps,o ser humano reconhece a si prprio como um ser intersubjetivo, que sesabe comunitrio, dialgico, submetido a regras, incapaz de conhecer oude justificar qualquer coisa por si s. E que, na intersubjetividade, odilogo e o submeter-se a regras contam, todavia, com um ideal deliberdade (Camps, 1995, p.60). Assim sendo, a liberdade da vontadehumana seria diretriz maior da ao tica, a qual, por sua vez, pauta-se pelaperfeita identidade entre meios e fins da ao. Toda e qualquer aointerpessoal pblica; revelando-se, enquanto tal, expressivo e propciocenrio para o exerccio de um justo agir cotidiano. Tal disposio deesprito e prtica consciente proporciona enriquecimento espiritual efavorece a criao/re-criao do homem enquanto ser para si.

Sentimo-nos educadores quando nossos alunos nos contam que algo doque fizemos foi para eles importante; eles que so, no limite, o sinal de nossavoz, ampliada e ressoada; que nos daro continuidade e que iro alm dens. aqui que eu gostaria de apresentar uma categoria operatria para areflexo a propsito de uma nova paideia em profisso: proponho umatica da amizade. Eu explico: meu desejo, ao formar futuros profissionaisda educao, deriva de um sonho que, nesta arte, me acompanha: apossibilidade de ns, educadores, aprendermos a nos disponibilizar afetiva eemocionalmente para encontrar, subitamente, no colega e em nosso aluno,um amigo; o encontro desse amigo acontecendo pela fora do acasoconsentido, da abertura para receber e para doar, mediante uma atitudedesprendida de companheirismo, de troca e de intercmbio: coleguismo. Navida em profisso, temos colegas. Se exercitarmos, contudo, nossa habilidadepara a colegialidade, adquiriremos, em nosso universo de trabalho, amigos; eteremos a felicidade de obter, no territrio da escolha profissional, umconvvio semelhante ao que experimentamos com o amigo que,espontaneamente, tivemos a oportunidade de escolher.

Francesco Alberoni - em belssimo ensaio sobre o tema - define a amizade,no pelo tempo corrido ou pela convivncia cotidiana. A amizade ocorrequando nos reconhecemos no outro; pela intensidade dos momentos quevivemos juntos sejam estes freqentes ou no. Assim, o cdigo da relaode amizade constituiria exatamente uma filigrana de encontros (Alberoni,1993, p.14); nos quais despertam sentidos, firmam-se identidades, marcam-se gestos de mtua admirao. A amizade, regida pelo signo da liberdade,costuma, ainda, no parecer do autor, aproximar-nos da felicidade. Ocompanheirismo proporcionado pelo encontro do amigo traz,invariavelmente, situaes privilegiadas de fruio; de prazer. H critrios

morais que envolvem a escolha do amigo. Por isso, emgeral, amigo quemest ao seu lado comose houvesse um pactode estar ao lado; umpacto de se fazerjustia; um pacto at de

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se mostrar para o outro possveis equvocos e desvios de rota; um pacto,porm, receptivo para relevar pequenas faltas; equacionar situaes mal-resolvidas, e at por que no? - perdoar. Diferente do amor, nesse sentido,o sentimento da amizade escolhe seus objetivos com critrios morais e secomporta moralmente em relao a eles (Alberoni, 1993, p.29).

Evidentemente, quando tratamos de profissionalismo, no estamos namesma rbita que seguimos quando se trata de amigos. Ainda recorrendo aAlberoni, o dever tico pode ser entendido na perspectiva de um como sedo amor (Alberoni, 1992, p.53). Na ausncia do sentimento, poder-se-iasugerir uma tica profissional (parafraseando o referido autor) em termosde um como se da amizade. possvel viver em profisso, por atos, porgestos e por intenes com uma disposio interior, uma atitude que, pordeciso prpria, converge com a ao que se tem para com os amigos. Nocaso, tal profissionalismo seria dever: mas um dever, como se fosseamizade (Alberoni, 1992). Tal propsito supe agir institucionalmentecomo se nossos colegas fossem todos nossos amigos. Isto posto, serpossvel organizar a vida coletiva, da profisso que escolhemos, mediantemodos de agir anlogos experincia da amizade. Para tanto, serianecessrio o estabelecimento de uma pr-confiana bsica: para que se possareconhecer no outro a convergncia; e para que se possa trabalhar esteoutro suas possveis dissonncias exatamente como costumamos fazer comaquele amigo que no queremos perder. Embora sempre solicite umaateno especfica para si, o verdadeiro amigo segundo Alberoni algumque raramente pede favores; porque sabe que, pedindo, receber; e,paradoxalmente, ao receber certos favores, podemos romper com osprprios preceitos ticos que nortearam essa sempre arte do encontro,situada em mares de desencontros pela vida de que falava Vincius. Ogrande risco da amizade companheirismo, alegria partilhada, cumplicidade reside na tentao de tal energia poder se transformar em particularismoexcludente. Assim, ainda vale, como parmetro e norma, mesmo amigos, oponto regulador da universalidade e, portanto, imparcialidade, da aotica. Assim, recomenda-se a cautela, justia e eqidade no tratointerpessoal:

Ao meu verdadeiro amigo no posso pedir que aja comigo violando

a regra da imparcialidade. Se for mdico, que se descuide dos

demais doentes, se juiz, que me favorea. Se ele o fizesse, seria

imoral e, portanto, merecedor de desestima geral. Assim, sendo

meu amigo, no posso desejar seu mal...Hoje, quando a sociedade

est estabelecida sobre regras universalistas, a amizade deve, em

primeiro lugar, respeitar o universalismo e a imparcialidade. A

amizade aceita as virtudes assim como a sociedade as d e as

respeita rigorosamente. No as cria, mas delas a mais respeitosa

cumpridora e a mais ciosa guardi. (Alberoni, 1993, p.40)

Sob tal enfoque, a vida profissional no garantir, pela tica, o xito ou obem-estar - sucesso e fracasso so companheiros to provisrios quantoimpostores. Mas estaria, talvez, engendrado o ponto de partida para umprofissionalismo refletido; ou seja, um ato de vontade a ser trabalhado e

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ajuizado pelo intelecto. Quantos de ns meditamos sobre o profissionalismoantes de entrar na profisso escolhida? Como pensar os dilemas ticos daao colegiada interpares? Quais os deveres e dilemas ticos em relaeshierrquicas? No estariam grande parte de nossos problemas deconvivncia institucional em tais dificuldades?

H um (em alguma medida) confortvel silncio ou esquecimento quandose trata de refletir - de maneira organizada, metdica e planejada - acerca datica em nossa formao. Reiteramos, por vezes, tal lacuna na formao denossos discpulos/alunos. Contudo, todos sabemos que tica hbito; e,como tal, deve ser praticada na vida cotidiana; deve ser tema corrente eindagao verdadeira. H prtica de ensino e de aprendizado de tica? Nasuniversidades, por vezes, professores que no convivem bem entre si talvezprefiram no discutir, com a necessria constncia, projetos coletivospensados para formar o cidado tico que todos desejamos para o futurode nossos alunos. Mas, como no sabemos fazer, talvez no consigamosensinar. Preferimos - quem sabe - no conversar sobre isso; para noescancararmos nossas dificuldades interpessoais. Agindo desse modo,mutilamos, partida, no apenas a formao dos profissionais do futuro,mas os nossos prprios projetos de futuro. No sabemos viver juntos, semnos separarmos sistematicamente. Os currculos sofrem essa fratura. Osprofissionais que formamos atendem ao mercado; atendem, alguns deles, sexigncias acadmicas. Mas estaro altura de sonhar com um mundotransformado? Um mundo mais justo, mais bem distribudo, maiscompanheiro e mais fraterno? Para alm do sonho sabem verificar a tnue,mas fundamental, interface entre utopias e realizaes?

Formar as geraes mais jovens, em alguma medida, tem por suposto ofirmamento social de novas estrias profissionais. Os incios sohabitualmente caracterizados pelo signo do desafio, da ansiedade, da criativainsegurana, da utopia... e do glamour. Mas os incios so indiscutivelmenteprovisrios. Posteriormente, compete ao profissional como j destacavaVictoria Camps (1995) conferir um sentido, dotado necessariamente devalor, prpria vida. Estaremos, ns, docentes da universidade pblica,neste ano um do terceiro milnio, de fato, atentando para que nossos alunosse preparem para dotar de sentidos uma posterior narrao de suas vidasprofissionais? Tais significados devem ser antecipados no pensamentocuidadoso sobre a vida em profisso: significados meticulosa elaboriosamente construdos, com observao de realidades e com prospeesde utopias (por que no?); com continuidades, permanncias, transies erupturas todas elas essenciais para o amadurecimento de uma vida; comcoragem e ousadia amparadas por humildade e cautela; com a necessriaprudncia e o imprescindvel entusiasmo de quem no abdica de se indignar

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e de sonhar; com o distanciamento cientfico em uma mo e o engajamentomilitante na outra para sempre burilar os modos de ver; as decises erotas; os modos de agir.

O bem compartilhado em educao reside, essencialmente, na interaocoletiva e colegiada das prticas; das experincias; dos projetos. E o melhorparadigma para se falar em repartir das pequenas felicidades cotidianasainda a meu ver - a experincia do mais livre, mais autnomo e maissereno dos sentimentos: a experincia da amizade. Para o amigo, euconfesso os cdigos, reparto as dicas, entrego os segredos do xito obtido na boa aula que dei, na pesquisa que efetuei, no texto que produzi, nosautores que li. Ele faz o mesmo comigo. Em tal interao, ambos crescemos.Para meu colega: eu conto aquela aula que deu certo? Eu digo quais osmodos de trabalho que proporcionaram resultado positivo? Ou guardoapenas para mim; com o objetivo de que meus segredos docentes no sejamcopiados? Na segunda hiptese, eu perco junto com colegas, alunos euniversidade. A esperana de maior qualidade no ensino convida-nos, talvez,para a experincia da generosidade recproca porque so recprocas asrelaes interpessoais.

Tal operao metodolgica no agir profissional no elimina, de modoalgum, a competitividade. Continuarei a atuar pelo coletivo, com amanuteno das esferas de ao ntimas. Ao depositar no colega a confianaque eu entregaria a um amigo, estou espera de que ele aja comigo pelamesma tecla. A reciprocidade, assim, torna-se esperana - mtua e universal- de aprimoramento; daquilo que os iluministas do sculo XVIII nomeavamperfectibilidade... Estarei, acima de tudo, construindo a possibilidade deuma tica em profisso referenciada pelo cdigo comum e universal dosentido da amizade: agir, perante o mundo, como se tivssemos diante dens um verdadeiro e leal amigo. E a amizade, como se viu, contempla anoo de pertena espontnea: foi porque assim eu quis que eu escolhi este(e no qualquer outro) crculo profissional. H de se estabelecer, pois, nocircuito do ensino e da pesquisa acadmica, compromissos e pactos derespeito e de tolerncia para com o pensamento divergente o que, nolimite, nada mais do que dever e garantia da vida democrtica. Nessesentido, podemos acrescentar, justia e solidariedade (Camps, 1996), ovalor da esperana.

A esperana no ato educativo , por sua vez, sobretudo, uma aposta. Naconstelao social, podemos atuar ingenuamente na educao, convictos deque justa a estrutura que rege o campo da poltica e da economia;podemos, na outra margem, recusar a ao educativa, acusando-a deconduzir necessariamente reproduo da mesma ordem estabelecida, aquiconsiderada injusta, ilegtima; e podemos, como uma terceira via, naquelelugar intermedirio que algum j chamou de ao sensata (Hameline,1991), ultrapassar, com moderao, equilbrio e clculo, esses doiscaminhos anteriores. Trata-se, na escolha, de uma aposta pedaggica e tica,fundada sobre a crena e a esperana na igualdade do gnero humano.Educar apostar: no futuro, no gnero humano, nas geraes mais jovens.Educar apostar tambm no compromisso com a edificao de umasociedade mais justa, mais generosa e mais fraterna. Educar apostar na

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capacidade de o homem transformar-se; e transformando a si, transformar asua prtica. S essa aposta pode vivificar no educador a utopia e o contrapontodo tempo, que leva muito mais do que parece trazer. E assim, chegamos aofinal de um novo comeo, mediante o qual se pode conceber entre apostas ecertezas o educador como

um navegador que estuda sua rota por todos os meios cientficos de

que dispe, mas que, antes da partida, escolheu livremente a direo

por tomar e nela apostou. Navegar implica obedincia escolha

apostada: obedincia ao peso dos meios para realizar o percurso e

escolha pessoal da rota. Do mesmo modo, o educador deve apreender

com lucidez os meios de sua ao e apostar livremente no rosto que

deseja ver no homem futuro. (...) Educo, tanto porque acredito ter

razo para faz-lo quanto porque tenho vontade de faz-lo em nome

dos valores em que aposto. S posso educar porque acredito nisso.

(Hannoun, 1998, p.163)

Pensar a poltica educativa mundial nestes sinuosos tempos de globalizaorequer, invariavelmente, o entrelaamento de variados aspectos, para abarcartangentes entre o domnio tido por global, o plano local e o territrio nacional.Mas a histria no nos entrega desafios que no sejamos capazes de enfrentar;como j dizia Marx. Para tanto, preciso que haja temas e perspectivas a serempensados, a serem debatidos e a serem, fundamentalmente, compartilhados.Da advm o convite para tornar da educao nossa aposta e nossa paideia:fluir e partilhar o saber investigado; por uma tica da amizade emprofisso. Finalmente, luz de tal projeto, pelo coletivo, pelo dilogo, pelaressonncia e, por vezes, at, pela dissonncia, supomos a ocorrncia daproduo e da ampliao do conhecimento desejado. So pequenos, fugazes, e,tantas vezes, fugidios, os instantes de felicidade nos quais nos reconhecemosmestres. Tais oportunidades de encontro poderiam se tornar o mais elevadosentido da palavra aula: roteiro, bssola, sempre indeterminada e incerta,sempre sujeita a se deparar com o inesperado, com o imprevisto com o sbitoimproviso. A aula - ainda e antes de tudo - o maior registro da existncia domestre, a prova de suas pegadas intelectuais; o legado do que deixaremos paraos que vierem depois de ns como profissionais e como seres humanos. Anova paideia - necessariamente transdisciplinar - partir, sob tal enfoque, dapartilhada curiosidade intelectual: o desejo de saber e o desafio de aprender com os que vieram antes, com as outras matrias e com os que esto ao lado...

E se algum objetar que no vale a pena tanto esforo, tomarei deemprstimo a sugesto de um amigo, que citava Italo Calvino que, por sua vez,citava algum que citava Scrates:

Enquanto era preparada a cicuta, Scrates estava aprendendo uma ria

com a flauta. Para que lhe servir?, perguntaram-lhe. Para aprender

esta ria antes de morrer. (Calvino, 1998, p.16)

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Recebido para publicao em: 06/08/01. Aprovado para publicao em: 15/10/01.

El presente artculo intenta discutir la actualidad del concepto de paideia, a la luz delentrelazamiento entre el original referente griego y la categora operatoria de lo que aqudenominamos una tica en la profesin. Se trata de un estudio que busca formularalgunas directrices para pensar el tema de la enseanza y del aprendizaje, partiendometodolgicamente de la acepcin de interdisciplinaridad. As, se podr, huyendo de lasespecializaciones fragmentarias del campo, recomponer el arte del pensamiento pedaggico,incluyendo en l sus aspectos ticos esenciales. De este modo, creemos posible establecer,para los profesores y estudiantes de este tercer milenio, una nueva y moderna paideia.

PALABRAS CLAVE: Paideia; Educacin; tica profesional; aprendizaje; enseanza.

BOTO, C. Por una tica en la profesin: rumbo a una nueva paideia, Interface _ Comunic,

Sade, Educ, v.6, n.10, p.9-26, 2002.

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