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A Analise do Di '/' LU sessenta num moi -\ ralismo, tanto no ~ lade •utu- lien- clas Humanas. A Analise de Discurso Francesa se particula- rtza por articular a materialidade HngiJistica, o historico-social, o politico. Seu campo teori- co e ainda atravessado por uma teoria pclco- nalitica do sujeito. Os textos aqui reunidos, organizados crono- logicamente, tracam um historico da Analise de Discurso Francesa, buscando compreender o lugar que nela ocupou e ocupa a obra de Mi- chel Pecheux, um de seus iniciadores, e cujo trabalho, entre outroi, tern sido decisive para seu desenvolvimento. Encontram-se aqui textos fundamentals de Pecheux, como Analise Automatlea do Discur- so, de 1969, ao lado de outros textos seus e de outros autores, que incluem frabalhos sabre descricao textual, e trabalhos que analisom os fundamentos da Analise do Discurso, mostran- do SIMS transformacdes. " 8 t «5 J<2 f 801 P832 3.ed. POR F. Gadet e T. Hak (orgs.) POR UM> ANALIS AUT Uma Introducao a ^ Obra de Michel Pecheux

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Page 1: Por uma análise automática do discurso - introdução à obra de Michel Pêcheux - F. Gadet e T. Hak (Orgs.)

A Analise do Di '/'LU

sessenta num moi -\

ralismo, tanto no ~

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•utu-

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clas Humanas.

A Analise de Discurso Francesa se particula-

rtza por articular a materialidade HngiJistica,

o historico-social, o politico. Seu campo teori-

co e ainda atravessado por uma teoria pclco-

nalitica do sujeito.

Os textos aqui reunidos, organizados crono-

logicamente, tracam um historico da Analise

de Discurso Francesa, buscando compreender o

lugar que nela ocupou e ocupa a obra de Mi-

chel Pecheux, um de seus iniciadores, e cujo

trabalho, entre outroi, tern sido decisive para

seu desenvolvimento.

Encontram-se aqui textos fundamentals de

Pecheux, como Analise Automatlea do Discur-

so, de 1969, ao lado de outros textos seus e de

outros autores, que incluem frabalhos sabre

descricao textual, e trabalhos que analisom os

fundamentos da Analise do Discurso, mostran-

do SIMS transformacdes.

"

8

t «5J < 2

f 801P8323.ed.

POR

F. Gadet e T. Hak(orgs.)

POR UM>ANALISAUT

Uma Introducao a^

Obra de Michel Pecheux

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FOR UMA ANALISE AUTOMATICADO DISCURSO

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FRANfOISE GADETTONY HAK

(Orgs.)

FOR UMA ANALISE AUTOMATICADO DISCURSO

Uma Introdueao a obra de Michel Ptcheux

Tradutores:

Bethania S. Mariani, Eni Pulcinelli OrlandiJonas de A. Romualdo, Lourenco Chacon J. Filho

Manoel Gon$alves, Maria Augusta B. de MatosPericles Cunha, Silvana M. Serrani

Suzy Lagazzi

EDITORA DAUNIVERS1DADE ESTADUAL DE CAiMPIN AS

UNICAMP

Reitor: Jose Martins FilhoCoordenador Geralda Universidade: Andr^ Villalobos

Conselha Editorial: Antonio Carlos Bannwart, AricioXavier Linhares, Cesar Francisco Ciacco (Presidente),Eduardo Guimaraes, Fernando Jorge da Paixao Filho,Hugo Horacio Torriani, Jayme Antunes Maciel Junior,Luiz Roberto Monzani, Paulo Sos6 Samenho Moran

Direior Executivo: Eduardo Guimaraes

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FICHA CATALOGRAFICA ELABORADA PELABIBLIOTECA CENTRAL DA UNICAMP

Por uma analise automatica do discurso: uma intro-P82 ducao a ohra de Michel Pecheux / organizadores3.ed. Francaise Gadet; Tony Hak; tradutores Bethania

S. Mariani... [et al.) — 3. ed. — Campinas, SP:Editora da UNICAMP, 1997.

(Colecao Repertories)

Traducao de: Towards an automatic discurseanalysis.

1. Discurso - Analise. 2. Lingiiistica. I. G^l^tFrancoise. II. Hak, Tony. III. Titulo.

ISBN 85-268-0160-020. CDD - 418

- 410

indices para catalogo sistematico:

1. Discurso2. Lingiiistica

418410

Colecao Repertories

Projeto Grafico

Cami/a Cesarino CostaKestenhaum

Coordenacao EditorialCarmen Silvia P. Teixeira

Producao EditorialSandra Vieira Alves

Revisao tecnicaEni Pulcinelli Orlxndi

Preparacao

Adagoberto Ferreira Batista

Revisao

Niuza Maria Gon^alvesAizirn Dias Sterque

ComposicaoGilmar Nascimento Saraiva

MontagemNelson Norte Pinto

1997Editora da UnicampCaixa Postal 6074

Universitaria - Barao GeraldoCEP 13083-970 - Campinas - SP - Brasil

Fone: (019) 788.2015Fone/Fax; (019) 788.2170

SUMARIO

PREFACIO - Frangoise Gadet 7

I OS FUNDAMENTOS TEORICOS DA "ANALISEAUTOMATICA DO DISCURSO" DEMICHEL PECHEUX (1969) - Paul Henry 13

II APRESENTACAO DA CONJUNTURA EMLINGUiSTICA, EM PSICANALISE E EMINFORMATICA APLICADA AO ESTUDODOS TEXTOS NA FRANgA, EM 1969 -Frangoise Gadet, Jacqueline Le"on, Denise Maldidiere Michel Plon ' 39

in ANALISE AUTOMATICA DO DISCURSO(AAD-69) - Michel Pecheux 61

IV A PROPOSITO DA ANALISE AUTOMATICA DODISCURSO: ATUALIZACAO E PERSPECTIVAS(1975) - Michel Pecheux e Catherine Fuchs 163

V APRESENTACAO DA ANALISE AUTOMATICA DODISCURSO (1982) - Michel Pecheux, Jacqueline L£on,Simone Bonnafous e Jean-Marie Marandin 253

VI ANALISE DO DISCURSO: ESTRAT^GIAS DEDESCRICAO TEXTUAL (1984) - Alain Lecomte,Jacqueline Leon e Jean-Marie Marandin 283

VII A ANALISE DE DISCURSO: TRES E>OCAS (1983)- Michel Pecheux 311

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PREFACIO

Franchise Gadet

Nao se trata, de forma alguma, de apresentar, nessas pou-cas linhas, um histdrico da Analise de Discurso. Os textos quepodemos ler aqui, organizados segundo sua cronologia, se en-carregam de tragar um histdrico, melhor do que o faria qualquercomentario. For outro lado, ha" trabalhos que comegam a apare-cer, reconstituindo esta histdria ainda recente;1 trabalhos estesque procuram compreender o lugar que, entre outros, af ocupouMichel Pecheux.

Contentar-nos-emos em propor alguns elementos de refle-xao, nao perdendo de vista o fato de que o prdprio termo "dis-curso", que acabamos de submeter a andlise, longe de ser umprimitivo a se tomar em uma evidSncia ou em uma tradigao, &um conceito que a reflexao deve visar construir.

Para compreender o interesse que suscitou a Analise deDiscurso em muitos pafses, entre os quais os da America Lati-na, nao deve ser indtil lembrar as condicoes nas quais essa dis-ciplina surgiu, enquanto tal, na paisagem disciplinar francesa.

Temos sublinhado, frequentemente, as particularidades desua emergencla. Emergencia geogrdfica, de infclo: fenomeno li-mitado a Franga. Ou, para ser mais exata, o que pode levar essenome (por exemplo, existe uma discipline "discourse analysis'na Gra-Bretanha e nos Estados Unidos) nao se ap6ia sobre amesma configuragao tedrica, e nao se reveste, de modo algum,

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da mesma forma. Na Franga, a Analise de Discurso 6, de ime-diato, concebida como um dispositive que coloca em relagao,sob uma forma mais complexa do que o suporia uma simples co-variagao, o campo da Ifngua (suscetfvel de ser estudada pela lin-gufstica em sua forma plena) e o campo da sociedade apreendidapela histdria (nos termos das relagoes de forga e de dominagaoideol<5gica). Emerge'ncia temporal, tambe'm; a Analise de Discur-so aparece nos anos sessenta, sob uma conjuntura dominadapelo estruturalismo ainda pouco criticado na linguistica, e triun-fante por ser "generalizado", isto 6, exportado para as outrasciencias humanas (por exemplo por LeVi-Strauss ou Barthes), ouinspirador de reflexoes mesmo quando nao se declara explicita-mente (por exemplo por Lacan, Foucault, Althusser ou Derrida);a lingufstica pode ainda ser chamada de ciencia-piloto das cien-cias humanas.

Esta relagao privilegiada que a Analise de Discurso entre-te"m com o estruturalismo pesara", alia"s, de forma muito pronun-ciada, sobre a escolha de uma teoria gramatical. Se, mais geral-mente, 6 adotado o distribucionalismo harrissiano e nao a gra-matica gerativa, 6 certamente porque ele permite que se perma-neca na superffcie discursiva (piano em que nao se tern duvidade que tudo se passa quanto a forma enunciatlva e, logo, quantoao sentido). Mas & tambe'm porque esta teoria - pelas ligagoesque conserva com o estruturalismo — e" sentida e admitida comoum prolongamento natural daquilo que, em mate'ria de aborda-gem global dos textos, veio ocupar, nos anos cincoenta, o terre-no daquilo que tomou o relevo da tradicional "explicagao detexto": a lexicologia estrutural. Com efeito, tal como sera" re-in-terpretado na Analise de Discurso, o me'todo harrissiano permiteuma analise a partir da palavra (e esta sera" a te"cnica da palavra-pivd), integrando, entretanto, a dimensao de um reconhecimentoda espessura sinta"tica da Ifngua.

Ha" ainda um terceiro fator para particularizar esta Analisede Discurso: 6 que ela se apdia sobre o polftico. Ela nasce nacrenca em uma visao de intervengao polftica, porque aparececomo portadora de uma crftica ideol<5gica apoiada em uma armacientffica, que permitiria um modo de leitura cuja objetividadeseria insuspeitaVel. Que af haja ilusao, a de encontrar "o queo texto disse verdadeiramente" (ou "quis verdadeiramente di-

zer"), s6 mais tarde € que, em favor de um vasto movimento dereflexao crftica sobre os seus fundamentos, a suspeita vir3 a to-na. Ilusao ainda € a concepgao da lingufstica como instrumentoobjetivo de abordagem da lingua, sonho de uma hipot6tica neu-tralidade da grama~tica.

Finalmente, como esse feixe de diferengas nao pode se re-solver em uma semelhanga as outras teorias, nao podemos senaodestacar uma ultima caracterfstica da Andlise de Discurso Fran-cesa, cuja forma acabada 6 a de Michel P€cheux, com o apoiosobre uma teoria do discurso. Para ele 6 impossivel a Analise deDiscurso sem sua ancoragem ern uma teoria do sujeito, tema quetambe'm deve ser visto como um lugar problemdtico, que deveser constituido.

O conjunto dessas caracterfsticas mostra bem por que estadisciplina se revelou dificilmente exportaVel: tanto no tempo(ela nao conservou muito tempo sua forma inicial), quanto geo-graficamente. Quanto ao tempo, certos artigos que aqui figuram,e outros que se interrogam sobre a primeira epoca,2 permitemcompreender por que, desde que a conjuntura te<5rica francesa semodrficou, a Analise de Discurso tambe'm se modificou pouco apouco. Quanto a exportac.ao geogrdfica, nos deteremos (muitobrevemente pois nao sou, certamente, a mais indicada para falardisso) no exemplo do Brasil. Uma reflexao que se reclama domarxismo nesse pafs nao pode seguir a mesma periodizac,ao daFranga, se mais nao fosse jd pelos pap6is respectivos que a tra-digao intelectual d^ a histdria, a antropologia, a etnologia: se ahist<5ria 6 central na Franga, 6 a antropologia que aparece comodominante no Brasil; seria, entao, em relagao a ela que a Analisede Discurso tern de se situar?

Tratar-se-ia aqui, nos textos que acabamos de trazer, deuma pagina definitivamente virada, que nao refletiria senao operfume do passado, e s<5 deveria ser conhecida como uma 6po-ca deixada para Ira's? Vemos no entanto que se expandem nasreflexoes atuais termos (como interdlscurso, formagao discursi-va...) que fazemos agir nao talvez enquanto dispositive te<5ncoglobal (seria, alias, isto verdadeiramente desejaVel?) mas pontoa ponto. E hd questoes que concernem a produgao do sentido

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que permanecem sempre muito vivas para quern pensa que osentido deve ser apreendido, ao mesmo tempo, na Ifngua e nasociedade.

Tradugao: Eni Pulcinelli Orlandi

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NOTAS

' De forma recente, e em pane ainda em fase de elaborac.ao, Denise Maldidier cst3efetuando tal trabalho, ao qual ela contribui especificamente com sua dupla especia-lizacao, ao mesmo tempo participante e historiadora dessa histdria. Ver, em particu-lar, "Elements pour une histoire de 1'analyse de discours en France", de junho de1989, nos Cahiers de linguistique sociale n2 14, IRED, BP 108, 76134 Mont Saint-Aignan, Franca; tamb6m (em curso de elaboracao) Edition critique d°extraits de foeu-vre de Michel Pecheux, com uma express!va introduc.ao de Denise Maldidier, a apare-cer nas Editions des Cendres.

* Ver, por exemplo, Marandin, "Analyse de discours et linguistique g6n£rale",Langages n- 55; Guillaumou e Maldidier, "Courte critique pour une longue histoi-re", Dialectiques n? 26; Courtine, "Le discours politique", Langages n- 62,

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OS FUNDAMENTOS TEORICOS DA'ANALISE AUTOMATICA DO DISCURSO"

DE MICHEL PECHEUX (1969)

Paul Henry

Em 1966, era publicado nos Cahiers pour ^analyse, a re-vista do Cercle d'Epistemologie de 1'Ecole Normale Supe"rieureem Paris, um texto que tinha como tftulo "Reflexions sur la si-tuation the"orique des sciences sociales, spe"cialement de la psy-chologie sociale".1 Este texto era assinado por Thomas Herbert,mas, na verdade, era a primeira publicagao de Michel Pecheux.Algum tempo depois, durante o ano de 1968, era publicado sobo mesmo pseudonimo um segundo texto: "Remarques pour unethe'orie g6ne"rale des ideologies".2 No intervalo entre a publica-?ao destes textos assinados por Thomas Herbert, surgiram doisartigos sobre a analise do discurso, ambos assinados por MichelP£cheux: o primeiro no Bulletin du Centre d*Etudes et de Re~cherches Psychotechniques (C.E.R.E.P.) em 1967, e o segundona Psychologic frangaise no inicio de 1968.3 A primeira vista,nao hd nenhuma relagao clara e evidente entre os textos assina-dos por Thomas Herbert e os dois dltimos, relatives a analise dodiscurso. Do mesmo modo, se nds percorremos L*Analyse auto-matique du discours (publicado em 1969),4 poderfamos pensarque Michel Pecheux e Thomas Herbert eram duas pessoas real-mente distintas, tendo preocupa§6es e pressupostos bem dife-rentes.

De fato, os conceitos e as nogoes-chaves dos textos assi-nados Thomas Herbert, que fazem explicitamente referenda ao"materialismo hist<5rico" e a psicanSlise, estao quase que com-

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pletamente ausentes do livro de Pecheux sobre a analise auto-matica do discurso. Nao hd, no livro, senao uma dnica referen-cia a uma "teoria das ideologias" e a uma "teoria do incons-ciente", em uma nota de rodape".5 Nesta nota, Michel Pecheuxdiz somente que a teoria do discurso, tal como ele a concebe,nao pode ocupar o lugar destas teorias, mas pode intervir em seucampo. Do mesmo modo, a crftica as ciencias sociais, em parti-cular, a crftica & psicologia social, desenvolvida no primeiro dosartigos de Herbert, nao aparece claramente no livro. Que este li-vro tenha sido publicado em uma colegao dirigida por dois psi-cologos de renome, e que seu conteudo tenha sido apresentadoinicialmente como uma tese de doutorado em psicologia social,poderia levar a pensar que Pecheux utilizou-se de um codinomee que, nestas publicagoes acadSmicas, escondeu seu ponto devista por puro oportunismo: evitar uma apresentagao explfcita edireta de suas orientac,6es tedricas efetivas que, nao estando nalinha academica da psicologia francesa, poderiam causar incon-venientes a sua carreira. Ao contrario, longe de ser oportunista,a atitude de Pecheux representava a tradugao de uma estrategiacuidadosamente deliberada.

Pecheux sempre teve como ambigao abrir uma fissura ted-rica e cientffica no campo das ciencias sociais, e, em particular,da psicologia social. Ele afirmava, no momento da publicagaode A andlise automdtica do discurso, que ali se encontrava seuobjetivo profissional principal. Nesta tentativa, ele queria seapoiar sobre o que Ihe parecia ja ter estimulado uma reviravoltana problematica dominante das ciencias sociais: o materialismohistdrico tal como Louis Althusser o havia renovado a partir desua releitura de Marx; a psicanalise, tal como a reformulou Jac-ques Lacan, atrave"s de seu "retorno a Freud",6 bem como certosaspectos do grande movimento chamado, nao sem ambiguidades,de estruturalismo. No fim da de"cada de sessenta, o estruturalis-mo estava no seu apogeu. O denominador comum entre Althus-ser e Lacan tem algo a ver com o estruturalismo, mesmo queambos nao possam ser considerados estruturalistas. O que inte-ressava a Pecheux no estruturalismo eram aspectos que supu-nham uma atitude nao-reducionista no que se refere & lingua-gem. No's veremos o porque', em seguida.

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Um instrumento cientffico

Como vimos, a primeira publicac.ao de Pecheux diz res-peito a "situagao tedrica" nas ciencias sociais. Nao tentarei darconta aqui deste texto de modo complete. Ele e", entretanto, fun-damental para se compreender aquilo que Pecheux objetivava aodesenvolver a analise automdtica do discurso: fornecer as cien-cias sociais um instrumento cientffico de que elas tinham neces-sidade, um instrumento que seria a contrapartida de uma abertu-ra tedrica em seu campo. Isto quer dizer que para Pecheux:

1. O estado das ciencias sociais era um tanto pre"-cientifi-co;

2. O estabelecimento de uma ciencia necessita de instru-mentos.

O primeiro ponto decorre da crftica sobre o estado dasciencias sociais tal como ele se apresentava no momento em quePeucheux escrevia sua obra. Mas este primeiro ponto esta ligadoao segundo. Nds reencontramos nele o interesse de Pecheuxpela epistemologia e pela hist<5ria das ciencias, e, tambem, seuinvestimento neste campo.7 Pecheux escreve que um duplo errodeve ser evitado: "considerar qualquer utilizac.ao de um instru-mento como cientffica, esquecer o papel dos instrumentos naprdtica cientffica".8 De fato, no primeiro texto, Herbert desen-volve uma andlise precisa sobre o que 6 um instrumento cientffi-co, e 6 sobre esta base de analise que Pecheux concebeu seusistema de analise automatica do discurso.

O que e", entao, para Pecheux um instrumento cientffico?Af o ponto de vista de Pecheux 6, antes de mais nada, aquele dahist<5ria da ciSncia e das te"cnicas cientfficas. Ele segue de pertoBachelard e Canguilhem.9 Mas ele acrescenta a estes tedricoselementos oriundos de uma analise marxista sobre as conse-qiidncias da divisao do trabalho (em particular, da separagaoentre o trabalho manual e o trabalho intelectual), e sobre as con-seqiiencias do cardter contraditdrio da combinagao das forgasprodutivas e das relagoes sociais de produgao em uma sociedadedividida em classes.

No im'cio do segundo texto de Herbert encontramos um re-sumo dos resultados do primeiro. Neste resume sao enunciadas

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duas proposicdes fundamentals. A primeira concerne as condi-gdes nas quais uma ciencia estabelece seu objeto. A segunda,por sua vez, refere-se ao processo de "reproducao metddica"deste objeto, isto 6, o processo atrave"s do qual uma ciencia ex-plora, do interior, seu pr6prio discurso, testando sua consisten-cia e necessidade.

1. Toda ciencia, escreve Herbert-Pecheux, 6 produzidapor uma mutac.ao conceitual num campo ideoldgico emrela^ao ao qual esta ciencia produz uma ruptura atrave"sde um movimento que tanto Ihe permite o conhecimentodos tramites anteriores quanto Ihe d£ garantia de suaprdpria cientificidade. Ele acrescenta que, num certosentido, toda ciencia 6, antes de tudo, a ciencia daideologia com a qual rompe. Logo, o objeto de umaciencia nao 6 um objeto empfrico, mas uma construcao.Ale"m do mais, tal objeto nao pode se destacar, atrav6sdo jogo de um questionamento aleatdrio, da naturezaque progressivamente o delimitaria tornando visfveissuas caracteristicas.

2. Em cada ciencia, dois momentos devem ser distingui-dos. Primeiramente, o momento da transformacao pro-dutora do seu objeto, que 6 dominado por um trabalhode elaboragao tedrico-conceitual que subverte o discur-so ideoldgico com que esta ciencia rompe. Em segundo,o momento da "reproducao metddica" deste objeto, oqual 6 de natureza conceitual e experimental.

Em cada uma destas fases ou momentos da ciencia, os ins-trumentos e as ferramentas representam um papel diferente. Esteponto foi desenvolvido sobretudo no primeiro dos dois textos deHerbert. O primeiro momento pode ser descrito como essencial-mente tedrico e conceitual, o que nao quer dizer que as ferra-mentas ou os instrumentos ("materials" e/ou "abstratos") af naoexergam nenhum papel. Mas 6 no segundo momento, aquele da"reproducao metddica" do objeto, que os instrumentos parecemter uma funcao mais determinante. No entanto, esta funcao naopode ser exercida senao na medida em que a transformacao pro-dutora do objeto ja" tenha ocorrido. E este momento fundador deuma ciencia 6 tambe"m aquele da reinvencao dos instrumentos edas ferramentas que sao necessaries e que sao procurados onde

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a ciencia pode encontra-los — nas prdticas cientfficas ja" estabele-cidas, bem como nas "prdticas te"cnicas", isto 6, pn5ticas ligadasao processo de producao. Pecheux apresema inrimeros exemplosde ferramentas ou instrumentos que foram utilizados nas "prdti-cas te"cnicas" bem antes de serem transferidos para as "praticascientfficas", notadamente os alambiques, as balancas e as lune-tas. Por exemplo, as balancas estiveram em uso nas transacdescomerciais bem antes de se tornarem instrumentos cientfficos.Com Galileu, a teoria das balancas tornou-se parte integrante dateoria ffsica. Os princCpios que explicam por que as balangasdao resultados invariantes (e em que limites) faziam parte dateoria de Galileu. Desta maneira tstava criada uma homogenei-dade entre o objeto da ffsica e seus me"todos, o que realmenteestabeleceu a ffsica enquanto ciencia fundamental. Se, utilizan-do-se as balancas, algum resultado incongruente tivesse sidoobtido, este teria ganho uma significagao tedrica imediata, obri-gando a revisao ou a transformacao de aspectos determinados dateoria. Contrariamente, todo desenvolvimento das teorias da ff-sica podia, gragas a esta homogeneidade, traduzir-se em seusme"todos e em seus instrumentos (inclusive os matemaiicos). Esteprocesso corresponde bem precisamente aquilo que Pecheuxchama de "reproducao metddica" do objeto de uma ciencia, ouseja, o processo pelo qual uma cie"ncia cria seu prdprio Spiel-raum ou espago de jogo, faz variar suas questoes, e, atravds detais variacoes, ajusta seu discurso tedrico a si mesma, nele de-sen volvendo sua consistencia e necessidade. Evidentemente, asciSncias firmemente estabelecidas desenvolvem instrumentos nointerior de si prdprias, de modo que a "inveneao" de tais ins-trumentos produz-se no seu interior sob a forma de "teoria reali-zada". Entretanto, diz Pecheux, cada vez que um instrumento ouexperimento e" transferido de um ramo de ciencia para outro, oua fortiori de uma ciencia para outra, este instrumento ou esteexperimento 6 de algum modo reinventado, tornando-se um ins-trumento ou experimento desta ciencia em particular, ou desteramo particular de ciencia. E PScheux conclui sobre este pontodizendo que as ciencias colocam suas questoes, atraves da inter-preta^ao de instrumentos, de tal maneira que o ajustamento deum discurso cientffico a si mesmo consiste, em ultima instSncia,na apropriacao dos instrumentos pela teoria. £ isto que faz daatividade cientffica uma prdtica.

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Temos, agora, uma ideia suficientemente clara do que erapara Pecheux um instrumento cientffico e do que ele queria quefosse seu sistema de analise automa'tica do discurso. Isto querdizer, entre outras coisas, que esse instrumento nao podia ser,do seu ponto de vista, concebido independentemente de umateoria que o inclufsse ou que pudesse conduzir a teoria destemesmo instrumento. Isto quer dizer, tambe"m, que o que pudesseser tornado de empre'stimo para construir este instrumento preci-sava ser reinventado, devia poder ser "apropriado" pela teoriaque ele tivesse em vista. E, em particular, o caso para aquilo queele devia emprestar a lingiifstica. Este instrumento nao podia sersomente de analise lingiifstica "aplicada". E por esta razao quePecheux, no im'cio de sua obra, criticou as aplicacoes de analiselingiifstica a "analise de textos". A mesma critica € vdlida paratodos os outros emprestimos feitos a Idgica, a informa'tica... Istoquer dizer ainda que esse instrumento nao podia ser somente uminstrumento a mais, acrescido a todo o conjunto existente dosinstrumentos utilizados pelas ciencias sociais, completando esteconjunto para efetuar as tarefas que os outros instrumentos naopreenchiam. Pecheux visava a uma transformasao da pra"tica nasciencias sociais, uma transformacao que poderia fazer desta pra"-tica uma prdtica verdadeiramente cientffica.

Pecheux 6 um fildsofo de foraia^ao, mas um fildsofo fasci-nado pelas maquinas, pelas ferramentas, pelos instrumentos epelas te"cnicas, por razoes profundamente enraizadas em suahistdria pessoal e antecedentes familiares. E ele nao 6 um fildso-fo qualquer, mas sim um fildsofo convencido de que a praticatradicional da filosofia, em particular no que tange as ciencias,est5 desprovida de sentido ou 6, no mfnimo, um fracasso. Porprdtica classica da filosofia em relacao as ciencias, deve-secompreender essa pratica que pretende legislar em materia deciencia, de cientificidade, de legitimidade epistemoldgica e coi-sas semelhantes. Ele esta" convencido de que uma crftica unica-mente filosdfica das ciSncias sociais nao pode ir muito longe,mesmo estando convicto de que as ciencias sociais nao sao cien-cias e nao sao nada mais que ideologias. Para ele, a tinica crfticavalida a tais ideologias € a ciencia, ou as ciencias, do terreno oudo domfnio que elas ocupam. E isto precisamente o que ele querdizer quando escreve que uma ciencia e", antes de tudo, a ciSnciada ideologia (ou das ideologias) com as quais ela rompe. Mas

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isto € em si uma posicao filos6fica (na linha de Bachelard, Can-guilhem e Althusser), o que significa que, se Pecheux tinha umaposicao crftica em relacao a maneira tradicional de abordar asciencias pela filosofia ("Deixemos Kant para seu Tribunal", es-creve), ele nao estava de modo algum pronto a considerar que aspraticas cientfficas pudessem ser exercidas fora de uma prdticafilosdfica. Ao contraYio, segundo ele, um outro tipo de pra"ticafilosdfica era completamente indispensaVel no mfnimo porque,entre outras coisas, a pr£tica tradicional da filosofia desempe-nhou um papel crucial na elaborate do que ele considera comoideologias ou pseudociencias, entre as quais, as ciencias so-ciais. Por outro lado, Pecheux estava convencido, como vimos,de que as praticas cientfficas necessitam de instrumentos ("ma-terials" ou "abstratos") mesmo que o uso de instrumentos naogaranta que uma praiica que se de por cientffica o seja efetiva-mente. Definir um novo instrumento cientffico 6 para ele o me-Ihor meio de evitar a rotina da crftica filosdfica tradicional.Al6m do mais, esta" af, pensa ele, a linica forma de ter uma chan-ce de ser compreendida pelos especialistas das ciencias sociaisque sempre recusaram - nem sempre por fracos motives - ascrfticas filosdficas tradicionais. Pecheux debate tanto com osfildsofos quanto com os especialistas das ciencias sociais. Noentanto, estes dois tipos de interlocutores sao, para ele, tendoem vista o estado de sua pesquisa (em particular por causa dadivisao acadSmica do trabalho intelectual), completamente dife-rentes. Nao se pode debater com uns e outros da mesma manei-ra.

Deste modo, podemos compreender por que, quando se di-rige aos especialistas de ciencias humanas, Pecheux enfatizao instrumento. Ele percebe que, se privilegiasse naquele mo-mento os aspectos tedricos e filosdficos de sua tentativa, seu de-bate com estes especialistas se centralizaria neste terreno, e oinstrumento apareceria como uma simples ilustragao de seuponto de vista. Isto entraria em total contradisao com sua con-cepgao de instrumento cientffico, ja" que este nao deve ser consi-derado independente da teoria ou como uma "aplicagao" desta.Ao contrario, quando se dirige aos fildsofos, como € o caso dosCahiers pour I'analyse, ele apenas menciona a necessidade, pa-ra provocar uma muta^ao conceitual em um campo ideoldgico,de construir um dispositive instrumental em uma regiao, do es-

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pago ideo!6gico concernido, localizada com precisab. E eleacrescenta que nao se pode travar um dialogo especulativo comqualquer interlocutor, nem produzir experimentos em quaisquercondigoes e com qualquer um. Pecheux 6 consciente da divisaoe da especial izagao do trabalho intelectual (ao mesmo tempo emque a deplora); ele sabe que um filo'sofo nao € um psicologo ex-perimentalista e que, inversamente, um psicologo experimenta-lista tambem nao € um fihSsofo. Daf sua estrat6gia.

A crftica feita por Pecheux sobre a utilizacao de instru-mentos nas ciencias sociais 6 um ponto crucial. Se ele concebeusua analise autom£tica do discurso como um instrumento, estenao era de nenhum modo andlogo aos que ele via utilizados nasciencias sociais- Mas ele nao se limitava a recusar esta utilizacao(empfrica) dos instrumentos; ele procurou depreender aquilo quetornou possivel esta utilizacao, e que fez com que ela se tornas-se dominante no campo preencbido pelas ci^ncias sociais. Nesteponto, sua crftica ao modo de se servir dos instrumentos nasciencias sociais confunde-se com sua crftica as ci£ncias sociaisem si mesmas, uma crftica que diz respeito a ligagao dessasciencias com o polftico.

As ciencias sociais e seus instrumentos

Com seu primeiro texto, Pecheux critica a concepcao dapratica cientffica, que coloca esta na continuidade das "praticastecnicas". Essa percepgao tradicional da pratica cientffica,con-cordando com a epistemologia empirista, nao chega a fazer a di-visao entre as praticas cientfficas e as outras praiicas, colocandoem jogo a especulagao, a teorizagao e uma utilizacao de instru-mentos. Por exemplo, nao consegue separar o que diferencia aalquimia da qufmica (um ponto que Pecheux desenvolve a tftulode ilustragao). Se retornamos as balangas (mas se aplicavam ob-servagoes similares aos alambiques ou as lunetas, por exemplo)sem considerar sua utilizagao tecnica (em particular, nas transa-goes comerciais), sabemos que as pessoas pesaram, utilizando-as, todos os tipos de coisas, tal como sangue, urina, la, ar atmos-

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f6rico e assim por diante, quase tudo que podia ser pesado. Es-sas pessoas fizeram comparagoes sistematicas e, eventualmente,formularam teorias com base nestas observacoes empfricas. Masneste uso das balangas nao havia nenhuma "re-invengao" doinstrumento, nenhuma "apropriagao" do instrumento pela teoria.As balangas eram tidas como instrumentos que davam medidas"objetivas" sobre reah'dade; dados que permitiam o direito deespecular e de tirar conclusoes. De fato, a chamada "objetivida-de" nao era nada senao a transposicao da adequagao do instru-mento as "pr&icas tecnicas" no interior das quais o prdprio ins-trumento havia sido desenvolvido e utilizado (as transagoes co-merciais).

Em certo sentido, as balangas representam um subproduto,entre outras coisas, das praticas comerciais e, ao mesmo tempo,abriram a possibilidade de certas fonnas destas praticas. "Aspraticas tecnicas sao determinadas, escreve Pecheux, no sentidode receber da exterioridade uma demanda, e sao determinantesna medida em que 6 o conjunto das possibilidades que elasabrem que tornam possfvel a existencia da demanda". S6 se exi-ge das balangas, no que diz respeito as transagoes comerciais, ofornecimento de resultados invariantes no caso de medidas re-petidas e certas propriedades, como por exemplo: se duas quan-tidades de um material qualquer sao pesadas separadamente edepois conjuntamente, a soma dos dois primeiros pesos deve serigual ao terceiro, e assim por diante, de modo reiterado. Destemodo, o prego, por exemplo, de duas vezes um certo peso dequalquer coisa poderia ser legitimamente declarado duas vezes oprego deste mesmo peso desta coisa. Nestas condigoes, sendocolocado um certo peso de ouro correspondente a uma unidadede peso de um material qualquer, poderia ser estabelecida umacorrespondencia entre um peso qualquer deste material e um pe-so correspondente de ouro. Um sistema de medida dos pregosdas quantidades de materiais-objetos de transagoes comerciaishavia sido instaurado em referenda aos pesos. Em suma, todauma tecnologia das balangas foi desenvolvida. Esta tecnologia,na epoca, buscou mesmo certos conhecimentos cientificos, masnada que se comparasse a unm teoria das balangas, nem da ati-vidade associativa das medidas de peso. Tais propriedades dasbalangas e dos pesos eram fatos estabelecidos, verificados empi-

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ricamente. Dava-se o mesmo para as medidas de sangue, de uri-na... que foram feitas.

Pode-se dizer que, se estas medidas foram consideradasconfiaVeis o bastante para que houvesse liberdade de especula-gao sobre seus resultados, foi sobre as mesmas bases. E a teoriade Galileu que tornou ao mesmo tempo possfvel e necessaria aconstituicao de uma verdadeira teoria dos pesos e das balances,exatamente como Galileu poderia constituir uma teoria da ob-servagao astronomica e de seus instrumentos (como ele fez, efe-tivamente, em uma pequena obra inacabada, datando de 1637).Mas seguindo a ide"ia do ato de pesar sangue, urina... por quenao se poderia pesar, por exemplo, cerebros, declarando que opeso do ceYebro mede a inteligencia? Foi efetivamente o que seproduziu e fomos conduzidos a faze-lo na base de teorias quefazem do ce"rebro o drgao do pensamento e da inteligencia. Al-guns antropdlogos se puseram a determinar o peso me"dio do ce"-rebro das diversas ragas humanas, relacionando este tanto ao su-posto nfvel de aptidao intelectual destas ragas, quanto a suadistancia relativa com as espe"cies animais... Claro esta" que fo-ram feitas experiencias bastante elaboradas, e bem menos, evi-dentemente, recusaVeis. Mas Binet estava longe disto quandodisse que 6 a inteligencia o que seus testes medem? Temos aiexatamente aquilo que Canguilhem chamou de ideologias(pre"-)cientificas, caracterizando-as (no dommio das ciencias davida, de que ele se ocupou particularmente) como discursos quefundam sua credibilidade sobre o cdlculo de um maximo deanalogias com dados estabelecidos em outros campos, na aus£n-cia de qualquer possibilidade atual de verificacao experimentalem seu proprio campo.10

Duas observances devem ser feitas a propdsito desta ilus-tragao de uma utilizagao ideoldgica particular (mas nao obstantebastante frequente) de ferramentas e de instrumentos:

1. Tais utilizagoes de instrumentos sao claramente exten-soes de outras utilizagoes dos mesmos. Se tais praticassao concebidas como cientfficas, a pratica cientfficaesta" colocada na continuidade de prdticas te"cnicas. Eclaro que nem tudo € false nestas pr&icas: as medidasnao sao falsas, sao, como se diz, "objetivas", e, por-tanto, as comparagdes efetuadas nao podem ser consi-

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deradas como desprovidas de fundamento. Nao pode-mos dizer que elas nao representam nenhum saber. Taisextensdes da utilizagao das ferramentas e dos instru-mentos foram racionalizadas pela epistemologia e pelafilosofia do conhecimento empirico.

2. X primeira vista, tal uso dos instrumentos aparece des-ligado da demanda social comum, pr(5xima a esfera daprodugao (do tipo daquela implicada nas transagoescomerciais, por exemplo). Mas, de um outro ponto devista, ele aparece ligado a uma outra forma de demandae de ordem social. Mesmo que este exemplo parec.a umpouco esquematico e simplista, isto 6 particularmenteclaro no caso do peso de c6rebro utilizado para legiti-mar posic.oes evidentemente racistas. Sem duvida, €,possfvel estimar semelhantes utilizagoes de instrumen-tos em antropologia indo exatamente no sentido inver-se. O ponto importante € que esta utilizagao de instru-mentos & diretamente utilizada para autorizar ou, aocontrano, contestar posi^oes ideoldgicas; 6 recrutadapara intervir no combate ideoldgico. Isto quer dizer: (a)que nao se pode descartar tal utilizac.ao de instrumentossd em vista do fato de que ele ir£ sempre no sentido dasmesmas orientac.6es polfticas ou ideoldgicas; e (b) que ademanda ou a ordem social que parece ter safdo pelaporta entre pela janela.

Os dois textos de Herbert sugerem que este processo (suascondigoes de possibilidade) tern alguma coisa a ver com a divi-sao entre trabalhadores e nao-trabalhadores em uma sociedadedividida em classes. Neste sentido, estes dois textos delineiamuma andlise sobre as rafzes histdricas da epistemologia e da filo-sofia do conhecimento empiricista.

No segundo texto de Herbert, PScheux analisa a ideologiaenquanto um processo com "dupla-face":11

1. Do lado do processo de produc,ao, a ideologia 6, escre-ve Pecheux, um processo gragas ao qua! conceitos t6c-nicos operatdrios, tendo sua fungao primitiva no pro-cesso de trabalho, sao destacados de sua seqiiencia ope-ratdria e recombinados em um processo original.

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2. Do lado das redoes sociais, a ideologia 6 um processoque produz e mante'm as diferencas necessaVias ao fun-cionamento das relagoes sociais de producao em umasociedade dividida em classes, e, acima de tudo, a divi-sao fundamental entre trabalhadores e nao-trabalhado-res. Neste caso, a ideologia tem como func.ao fazer comque os agentes da producao reconhecam seu lugar nes-tas relagoes sociais de producao.

Do ponto de vista de Pecheux, os especialistas das ci£nciassociais procederam exatamente como nossos medidores de ce"re-bro, mas eles tem a ver com uma demanda ou encomenda socialbem especifica, aquela que diz respeito a transformagao-repro-dugao das relagdes sociais de producao, isto 6, a pra"tica polftica.As "ciencias sociais" desenvolveram-se principalmente, escrevePecheux, nas sociedades em que, de modo dominante, a pnSticapolftica teve como objetivo transformar as relagoes sociais noseio da pratica social de tal modo que a estrutura global destaultima ficasse conservada. As "ciencias sociais", segundo P&~cheux, estao no prolongamento direto das ideologias que se de-senvolveram em contato estreito com a praiica polftica. Elasconsistem, em seu estado atual, ele acrescenta, na aplicagao deuma tecnica a uma ideologia das relacoes sociais tendo em vistaa adaptagao ou a "re-adaptagao" das relagoes sociais a pra"ticasocial global, considerada como uma invariante do sisterna.12

Mas Pecheux acrescenta ainda algo concemente a pratica polfti-ca que, enfim, nos faz retornar a analise do discurso. Ele diz queo instrumento da pra"tica polftica 6 o discurso, ou mais precisa-mente, que a pratica polftica tem como fungao, pelo discurso,transformar as relagoes sociais reformulando a demanda so-cial.13

Linguagem, discurso e ideologia

Deste modo vemos que, do ponto de vista de Pecheux, as"ciencias sociais" sao essencialmente tecnicas que tern uma li-gagao crucial com a pratica polftica e com as ideologias desen-

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volvidas em contato com a prdtica polftica, cujo instrumento € odiscurso. Esta idem 6 retomada no segundo texto assinado porHerbert. Se o homem, escreve Pecheux, 6 considerado como umanimal que se comunica com seus semelhantes, nao entendere-mos jamais por que 6 precisamente sob a forma geral do discur-so que estao amarradas as dissimetrias e as dissimilaridades en-tre os agentes do sistema de producao. Nesta base, podemoscompreender por que Pecheux, tendo em vista provocar umaruptura no campo ideoldgico das "ciencias sociais", escolheu odiscurso e a analise do discurso como o lugar preciso onde €possfvel intervir teoricamente (a teoria do discurso), e pratica-mente construir um dispositive experimental (a analise automa~ti-ca do discurso).

Ha" duas razoes para isto:1. A relagao oculta entre a pratica polftica e as "ciencias

sociais" (a primeira vista, a psicologia social e a so-ciologia, mas tambem a psicologia, mesmo que ela naoseja considerada como uma "ciencia social" e sim,eventualmente, como uma ciencia humana" ou, at6mesmo, como uma "ciencia da vida").

2. A ligagao entre a prdtica polftica e o discurso. Pecheuxrecusa completamente a concepgao da linguagem que areduz a um instrumento de comunicacao de significa-goes que existiriam e poderiam ser definidas indepen-dentemente da linguagem, isto 6, "informagoes". Estateoria ou concepgao da linguagem 6, para ele, umaideologia cuja fungao nas "ciencias humanas e sociais"(onde ela 6 dominante) € justamente mascarar sua liga-gao com a pratica polftica, obscurecer esta ligagao e, aomesmo tempo, colocar estas ciencias no prolongamentodas ciencias naturais. Mesmo nao possuindo uma lin-guagem nos moldes das linguagens humanas, os ani-mais se comunicam. For este motive, a redutora con-cepgao de linguagem humana como instrumento de co-municagao (concebida, 6 verdade, de modo muito com-plexo, muito elaborada, e muito performante, mas, noentanto, para isso) conduz a conceber o homem e as so-ciedades humanas com base nos mesmos princlpios dosanimais e das sociedades animais. Se & sob a forma ge-

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ral do discurso que estao apagadas as dissimetrias e asdissimilaridades entre os agentes do sistema de produ-gao, sem duvida isto nao se produz de modo explfcito,atrave"s de um tipo de ordem: "coloque-se aqui, este 6seu lugar no sistema de produgao", isto 6, pelo vie"s deuma especie de "comunicagao", eventualmente acom-panhada de alguma forma de coercao ffsica ou deameaga. E claro que a coerc.ao pode existir e existesenipre em um sentido. E claro, por exemplo, que qual-quer um pode se ver obrigado a tomar um lugar defini-do em um sistema de trabalho, mas esse lugar nao 6 umlugar no sistema de produc.ao.Nao e a isto que estamosnos referindo.

O que precisa ser compreendido e como os agentes destesistema reconhecem eles prdprios seu lugar sem terem recebidoformalmente uma ordem, ou mesmo sem "saber" que tern umlugar definido no sistema de produgao. Quando alguem se veobrigado a ocupar um lugar dentro de um sistema de trabalho,este processo ja se deu anteriormente; tal pessoa sabe, porexemplo, que 6 um trabalhador e sabe o que tudo isto implica. Omesmo acontece quando algue'm 6, por exemplo, nomeado juiz.O processo pelo qual os agentes sao colocados em seu lugar 6apagado; nao vemos senao as aparencias externas e as conse-quencias. Para compreender como este processo se situa em ummesmo movimento, ao mesmo tempo realizado e mascarado, e opapel que nele desempenha a linguagem, devemos renunciar aconcepgao de linguagem como instrumento de comunicacao. Istonao quer dizer que a linguagem nao serve para comunicar, massim que este aspecto e" somente a parte emersa do iceberg.

E justamente para romper com a concepcao instrumentaltradicional da linguagem que Pecheux fez intervir o discursoe tentou elaborar teoricamente, conceitualmente e empiricamenteuma concep$ao original sobre este. Nesta tentativa de rompercom a concepcao instrumental da linguagem, Pecheux seguiuuma orientacao que teve uma importancia considerate! na Fran-ca, la" evocamos o estruturalismo e devemos acrescentar agoraalgumas observacoes a seu respeito.

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Estruturalismo e linguagem

Pecheux, nao mais que Lacan, Foucault ou Althusser, naopode ser considerado um "estruturalista". Contudo, houve noestruturalismo um foco colocado sobre a linguagem que pode serencontrado tanto em Lacan ou Foucault quanto em Pecheux. Oestruturalismo frances fez da Hngufstica a ciencia-piloto; os es-truturalistas tentaram definir seus me"todos tendo como referen-cia a lingufstica, tendo tamb^m transferido todo um conjunto deconceitos lingufsticos para quase todos os dominios das cienciashumanas e "socials". Os estruturalistas identificaram cultura elinguagem de tal modo que toda a analise de qualquer fato cultu-ral devia- tomar uma forma de andlise Hngufstica, ou qualquercoisa de similar (semiologia, semidtica). Nao e" este o caso deLacan. Lacan nao tentou reduzir a psicanalise a uma espdcie deanalise linguistica; mas sua concepgao de psicandlise centraliza-se sobre o fato de que se trata de uma "cura de palavra", ope-rando exclusivamente sobre a fala (isto vai de encontro a certastendencias psicologizantes, biologizantes ou mesmo sociologi-zantes ou antropologizantes na psicandlise). Lacan se referiu aSaussure e Jakobson; interpretou a Verdichtung e a Verschie-bung fcondensagao e deslocamento) freudianas em termos demetafbra e metoni'mia; e colocou primeiramente uma concepgaodo inconsciente como estruturado como uma linguagem, e dosujeito como ser de linguagem ou ser falante. Mas podemos ob-servar que tudo aquilo que Lacan tomou emprestado a lingiifsti-ca (como em relagao a qualquer outro campo cientffico) foi defato reelaborado por ele tet5rica e operacionalmente.

No estruturalismo, os conceitos e os me'todos linguisticosforam simplesmente transferidos para outros campos sem ter so-frido reelaboragoes fundamentals. Ao fazer isto, os estruturalis-tas se comportaram de modo semelhante aos nossos medidoresde ce"rebro. Por este motivo, e este 6 um ponto fundamental, elesnao se encontraram em uma posigao que Ihes terJa permitido sedesfazer do ha"bito de fazer da natureza humana (ou do espfritohumano) um princfpio explicativo.14 Tal hdbito foi herdado dateologia crista (a qual colocava Deus atra"s da natureza ou do es-pfrito humano — assim como atra"s de cada coisa, mas em uma

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posigao privilegiada, de eleigao — como princfpio explicativeultimo de tudo que 6 concernente ao homem) e da filosofia clds-sica, que elaborou sobre esta base sua concepgao do sujeito hu-mano (sob diversas denominagoes como, por exemplo, a Kazao).O estruturalismo nao renunciou a ide"ia de que hd uma especifi-cidade das "ciencias humanas" assentada sobre a especificidadede seu objeto, o homem, o que resulta em uma petigao de prin-cfpio porque pressupoe que a referenda ao homem bastaria paracolocar e especificar a priori um objeto de ciencia, quaiquercoisa cientiflcamente especifica e bem definida. Desta maneira,o estruturalismo preservou a id&a de que as "ciencias do ho-mem" ou as "ciencias humanas" podiam ser a base de um reno-var do humanismo. E por isso que, na Franga, a (principal) filo-sofia das "ciencias do homem" ou das "ciencias humanas", isto€, aquela que enunciava a diferenca especifica entre estas cidn-cias e as outras foi o estruturalismo. Esta confusao chegou a talponto que, como o estruturalismo, as ciencias humanas ou as"ciencias do homem" foram, durante certo perfodo de tempo,entendidas por alguns como a prdpria filosofia, como a "filoso-fia do nosso tempo". De fato, o estruturalismo deixou, destemodo, a porta aberta para todas as formas de reducionismo, en-quanto tentativas para especificar, de todos os pontos de vistapossfveis, inclusive os biologicos, a natureza humana, para delafazer um princfpio explicative.

Mas na mesma ocasiao em que a filosofia estruturalista eraelaborada, pessoas como Lacan, mas tambe'm Althusser, Derridaou Foucault, estavam rejeitando — tendo como base posicoes di-versas — radicalmente esta concepcao de sujeito e aquela de"ci£ncias humanas", que afse enquadram.15 Quase que simulta-neamente, Foucault escreve: "A cultura ocidental constituiu, sobo nome homem, um ser que, por um rfnico e mesmo jogo de ra-zoes, deve ser objeto positive de saber e nao pode ser objeto deciencia";16 Lacan escreve: "Nao hd ciencia do homem porque ohomem da cidncia nao existe, existe somente seu sujeito",17 eDerrida escreve: "Hd, portanto, duas interpretac.6es da interpre-tagao, da estrutura, do signo e do jogo. Uma procure decifrar,sonho de decifrar uma verdade ou uma origem que escapa ao jo-go e a ordem do signo, e vive como um exflio a necessidade dainterpretagao. A outra, que nao se volta para a origem, afirma o

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jogo e tenta ir al6m do homem e do humanismo, o nome do ho-mem sendo o nome deste ser que, atravfis da histtfria da metaff-sica ou da onto-teologia, isto 6, do todo de sua histdria sonhoucom a presenc.a plena, o fundamento tranqiiilizado, a origem e oflm do jogo. Esta segunda interpretagao da interpretagao, cujocaminho Nietzsche nos indicou, nao busca na etnografia, como aqueria L6vi-Strauss (...), a ciencia "inspiradora de um novo hu-manismo".18 Por trds destas posigoes, as quais foi colocada aetiqueta de "anti-humanismo tedrico", corre um fio comum: odesfazer-se da sujeigao transcendental em quaiquer de suas for-mas, inclusive aquelas ligadas ao humanismo tedrico, mas tam-be'm as formas dissimuladas que pode tomar, como, por exem-plo, o caso de certos tipos de pseudomaterialismo da naturezahumana ou do espfrito humano - com o objetivo de abrir umcampo de questoes e de prdticas tornadas impossfveis ou incon-cebfveis em func,ao desta sujeic.ao. Com este objetivo, Lacan,Foucault ou Derrida fazem uma referencia comum a lingua-gem, ao signo ou ao discurso. Derrida, na citagao acima men-cionada (mas encontram-se formulagoes relativamente equiva-lentes em Lacan ou Foucault), fornece a chave quando criticaa tentativa de se decifrar "uma verdade ou origem, escapandodo jogo ou da ordem do signo". A linguagem (ou jogo, ou a or-dem do signo, ou o discurso) nao e" entendida como uma origem,ou como algo que encobre uma verdade existente independen-temente dela pnSpria, mas sim como exterior a quaiquer falante,o que define precisamente a posigao do sujeito, de todo sujeitopossi'vel. Mas isto define o sujeito como posigao, e nao comouma coisa em si mesma, como uma substimcia. Nao se encontraem Lacan, em Foucault ou em Derrida uma definigao "positiva"quaiquer de sujeito enquanto entidade; encontra-se somente suaposigao. Deste modo, torna-se possfvel dar conta da sujeigaotranscendental em si e de suas conseqii£ncias, como tendo rela-gao com este "sempre-jd-Id" da linguagem (ou de signo) em tu-do que se refere ao sujeito, e nao fazendo referencia a uma pos-si'vel credibilidade que seria inerente a natureza humana. Assimsendo, a linguagem deixa de ser fato substitute da "natureza

'humana", ou do "espfrito humano" ou da "estrutura do espfritohumano" enquanto princfpio de explicagao ou enquanto origem.E 6 por af mesmo que, no que diz respeito ao sujeito, toda velei-dade reducionista tornara-se nao-pertinente.

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Sujeito, discurso e ideologia

Mas, no momenta em que escreve A andlise automdtica dodiscurso e os dois textos assinados por Herbert, Pecheux seguemais Althusser que Lacan, Derrida ou Foucault. Vimos que apreocupacao principal de Pecheux referia-se a ligac.ao entre odiscurso e a prdtica polftica, ligagao que, para ele, passa pelaideologia. E por este motivo que o segundo texto assinado porHerbert foi consagrado ao esboco de uma teoria geral das ideo-logias. Segundo Althusser, 6_tendg_.como_.referencia-a ideologiaque Pecheux introduz o sujeito enquanto efeito ideoldgico ele-mentar. E enquanto sujeito que qualquer pessoa 6 "interpelada"a ocupar urn lugar determinado no sistema de producao. Em umtexto publicado mais tarde, ao qual Pecheux refere-se com fre-quencia, Althusser escreve: "Como todas as eviddncias, incluin-do aquela segundo a qual uma palavra 'designa uma coisa' ou'possufa uma significagao* , ou seja, incluindo a evidSncia datransparSncia da linguagem, esta evid£ncia de que eu e voce1

somos sujeitos — e que este fato nao constitui nenhum problema- 6 um efeito ideoldgico, o efeito ideoldgico elementar".19 Porque "elementar"? O que este termo quer dizer? Quer dizer pre-cisamente que tal "efeito" nao 6 a conseqiiencia de alguma coi-sa. Nada se torna um sujeito, mas aquele que e" "chamado" €sempre ja-sujeito. Mais precisamente, Althusser escreve: "Aideologia nao existe senao por e para os sujeitos"; e ele acres-centa que nao existe pra"tica senao sob uma ideologia. Emoutras palavras, todo sujeito huniano, isto e", social, s6 pode seragente de uma praiica social enquanto sujeito,

Tais proposicoes foram formuladas apds a publicacao de Aandlise do discurso e dos dois textos assinados por Herbert.Entretanto, elas representam uma sistematizacao de posicoestedricas subentendidas no trabalho de Althusser sobre O capitalde Marx20 que PScheux conhecia bem. Nao 6 surpreendente,portanto, perceber que os dois textos assinados por Herbert se-jam coerentes com estas posigoes. Ale"m do mais, o trabalho deAlthusser sobre O capital 6 uma releitura que tenta romper coma leitura dogmfitica predominante de Marx (um paralelo foi feito

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na epoca entre a releitura de Marx, por Althusser, e o "retorno aFreud" de Lacan). Esta releitura de Marx foi conduzida deacordo com um me'todo que Althusser definiu como sendo uma"leitura de sintomas"; isto e", uma leitura centralizada sobre asdescontinuidades, os saltos, os pontos de embaraco, as refor-mulacoes que aparecem nos textos de Marx21. Este me'todo im-plica que os textos de Marx sejam confrontados entre si antes deserem referidos a qualquer outra coisa exterior a eles mesmos.Por este motivo, tal me'todo foi visto como um rne'todo "estratu-ralista", uma vez que se assemelha a certos procedimentos es-truturais (por exemplo, aqueles aplicados por Vladimir Proppaos contos populares ou por Le"vi-Strauss aos mitos, ou seja, oconfronto entre as diversas versoes de um conto ou de um mito).O objetivo de Althusser era abrir o marxismo para novas elabo-racoes te6ricas sem perder o que Marx havia produzido, no lu-gar de tomar as obras de Marx como uma espe'cie de Bfblia oude Vulgata. O m^todo de Althusser com certeza influenciou Pe-cheux. Podemos dizer que uma das coisas que Pecheux tinha emmente quando comecou a trabalhar com a analise e a teoria dodiscurso era constituir uma teoria e uma sistematizagao destem^todo.

Mas a releitura de Marx por Althusser nao se baseia ape-nas em um me'todo. Ela envolve tambe'm "instrumentos filosdfi-cos". Em Elementos de autocritica, Althusser explica que, separeceu ser um estruturalista, mesmo nao o sendo, foi porque foiculpado de uma paixao muito mais comprometedora, aquela deser spinozista. Considerando que toda filosofia deva fazer umdesvio por outras filosofias para poder se definir a si mesma e seapoderar de sua especificidade, sua diferenca, Althusser expli-ca que, do mesmo modo que foi necess<Srio para Marx empreen-der um desvio por Hegel, ele, Althusser, devia fazer um desviopor Spinoza para cercar com mais precisao o desvio de Marx porHegel. No curso deste desvio por Spinoza, Althusser encontrouneste ultimo uma concepcao que Ihe permitiu depreender aquiloque restava em Hegel da concepcao do sujeito como origem (oufonte), isto 6, a raiz do idealismo hegeliano, e, deste modo com-preender aquilo que Marx quis dizer quando afirmou ter recolo-cado Hegel em pe\22 Spinoza, segundo Althusser, permite com-preender por que e como esta "subversao" era possfvel, e de-preender a "diferenga" entre Marx e Hegel.23 A tese de Almus-

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ser 6 que a categoria de Spinoza de "efeito sem causa" (exter-no) ou finalidade 6 que subentende o famoso verum index sui etfalsi (o verdadeiro indica a si mesmo, assim como o falso), eantecipou Marx sobre urn ponto especffico, mas crucial, queconcerne a categoria- central^do _idealismo:-o-sujeitO-como-ori-gem, essencia ou causa. Para Althusser, Spinoza € o primeiroalePrompido com a questao da origem e a concepgao de sujeitona qual ela se condensou. Deste modo, Althusser atacava a con-cepgao de sujeito que Lacan, Derrida ou Foucault tambem ti-nham em mira. Mas ele a ataca em bases bastante diferentes ecom um objetivo preciso (discernir a ligagao e a diferenga entreMarx e Hegel). Althusser, em sua "auto-crftica", explica tam-be"m que um marxista nao podia fazer este desvio por Spinoza,seja o que for que este desvio tenha trazido, sem, de uma manei-ra ou de outra, paga"-lo. Aquilo que Hegel deu a Marx, a contra-digao, falta completamente a Spinoza, diz Althusser, e isto o in-duziu (a ele, Althusser) a ver a ideologia como sendo o ele-mento universal da existencia hist6rica. Assim ele foi, explica oprdprio Althusser, conduzido diretamente a uma teoria dasideologias em que estavam apagadas as diferengas entre as re-gioes da ideologia, as contradigdes de classe que passam atrave"sdelas, dividem-nas, agrupam-nas e as opoem umas as outras.Esta teoria geral das ideologias 6 precisamente aquela que esta-va esbogada no texto que citei mais acima.24 Em outras pala-vras, Althusser considera que foi tirado da trilha do estrutura-lismo por Spinoza (e pela critica ao sujeito tradicional da filoso-fia que ele ai encontrou), mas, pela pn5pria forga e poder destamesma critica, caiu na armadilha que o distanciou da contradi-cao e da luta de classes na ideologia.

E o que se encontra nos textos assinados Herbert? Uma re-ferSncia a Spinoza, no primeiro, e uma tentativa de esbocar umateoria geral das ideologias, no segundo. Tais textos estao clara-mente na linha de Althusser antes de sua autocrftica. Isto apare-ce com muito mais forga quando se confronta a posicao de Al-thusser com as de Lacan, Derrida ou Foucault. Como vimos,Althusser compartilha junto com estes Ire's dltimos uma posigaocomum sobre o estatuto dos sujeitos. E em refere'ncia a esta po-sigao comum que Althusser, como Lacan, Foucault e Derrida,explicita sua diferenga com o estruturalismo25 e descarta de ladoa id^ia de que a especificidade da natureza humana seria sufi-

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ciente para fazer de tudo aquilo que 6 humane objeto de cienciasespecfficas. A diferenca entre Althusser, de um lado, e LacanDerrida ou Foucault, de outro, e" que os tres dltimos refcrem osujeito a umaunpossibilidade. ou seja, a impossibilidade de es-~capaT— "JQgQ ou ordeni jb signo" (retomando a foirriulac'ao~fle'Derrida), enquanto que_com- Althusser tgm-se a impossTbiridade"deescapar da ideolggia^

"A ideologia nao tern exterior (a ela)", escreve Althusser.Ele nao diz "as ideologias nao tern exterior". Sem dtivida, paraele, ha" diferentes ideologias, diferentes posicoes ideologicas.Estas diferentes ideologias ou posigoes ideoldgicas sao antago-nicas (nao em contradigao).' Assim, uma ideologia tern um "ex-terior", mas este exterior 6 de outras ideologias. Se ha" ciSncia,esta nao pode estar senao no "entremeio". Althusser diferenciaciencias e teorias cientfficas. As teorias cientfficas sao enuncia-das, e como tal implicam ideologias, uma posigao de sujeito. Emsjuma,..t_oda ,. teoria. eLideoldgica,_toda_teoria 6 provistSria. . . Umateoria pode somente ser mais verdadeira do que uma outra, e naopode ser simplesmente verdadeira. Em outras palavras, o sujeito

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s,enao-este-da-ideologia._ Nao se tern af o sujeito de Lacan, ou deFoucault, ou de Derrida. "Descrever uma formulagao como umenunciado nao consiste, escreve Foucault, em analisar a relagaoentre o autor e aquilo que ele disse (ou quis dizer, ou disse semo querer), mas sim em determinar qual € a posigao que pode edeve ocupar todo indivfduo para ser seu sujeito.26 E nao hd ou-tros modos de ser um sujeito. Em outros termos, s£r_um_sujejtppara Foucaulj_€_ ocupjr jjma_p^^iciap_^nguanto_.enunciador. Osdiscursos sap enunciados. A_unidade-eleme.n^_dp djscm^o_6_p_enunciado. Aquilo que 6 ser um sujeito para Foucault & consis-tente_cpm sua concepgao de discursp._E podemos dizer que^eusujeito € gsujeito^do-discursjojal como ele o^oncebe. Devemoster em mente qual era o objetivo de Foucault: definir um cami-nho novo no campo ocupado pela tradicional hlstdria das idelas;um caminho que poderia renovar a histdria das id^ias, contor-nando o que a entrava: suas referfencias a uma subjetividade psi-coldgica considerada como principio explicativo. Q^Bjeito-deFoucault^e p suieito^.da.JlQnlenx.do,_discurso".27 O objetivo deDerrida 6 renovar a filosofia desembaragando-a de suas tentati-vas de achar uma origem ou uma verdade fora do jogo ou da or-

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dem do signo. Seu sujeito € o sujeito deste "jogo de ordem dosigno". O objetivo de Lacan 6 renovar a psicanalise e seu su-jeito e" aquele do inconsciente estruturado como uma linguagem.A linguagem 6 a condigao do inconsciente, aquilo que introduzpara todo ser falante uma discordancia com sua prdpria realida-de. E o objetivo de Althusser 6, como vimos, renovar o marxis-mo e o materialismo histdrico. Temos, deste modo, diversastentativas de renovagao, sendo que todas colocam em mira osujeito, seu estatuto, como sendo a questao-chave. Mas os re-cortes entre os sujeitos de Lacan, Foucault ou Derrida sao maisevidentes do que aqueles entre qualquer um destes sujeitos e ode Althusser. Os sujeitos de Lacan, Foucault ou Derrida sao li-gados a linguagem ou ao signo. A referencia & ideologia naotern as mesmas implicasoes que a referencia a linguagem. Al-thusser nao estava particularmente interessado pela linguagem, e€ af que chegamos ao amago daquilo que tern de ver com Pe-cheux: as relagoes entre a linguagem e a ideologia. Para fazeristo, ele s<5 tinha a sua disposicao a indicacao formulada porAlthusser sobre o paraielo entre a evidencia da transparencia dalinguagem e o "efeito ideoldgico elementar", a evid£ncia se-gundo a qual somos sujeitos. Althusser estabeleceu o paraielosem definir uma ligacao. E foi para expressar esta ligacao quePecheux introduziu aquilo que ele chama discurso^ tentando de-senvolver uma teoria do discurso e um dispositive operacionalde analise do discurso. O discurso de Pecheux nao 6 o de Fou-cault.

A teoria e a analise do discurso de Pecheux

Pecheux se colocou entre o que podemos chamar de "su-jeito da linguagem" e "sujeito da ideologia". Isto teve um pesosobre toda sua obra e nao apenas naquilo que se pode encontrarem A andlise automdtica do discurso. Em um de seus livrosposteriores, Les vgrite's de La Police, ele trata, precisamente, dediscernir mais claramente as relagoes entre estes dois sujeitos,ou seja, as relagoes entre a "evidencia subjetiva" e a "evidenciado sentido (ou da significac.ao)", e coloca o discurso entre a lin-

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guagem (vista a partir da lingufstica, do conceito saussuriano delangue) e a ideologia28. Isto porque Pecheux nao se ateve asformulacoes que havia colocado anteriormente nos dois textosassinados Herbert e no A andlise automdtica do discurso. ComoAlthusser, e junto com ele, renunciou & possibilidade de desen-volver uma teoria geral da ideologia (ou das ideologias).Ele voltou sua atengao para outros problemas que havia encon-trado pelo caminho: o das liga^oes entre o objeto de analise e dateoria do discurso e o objeto da lingufstica.29 Esta questao naoera somente um problema tedrico, mas tambem um problema le-vantado pelo sistema de analise de discurso que ele tinha cons-truido. Era, em especial, o problema do tipo de analise lingufsti-ca requerido para tornar o sistema operacional e Ihe permitirefetuar aquilo que havia sido concebido. Era, ale"m disso, o pro-blema dos limites de analise e da teoria lingufstica face a ques-tao do sentido, da signiflcagao e da semantica. A maneira comoPecheux tratou estas questoes e tambem como ele faz frente aescolha do sistema informa'tico adequado 6 exposta mais adiante.Trata-se af exatamente daquilo que Pecheux chamou de o pro-blema da "apropriagao" dos "instrumentos", no caso, os "ins-trumentos" lingiifsticos e da informa'tica. Mas estes problemasnao representam apenas problemas tecnicos; sao tambem pro-blemas tedricos. Pecheux nao podia concebe-los de outro modo.No nfvel mais profundo, o problema era bem aquilo que disse-mos, ou seja, o da liga^ao entre o "sujeito da linguagem" e o daideologia. Pecheux nunca abandonou este problema mesmo queo tenha reformulado profundamente. Em seu ultimo Hvro, escritoem conjunto com Franchise Gadet, ele ainda se ocupava da lin-gufstica e de suas ambiguidades frente a disjunqao entre aquiloque faz e o que nao faz sentido, enquanto problema ao mesmotempo tedrico e politico: "a metaTora merece que se lute porela", escreve ele, citando Kundera.30

Antes de examinar com mais detalhe como PScheux arti-culou concretamente a andlise e a teoria do discurso por um ladoe a lingufstica por outro, desejo fazer uma ultima observagaoconcernente a "estrat^gia" de Pecheux. Vimos as razoes por queele separou a apresentagao de seu sistema de analise automdticado discurso da apresentacao dos problemas tedricos, filosdficos(e polfticos) que o conduziram a construir este sistema. Esta es-

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trate"gia teve, como todas as estrate"gias, seus inconvenientes. Eledeixou aberta a possibilidade de se usar este sistema de a utilisedo discurso como um instrumento ou uma ferramenta no sentidoempfrico. E efetivamente o que se produziu, ainda que Pecheuxtenha se preocupado e tentado impedir este desvio de seu ins-trumento. De certo modo, ele concebeu seu sistema como umaespecie de "Cavalo de Trdia" destinado a ser introduzido nasciencias socials para provocar uma reviravolta (algo analogo aoque Foucault tentou com sua "arqueologia" em relagao a histd-ria das idelas). Nao podemos dizer que isto nao se tenha produ-zido, na medida em que numerosos pesquisadores, tendo utiliza-do a anaUise autom5tica do discurso de Pecheux, foram levados aformular questoes que provavelmente nao seriam formuladas ca-so nao tivessem reconido a este sistema, e isto mesmo se amaior parte destas questoes continuam, ainda hoje, sem resposta.Os instrumentos cientfficos nao sao feitos para dar respostas,mas para colocar questoes. E pelo menos isto que PScheux es-perava de seu dispositivo: que ele fosse verdadeiramente o meiode uma experimenta§ao efetiva. Alem do mais, creio que sua re-flexao geral sobre aquilo que 6 verdadeiramente um instrumentocientffico merece ainda nossa reflexao. Este deveria ser o caso,se temos em mente aquilo que se coloca atualmente como forne-cendo as bases de uma "nova ciencia do espfrito", fazendo refe-rdncia as maquinas de Turing, aos computadores e as redes neo-conexionistas ou neuronais. Infelizmente, Pecheux nao esta" maisconosco para nos ajudar a fazer frente a este retorno do "velhomonstro".

Traducao: Bethania S. Mariani

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NOTAS

* Cahiers pour tanatyse, 2, marQO-abril 1966, reedigao, 1-2, pp. 141-167 (referi-do como Herbert 1 nas notas seguintes).

2 Cahiers pour tanafyse, 9, verao 1968, pp. 74-92 (referido como Herbert 2 nasnotas seguiotes).3 "Analyse decontenuetth£oriedudiscours"(BH/ferin^«C^J?J1., 1967,16, (3),

pp. 211-227. "Vers une technique d'analyse du discours", Psychologie frcmgaise,1968,13,(1), pp. 113-117,

^ Analyse automatique du discours, Paris, Dunod, colegao "Sciences du Compor-tement", 1969, p. 142.

^ PSgina 110 da edic.ao original em frances.6 Em 1964 era publicado em La nouveUe critique, a revista do partido comunista

trance's destinada aos intelectuais, um texto de Althusser tendo como tftulo "Freud etLacan" (La nouveUe cririgue,dez. 1964-jan. 1965, n9 161-162, pp. 105-144, republi-cado em Louis Althusser, Positions, Paris, Editions Sociales, 1976). A publicagaodeste texto nesta revista marca o fim do ostracismo oficial do partido comunistafranco's com relagao a psicanalise. No Cercle d*Epistemo]ogie de I'Ecole NormaleSup6rieure (onde Pecheux era membro sob o pseudfinimo de Thomas Herbert) se en-contravam reunidos marxistas prtiximos do partido comunista frances (e mesmomembros efetivos), assim como filiSsofos muito influenciados por Lacan.

' Pecheux enfocou o desenvolvimento histdrico da teoria do magnetismo, Ver; "I-deologie et histoire des sciences", em M. Fichant e M. Pecheux (eds.), Surfhistoiredes sciences, Paris, Maspero, 1969, pp. 13-47.

8 Herbert 1, p. 163.9 Os Ifderes de uma abordagem nao-positivista e anti-empirista em epistemologia,

histdria e filosofla da ciencia na Franca (oposta, por exemplo, aquela de Duhem), queinsistiram sobre a necessidade de nao se dissociar epistemologia e histdria da cienciae recusaram a concepc3o continufsta do progresso das ciSncias, chamando aatengaopara as descontiiiuidades e as rupturas. Esta abordagem da epistemologia e da hist<5-ria das ciSncias teve uma continuagao, em uma perspectiva um pouco diferente, porMichel Foucault em especial (ver, por exemplo: Dominique Lecourt, Poor une criti-que de fepistemologie (Bachelard, Canguilhem, Foucault), Paris, Maspero, 1978.10 Georges Canguilhem: Ideologic et rationoBtt de Fhistoire des sciences de la vie,Paris, Vrin, 1977.11 Herbert 2, p. 77.12 Herbert 1, p. 157 e pp. 158-159.13 Herbert 1, p. 152. Sem ddvida, Pecheux observa que isto nao quer dizer que opolitico nao € nada senao o discurso. A tftulo de ilustrac.ao, ele toma o exemplo dodireito e da pra'tica jurfdica que tentam ao mesmo tempo, escreve, racionah'zar a lei"estabelecida" e realizar a "essencia racional do direito". A transfonnacao que apra'tica jurfdica tenta efetuar consiste em fazer parecer que aquilo que, em mate"ria dedireito, existe "por natureza" existe "por razao". Esta transformasab € uma refor-mulagao que fez intervir o discurso e, indo ainda mais al£m, que se realiza na instSn-cia do discurso.

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^ Ver, por exemplo, Claude LeVi-Strauss: La pensee sauvage, Paris, Plon, 1962, eumacrftica sobre esta posigao em Cahierspour f analyse, n34("L£vi-StraussdansleXVIIF siecle").^ Ver Francois Wahl, "La philosophic entre I'avant et l'apr£s du stracturalisme",em Qu'est-ce que le structuralismel, Paris, Le Seuil, 1968,

*6 Michel Foucault, Les mots et leschases, Paris, Gallimard, 1966, p. 378. Existemtnuitos pontos de contato entre aquilo que Michel Foucault elaborou no que se refereao discurso e aquilo que fez Michel Pecheux, pelo menos no nfvel tedrico (por exem-plo, encontra-se em Foucault uma nogao de "formagao discursiva" que tern algunspontos em comum com aquela de Pecheux), e em particular no nfvel pra"tico (Fou-cault nunca tentou elaborar um dispositivo operacional de analise do discurso) (Ver:Michel Foucault, L'archeologie du savoir, Paris, Gallimard, 1969, e L'ordre du dis-cours, Paris, Gallimard, 1971). Pecheux partilhava com Foucault um interesse co-mum pela histo'ria das ciencias e das ide*ias que pode explicar por que ambos, mais doque qualquer outro autor, focaiizaram o discurso.I "7I I Jacques Lacan, "La science et la ve'rite'", Cahiers pour f analyse, 1, 1966,pp. 9-30, republicadoem£cri&, Paris, Le Seuil, 1966, pp. 855-875, p. 859.18 Jacques Derrida, "La structure, le signe et le jeu dans le discours des scienceshumanes", em L'ecriture et la difference, Paris, Le Seuil, 1979, p. 427. PScheuxsempre considerou Nietzsche como uma figura crucial da hist<5ria da filosofia, capi-tal para se compreender o que esta" em jogo no debate atual em filosofia (pouco tem-po antes de nos deixar, ele tinha como projeto trabalhar mais particularmente sobreNietzsche).*" Louis Althusser, "Ideologic et appareils ide*ologiques d'etat",- La Pensee, 151,junho!970,p. 30."}n*u Louis Althusser, Pour Marx, Paris, Maspero, 1965 e (em col. com J. Ranciere, P.Macherey, E. Balibar, R. Establet) Lire le Capital, 2 vols. Paris, Maspero, 1965.T 1Z1 Observemos que, para defmir seu me'todo, Althusser faz referSncia a Freud. Aquestao do sujeito e do inconsciente era, no entanto, evocada nos primeiros textosassinados por Herbert, sobretudo quando 6 abordada a crftica do sujeito tradicionalda filosofia. Pecheux at se ap<5ia sobre Freud (e Lacan) e nao somente em Althusser.99 Observamos a ligac.ao com o me'todo se observarmos que uma filosofia nao podeter ligacao com outra filosofia senao atraves de textos, logo de uma "leitura".23 Elements d"autocritique, Paris, Hachett, 1974, Cap. 3 e 4, pp. 55-83.24 Vernotal9.TC s

E particularmente claro para o que 6 concemente a Foucault na conclusao deL'archeologie du savoir, p. 126.26 Michel Foucault, L'archeologie du savoir, p. 126.

2' Michel Foucault,L'ordredu discours, Paris, Gallimard, 1971.^ Michel PScheux, Les verites de La Police (Linguistique, s&mantique, philosophic),Paris, Maspero, 1975. Traduzido para o portugues como Semandca e discurso, Edi-tora da Unicamp, 1988.2" Observemos que, quase ao mesmo tempo, Foucault passou da problema'tica daarticulagao entre discurso, saber e histoVia das idfiias aquela das rela$6es entre o sabere o poder. Ver: SurveUler et punir (Naissance de la prison), Paris, Gallimard, 1975,e Histoire de la sexuaUtt, 1, La volonti de savoir, Paris, Gallimard, 1976.3" Francoise Gadet e Michel PScheux, La langue introuvable, Paris, Gallimard,1981.

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APRESENTA^AO DA CONJUNTURA EMLINGVlSTICA, EM PSICANALISE E

EM INFORMATICA APLICADA AO ESTVDODOS TEXTOS NA FRANCA, EM 1969

Frangoise GadetJacqueline Le"on

Denise MaldidierMichel Plon

Pareceu-nos necessdrio proper alguns elementos a umaleitura histoYica desse livro de 1969, para esclarecer suas refe-rencias tedricas, remetendo-as a sua conjuntura. O presentetexto e as notas que se seguem permitirao compreender melhor arelacao entre esse primeiro texto de analise do discurso e os re-manejamentos que Michel Pecheux nunca deixou de proper.

1. A Ifiigua e a lingufstica

Vamos tentar circunscrever a concepgao que MP tern dalingua atrave"s de algumas breves monografias, baseadas em seisnomes e temas da conjuntura lingufstica tal como ela se apre-sentava na Franca no infcio dos anos sessenta:

— Saussure e o estruturalismo- a recepcao de Chomsky e da GGT— Harris— Jakobson

— Benveniste e a enunciacao- Culioli

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Se esses seis temas sao necessdrios, 6 porque parece, comefeito, que a concepgao de lingua de onde MP vai isolar seuconceito de discurso 6 delineada por contribuigoes cuja hetero-geneidade ele rapidamente sentiu, e porposicdes filosdficas queadotou na paisagem tedrica dos anos sessenta.

Qualquer que seja a amplitude do horizonte lingufsticoabrangido, sua pnJtica gramatical efetiva se cruza frequente-mente com a da grama*tica tradicional tal como se manifesta noensino fundamental frances: andlise gramatical e anaMise Idgica,princfpios de retdrica. Eis o pano de fundo, corrigido superfi-cialmente em certos pontos por contribuigdes mais recentes.

Rapidamente, em escritos posteriores, MP passa a criticarsua concepgao de lingua entao em vigor para, em seguida, tentarmodifica"-la. Entretanto, o formato do enunciado elementar per-manece fixo ate" o abandono do programa AAD-69, no infcio dosanos 80, quando o uso de DEREDEC vai fazer com que as pos-sibilidades de comparacao nao mais se limitem unicamente assequencias de igual dimensao (ver Formalizagao).

Saussure e o estruturalismo lingufstico

Indubitavelmente, desde a epoca da AAD-69, MP 6 umleitor de Saussure muito atento, o que permanecera" na seqiidnciade sua obra (por exemplo: LANGAGES 24 e La langue introu-vable).

Isso € digno de nota em uma e"poca, no geral, caracterizadapor um interesse bastante vago por Saussure, mais referdncia doque mate'ria de trabalho. As leituras dos anos sessenta se enqua-dram, na verdade, em va>ios tipos:

- a dos estruturalistas, bastante marcada na Franca porMartinet (como Elementos de lingutstica geral de 1962)e por Mounin (Saussure ou le structuralisme sans le sa-voir sera" publicado em 1968).

Essa leitura ainda nao leva, na e"poca, o nome de "vulga-ta" que Ihe sera" atribufdo a partir de Lepschy (1966, A lingufsti-ca estrutural, traducao francesa pela Payot em 1968), mas ela

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tern um lado redutor, tirando pouco proveito das Sources ma-nuscrites du CLG, estudadas por Robert Godel, entao aindamuito pouco conhecidas, embora disponfveis desde 1957;

- a dos sociolingiiistas: uma leitura essencialmente mili-tante e crftica, visando sobretudo a demonstrar a inefi-ca*cia da "h'ngua/fala" no tratamento de problemas dediscurso e de utilizagao da lingua em contexto social;

- a dos "fildlogos" do texto saussuriano. Excegao feita aoartigo de Benveniste (1963, in 1966), ela tern pouca di-fusao fora dos cfrculos de especialistas. As Sources...de Godel foram publicadas em 1957, mas em um editorsufgo pouco difundido (Droz). Engler j5 tinba comegadoseu monumental empreendimento (cujos cinco tomosapareceram entre 1967 e 1974); 6 certo que ele publicouartigos a esse respeito nos Cahiers Ferdinand de Saus-sure, a partir de 1962, mas trata-se af de uma revistacom tiragem restrita. E sd depois de 1970 que os primei-ros artigos de Cl. Normand aparecerao em revistas deorientagao te<5rica nitidamente marxista (La Pens4e,Dialectiques), e na grande revista francesa de lingufsti-ca, Langages. Ve-se, pois, que as Sources... levammuito tempo para suscitar o interesse dos linguistas;

- a dos liter^rios. A partir de 1961, Starobinski comecou apublicar artigos — que posteriormente serao reunidos emAs palavras sob as palavras (1971) — sobre um aspectona e"poca ainda muito pouco conhecido da obra de Saus-sure: os Anagramas. Sao pessoas como R.Jakobson,J.Kristeva, T.Todorov, R.Barthes e, mais tarde, L.J.Cal-vet, que vao garantir sua difusao na Franca. Os ameri-canos continuam essa difusao no ano de 1975, em parti-cular com os dois Saussures (niSmero especial da revistaSemiotexi)-

Mesmo sem aplicar, na verdade, nenhuma dessas catego-rias de leitura, MP revela, desde 1969, uma grande familiaridadecom o texto de Saussure: uma leitura informada, inteligente epessoal, que faz realmente operar as nogoes saussurianas.

Paul Henry se recorda de que MP tinha nessa ^poca estu-dado o CLG, lido as Sources..., Starobinski e, inclusive, o tra-

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balho sobre os Nibelungen. Os efeitos dessa convivencia fntimapddem ser sentidos em AAD-69:

— com respeito a concepgao geral de lingua: na passagemdo interesse pela funcao ao interesse pelo funciona-mento das h'nguas, ele tira proveito do fundamento dodeslocamento saussuriano, ao reconhecer o trago funda-mental sobre o qual repousa a lingiifstica moderna apartir de Saussure: a lingua 6 um sistema;

— se 6 verdade que ele constata, como os sociolinguistas,que a oposigao h'ngua/fala nao poderia se incumbir daproblema"tica do discurso, nao 6 pela diluigao da oposi-gao que ele vai procurar resolver o problema, mas pormeio de uma reflexao sobre o polo da oposigao menosdesenvolvido por Saussure: a fala;

- o papel atribuido ao "efeito metafdrico". Certamente in-fluenciado tambem pela leitura de Jakobson (par metafo-ra/metonfmia, tal como € apresentado em "LinguTstica ePoe"tica") mas talvez, acima de tudo, pela compreensaode uma posigao saussuriana sobre a li'ngua, que parecedever algo ao mesmo tempo ao conceito de valor e aconvivencia com os Anagramas.

No entanto, essa opgao saussuriana nao evita certas for-mulagoes grosseiramente "estruturalistas" (no sentido da vul-gata).

Chomsky e a gramdtica gerativa

A difusao da grama'tica gerativa na Franga comega a partirde 1965: o numero 4 da revista Langages, intitulado La gram-maire generative, 6 de dezembro de 1966, e o livro introdutdriode N.Ruwet & de 1968; por outro lado, a primeira tradugao fran-cesa, a de Estruturas sintdticas, € de 1969.

A gramdtica gerativa 6, em AAD-69, menos o objeto deempre"stimos formais, conceptuais ou metodoldgicos do que adesignagao de um horizonte tetfrico estimulante. Parece, quandose le MP, que, na marcha triunfal da "ciencia lingiifstica",

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Chomsky tira proveito de Jakobson ao integrar em sua teoria afrase e uma criatividade nao-subjetiva da li'ngua. Ele passa, naAAD-69, algo do entusiasmo que certos lingiiistas puderam sen-tir com a eclosao da "revolugao chomskyana".

Mas, para MP, essa revolugao mais instiga a pensar do quefornece solugoes. Antes Ihe surge a necessidade de pensar con-tra, resistindo a vertigem de construir um mecanismo de produ-gao dos discursos baseado no modelo da gramdtica gerativa.Mas pensa a favor quanto toma emprestada — de maneira metafd-rica, 6 verdade — a oposigao chomskyana entre estrutura de su-perffcie e estrutura profunda. Veremos que essa oposigao Ihepermite propor a relacao entre estruturas discursivas analisaVeiscomo lugares de efeitos de superffcie e a "estrutura invisfvel"que as determina,

Notemos tambe*m que a oposigao entre Saussure e Choms-ky nao € ainda avaliada: a linguistica se acha incluida em"qualquer ciencia que trate do signo" (p.8), o que supoe umaequivalencia entre teoria do signo e lingui'stica, totalmente es-tranha a concepgao chomskyana de lingua. Ver sobre esse pontoSaussure, une science de la langue, de F.Gadet, particularmenteo cap. 3f "La linguistique est-elle vou^e a signe?".

Harris

Fundamentalmente, mesmo se um tanto heterdclito, 6 emHarris que se inspira o me"todo de andlise.

A primeira tradugao de Harris em frances relativa a analisedo discurso aparece na revista Langages n9 13 (1969): "Dis-course analysis", publicado em Language em 1952.

O nome desse lingiiista americano figura na Bibliografiade AAD-69, com referencia a um outro texto, intitulado tamb^m"Discourse analysis", La Haye, Mouton, 1963 (inedito em fran-ces), mas 6 mencionado apenas uma vez no texto, a propdsito datransformac.ao denominada T2,

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Nao nos sentimos em condicao de apresentar uma explica-530 para essa ausencia, sobre a qual vamos proper apenas al-guns elementos de reflexao.

Posteriormente (a partir de Langages 24 e em numerosostextos, ver aqui Langages 37, p.4, e Mots 4, p.97), MP tomouexplfcita sua dfvida para com Harris. De fato, parece-nos queHarris nao apenas fornece alguns procedimentos de ana*lise; eleinspira o estabelecimento de todo o dispositive da AAD. No re-gistro da superffcie discursiva, que constitui propriamente a fasede analise lingiifstica, a proximidade com Harris 6 muito grande:reducao do texto a enunciados elementares que lembram a frase"nrfcleo" de Harris, recurso as transformagoes (te"cnica gramati-cal essencial no mfitodo de Harris), busca, atrave"s dessas opera-goes, de uma regularizagao dtima do discurso, com vistas aconstituigao dos domfnios semanticos. Em que pese estar emquestao o empre'stimo de um "procedimento" e nao o de uma"teoria da Ifngua", MP tern presente que esse procedimento €estabelecido sobre "pressupostos tedricos que exigem precisa-mente ser explicitados e criticados pelo lingiiista" (p.85).

Desse modo, com o recurso implfcito a Harris, perfilam-se,desde AAD-69, questoes sobre a sinonfmia/substituibilidade,sobre a variabilidade ou a invariabilidade sem^ntica, as quais se-rao formuladas mais tarde em torno da questao da parSfrase(Langages 37), introduzida por Harris, atraves da oposicao entretransformagao incremencial e transformagao parafra'stica (cf."Co-occurrence and transformation in linguistic structure",Language 33, 1957). Essa questao, motor do dispositive, terdum estatuto essencial at£ Mat£rialites discursives (1980).

Jakobson

Os Essais de linguistique g£n£ralet traduzidos e prefa-ciados por N.Ruwet, sao public ados em 1963. Eles fornecem aMP elementos de reflexao tedrica e instrumentos de analise lin-giifstica.

N.T.: com excecao do ensaio "Em busca da essencia da linguagem", os denialsencoDtram-se traduzidos em Ungiastica e comutuca^do, SP, Cullrix. Sempre quenos referirmos a essa obra, utilizaremos o tftulo em francos.

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Com respeito ao piano das proposigoes tedricas Jakobson6, de infcio, citado a contrdrio, quando se trata de buscar nalingufstica posigoes anti-subjetivas: MP recusa o fato de que,dos fonemas ao discurso, passa-se (gradatim) do sistema neces-sa"rio a contingSncia da liberdade; de que se tenha necessidadede regras combinatdrias cada vez mais poderosas (Essais, cap.2, "Dois aspectos da linguagem e dois tipos de afasia").

Mas, em Jakobson, MP encontra aberturas ou proposigoespara ampliar os limites da lingufstica, mesmo permanecendo noquadro do estruturalismo. Explica-se, desse modo, a retomadada reformulagao do c61ebre esquema da comunicagao, assim co-mo a referencia a passagem em que Jakobson, em relagao a suateoria das funcpes da linguagem, propoe ver na unidade da Ifn-gua "um sistema de subcddigos em comunicagao recfproca".Citagao nao-crftica, que marca a busca de um apoio tedrico paradar conta da variagao discursiva no invariante da Ifngua (Essais,cap. 11).

As outras referSncias a Jakobson dizem respeito ao dispo-sitive de analise lingufstica. Elas se situam nos capftulos desti-nados a analise da superffcie discursiva e se referem, nao semconfusao, a notagao dos pronomes, ou dos elementos do sintag-ma verbal que tern a ver com a relacao enunciado/enunciagao(tempo, voz, modo, pessoa). E impressionante constatar a refe-rencia utilitaria as indicagoes de Jakobson. Elas aparecem ape-nas como refer^ncias tecnicas que permitem dar consistencia a"forma do enunciado" (notada Fi e integrada a estrutura formalem oito lugares).

Benveniste e a enunciagao

Ii claro que em 1969 MP passou ao largo pela enunciagao.O lugar secundArio atribufdo a Benveniste confirma esse fato.

Nenhuma das trfis referdncias a Benveniste mostra umacompreensao real 'da fenda aberta no estruturalismo pelo reco-nhecimento do papel da enunciagao. O que, bem depressa, MPreconhecerfi: a partir de Langages 37, ele dird que a AAD-69 ti-nha sido "opaca" aos fen6menos da enunciagao.

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MP se apdia em Benveniste para fazer da frase - ao con-trario do que concede a Jakobson — a unidade do discurso, afronteira de um domfnio irredutfvel a ordem da grama'tica, masele nao lira desse fato nenhuma conclusao tedrica. Se Ihe creditauma posigao sobre a "criagao infinita" da fala, sua retice"nciaideol<5gica 6 clara: Benveniste aparece para MP como o lingiiistada subjetividade. Qualquer que seja o canal pelo qual Benve-niste tenha chegado ao conhecimento de MP (teria ele lido "Dasubjetividade na linguagem" a disposigao desde 1958 no Jour-nal de Psychologie, antes de descobrir os Problernas de lingiifs-tica geral publicados em 1966), parece que MP percebeu, ini-cialmente, em Benveniste, uma espe"cie de retrocesso, o retornodo sujeito psicoldgico, vitoriosamente banido da cena tedricapor Saussure e pelo estruturalismo.

Se se admite com Cl.Normand (Langages 77) que a teoriada enunciagao teve lugar, entre os Hngiiistas, mais atrave"s dostrabalhos de Jakobson do que dos de Benveniste, MP participada atitude dominante entre os Hnguistas. Esse desconhecimentoprovisdrio de Benveniste se explica por razoes tedricas prdprias.Fundamentalmente ocupado com a questao do sujeito, MP naopodia senao reinvestir muito rapidamente os problemas da enun-ciacao. Ver Langages 37, p. 16 sg., as reflexoes sobre "a ilusaonecessaria constitutiva do sujeito" e a teoria dos dois esqueci-mentos.

Culioli

Sabe-se que MP estava atento aos trabalhos do seminariode Culioli (Nancy, 1967) e que participou do Centre d'Etudes etde Traduction Automatique de Grenoble (CETA) que contava,entre outros, com A.Culioli. Por outro lado, trabalhou com Cu-lioli, notadamente sobre a questao dos determinantes. Cf. "Con-side"rations the'oriques a propos du traitement formel du langa-ge" por A.Culioli, C.Fuchs e M.Pecheux, Dunod, 1970.

Esse encontro 6 atestado por dois pontos principals naAAD-69:

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o recurso ao termo lexis ("o termo lexis foi apenas men-cionado na AAD-69", escreve MP em Langages 37p.52). Trata-se de um puro empre"stimo terminoldgico,do qual MP deriva a ide"ia de um esquema com oito lu-gares resultante da aplicagao de uma forma (portadorade determinagoes e de valores modais) a uma estruturamorfossintatica;

a analise das determinagoes do nome e do verbo noenunciado, diretamente inspirada em Culioli, como MPsublinha em uma nota.

A publicagao da AAD-69 passa, no geral, desapercebidapelos lingu'istas. Uma excegao, entretanto, portadora de todo umfuturo: no numero 151 de La Pensee, "revista do racionalismomoderno", em que figura o famoso artigo de L. Althusser, Apa-relhos ideol6gicos de Estado (junho, 1970), a lingiiista Gene-vieve Provost consagra, na rubrica dos livros, uma nota impor-tante sobre a AAD de MP. Seu artigo, ao mesmo tempo em quecoloca questdes propriamente lingiifsticas (problema da sinoni-mia) e se interroga sobre os me"todos de analise, acentua funda-mentalmente a contribuigao de MP a problem^tica da analise dodiscurso ("uma abordagem interessante das orientacoes atuaisconcernentes a analise do discurso"). No mesmo fluxo, testemu-nha um encontro de fato entre as preocupagoes de MP e as deum grupo de pesquisadores que trabalham, a exemplo da prdpriaG.Provost, em torno do lingiiista Jean Dubois em uma nova dis-ciplina universitdria, a analise do discurso. O reconhecimento deum objeto comum caminhava par a par com a busca de me"todosde analise lingiifstica (referencia implfcita em MP, Harris era areferSncia central do grupo de J.Dubois — lembremos aqui a tra-dugao, em 1969, por iniciativa deste dltimo, de "Discourseanalysis"); essa busca se inscrevia em uma perspective global-mente marxista da relagao Ifngua/classe social. G.Provost teve om6rito de compreender, de imediato, a importancia do eventoAAD-69. A histdria da andlise do discurso na Franca, tal comose pode, hoje, tentar comp6-la, 6 fortemente marcada pelasorientagoes conceptuais do livro de 1969.

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2. Sobie a questao do sujeito

No final do ano de 1964, como conclusao do prdlogo quefaz a seu artigo "Freud e Lacan", Louis Althusser escreve: "Oestudo seVio de Freud e de Lacan, que todos podem empreender,dard sozinho a medida exata desses conceitos, e permitira' definiros problemas em suspenso numa reflexao tedrica j£ rica em re-sultados e promessas" (in Positions* Paris, Ed. Sociales, 1976).

Quaisquer que sejam as qualidades intrfnsecas desse artigo— que seu autor jamais considerou como totalmente isento deaproximagao -, sua data de publicac,ao, o evento que ele cons-titui e a ruptura que opera no abismo que, desde Politzer, o pen-samento marxista (frances especialmente) tinha instaurado entresi e a psicanalise, 6 que Ihe vao conferir importancia hist6rica efazer dele uma referencia incontornaVel. E, pois, na conjunturatedrica da qual esse artigo faz parte que se deve inscrever o que6, ou melhor, o que pode ser decriptado da relacao de MichelPecheux com a teoria psicanalftica.

Jacques Lacan nasceu em 1901; medico psiquiatra, alunode Cle'rambault, defende, em 1933, uma tese sobre a psicose pa-randica na qual rompe com a corrente da psiquiatria organicistapara se encaminhar em diregao ao percurso clmico dinamico e seapoiar na psicologia concreta, que Ihe permite sustentar o con-ceito, entao revolucionaYio, de personalidade. la" nesse trabalho,pode-se discernir o interesse por um exterior da psiquiatria e afixagao de bases que vao, bem cedo, orientar a caminhada dessejovem me'dico, amigo dos surrealistas, rumo a descoberta freu-diana. A partir desse memento, a vida ptiblica e a obra de Lacanvao progress! vamente participar da histdria da pslcandlise naFran§a, ritmar seu curso e acabar por orquestrd-la por complete(ver Elisabeth Roudinesco, La bataille de cent cms, histoire dela psychanafyse en France,2 vols, Paris, Ed. du Seuil, 1986).

Em 1966, Lacan publica um volume de quase mil pdginasintitulado Escritos, no qual se acha reunida - para alguns, modi-flcada e, para outros, em conformidade com sua versao original— a maior parte dos artigos que ele redigiu a partir de 1936, datade sua primeira intervencao pdblica como analista, no XTVe

Congres de rinternational Psychoanalytic Association a Ma-

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rienbad, centrada em "O estado de espelho". Essa coletaneaque ia se tornar, mais do que qualquer outra obra publicada naepoca, o livro de cabeceira de toda uma geragao de intelectuaisfranceses, se encerra com o artigo "La science et la ve"rite"", pu-blicado anteriormente no primeiro ntimero dos Cahiers pour I'a-nafyse, e que constitufa a aula de abertura do semina"rio que La-can dirigiu na Ecole Normale Superieure da rua d'Ulm no cursodo ano 1965-1966.

Atendo-se apenas a essas breves reconstituic.6es histdricas,poder-se-ia pensar que MP, aluno de Louis Althusser, "norma-lien"*, agrege de filosofia, membro do Cercle d'Epistemologiedessa Ecole Normale, nao podia deixar de estar familiarizadocom o pensamento lacariiano.

A julgar pelas evidencias, de fato nao e* assim; a primeiraedicao de Andlise automdtica do discurso testemunha isso, bemcomo toda a seqiie"ncia de sua obra, que, marcando sempre, sejasilenciosamente, seja sob a forma de referencias e de tentativas,limitadas, de utilizacao de conceitos freudianos e lacanianos, umrespeito absolute pela teoria psicanalftica, vai permanecer umpouco esquerda, frequentemente tomando-a de empnSstimo me-nos em relacao ao inconsciente do que face as teorizagdes deseu funcionamento e de seus efeitos.

Nem Freud nem Lacan figuram na bibliografia da AAD, ea psicanalise enquanto tal se encontra af apenas furtivamentemencionada (pp.7 e 110).

Para explicar essa discricao, podem ser antecipadas razoesde ordem titica, inscritas na estrat^gia universit^ria que era a deMP na £poca, razoes ligadas as referencias tedricas da cole?aoque deveria acolher esse trabalho as opgoes piagetianas do di-retor da colegao, Francois Bresson, ou ainda a insergao institu-cional de MP na secao de psicofisiologia e psicologia do CentreNational de la Recherche Scientifique, sec.ao fortemente domi-nada pelas concepgoes positivistas que privilegiam o desenvol-vimento da psicologia mais suscetfvel a se articular com o que iatornar-se o conjunto das neurociSncias cujos partid^rios jamaisocultaram sua hostilidade para com a psicanalise.*

N.T.: esse tenno refere-se aos intelectuais que frequentam a Ecole Nonnale Su-pe'rieure.

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Todas essas razoes sao justas e, como tais, perfeitamenteadmissiveis, mas nao esgotam o problema colocado.

A leitura dos dois artigos que MP publica em 1966 e em1968 em Cahiers pour V'analyse•, sob o pseudonimo de ThomasHerbert, leva a apresentar algumas hipdteses que poem em jogorazoes outras, nao apenas t£ticas, quanto aos fatores que resulta-ram nessa convivencia, no mfnimo eh'ptica, com as teorias freu-diana e lacaniana.

Se a teoria psicanalftica, a "psicanalise como ciencia doinconsciente" estao af realmente convocadas, se os nomes deFreud e de Lacan sao mencionados — somente no segundo arti-go, no qual, alias, Freud sd e citado uma unica vez e de umamaneira sobre a qual vamos voltar, sendo Lacan, por sua vez,apenas evocado, utilizado de modo relativamente geral, semque, precisamente, seja feita referenda a tal ou tal passagem deseus Escritos — tudo isso se efetua segundo uma perspective esegundo modalidades susceti'veis de nos fornecer informagoessobre o lugar que MP atribui, na e"poca, a teoria psicanalftica nodispositive conceptual que estd elaborando, e sobre o estado desua informagao quanto aos desenvolvimentos da trajetdria laca-niana.

Pode-se isolar uma primeira inforrnagao, relativa ao lugarcentral atribuido nesse dispositive ao materialismo histdrico, quese pode dizer "instalado no posto de comando" - para usar umaexpressao que MP gostava muito de empregar. Isso sobressai,ate" nao poder mais, da leitura dos dois artigos assinados porThomas Herbert, mas sobressai igualmente, ainda que de manei-ra mais velada, da leitura de AAD, no que se refere ao conceitode "condigoes de produgao". No desenvolvimento althusseria-no, o conceito de produgao € sistematicamente importado da es-fera das atividades economicas, esfera da producao material, pa-ra a das atividades intelectuais; o tedrico, o fildsofo, o escritor,o pintor, o musico sao considerados trabalhadores na mesmamedida que o opera~rio (ver, p.ex., Pierre Macherey, Pour uneih£orie de la production litttraire, Paris, Maspero, 1966).

O lugar do materialismo histdrico 6 manifestado igual-mente em alguns exemplos, tais como aqueles em que os luga-res A e B sao indicados como sendo "... lugares determinadosna estrutura de uma formagao social, lugares de que a sociologia

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pode descrever o feixe de traces objetivos — caracterfsticos: as-sim, por ex., no interior da esfera da produgao economica, oslugares do "patrao" (diretor, chefe de empresa...), do funciona-rio de repartigao, do contra-mestre, do operario sao marcadospor propriedades differencials determinaveis". Observemos, depassagem, que a refere'ncia & sociologia que se encontra no finalda obra, quando estao em questao perspectivas de utilizacao, de-signa algo muito diferente da sociologia oficial: uma sociologianova, cujo desenvolvimento era imaginado por Louis Althussere seus alunos, sobre as bases do materialismo histdrico, cienciadas formagoes sociais.

Esse verdadeiro princfpio organizador determina conside-ravelmente o lugar que sera", ao menos momentaneamente, o dateoria psicanalftica, assim como a perspective na qual ela se ins-crevera'.

Para ir ao essencial, quando se trata de questoes que mere-ceriam, cada uma delas, um exame mais apurado do que aqueleque estamos nos propondo aqui, o que se pode dizer a respeitodesse lugar 6 que ele sera" "regional", j5 que este € o termo uti-lizado por MP na AAD quando fala, de um modo antes ambf-guo, de uma "... teoria regional do significante". Pode-seigualmente qualificar esse lugar da psicanalise como subordina-do quando o encontramos no trabalho de Thomas Herbert: nele,a psicanalise intervem, de fato, no esquema destinado a darconta do processo da pratica cientifica no nfvel em que, no es-quema, da" conta da transformagao dos elementos ideoldgicos emsistema conceptual.

No segundo dos dois artigos de Thomas Herbert, a moda-lidade ambfgua desse recurso a psicanalise £ ainda mais nftida;alguns conceitos psicanalfticos sao utilizados a titulo de "ins-trumento", com a curiosa indicagao de que foram "... inicial-mente constitufdos para a psicanalise". Essa indicagao se torna aocasiao para o autor apontar um problema cuja formulagao oconduz a enunciar uma nova ambiguidade, j£ que entao estavaem questao a "... relacao entre o inconsciente analftico e o in-consciente social do recalque ideoldgico..." Poder-se-ia assim-por ocasiao de uma releitura que coloca hoje o problema das ra-zoes da separacao entre o artigo de Th.Herbert e a AAD-69 -multiplicar os mdices que atestam o fato de que, pelo menos

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nessa e"poca, o empreendimento de MP permanece orientado pa-ra um horizonte te6rico implicitamente dominado por um fan-tasma da articulacao entre o materialismo hist<5rico, pec.a domi-nante, e a teoria do inconsciente, contribuigao regional,

A unica referencia explfcita feita a Freud por Th.Herbert 6a esse respeito eloqiiente, atestando a gestagao desse fantasma edo sentido de sua organizagao; trata-se de uma frase extrafda daIntroduction a psychanalyse, que supostamente demonstra queFreud "nao deixa de lado" a questao da "... reprodugao do ho-mem como forc.a de trabalho", e que 6 por essa via que ele 6freqiientdvel pela teoria marxista. Verifica-se no implfcito quecorre por essas linhas, de resto animadas por um prodigioso so-pro de curiosidade e de inteligSncia, a que ponto o apelo althus-seriano a leitura e ao estudo "s6rio" de Freud e de Lacan eracircunstancial em relacao ao que ainda persistia dos efeitos daexcomunhao da psicana"lise pelo marxismo, como ideologia "pe-queno-burguesa".

O aval desse fantasma, que funciona sob o modo ambiva-lente da rejeigao e do fascfnio, pode ser localizado, na pioble-matica da AAD, sob a forma da presence persistente de umaverdadeira psicologia social, da qual se tratava, todavia, de apa-gar as marcas.

Um conceito central permite situar o ponto no qual vem secristalizar a maior parte das dificuldades ate" aqui evocadas: € oconceito de sujeito.

O conceito de sujeito, sujeito do inconsciente, tal comoLacan o forja ao longo de sua obra, sofre uma se"rie de transfor-mac,6es que, para nao serem contraditorias, apuram o proprioconceito, distanciando-o, muito cedo e de maneira definitiva, dequalquer forma — ainda que metaf<5rica — de localizagao e desubstancializac.ao para inscrev£-lo exclusivamente no registro daestrutura (Ver Bertrand Ogilvie, Lacan, le sujet, Paris, PUF,col. Philosophies, 1987).

Desde o tempo de "O estado de espelho", onde sua cate-goria de imagindrio permanecia estreitamente fixada ao corpo es<5 se abria a perspectiva alienante da identificagao, Lacan vinharealizando ano a ano seu semindrio, que, justamente no ano dapublicagao da AAD, vem a emigrar para a Faculte" de Droit si-

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tuada perto do Panthe'on, uma vez que tinha sido expulso daEcole Normale SupeYieure no movimento de refluxo e de restau-ragao caracterfstico dos meses p6s-68. Por essa 6poca, Lacan ia"tinha elaborado sua topica RSI (real, simbdlico, imagina'rio)-trabalha entao na topologia organizando sua reflexao em tornodos n<5s borromianos e se langando a pesquisa dos matemas dapsicandlise, cuja atualizacao asseguraria uma transmissao dapsicandlise protegida das deformagoes imagin^rias inerentes aliteralidade do discurso. O sujeito do inconsciente, que nao ces-sa de advir para se apagar enquanto resfduo logo renascente,precede do lugar do simbolico, lugar do Outro, distinto do ou-tro, o da relagao imagina"ria que diz respeito ao eu, o sujeito dapsicologia e da psicologia social. Em outros palavras, o_sujeitoem_Lacan nao 6 um dado de base^quiL-lugar qualquer do psi-quismo em^^uio-ceDtco__v.irianL-se ajustar operagoesjie reconhe-

mecanica interna da reprodugao ideoI6gjca tal como_TliomasHerbert_a concebe. —

Quando Lacan enuncia seu ce"lebre axioma: "ogignificaqfgJ^presejnta_o sujeito para um outro significante", ele marca a ab-soluta incompatibilidade entre seu sujeito do inconsciente equalquer outra forma de localizagao em cujo quadro pudesse vira ser identificado um sujeito, suporte de operagoes terminante-mente psfquicas.

Testemunho do desvio que entao separa amplamente aconcepcao lacaniana de sujeito daquela utilizada por ThomasHerbert € a seguinte frase, extrafda do segundo dos dois artigosdesse autor fictfcio: "Pois se, ao contraYio (esse contr^rio 6constitufdo por uma teoria da sociedade concebida como umsistema em que cada elemento € um reflexo do todo) aplicamos aquestao que nos ocupa o enunciado que Lacan formula com fins(parcialmente) diferentes — a saber: 'o significante representa osujeito para um outro significante' — , vamos perceber que a ca-deia sintStica dos significantes atribui ao sujeito seu lugar, iden-tificando-o com um certo ponto da cadeia (o significante no qualele se representa), e que o mecanismo da identificagao diferen-cial nao passa do 'efeito de sociedade', cujas dissimetrias en-contram aqui sua causa" (Cahiers pour Vanatysey n- 9, 1968,p.82).

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Mal-entendido detalhe, que se pode, no essencial, caracte-rizar de duas maneiras: uma diz respeito a problema'tica da apli-cagao que € explicitamente operacionalizada (fato que 6 subli-nhado pelo aparecimento do termo *'parcialmente"), como se oenunciado de Lacan pudesse ser utilizado em uma perspectivadiferente daquela em que foi forjado; a outra trata precisamenteda concepgao de sujeito desenvolvida, concepgao essa que apre-senta a ide"ia de um sujeito preexistente a uma operagao de loca-lizagao pelo significante que Ihe atribuiria entao um lugar, elemesmo articulado com processes sociais designados pela expres-sao "efeito de sociedade".

Em decorrencia da opgao tecnicista deliberadamente man-tida, por razoes que nao sao apenas tdticas (ver o texto deP.Henry), o desvio e a ambigiiidade sao ainda amplificados naAAD. Se A e B nao sao - e certo - individuos, indivfduos carosa psicologia empfrica, se esses "elementos A e B" representamlugares, esses lugares continuam enigmaticos, pois sao lugaresde sujeitos (patroes, funcionaYios de repartigao, operarios) quesao outros tantos, isto 6, representagoes imagin£rias nao atesta-das como tais, pois justamente esses_Jugaies_sao-consideradoscomo sede de representag6es_ imaginarias determinadas pela es-trutura economica e tidas como escapadigas ao domfnio dessessujeito.s.

Sem duvida alguma, a opacidade da AAD sobre esse pontocapital deve ser relacionada ao "lugar secundaVio" que, conco-mitantemente, 6 dado & teoria da enunciacao tal como e" desen-volvida por Benveniste.

Essas dificuldades, das quais tragamos apenas um quadrorudimentar, nao sao, na e"poca, exclusivas de MP; elas devem serreferidas a conjuntura na qual a AAD 6 concebida, elas teste-munham a formidaVel fratura constitufda pela contribuigao deLacan, fratura cuja amplitude e", ainda, freqiientemente subesti-mada, quando nao 6 parcialmente encoberta pelos prdprios psi-canalistas. No desenvolvimento da obra de MP, esses obstdculosvao se atenuar na medida em que se ameniza o influxo do fan-tasma da articulagao, para o qual a publicagao do artigo de Al-thusser sobre os Aparelhos Ideoldgicos de Estado, em 1970, vaitrazer um apoio inesperado, mas marcado pelo impasse que seseguird.

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3. Formaliza^ao e infonnStica

O lugar destacado que a formalizagao ocupa na AAD-69 seinscreve para MP em uma dupla perspectiva: epistemo!6gica,por um lado, visando a definir procedimentos repetfveis e com-paraveis que definam, de algum modo, heurfsticas para a andlisedo discurso; operacional, por outro lado, permitindo obter re-sultados empfricos, de maneira a propor uma alternative tedricae metodoldgica a andlise de conteiido.

Trata-se, pois, para MP, nao somente de formalizar o dis-positive AAD mas de informatiza'-lo, de realizar um programainformatizado que permita preencher essa dupla exigencia (ver,a esse respeito, a problemStica do instrumento desenvolvida notexto de Paul Henry acima).

Constatar-se-5 que a demarche formalizadora de MP sesitua em um quadro essencialmente alge'brico (teoria dos con-juntos, dlgebra de Boole, teoria dos grafos) antes que Idgico.Alguns emprestimos foram feitos igualmente ao dominio dasgramdticas formais (automatos a estados finitos, pilhas e listas).A propdsito, P.Henry se lembra de ter estudado duas obras comMP nessa e"poca: La th^orie des graphes et ses applica-tions, C.Berge, Dunod, 1958, e Vanalyse formelle des languesnaturelles, N.Chomsky e G.A.Miller, Gauthier-Villars, 1968(tradugao francesa dos capftulos 11 e 12 do volume n do Hand-book of mathematical psychology, John Wiley and Sons inc.,1963-5).

Todo o dispositive, enfim, foi representado sob forma dealgoritmos, diretamente admissfvel & programagao informatizadadestes dltimos.

Por outro lado, a investigagao de uma automatizagao dodispositive de andlise do discurso cruzava-se com os trabalhosde Tradugao Automdtica desenvolvidos, nessa epoca,.na Franga,principalmente no CETA (Centre d'Etudes et de TraductionAutomarjque), em Grenoble, com o qual Pecheux colaborou. Aestrat6gia entao adotada para a tradugao automdtica consistia emelaborar as gramdticas de reconhecimento da lingua de partida eda Ifngua-alvo como etapa pr6via a tradugao. Para MP, a cons-tituigao de uma grama'tica de reconhecimento do frances deveria

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permitir a automatizagao da fase manual de construgao dosenunciados elementares e a ultrapassagem do cardter rudimentarda representagao da seqiiencia linguistica apresentada emAAD-69, e ja" designada como provisdria.

Esse cuidado teve prolongamentos em pesquisas desenvol-vidas independentemente do CETA, sob a diregao de MP, comvistas a constituigao de um analisador morfossintdtico do fran-ces. Um analisador parcial relative as formas funcionais foi de-senvolvido em 1971-72 e programado em linguagem PL 1. Adescrigao desse analisador figura em Premiers e'Mments ffunanalyseur morpho-syntaxique dufrangais, C.Fuchs, Cl.Haroche,P.Henry, J.LSon, M.Pecheux, CNRS, EPHE, Paris VH, 1972.

Lembremos igualmente que o final dos anos 60 correspon-de a introdugao, na Franga, da informa'tica nas ciencias humanas(o Centre de Calcul pour les Sciences Humaines do CNRS, emparticular, foi criado em 1969), e que na AAD-69 MP se situano campo dos me'todos de andlise por computador, criticando osprogramas de lexicometria e de analise documental tais como oprograma SYNTOL (J.C.Gardin) ou o General Inquirer. O pro-grama AAD-69 foi, juntamente com os programas de lexicome-tria, aperfeigoado pela equipe de St.Cloud, um dos primeirosprogramas operacionais no domfnio da "andlise de textos porcomputador".

Tres versoes do programa foram realizadas:

O programa AAD-69, escrito em Fortran IV por MP ePh.Duval, foi implantado no Centre de Calcul pour lesSciences Humaines do CNRS em 1972. Cerca de duas de-zenas de pesquisadores em Ciencias Humanas que proble-matizavam sua disciplina (lingufstica, psicolingiifstica, so-ciologia, psicologia, psicologia social...) no quadro da teo-ria do discurso utilizaram esse programa de 1971 a 1981,em que pese o fardo da codificagao manual preVia. O quemostra o interesse suscitado pela novidade da abordagemmetodoMgica e te<5rica que o dispositive AAD representa-va.

A progressive inadequate do programa - cujas modifica-goes nunca passaram de parciais — aos desenvolvimentos

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da teoria do discurso, assim como sua inadequagao lin-giii'stica e mesmo te'cnica, levaram MP e sua equipe abuscar, a partir de 1980, uma alternativa ao programaAAD-69. O software DEREDEC, programado porP.Plante na Universidade de Quebec em Montreal, e queinclufa um analisador sintdtico do frances (a Grama'tica deSuperffcie do Frances), permitiu essa renovagao metodol<5-gica. Apresentando-se como um ambiente de programagaoque permitia a realizagao de procedimentos modulares, aocontr^rio do AAD-69, que nao executava mais do que umatinica tarefa bem determinada, DEREDEC oferecia novasperspectives de andlise automdtica do discurso (cf. os arti-gos em Mots 4 e Mots 9).O programa AAD-69 foi igualmente implantado na Uni-versidade de Quebec em Montreal e em Madri, gragasa N.Pizarro.Os vfnculos privilegiados que MP continuava a mantercom as pesquisas desenvolvidas em Grenoble suscitaram arealizagao de duas versoes do dispositivo AAD, ambas im-plantadas na Universidade de Grenoble II.A versao AADP foi realizada em ALGOLW por Ph.Bizarde M.Dupraz em 1972. Identica a AAD no ni'vel algorftmi-co, essa versao deu lugar a vdrias aplicagoes.Uma versao posterior (1975), nomeada AAD-75, foi rea-lizada em ALGOLW por C.Del Vigna. Permitia testar cer-tas modificagoes das proposigoes algorftmicas de AAD-69,especialmente gragas a sua configuragao interativa.

Tradugao: Lourengo C. FilhoManoel Gongalves

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ANALISE AUTOMATICA DO DISCURSO(AAD-69)

Michel Pecheux

PARTS I

ANALISE DE CONTEUDO E TEORIA DO DISCURSO

I. LJngufstica e analise de texto: suas relacpes de vizinhanga

Ate" os recentes desenvolvimentos da ciencia lingufstica,cuja origem pode ser marcada com o Curso de Lingufstica Ge-ral, estudar uma Ifngua era, na maior parte das vezes, estudartextos, e colocar a seu respeito questoes de natureza variadaprovenientes, ao mesmo tempo, da prfitica escolar que ainda 6chamada de compreensao de texto,1 e da atividade do gramdticosob modalidades normativas ou descritivas; perguntaVamos aomesmo tempo: "De que fala este texto?", "Quais sao as 'ide"ias*principals contidas neste texto?" e "Este texto esta" em confor-midade com as normas da Ifngua na qua! ele se apresenta?", ouentao "Quais sao as normas pr<5prias a este texto?". Todas essasquestoes eram colocadas simultaneamente porque remetiamumas as outras: mais precisamente, as questoes concernentes aosusos semanticos e sintflticos colocados em evidfincia pelo textoajudavam a responder as questoes que diziam respeito ao sentidodo texto (o que o autor "quis dizer"). Em outros termos, a cie"n-cia cldssica da linguagem pretendia ser ao mesmo tempo ciSnciada expressao e ciencia dos meios desta expressdo, e o estudogramatical e semantico era um meio a servigo de um fim, a sa-ber, a compreensao do texto, da mesma forma que, no prtSprio

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texto, os "meios de expressao" estavam a service do fim visadopelo produtor do texto (a saber: fazer-se compreender).

Nessas condicoes, se o homem entende seu semelhante 6porque eles sao um e outro, em algum grau, "gramdticos4*, en-quanto que o especialista da linguagem $6 pode fazer cienciaporque, j5 de infcio, ele 6, como qualquer homem, apto a se ex-primir.

Ora, o deslocamento conceptual introduzido por Saussureconsiste precisamente em separar essa homogeneidade crimpliceentre a prdtica e a teoria da linguagem: a partir do momento emque a lingua deve ser pensada como um sistema, deixa de sercompreendida como tendo ajungao de exprimir sentido; ela tor-na-se um objeto do qual uma ciencia pode descrever o funcio-narnento (retomando a metafora do jogo de xadrez utilizada porSaussure para pensar o objeto da lingufstica, diremos que nao sedeve procurar o que cada parte significa, mas quais sdo as re-gras que tornam possfvel qualquer parte, quer se realize ounao).

A conseqiiencia desse deslocamento e", como se sabe, a se-guinte: o "texto", de modo algum, pode ser o objeto pertinentepara a ciencia lingufstica pois ele nao funciona; o que funciona6 a Ifngua, isto 6, um conjunto de sistemas que autorizam com-binagoes e substituic.6es reguladas por elementos deflnidos, cu-jos mecanismos colocados em causa sao de dimensao inferior aotexto: a Ifngua, como objeto de ciSncia, se opoe & fala, como re-sfduo nao-cientifico da analise. "Com o separar a Ifngua da fala,separa-se ao mesmo tempo: 1-, o que 6 social do que e" indivi-dual; 2-, o que 6 essencial do que e" acessoYio e mais ou menosacidental" (Saussure, 1915, 13^ ed., 1987, p. 22).

Assim, o estudo da linguagem, que havia de infcio almeja-do o estatuto de ciencia da expressao e de sens meios, preten-dendo tratar de fen<3menos de grande dimensao, se curvou a po-sigao que € ainda hoje o lugar da lingufstica. Mas, como 6 deregra na hist<5ria da ciencia, a inclinac,ao pela qual a lingufsticaconstituiu sua cientificidade, deixou a descoberto o terreno queela estava abandonando, e a questao que a lingufstica teve quedeixar de responder continua a se colocar, motivada por interes-ses a um s<5 tempo tedricos e prdticos:

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— "O que quer dizer este texto?"— "Que significac,ao contem este texto?"

— "Em que o sentido deste texto difere daquele de tal ou-tro texto?"

Sao essas as diferentes formas da mesma questao, a qualva"rias respostas foram fornecidas pelo que chamamos andlise decontetido e, as vezes tambem, andlise de texto.

Propomo-nos examinar diferentes tipos de resposta quepodemos discernir nas pr&icas atuais de analise: a maneira pelaqual o terreno deixado livre pela lingufstica 6 abordado em cadacaso sera o meio de nossa classificacao.

A) Os m£todos nao-lingufsticos

Em primeiro lugar, existem me'todos de an^lise que, emaparSncia, nao tem relagao com a lingufstica: apareceram pri-meiro e seu desenvolvimento se deu mais ou menos ao mesmotempo em que o deslocamento acima descrito se operava, o queexplica que eles o tenham ignorado, por falta de recuo. Essesme'todos se dao, pois, a tarefa de responder a questao sob umaforma, por assim dizer, "pr^-saussuriana": colocam-se fora dalingufstica atual, o que nao quer dizer que nao se baseiam emconceitos de origem lingufstica — simplesmente,, esses conceitosestao defasados em relacao a teoria lingufstica atual.

1 - O me"todo de dedugao frequencial

Designamos assim o processo que consiste em recensear oniimero de ocorr^ncias de um mesmo signo lingiifstico (palavraou lexia, mais frequentemente) no interior de uma sequ'Sncia dedimensao fixada, e em definir uma freqiiSncia que pode sercomparada com outras, o que fornece um teste de comparabili-

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dade entre vdrios itens da mesma seqtie'ncia, ou entre vdrias se-quencias paralelas para o mesmo item. A grande vantagem desteme'todo foi desenvolver instrumentos estatfsticos adequados aotratamento da informagao (a relacao coluna/freqiiencia2 & o maisimportante dos resultados assim obtidos).

A relagao com o domfnio lingiifstico e" aqui reduzida aomihimo: podemos dizer que o rfnico conceito de origem lingiifs-tica 6 o da biunivocidade da relagao significante-significado, oque autoriza notar a presenga do mesmo conterfdo de pensa-mento a cada vez que o mesmo signo aparece. Mas este conceitopertence a um campo teorico pre"-saussuriano, j& que a linguisti-ca atual se baseia em grande paite sobre a ideia de que um termos<5 tern sentido em uma Ungua porque ele tern va"rios sentidos, oque significa negar que a rela?ao entre significante e significadoseja biunfvoca.

Uma maneira diferente de formular, em definitive, a mes-ma crftica consiste em observar que, mesmo que se multiplicas-sem as deducoes frequenciais, nem mesmo assim se daria contada organizagao do texto, das redes de relagoes entre seus ele-mentos: tudo se passa como se a superffcie do texto fosse umapopulagao na qual pudessem ser efetuados, assim, recensea-mentos diferenciais; obt£m-se uma descricao da populacao, taofina quanto se deseja, mas os efeitos de sentido que constituemo conteudo do texto sao negligenciados: paga-se a objetividadeda informac.ao recolhida pela dificuldade de fazer dela o uso quese previra.3 ^

2. A analise por categorias tema'ticas

O me'todo que acabamos de descrever se situa em um nfvelinfra-lingufstico: na medida em que se d& por objeto uma espe"-cie de demografia dos textos, ele visa nao o funcionamento deum sistema de elementos mas a pura existSncia de tal ou tal ma-terial lingiifstico, o que presta incontestaVeis services & teoria

As notas entre colchetes encontram-se no final do capftulo.

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lingufstica mas nap responde a questao do sentido contido notexto, nem & da diferen$a de sentido entre um texto e outro.

A analise de conteudo classical2] - tal como 6, por exem-plo, descrita por D.P.Cartwrigt (in Festinger e Katz, trad, fran-cesa, p. 481) — tenta, ao contraiio, trazer uma resposta a essaquestao: o que € visada no texto € justamente uma se"rie de sig-nificagoes que o codificador detecta por meio dos indicadoresque Ihes estao ligados; em outros tennos, a relagao funcionalexpressao da significagao/meios desta expressao retoma aqui to-da sua importancia. Assim, a analise se situa, desta vez, em umnfvel supralingufstico, pois o que est5 em questao 6 o acesso aosentido de um segmento do texto, atravessando-se sua estruturalingufstica; codificar ou caracterizar um segmento € coloc^-loem uma das classes de equivalencia definidas, a partir das signi-ficagoes, pelo quadro da analise, em funcao do julgamento docodificador, sobre a presenga ou ausencia, ou sobre a intensida-de da apresentacao do predicado considerado.

O julgamento se estabelece, pois, com base em indicadorescuja pertine'ncia lingufstica nao est£ fixada (palavra, frase, "te-ma"...), o que exige qualidades psicoldgicas complementarescomo a fineza, a sensibilidade, a flexibilidade, por parte do co-dificador para apreender o que importa, e apenas isto (Festingere Katz, trad, francesa, 1963, p. 529). Significa dizer ao mesmotempo que este me'todo supoe fundamentalmente uma acultura-cao dos codificadores, uma aprendizagem da leitura^] Deixan-do de lado o problema da fidelidade intercodificadores, cuja im-portancia conhecemos, vamos designar o ponto que aqui nos pa-rece essencial: nesta perspectiva, a analise nao pode ser uma se-qii^ncia de operacoes objetivas com resultado unfvoco (e umcodificador que quisesse simular esta objetividade nao faria se-nao um trabalho rotineiro e mecanico sem validade analftica);entretanto, "para que a codificagao seja a obra de uma equipe decodificadores, € necessaYio que todos eles apliquem as mesmasdefinicoes e o mesmo sistema de referencia ao curso de suasoperacoes" (ibid., p. 530), & precise supor a existdncia de umconsenso explfcito ou implfcito4 entre os codificadores sobre asmodalidades de suas leituras: em outros termos, um texto s<5 ^analisaVel no interior do sistema comum de valores que umsentido tern para os codificadores e constitui seu modo de leitu-

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ra; ora, o me"todo impoe, com a relagao expressao/meios de ex-pressao, as consequencias desta relacao, a saber, o encavala-mento entre a fungao tedrica do analista e a fungao pratica dolocutor (cf. p^62)- O risco-limite 6 pois o de que a analise assimconcebida reproduza em seus resultados a grade de leitura que atornou possfvel (qualquer que seja, alias, o grau de probidade,de sensibilidade e de fidelidade dos codificadores) por um fe-nOmeno de participac.ao em reflexo entre o objeto e o metodoque se da" corno tarefa apreender esse objeto.5

B) Os metodos para-lingiifsticos

Ao lado dos me"todos descritos, que sao nao-lingiiisticos namedida em que evitam o nfvel especffico do signo, e que deri-vam de metodologias psicoldgicas ou socioldgicas, existem ou~tros, de aparigao mais recente, que, ao contrSrio, se referemabertamente a lingufstica moderna6 e dao outra resposta aquestao do sentido contido num texto. Ora, ha1 aqui um parado-xo, cuja razao 6 precise explicar: com efeito, de que modo dis-ciplinas como a etnologia, a critica literaria ou o estudo dos sis-temas de signos pn5prios as civilizagoes ditas "de massa" po-dem fazer apelo a lingufstica para responder a uma questao quese coloca precisamente sobre o terreno que a lingufstica abando-nou ao se constituir?

Eis a solucao que propomos com respeito ao paradoxoenunciado: as diferentes discipHnas enumeradas reconhecem ofato tedrico fundamental que marca o nascimento da ciencia lin-giifstica, a saber, a passagem dajunfdo ao funcionamento; ale"mdo mais, elas decifraram este acontecimento nao como um fe-chamento, que tornaria impossfvel certas questoes, mas como osigno de uma possibilidade nova oferecida a elas, a saber, a pos-sibilidade de efetuar uma segunda vez o mesmo deslocamento(da fiincao ao funcionamento) mas desta vez no nfvel do texto.Em outros termos, uma vez que existem sistemas sintaticos, faz-se a hipb'tese de que existam do mesmo modo sistemas mfticos,sistemas literarios etc., ou seja, que os textost como a Ifngua,funcionem', a homogeneidade epistemoldgica que se supoe entre

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os fatos da Ifngua e os fenomenos da dimensao do texto, garan-tem, assim, o emprego dos mesmos instrumentos conceptuais-por exemplo, a relagao paradigma-sintagma serd estendida aosdiferentes nfveis de funcionamento, logo da analise: visa-se oideal da analise lingufstica transportando o instrumento lingiifs-ticoJ4! Pode-se, no entanto, dizer que isto foi atingido? Aqui semanifesta a resistencia prdpria ao nfvel e a dimensao do objeto:a disjuncao entre a teoria da Ifngua e a prdtica do locutor pareceum adquirido, mas aquela entre a teoria do mito e a pratica domito € ainda problematica. Pode-se mesmo perguntar se ela 6possfvel, quando se le o que escreve um especialista — e nao dosmenores — a prop6sito disto:

' 'Nao hd um fim verdadeiro para a andlise mftica,nenhuma unidade secreta que se possa apreender aofim do trabalho de decomposifdo. Os temas se des-dobram ao infinito... consequentemente, a unidadedo mito nao e senao tendencial e projetiva; ela naoreflete jamais um estado ou momento do mito. . . Co-mo os ritos, os mitos sdo in-terminaveis. E, ao que-rer imitar o movimento espontdneo do pensatnentomftico, nossa empresa, ela tambem breve demais emuito longa, teve de se curvar a suas exigencias erespeitar seu ritmo. Assim, o livro sobre os mitos e,a seu modo, um mito" (LeVi-Strauss, 1964, p.13).

Parece que se encontramos aqui "a harmonia preestabele-cida" entre o produtor do mito e seu analista, que j£ nos apare-cerd (cf . p. 62 ) entre o homem que fala e o grarrtdtico; quer di-zer que o "funcionamento" do texto esta" muito prdximo aindade sua funcao e, logo, que o deslocamento ainda nao se deu.

6 precise tirar todas as consequencias do fato de queaquilo que € analisado nao existe em geral pelo desejo do ana-lista, e o esclarecimento deste ponto parece ser uma das condi-§6es de existencia de uma prdtica semioldgica cientffica.7 As di-ficuldades metodoldgicas relativas a constituigao do corpus en-contram aqui sua origem; se, com efeito, o objeto da analise naoesta" conceptualmente definido como o elemento de um processodo qual 6 preciso construir a estrutura, este objeto permanece

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como objeto de desejo, o que implica duas consequencias: aprimeira € a de que a constituicao do objeto depende daquiloque, no espfrito do analista, o leva a colocd-lo; a segunda 6 a deque o analista finge encontra-lo como um dado natural, o queo Hvra de sua responsabilidade.

O problema diz respeito, pois, antes de tudo, ao modo deacesso ao objeto, e € em torno desse ponto que se articulam asorientacoes conceptuais que nds apresentaremos aqui (cf.p.78-9).

Expliquemo-nos por um contra-exemplo: acabamos demostrar que face ao mito o analista nao dispoe de norma quepermita definir o que pertence ou nao ao corpus: ora, em pre-senga de um texto jurfdico ou cientffico, esta dificuldade nao pa-rece se colocar, na medida em que existe, nesse caso, uma ins-tituicao (cientffica, jurfdica etc.) a qual podem-se referir os tex-tos. Podemos, pois, estabelecer a diferenca entre analise docu-mental, efetuada no interior de uma referencia institucional comfins que respondem em geral aos da instituicao, e a analise quechamaremos "nao-institucional", tal como acabamos de evocar aprop<5sito do mitof53: a convergencia metodo!6gica pela qualcertos dispositivos de documentagao automa'tica se encontramaplicados na analise "nao-institucional" pode, pois, suscitar al-gum estranhamento. Com efeito, a analise documental supoefundamentalmente que as classes de equivalence sejam defini-das, a priori, pela propria norma institucional; ao falar das mo-dalidades de memorizagao da informacao necessaYia a analise deum documento, J.C.Gardin escreve:

' 'Qualquer que seja o partido adotado, o que fica €que devemos estabetecer antes as relagdes em ques-tdo, isto e, constituir de uma maneira ou de outrauma 'classificacdo' na qual o lugar de cada palavra-chave reflita as relagoes semanticas que entretemcom outros termos (exemplo: 'lobo temporal' ,parte do 'telencefalo' ) ou grupo de termos (exem-plo: 'ataxia' , esp&cie particular de 'perturbagaodo comportamento motor* )" (Gardin, 1964, p.42).

Daf compreende-se, pois, a importancia do pre-requisitoindispensaVel a qualquer an^lise, enunciado claramente porG.Mounin:

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"(o analista) constitui, para cada espgcie de obje-tos, o cddigo de strnbolos que marcarao a presencaou ausencia de todos os tracos distintivos do tipo deobjeto a ser descrito e classificado. A codificagao e,pois, precedida de uma analise tecnoldgica destinadaa estabelecer o recenseamento de todos os tracos dis-tintivos necessaries & descricao de objetos desse tipo,isto 6, o quadro exaustivo do qual constara" a defini-cao de cada objeto" (Mounin, 1963, p.l 14)J61

E, pois, porque j5 existe um discurso institucionabnentegarantido sobre o objeto que o analista pode racionalizar o sis-tema de tracos semanticos que caracterizam este objeto: o siste-ma de analise terd portanto a idade teorica (o nfvel de desenvol-vimento) da instituicao que € sua norma, e permitird definir aposigao de um conteddo particular em relacao a esta norma: ostrabalhos de W.Ackermann (1966), por exemplo, colocam emevidencia a possibilidade de medir a adequagao progressiva deum grupo de objetos as normas cientfficas que Ihes sao impostasatrav£s de uma instituicao de ensino.

Ao termo desta analise, viirias questoes se colocam e no'sas formularemos do seguinte modo:

1. Se se considers como adquirido o fato de que todaciencia que trata do signo sd pode se constituir pelo abandonodo terreno da fimcao de expressao e de sentido para se situar nodo funcionamento, que tipo de funcionamento se pode designarpara o objeto que aqui se encontra em questao?

2. Em que o conceito de instituigao importa para a cons-trucao do conceito deste objeto?

3. Se entendemos por texto qualquer objeto lingiifstico or-ganizado submetido ^ analise, poder-se-ia conservar este con-ceito para designar o objeto de uma prdtica analftica que levasseem conta as respostas as duas questoes precedentes?

D- Orientacoes conceptoais para tnna teoria do discurso

A) Consequencias tedricas induzidas por certos conceitos saus-surianos

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No Curso de Lingiifstica Geral, no capftulo III, encontra-mos dusisfortnas de deflnigdo do conceito de Ifngua.

A primeira forma consiste em enunciar as propriedades doobjeto definido:

"A Ifngua... 4 aparte social da linguagem, exteriorao indivfduo, que por si s6 ndo pode nem crid-lanem modificd-la".

A segunda forma de definicao consiste em definir o objetopela sua relagao com outros objetos situados no mesmo piano:

"... a Ifngua £ uma ins* luiciL social; mas se dis-tingue, por vdrios tracos, das outras instituicoes po~Ifticas, jurfdicas etc. Para compreender sua naturezaespecial, uma nova ordem de fatos precisa intervir.A Ifngua & um sistema de signos que exprimemid£ias, e por isto compardvel a escrita, ao alfabetodos surdos-mudos, aos ritos simb6licos, as formasde polidez, aos sinais militares etc. Ela £ somente omais importante desses sistemas. Pode-se pois con-ceber uma ciencia que estuda a vida dos signos noseio da vida social,- ela formaria uma parte da psi~cologia social e conseqiientemente da psicologia ge-ral; n6s a nomearemos semiologia'' (Saussure,ibid., p. 33).

Por meio desta definic,ao, Saussure opera uma dupla divi-sao: opoe um sistema semioldgico (*'o mais importante": a Ifn-gua) ao conjunto de todos os sistemas semioldgicos que saopensados como tendo um estatuto cientffico potencialmenteequivalente, e entra no campo da teoria regional do significan-teJ7^ Mas hd uma outra oposi^ao que 6 evocada por Saussurepor meio do termo instituicdo: ela Ihe permite separar os siste-mas institucionais jurfdico, polftico etc. da se*rie dos sistemasinstitucionais semioldgicos, e excluf-los pura e simplesmente docampo da teoria regional em questao.

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Assim, a Ifngua € pensada por Saussure como um objetocientffico homogeneo (pertencente a regiao do "semioldgico")cuja especificidade se estabelece sobre duas exclusoes tedricas;

— a exclusao dafala no inacessfvel da ciencia lingiifstica;— a exclusao das instituicoes "nao-semiol6gicas" para fo-

ra da zona de pertinencia da ciencia lingufstica.

Elucidemos agora as conseqiiencias que resultam das duasdefinic.6es apresentadas.

1. As implicacoes da oposigao saussuriana entre Ifngua e fala

Esta oposigao pertence a tradigao lingiifstica pds-saussu-riana:

' 'Entre os dots termos, a Ifngua e a fala, a antino-mia I total. A fala £ um ato, logo uma manifestagaoatualizada dafaculdade da linguagem. Ela pressupoeum contexto, uma situagao concreta e determinada.A Ifngua, ao contrdrio, e" um sistema virtual que s6se atualiza na e pela fala. Ndo 4 menos verdade queos dois princfpios sao interdependentes: a Ifngua ndo& senao o resfduo de inumerdveis atos de fala, en-quanto que estes sao apenas a aplicagao, a utiliza-GOO dos meios de expressao8 fornecidos pela Ifngua.Decorre daf que a fala 4 um ato ou uma atividadeindividual que se opoe claramente ao cardter socialda Ifngua" (Ullmann, 1952, p.16).

Este texto poe as claras as conseqxiencias da operacao deexclusao efetuada por Saussure: mesmo que explicitamente elenao o tenha desejado, € urn fato que esta oposigao autoriza areaparigao triunfal do sujeito falante como subjetividade em atoy

unidade ativa de intengoes que se realizam pelos meios coloca-dos a sua disposicao; em outros termos, tudo se passa como se alingiifstica cientffica (tendo por objeto a Ifngua) liberasse um re-sfduo, que 6 o conceito filosdfico de sujeito livre, pensado como° avesso indispensa*vel, o correlato necessa"rio do sistema. A fa-la, enquanto uso da Ifngua, aparece como um caminho da liber-dade humana; avangar no caminho estranho que conduz dos fo-

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nemas ao discurso 6 passar gradatim da necessidade do sistemaa contingencia da liberdade, como o sugere este texto de Jakob-son, que, 6 verdade, muitas outras indicacoes vao corrigir:

"Assim, existe na combinacdo das unidades lingufs-ticas uma escala ascendente de liberdade. Na com-binacdo dos tracos distintivos em fonemas, a liber-dade do locator individual e" nula; o cddigo jd esta-beleceu todas as possibilidades que podem ser utili-zadas na Ifngua em questao. A liberdade de combi-nar os fonemas em palavras € circunscrita, e limita-da a situacdo marginal da criacdo de palavras. Naformacao das frases a partir de palavras, a coercdoque o locator sofre e menor. Enfim, na combinacdodas frases em enunciados, a acdo das regras coerci-tivas da sintaxe para e a liberdade de todo locutorparticular aumenta substancialmente, ainda que sejaprecise ndo subestimar o numero dos enunciadosestereotipados" (Jakobson, 1963, p.47).

Na medida, pois, em que a Ifngua se define pelo conjuntodas regras universalmente presentes na "comunidade" linguisti-ca, concebe-se que os mecanismos que a caracterizam tenhamsido antes procurados no nfvel das combinacoes e substituicoeselementares (fora das quais toda palavra 6 impossfvel porque es-ses sao os seus meios indispensaVeis) embaixo da escala, em umni'vel, em qualquer hipdtese, inferior a frase. Ora, os desenvol-vimentos recentes de certas pesquisas lingufsticas (e, antes detudo, o aparecimento das grama'ticas gerativas) parecem estenderesse limite e tendem a constituir uma teoria lingufstica da frase,sem, no entanto, sair do sistema da Ifngua: enquanto que Saus-sure pensava que a Ifngua nada cria, o funcionamento de umagramatica gerativa coloca em evidencia uma forma de criativi-dade ndo-subjetiva no proprio interior da Ifngua.

Seria o caso de se pensar que a ciencia lingufstica vai as-sim progressivamente estender seu empreendimento e chegar adar conta de toda a "escala" utilizando instrumentos combinatd-rios cada vez mais potentes?

Parece que h£ aqui uma dificuldade fundamental, presa anatureza do horizonte teonco da lingufstica, mesmo em suas

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formas atuais: pode-se enuncia-la dizendo que nao 6 certo que oobjeto tedrico que permite pensar a linguagem seja uno e homo-geneo, mas que talvez a conceptualizacao dos fen6menos quepertencem ao "alto da escala" necessite de um deslocamento daperspectiva tedrica, uma "mudanga de terreno" que faca intervirconceitos exteriores & regiao da lingiifstica atual. O problemaagora cMssico, da "normalidade do enunciado" 6, a nossosolhos, um fndice exemplar dessa dificuldade: as condigoes atuaisdo funcionamento de uma grama'tica gerativa supoem um tipo delocutor que chamaremos neutralizado, isto 6, ligado & normali-dade universal dos "enunciados canonicos", em que a posicaodas classes de equivalencia (por exemplo: sujeito animado +objeto inanimado) 6 ct priori fixada como uma propriedade dalingua. E, pois, em relagao a esta normalidade suposta na linguaque o "enunciado anfimalo" se encontra definido. Ora, esta teseparece frigil em muitos aspectos, como o mostra o exemplo se-guinte: ao se interrogar para saber se a frase pertence & ordemda fala ou a da lingua, Saussure escreve:

' 'E precise atribuir a Ifngua, e ndo a fala, todos ostipos de sintagmas construtdos por formas regula-res... acontece exatamente o mesmo com as frasesou grupos de palavras estabelecidas sobre padroesregulares; combinacoes como a terra gira, o que eleesta" dizendo? etc., respondem a tipos gerais que ternpor sua vez seu suporte na Ifngua sob a forma delembrancas concretas" (Saussure, op. cit., p.173).

Seja, pois, a frase "a terra gira": um lingiiista pre-coper-nicano, que, por milagre, conhega as gramaticas gerativas e ostrabalhos atuais dos semanticistas, teria certamente colocadouma incompatibilidade entre as partes constitutivas da frase edeclarado o enunciado anomalo.I8!

Isso significa que nem sempre se pode dizer da frase queela € normal ou anomala apenas por sua referSncia a uma normauniversal inscrita na lingua, mas sim que esta frase deve ser re-ferida ao mecanismo discursivo especffico que a tornou possfvele necessaria em um contexto cientffico dado. Em outros termos,parece indispensaVel colocar em questao a identidade implicita-roente estabelecida por Saussure entre o universal e o extra-in-

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dividual, mostrando a possibilidade de definir um nfvel interme-didrio entre a singularidade individual e a universalidade, a sa-ber, o nfvel da particularidade que define "contratos" lingufsti-cos especfficos de tal ou tal regiao do sistema, isto 6, feixes denormas mais ou menos localmente definidos, e desigualmenteaptos a disseminar-se uns sobre os outros; como escreve Jakob-son:

"Sem nenhuma duvida, para toda comunidade lin-guistica, para todo sujeito falante, existe uma unida-de da Ifngua, mas esse codigo global representa umsistema de subcddigos em comunicacao reciproca;coda lingua abarca vdrios sistemas simultaneos,sendo coda ion caracterizado por uma funcdo dife-rente" (Jakobson, op. cit.,

E certo que o conceito de "campo semantico" jd repre-senta um passo nessa direcao, uma vez que visa as coercoes se-manticas entre os elementos morfema'ticos, suas relacoes inpraesentia e in absentia em uma a"rea de significagao dada. En-tretanto, ele nao dd conta dos efeitos sequenciais ligados & dis-cursividade. Em outras palavras, o conceito de campo semSnti-col10! recobre uma das duas significances da palavra "retdrica"(isto 6, retdrica como saber que incide sobre a "disposicao", a"ordem e o encadeatnento de idelas" etc.): em termos tornadosde empre"stimo & Idgica, pode-se dizer que a normalidade localque controla a producao de um tipo de discurso dado concernenao somente a natureza dos predicados que sao atribufdos a umsujeito mas tambern as transformacoes que esses predicadossofrem nofio do discurso e que o conduzem a seufim, nos doissentidos da palavra.

Propomos designar por meio do termo processo de produ-cao o conjunto de mecanismos formais que produzem um dis-curso de tipo dado em "circunstancias" dadas.

Resulta do que precede que o estudo dos processes discur-sivos supde duas ordens de pesquisas:

— o estudo das variacoes especfficas (semanticas, retdricase pragma'ticas) ligadas aos processos de produgao parti-

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culares considerados sobre o "fundo invariante" da lin-gua (essencialmente: a sintaxe como fonte de coergoesuniversais). Especificaremos mais adiante os conceitos ea metodologia utilizados.9

- o estudo da ligacao entre as "circunstancias" de um dis-curso — que chamaremos daqui em diante suas condicoesde producao10 — e seu processo de produc.ao. Esta pers-pectiva esta" representada na teoria lingufstica atual pelopapel dado ao contexto ou a situacdo, como pano defundo especifico dos discursos, que toma possfvel suaformulagao e sua compreensao: 6 este aspecto da ques-tao que vamos tentar esclarecer agora, atrave"s do examecrftico do conceito saussuriano de instituicdo.

2. As implicacoes do conceito saussuriano de instituigao

Segundo Saussure, a Ifngua 6 uma instituicao social entreoutras, o que faz com que se possa enunciar a diferenga especi-fica que a coloca na s£rie das instituigoes como uma espe'cie nointerior de um gSnero: tudo parece claro uma vez que se deter-mine que esta diferenga especffica se chama o semioldgico. En-tretanto, encontramos no Curso de Linguistica Geral um outrotipo de diferenga que coloca ainda uma vez em causa as "ou-tras" instituigoes e cuja avaliagao crftica 6 para n6s fundamen-tal.

Com efeito, escreve Saussure:

"As outras instituicoes humanas — os costumes, asleis etc. — se jundam, em diversos graus, nas rela-coes naturals das coisas; hd nelas uma conformidadenecessdria entre os meios empregados e os fins per-seguidos.,. A Ifngua, ao contrdrio, nao e" limitadaem nada na escolha de seus meios" (Saussure, op.cit.,p.UO).Reencontramos aqui a indicagao da reviravolta que descre-

vemos no comeco e que con sis te em mostrar que a Ifngua nao

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pode ser definida por uma "conformidade necessaria" (umaharmonia teleoldgica) entre os meios e os fins - ora, para deixarbem entendida a novidade do que enuncia, Saussure faz apelo apropriedades funcionais das outras instituigoes como a uma evi-dencia; em outros termos, 6 porque Saussure continua a pensaras instituigoes em geral como meios adaptados a fins que elepode fazer ressaltar o caso dnico da lingua, para a qua) nao ha*meio predestinado por natureza.

Certamente, nao se trata de reprovar Saussure pelo fato deter ignorado o que os socidlogos de seu tempo comegam a dis-cernir: observaremos apenas que, na grande Enciclope"dia Fran-cesa de 1901, Mauss e Fauconnet definiam a sociologia como aciencia das instituigoes, precisando: "As instituigoes sao o con-junto de atos e de ide"ias institufdas que os individuos encontramdiante deles e que Ihes sao mais ou menos impostos "(citado emGurvitch, 1958, p.9), definigao que Saussure poderia ter aceitopara caracterizar a lingua, "parte social da linguagem".

De fato, & inega"vel que um dos resultados mais decisivosda sociologia contemporanea consiste precisamente em saberdistinguir a funfdo aparente de uma instituigao e seu junciona-mento implfcito; as normas dos comportamentos socials nao saomais transparentes a seus autores do que as normas da lingua osao para o locutor; "o sentido objetivo de sua conduta... os pos-sui porque eles sao despossufdos por ele " (Bourdieu, 1965,p.20), O que significa que, retrospectivamente, Saussure nos pa-rece aqui afetado pela necessaria ilusao do nao-socioldgico, queconsiste em considerar as instituigoes em geral como funcoescom finalidade explfcita.] l

Isto nao deixa de ter consequencias para a teoria dos pro-cesses discursivos.

Seja, por exemplo, o discurso de um deputado na Camara.Do estrito ponto de vista saussuriano, o discurso 6, enquanto tal,da ordem dafala, na qual se manifesta a "liberdade do locutor",ainda que, bem entendido, seja proveniente da Ungua enquantosequencia sintaticamente correta. Mas o mesmo discurso 6 torna-do pelo socidlogo como uma pane de um mecanismo em fun-cionamento, isto e", como pertencente a um sistema de normasnem puramente individuals nem globalmente universais, mas que

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derivam da estrutura de uma ideologia polftica, correspondendo,pois, a um certo lugar no interior de uma formagao social dada. '

Em outras palavras, um discurso € sempre pronunciado apartir de condi$oes de produgao dadas: por exemplo, o deputadopertence a um partido polftico que participa do governo ou a umpartido da oposigao; € porta-voz de tal ou tal grupo que repre-senta tal ou tal interesse, ou entao esta" "isolado" etc. Ele esta",pois, bem ou mal, situado no interior da relagdo deforgas exis-tentes entre os elementos antagonistas de um campo polftico da-do: o que diz, o que anuncia, promete ou denuncia nao tern omesmo estatuto conforme o lugar que ele ocupa; a mesma decla-ragao pode ser uma arma temfvel ou uma come'dia ridfcula se-gundo a posigao do orador e do que ele representa, em relacaoao que diz: um discurso pode ser um ato polftico diieto ou umgesto vazio, para "dar o troco", o que 6 uma outra forma deagao polftica.I11' Podemos evocar aqui o conceito de "enuncia-do performativo" introduzido por J.L.Austin, para sublinhar arelacao necessaria entre um discurso e seu lugar em um meca-nismo institucional extralinguisticoJ12!

Se prosseguirmos com a analise do discurso polftico — queserve aqui apenas de representante exemplar de diversos tiposde processes discursivos — veremos que por outro lado, ele deveser remetido as rela^oes de sentido nas quais € produzido: as-sim, tal discurso remete a tal outro, frente ao qual € uma res-posta direta ou indireta, ou do qual ele "orquestra" os termosprincipals ou anula os argumentos. Em outros termos, o proces-so discursive nao tern, de direito, infcio: o discurso se conjugasempre sobre um discursive preVio, ao qual ele atribui o papelde mate"ria-prima, e o orador sabe que quando evoca tal aconte-cimento, que ja" foi objeto de discurso, ressuscita no espfrito dosouvintes o discurso no qual este acontecimento era alegado, comas "deformac.6es" que a situagao presents introduz e da qualpode tirar partido.f133

Isso implica que o orador experimente de certa maneirao lugar de ouvinte a partir de seu prdprio lugar de orador: suahabilidade de imaginar, de preceder o ouvinte 6, as vezes, deci-siva se ele sabe prever, em tempo hdbil, onde este ouvinte o"espera".12 Esta antecipacao do que o outro vai pensar parececonstitutiva de qualquer discurso, atrav^s de variasoes que sao

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definidas ao mesmo tempo pelo campo dos possfveis da patolo-gia mental aplicada ao comportamento verbal13 e pelos modosde resposta que o funcionamento da instituicao autoriza ao ou-vinte: a esse respeito, um sermao e uma conversa a bandeirasdespregadas "funcionam" de modo diferente. Em certos casos, oouvinte, ou o auditdrio, pode bloquear o discurso ou, ao contra-rio, apoid-lo por meio de intervengoes diretas ou indiretas, ver-bais ou nao-verbais.

Por exemplo, o deputado na Camara pode ser interrompidopor um adversario que, situado em outro "lugar" (isto 6, cujodiscurso responde a outras condicoes de produgao),tentara' atrairo orador para seu terreno, obrig£-lo a responder sobre um as-sunto escabroso para ele etc. Existe, por outro lado, um sistemade signos nao-linguTsticos tais como, no caso do discurso parla-mentar, os aplausos, o riso, o tumulto, os assobios, os "movi-mentos diversos", que tornam possfveis as intervencoes indire-tas do auditdrio sobre o orador; esses comportamentos sao, namaior parte das vezes, gestos (atos no nivel do simbdlico) maspodem transbordar para intervencoes ffsicas diretas; infelizmen-te, faz falta14 uma teoria do gesto como ato simbdlico no estadoatual da teoria do significante, o que deixa muitos problemassem resolugao: quando, por exemplo, os "anarquistas" langavambombas no meio das Assemble'ias, qual era o elemento domi-nante: o gesto simbdlico significando a interrupgao a mais bru-tal que seja, ou a tentativa de destruicdo ffsica visando tal ou talpersonagem polftica considerada nociva?

Dentre as questoes que acabamos de evocar, vanas delaspermanecerao aqui sem resposta. Nosso propdsito nao 6, comefeito, o de estimular uma sociologia das condicoes de produgaodo discurso mas definir os elementos tedricos que permitem pen-sar os processes discursivos em sua generalidade: enunciaremosa tftulo de proposicao geral que os fendmenos lingufsticos dedimensdo superior a frase podem efetivamente ser concebidoscomo um funcionamento mas com a condicao de acrescentarimediatamente que este funcionamento nao 6 integralmente lin-giifstico, no sentido atual desse terrno e que nao podemos defi-ni-lo senao em referSncia ao mecanismo de colocacdo dos pro-tagonistas e do objeto de discurso, mecanismo que chamamos"condigoes de produgao" do discurso.

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Faremos a hipdtese de que, a um estado dado das condi-goes de producao corresponde uma estrutura definida dos pro-cesses de produgao do discurso a partir da Ifngua, o que signifi-ca que, se o estado das condicoes 6 fixado, o conjunto dos dis-cursos susceti'veis de serem engendrados nessas condicoes mani-festa invariantes semantico-retdricas estdveis no conjunto consi-derado e que sao caracterfsticas do processo de produgao colo-cado em jogo. Isto supoe que 6 impossfvel analisar um discursocomo um texto, isto €, como uma sequencia lingiifstica fechadasobre si mesma, mas que € necessdrio referi-lo ao conjunto dediscursos possfveis a partir de um estado definido das condicoesde produgao, como mostraremos a seguir.

Vamos, pois, proper, inicialmente, um esquema formal quepermita chegar a uma definiQao operacional do estado das con-dicoes de produgao de um discurso; descreveremos em seguidaos requisites tedricos e metodoldgicos necessdrios a representa-gao do processo de produgao que corresponde a um estado da-do.

B) As condicoes de producao do discurso^14'

1. Os elementos estruturais pertencentes as condicoes de produ-gao

Duas famflias de esquemas estao em competicao no quediz respeito & descrigao extrfaseca do comportamento lingiifsticoem geral (per oposigao a andlise intrfaseca da cadeia falada):

— um esquema "reacional", derivado das teorias psicofi-sioldgicas e psicoldgicas do comportamento (esquema"estfinulo-resposta" ou "estfmulo-organismo-resposta");

— um esquema "informacional" derivado das teorias so-cioldgicas e psicossocioldgicas da comunicacao (esque-ma "emissor-mensagem-receptor*")-

O primeiro esquema parece dominar ainda largamente opensamento atual: "... as prefer^ncias da maioria, escrevem

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S.TMoscovici e M.Plon (1966, p.720) vao em diregao a umaapreensao do fundamento da linguagem na organizac,ao do sis-tema nervoso que € sua matriz material e nao naquilo que se dizser sua func.ao, ou seja, a comunicagao. Por esta razao, digamosque uma progressao tedrica sob o angulo psicossocio!6gico nao6 suficiente, mas 6 necessaria uma mudanga das opcoes atuaissituando a psicologia social ao lado de outras disciplinas psico-Mgicas com vistas a compreender a linguagem".

Seja, com efeito, a aplicagao do esquema S-OR do corn-portamento verbal:

discurso 1 discurso 2

ouou -+SUJEITO

estfrnulo nao-discursivo comportamento nao-discursive

(S) (O) (R)

Esta representagao tern o inconveniente de anular o lugardo produtor de (S) e do destinatdrio de (R): esta anulagao 6 per-feilamente legftima quando a estimulagao 6ffsica (por exemplo,uma variagao de intensidade luminosa) e a resposta organica(por exemplo, uma variagao da resposta E.E.G.); neste caso,c« >m efeito, o experimentador 6 somente o construtor de umamontagem que funciona independentemente dele, extrafdos osartefatos experimentais. Em uma experiencia sobre o "compor-tamento verbal", ao contrario, o experimentador 6 umaparte damontagem, qualquer que seja a modalidade de suapresenca, f(-sica ou nao, nas condigoes de produgao do discurso-resposta:em outras palavras, o estimulo s6 € estfrnulo em referenda £ si-tuac,ao de "comunicagao verbal" na qual se sela o pacto provi-sdrio entre o experimentador e seu objetq. Os mesmos autores,j^ citados, escrevem a este respeito:

"... a atitude skinneriana resulta em excluir noexame do comportamento humano, em geral, e docomportamento lingiifstico, em particular, as acdes

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das regras, das normas que os mdivtduos estabele-cem entre si. Por essa via, ela chega tambem a mi-nimizar a dimensao simbdlica que a linguagem ad-quire, a par de sua associagao com essas regras, e opapel nao - negligencidvel que ela desempenha nasua constituicdo" (ibid,, p.718).

O que significa que o esquema S-O-R implica excessivos"esquecimentos" tedricos no dommio de que nos ocupamos paraser conservado sob esta forma.

O esquema "informacional" apresenta, ao contrario, avantagem de por em cena os protagonistas do discurso bem co-mo seu "referente". Ao fazer o inventdrio dos "fatores consti-tutivos de qualquer processo lingufstico" Jakobson escreve:

"O destinador envia uma mensagem ao destinatdrio.Para ser operante, a mensagem requer antes umcontexto ao qual ela remete (e isto que cnamamostambem, em uma terminologia umpouco ambfgua, oltreferente"), contexto apreensfvel pelo destinatdrioe que e verbal ou suscetCvel de ser verbalizado; emseguida a mensagem requer um cddigo, comum, ouao menos em pane, ao destinador e ao destinatdrio(ou, em outros termos, ao codificador e ao decodifi-cador da mensagem). A mensagem requer, enfim,um contacto, um canal ffsico ou uma conexdo psi-cologica entre o destinador e o destinatdrio, con-tacto que permite estabelecer e manter a comunica-cao" (Jakobson,1963,pp.213-214).

O esquema torna-se entao:

3)B

com, respectivamente:

A: o "destinador",

B: o "destinatdrio",

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R: o "referente",

(L): o cddigo lingufstico comum a A e a B,-* : O "contacto" estabelecido entre A e B,D: a seqiiencia verbal emitida por A em diregao a B.

Observemos que, a prop6sito de "D", a teoria da informa-gao, subjacente e este esquema, leva a falar de mensagem comotransmissao de informagao: o que dissemos precedentemente nosfaz preferir aqui o termo discurso, que implica que nao se tratanecessariamente de uma transmissao de informagao entre A e Bmas, de modo mais geral, de um "efeito de sentidos" entre ospontos A e B.

Podemos a partir de agora enunciar os diferentes elementosestruturais das condigoes de produgao do discurso.

Pica bem claro, j5 de infcio, que os elementos A e B de-signam algo diferente da presenga ffsica de organismos humanosindividuais. Se o que dissemos antes faz sentido, resulta poisdele que A e B designam lugares determinados na estrutura deuma formagao social, lugares dos quais a sociologia pode des-crever o feixe de tragos objetivos caracterfsticos: assim, porexemplo, no interior da esfera da produgao economica, os luga-res do "patrao" (diretor, chefe da empresa etc.), do funcionariode repartigao, do contramestre, do operaVio, sao marcados porpropriedades diferenciais determineveis.

Nossa hipdtese 6 a de que esses lugares estao representa-dos nos processes discursivos em que sao colocados em jogo.Entretanto, seria ingenuo supor que o lugar como feixe de tra-gos objetivos funciona como tal no interior do processo discur-sivo; ele se encontra ai representado, isto 6, presente, mastransformado; em outros termos, o que funciona nos processesdiscursivos 6 uma se"rie de formagoes imaginarias que designamo lugar que A e B se atribuem cada um a si e ao outro, a ima-gem que eles se fazem de seu prdprio lugar e do lugar do outro.Se assim ocorre, existem nos mecanismos de qualquer formagaosocial regras de projegao, que estabelecem as relagoes entre assituafdes (objetivamente definfveis) e as posigoes (representa-goes dessas situacoes). Acrescentemos que & bastante provaVelque esta correspondSncia nao seja biunfvoca, de modo que dife-rengas de situagao podem corresponder a uma mesma posigao, e

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uma situagao pode ser representada como vdrias posigoes, e istonao ao acaso, mas segundo leis que apenas uma investigagao so-cioldgica poderd revelar.

O que podemos dizer 6 apenas que todo processo discursi-ve supoe a existencia dessas formagoes imagin^rias, que seraodesignadas aqui da seguinte maneira:

Expressaoque designa as formac.oes

imaginarias

A

IA(A)

IA(B)•

B

' I B ( B >

IB (A)

.

Significagaoda expressao

Imagem do lugar deA para o sujeitocolocado em A

Imagem do lugar deB para o sujeitocolocado em A

Imagem do lugar deB para o sujeitocolocado em B

Imagem do lugar deA para o sujeitocolocado em B

QuestSo implfcitacuja "resposta"

subentendea formagao imaginaVia

correspondenle

"Quem sou eu paraIhe falar assim?"

"Quem & ele paraque eu Ihefale assim?"

"Quem sou eu paraque ele me fale assim?"

"Quem 6 ele paraque me fale assim?"

Acabamos de esbogar a maneira pela qual a posigao dosprotagonistas do discurso interve"m a tftulo de condigoes de pro-dugao do discurso. Convem agora acrescentar que o "referente"(R no esquema acima, o "contexto", a "situagao" na qual apa-rece o discurso) pertdhce igualmente as condigoes de produgao.Sublinhemos mais uma vez que se trata de um objeto imagindrio(a saber, o ponto de vista do sujeito) e nao da realidade ffsica.

Colocaremos, pois:

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A

B

Expressoes quedesignamas formaijoesimagin&rias

IA(R)

W

Significant)da expressao

"Ponto de vista" de Asobre R

"Ponto de vista" de Bsobre R

Questao implfcitacuja "resposta"subentende a formagaoimaginaVia correspondente

"De que Ihe falo assim?"

1 ' De que ele me fala assim?' '

Enfim, indicamos mais acima15 que todo processo discur-sive supunha, por parte do emissor, uma antecipagdo das repre-sentafdes do receptor, sobre a qual se funda a estrate"gia do dis-

curso.Formaremos, pois, as expressoes:

B

para exprimir a maneira pela qual A representa para si as repre-sentac.6es de B, e reciprocamente, em urn momenta dado do dis-

curso.Como se trata, por hip<5tese, de antecipagoes, deve-se ob-

servar que esses valores precedem as eventuais "respostas" deB, vindo sancionar as decisoes antecipadoras de A: as antecipa-c.6es de A com respeito a B, por exemplo, devem ser pensadascomo derivadas de IA(A}, IA(B) e IA(R).

Simbolizaremos essa derivagao pelas expressoes seguintes,que, atualmente, nos servem apenas para explicitar nossas hip<5-teses sobre a natureza especffica da derivacao em cada caso:

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Vemos em cada caso que a antecipacao de B por A depen-de da "distancia" que A supoe entre A e B: encontram-se assimformalmente diferenciados os discursos em que se trata para oorador de transformar o ouvinte (tentativa de persuasao, porexemplo) e aqueles em que o orador e seu ouvinte se identifi-cam (fenomeno de cumplicidade cultural, "piscar de olhos" ma-nifestando acordo etc.).

Resulta do que precede que o estado n das condicoes deprodugao do discurso3):i:que A dirige a B a proptfsito de R — quenotaremos como I^.(A, B} - serd representado pelo seguintevetor16:

, B) =

Isto exige v^rias observagoes:

Em primeiro lugar, no que concerne a natureza dos ele-mentos que pertencem ao vetor acima, j4 foi indicado que setrata de representacoes imagindrias das diferentes instancias doprocessp discursive: tornaremos agora precisas nossas hip6tesesa este respeito acrescentando que as diversas formac6es resul-tam, elas mesmas, de processes discursivos anteriores (prove-nientes de outras condicoes de produgao) que deixaram de fun-cionar mas que deram nascimento a "tomadas de posicao" im-plfcitas que asseguram a possibilidade do processo discursiveem foco. Por oposi$ao a tese "fenomenolo'gica" que colocariaa apreensdo percepttva do referente, do outro e de si mesmocomo condicdo pre-discursiva do discurso, supomos que a per-cepgao € sempre atravessada pelo "ja ouvido" e o "ja" dito",atrav€s dos quais se constitui a substancia das formacoes imagi-

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narias enunciadas; os conceitos de pressuposigao e de implica-gao apresentados e utilizados por O.Ducrot colocam em jogoo mesmo gSnero de hipdtese^15]; a propdsito da situagao que, es-creve este autor, "nao pode mais ser concebida de forma sim-plesmente cronoldgica ou geogra"fica como uma localizagao es-pago-temporal", ele acrescenta: "a situagao de discurso, a qualremetem as pressuposigoes, comporta como parte integrantecertos conhecimentos que o sujeito falante empresta a seu ou-vinte. Ela concerne pois a imagem que se fazem uns dos outrosos participantes do dialogo".17

Paralelamente, e" claro que em um estado dado das condi-c.6es de produc.ao de um discurso, os elementos que constituemeste estado nao sao simplesmente justapostos mas mantem entresi relagoes suscetiveis de variar segundo a natureza dos ele-mentos colocados em jogo: parece possfvel adiantar que nem to-dos os elementos de /£ tern uma efica'cia necessariamenteigual, mas que, segundo um sistema de regras, a ser defmido,um dos elementos pode se tornar daminante no interior das con-digoes de um estado dado. T^ aparece assim como uma se-qiiencia ordenada, eventualmente do tipo vetorial, em que certostermos tdm a propriedade de determinar a natureza, o valor eo lugar dos outros termos.

Com efeito, seja por exemplo uma serie de discursos ca-racterizados pelo fato dnico de que se trate da "liberdade": con-forme se trate de um professor de filosofia que se dirige a seusalunos, de um diretor de prisao que comenta o regulamento parauso dos detentos, ou de um terapeuta que dirige a palavra a seupaciente, assistitnos a um deslocamento do elemento daminantenas condi§6es de produgao do discurso: seja A o emissor e B oreceptor; no discurso terapeutico, tal como € concebido pelapsiquiatria cla*ssica, 6 a imagem que o paciente faz de si mesmoque & o principal do discurso, ou seja, IB(B). Na relagao peda-g<5gica, a representacao que os alunos fazem daquilo que o pro-fessor Ihes designa 6 que domina o discurso, ou seja, IS(IA(R)).,em sua relagao com IA(R) . Enfim, no discurso do diretor de pri-sao, tudo esta" condicionado pela imagem que os detentos forma-rao do representante do regulamento atrave"s de seu discurso, ouseja, IB(A) , pois se trate, para uns, de saber "ate" onde da" pra ircom ele" e, para o outro, de Ihes tornar isto significative.

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Nesta perspectiva, o objeto de uma sociologia do discursoseria, pois, o de verificar a ligacao entre as relagoes de for$a(exteriores a situacao do discurso) e as relagoes de sentido quese manifestam nessa situagao, colocando sistematicamente emevidencia as variagdes de domindncia que acabamos de evocar.

2. Esbogo de uma representagao formal dos processes discursi-vos

Assim como anunciamos precedentemente,18 fazemos a hi-pdtese de que dadas as condic.6es de produgao de um discurso1)x no estado n, ou seja, F$ , € possfvel Ihe fazer corresponderum processo de produgao 3),, no estado n, processo quedesignaremos por Aa

x.

Mas vimos, por. outro lado, que um estado dado das con-digoes de produgao deveria ser compreendido como resultandode processes discursivos sedimentados:19 ve-se que 6 pois im-possfvel definir uma origem das condicoes de produgao, poisesta origem, a rigor impensdvel, suporia uma recorrencia infi-nita. Por outro lado, 6 possfvel interrogar sobre as transfonna-c,6es das condigoes de produ§ao a partir de um estado dado des-sas condigoes.

Trataremos, pois, sucessivamente de duas questoes:— a questao da correspond£ncia entre -T* e A"x,- a questao da transformacao F^ -in+l

As operagoes abstratas que vamos introduzir sobre os ele-mentos precedentemente definidos tomam possfvel, a nosso ver,o esbogo de uma descricao formal dos processos discursivos. Aformulagao que daremos aqui vai permanecer incompleta e pro-vis6ria; nossa finalidade presente 6 somente mostrar a possibili-dade geral de tal teoria, e situar o caso particular ao qual se re-duz a parte atual do nosso trabalho, em relaeao aos fendmenosmais complexes que estamos deixando, por enquanto, de lado.

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REGRA 1

O processo de produgao de um discurso CD* (no estado n)resulta da composigdo das condigoes de produgao de 2)* (noestado n) com urn sistema lingufstico^dado.

Convencionaremos notar esta operagao de composic.aopelo sfmbolo o, e escreveremos:

A interpretacao que se pode dar a essa regra 6 a seguin-te: 71" funciona como um princfpio de selecao-combinac.ao so-bre os elementos da lingua .Sfe constitui, a partir deles, o sistemade ligagoes semanticas que representa a matriz do discurso 3),,no estado n, isto 6, os domfnios semdnticos e as dependenciasentre esses domfnios. Acrescentemos que a efetuagao dessa ope-ragao apresenta, de fato, diversos nfveis hierarquizados: con-forme mostraremos em seguida,20 a constituisao do enunciado —frase elementar — nao responde as mesmas leis semanticas, retd-ricas e pragmdticas que a disposigao dos enunciados na sequ6n-cia discursiva.

A partir de premissas tedricas bastante diferentes das ex-postas aqui, o trabalho de L.Dolezel (1964) manifesta, pelos finsque se propde, uma convergencia interessante de se notar:

' 'Ao utilizar as unidades elementares do codigo e asregras do codigo, escreve ele, a fonte da informagaolingufstica — o codificador — produz mensagens con-cretas — os discursos — que sao uma representagdodos conjuntos de acontecimentos extralingufstica eque transmitem a informagao desses acontecimen-tos".

Nossas considera$6es tedricas anteriores devem advertir oleitor sobre as divergdncias que registramos aqui: os conceitosde informagao^ de mensagem e de acontecimento extralingufsti-co, em particular, derivam de pressupostos empiristas cujas difi-culdades acreditamos ter assinalado, em tempo dtil. Entretanto,

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o empreendimento de Dolezel permanece, sob muitos pontos devista, esclarecedor para nossos propdsitos; com efeito ele pros-segue:

* 'A unidade fundamental que se obtem como resulta-do do processo de codificagao 4 a frase; uma fraseou uma sequencia de frases constitui a mensagemlingufstica, o discurso {...} 4 preciso estabelecer eespecificar o conjunto de regras cuja aplicagdo per-mite alinhar, durante o processo de codificagdo, aspalavras em frases e as frases em mensagem" (ibid.,p.52).

Acrescentemos que o autor citado emite explicitamente ahipdtese do carrier estaciondrio dos "parametros da Ifngua" queretomamos por nossa conta.

REGRA2

Todo processo de produgao A'y, em composigdo com umestado determinado n das condigoes de produgao de um discur-so 3)x induz uma transformagdo desse estado.

Convencionaremos designar esta composic,ao pelo sfm-bolo e escreveremos:

Esta regra coloca em evidencia o efeito de transformasaoque induz a presence de um processo particular no campo dis-cursivo sobre o estado das condicoes de produc.ao: & claro, jd deinfcio, que o discurso que A dirige a B modifica o estado de Bna medida em que B pode comparer as "antecipac.6es" que fazde A no discurso de A.

Mas, por outro lado, destacamos21 que todo orador era umouvinte virtual de seu proprio discurso, o que implica que o quee" dito por A transforma igualmente as condicoes de produgao

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prdprias a A, permitindo-lhe "continuar" seu discurso; as "per-turbagoes do comportamento narrativo", caracterizadas pelaperda do fio do relate, o incessante retorno ao infcio etc. pode-riam ser interpretados como uma perturbagao desse mecanismo.

Essas duas regras pedem alguns comentaiios. Em primeirolugar, ve-se que a primeira regra corresponde a emissao da se-qiiencia discursiva, ao passo que a segunda diz respeito a suarecepcdo, o que significa que elas desempenham, respectiva-mente, um papel comparaVel ao que 6 chamado frequentementede codificacdo e decodificacdo. Deve-se, entretanto, observarque a oposicao linguagem/realidade, que serve frequentementede fundamento a esses dois conceitos, nao esta* operando aqui eque a "simetria" entre a codificagao e a decodificagao, muitasvezes evocada como uma necessidade, desaparece igualmente,

Em segundo lugar, a segunda regra ("regra da decodifica-cao") comporta, como acabamos de ver, duas modalidades defuncionamento, aos quais propomos chamar decodificagao ex-terna e decodificagao interna: ve-se, pois, que toda situagao dediscurso comporta necessariamente decodificagoes internas masque a existencia de decodiflcacoes externas esta" ligada a uma"resposta" do destinatario dirigida ao destinador inicial, res-posta que pode muito bem estar ausente de certas situagoes dediscurso — por exemplo a redagao de uma carta, um discurso ra-diodifundido etc.

Este ponto explica o caso particular que estamos opondoao caso geral. Seja, com efeito, uma situagao de discurso entreA e B, tal que cada um "responda" ao outro; ela pode ser repre-sentada da maneira seguinte:

A Br%A, B) ri(B, A)

(E)

(DI)

(E)

(Dl)

rl ȣ

rt*

CE)

(DE)

(E)

(Dl)

(DE)

(E)

90

(E): Codificacao,

(DE): Decodificacao externa,

(DI): Decodificagao interna.

Vd-se que, a cada "passo", o discurso de um dos protago-nistas 6 modificado pelo do outro.

Consideremos, ao contra"rio, o tipo de discurso em que odestinador nao recebe nenhuma resposta por parte do destinata-rio (nenhuma resposta, isto 6, nem discurso nem gesto simb<51i-co).

O esquema torna-se entao o seguinte:

(E)

(DI) TJ * Al

<E) n o j?(Di)

Estamos em presenca de um caso particularmente simples,pois, assim como o vemos acima, a s^rie dos estados Fl

x po-de ser deduzida de /"j, e o discurso 2)x assimilado & se-qiiencia.

Nessas condisoes, falaremos de Px (integrando A', rl..., r?como condicao de produgao do discurso 2), (integran-doO)*,a)^...3);), condicao a qual corresponde o processo de pro-ducao Ax (integrando A\, A*,..., d$).

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Ill

Trataremos aqui unicamente desse caso particular do dis-curso-monologo, que podemos identificar na conduc.ao do rela-to, do testemunho, da prece, da demonstracao pelo exemplo, ca-sos em que, no mihimo, o destinatario sd se encontra presente nasituagao pela imagem que o destinador faz dele. A anaiise dassituagoes de dialogo, com a presenc.a eventual de um persona-gem "terceiro" no processo, necessita que se considerem rela-goes mais complexas (vaiias condicoes de produ$ao em intera-530), o que implica em novas pesquisas.

No momenta, o problems ao qual propomos uma soluc,ao6, pois, o seguinte:

"Dado um estado definido de condigoes de produgao deum discurso-mon<51ogo 3)^ (seja 7^ ) e um conjunto finite derealizac.6es discursivas empfricas de 3) (seja^,- a>,j 2>™)22

representativas desse estado, determinar a estrutura do processode produgao ( Ax ) que corresponde a Fx , isto 6, o conjuntodos domfnios semanticos colocados em jogo em 3),, , bem co-mo as relacoes de dependencia existente entre esses domfnios."

Supomos que 6 possfvel definir empiricamente um con-junto de emissores identificaVeis quanto ao estado das condicoesde producao de 3)x (e nao, bem entendido, para qualquer discur-so em geral).

Como foi indicado anteriormente,23 a constituigao desseconjunto se baseia ao mesmo tempo no controle das varidveissociologicas objetivas caracten'sticas do "lugar" do destinador eno controle das formacoes imagindrias proprias a situacao de3)x, das quais um jogo pr6vio de questoes indiretas terd por fun-c.ao verificar o conteiido.

C) Por uma andlise do processo de produgao do discurso

"A lingiifstica estrutural cldssica, escreve T.Todorov(1966, p.5)tI6l, apresentava assim, de forma geral, seu procedi-mento: existe um corpus de fatos da Ifngua; € precise encontrarnocoes e relac,6es que Ihe permitam uma descrigao nao-contra-

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ditdria, exaustiva e simples. A teoria da gramdtica gerativa in-verte a rela^ao; ela se pergunta: que regras lingufsticas saoconsciente ou inconscientemente aplicadas para produzir frasescorretas de uma Ifngua dada? A analise cede seu lugar a sfntese;maneja-se, pois, um sistema de regras ao nivel de um sistema deelementos."

Suponhamos que os resultados dessa revolugao copemica-na, que organiza a Ifngua em torao do "sujeito falante", se-jam diretamente aplic^veis a teoria do discurso: isso significariaque o objetivo primordial 6 o de dar-se um conjunto de regrasque permitam engendrar um discurso, e significaria que pode-mos, sem inconveniente, nos dispensar de analisar as efeitos desuperffcie da sequencia discursiva, o que seria uma preocupagaoptolomaica superada. Ora, como jd vimos, nossa hipfitese 6 a deque essa transferencia de resultados entre o "sujeito falante"(neutralizado pela relagao com as condigoes de produgao dodiscurso) e um hipot6tico "sujeito do discurso" 6 ilfcita: o quedissemos precedentemente supoe, com efeito, o fato de que naohd sujeito psicoldgico universal que sustente o processo de pro-dugao de todos os discursos possfveis, no sentido de que o su-jeito representado por uma gramatica gerativa 6 apto a engendrartodas as frases gramaticalmente corretas de uma Ifngua. Em ou-tros termos, pensamos que a continuidade metodologica que su-pomos as vezes aqui 6 atualmente suspeita, na medida em queela implica, para passar do sujeito da lingua ao sujeito do dis-curso, a existdncia de regras seletivas que funcionam no nfveldo "vocabulario terminal", as quais (regras) remetem de fato auma andlise dos elementos morfemfiticos em tracos semdnticos,cujo cardter altamente problemdtico em geral concordamos emreconhecer. Isso significa, em definitive, que nao podemos aquievitar o desvio atravSs de uma andlise que, no entanto, fica, namaioria das vezes, implfcita e nao sistematica: ela repousa comefeito geralmente sobre uma concepgao atomfstica das signifi-cagdes, de forma que os lexemas ou os morfemas sao arbitraria-mente analisados como unidades decomponfveis em "semas"que existem por si,24 e as propriedades combinatdrias sao dedu-zidas a partir de regras de compatibilidade inter-semas igual-mente colocadas de modo arbitrario.25 Por outro lado pareceque, neste dommio, o princfpio "nao elementos, mas sim rela-

e regras" estd singularmente

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Nessas condicoes, e posto que o desvio por uma andliseparece, atualmente, inevitaVel, consideramos que 6 preferfvelcolocar aqui os seus princfpios: diremos, pois, que a se'rie dassuperficies discursivas 5),,,,..., 3) constitui um vestfgio doprocesso de producao Ax do discurso 3) , isto 6, da "estruturaprofunda" comum a SDMj, ...,2)jn . Nosso empreendimento con-siste, pois, em remontar desses "efeitos de superffcie" a estrutu-ra invisfvel que os determina: e" s6 depois que uma teoria geraldos processes de produgao discursivos torna-se realizavel, en-quanto teoria da varia$do regulada das "estruturas profun-das".

1. Efeito metafdrico

Consideremos a seguinte questao:

Sejam dois termos x e y, pertencentes a uma mesma cate-goria gramaticaJ em uma Ifngua dada $?. Existe pelo menos umdiscurso no interior do qual x e y possam ser substitufdos umpelo outro sem mudar a interpretacao desse discurso?

Consideremos S(;r,;y) a operac.ao de substituigao que res-peita a restrigao indicada, e 3)n uma sequencia de termos engen-drada por An na Ifngua Jzf.correspondente a um estado Pa

no conjunto dos estados possfveis.

Tr6s casos sao logicamente possfveis, a saber:

x e y nunca sao substitufveis um pelo outro.

x e y sao substitufveis um pelo outro, as vezes, masnao sempre.

(3) V2>n,S(;c,.v)x e y sao sempre substitufveis um pelo outro.

Consideremos os casos (2) e (3), em que a substituigao €possfvel:

(2) representa o caso em que x e y sao substitufveis emfungao de um contexto dado.

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Por exemplo: x = brilhante

y = notavel

x e y sao substitufveis em certos contextos.

Por exemplo: este matema'tico € (xfy)

ou entao: a demonstra^ao desse matematico € (x/y).

Mas existem outros contextos para os quais x e y nao saosubstitufveis.

Por exemplo: a luz brilhante do farol o cegou;

ou entao: esta curva comporta um ponto assinalavel.

(3) representa, ao contrario, o caso em que x e y sao subs-titufveis, qualquer que seja o contexto, propomos como exem-plo:

x = refreary = reprimir

para prop<5sito do qual a exist£ncia de um contexto que impec.a asubstituigao parega problemdtica. Observemos no entanto que,para ser correta, a decisao de classiflcar o par refrear/reprimirem (3) deveria se apoiar em um exame de todos os contextosdiscursivos possfveis para uma Ifngua dada. Em outras palavras,se o par x/y pertence a (2), 6 possfvel sabe-lo em um tempo fi-nite, o que nao € evidentemente o caso para (3).

Designaremos a possibilidade de substituicao (2) pelo ter-mo sinonfmia local ou contextual, por oposicao & possibilidade(3) a qual chamaremos sinonfrnia nao-contextual.

Vemos que, em presenca de um conjunto finite de discur-sos correspondente a um mesmo Tn , devemos, por prudSncia,considerar que todas as sinonfmias sao contextuais, ate" se verifi-car que, eventualmente, algumas delas sao conservadas ao longode todas as variances estudadas do T : a sinonfmia nao-con-textual apareceria assim .como um limite para o qual tende umasinonfmia contextual verificada em condigoes de producao cadavez mais numerosas, o que remete & questao das interseccoessemanticas nao-vazias. De nossa parte, formularemos a hipdtesede que as sinonfmias contextuais sao a regra, e que as sinonf-

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mias nao-contextuais sao excepcionais, se nos referimos a teoriasaussuriana do valor:

' 'No interior de wna mesma Ifngua, todas as pala-vras que exprimem ideias vizirihas se limitam reci-procamente: sindnimos como recear, temer, ter medos6 tern valor prdprio pela oposigao; se recear naoexistisse, todo seu conteiido iria para seus concor-rentes" (Saussure, op. cit., p.135).

Notemos que, de fato, 6 possfvel considerar sinonfmiascontextuais entre dois grupos de termos ou expressoes que pro-duzem o mesmo efeito de sentido em relagao a um contexto da-do.^!

Chamaremos efeito metaforico o fenomeno semantico pro-duzido por uma substituicao contextual}19] para lembrar que es-se "deslizamento de sentido" entre x e y 6 constitutive do "sen-tido" designado por x e y; esse efeito € caracterfstico dos siste-mas linguTsticos "naturals", por oposigao aos c6digos e as "Ifn-guas artificiais", em que o sentido 6 fixado em relacao a umametah'ngua "natural": em outros termos, um sistema "natural"nao comporta uma metalfngua a partir da qual seus termos pode-riam se definir: ele 6 por si mesmo sua prtfpria metalfngua.

Ve-se, entao, que € fundamentalmente necessaiio dispor deuma se"rie de sequencias representativas de um -T* dado parapoder colocar em evidencia os pontos de ancoragem sem&nticaque se definem pelo recorte das metaToras.

Expliquemo-nos, com respeito a esse ponto, por um exem-plo cujo carater empiricamente inveross&nil nao deve mascarar asignificacao tedrica:

Seja um estado rx e um corpus Gx de discursos estrita-mente representativos desse estado, Qx — 2)^,, y)x2,..., 2),n.

Designemos por uma letra cada uma das palavras quecompoem os discursos considerados (a cada palavra diferentecorresponde uma letra diferente e reciprocamente).

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Sejam as sequencias desses n discursos:

d b h ....

d b h ....

b h ....

b h ....

0 S(

3D,

k dImk

k m

k m

k m

k m

Vemos que cada discurso f)xi 6 tido como diferente doprecedente D^J-D por wna s6 substituigao, sendo que o con-junto do contexto € a cada vez conservado. Temos, pois, umaslrie de efeitos metafdricos (a/j, g/k, d/m, etc.) cujo efeito 6manter uma ancoragem semantica atrav^s de uma variacao dasuperficie do texto, pois, no limite, S)xn nao conte'm mais ne-nhum dos termos que pertencem a 2)^ , e Ihe 6, no entanto, pordefinigao, semanticamente equivalente.

Esse exemplo, puramente fictfcio, e alia"s totalmente im-possfvel, tern por rfnica funcao colocar em evidencia o que en-tendemos por conservagao da invariante atravds da variagaomorfem^tica: o mesmo sistema de representagoes se reinscreveatraves das variantes que o repetem progressivamente; 6 esta re-peticao do iddntico atraves das formas necessariamente diversasque caracteriza, a nossos olhos, o mecanismo de um processo deproducao; a "estrutura profunda" aparece assim como um tecidode elementos solidarios, instalando-se e assegurando-se a simesma atraves de efeitos metafiSricos que permitem gerar umaseiie quase infinita de "superffcies" pela sua restrigao a limitesde funcionamento a!6m dos quais a "estrutura profunda" explo-

120]

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Nessas condigoes, o confronto recfproco das formas varia-das da superffcie permite, ao multiplicar a presence do discursopor ele mesmo, manifestar a estrutura invariante do processo deprodugao para um estado dado, estrutura esta cujas variagoessao o sintoma.

Vamos agora expor de que modo esta confrontac.ao podeser efetivamente realizada.

2. Da superffcie discursiva a estrutura do processo de producao

Consideremos o exemplo tedrico que acaba de ser exposto:no's o utilizamos simplesmente para representar o efeito metafo-rico tal como o definimos, indicando que a realizagao de talexemplo era impossi'vel. Agora 6 importante precisar as determi-nacoes que tinham sido provisoriamente deixadas de lado nestarepresentac.ao abstrata.

Colocaremos, assim, sucessivamente em evidencia:

— A impossibilidade concrete da hipdtese-limite que con-cerne a existencia de dots discursos que pertencem amesma estrutura de pvodugdo e que nao possuem ne-rthum termo em comum.

— As consequencias que resultam desse primeiro ponto,concernente a noc.ao de contexto, e a elaborac.ao te<5ricade que esta nocao necessita.

— A e^xiste'ncia de um efeito de dominancia no interior daprodugao de uma seqiiencia discursiva dada, cujo resul-tado € o de recortar zonas de pertinSncia no interior dasequencia, em funcao de um Ax dado.

No que se refere ao primeiro ponto, 6 claro que a hip6"teseproposta J3 6 quase impossi'vel de ser sustentada a propdsito dedots discursos quaisquer, uma vez que existe, na Imgua, umpequeno ndmero de palavras-operadores muito frequentes, cujouso nao estd semanticamente ligado a um contexto dado. Para-lelamente, isto € mais fundamental para nosso propdsito, pareceque as leis semSntico-retdricas que regem os deslizamentos desentido em um Ax impoem certos bloqueios de lugar a lugar,de forma que certas metaToras s6 existem no discurso em estado

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"adormecido", caso em que a substituic,ao que d& um sentido aotermo empregado nao funciona no interior do discurso (assimpor exemplo, o "nascer do sol" representa uma metafora "a-dormecida" na medida em que o estado atual das leis de substi-tuicao nao autoriza a forma comutaVel com "nascer").27 Nestamedida, podemos, pois, supor, atrav^s da s^rie de seqii£nciasdiscursivas a exist^ncia de obstaculos manifestados pela repeti-530 de certos termos em torno dos quais se efetuam os desloca-mentos metafdricos.

Isso significa dizer que nao se passa necessariamente deuma seqiidncia discursiva a outra apenas por uma substituigao,mas que as duas sequencias estao, em geral, ligadas uma & outrapor uma se"rie de efeitos metafdricos. Mas se admitimos que v5-rios efeitos metafdricos podem funcionar entre tal discurso dadoe o resto do corpus, isto significa, ao mesmo tempo, que o con-texto de uma substituicao nao 6 necessariamente o discurso nasua totalidade, o que nos leva a colocar o problema da segmen-tac.30 dos contextos no interior da sequSncia discursiva. No arti-go ja" citado, Jakobson escreve:

* Todo signo £ composto de signos constituintes e/ouaparece em combinagao com outros signos. Isto sig-nifica que toda unidade lingufstica serve ao mesmotempo de contexto a unidades mais simples e/ou en-contra seu prdprio contexto em uma unidade lin-gufstica mais complexa. De onde se segue que todareunido efetiva de unidades lingufsticas as Hga auma unidade superior" (Jakobson, 1963, p.48).

E ele acrescenta:

"O destinatario percebe que o enunciado dado(mensagem) e" uma combinagdo de partes constituin-tes (frases, palavras, fonemas) selecionadas no re-pertdrio de todas as partes constituintes possfveis(cddigo)" (ibid.).

Se tomamos esse texto ao pe" da letra, poderfanios supordo fonema ao discurso estamos em presen?a de signos lin-

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gufsticos cuja dimensao aumenta mas que permanecem ligados &mesma regra de combinagdo. Se assim fosse, seria impossfveldefinir o contexto de uma substituicdo, por nao conhecermos adimensao do signo na qual convem parar.f21]

Esta dificuldade 6 superada com a condigao de se reconhe-cer um estatuto bem particular para a frase: o da fronteira quesepara a lingufstica da teoria do discurso. Benveniste fornecesobre este ponto precisoes importantes:

' 'Com a frase, urn limiie £ transposto, n6s entramosem um novo domfnio... N6s podemos segmentar afrase, n6s nao podemos empregd-la para integrar...Pelo fato de que a frase nao constitui uma classe deunidades distintivas, que seriam membros virtuais deunidades superiores, como o sdo os fonemas ou osmorfemas, ela se distingue fundamentabnente dasoutras unidades lingittsticas, O fundamento destadiferenga € que a frase contem signos, mas nao e" elamesma um signo" (Benveniste, 1966, p.128).

Empregaremos por nossa conta o termo enunciado paradistinguir a frase elementar enquanto objeto u*nico sobre o qualopera o mecanismo do discurso. Resulta do que precede que naohd relacoes de combinagao/substituicao entre os enunciados quepermita conslruir a partir deles o discurso como unidade supe-rior, pois o enunciado jde da ordem do discurso:

"A frase pertence ao discurso, escreve ainda Benve-niste; I por isto mesmo que a podemos definir: a fra-se £ a unidade do discurso" (Benveniste, ibid.,p.130).

Em outros termos, uma substituigao tern sempre por con-texto o enunciado, considerado como combinasao-substituic,aode lexemas, ao passo que nao podemos dizer que um enunciadotenha um contexto, no mesmo sentido da palavra, pois os enun-ciados podem ser ligados por uma relacdo de dependencia jun-cional, o que significa que a contigiiidade sintagmStica entre oselementos - princfpio fundamental da analise lingufstica do sig-no em seus diversos nfveis — cede o passo a ligagdo Juncional

100

l&gico-retdrica, que nao 6 mais restrita a conexidade: dois enun-ciados podem estar em relagao funcional atrave's de um espacodiscursivo neutro face a esta relacao.

Vemos, entao, que nosso problema se apresenta como sen-do o de saber por em relagao as propriedades internas dos enun-ciados (como combinagao de signos) e suas propriedades exter-nas (como elementos funcionais no discurso), a fim de determi-nar os casos em que a interpretacdo semdntica — no sentido quea 16gica da" a esta expressao — € identica para dois enunciadosdados. Estabeleceremos que, para que haja efeito metafdricoentre dois termos x e y pertencentes a dois enunciados Ea e E^,eles mesmos respectivamente situados em dois discursos Dxj eDx: representativos de um mesmo Ax, 6 precise que Ea eEjj tenham uma interpretacdo semdntica identica, o que notare-mos como

isto €:

a) que os elementos de Ea e Ej, fornecam um contextocomum de substituigao para x e y, condicao a que chamaremos"condigao de proximidade paradigm^tica" entre Ea e E^.

b) que os enunciados Ea e £5 tenham uma posigdo fun-cional identica frente aos dois enunciados Ec e E(j pertencentesrespectivamente a Dx; e Dx; e tendo eles mesmos uma interpre-tagao semantica identica ou seja

28

Ilustremos o que precede com um exemplo. Sejam os se-guintes enunciados:

EI = E*i = o xerife avangava prudentemente em diregaoao saloon

£2 = E*2 = a tempestade ribombava_-, . *£3 = um tiro atravessou a noite

£4 = um clarao atravessou a noite

£5 = um raio atravessou a noiteN.T.:Era francos temos "coup de feu" o que pemrite a aproxima§ao entre "eclair

(clarao e raio) e "foudre" (raio).

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£5 = E'g = a bala o rogou£7 = £'7 = a granja estava em chamas— Sejam os operadores inter-enunciados seguintes:

tpj = "de repente" (relacao temporal entre um enunciado-estado e um enunciado-acontecimento).

<P2 = " : " (relacao explicativa).— Sejam dois processes de produc.ao -T, e F7 tais que

<f2

Coloquemos enfim as equivale'ncias de interpretagao semanticaseguintes, das quais se supoe que tenham sido obtidas por umafase anterior da analise:

3(£6) -

102

Vemos, inicialmente, que E3, E4, E5 preenchem uns emrela^ao aos outros a "condigao de proximidade paradigmatica"pois os termos: '

um tiro

um clarao

o raiosao substitufveis no contexto

"atravessou a noite".

Por outro lado, £3 e £4 tern uma interpretac.ao semanticaidentica em Cx, em razao de 3 (E^). Resulta daf o efeito meta-fdrico M emCx

um tiro

um clarao •

Da mesma maneira, £4 e £5 tern uma interpretacao seman-tica identica Cy, em razao de 3 [^2]= 3 [E^]. Resulta daf oefeito metafo'rico M2 em Cy:

um clarao

o raio

Deve-se notar que as relagoes de interpretagao semanticasnao sao transitivas porque

= 3(£4)nao implicam 3(-E3) =

Com efeito, a aplica§ao das regras de interpreta§ao enun-ciadas acima coloca em evidSncia que 3(E3) ^ 3(£5), pois a"condigao de proximidade paradigmatica" entre Eg e £5 esta"preenchida mas nao a condicao de identidade das posi^oes fun-cionais. Com efeito, 3(£t) 3(£^} e 3(£6) =£ 3(£J).

Resta enfim expor o que entendemos por e^iw de dami-f&ncia no ulterior da produgao de uma sequSncia discursiva da-da; atg aqui, n6s raclocinamos nos seguintes tennos: "Dado umestado Fr, de que modo determinar Ax pela andlise de umconjunto de discursos que o representam?". Jsto suporia que ca-

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rda elemento da superffcie discursiva remete necessariamente a^i , com uma necessidade igual, e logo que todos os discursos

correspondentes ao mesmo estado de produgao sao estritamenteparalelos, isto e", absolutamente isomorfos, considerados osefeitos metafdricos que os diferenciam.

Ora, af esta", como vimos, uma eventualidade altamenteimprovaVel: o paralelismo € paulatinamente rompido pelas dis-torgoes "individuals" do discurso, que parece assim "escapar*'ao processo de produgao, por uma "criagao infinita" uma "va-riedade sem limites" que seria o prdprio da fala.29 t22^

Pensamos que 6 possfvel dar conta deste fendmeno semabandonar nossos pressupostos tedricos anteriores, baseados nadeterminacdo do processo discursive pelas suas condi$6es deproduc.ao e na recusa da noc.ao ideoldgica da "criac.ao infinita".Introduziremos nesse ponto o conceito de dominancia, especifi-cando que toda situagao de produc.ao do discurso pode ser ca-racterizada pelo processo de produgao dominante Ax que e1ainduz, mas que as sequ£ncias discursivas concretas que mani-festam ^x resultam necessariamente da interac.ao do processodominante com os processes secunddrios, cujo encavalamentopraduz toda a aparencia do aleat6rio, do infinitamente imprevi-sfvel, face a ignorancia total em que ainda estamos atualmenteno que conceme aos mecanismos desta interagao.

Estamos, agora, em condic.ao de formular mais correta-mente nosso objetivo atual, dizendo: dado um estado dominantedas conduces de produgao do discurso, a ele corresponde umprocesso de produgao dominante que se pode colocar em evi-dencia pela confrontagao das diferentes superffcies discursivasempfricas provenientes desse mesmo estado dominante: os pon-tos de recorte definidos pelos efeitos metafdricos permitirao as-sim extrair os domfnios semdnticos determinados pelo processodominante, e as refaffdes de dependencia Idgico-retorica impli-cadas entre esses domfnios, sendo que o resto do material dis-cursivo empiricamente encontrado fica fora do limite da zona depertinencia do processo dominante.

Isso supoe, vamos repetir, que um discurso nao apresenta,na sua materialidade textual, uma unidade orgdnica em um so"nfvel que se poderia colocar em evidfincia a partir do prdprio

104

discurso, mas que toda forma discursiva particular remete neces-sariamente a se"rie de formas possfveis, e que essas rernissoes dasuperffcie de cada discurso as superffcies possfveis que Ihe sao(em parte) justapostas na operagao de analise, constituem justa-mente os sintomas pertinentes do processo de producjio domi-nante que rege o discurso submetido a analise.

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PAKTEII

Descricao de um dispositive de andlise automdticado processo discursive

I. Regras para o registro codificado da superffcie discursiva

Vamos supor, a partir de agora, que as condigoes que defi-nimos anteriormente estejam preenchidas, isto 6, que a se"rie dos2) submetida ao registro e a analise corresponde exatamente ummesmo estado dominante das condigoes de produQao, induzindoum processo de produgao 4«-

Designaremos, pois, por 3)xl, ^)x2, ..., 3>*n os n discursosrecolhidos empiricamente nas condigoes precedentemente defi-nidas, considerando que sao representatives do conjunto de dis-cursos possfveis associado as mesmas condiQoes: mostraremosmais adiante que existem meios formais que permitem decidir,para um valor dado de n, se o corpus assim constitufdo € sufi-cientemente sistemdtico, ou nao, para ser representative da es-trutura do Ax procurado. Digamos simplesmente, no momento,que temos como defmido um corpus de dimensao n tal que aprobabilidade de poder constituir, a partir dos elementos dessecorpus, uma superffcie "S)xp, exterior ao corpus e pertencente aoconjunto dos discursos possfveis representatives de Ax sejasuperior a um valor previamente fixado.

Vemos assim que o problema consiste em analisar toda su-perffcie 1)xi dada em elementos mfnimos Hgados entre si segun-do as leis prdprias a AK.

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O que foi exposto no capftulo precedente supoe que defi-nimos dois nfveis de analise:

1. O nfvel de andlise dos enunciados no 2), ligados entresi por relagoes funcionais caracteristicas do Ax considerado;

2. O nfvel de analise dos lexemas no enunciado, ligadosentre si por leis de combinagao/comutagao caracterfsticas doAx considerado.

Ora, 6 claro que esta dupla analise s6 pode funcionar sob acondic.ao de uma dupla hipdtese sobre o objeto lingutstico emgeral, qualquer que seja o ^x considerado, a saber:

1. toda seqiiencia lingiifstica € constitufda por um con-junto estruturado de enunciados em relagao, discernfveis a partirdas leis lingufsticas gerais;

2. todo enunciado lingiifstico 6 composto de lexemas quemantem entre si relagoes morfossintdticas universalmente neces-saYias que derivam de uma teoria gramatical do enunciado.

Tudo se passa pois como se tive"ssemos de colocar primei-ramente propriedades invariantes em relagao a variedade dosprocesses de produgao, propriedades que podem servir de qua-dro de referencia as variagoes que queremos por em evidSncia.Falaremos pois, antes de tudo, das conseqiiencias que a existen-cia desta invariante acarreta com respeito ao registro da superff-cie discursiva, considerado como etapa preparatdria indispensa-vel a analise de discurso.

Nao pretendemos fornecer aqui muito mais do que um es-bogo desse processo de registro, sabendo bem que estamos dei-xando ao lingiiista um grande ndmero de decisoes que nao po-demos fazer em seu lugar. E somente a diregdo geral que que-remos indicar e defender aqui na medida em que ela condicionaa segunda fase da analise, que 6, do ponto de vista do estudo doprocesso discursive, o verdadeiro motivo.

Lista de postulados de hip6teses concernentes ao sistema de de-pendencias de um discurso.^

Chamamos discurso uma seqiiencia lingufstica limitada pordois brancos semdnticos e que corresponde a condigoes de pro-dugao discursivas definidas.

108

Chamamos frases a parte de um discurso limitada por duasmarcas de parada consecutivas — ou por um branco e uma mar-ca de parada, no caso da primeira frase.

Chamamos proposicdo a parte de uma frase que comportaapenas um verbo no modo pessoal.

Chamamos proposicdo reduzida uma proposic.ao que naopode ser dissociada em duas ou mais proposicoes por uma trans-formac.ao de tipo Tj (1).

Chamamos enunciado uma proposigao tal que nao possa-mos mais obter dela enunciados que Ihe sejam adjuntos, por umadas transformagoes do tipo T2-31

Todo enunciado pode ser registrado sob a forma de umconjunto ordenado, de dimensdo fixa, cujos elementos sao sig-nos lingufsticos que pertencem a classes morfossinta'ticas defini-das.32

Existe um enunciado vazio E0 que representa um brancosemslntico tal que

sendo Ej, o enunciado inicial do discurso e i£ o operadorde abertura do discurso.

8Dado um enunciado qualquer E;, diferente de E^, existe ao

menos um enunciado Ej tal que

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rEj ^ E; € uma relagao binaYia na qual E; estd diretamentedominado por Ej por meio do operador _i. Inversamente, umenunciado qualquer E; pode dominar m enunciados, com m &0.

A relagao de dependenciaE: pode marcar:• a adjungao de E; a Ej, seja

entre dois enunciados Ej e

E-.

F _^L E-*-> —*- ^j

• a coordenagao ou a subordinagdoy indicada

— seja pela marca de parada, com ou sem sintagma quequalifique a marca, com ou sem efeito de andfora;

— seja por um termo ou sintagma que subordina.Convencionaremos, entao, escrever a relacao sob a forma

Observagdo'. O registro da relacao de dependencia se baseia emfndices presentes na superffcie discursiva, em diferentes nfveis(discurso, frase e proposigao): uma classificagao funcional des-ses fndices deve permitir posteriormente a automatizacao do re-gistro da dependencia.

10A estrutura de um discurso pode ser representada por uma

"pilha" de relacoes binarias da forma

com

6 sempre possfvel dar ao registro a forma 83 (que comportaconcatenagoes, expansoes e saturacoes).

110

11O conjunto nao-ordenado dos elementos (relagoes binaiias)

de uma pilha de tipo S3 (seja $ esse conjunto) contem suficien-tes informacoes para reconstituir a pilha inicial, de forma que sepode considerar o conjunto $ como representative da estruturado discurso registrado.

12Toda estrutura S3 pode ser transcrita por uma superposi-

gao de estruturas Sl> isto 6, de concatenates puras.

O registro da estrutura do enunciado

At£ agora tratamos do registro das dependencias funcio-nais prdprias a uma estrutura discursiva dada, mostrando quepodfamos representd-las por um conjunto de relacoes binaiias daforma Ej ^n Ej,82, (pl» —» <Pn)» 'do: ficam agora por determinar as modalidades de registro desteconteudo.

A estrutura elementar do enunciado j£ foi exposta,33 ouseja:

onde ¥n 6 um operador de dependSncia (Bj oue Ei enunciados que tem um conteudo defini-

* +SN2

PI + SN;p2 + SN3

Tornemos precise este esquema: em um "Ensaio de classificagaodas categorias verbais",34 Jakobson escreve: "Tendo em vista aclassificacao das categorias verbais, devemos observar duas dis-tin56es de base:

1. 6 precise distinguir entre a enunciagao ela mesma (a) eseu objeto, a mate*ria enunciada (e).

Ill

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2. E precise distinguir em seguida entre o ato ou o proces-so ele mesmo (C) e um dos seus protagonistas (T) qualquer, "a-gente" ou "paciente". Conseqiientemente, quatro rubricas de-vem ser distinguidas:

— um acontecimento contado (narrated event) ou processodo enunciado (Ce),

- um ato de discurso ou processo de enunciagao (Ca),— um protagonista do processo do enunciado (T6),

— um protagonista do processo de enunciagao (Ta); desti-nador ou destinatario."

Os protagonistas do processo de enuncia$ao correspondema A e B na estrutura das condigoes de producao Fx ,

35 e es-tao, enquanto tais, fora do presente esquema, ainda que possamaf estar representados (isto e" importante frente as questoes deaspecto e de modalidade): de qualquer maneira, supoe-se que ascondicoes de enunciagao sejam, como se sabe, fixas.

O protagonista "agente" do enunciado € representado noesquema por SNj ou sintagma nominal sujeito, ConsideraremosSNj um constituinte indispensaVel de qualquer enunciado — ocaso dos enunciados "meteoroldgicos" (cita-se sempre "chove","neva" etc.) € marginal demais para por esta regra em ques-tao.36

O protagonista "paciente" do enunciado est£ representadopor SN2, SN*2, SN3 e 0: em outros termos, o sintagma nominalobjeto pode tomar vaYias formas, af incluindo-se aquela da au-sencia pura e simples. Acrescentaremos, por outro lado, queo adjetivo como atributo do sujeito pode ser registrado no lugarde SN2, o que implica que, se toda forma suscetfvel de ser ins-crita no lugar SNj pode tambem se-lo no lugar de SN2, SN'2,SN3, o inverse nao 6 verdadeiro.

SV representa, enfim, o "processo do enunciado", do qua!diremos que ele pode sempre ser restabelecido quando nao esti-ver explicitamente presente: em particular, a aposigao sera" sis-tematicamente transformada em predicagao e registrada comotal:

112

| Waterloo, morna plam'cieWaterloo + & ••'- * + planfcieplanicie + e + -t- morna

Decorre daf que nao pretendemos colocar como '*univer-sais" lingufsticos esses diversos constituintes: nosso dnico fim €aqui o de mostrar a possibilidade de registro dofrances.

Resulta do que precede que empregaremos o termo "sin-tagma nominal" para designar especificamente SN^, SN2, SN*2e SN3 e que o termo SV "sintagma verbal" nao designa o pre-dicado de SNj mas somente o que, no predicado, € exterior aosintagma nominal objeto e a sua eventual preposicao introduto-

1. O sintagma nominal

O sintagma nominal sujeito comporta necessariamente umnome ("comum" ou "prdprio"), ou um termo que o representa.No caso de ser o sintagma nominal objeto do tipo SN2, o nomepode ser, por outro lado, substitufdo por um adjetivo atributo doSNj correspondente.

O termo que toma o lugar do nome se relaciona a ele porum fenomeno de ana"fora, que pode ser externo^-^:

|| Eu declare aberta a sessao(o produtor do enunciado, isto 6, o protagonista agente da enun-ciacao, 6 o presidente da sessao, Eu = o presidente x),

Ou interno:

O expresso en t rand o na esiaijaoEtc

Este(= o expresso) estava no horSrio.

Vemos assim que os pronomes e outros termos que "ficamno lugar de" remetem, segundo o caso, a enunciagao ou a um

anterior, sendo que sua enunciacao serve de caugao

113

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para a introducao em urn enunciado posterior, desses "signosvazios", nao-referenciais em relacao a "realidade", sempre dis-ponfveis e que se tornam "cheios" desde que urn locutor os as-sume em cada instancia de seu discurso. Desprovidos de refe-rencias materials, nao podem ser mal-empregados, por nao afir-marem nada, nao estao submetidos a condicao de verdade e es-capam a qualquer denegagao. Seu papel € o de fornecer o ins-trumento de uma conversao, a qual podemos chamar a conversaoda linguagem em discurso (Benveniste, op. cit., p. 254).

Por outro lado, o nome aparece geralmente acompanhadode uma marca de determinacao^^ — ausente no caso do nomeprdprio e no da maior parte das anaforas,

Chamaremos Dj e D2 essas marcas, conforme sua associa-c,ao com o nome constitua o sintagma sujeito ou o sintagma ob-jeto, ou seja:

i _> Dl +

SN,

D

SN3 _ D2 + N3

Podemos, por outro lado, decompor a marca D em umfeixede dimensoes, a saber:

a. O numero (singular/plural);b. O modo de determinac.ao de N, conforme:

• a classe N seja visada// O cao € um animal fiel• um elemento particular da classe N seja apontado pela

marca D que desempenha entao o papel de flecha desig-nadora.

// Este cao 6 bravo.// Teu cao est£ doente.• um elemento particular seja extrafdo da "classe" N

sent qualquer outra indicacao.

114

// Um cao se pos a latir.

• a "classe" N seja varrida por D

// Nenhum cao deixou o canil hoje.

// Todos os caes devem estar na correia.• a "classe" W seja considerada como o (ndice de um

conceito

I! Durante anos ele levou uma vida de cao.

Observemos a esse respeito que a analise formal do mor-fema que representa D nem sempre 6 suficiente para identificaro modo de determinagao (por exemplo,"um cao 6 sempre fiel"¥=• *'um cao se pos a latir") e que 6 precise considerar as marcasatribufdas anteriormente ao mesmo N segundo a ordem de su-perficie para deduzir o modo de deterniinac.ao que representa talmorfema ("o", "um" etc.) em um ponto dado da superffcie: istosupoe que o linguista possa estabelecer o sistema de regras quepermite (idealmente) chegar, nesse caso, a uma soluc.ao unica.

E de se notar igualmente que o lugar da marca D pode es-tar vazio, por exemplo no caso do nomeprdprio ou do adjetivo.Ha" de se convir, por outro lado, que este lugar est£ sempe vaziono caso da retomada do nome em uma adjuncao.

Exemplo:

// O gabinete da zeladora da para o patio.ser5 registrado:

Ej = (o + gabinete) + di + para + (o + pdtio)£2 = ( <£ + gabinete) + e + de + (a + zeladora)

com

EI 8 £2-

c. Enfim, o genera (oposi$ao o/a) 6 quase sempre redundante em rela§ao ao lexema nominal. No entanto, as vezespossfvel dar conta dessa dimensao. Por exemplo:

o zelador/ a zeladora

115

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nil!

2. O sintagma verbal

O sintagma verbal pode ser considerado como o lexemaverbal mais uma serie de determinacoes combinadas entre si.

Seja, por exemplo, a frase:

// Nao teria sido deliberadamente envenenado?Temos:envenenar: lexema verbaldeliberadamente: modulagao adverbial do lexemateria: marca de suposicaosido: marca do passado passivenao: marca da negacdo.a. O adv&rbio € um elemento relativamente livre em rela-

gao ao resto do sintagma: de um lado, o lugar do adveibio podepermanecer vazio; de outro, ele pode se deslocar na superffcie aponto de, em certos casos, poder controlar a totalidade do enun-ciado e ligd-lo a um enunciado precedente - o problema e', pois,a este respeito, o de saber se um adverbio dado funciona comomodulagao do verbo (uma espe"cie de "adjetivo" do verbo: "de-liberadamente envenenado" —*• "envenenamento deliberado")ou como uma qitalificacdo de um operador de dependencia dotipo .4. = [(•) + adve"rbio] por exemplo, no caso em que oadverbio marca a ordem. de dependencia entre dois processes deenunciado, especificando esta ordem como "simultaneidade,anterioridade, interrupgao, conexao concessiva etc."38 1251

Seja, por exemplo, a sequencia:

O ciclista rodava prudentemente. Subitamente, um carrodesembocou pela esquerda e o atropelou.

Vemos que:prudentemente = modulagao adverbial de rodava

subitamente = qualificagao da marca de parada (.) de for-ma que o operador entre as duas frases € tpx =[(.) + stibito]As outras detenninacoes sao, ao contraVio, todas mais ou menosintegradas a forma do verbo:

b. Apessoa

116

"A pessoa", escreve Jakobson,39 "caracteriza os protago-nistas do processo do enunciado relativamente aos protagonistasdo processo da enunciado. Assim, a primeira pessoa indica aidentidade de um dos protagonistas do enunciado com o agentedo processo da enunciagao, e a segunda pessoa sua identidadecom o paciente atual ou potencial do processo de enunciac.ao".

Sabemos que, conta feita das regras de registro do sin-tagma nominal, os protagonistas da enunciagao sao registradosquando os protagonistas do enunciado os designam:40 a marcada pessoa, integrada a forma do verbo, 6 assim sempre redun-dante em relagao ao registro do sujeito desse verbo; ela nao sera"pois registrada.

c. O estatuto define a "quantidade logica do processo";distinguiremos os estatutos afirmativo, negative, interrogative einterrogativo-negativo: observemos que 6 possfvel representaro estatuto pelo registro combinado de um valor na oposigdo as-sercdo/interrogacdo e de uma modalizacdo deste valor (nao,jamais, talvez, sempre etc.; 0 representa aqui a assergao ou in-terrogagao nao-modulada).

d. O tempo"O tempo caracteriza o processo do enunciado relativa-

mente ao processo da enunciagao. E assim que o preterite nosinforma que o processo do enunciado 6 anterior ao processo daenunciac.ao".41

e. A voz"A voz caracteriza a relagao que liga o processo do enun-

ciado a seu protagonista, sem referencia ao processo do enun-ciado ou ao locutor".42

f. O modo"O modo caracteriza a relagao entre o processo do enun-

ciado e seus protagonistas corn referdncia aos protagonistas doprocesso de enunciagao".43

Os pontos d, e, f, necessitam, por parte do linguists, deuma elaboragao que indique os diferentes valores possfveis decada marca e as combinagoes que a Ifngua tolera.

Nds completaremos esta lista com as marcas da modalida-de e da enfase.

117

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g. A modalidadeSabemos que a logica modal introduziu signos especfficos

que exprimem modalidades do possfvel e do necessdrio na pro-posicao Idgica. Fazendo uso de uma analogia, diremos que asproposic.6es do tipo

|Eu posso vir amanha||Eu devo escrever uma carta

correspondem ajlEu venho amanha + modalidade do possfvel

||Eu escrevo uma carta + modalidade do necessdrio

Os termos "possfvel" e "necessdrio" remetem, bem enten-dido, a modalidades lingufsticas, e nao 16gicas, do enunciado.

Observemos que a transformagao T^2*] que consiste emrestabelecer as proposigoes latentes na seqiiencia, por exemplo:

IfEle Ihe disse para vir

—»- ||Ele Ihe disse (que) viesse

nao se aplica aqui: Notar-se-a" que no caso de modalidades dopossfvel e do necessdrio, o sujeito (subentendido) do verbo noinfinitivo 6 sempre o mesmo que o sujeito (expresso) do verboportador da modalidade, o que diferencia "poder" e "dever"dos verbos do tipo "querer" que autorizam a construgao

|jEu quero que voces...

e a prop<5sito dos quais 6 legftimo aplicar Tj, a saber:

|Eu quero partir

—> || Eu quero (que) eu parta.

h. A enfase

Existem, enfim, contomos estilfsticos que permitem colo-car em relevo uma parte do enunciado ou o enunciado inteiro,em geral com a ajuda de expressoes do tipo "6 o/um... que/oqual".

Proporemosa) um grau zero da enfase

11 Joao come macas

ilUm aviao cai

118

fS) uma Snfase sobre o sujeito

HE Joao que come magas

HE um aviao que cai

-y) uma enfase sobre o objeto

11 Sao macas que Joao come

5) uma enfase sobre o enunciado global

IIE que Joao come mac, as

IIE que um aviao cai

Nao propusemos aqui senao o esbo^o do quadro das mar-cas cuja combinagao de cada uma dd uma forma ao enuncia-do: indiquemos simplesmente que chamaremos "forma do enun-ciado"(Fi) o vetor constitufdo pelo conjunto ordenado de valo-res que toma cada marca para o enunciado considerado, ou seja:

Fi = <£v (estatuto); v (tempo); v (voz); v (modo); v (mo-dalidade); v (enfase) J>

A palavra assim formada 6 analiticamente decomponfvelem fungao do quadro das marcas.

Nessas condigoes, a estrutura do enunciado se torna

V ADV Ft p

Ora, pudemos constatar, segundo o que precede, que aforma do enunciado (Fi) pode exercer uma determinac.ao sobretodos os elementos do enunciado, e nao somente sobre seu sin-tagma verbal. Se for conveniente chamar "lexis" o conjunto ca-nonicamente ordenado desses elementos, diremos que um enun-ciado resulta da aplicagao de uma forma do enunciado sobreuma lexis dada, ou seja

£ F ( T\a = f . (1) , JV,, K, ADV, p, Z 2, JVa/s)

Um enunciado pode, pois, finalmente ser registrado comoum conjunto ordenado de oito termos, sendo que cada um delescorresponde a uma categoria morfossintdtica determ'nada-

119

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3. As transformagoes do enunciado

Lembremos que colocamos, anteriormente, dois tipos detransformagao:

, 1. Transformagoes do tipo Tj

||Ele pede para voce vir

—> ||Ele pede a voce ((pn= que) voce venha

2. Transformagoes do tipo 72

|| O caozinho dorme perto do fogo

__». j| O cao dorme perto do fogo Sj cao E # pequeno.

A essas transformagoes que dissociam as proposigoesacrescentaremos agora urn terceiro grupo (ou seja, T$) que de-signa as transformagoes que incidem sobre o proprio enuncia-do', citemos entre elas:

- Tyi: nominalizacdo

For exemplo

|| Pedro parte de carro

que serd indicado como

|j Partida E de Pedro + Partida e de carro

e|| A terra gira

que sera" escrita como|| A rotagao e da terra

ouII A rotagao e * terrestre.

—Tj b: ativo-passivo.Por exemplo

|| O menino olha a vitrine—HI A vitrine 6 olhada pelo menino.

120

Observemos que 7j a combina seus efeitos com os de Tj eSeja, por exemplo, a frase

|| A cortina cai no fim do espeta"culo.

Temos, pela aplicagao de 7*2 (liberagao das jungoes)

|| A cortina cai no fim 82 ft™ e do espeta"culo.

Ora, por meio da transformagao Tj a do enunciado, obt6m-se

|| fim e do espeta"culo — o espetficulo acaboude onde a possibilidade de se construir

|| A cortina cai (quando) o espeta"culo acaba

o que representa a liberagao de uma proposigao latente na pro-posigao inicial, por um efeito que podemos assim remeter a umatransformagao Tf que faz corresponder

a (=px) + complemento

quando (=pn) + enunciado que resulta da transformagaoT$ a do complemento.

Esta observagao s6 tern valor indicativo: pensamos que epossfvel chegar, explorando sistematicamente esta diregao, a re-gistros paralelos de uma mesma superffcie, multiplicando assimas possibilidades de relagoes entre as superffcies discursivas deum mesmo A .45

4. Regularizagao do registro

Nosso objetivo 6, sabe-se, multiplicar as possibilidades deco-ocorrdncia de uma superffcie a outra. Para isto, tomaremos asseguintes decisoes.

1. Todas as transformagoes T$b, puramente internas aoenunciado, serao efetuadas sistematicamente em Um s6 sentidode maneira a reduzir as distancias morfoldgicas entre os enun-ciados.

121

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2. No caso da nominalizagao (7j«) vimos acima que estatransforrnac.ao colocava em causa o conteudo dos enunciados vi-zinhos e a natureza dos operadores de dependeneia. Geraremos,pois, sistematicamente as diferentes solucoes possfveis em fun-c.ao de Tja e registraremos as dependencias que correspondem acada uma delas. Por exemplo:

O professor afirma que a ciencia demonstraa rotagao terrestre

EI = o professor afirma 0 <f>

£2 = A ciencia demonstra * a rotagao£3 = 3 rotacao E * terrestreTja aplicada a £3 da"

£4 = 3 rotac.ao E da terraTja aplicada a £4 da"£5 = 3 terra gira 0 0O resultado de 7j sobre £2 e"E g ^ a ciencia demonstra 0 0de onde

EI 92 E2£2 92 E3E2 V2 E4

EI (P2 E6E6 2 E5 com 92 = ue

Por esta via, o conteddo do discurso registrado 6 regulari-zado de tal maneira que as diferengas que se devem a variagaodas constntfoes sintdticas, sem variacdo semdntica, se encon-tram, sempre que possfvel, eliminadas.

Em resume, o processo de registro tern a forma indicadaabaixo. Vamos repetir ainda uma vez que a automatizagao desseprocesso exige um longo trabalho lingiifstico no curso do qualmuitos pontos ja" adiantados por no's serao recolocados emquestao: para nds o essencial era especificar aqui os requisitoslingiifsticos indispensa'veis a andlise. Em outros termos, propu-semos um procedimento e nao uma teoria da Ifngua, entenden-

122

do-se que esse procedimento repousa sobre pressupostos tedri-cos que exigem precisamente ser explicitados e criticados pelolingtiista.

O ponto essencial concerne, a nosso ver, a questao de sa-ber se e* Ifcito representar uma sequ^ncia por meio de um gra^lcoque liga enunciados elementares de composigao fixa, do tipo dalexis.

\ Corpus «x correspondente As condijdea [j de produ$5o f x do discureo x

Pesquisa das marcaa de parada, eventualmentequalUicadas, que delimitam a frase

operadores [(.) + adv.J = <pn

AnStise da fraae em proposifdes, isto 6, umaseqfiflncia que contem s6 um verbo no mode pessoal

operadores <pn de subordina^o — coordenagao

Libera^ao das "proposisoes latenles" na proposi ao desentido precedente por meio da transfonnasao Tj:

'•proposiySo reduzidd"

operadores vn de subordinasao - coordena9§o

Libera?fio do ematciado central e dos enunctados-jungdes na propoBigfio reduzida, por meio da tnuisfonnasao -p.

operadores 61,82

Registro das dependencias,saturacdes

Registro dosenunciados (temos

entfio

Conjunto de rela^oes binanas*•{&!«. 6J.com *i-£i^£j

123

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. A analise automdtica do material registrado

Seja um corpus Cx de discurso Dxj... Dj^ correspondentea condigoes Fx estaVeis, definidas por crit£rios externos, detipo socioldgico (situacao e posicdo do emissor, pap&is coloca-dos em jogo etc.)-46

O corpus GX foi transformado pelo registro em um con-junto

com

com

^X = {E^E1,E2, ... Ea}

De acordo com nossas hipdteses anteriores,47 colocaremosa existencia de dois mecanismos:

a) uma selecao-combinagao (S-C) efetuada sobre a Ifngua eque produz o conjunto de enunciados:

(S-C), (JSP) = S» ;

b) uma aplicac.ao "9 do conjunto dos enunciados sobre simesmo:

Observemos, a propdsito do mecanismo S-Cique certascoerc.6es sao impostas pela propria Ifngua & -por exemplo, anecessidade de se selecionar um complemento de objeto paracombinfi-lo com um verbo transitive: essas coercoes sao, pois,externas a S-C. S-C representa aqui as coercoes que nao sao im-

124

postas por &. Por exemplo, a selegao-combinagao efetuadacom base nas palavras "propriedade" e "roubo" nao € a mesmanas duas sequencias

IIO roubo 6 um atentado a propriedade particular;

|| A propriedade 6 um roubo J2?]

Consideraremos que as coer$6es sintdticas sao estdveis naIfngua (os efeitos de ordem, de dnfase etc. nao sao consideradoscomo sinta'ticos) e que, consequentemente, a especificidade dascoergoes combinat6rias sobre os componentes dos enunciadosassim como a do mecanismo de aplica^ao "9 ( .; x ;, ) represen-tam a dist&ncia do discurso em relagao a Ifngua, isto e\ adas condigoes de produ?ao do discurso, ou seja,

Para colocar em eviddncia Ax. procuraremos definir os"pontos de ancoragem" no corpus — que chamaremos os "domf-nios semSnticos" — assim como as relagoes de dependencia entreesses domihios.

Diremos48 que dois enunciados Ej e Ej tern a mesma inter-pretagao semantica se

a) Ej e E; estao paradigmaticamente prdximos um do outro;b) E[ e E; estao ligados por dependencias funcionais iden-

ticas a dois outros enunciados E^ e EUJ, paradigmaticamenteprdximos um do outro.

Isto supoe que possamos definir:— Um programa de comparagao paradigm^tica dos enun-

ciados;— Um programa de formacao dos domfnios semSnticos,

pelo estabelecimento de relacoes entre os enunciados por meiodos operadores de dependencia n.

125

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A) Andlise paradigrruitica dos enunciados

1. Particao de ^ em categorias

Sejam dois enunciados Ej e E; que pertencem a £.,.. Sa-bemos que Ej e E; compoem-se cada um deles de uma seqiienciade termos ordenados segundo as classes morfossinta'ticas, sejapor exemplo:

Fi D! NX V ADV PP D2 N2/3E i = a b c d e f g hE j = a b c d j f k m

Associemos um numero binaYio TT ao par (Ej, E;) tomandocomo convengao que

Dois termos identicos na mesma classe morfossinta'tica setraduzem pela cifra 1 em IT, no lugar correspondente, edois termos diferentes, pela cifra 0.Por exemplo, obtemos aqui

(E,. £;) = I I I 1 0 1 0 0

Vemos que 6 possfvel classificar cada um dos n (n - l)/2 paresformados a partir de n elementos de £v segundo seu "nome"bin&io, representando a categoria — seja Gj — a qual cada parpertence.

Seja, pois, um conjunto ?>x de enunciados Ej tais que

F. — v1 v

2 \* T8 •i.j - -V f . A; , .... .1,-, .... - V j

Vamos definir a aplicacao de £ x £ em 2^, onde "2"designa o conjunto 0,1:

V (£;, Ej) € £ X £ -+ TT < ttl, a,, ..., at, „., <xs > € 28

tal que V k, 1 ^ A- ^ 8 :

Observemos que

xj xkj) ~* cck = 0

ir(Elt £}) = ir(EJt £

126

Seja agora uma relacao R entre os elementos de £ x £definida por

(Et, Ej)R(Ep, E,) o »(£„ £••) = TT(£P, £,)

/? 6 uma relacao de equivalencia porque

(1) (Et, Ej)R(Et, Ej) (reflexividade)(2) (Eit Ej)R(Ep, Eq) o (Ep, Eq)R(Ei} Ej) (comutatividade)(3) [(£(, Ej)R(Ep, Eq)} A [(Ep, E^R(EU, £„)] -> (£(, £,)J?(£U! £p)

(transit! vidade).

£ x£Chamaremos G j o conjunto dos elementos de — B —

Notemos, enfim, que se pode efetuar uma particao de GJ: seja,com efeito, uma categoria G[ tal que:

G, = {(£*£,); (£;.£0; (£„,£„); (£n,£p); (£t,£fl)}

Pica claro que se pode escrever

0^(0} \G*)

comG/ = {£„£,, Ek,Ea}

Os enunciados contidos em G sao tais que conservam fixasao menos todas as classes morfossinta'ticas correspondentes a 1no" IT associado a Gj. Certamente pode acontecer que o grupo(E:, Ejj), por exemplo, nao esteja contido em Gj, mas em umacategoria G; que conserva as mesmas classes que Gj mats outrasclasses; por exemplo

£, = a b c d

E; = a b m k

temos

mas

£t = a b m h

(£„ Ej) = 1 i 0 0

(£„ £t) = I 1 0 0 ;

(Ej, £,) = 1 1 1 0 .

127

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De onde a anglise das proximidades paradigma'ticas (Alg.1) dada no quadro seguinte:

r> _ vl -y-2 V3 vfc VB£.i — Xi, Xi, Xtt ..., At, ..., Xf

___ -.1 .2 .,3 vk v**j — Xjt AJ, Aj, . . . , -A.j ..... Aj

= x

Alg. L AruS&se das proximidades paradigmdticas

128

2. Valor da proximidade paradigm^tica

Em fungao do que precede, poder-se-ia ordenar as catego-rias Gj em fungao do ntfmero de classes morfossintdticas manti-das no par (Ej, Ep, ntimero que seria uma estimativa da proxi-midade. Entretanto, 6 importante administrar a possibilidade deatribuir valores diferentes as diferentes classes: por exemplo,pode-se, com razao, fazer a hip6tese de que a conserva§ao deNI e de V entre Ej e Ej Ihes assegura uma proximidade para-digmdtica superior a conservagao de Dj e D2-

Consideraremos, pois, coeficientes pj, p2, -..,pg tais que

<0£2,

com = 0 ou 1.

O valor desses coeficientes pode, alitis, ser fixado seja deuma vez por todas pelo lingiiista, ou, ao contrdrio, colocado co-mo uma fungao de uma varidvel — por exemplo a forma doenunciado — caso em que terfamos:

ou mesmo

y,

pk=f(a\ja}}

Podemos, por outro lado, objetivar a modifica§ao do valor de p%em fungao da natureza de oj/o,- . Se, por exemplo,a? = af = <£ (#2/3 vazio), nao associarfamos a essa ocor-rSncia o mesmo peso que se a] = a* com a° nao-vazio.Quaisquer que sejam as decisoes posteriores sobre esse ponto,vemos que cada particao de Gj - seja G" - pode ser afetadapor um "peso" p que traduz o valor da relagao paradigma'ticaentre o par de enunciados considerados.49

129

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3. Calculo da proximidade de dois enunciados no conjunto £.,

Consideremos dois enunciados Ej e Ej pertencentes a umconjunto E^. No's acabamos de mostrar como se pode atribuirum valor p a sua relagao paradigmdtica; este valor resulta dacomparac.ao e Ej e Ej, obstrofoo feita dos outros enunciados de£T- Ora, o fato de que exista, ou nao, um ou varies enunciadosde fijr que sejarn intermediaries entre Ej e E; influi sobre suaproximidade em 6^.

Seja, por exemplo,

Ej = o coronel seduziu a marquesaEj = o oficial agradou & marquesaSe existe um enunciadoEj^ = o coronel agradou a marquesa

a possibilidade da substitui^ao paradigmdtica entre os compo-nentes de Ej e Ej encontra-se aumentada.

Definiremos, pois, um programa, seja Alg. 2, que permitadeterminar sistematicamente os enunciados intermediaries entredois enunciados dados, e deduzir o valor resultante, seja P, daproximidade paradigmdtica que caracteriza seu par no interiordo conjunto £r.

(E,, £j) e G"t e /•(£,

ess^f E* *- faao;, e, e o»

SIM

13f F e G*•"•*> ci *= wm

e ?

/ \

1/-(£•;,£,) = (emGD

^2 + P.< ^ r,.2 ' !l

/ \

p(E,, fi'J = p2 MEM6RIA

p(Et, E}) = p, Pt + P3 >

Ej)=pi

'

X

)

)

Ciknlar o v*lor wperior de P • pvtii doBiitem* de deiiguildade* nglmdo atmemdrla.Subttitnlr pi p*t* que e«c valor KJRPfEi, Ep. Se • memdrU for vtzJa. regfs-imTP - pj.

130

Alg. 2. Anrffae d« proximidade paradigmdtica de (Ef, Ej) retacioMda ao conjunto

Kx-

131

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B) Constituigao dos domtnios semdnficos e andlise de suas de-pendencias

1. Andlise das similitudes

Sejam dois enunciados Ej e Ej pertencentes a

— Se existem em px duas relagoes binarias

j - * .

- e se o valor das proximidades paradigmaticas entre Ej eE:, de um lado, E^j e E^, de outro, 6 superior a um li-mite dado pft, dir-se-£ que

Ei

constitui-se uma zona de similitude, eventualmente suscetfvel dese prolongar por concatenacao:

seja

se

E.J*'\Et

responde as mesmas exigSncias precedentes. Chamaremos ca-deia de similitude uma concatenate de zonas de similitude.

a) Formacao das ^-classes

Seja um conjunto px formado de n relagoes binarias do ti-po EJ 9^ EUJ, com

Engendremos g classes diferentes correspondentes aos &operadores de dependencia _y que tern uma fungao diferenteem px (supoe-se que o registro tenha regularizado os casos deequi Valencia entre dois operadores W de morfologia diferentesque tern mesma fungao).

Seja px: £, 5, E2

?i *Ps Es

Eg $1 &6E+ <pa E5

£, P, E-,E, ^ £„

px toma entao a forma seguinte

«iA, E2

Es, E6

S2

E2, E3

E^> E8

9.

£ F,4> ^5

*

*» **

Es, E7

9s

EI, Es

Convencionaremos chamar G(t/ij) o conjunto de enunciados co-locados a esquerda na classe t/i,-, e D(^:) o conjunto de enuncia-dos colocados a direita.

7 € G(S2)

Por exemplo

b) Formasao das cadeias de similitude

Seja a ^"-classe n. Suponhamos que ela contenha Ej e Ej*tais que

132 133

ILhil

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Resulta dai que esta mesma classe compreendetais que

Seja PI o valor da proximidade paradigmatica de Ej e Ejrelacionada ao conjunto £x : PI = p (Ej, Ej) segundo Alg. 2.Seja da mesma maneira P2 = p (Ek> E^ segundo Alg. 2. Dire-mos que

£„

constitui uma zona de similitude se

sendo fixo.

Escolheremos para/?x um valor intermediario, por exemplo,a meia-soma dos valores maximos (cf. anexo HI}.

Observagao 1SeJa Et =ay*b

Ej = ay * cEk = bw * kEm = cw * q

(Estamos representando aqui os enunciados por quatro elemen-tos, para simplificar a escrita).

Ve-se que a oposicao b/c, presente no par (Ej, Ej) € repetida nopar (Efc, E^: para evitar o fato de se levar em conta duas vezesa mesma oposigao, vamos convir escrever b/c — x j e transcreverrespectivamente E^ e pelas expressoes

Xt W * k

Xt w * q

deonde P2=P

134

Chamaremos esta operagao "anulagao da diferenga repeti-

Observagao 2

Podemos reiterar a operac.ao que acaba de ser efetuada,com a condigao de que exista uma *P -classe ^p tal que

Chamaremos cadeia de similitude o resultado de n reitera-goes da operacao descrita acima.

De onde o algoritmo 3.

/-(E,. EJ ° p, | j f(Ei. EJ-fT

AIB .2 t I A'!-2

Alg, 3. Formafdo das cadeias de similitude

135

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2. Forrnagao dos domfnios

a) Grupo operador

Seja uma cadeia

com

C =

Convencionaremos colocar na cabeca da expressao Cn a seriedos operadores, ordenados em funcao de sua aparigao na ca-deia, seja aqui

Et

Chamaremos grupo operador o conjunto ordenado dos operado-res, colocado na cabega da expressao Cn.

b) Categoria de cadeia

jfe '

Seja C o conjunto das cadeias produzidas por Alg. 3. Epossi'vel efetuar uma particao de C em fungao do grupo opera-dor das cadeias de C : de onde as n categorias Kj , K2, ..-, Kj,..., Kn correspondentes aos n grupos operadores diferentes con-tidos em C*.

c) Homogeneidade de duas cadeias em uma mesma catego-ria: definicao do domfnio semantico

Chamaremos domfnio um conjunto de cadeias de umamesma categoria, tal que sejam homogeneas entre si; diremosque duas cadeias de uma mesma categoria sao homogeneas entresi se for possi'vel definir uma homogeneidade entre suas zonasde similitude respectivas, tomadas sucessivamente.

d) Definigao da homogeneidade entre duas zonas de simi-litude

Para simplificar a escrita, colocaremos:

Cp = (grupo operador Kt) [(St)... (5£), (5i+1)... (5n)]

Cq = (grupo operador Kt) [(S{)... (5J)f (5(\,) ... (^)J

136

em que o numero provisoriamente atribufdo que expoeenunciado indica seu lugar no presente cdlculo e nao deve serconfundido com a indicagao dos enunciados em £A.

Formemos e calculemos:

P(E\ £3)

P(E1, £4)

P(E2, £3)

P(E5,

P(ES,

P(E6t E7)

, £8)

Diremos que as duas zonas « (S'i)(5'1- + 1) » e «sao homogeneas, o que notaremos como

se pelo menos uma das expressoes for superior ao limite fixado.

P(E\ E4-) + P(£5, Es)

P(E2, £3) + P(E6, E1)

P(E\ £*)

De onde o teste de homogeneidade Alg. 4.

137

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Forraagiio de oito expressoes

P(E6,

Alg. 2 Cfilculo do valordas expressoes precedences

Formate de P(\) • P(ll); P(11I); fllV)

3P(JV), JV = (1) v (11) v (III) v (IV)

WO > />.

SIM NAO = STOP

Alg. 4 7e.s7tf fife homogeneidade entre duas zonas de similitude

138

e) Homogeneidade entre duas cadeias de similitude

Uma aplicagao recursiva de Alg. 4 a duas cadeias Cn eCn', pertencentes a uma mesma categoria Kj, permite testar ahomogeneidade dessas duas cadeias: pode-se declarf-las homo-ggneas - seja CH J£ €„. - se o teste Alg. 4 for positive paratodos os valores de / tornados dois a dois (/ e i + 1), estando icompreendido entre 1 e n. Nao se visou aqui a eventualidade deuma homogeneidade parcial entre Cn e Cn', o que nao significaque nao seremos levados, posteriormente, a tom£-Ia em conside-ragao.

Acrescentemos, enfim, que duas cadeias cujo grupo opera-dor nao difere senao por um operador final de adjungdo —(i/-;, i/r-) e (</»,-, ipj, 5t) por exemplo - podem ser homogfineasainda que nao fagam parte, stricto sensu, de mesma categoria;esta disposigao particular se justifica pelo fato de que a adjun-530 pode desenvolver um enunciado sob forma metonfmica. Sejapor exemplo

Suponhamos

(5n+ ), Ex = o presidente expfis a situagao)'^ =o presidente e' daReptfblica

), Ex = o presidente comentou a situacao

Temos aqui um efeito metonfmico entre e EX 8 1 Ey>precisamente entre "o presidente" e "o presidente da Repdbli-ca".

O conjunto das regras que precedem € representado noAlg. 5.

139

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SIM

3SnA sj> = i + 2 ?

SIM NAO

IMRegistrar Cn .1CCn

na categoria'rie /^

Alg. 5. Hamogeneidade entre duas cadeias de similitude

140

Chamaremos domtnio semdntico o conjunto das cadeias deuma mesma categoria (considerada a observaQao anterior sobreas adjungoes) homogeneas entre si.

Temos, entao, para uma categoria dada:

com K" = Ds (dominio semantico de nome S).

Diremos que dois domfnios de uma mesma categoria (se-jam K™ et K" ) sao disjuntos entre si

1) V d € K?,

2) V Cy € K?,

3 C._, C,_ €

3 , €

tel que C, J6 C ;

tel que Cy JC Ct.

Ve-se que um dominio corresponde a um conjunto de se-qiiencias passfveis de serem superpostas.

A dimensao de um domfnio corresponde ao numero de lu-gares que possui, seja o produto do nrimero de linhas (as dife-rentes superffcies) pelo das colunas (o numero de enunciadosque pertencem a cadeia, ou seja, n + 1 se o grupo operadorcomporta n operadores). For definicao, duas seqiiencias perten-centes a um mesmo dominio recebem a mesma interpretacao se-m^ntica.

3. Analise da dependencia entre os domfnios semSnticos

a) Dependencia entre dois enunciados

Diremos que um enunciado £„ depende de um enunciadoEk - o que vamos notar como (Ek ^ En) - se existe uma con-catenacao de dependencies diretas entre Et e En.

Seja Ek 9a EI tpp ... y,

De onde o Alg. 6.

141

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Alg. 6. AndUse da depend&nda entre enundados

b) Dependfencia entre dims seqiiencias

Chamaremos origem de uma seqiiencia — seja 0 (Sn) - oenunciado colocado a esquerda desta seqiiencia.

- se duas seqiie'ncias Sn e Sn> tern a-mesma origem, nota-remos como

ocsj = 0(5n.) et sn CD stt>.

— se duas seqiiencias tern origens diferentes, diremos queSn' depende de Sn (ou que Sn comanda Sn') se a origemde Sn' depende da origem de Sn, e notaremos comoOn —> On*-

142

c) Relagoes entre dois domfnios

- Diremos que dois domfnios Dx e Dy te^n origens total-mente comuns se, para toda seqiiencia do domfnio Dexiste uma sequ'e'ncia do domfnio Dy que tern a mesmaorigem, e reciprocamente.

Notaremos como Dx Dy.

— Diremos que 0 dommio Dx inclui o domfnio Dy se oconjunto das origens das seqii§ncias de Dy 6 uma partedo conjunto das origens de Dx.

Notaremos como Dx D Dy.

— Diremos que existe uma intersecgao entre os domfniosDx e Dy se a intersecgao dos conjuntos das origens desuas seqiiencias respectivas nao for vazia, ainda que Dx

nao inclua Dy e que Dy nao inclua Dx.

Notaremos como Dx fl Dy.

— Diremos que um domfnio Dy depende de um domfnioDx se, sendo vazia a intersecgao dos conjuntos das ori-gens de suas seqiiencias, certas seqiie'ncias de Dy de-pendem de certas seque~ncias de Dx, sem que o inverseseja verificado.

Esta dependSncia comporta varies graus, que distinguire-mos assim:

• se toda seqiiencia de Dx comanda uma seqiiencia de Dye se toda seqiidncia de Dy depende de uma sequfincia de

DXnotaremos como Dx=>Dy;

• se toda seqiiencia de Dx comanda uma sequSncia de Dy,sem que toda seqiiencia de Dy dependa de uma sequSn-cia de Dx

notaremos como Dr - •••= Z>,.

143

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se existem certas sequencias (mas nao todas) de Dx quecomandam sequencias de Dy e se toda sequencia de Dydepende de uma seqiiSncia de Dx, notaremos como

se existem certas sequencias (mas nao todas) de Dxquecomandam sequencias de Dy sem que toda seqii£ncia deDV dependa de uma sequencia de Dx notaremos como

Se para dois dommios Dx e Dy existe ao mesmo temposequencias de Dx que comandam sequencias de Dy esequencias de Dy que comandam sequencias de Dx no-taremos como

— Se, enfim, dois dommios Dx e Dy sao tais que a inter-secgao dos conjuntos das origens de suas sequenciasseja vazia e que nenhuma sequencia de Dx comandeuma sequencia de Dy e reciprocamente, dir-se-a" que Dx

e Dy sao disjuntos, e notaremos como

D* I D*

de onde o Alg. 7.

Diremos, em funcao do que precede, que o processo deprodugao Ax de urn discurso 6 representado pela rede de rela-cpes que afetam os dommios semanticos previamente colocadosem evid^ncia.

144

IVS. e D* 35* € Dr 0(5.) - 0(5..)VS., e &„ 35. e £>„ 0(5.,} - 0(SJ

NAO

VS. e D,, 35,. e D^ 0(5.) - 0(5.,}* VS.. e D,, 35. 6 £>„ 0(5.,) - 0(5.) '

NAO

35.60,, 35, €0,, CMS.) - (HSj ?

Alg.6

NAO

35. € It,, S. • 5., 6 D,- 35.- e D,, iV • 5. e D,

VS, .e D,, 5.

NAoSIM NAO

ViVeO,- 3S. e 0,. S.

1

• 5., •iD. «

" D' 1 l>, -* fl.

35. e Da S. —3i'.. e B,, 5,< -—> 5. e Dx

&*- D,

Alg. 7. AndSse das relagoes entre domfaias

145

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CONCWSAO PROV2SORIA

Perspectives de aplicogao daAndlise Automtftica de Discurso

O projeto que acabamos de apresentar 6 incomplete sobvaries aspectos.

De um lado, com efeito, deixamos ao sqci(51ogo a respon^sabili3ade de definir, no detalhe,, os iragos que caracterizam es-pecificamente uma condtcao de producao discursiva atraye's dasituagao ejdappsigao dos protagonistas do discurso em uma.es-trutura social dada; deixamos, por outro lado, provisoriamente &parte a questao dos discursos que ndo sao mon<5logosf na medi-da em que a solugao desse problema mostrou ser dependente daresolugao do caso particular ao qual nos limitamos aqui, assina-lamos iguahnente, muitas vezes, o fato de que a elaboracao dasregras do registro da superffcie discursiva exigia um trabalholingiifstico do qual fornecemos aqui apenas o esboco; enfim, ficabem claro que o programa de andlise, tal como apresentamos,por razoes de clareza de exposigao, comporta iniimeras repeti-§6es, que devem ser eliminadas na redacao do programa defini-tivo: aqui, € ao matemdtico que fazemos apelo, para definir asequencia mfnima de algoritmos suscetfveis de executar a andli-se.

Por outro lado, e isto engaja diretamente nossa prdpria ati-vidade posterior, estamos conscientes da existdncia de um certondmero de dificuldades que ficam por superar: por exemplo, odispositive atual de andlise dd conta das equivcdencias termo-a-terrno entre duas superffcies discursivas, na medida em

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compara uma jl outra duas concatenagoes paralelas de enuncia-dos; mas se se admite a eventualidade de equivalencias semdnti-cas globais, correspondentes a estruturas de dependencia dife-rentes ap6s a transformagao das superffcies, vemos que esteproblema permanece em suspenso atualmente. Diremos somenteque parece possfvel visar uma "re-injecao" dos resultados daandlise atual nas superffcies discursivas iniciais, e uma novaconfrontacao das concatena9<5es gerais a partir desse novo esta-do da superffcie: chegarfamos, assim, & ide"ia de um processo re-corrente, constitufdo de ciclos de andlise tais que os resultadosobtidos na "sai'da" do ciclo n constituiria "a entrada" do ciclo n+ 1.

Se consideramos o resultado atual do programa de analise,vemos que o processo de producao dominante Ax 6 represen-tado por um conjunto de "domfnios" que comportam entre si di-versos tipos de ligagao:50 pensamos que, 6, entao, possfvel re-presentar cada domihio por uma ou viirias proposicdes no senti-do logico do termo, do tipo g(x) ou m(x,y) segundo o caso, e de-finir indutivamente as transformagoes com as quais sao afetadosos predicados das variaVeis proposicionais colocadas em jogonos processes de produgao: obterfamos, assim, regras 16gicasque defmiriam as coerencias semdnticas e a transformagao des-sas coerencias, isto £, o efeito semanlico produzido por Ax.Disporfamos, assim, de um instrumento que permite distinguir ostipos de processes colocados em jogo (a estrutura da narrativa),sendo distinta, por exemplo, daquela da demonstracdd) e forne-cer, por essa via, fatos te6ricos suscetfveis de serem integradosa uma teoria do discurso enquanto teoria geral da producao dosefeitos de sentido.51 E281

O mdvel dessa empreitada 6 finalmente o de realizar ascondigoes de uma prdtica de leitura, enquanto detecc,ao sistema*-tica dos sintomas representativos dos efeitos de sentido no inte-rior da superffcie discursivat29!. Antes de evocar rapidamente osusos que se pode esperar de tal pratica, 6 importante tornar pre-cise um dltimo ponto, de importSncia capital para no's; trata-sedo principle desta leitura, que poderfamos chamar "princfpio dadupla diferenga": mostratnos neste trabalho como o confrontoregulado de superffcies discursivas que derivam de um mesmoFx das condigoes de producao permitia esclarecer as diferen-

148

cos intemas atrav^s das quais se manifesta o invariante do dis-curso x, que chamamos o processo de producao Ax. Obtemospor este meio uma representagao dos efeitos semanticos presen-tes em Ax. Mas o que dissemos precedentemente a prop<5sitodos "discursos implfcitos" aos quais se refere uma dada superff-cie discursiva nos convida a pensar que as diferencas extemasentre Ax e um ou vdrios outros processes Ay, J. ... queconstituem o exterior especffico de Ax devem igualmente sertornados em consideracao: em outros termos, pensamos que umprocesso se caracteriza nao somente pelos efeitos semanticosque nele se encontram realizados — o que € dito no discurso x -mas tambe'm pela ausencia de um certo numero de efeitos queestao presentes "al^m", precisamente naquilo que chamamoso exterior espectfico do A,. Isto supoe que nao podemos defi-nir a ausencia de um efeito de sentido senao como a ausenciaespecffica daquilo que estd presente em outro lugar. o "nao-dito", o implfcito caracterfstico de um JT 6, pois, representa-do pela distorcao que induz em dx seu confronto com Ayt

A;, ... que se tornam assim a causa real das ausencias pro-prias a Ax. Por exemplo, os "erros", os "esquecimentos"prdprios ao discurso de uma ciencia em um estado dado nao saovisfveis senao em relacao ao discurso que vem corrigi-Io.

Do mesmo modo, uma figura de estilo s6 existe em relacaoa um processo implicitamente suposto no destinata"rio, e sobre oqual o destinador se apc5ia.

Os modos de insercao da pr^tica da andlise do discurso nosdiversos setores da pesquisa supoem um grande niinKro de pro-blemas especfficos que abordaremos aqui. Contentar-nos-emostamb^m a esse respeito em indicar algumas direc.6es, a tftulo deexemplo.

A) O campo da investigacao socioldgica

Najned^daemque a sociologia se dfi por tarefa interrogara reiacdo entre^asrvlagoes de forga easelaoes de

3 I B U O T E C R C E N T R A L

U F H S

_prdprias a uma estrutura social^ dada, ela *?"ata o discurso_dpsujeito sdciblSgico como representative da relacao entre suajj-

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tuagao (socioeconomica) e sua posigdo (ideoldgica) na estrutu-ra. O que o sujeito diz deve, pois, sempre ser referido as condi-goes em que ele diz: .o que e^pertinente nao 6, pois, tanto o"conteddo" da entrevista que um diretor de empresa da" ao so-_ciSlogo, mas a confrontacao desse discurso que ele sustenta em,relacao ao que ele diz efaz em outro lugar, isto 6, em relagao aoutros papers discursivos cujos efeitos podem ser apreendidosenTbutro lugar, MAIS a descricao da praiica efetuada pelo su-jeTfcT, como representante de um lugar no campo das praticas,pelo discurso cientifico da sociologia.

Em outros termos, o emprego do "princfpio da dupla dife-renca" deve permitir, ao mesmo tempo, definir o processo dis-cursivo dominante e as ausencias especfficas que ele contem, em t

relacao a outros processes, ao responder a outras condicoes deprodugao discursiva.

Problemas tais como o do "implicito cultural", o das for-mas implfcitas e explfcitas do consenso e da diferenciacao, o daimplicagao da resposta fornecida na questao colocada, talvezpudessem ser esclarecidos por este meio.

B) O campo da historia das ciencias

A identiflcagao da "ruptura epistemoldgica" entre umaciencia e o terreno de que ela se separa para se constituir surgiucomo um dos problemas cruciais que a histtSria das ciSncias deveresolver: a analise das condigoes nas quais um novo discursocientffico se instaura, com os meios que ele empresta as cienciasja" existentes ou a representagoes "nao-cientfficas" pode ser des-crita como o relacionamento entre vdrios processes de producaocuja interagao engendra, em certas condigoes, um novo processoque subverte as regras de coerencia que regem o discurso ante-rior. Se 6 verdade que ler um texto cientifico 6 referi-lo aquilode que ele se separa, vemos que a prdtica da analise precisa daevidencia§ao daquilo que, em um texto 2),, produz um descotn-passo — uma diferenga assinal^vel na natureza dos predicados ede suas transformagoes — em relagao a um processo de producao

150

dominante J., cuja repeticao indeflnida 6 precisamente impos-sibilitada por 3)y,

O estudo dos processes aos quais uma ciencia faz empre"s-times, que ela usa como metdforas para compreender e para sefazer compreender,52 o do "contexto" de uma obra cientffica — aconstelagao dos processes discursivos com os quais ela debate ese debate — aquele enfim da "difusao" dos conhecimentos emum sistema de representagoes pre'-cientfficas, colocam uma s^riede problemas que o tipo de analise proposto contribuiria, talvez,para resolver.

Lembremos que um imenso trabalho fica por se efetuarantes que essas diversas possibilidades sejam concretamenterealizaVeis. Com efeito, o uso dessas ana"lises est^ subordinado,de fato, a cuitomatiza$do do registro da superffcie discursiva,sendo dado o volume do material a tratar: pensamos que nao haaqui outra saida possfvel, e que em particular toda redugao ar-bitraria pr6via da superffcie 2),n, por t^cnicas do tipo "resumecodificado", deve ser evitada, pois supde de fato o conheci-mento do resultado que se trata precisamente de obter, a saber,a representagao do Ax correspondente a classe de discurso deque 3) e extrafdo.

TraduQao: Eni Pulcinelli Orlandi

151

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\

NOTAS A AAD-69

[ * J MP (Michel Pficheux) tern em vista aqui os me"todos de lexicologia aplicadafundados na estatfstica, que apresentam um grande desenvolvimento na Franca nosanos 60. Posteriormente (ver Mots 4, p. 96), MP vai reinscrever essa crftica no qua-dro da luta contra "o objetivismo quantitativo" dominante da Spoca. A AAD deve-ria, pois, com a referfincia a lingufstica, "deslocar o terreno das questoes do domfniodo quantitativo em diregSo ao domfnio do qualitativo". Mas em Langages 37, a pro-pdsito da constituisSo do corpus, MP admite o interesse de "procedimentos prfiviosde decifracjio estatfstica..." para a demarcasao inicial do campo das Uptfteses (p. 28).

t 2 1 Para MP, o projeto de uma anAlise automa'tica do discurso se inscrevia emgrande parte no quadro de uma crftica e como alternativa as te*cnicas de analise decontetido, que floresciam, na e"poca, nas ciencias humanas, e que ja" se achavam au-tomatizadas sob a forma dos me"todos de analise documental (Syntol, General Inqui-rer). MP publicou vfirios artigos sobre esse tema:- anterionnente a publicagao de AAD-69: "Analyse de contenu et theorie du dis-

cours", Bulletin du CERP 1967, tf 16 (3);- enquanto AAD-69 estava no prelo: "Vers une technique d'analyse du discours",

Psychologic Jrancaise, 1968,13(1);- em 1973, esse tema estava aindanaordem do diaem "L1 application des concepts

de la linguistique & l'ame"lioration des techniques d'analyse de contenu", Eth-nics, n- 3.

t ^ 1 Primeira aparigao da palavra"leitura". Apenasnaconclusao(p. I47)6queoprojeto da AAD ser£ problematizado sob o tenno leitura. Mas a nojao terd um per-curso central (p.ex. Langages 37, p.8 e segs., Mots 4, p.95...) at6 se tornar constituti-va na forma$5o da RCP ADELA (1982): Analyse de Discours et Lectures d' Archi-ves.[ 4 1 Devem-se reconhecer aqui as abordagens semiolt5gicas e semitfticas. E pre-ciso lembrar que, na dpoca, elas Rao abundantes na Franga. Se MP cita Lfivi-Strauss,pensa evidentemente em Barthes (cujos Elementos de senvologia sao publicados em1964, em Communications 4), talvez em Todorov (cuja tradugao de textos dos For-malistas Russos, que apresentava em particular um texto de Propp, i publicada em1966 sob o tftulo TMorie de fa Uttlrature). Ver tambem uma reflexao sobre esse as-pectoemMots4.

[ ^ 1 Relacionando-a com a questao dos dados e da delimitagao do corpus, MP es-tabelece aqui uma oposigao entre a analise documental (que autoriza, por exemplo, oestudo de textos jurfdicos ou cientfficos em referfincia a uma instituisSo) e a anfilisepor ele chamada nao-institiicional, da qual seria proveniente o estudo do mito (e, po-de-se acrescentar, o estudo dos discursos ideoldgicos). Pode-se ver aqui a primeiraformulae.ao de uma oposigao que vai tomar, em seus itltimos textos, a forma da dis-tinc,ao entre "universos discursivos logicamente estabilizados" (p.ex. cientfficos) e"universos discursivos nao estabilizados logicamente" (prdprios ao espago so io-histdrico). Ver DRLAV 27, 1982, p. 19; "Lire I'arehive aujourd'hui". Archives et do-cuments, n2 2, SHESL, 1982.

As notas que seguem s3o as acrescentadas ao texto original de Michel PScheuxpelos autores do artigo Apresentaedo da conjuntura em ling&&tica> &" psicanaUse eem inforrndtica aplicada ao estudo dos textos na Franca, em 1969.

153

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*• ' Convem tornar precise: previo a qualquer an&ise documental. A citacao deG.Mounin remete, em Les problems th£oriques de la traduction, ao capftulo 8, con-sagrado a anSlise documental de J.C.Gardin.

' ' Para o uso que 6 feito da nocao de teoria regional do significante, ver "Sur laquestion du sujet".r o - i1 ' Essa passagem remete evidentemente ao conceito de gramaticalidade introdu-zido pela grama"tica gerativa. MP nao emprega o termo, mas fala de "normalidade doenunciado". Ao fazer isso, muito mais do que colocar a questao da boa formacaogramatical do enunciado, ele o situa no terreno da aceitabilidade por um locutor.O retorno a Saussure e o comentario sobre seu exemplo nao contribuem para o es-clarecimento do problema, ao se substituir a questao sobre a regularidade combina-tdria por uma questao sobre o que pode ser dito em funcao dos conhecimentos cien-tificos de uma epoca dada.

Essa discussao nao se da" scm adiantar aquela que se passara" nos anos setenta, entresemanu'ctstas e grama"ticos gerativistas (debate conhecido na Franca atraves da tradu-cao dc Lakoff em 1973), sobre a aceitabilidade de uma frase como "Pedro chamouMaria dc rcpublicana e ela, por sua vez, o insultou ", em que o uso dc "insultar" im-plica que scja ofensivo chamar algu£m de republicano.

' " J A referenda a um "mecanismo discursive" provoca a "mudanga de terreno"evocada mais acima, ao ser proposto um princfpio explicative exterior a Ifngua. Aquestao vai encontrar sua formulacao quando MP, cm Semantica e discurso: uma cri-tica (i aftrmacao do obvio e em Langages 37, opoe base lingiifstica e processes dis-cursivos. Mas ela implica a ideologia, Em 1969, em linguagem filosdfica (oposigaoentre o universal/a universalidadc e o extra-individual/a singularidade individual),MP introduz, sem design^-Ia como tal, a questao da ideologia. Mascaramento? Pro-blema"tica ainda nao resolvida? Nao nos cabe decidir.

Pode-se fazer, entretanto, duas observances. A partir do artigo dc Langages 24 sobreo corte saussuriano (1971), MP introduz o conceito de formacao discursiva em suarelacao com a formacao ideoldgica; paralelamente, a questao do lugar da semanticana lingufstica, inscrita apenas como filigrana em AAI>69, toma-se central. Assim, areferencia nao-crftica a proposisao de Jakobson de ver sob "o cddigo global da Ifn-gua" um "sistema de subcddigos em comunicacao recfproca" toma lugar em Langa-ges 24 com uma decisao tedrica que exclui a possibilidade de regrar a questao de"discursos rcalizados a partir de posigoes diferentes", "ligando esses discursos a di-versos subsistemas da Ifngua".

( 1" J MP nao da" aqui nenhuma referencia. A questao dos campos semanticos foinotadamente apresentada por G.Mounin (1963; cf. cap, 6 "La structure du lexique etla traduction", que, sob essa expressao, redne: "o 'sprachliche Feld' de Jost Trier edos alemaes, a 'area of meaning' dos autores anglo-saxoes, o 'campo nocional* deMatore", os 'campos lexicoltfgicos' de Guiraud"). Essa nocao esta" presente nas dis-cussoes da Spoca, ilustrando contraditoriamente as possibilidades e os limites da an&-lise estrutural (ver Todorov, Langages 1, 1966). O campo semantico parece abriruma brecha na homogeneidade estrutural.Importantes trabalhos de lexicologia destinam-se a circunscrever, baseados em do-mfnios particulares, as relacdes entre Ifngua e sociedade. A tese de Jean Dubois sobreo vocabulaVio de La Commune (1962) constitui o arque"tipo. Toda uma producaoabundante — testemunhada pelos Caftiers de lexicologie e pela revista Langue jran-caise de ne 2(1969), consagrada ao lexico por Louis Guilbert - forma o htimus sobreo qual a ana" Use do discurso (em sua versao AAD de Michel Pficheux ou na versaoharrisiana de Jean Dubois) vai ter o seu nascimento.

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I I Se essa passagem constitui um avanco na "teoria dos processes discursivos"constata-se que o termo discurso ainda nao recebeu um estatuto tedrico bem nftido'Passa-se, aqui, de um emprego tedrico (o discurso como "parte de um mecanismoem funcionamento... proveniente da estrutura de uma ideologia politica") a descri-coes em que o termo discurso especificado como polftico tem apenas um valor empf-rico. Seja como for, & precise notar que o fato de se evocarem as condicoes de produ-cao, a relagao de forgas em que 6 precise situar o discurso, deve ser recolocado emuma conjuntura em que a emergencia de conceitos vindosdomarxismorepresentavauma audacia inetlita com respeito a insdtuicao universitaVia.[ | T 1l*- > Encontra-se aqui a dnica referencia a Austin e a problem^tica do "performa-tive". Trata-se, como se ve, de uma alusao nao-trabalhada (Austin nao aparece,ali3s, na bibliografia), A tradugao de Austin surge na Franca em 1970, sob otitulodeQuand dire c'est faire. Foi atraves de Benveniste ("A filosofia analftica e a lingua-gem") que os linguistas tomaram conhecimento dos temas da filosofia analftica. Umtitulo de Slakta em 1974 ("Essai pour Austin", em Langue frangaise n- 2) testemu-nha a lenn'dao com a qual os temas dos atos de linguagem penetram no meio lingufs-tico. Quanto aos primeiros escritos de Ducrot, que vao popularizar esses temas, saodoperfodo 1965-1970.

i '•* \ Encontra-se aqui, sob forma descritiva, a primeira mencao a sustentagao dodiscurso sobre um discurso previo.

[ 14 1 Toda essa passagem do livro e capital, jd que constitui uma das raras partes"nao-t£cnicas" em que sao apresentadas algumas das premissas tedricas do instru-mento.J£ de infcio, trata-se de efettiar uma escolha entre duas famQias de esquemas concer-nentes a descricao do comportamento (o destaque 6 nosso) lingiifstico. Sob a protecSode uma tal escolha, est£ a nogao de comportamento, nogao central da psicologia, quese encontra ratificada sem qualquer discussao.O chamado esquema "informacional", sustentado pelo artigo citado de Serge Mos-covici e Michel Plon, 6 evidentemente preferido ao esquema "reacional" do tipo"estfmulo-resposta". Essa referencia impoe a colocagao de algumas questoes, umavez que (exceto o fato de que o esquema behaviorista se encontra efetivamente rejei-tado) toda a sua ancoragem se da" na psicologia, sendo o artigo e a experie'ncia que etcveicula perfeitamente representatives de uma psicologia social que ignora delibera-damente tanto Freud e Lacan quanto desenvolvimentos contemporaneos, quaisquerque sejam eles, da lingufstica.O esquema que entao se fixa designa os "elementos A e B'f como o "destinador" e o"destinatario". A e B sao alternadamente "pontos", "lugares" que "sao representa-dos nos processes discursivos em que sao postos em jogo". Certo, mas algumas H-nhas mais adiante, o que esta* em questao £ "... o lugar que A e B se atribuem, cadaum, a si e ao outro, a imagem que se fazem de seu prdprio lugar e do lugar do outre".Que estranhos lugares sao esses, que se fazem uma imagem de seu lugar bem comodo lugar do outro... lugar!Ainda um pouco mais adiante, e nos depanunos com um quadro recapitulativo/expli-cativo em que se pode ler que IA (A) signifies "imagem do lugar de A para o sujeitocolocado em A", o que se pode traduzir por "quern sou eo para Ihe falar assim? ,exatamente uma questao que poderia ser colocada por um "sujeito" da psicologia so-cial e que se pode qualificar como sendo, integralmente, da ordem do imaginario,pelo que se atesta, alias involuntariamente, a total ausfincia de distinsao nesse mesmoquadro entre o "eu" e o "mim" [moi] distribufdos nos exemplos.Pode-se dizer que, com essa passagem, atmgimos o centre do paradoxo, a fonts denumerosos mal-entendidos que a AAD n§o deixar^, em seguida, de provocar. Na

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verdade, ao ser comparada com o artigo citado de Moscovici e Plon, e, mais ampla-mente, com a psicologia social que trata da "comunicagao", a trajetdria de MP cons-titui um avanco formidavel, ao p6r em desordem o formalismo em vigor no minimopor causa de um ponto decisivo, ignorado pela psicologia social por razoes estrutu-rais, a saber, que ai se leva em conta, como parametro essenciat, aquilo de que se fa-la, o referente do discurso; o que implica que se estS prestes a considerar que as coisasnao se desenvolvem da mesma maneira segundo se fale de tal ou tal coisa. Mas, si-multaneamcnte, essa verdadeira ruptura - para se con veneer disso, basta evocar o queforam as reacoes no mcio da psicologia - leva a crenca em um possfvel desenvolvi-mento de uma area de pesquisa e de conhecimento sobre essas questoes que nao ne-cessitasse levar em conta a teoria psicanalftica. Af esti o equfvoco, que, na verdade, 6duplo: fazer economia de uma tal teoria & impossfvel, sob pena de se retomar aostrilhos da psicologia; nao fazS-la implica uma total desordenacao do percurso, umarecoloca§ao em questao de seus fundamentos. E 6 dizer pouco lembrar que MP naodeixard de voltar a esses pontos.O esclarecimento dessas questoes bem como de outras que essa passagem sugere, taiscomo as referencias aos trabalhos de O.Ducrot, sera" feito, com uma agudeza incon-tornavel,- por Paul Henry em seu livro Le mauvais outil, pufalicado em 1977 pelasEditions Klincksieck.

' ' A referenda a O.Ducrot, cujos trabalhos sobre a pressuposicao comecam a serconhecidos pelos linguistas (Langages 2, 1966), fomece uma base lingiifstica a hi-pdtese de sustenta^ao do discurso sobre o discurso prdvio, formulada aqui nos termosdo "jd-dito". Deve-se ver nesse ponto a origem detodaumaproblema"ticaquevira.O pr6-construfdo (elaborado por MP e Paul Henry, e que serf exposto por este lilti-mo particularmente em Langages 37, no ano de 1975, eemte mauvais outU, noanode 1977} constitui uma alternativa a pressuposicao; dissociado da problematics co-municacional de Ducrot, & considerado como o vestfgio de enunciacoes feitas alhu-res. Ele ganha lugar no interior de um conjunto conceptual: formacao discursi-va/formacao ideo!6gica; intradiscurso/interdiscurso. Remeteremos, aqui mcsmo,a Langages 37 e it teorizacao dos "dois esquecimentos"; cf. igualmente "AD: trese'pocas".

' 16 J Essa citacao de Todorov 6 extrafda do artigo que abre "Recherches se"manti-ques", primeiro ntfmero da rcvista Langages (1966). Ela tern lugar em uma reflexaosobre os "impasses da semSntica estrutural" e 6 bastante representativa das esperan-cas que a teoria gerativa representava para alguns estudiosos na conjuntura !ingiifsti-cadosanos 1965-1970.

[ I ' J Deve-se ler essa passagem ressaltando-se que MP retoma a seu modo as ftfr-mulas pelas quais a "revolucao copeYnico-chomskyana" 6 recebida na Franca. Aomesmo tempo, ele assinala o que, de seu ponto de vista, tonta incompatfveis o pro-jeto da GGT e seu prdprio projeto: trata-se, mais uma vez, da questao do sujeito, e aunica coisa que MP pode fazer 6 rejeitar o postulado de um sujeito psicologico uni-versal como suporte do processo de producao de todos os discursos possfveis. Se MPfoi tentado pelo fantasma de um mecanismo de engendramento dos discursos, 0 queresta de sua confrontacao com o modelo de Chomsky 6 que ele pretende, no que Ihediz respeito, se situar no terreno da artalise de processos de producSo do discurso.Mas uma das diflculdades principals recebe aqui sua primeira formulagao atraves dacrftica a concepcao atomfstica do sentido. O que fica como horizonte i a questao da"semantica universal", o lugar da semantica na lingiifstica. Essa questao, retomadacom forca em Langages 24, retoma em Langages 37 e em Semantica e discurso: umacrftica d afirmacao do 6bv\o.

' 18 J Como introducao ao me'todo de andlise que vai elaborar, MP consagra umlongo desenvolvimento a questao da operacao de substituicao de termos em um con-

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texto dado. Ale"m da referenda a Saussure, o problema da sinonimia contextualabordado aqui remete, sem que seja nomeado, S problema'tica de Harris, e nao 6 se-nao um caso particular do problema da pardfrase.Em Langages 37, quando se refere a Harris ("pensavamos em ir at£ o limite mdximodas possibilidades abertas pelo trabalho de Harris", p. 70), MP introduz a no§ao deparafrase discursiva como constitutiva dos efeitos de sentido ligados a um processodiscursivo e especifica a sinonfmia entre as relacoes de transforma^ao (ver pp. 74-5).

[ '" J Pela apresentacao do "efeito metafdrico", MP manifesta, a propdsito dossistemas lingufsticos "naturais" (em oposigao as "Imguas artificiais"), uma posigaosobre a recusa a qualquer metalingua que nao sofrera" variacoes (ver "AD: tres £po-cas"). -[ 20 ] o prdprio MP tenta explicar o empre'stimo terminoldgico que faz de Choms-ky. A oposicao estrutura profunda/estrutura de superffcie representa uma analogiautilizada em 1969 para marcar a relacao invariante/varias&es. MP destaca essa analo-gia em Langages 37 (pp. 72-3), ao mesmo tempo em que se volta de maneira crfticasobre a oposigao invariante/variacao, que Ihe parece estar re-inscrita nas dicotomiastradicionais denotagao/conotacao, norma/desvio, e estar colocando novamente emcausa a concepcao da "metfifora primeira e constitutiva".Deve-se notar que a expressao "superffcie discursiva" ser^ frequentemente retomadana analise do discurso, fora do trabalho de MP e de seu grupo.[ 21 J ]S precise admitir a confusao dessa passagem sobreocontextode substituicao.^ creditada a Jakobson - ao contrario do que deixava transparecer a citagao da p£gina10, embora extrafda do mesmo capftulo dos&«iw-uma posigao linear: funcionam,do fonema ao discurso, as mesmas regras de combinacao. Ele & citado - parece-nos -apenas para que seja mais valorizada a contribuigao de Benveniste sobre a frase,contribuicao que, no mais, nao 6 explorada. Mas a escolha terminol<5gica (empregode enunciado por frase elementar) obscurece o desenvolvimento.I 22 ] DC Benveniste, MP aponta a posicao subjetiva sobre a "criacJio infinita". Eleretornara, em Langages 37, a concepgao de Benveniste: "a dualidade ideoldgica queassocia sistema (de signos) e criatividade (individual): o 'discurso' nao passa de umnovo avatar da fala" (p. 79). Mas o percurso inclui, entao, uma reflexao sobre osprocessos de enunciagao, que, cada vez mais, ganha importiuTcianasobrasposterio-res.E 23 ] kjp vale-se de uma terminologia que corre o risco de se prestar a confusoesquando op6e a anafora interna (os fenfimenos de substituicao no fio do texto) S ana1-fora externa (a remissSo aos protagonistas da enunciasao). A citagao de Benveniste,evidentemente, toma precise o estatuto dos elementos que se referem a enuncia$ao(andfora externa nos termos de MP).I 24 ] ]5 aqui que deveria figurar a nota 37.[ 25 ] [yjp jefere-se livremente & nogao de ordem dependente apresentada por Ja-kobson em sua tentativa de classificacao das categorias verbais. Essanocao permitiaa Jakobson caracterizar relagoes expressas especialmente pelo sistema verbal da 1m-gua gilyak (relacao CeCe).

[ 26 ] ^ propdsito dessa transformagao, MP remete & passagem em que ele introdu-ziu o termo. Encontra-se na p. 120 uma apresentagao do conjunto das transfonna-cSes, caracterizadas em tipos Tl, T2, T3, a, b. O termo transformacao designa emHarris regras de equivaiencia gramatical entre estruturas. E" exatamente esse valorque MP Ihe da, mas, como vimos na JntrodugSo, a referdncia a Harris aparece apenasuma vez e de maneira incidental a propdsilo das T2 ("Baseamo-nos aqui nos

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trabalhos de Harris {1963) que mostram que 6 possfvel recuperar, por meio da trans-formasao, o enunciado latente constitufdo pela adjetivacao").t 27 ] A partir da ptfgina 12, MP introduz "a nocao de 'fundo invariante' da Ifngua(essencialmente: a sintaxe como fonte de coercoes universais)". A varia^ao, como seve aqui, diz respeito a selecao-combinacao das unidades lexicais, que nao provfim dosistema da Ifngua. Cf. Langages 37, pp. 16-7.

[ 28 ] Deve-se salientar a nota 2, onde esti em questao a teoria da ideologia, que 6,entao, apenas um projeto ao qual um certo Thomas Herbert, soberbamente ignoradopelo autor da AAD, dava infcio, e uma "teoria do inconsciente" que, assim referida,poderia, alias, ser considerada como estando, ela tamb6m, por vir... Essa indicacaofurtiva, justo quando sao discutidas perspectivas de utilizacao, parece-nos bastanterepresentativa tanto da desconfianca tatica de MP quanto de sua "crenga" mantida navinda de um Eldorado, que seria o da realizacao daquilo a que chamamos o fantasmada articulagao.

t 29 ] Voltando-se, em sua conclusao, sobre a pratica de leitura que a AAD consti-tui, MP introduz o "princfpio da dupla diferenca". Durante toda a passagem, po-de-se ver aqui a pre"- figuracao de elementos tedricos pelos quais se enriquecerS pos-teriorniente a problematica de MP: Formagao Ideoldgica, Formacao Discursiva, In-terdiscurso, Intradiscurso...

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NOTAS1 Isto 6, a filosofia, segundo Saussure, na medida em que ela pretends antes de tu.

do "fixar, interpretar, comentar textos" (Saussure, 1915,13sed., 1987, p.7).

^ Lei de Estoup-Zipf-Mandelbrot.q

Pode-se, entretanto, observar que o me'todo de anSIise das co-ocorrencias (con-tingency analysis) permite observar um tipo particular de relacoes entre os elementos(a saber: sua 'presenca simultSnea namesmaunidade'texto). (Sola-Pool, 1959, p.6iess.).

Se o acordo for ou nao obtido por uma discussao coletiva ou por um processocomo o de Round Robin.

A passagem do artesanato para a indtistria nao muda fundamentalmente a ques-tao: o me'todo do General Inquirer (Philip J.Stone, MIT Press) consiste em salientar,no corpus, as ocorrencias das palavras e das frases correspondentes a categorias in-troduzidas previamente em um programa de reconhecimento. Claro que existem v&-rios progratnas, entre os quais o analista escolhe em furujao de suas necessidades -isto 6, o mais frequentemente, em funcao dos pressupostos tedricos que governamsua leitura,6 Mais precisamente, seja a seus prdprios conceitos (por exemplo, a oposi9ao para-

digma/sintagma), seja a seus instrumentos (por exemplo, grama'ticas gerativas, siste-mas transformacionais).

7' A rela^ao psicanalftica constituiria assim, neste ponto, um caso particular na me-dida em que aquele que 6 "analisado" existe tamb&n pelo e para o desejo do analista.

o0 A enfase 6 nossa.9 Cf.p.92.

10 Cf. p. 79.

* * Pode-se reencontrar o trago da oposigao: fungao aparente/funcionamento implf-cito em Merton (funcao manifesta/fungao latente) e tamb£m em Durkheim.12 Robert Pages (in "Image de r£metteur et du recepteur dans la communication,Bulletin de Psychologie de I'UniversitS de Paris, abril 1955) observa que o emissor seguia, se "ajusta" em seu discurso por pressuposigoes que visam um "pdblico relati-vamente determinado". Em certos casos, acrescenta ele, o emissor 6 informado do"eco" encontrado por emissoes anteriores no receptor e modifica paulatinamentesuas pressuposi9des.13 Cf. em particular a esse respeito os trabalhos de LJriguaray, n- 5, p.84 e ss.

Notemos no entanto que, em ntimero recente consagrado as "prfticas e lingua-gens gestuais" (Langages n- 10, junho 1968), certos elementos desta teoria se en-contram reunidos,15 Cf.p.77.16 Observemos que existe um certo mfmero de tragos retdricos (sintdticos e semanti-cos) suscetfveis de serem explicitamente remetidos a este ou aquele elemento ou inS-tincia de /";.Por exemplo:

JSU3('0) '• " Voc6 vai pensar que eu sou indiscrete"./2(/jJW) : "Que coisa estranha, dir5 vocg...".

Isto nao significa, no entanto, que todo fragmento da seqiiencia discursiva possa s61"referido de forma unfvoca a uma instancia determinada.

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Por outro lado, deixaremos de lado aqui a questaode saber seexpressoesdegrau su-perior t£m ou nao uma significa^ao com respeito ao problema considerado.

*7 O.Ducrot, "Logique et linguistique" , Langages n? 2; ibid., pp. 84-85,18 Cf.p.79.

"Cf.p.86.20 Cf. p. 99- 100.21 Cf. p. 77-78.22 Observemos que nao se deve confundir a designacao de uma realizacao discursi-va particular de DX (seja DXJ) com a de uma sub-sequencia (sejaDJ.cf. p. 90) corres-pondente a um estado Pi das condic.6es de produsao.23 Cf. p. 81 ess.24 Esta opera$ao 6 freqiientemente chamada "ana"lise componencial" .25 li notdvel que, neste ponto, Chomsky permanece, ele mesmo, mais discrete emais prudente que mumerSveis tetfricos que se inspiram em seu pensamenlo. E, poroutro lado, sempre possfvel pensar a constituigao de uma semantica que nao fosse ta-\on6mica,26 A palavra "superffcie" introduzida por Chomsky (estrutura profunda/estruturade superfTcie) deve aqui ser referida a seu contexto geome'trico a saber: a superffciecomo justaposi?ao de linhas discursivas D i ,..., Dx_. Trata-se, pois, menos de refe-rir a seqiiencia linear as operacfies subjacentes de que ela seria o vestfgio, do que derelacioaar cada linha discursiva com o conjunto das outras linhas que Ihe sao parale-las, para um dado estado das condicoes de producao. O profundo n5o estaha, pois,entao, sob a superffcie, mas na rela^ao que cada superffcie (no sentido de Chomsky)mantem com suas variagoes, na superffcie (no sentido "geome'trico" que Ihe da-

27 O "discurso implfcito" exigido, como viroos (cf, pp. 85-86), pelo orador daparte do ouvinte nao estfi mais presents nos termos no interior do discurso do orador,o que funda para este dltimo a possibilidade de engendrar asfiguras de estila, jogandosobre as expectativas do outro.TO£-° Esses pontos serao tratados de maneira mais detalhadana parte II, p. 132.

"}QTomamos de empr6stimo este termo a Benveniste, que relaciona assim, de ma-

neira evidente, o discurso a fala.30 Cf. p. 123.3 Cf. Analyse Automatique du Discours, p. 49.32 Cf. p. III.

" Cf. Analyse Automatique du Discours, p. 47.34 Jakobson,op. cit., p. 154.35 Cf.p.85.3" Colocaremos nesse caso a existSncia de um conteddo impessoal de SNi : "isto"= "ele" impessoal.37 Faremos aqui grande uso das distincoes e especifica^Ses que derivam da meto-dologia lingufstica, que M.Culioli teve a amabilidade de nos comunicar, especial-mente sobre as questoes do modo de determinafdo do SN, das marcas Sgadas aosintagma verbal e da lexis.

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-10 RJakobson, art. cit. p.!83,a propdsito do conceito deordem("aordem caracteriza o processo do enunciado em relagao a um outro processo do enunciado e semreferenda ao processo da enunciac.ao"). *39 Ibid.,p.l82.40 Cf. p. 113.41 Jakobson, I963,p.l83.

Ibid.

Ibid.

Cf, AnalyseAutomalique du Discours, p. 128 e ss.

42

4344

45 Cf. "Regularizacao do registro", p. 121.

Uma vez que o ndmero initial 6 definido por crite'rios extemos parece possfvelconceber umjtttro que selecione, por meio de crite'rios internes, os discursos suscetf-veis de "enriquecer" o ndcleo inicialmente dado.47

48Cf. pp. 100-101.

Ibid.

A tftulo pro'viso'rio, proporemos as seguintes ponderac.oes:

*rw*,/*,tit.1.

F D, A1,

3 2 5

— 1 —

— — —

V

5_

2

ADV W

3 3

1 1

— —

D,

2

1

N,

5

I

50 Cf. pp. 142-144.

-^ Sublinhamos ainda que uma vez que a teoria do discurso nao pode de forma al-guma substituir uma teoria da ideologia, da mesma forma que nao pode substituiruma teoria do inconsciente, mas ela pode intervir no campo dessas teorias.'2''52 Entre ArisbSteles e Harvey, diz G.Canguilhem, asmetSforas diferem. Aristtftelespensava que o sangue irrigava o corpo como a a"gua irriga a terra. Harvey, ao contrS-ho, concebe a circulacao sangiifnea como um sistema hidra'ulico, com bombas e di-ques.

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T

IVA PROPOSITO DA ANALISE AUTOMATICA

DO DISCURSO: ATUALIZA£AO EPERSPECTIVAS (1975)

M PecheuxC.Fuchs

Nestes dltimos anos, a "aniSlise automa"tica do discurso"(abreviadamente: AAD) produziu um certo numero de publica-coes, tanto no nfvel tedrico quanto no das aplicagoes experi-mentais.1 Parece-nos que as observances, interpretac.6es, crfticasou mesmo deformacoes que suscitaram nestes dois niveis2 preci-sam de uma reformulacao de conjunto, visando a eliminar certasambigiiidades, retificar certos erros, constatar certas dificuldadesnao-resolvidas e, ao mesmo tempo, indicar as bases para umanova formulagao da questao, a luz dos desenvolvimentos maisrecentes, freqiientemente nao-publicados, da reflexao sobre arelacao entre a lingiifstica e a teoria do discurso. Daf, a presengaindispensaVel de um lingiiista no balango que empreendemos.

Para evitar qualquer equfvoco que anisque confundir o ne-cess^rio trabalho crftico, pn5prio a um campo tedrico, com astentativas de recuo visando a abandonar o campo, comecaremospor apresentar, numa primeira parte,o quadro epistemoldgicogeral deste empreendimento.

Ele reside, a i^osso ver, .na articulagao de tres regioes doconhecimento cientffico:

1. o materialismo histdnco, como teoria dasciais 6 de suas transformasoes, compreendida a( a

2. a lingufstica,cqmo teoria dos mecanismos sint^ticosje_dos processes de enuncia5ao ao mesmo tempo;

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3. a teoria do discurso, como teoria da determinagao histd-rica dos processes semanticos.

Conv£m explicitar ainda que estas tres regioes sao, decerto modo, atravessadas e articuladas por uma teoria da subje-tividade (de natureza psicanalftica).

Isto nos levara" a reformular como uma das questoes cen-trais a que se refere a leitura, ao efeito leitor como constitutiveda subjetividade, e caracterizado pelo fato de que, para que elese realize, € necessario que as condicoes de existencia desteefeito, estejam dissimuladas para o prdprio sujeito. Acerca desteponto tentaremos levar em conta o que, neste esquecimento,pertence especificamente ao dominio lingufstico, em relagao asregioes ndo ou/we-lingiiisticas.

A segunda parte sera" consagrada a discussao, em detalhe,dos diferentes aspectos criticados, o que nao se pode fazer senaono quadro tedrico geral da primeira parte, indicando-se, todas asvezes que for possi'vel, os meios de reformar localmente este ouaquele aspecto ultrapassado (permanecendo-se inteiramente noquadro da problem^tica inicial), e tentando-se, por outro lado,na medida do possi'vel, preparar as condigoes para uma trans-formagao radical do problema em seus prdprios termos. Isto e",as condigdes para uma revolugao de que todos sentem a necessi-dade mas cuja forma 6, hoje, impossfvel de se prever. Se 6 ver-dade que "nao se destrdi senao o que se substitui" (a AAD vi-sando, ela prdpria, a destruir deste ponto de vista a "analise deconteudo") a responsabilidade tedrica impde, antes de mais na-da, que se prepare o terreno sobre o qual se possa efetuar odeslocamento-substituigao que evocamos aqui pela met£fora dapalavra "revolugao". Isto pressupoe, particularmente, que sejasuperado o atraso no nfvel dos procedimentos prdticos de trata-mento dos textos em comparagao com o nfvel atingido nas dis-cussdes sobre a relagao entre as tres regioes mencionadas ante-riormente e, antes de tudo, que seja reduzida a distancia que se-para a andlise de discurso da teoria do discurso,

I — Formacao social, lingua, discurso

/. FormoQ&o social, ideologia, discurso

O ponto de organizagao desta primeira parte 6 constitufdopela relagao entre as Ire's regioes mencionadas anteriormente e

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que sao evocadas no tftulo geral da primeira parte. Observemosdesde logo que, nas condigdes atuais do trabalho universitariotudo concorre para tornar mais diffcil a articulacao tedrica entreestas regioes. Alem de esta articulacao parecer a alguns de gostotedrico duvidoso, subsiste o fato de que, mesmo com a melhorvontade tedrica e polftica do mundo, € diffcil levantar os obsta-culos organizacionais e epistemoldgicos ligados a balcanizagaodos conhecimentos e sobretudo ao recalcamento-mascaramentouniversit^rio do materialismo histdrico. A experiencia comega anos ensinar que 6 diffcil evitar as tradugoes espontaneas que fa-zem com que o materialismo historico se transforme em "socio-logia", a teoria do discurso se reserve o "aspecto social da lin-guagem" etc. Mesmo em relagao aos pesquisadores marxistas,acontece freqiientemente que, capazes de uma crftica Itfcida desua disciplina de origem, permanecem cegos a certos aspectosacademico-idealistas das disciplinas vizinhas, a ponto de acre-ditarem poder encontrar diretamente af "instrumentos" uteis pa-ra a sua prdpria pratica, inclusive sua prdtica crftica.

A formulagao desta articulagao que aqui propomos nao es-capa, evidentemente, ao risco assinalado, jd que este risco €.coextensivo as condigoes da prdtica universitdria atual. Reto-mando o estado mais recente desta formulacao,3 colocaremosinicialmente que a regiao do materialismo histdrico que nos dizrespeito 6 a da superestrutura ideoldgica em sua ligagao com omodo de produgao que domina a formagao social considerada.Os trabalhos marxistas recentes4 mostram a insuflciencia deconsiderar a superestrutura ideoldgica como expressao da "baseecondmica", como se a ideologia fosse constitufda pela "esferadas idems" acima do mundo das coisas, dos fatos economicosetc. Em outras palavras, a regiao da ideologia deve ser caracte-rizada por uma materialidade especffica articulada sobre a mate-rialidade economica: mais particularmente, o funcionamento dainstancia ideoldgica deve ser concebido como "determinado emultima instancia" pela instancia economica, na medida em queaparece como uma das condicoes (nao-econo'micas) da reprodu-gao da base economica, mais especificamente das relagoes deprodugao inerentes a esta base econdmica.5 A modalidade parti-cular do funcionamento da instancia ideoldgica quanto a repro-dugao das relagdes de produgao consiste no que se convencio-nou charnar interpelagdo, ou o assujeitamento do sujeito como

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sujeito ideoldgico, de tal modo que cada um seja conduzido, semse dar conta, e tendo a impressao de estar exercendo sua livrevontade, a ocupar o seu litgar em uma ou outra das duas classessocials antagonistas do modo de produgao (ou naquela catego-ria, camada ou fragao de classe ligada a uma delas).6 Esta re-producao contfnua das relacoes de classe (economica, mas tam-bem, como acabamos de ver, nao-economica) € assegurada ma-terialmente pela existencia de realidades complexas designadaspor Althusser como "aparelhos ideoldgicos do Estado", e que secaracterizam pelo fato de colocarem em jogo pra"ticas associadasa lugares ou a relacoes de lugares que remetem as relacoes declasses sem, no entanto, decalca-las exatamente. Num dado mo-mento histdrico, as relagdes de classes (a luta de classes) se ca-racterizam pelo afrontamento, no interior mesmo destes apare-lhos, de posicoes poh'ticas e ideoldgicas "que nao constituem'amaneira de ser dos individuos, mas que se organizam em forma-coes que mantem entre si relagoes de antagonismo, de alianga oude dominagao. Falaremos de formagao ideologica para caracte-rizar um elemento (este aspecto da luta nos aparelhos) suscetfvelde intervir como uma forga em confronto com outras forgas naconjuntura ideoldgica caracterfstica de uma formagao social emdado momento; desse modo, cada formagao ideoldgica constituium conjunto complexo de atitudes e de representagoes7 que naosao nem 'individuals' nem 'universais' mas se relacionammais ou menos diretamente a posigoes de classes em conflitoumas com as outras".8 Somos levados, assim, a nos colocar aquestao da relagao entre ideologia e discurso. Considerando oque precede, ve-se claramente que 6 impossfvel identificarideologia e discurso (o que seria uma concepcao idealista daideologia como esfera das ideias e dos discursos), mas que sedeve conceber o discursive como um dos aspectos materials doque chamamos de materialidade ideoldgica. Dito de outro modo,a esp£cie discursiva pertence, assim pensamos, ao genero ideo-ldgico, o que 6 o mesmo que dizer que as formagoes ideolo"gicasde que acabamos de falar "comportam necessariamente,9 comoum de seus componentes, uma ou va"rias formagoes discursi-vas interligadas que determinam o que pode e deve ser dito (ar-ticulado sob a forma de uma harenga, um sermao, um panfleto,uma exposigao, um programa etc.) a partir de uma posicao dadanuma conjuntura",10 isto 6, numa certa relagao de lugares no

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interior de um aparelho ideoldgico, e inscrita numa relacao declasses. Diremos, entao, que toda formacao discursiva deriva decondigoes de produfdo11 especfficas, identifiedveis a partir doque acabamos de designar.

Logo "a ideologia interpela os individuos em sujeitos":esta lei constitutiva da Ideologia nunca se realiza "em geral",mas sempre atraves de um conjunto complexo determinado deformagoes ideoldgicas que desempenham no interior deste con-junto, em cada fase histdrica da luta de classes, um papel neces-sariamente desigual na reprodugao e na transformacao das rela-coes de produgao, e isto, em razao de suas caracten'sticas "re-gionais" (o Direito, a Moral, o Conhecimento, Deus etc....) e,ao mesmo tempo, de suas caracterfsticas de classe. Por esta du-pla razao, as formacoes discursivas intervem nas formacoesideoldgicas enquanto componentes. Tomemos um exemplo: aformagdo ideologica religiosa constitui, no modo de produgaofeudal, a forma da ideologia dominance; ela realiza "a interpela-gao dos individuos em sujeitos" atraves do Aparelho Ideoldgicodo Estado religiose "especializado" nas relacoes de Deus comos homens, sujeitos de Deus, na forma especffica das cerimonias(offcios, batismos, casamentos e enterros etc...) que, sob a figureda religiao, intervem, em realidade, nas relagoes juridicas e naprodu§ao economica, portanto no prdprio interior das rela9oesde produgao feudais. Na realizacao destas relagoes ideoldgicasde classes, diversas formagoes discursivas intervem enquantocomponentes, combinadas cada vez em formas especfficas; porexemplo, e enquanto hipdtese histdrica a ser verificada: de umlado, a pregagao camponesa reproduzida pelo "Baixo-Clero"no interior do campesinato, de outro o sermao do Alto-Clero pa-ra os Grandes da nobreza, logo duas formagoes discursivas, aprimeira subordinada a segunda, de modo que se trata, ao mes-mo tempo, das mesmas "coisas" (a pobreza, a morte, a submis-sao etc...) mas sob formas diferentes (ex.: a submissao do povoaos Grandes/a submissao dos Grandes a Deus) e tambem de"coisas" diferentes (ex.: o trabalho da terra/o destino dos Gran-des).

Enfim, sublinhemos que uma formagab discursiva existehistoricamente no interior de determinadas relagoes de classes;pode fornecer elementos que se Integram em novas formagoes

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discursivas, constituindo-se no interior de novas relagoes ideo-logicas, que colocam em jogo novas formacoes ideo!6gicas. Porexemplo (e isto seria igualmente objeto de verificacjao histdrica),podemos adiantar que as formagoes discursivas evocadas acima,desaparecidas enquanto tais, forneceram ingredientes que foram"retornados" em diferentes formas histoYicas do atefsmo bur-gues e reapropriados na dominagao ideoldgica da classe burgue-sa, sob a forma de novas formacoes discursivas (integrando, porexemplo, certos discursos parlamentares da Revolugao de 1789).

Aqui surge urna dificuldade que os teoYicos marxistas co-nhecem bem: a de .caracterizar as fronteiras reais dos objetosreais que correspondem aos conceitos introduzidos (p.ex., for-magao ideologica, formagao discursiva, condigoes de produgao).Esta "dificuldade" nao 6 efeito apenas de um malfadado acasomas resulta da contradicao existente entre a natureza destes con-ceitos e o uso espontaneamente imobilista e classificatono (deque nao se pode impedir a ocorrencia) sob a forma de questoesaparentemente inevitaVeis do tipo: "quantas formagoes ideol(5gi-cas existem numa formacao social? quantas formagoes discursi-vas pode center cada uma delas etc.?" Efetivamente, e levandoem conta precisamente o carater dial&tico das realidades aquidesignadas, uma discretizagdo de tal ordem £ radicalmente im-possi'vel, salvo se inscrever-se na propria determinagao de cadaum destes objetos a possibilidade de se transformar em outro,isto e, de denunciar precisamente como uma ilusao o seu cardterdiscreto.

O ponto da exterioridade relativa de uma formacao ideold-gica em relacao a uma formagao discursiva se traduz no prdpriointerior desta formagao discursiva: ela designs o efeito necessa-rio de elementos ideoldgicos nao-discursivos (representagoes,imagens ligadas a prdticas etc.) numa determinada formac.ao dis-cursiva. Ou melhor, no prdprio interior do discursive ela provo-ca uma defasagem que reflete esta exterioridade. Trata-rse da de-fasagem entre uma e outra formacao discursiva, a primeira ser-vindo de algum modo de mate"ria-prima representacional para asegunda, como se a discursividade desta "mate"ria-prima" se es-vanecesse aos olhos do sujeito falante.12 Trata-se do que carac-terizamos como o esquecimento ne I,13 inevitavelmente inerentea pratica subjetiva ligada a linguagem. Mas, simultaneamente, e

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isto constitui uma outra forma deste mesmo esquecimento oprocesso pelo qual uma seqiiencia discursiva concrete 6 produ-zida, ou reconhecida como sendo um sentido para um sujeito seapaga, ele pr6prio, aos olhos do sujeito. Queremos dizer quepara nds, a producao do sentido 6 estritamente indissoci^vel darelacao de paraTrase14 entre seqiiencias tais que a famflia para-frastica destas seqiiencias constitui o que se poderia chamar a"matriz do sentido". Isto equivale a dizer que 6 a partir da rela-§ao no interior desta famflia que se constitui o efeito de sentido,assim como a relagao a um referente que implique este efeito.15

Se nos acompanham, compreenderao, entao, que a evid£ncia daleitura subjetiva segundo a qual um texto € biunivocamente as-sociado a seu sentido (com ambiguidades sint^ticas e/ou seman-ticas) € uma ilusao constitutive do efeito-sujeito em relacao alinguagem e que contribui, neste domfnio especffico, para pro-duzir o efeito de assujeitamento que mencionamos acima: narealidade, afirmamos que o "sentido" de uma seqiiencia s<5 6materialmente concebfvel na medida em que se concebe esta se-qiiencia como pertencente necessariamente a esta ou aquela for-macao discursiva (o que explica, de passagem, que ela possa tervarios sentidos).16 E este fato de toda seqiiencia pertencer ne-cessariamente a uma formacao discursiva para que seja "dotadade sentido" que se acha recalcado para o (ou pelo?) sujeito e re-coberto para este Ultimo, pela ilusao de estar nafonte do senti-do, sob a forma da retomada pelo sujeito de um sentido univer-sal preexistente (isto explica, particularmente, o eterno par indi-vidualidade/universalidade, caracterfstico da ilusao discursivado sujeito). Observaremos, de passagem, que esta hermeneuticaespontanea que caracteriza o efeito subjetivo em relacao a lin-guagem se desdobra, sem mudar fundamentalmente de natureza,nas elaboragoes tetfricas inerentes a concepgao chomskiana epds-chomskiana da semantica (recurso inevit^vel a uma semanti-ca universal posta em movimento numa 16gica de predicados, oque equivale propriamente a supor resolvido o problema pelaanulagao da distancia entre processo discursive e formulagao 16-gica),

Estes esclarecimentos permitem compreender por que odispositive AAD, na medida em que se conforma as concepgoesda teoria do discurso que acabamos de enunciar, exclui funda-mentalmente a prdpria id^ia da analise semantica de w« texto.

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Sobre este ponto conve"m observar a distingao, sobre a qualvoltaremos adiante, entre a ana"lise lingufstica de uma seqiidnciadiscursiva e o tratamento automa'tico de um conjunto de objetosobtido por meio desta analise, o que parece ter parcialmente es-capado a S.Fisher e E.Veron17 na medida em que parecem ter seespantado com o fato de que "apesar desta advertencia (a im-possibilidade que acabamos de recordar) Pecheux... testou o seusistema de ana"Iise num texto so"" — a expressao "sistema deanalise" 6 aqui o lugar de um jogo de palavras encaixando ana"-lise lingufstica e analise discursiva.

Nesta medida, e na condicao de entender por processo dis-cursivo as relagoes de paraTrase interiores ao que chamamos amatriz do sentido inerente a formagao discursiva, diremos que oprocedimento AAD constitui o esboco de uma analise nao-sub-jetiva dos efeitos de sentido que atravessa a ilusao do efeito-su-jeito (produgao/leitura) e que retorna ao processo discursivo poruma espe"cie de arqueologia regular. Em seu estado atual, o pro-cedimento fornece o que se pode chamar os tracos do processodiscursivo que assumimos como objeto de estudo. A dificuldadea ser resolvida aqui reside no fato de que a famflia de parafrases(ou antes, as diferentes famflias parafra"sticas ou domfhios se-manticos) nao correspondem diretamente a uma proposigao Idgi-ca (ou a um sistema de proposicoes 16gicas), como demonstra-remos adiante. Nao pensamos que seja o efeito de uma inade-quagao acidental que se pudesse reduzir procedendo mats firia-mente; trata-se da distancia ja" mencionada entre proposic.ao 16-gica e processo discursivo, distancia que € precisamente anuladaimaginariamente pela filosofia espont^nea da logica formal e, aomesmo tempo,-pelo idealismo positivista em lingufstica.

Como acabamos de ver, os processes discursivos, como fo-ram aqui concebidos, nao poderiam ter sua origem no sujeito.Contudo eles se realizam necessariamente neste mesmo sujeito.Esta aparente contradicao remete na realidade a prdpria questaoda constituicao do sujeito e ao que chamamos seu assujeita-mento. Sobre este ponto, se impoem certos esclarecimentos emrelagao as formulacoes ambfguas que o texto de 1969 fornecia,principalmente referentes as "condigoes de producao": esta am-bigiiidade residia no fato de que o termo "condigoes de produ-

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cao" designs va ao mesmo tempo o efeito das relacoes de lugarnas quais se acha inscrito o sujeito e a "s'tuacao" no sentidoconcrete e empi'rico do termo, isto 6, o ambiente material e ins-titucional, os papels mais ou menos conscientemente colocadosem jogo etc. No limite, as ccndicoes de produgao nestc Ultimosentido determinarism "a situacao vivida pelo sujeito" no senti-do de variavel subjetiva ("atitudes", "representagoes" etc.) ine-rentes a um situagao experimental. Podemos agora precisar quea primeira definicao se opoe a segunda como o real ao imagina'-rio, e o que faltava no texto de 1969 era precisamente uma teoria deste imagina'rio localizada em re^acao ao real. Na falta destalocaHzacao era incvita'vel (e fc»i o que efetivamente se produziu)que as relagoes de lugar fossem confundidas com o jogo de es-pelhos de pap^is interiores a uma instituic^o,^ o termo apare-Iho, introduzido acima, sendo, ele mesmo, indevidamente con-fundido com a nogao de institui^ao. Em outros termos, o quefaltava e o que ainda falta parcialmente 6 uma teoria nao-subje-tiva da constitui$ao do sujeito em sua situagao concreta deenunciador.19 O fato de se tratar fundamentalmente de uma ilu-sao nao impede a necessidade desta ilusao e impoe como tarefaao menos a descricao de sua estrutura (sob a forma de um esbo-50 descritivo dos processes de enunciacao) e possivelmentetamb^m a articulagao da descricao desta ilusao ao que aqui cha-mamos owesquecimento n° 1."

2. A lingufstica como teoria dos mecanismos sintdticos e dosprocessos de enunciacao

Como foi dito acima, o dispositive AAD visa a colocar emevidencia os tragos dos 'processos discursivos.20 Sendo os cor-pus discursivos21 o ponto de partlda da AAD, 6 normal que odispositive comporte uma fase de analise lingufstica j£ que ostextos pertencentes aos corpus estao evidentemente em "Ifnguanatural" e o desenvolvimento dos tratamentos automa'ticos detextos demostraram a impossibilidade de limitar-se a um estudoestatfstico (cf. teoria das cadeias de Markov) da linearidade.

Mas a escolha dessa ou daquela prAtica de an^Iise lingufs-tica pressupoe uma defini§ao pre"via da natureza e do papel

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se atribui a Ifngua. De fato, que relacao existe entre os proces-ses discursivos e a Ifngua, do ponto de vista da teoria do discur-so? A perspectiva de conjunto € a seguinte: estando os proces-ses discursivos na fonte da producao dos efeitos de sentido, alingua constitui o lugor material onde se realizam estes efeitosde sentido. Esta materialidade especffica da Ifngua remete aide"ia de "funcionamento" (no sentido saussuriano), por oposi-530 a id6ia de "fungao". A caracterizagao desta materialidadeconstitui todo o problema da lingiifstica. Como se vera maisadiante, 6 insuficiente conceber a Ifngua como a base de urn le-xico e de sistemas fono!6gicos, morfoldgicos e sintaticos (estadificuldade 6 acentuada no artigo de T.A.Informac.6es-Haroche-Pecheux, 1972-em que se fala de "stock lexical"). Contudo,pode-se desde j5 utilizar esta formulagao insuficiente dizendoque, nestas condigoes, a tarefa do lingiiista consistiria em ca-racterizar e em tornar operacionalmente manipuMveis este le"xicoe estes sistemas de regras evitando-se de af fazer intervir consi-deragoes semanticas incontroladas, ja" que isto seria justamentecair de novo no efeito subjetivo da leitura.

Ora, a analise nao-subjetiva dos efeitos de sentidos que aAAD se atribui como objetivo passa, precisamente, como vimos,por uma fase de analise lingiifstica cujo estatuto permanecemuito problema"tico, como iremos demonstrar. Efetivamente, aquestao gira em torno do papel da semantica na andlise lin-giifstica. Na perspectiva definida anteriormente, nao seria o casode colocar no ini'cio da andlise lingiifstica o que deve justamenteaparecer como o resultado da confrontagao de objetos que deri-vam precisamente desta ana"lise. Dito de outro modo, a analiselingiifstica que a AAD almeja deve ser essencialmente de natu-reza morfossintatica e, por esta razao, deve permitir a des-linea-rizagao especificamente lingiifstica dos textos, ligada aos feno-menos de hierarquias, encaixes, determinagoes.,. Nao seria,pois, o caso de introduzir uma "concepgao do mundo" que re-pousasse nutna semantica universal e a priori, j£ que isto signi-ficaria voltar a incluir no prdprio funcionamento da Ifngua osprocesses discursivos historicamente determinados que nao po-dem ser colocados como co-extensivos a Ifngua, salvo se identi-ficar-se ideologia e Ifngua.22

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Dito isto, resta o fato de que as conduces desta analise"morfossintatica" estao atualmente definidas de forma poucoclara, e o recurso a um semantismo implfcito nao estd exclufdodela. Tudo se passa como se a analise morfbssinta"tica colocassenecessariamente em jogo elementos que temos o hatito de de-nominar semSnticos. Como ser£ demonstrado a seguir, a apre-sentagao inicial da AAD negligenciou sistematicamente este as-pecto.23 Isto se explica pelo carSter conscientemente precariodas "solugoes" lingiifsticas propostas e, ao mesmo tempo, pelaurgencia tedrica da luta contra uma concepgao idealista da Ifn-gua, concebida como visao-percepgao do mundo e, em seu li-mite, como a origem deste ultimo.

Apresentada em sua forma extrema, a posigao lingiiisticainerente a AAD voltaria a considerar que sintaxe e semanticaconstituem dois nfveis autonomos e bem definidos e que I^xico egrama"tica sao igualmente dois domfnios distintos. Ora, visivel-mente, isto nao 6 assim. AliSs, a fase lingiifstica da AAD em seuestado atual ilustra bem as dificuldades ligadas a semelhanteexigSncia: longe de evitar qualquer contaminagao da analise lin-giifstica pela semantica, as regras sintdticas aplicadas introdu-zem sub-repticiamente recursos nao-controlados ao sentido.Quer dizer que esta semantica a qual a analise sinta"tica nao podedeixar de recorrer € precisamente o que foi designado acima sobo nome de semantica discursiva? Se assim o fosse, isto equivale-ria a dizer que a autonomia tedrica da lingiifstica 6 praticamentenula j£ que sd se reencontraria no fim o que tivesse sido coloca-do no infcio. Nao creio que isto seja assim. Esta situagao nosparece de fato ligada a heranga filosdfica que as categorias gra-maticais veiculam necessariamente, mesmo sob seu aspecto maisneutro, mais moderno, mais tecnico. O que falta atualmente €uma teoria do funcionamento material da Ifngua em sua relagaoconsigo prtfpria, isto 6, uma sistematicidade que nao se opoe aonao-sisterndtico (Ifngua/fala), mas que se articula em processes.Se convencionamos chamar "sem&ntica formal"24 a teoria destefuncionamento material da Ifngua, pode-se dizer que o que faltaa analise lingiifstica 6 precisamente essa semantica formal quenao coincide de modo nenhum com a "semantica discursiva"evocada acima. A expressao "semantica formal", tomada deempre'stimo de A.Culioli, que definiremos adiante como o ultimo

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nfvel da analise lingiifstica, atingiria, neste sentido, o lugar es-pecifico da lingua, que corresponde & construgao do efeito-su-jeito. Se € justa a nossa hipdtese, isto significa igualmente que aAAD, que deseja "atravessar o efeito-sujeito", deve aferir ondeela o atravessa na Ifngua', nao reproduzir este efeito na prdticade uma andlise objetiva 6 unia preocupagao legftima, esquecer asua existencia no objeto de estudo e", ao contr^rio, um erro.

Isto nos conduz necessariamente & questao da enunciagao,e nao € inutil fornecer, a este propdsito, algumas precisoes, dadaa maneira pela qual o idealismo "ocupa" hoje esta questao, comos diferentes obstaculos daf resultantes.

Se definimos a enunciagao como a relagao sempre necessa-riamente presente do sujeito enunciador com o sen enunciado,entao aparece claramente, no prdprio nfvel da Ifngua, uma novaforma de ilusao segundo a qual o sujeito se encontra na fonte dosentido ou se identifica a fonte do sentido: o discurso do sujeitose organiza por referencia (direta, divergente), ou ausSncia dereferencia, & situagao de enunciagao (o "eu-aqui-agora" do lo-cutor) que ele experimenta subjetivamente como tantas origensquantos sao os eixos de referenciagao (eixo das pessoas, dostempos, das localizagoes). Toda atividade de linguagem neces-sita da estabilidade destes pontos de ancoragem para o sujeito;se esta estabilidade falha, h£ um abalo na propria estrutura dosujeito e na atividade de linguagem.

FalaVamos de obstdculos: trata-se da ilusao empirista sub-jetiva que se reproduz na teoria lingiifstica e, ao mesmo tempo,da ilusao formalista que faz da enunciagao um simples sistemade operagoes. Comentando as nogoes de sujeito enunciador e desituacao de enunciagao, P.Fiala e C.Ridoux escrevem: "... 6precise ainda nao reduzi-las a um simples suporte de operagoesformais, mas tentar, a cada vez, extrair delas o contetido real pa-ra evitar as armadilhas sempre presentes do formalismo" (Fiala eRidoux, 1973, p.44). Em texto anterior, M.Hirsbrunner e P.Fialaobservavam a propdsito disto, comentando as propostas de Ben-veniste:

" 'De fato, semidtica e semdntica aparecem como atransposicao lingiifstica das categorias filosdficas depotencia e de ato... Ainda afa mediacdo £ operadacom a ajuda de uma nocdo ambfgua, a enunciagao,

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definida formabnente (...) mas justificada filosofica-mente: 'a enunciagao £ este aciotiamento da linguapor um ato individual de utilizacdo'. Aqui nos con-frontamos com a dificuldade essencial da iniciattvasaussuriana, aquela que, nos parece, constitui obloqueio principal de qualquer teoria saussuriana dodiscurso. Certamente, o concetto de Ifngua concebi-da apenas como sistema de signos 4 ultrapassado,mas ao custo da introdugdo, no seio mesmo da teo-ria lingufstica, das duos nocoes que havia tentadorejeitar, o sujeito e sua relacdo com o mundo social.Ora — e ai estd o paradoxo — estas duos nocoes, seelas vem preencher um espaco no aparelho concep-tual, nao tern, de fato, nenhum estatuto tedrico pre-ciso. Opondo a liberdade do sujeito individual a ne-cessidade do sistema da Ifngua, colocando a Ifnguacomo medioQao entre o sujeito e o mundo, e o sujeitocomo se apropriando do mundo por intermedio daIfngua, e da Ifngua por intermedio do aparelho deenunciacao, Benveniste apenas transpoe em termoslingufsticos nocoes filosoficas que, longe de seremneutras, se ligam diretamente a corrente idealista"(Hirsbrunner e Fiala, 1972, pp.26-27).

Tentaremos mostrar abaixo como nos propomos retirar aproblem^tica da enunciacao deste cfrculo de idealismo.

A dificuldade atual das teorias da enunciagao reside nofato de que estas teorias refletem na maioria das vezes a ilusaonecessa"ria25 construtora do sujeito, isto 6, que elas se contentamem reproduzir no nfvel tetfrico esta ilusao do sujeito, atrave"s daide"ia de um sujeito enunciador portador de escolha, intengoes,decisoes etc. na tradicao de Bally, Jakobson, Benveniste (a"fala" nao estd longe!).26

A refer^ncia ao funcionamento material dos mecamsmossintAticos em relagao a eles mesmos, introduzida acima, permiteprecisar o que entendemos por enunciagao. Diremos que os pro-cessos de enunciagao consistem em uma seYie de determinagoessucessivas pelas quais o enunciado se constitui pouco a pouco e

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que tern por caracterfstica colocar o "dito" e em conseqiienciarejeitar o "nao-dito". A enunciacao equivale pois a colocarfronteiras entre o que 6 "selecionado" e tornado preciso aospoucos (atrave~s do que se constitui o "universo do discurso"), eo que € rejeitado. Desse modo se acha, pois, desenhado num es-pac.o vazio o campo de "tudo o que teria sido possfvel ao sujeitodizer (mas que nao diz)" ou o campo de "tudo a que se opoe oque o sujeito disse". Esta zona do "rejeitado" pode estar maisou menos pro~xima da consciencia e ha questoes do interlocutor- visando a fazer,por exemplo, com que o sujeito indique comprecisao "o que ele queria dizer" — que o fazem reformular asfronteiras e re-investigar esta zona.27 Propomos chamar esteefeito de ocultasao parcial esquecimento n~ 2 e de identificar afa fonte da impressao de realidade do pensamento para o sujeito("eu sei o que eu digo", "eu sei do que eu falo").

Decorre do que precede que o estudo das marcas ligadas aenunciacao deve constituir um ponto central da fase de andliselingmstica da AAD, e que este estudo induz modificagoes im-portantes na concepgao da lingua. Antes de mais nada, o lexiconao pode ser considerado como um "estoque de unidades lexi-cais", simples lista de morfemas sem conexao com a sintaxemas, pelo contrdrio, como um conjunto estruturado de elementosarticulados sobre a sintaxe. Em segundo lugar, a sintaxe naoconstitui mais o domfnio neutro de regras puramente formais,mas o modo de organizagao (proprio a uma determinada Ifngua)dos tracos das referencias enunciativas. As construcoes sintati-cas, deste ponto de vista, tern, pois, uma "sigmficac.ao" queconvetn destacar.

Nesta perspectiva & interessante precisar a ligacao entre osdois esquecimentos que qualificamos respectivamente de n9 1 en- 2: que relagao existe entre a famflia de seqiiencias parafrdsti-cas constitutivas dos efeitos de sentido, e o "nao-dito", que es-tao, ambos, colocados fora do jogo?

3. Lfngua, ideologia, discurso

Consideremos o que designamos respectivamente com onome de "esquecimento n- 1" e de "esquecimento n2 2". Ve-

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mos que estes dois esquecimentos diferem profundamente um dooutro. Constata-se, com efeito, que o sujeito pode penetrar

conscientemente na zona do n? 2 e que ele o faz em realidadeconstantemente por um retorno de seu disciirso sobre si umaantecipacao de seu efeito, e pela consideracao da defasagem queaf mtroduz o discurso de um outro.28 Na medida em que o su-jeito se corrige para explicitar a si Pr6prio o que disse, paraaprofundar "o que pensa" e formulfi-lo mais adequadamentepode-se dizer que esta zona n? 2, que £ a dos processes deenunciafdo, se caracteriza por um funcionamento do tipo pr6-consciente/consciente. Por oposigao, o esquecimento n9 1, cujazona € inacessfvel ao sujeito, precisamente por esta razao' apa-rece como constitutive da subjetividade na lingua. Desta manei-ra, pode-se adiantar que este recalque (tendo ao mesmo tempocomo objeto o pn5prio processo discursive e o interdiscurso,29

ao qual ele se articula por relacoes de contradic^o, de submiss'aoou de usurpacao) 6 de natureza inconsciente, no sentido em quea ideologia 6 constitutivamente inconsciente dela mesma (e naosomente distrafda, escapando incessanteniente a si mesma...) 30

Esta oposicao entre os dois tipos de esquecimento tern re-lagao com a oposigao j5 mencionada entre a situacao empfricaconcreta na qual se encontra o sujeito, marcada pelo cardter daidentificacao imagindria onde o outro € um outro eu ("outro"com o miniisculo), e o processo de interpelagao-assujeitamentodo sujeito, que se refere ao que J.Lacan designa metaforica-mente pelo "Outro" com O maidsculo; neste sentido, o mon(51o-go 6 um caso particular do dialogo e da interpelacao

Em outros termos, colocamos que a relacao entre os "es-quecimentos n^ 1 e n^ 2" remete k relagao entre a condicao deexistencia (nao-subjetiva) da ilusao subjetiva e as formas subje-tivas de sua realizasao.31

Utilizando aqui a terminologia freudiana que distingue, porum lado, o pre"-consciente-consciente e, por outro lado, o in-consciente, nao pretendemos de modo nenhum resolver a ques-tao da relagao entre ideologia, inconsciente e discursividade:queremos apenas caracterizar o fato de que uma formagao dis-cursiva € constitufda-margeada pelo que Ihe ^ exterior, logo poraquilo que af 6 estritamente nao-formuklvel, jd que a determi-na, e, ao mesmo tempo, sublinhar que esta exterioridade consti-

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tutiva em nenhum caso poderia ser confundida com o espagosubjetivo da enunciagdo, espago imaginSrio que assegura aosujeito falante seus deslocamentos no interior do reformuMvel,de forma que ele faga incessantes retornos sobre o que formula,e af se reconhega na "relac.ao reflexiva ou pre"-consciente com aspalavras, que faz com que elas nos aparecam como a expressaodas coisas" de acordo com a formulagao de M.Safouan em "So-bre a estrutura em psicanalise" (1968), p.282. O termo prl-consciente remete, como se sabe, ao primeiro t6pico freudiano, edesaparece como tal no segundo. Ora, € em grande parte no am-bito deste segundo topico que foi efetuada a reelaboracao laca-niana da teoria de Freud, a que fazemos referenda aqui. Em ou-tro estudo voltaremos a esta "incoerencia" tedrica para expli-ca-la, trabalha-la e reduzi-la.

Esta "desigualdade" entre os dois esquecimentos corres-ponde a uma relagao de dominancia que se pode caracterizar di-zendo que "o nao-afirmado precede e domina o afirmado".32

Ale"m disso, € precise nao perder de vista que o recalqueque caracteriza o "esquecimento n- 1" regula, afinal de contas,a relac.ao entre dito e nao-dito no "esquecimento n- 2", onde seestrutura a sequencia discursiva. Isto deve ser compreendido nosentido em que, para Lacan, "todo discurso e" ocultagao do in-consctente".

Para concluir esta apresentagao geral, diremos que em re-lagao ao termo "discurso", tal como funciona na expressao"teoria do discurso", hd dois equfvocos complementares a seremevitados. O primeiro consiste em confundir discurso e fala (nosentido saussuriano): o discurso seria entao a realizagao em atosverbais da liberdade subjetiva que "escapa ao sistema" (da Ifh-gua). Contra esta interpretagao reafirmamos que a teoria do dis-curso e os procedimentos que ela engaja nao poderiam se identi-ficar com uma "lingufstica da fala". O segundo equfvoco seopoe ao primeiro porque "distorce no outro sentido" a signifi-cagao do termo "discurso", enxergando af um suplemento socialdo enunciado, logo um elemento particular do sistema da Ifngua,que a "lingiifstica classica" teria negligenciado. Nesta perspec-tiva, o nfvel do discurso se integraria a Ifngua, por exemplo soba forma de uma competSncia de tipo particular, cujas proprieda-des variariam em fungao da posigao social, o que equivaleria

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& ideia de que existem h'nguas, tomando ao p£ da letra a expres-sao, politicamente justa mas lingiiisticamente discuti'vel, segun-do a qual "patroes e empregados nao falam a mesma Ifngua".

Diante destas duas deformagoes da realidade designadapelo termo "discurso", achamos dtil introduzir a distingao entrebase (lingiiistica) e processo (discursive) que se desenvolve so-bre esta base,33 distincao que, achamos, somente ela pode auto-rizar a consideragao das relagoes de contradigao, antagonismo,alianga, absorgao,... entre formagoes discursivas que pertencema formac.6es ideo!6gicas diferentes, sem implicar, para tanto, aexistSncia mftica de uma pluralidade de "Ifnguas" pertencendo aestas diferentes forrnagoes.

n - A anaUse automatica do discurso: crlticas e novas perspecti-vas

1. Constmgao do corpus emfungao das condigoes de produgaodominantes

A introduc,ao e os desenvolvimentos precedentes indicamclaramente que as "condigoes de produgao" de um discurso naosao espe"cies de filtros ou freios que viriam inflectir o livre fun-cionamento da linguagem, no sentido em que, por exemplo, aresistencia do ar interv^m na trajet6ria de um rndbil cuja cine-ma'tica prev6 o deslocamento te<5rico, quer dizer, o que seria estedeslocamento se o m6bil estivesse reduzido a um ponto, e sedeslocasse no vazio. Em outros termos, nao h£ espaco tedricosocialmente vazio no qual se desenvolveriam as leis de uma se-mantica geral (por exemplo, leis da "comunica§ao"), e no qualse re-introduziriam, na qualidade de pararnetros corretivos,"restricoes" suplementares, de natureza social. De fato, tudo oque introduzimos acima visa a explicitar as razoes pelas quais odiscursive so" pode ser concebido como um processo social cujaespecificidade reside no tipo de materialidade de sua base, a sa-ber, a materialidade lingiifstica.

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A partir dai, a expressao "condicoes de produgao de umdiscurso" necessita ser detalhadamente explicitada, para evitarerros de interpretagao acarretados pela ambigiiidade de certasformulagoes. Observemos, antes de mais nada, que o prtSpriotermo "discurso" pode remeter ao que chamamos acima um pro-cesso discursive,34 mas tambe'm a uma sequencia verbal oral ouescrita de dimensao varidvel, em geral superior a da frase. Estatiltima realidade, em razao de seu carrier imediatamente "con-crete", foi designada (Pecheux, 1969) pela expressao "superff-cie discursiva", que tern, entretanto, o duplo defeito de deixarentender que as seqiiencias sao tratadas no mvel de suas formasde "superficie", no sentido chornskiano do termo, e de designarsob uma forma muito reduzida o que 6, de fato, a superfl'cie Hn-giii'stica de um discurso. Este erro acerca do sentido de "super-ffcie discursiva" leva-nos a enfatizar a necessaria distingao entreos dois tipos de de-sintagmatizacao inerentes, por um lado, aodomfnio do lingih'stico e, por outro, ao dominio do discursive: ade-sintagmatizagao linguistica (ou ainda: de-superficializagao)remete a existencia material da h'ngua, caracterizada pela estru-tura nao-linear dos mecanismos sintdticos e mais profundamentepor tudo aquilo sobre o que se exerce o "esquecimento n- 2";quanto a de-sintagmatizagao discursiva, ela s<5 pode comegar aefetuar esta escalada alem do "esquecimento n9 1" apoiando-sena operacao lingufstica que acabamos de mencionar: Estas ob-servagoes nos permitem proper as seguintes distin§6es termino-16"gicas:

• Superffcie lingiifstica: entendida no sentido de sequenciaoral ou escrita de dimensao varia"vel, em geral superior afrase. Trata-se a( de um "discurso" concrete, isto e", doobjeto empirico afetado pelos esquecimentos 1 e 2, namedida mesmo em que 6 o lugar de sua realizacao, sob aforma, coerente e subjetivamente vivida como necessa"-ria, de uma dupla ilusao.

• Objeto discursivo: entendido como o resultado da trans-formac.ao da superffcie lingiiistica de um discurso con-crete, em um objeto tedrico, isto 6, em um objeto lin-giiisticamente de-superficializado, produzido por umaan^lise lingiifstica que visa a anular a ilusao n- 2.

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• Processo discursivo: entendido como o resultado da re-lacao regulada de objetos discursivos correspondentesa superficies lingufsticos que derivam, elas mesmas, decondigoes de produc.ao est^veis e homogeneas. Esteacesso ao processo discursivo 6 obtido por uma de-sin-tagmatizagao que incide na zona de ilusao-esquecimenton^ l .

Acentuemos entretanto que a escala completa aqu^m desteesquecimento pressupoe nao apenas que se coloque em evide"n-cia a formagao discursiva subjacente ("matriz de sentido" daqual o atual processo da AAD permite localizar alguns traces),mas supoe tambem a captagao das relagoes de defasagem entreesta formacao discursiva e o inter-discurso que a determina (esteponto ainda hoje nao recebeu solugao "operacional").

O esquema que se segue resume as observances terminolo'-gicas referidas acima:

LfNGUAanfflise dos mecanis-mos sinKtticos e dosfuncionamentos enun-ciativos

DISCURSOan^Iise de umcorpus de obje-tos discursi-vos que funcio-

Superffcie lin-gu'fstica de umdiscurso que

corpus = de-superficializagaolingiifstica, visandoa anular o efeito do"esquecimeoto n- 2"(pre'-consciente-cons-ciente no nf vel doimaginario)

Objetodiscur-

•*• sivoCgrafoconexo) .,

nam como auto-dicionSrio

pro-*"cesso

discur-sivo

= de-sintagmatiza-cao discursiva,que rompe a cone-xidade prdpria acada objeto dis-cursivo e que co-meca a anular oefeito do "esque-cimento n- 1"

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Agora podemos retomar o exame da expressao "condicoesde produgao de um discurso", que, dizfamos, pode apresentarcertas ambigiiidades: parece efetivamente, Ji luz do que precede,que se pode entender por isso seja as determinagoes que carac-terizam um processo discursivo, seja as caracteristicas multi-plas de uma "situacao concreta" que conduz a "produc.ao", nosentido lingiifstico ou psicolingiifstico deste termo, da superffcielingiifstica de um discurso empi'rico concreto. Bern entendido,esta ambigiiidade € a mesma que a assinalada acima a prop<5sitoda oposi§ao instituisao/aparelho: nos dois casos, o que esta" emjogo 6 a necessidade de reconhecer a defasagem entre o registrodo imaginario, cuja existdncia nao 6 anulavel sob o pretexto deque se trata do imagin^rio, e o exterior que o determina. Nestamedida, parece que nos falta radicalmente uma teoria da "situa-530 concreta" enquanto formac,ao ideo!6gica em que o "vivido"e" informado, constitufdo pela estrutura da Ideologia, isto e", elese torna esta estrutura na forma da interpelagao recebida, pararetomar uma formulagao de L.Althusser.

Esta teoria da "situagao concreta", isto e", o relaciona-mento te6rico 'das determinaQoes a seu efeito imaginario, € defi-nitivamente o ponto a partir do qual as operagoes de construcdodo corpus poderiam encontrar seu verdadeiro estatuto. Atual-mente, ainda sem esta articulagao,35 a prdtica de construgao decorpus (e dos pianos de processamento que combinam variescorpus) sofre inevitavelmente o seu efeito, sob a forma de umatentagao empirista que visa a impossfvel articulasao entre umapsicologia "experimental" e o Materialismo Hist6rico. Digamosentretanto que, sob as duas formas que examinaremos abaixo(tratamento experirnental, tratamento de arquivos), o liame entreo imagindrio e o exterior que o determina passa pelo conceito dedominancia: diremos que um corpus € constitufdo por uma se"riede superffcies lingufsticas (discursos concretos) ou de objetosdiscursivos (o que pressupoe um modo de intervengao diferenteda praiica lingmstica na definic.ao do corpus; voltaremos a isto),estando estas superffcies dominadas por condigoes de produgaoestaVeis e homogeneas. Isto significa que se pressupoe que tododiscurso "concreto" 6, de fato, um complexo de processes queremetem a diferentes condicxies. Determinar a construc,ao docorpus pela referenda a esta dominancia € o mesmo que desfal-car como elementos estrangeiros ao processo estudado os ele-

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mentos individuals que podem aparecer neste discurso "concre-to" e nao em outro, estando os dois dominados pelas mesmascondigoes. Naturalmente, isto nao exclui de modo nenhum que agente se de como objeto de estudo as diferengas, mas estas dife-rengas serao sempre consideradas como diferencas entre corpus,resultantes de diferengas entre condic.6es de produc.ao, e jamaiscomo diferengas individuals.

Precisemos as duas formas de tratamento que mencionamosacima, a saber, o tratamento "experimental" e o tratamento dearquivos. Trata-se de dois processes diferentes ambos visando aconstnicao de um corpus, ou de um sistema de corpus, que pos-sa ser submetido & andlise AAD. Assinalemos bem que, nos doiscasos, os princfpios tedricos e as consideragoes prdticas queguiam esta fase sao estritamente exteriores aos princfpios e ascaracterfsticas "t^cnicas" do prdprio dispositive AAD. Em ou-tros termos, a responsabilidade tedrica que preside & construgaodo corpus (ou do sistema de corpus), em princi'pio, nada tern emcomum com a responsabilidade especffica do procedimentoAAD, a saber, a responsabilidade de realizar uma leitura nao-subjetiva; todavia, e" precise logo acrescentar que, naturalmente,as responsabilidades assumidas no nfvel extra-discursivo (as di-ferentes hipdteses socioldgicas, histtfricas etc.) que presidem aconstrugao do corpus nao deixam de ter efeito sobre os resulta-dos a serem produzidos pela analise AAD. Ou melhor, pode-sedizer que estes resultados refletirao estas hipoteses no nfvel dosefeitos discursivos localizados, o que nao quer dizer que os re-sultados sejam o puro e simples reflexo transparente das hipdte-ses extra-discursivas que servem a construsao. Sem esta distin-gao entre as duas responsabilidades, 6-se fatalmente conduzido &id£ia de uma circularidade pela qual a AAD corre o risco "dereencontrar como resultado da analise o prdprio conteudo intro-duzido e organizado por esta categoriza§ao" como o supoemM.Borillo e J.Virbel em artigo (1973, p.l) do qual discutiremosadiante as observaeoes crfticas de natureza lingufstica e/ou do-cumentana. Pretendendo que "de fato, a iniciativa que leva aescolha do termo 'circunstancia* resulta exatamente na que Ga-yot e Pecheux recusam antes de mais nada" (art. cit., p.12), Bo-rillo e Virbel colocam o dedo numa dificuldade real, enquantocometem ao mesmo tempo uma sub-repgao l<5gica; expliquemo-nos: afirmando que estes autores cometem uma sub-repcao logi-

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ca, queremos dizer que, por nao reconhecerem a necessidade dadistingao entre os dois tipos de responsabilidade que evocamosacima, nos atribuem, eles mesmos, esta confusao, e dela derivam"consequencias" que, por esta razao, sao ao menos em parte in-validadas. Efetivamente, nao distinguir entre as determinacoesextra-discursivas (e extra-lingufsticas a fortiori), de um lado, e a"categorizacao" (para retomarmos sua formulacao) que o proce-dimento AAD pretende produzir como resultado, de outro, sempressupor sua existencia no sistema de leitura inerente a esteprocedimento, € finalmente superpor os nfveis lingufstico, dis-cursivo e ideoldgico-cultural (cf. hipdtese implfcita do tipo Sa-pir-Whorf) e identifica"-los como o lugar onde se efetua a mesina"categorizac.ao", uma primeira vez sem dize-lo no nfvel da es-colha dos elementos que constituent o corpus, uma segunda vezno nfvel dos "resultados" obtidos pela AAD, que nao seriam narealidade senao o reflexo transparente^ da primeira"categorizagao". E finalmente a nao-redutibilidade do discursi-vo ao linguistico ou ao ideoldgico do qual e" precise relembraraqui a importancia, com o risco de recair nas aporias de umateoria idealista da ideologia. Esta perspectiva, que 6 necessaViomesmo chamar regressive* na medida em que visa a colocar, de-finitivamente, a impossibilidade do objetivo que nos fixamos("reconhecer enfim que 6 impossfvel evitar uma eategorizac.ao apriori, que nao se pode evitar o recurso a subjetividade" etc.)nao deve impedir de discernir o que, nas crfticas sobre as quaisesta regressao se fundamenta, constirui um envolvimento justifi-cado que nos permite ir adiante na direc/ao que evocamos acima.

Uma vez colocado que a materialidade da ideologia nao seidentifica de modo algum com a materialidade discursiva (namedida em que esta dltima € um seu elemento particular, o queimplica, no que nos diz respeito, que as condigoes de construc,aode um corpus nao poderiam ser exclusivamente intra-discursi-vas), 6 possfvel levar em consideragao as crfticas que Borillo-Virbel fonnularam sobre este ponto. Digamos que a principaldelas consiste em sublinhar o cardter passavelmente imotivadodo princfpio de construcao retido no artigo em consideracao, asaber, a selec,ao, em uma determinada obra, das frases que con-tem uma certa "palavra-pdlo", no caso em foco, a palavra "cir-cunstancias". A censura 6 dupla:

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• por um lado, vS-se mal, de um ponto de vista metodold-gico, como o detalhe de "justificac,6es de natureza ex-tremamente variada" (art. cit,, p.10) conduziu & retenc,aodo termo "circunstancias" e nao outra coisa,

• por outro lado, a decisao de conservar as frases (se-quencias separadas por dois pontos) que cont&m o termoretido constitui um segundo aspecto arbitr^rio que con-tribui igualmente para incriminar o procedimento esco-Ihido.

Retomemos sucessivamente estes dois pontos:

— No que se refere a primeira crftica, ela parece suficien-temente justificada. Para responder a isto nao basta efetivamentesublinhar o cardter nao-metodoldgico mas diretamente te<5rico(no caso em questao, a teoria materialista-histdrica) do procedi-mento que levou a reter o termo "circunst&ncias". De fato, uma"ana"lise concreta da situagao concreta"37 deveria redundar emum sistema de pontos sensfveis com uma relac.ao entre eles esuscetfvel de se projetar metodologicamente em um projeto deprocessamento reunindo vdrios corpus em vista da interrogac.aoacerca de suas diferengas. Em outros termos, atualmente parece-nos possfvel e necessa'rio nao nos limitar a ana*lise de um corpusconstrufdo arbitrariamente a partir de uma palavra-polo, recor-rendo sistematicamente & analise das diferengas interaas que umprojeto de processamento pode colocar em evidencia. Isto pres-supoe, no nfvel metodoldgico, a existencia de um meio que per-mifa associar n corpus a um so, para estudar as diferengas quese acham induzidas desse modo; este meio, realizado atualmenteno programa pelo procedimento chamado de "compactagem"(cf. p. 213-214), nao era disponfvel na gpoca em que o trabalhoevocado foi realizado. De fato, a evolucao de nossa concepgaodo processamento foi neste sentido: defmitivamente o acesso aoprocesso discursive prdprio a um corpus nos parece encontrarsua garantia em grande parte no estudo de sua especificidade nointerior de um sistema de hip cleses realizadas sob a forma de umcomplexo de corpus, processado com a ajuda do procedimentode compactagem evocada ha" pouco. Finalmente, trata-se aomesmo tempo de estudar a produtividade dessa hipdtese e dededuzir as suas caractenfsticas do processo discursive estudado.Acrescentemos, ainda acerca deste primeiro ponto, que naoa

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profbe pensar que os procedimentos preVios de deslindamentoestatfstico (por exemplo, os estudos de co-ocorrencias como osque propoe a equipe de lexicologia da Ens de St-Cloud)38 pode-riam apresentar interesse para a localizacao inicial do campo dashipdteses; por outre lado, pode-se considerar a possibilidade deum controle estatfstico a priori da homogeneidade de cada cor-pus submetido a analise, ou de regras de fechamento de um cor-

- A segunda critica recai sobre o carrier relativamente ar-bitraiio do procedimento de segmentagao, baseado no crite'rio dafrase. Digamos ja que esta censura, completamente justificada,designa uma dificuldade muito grave sobre a qual e* impossfveldizer hoje como sera" resolvida. Quais sao os limites empfricosde um "discurso" no interior de uma determinada sequenciacomplexa? As combinagoes de processes correspondem ou nao,a justaposicoes na linearidade da seqiiencia? Tudo o que se podedizer € que qualquer nocao "literaria" que remeta a "unidadeinterior" da "ohra", do texto, do paragrafo etc. 6 nula e semfuture, tendo em conta os pressupostos teoricos a que nos refe-rimos acima. O princfpio de uma ligacdo expressiva entre a uni-dade organica da forma e a unidade intencional do fundo —conteddo, projeto ou sentido — € um mito litera"rio (necessario aforma cla"ssica da "explicagao de textos") que reproduz a ilusaosubjetiva comentada acima. Podemos apenas constatar que estaquestao, levantada igualmente por Genevieve ProvostiChauveau(1970, p. 135), remete aos proprios limites da lingufstica da fra-se, sobre o que voltaremos adiante, e designa o vazio, que urgeser preenchido, de uma teoria da inter-frase.

O estudo crftico que acabamos de efetuar nao deixa de terconseqii6ncias em relacao aos dois procedimentos de construcaode corpus que comecamos a distinguir: efetivamente, se conside-ramos, por um lado, a via "experimental" na qual uma encena-cao reproduz (com um coeficiente variaVel de imaginario) uma"situagao concreta" quanto a estes ou aqueles efeitos que a ca-racterizam40 e, por outro lado, a via "arqui vista",41 constatamosque o problema da segmentacao do discurso nao se coloca (ou 6mais facilmente soluVel) no caso da via "experimental" e que,de outro ponto de vista, a id6ia de que e" preferfvel tratar umsistema de hipdteses realizado como um "complexo de corpus"

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6 o mesmo que considerar o campo do arquivo corno um discositivo quase experimental. Por estas diferentes razoes, adianta-remos a opiniao de que a forma-arquivo deve ser consideradacomo uma forma derivada "abastardada" do procedimento detratamento que, em seus designios, € de natureza experimental;este ponto merecia ser sublinhado, haja vista um certo ndmerode interpretacoes "nao-diretivistas" ocasionadas por certas for-mulacoes da AAD 1969.

Todavia € conveniente acrescentar logo que esta indicacaode orientagao nao resolve em si mesma nenhum problema defundo quanto a natureza de uma experimentagao materialista nodomifnio que nos diz respeito. Contentemo-nos em sublinhar quea prdtica sdcio-hist6rica que serve de referenda inevitaVel nesteponto 6 de fato profimdamente ambfgua: esta pra"tica € bastante"instdvel" no sentido em que pode virar de um lado e de outro,sem encosto, isto 6, do lado do materialismo histdrico ou do la-do da psicologia social, com probabilidades, para dizer a verda-de, completamente desiguais entre as duas safdas se nao se to-mar cuidado: queremos dizer que, sem outro encosto senao "ome"todo experimental", cai-se inevitavelmente na psicologia so-cial das situacoes, e no idealismo, que 6 seu correlative.

2. A andlise lingufstica

2.1 Os objetivos de uma analise lingufstica do discurso

As vezes fala-se de uma "lingufstica do discurso" para de-signar, na realidade, um tipo de abordagem da linguagem susce-tfvel de escapar ao menos parcialmente a certos efeitos das res-trigoes tedricas de uma lingufstica "tradicional" cujo principaldefeito seria o de conceber seu objeto no quadro do que a gra-mdtica cl^ssica (e principalmente a gramdtica latina) chamou de"frase". Isto significa uma fixacao na estrutura do enunciado e,ao mesmo tempo, uma especie de cegueira em relacao ao que sechama atualmente de "enunciagao"; simultanearnente, a questaoda interfrase, sobre a qual voltaremos adiante, se acha colocada

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no centre das discussoes. Efetivamente, o fato de se levar emconta a realidade do discurso, a esp6cie de descentramento queela introduz na propria lingiifstica 6, como veremos, decisive pa-ra o nosso empreendimento.

Contudo seria um erro considerar que a analise do discursocomo a concebemos seja simplesmente o exercicio desta novalinguistica livre dos preconceitos da linguistica "tradicional".Com efeito, seria o mesmo dizer que a mudanga em relacao aesta ultima reside, essencialmente, num outro modo de abordarseu objeto, dentro de novas necessidades impostas pela pesquisaetc. Tudo isto que, de outro ponto de vista, 6 perfeitamenteexato ainda nao atinge o objetivo que destinamos a uma ondliselinguistica do discurso. Digamos que isto constitui uma dascondicpes necessdrias de realizagao dessa analise: falta precisarquais sao as outras e, sobretudo, como elas se articulam entre si.Para ir diretamente ao ponto principal parece titil acentuar queos lingiiistas (enquanto "linguistas puros") frequentemente vi-sam como resultado de sua pratica a um discurso teorico quepode ter a forma de uma teoria geral ou de uma monografia masque de qualquer modo se refere a um objeto linguTstico mais oumenos especffico sob a modalidade de sua descricdo, da expo-sicdo de seu juncionamento, da teoria dos tnecanismos que oconstituent. Diante desta prdtica do lingiiista, a analise do dis-curso se caracteriza por duas particularidades: a primeira 6 a deque esta prdtica utiliza necessariamente um procedimento algo-n'tmico,42 o que pressupoe uma diferenga essencial na forma doresultado produzido (Observagao: trata-se aqui da analise dodiscurso e nao da teoria do discurso que ela pressupoe). Nestesentido, a analise do discurso se aproxima, como se ver£, do quese chama algumas vezes de "lingufstica aplicada", na medidaem que, empiricamente, observa-se nos dois casos o "recurso aocomputador". Mas esta primeira caracterfstica permanece em simesma insuficiente e € precise acrescentar logo uma segundaespecificidade da analise do discurso, a saber, que o objeto aprop<3sito do qual ela produz seu "resultado" nao 6 um objetolinguistico mas um objeto socio-histdrico onde o linguistico in-tervem como pressuposto.43 E 6 esta relac,ao de aplicagao44 que,a nosso ver, determina este efeito de separagao-clivagem entre apraiica lingufstica e a analise do discurso: do ponto de vista daanalise do discurso, a prdtica lingufstica aparece como uma pri-

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meira fase absolutamente indispensaVel (nao poderia haver afanalise sem uma teoria e uma prStica lingiifsticas), mas insufi-cientes como tal, na medida em que ela existe com vistas a umasegunda fase, a propdsito da qual se opera uma mudanga de ter-reno: a aplicagao nao € uma aplicagao da lingufstica sobre siprdpria (isto e\ uma aplicagao interna, no interior de uma dadateoria, como no caso da informa'tica lingufstica que se revezacom a lingufstica em um procedimento que visa a realizar esteou aquele mecanismo exposto no nfvel do discurso tedrico dalinguistica, por exemplo um algoritmo de geragao de formassinta"ticas, ou um procedimento de classificagao automdtica dostragos sintatico-semanticos de uma lista de verbos etc.), masuma aplicagao da teoria linguistica em um campo exterior. Nes-tas condigoes, 6 compreensfvel que aquele que chamamos "lin-giiista puro" tenha uma reagao um pouco irritada compar^vel ado artesao a quem escapa o conteudo de seu trabalho; nao deixade experimentar como exigencies muito fortes as restric.6es im-postas por este "campo exterior". Nesta medida, a analise dediscurso, & qual se ligam teoricamente por uma dependencia defundagao a documentagao e a tradueao automdticas, encontra daparte da "linguistica pura" as mesmas reticencias e as mesmasdificuldades que estas dltunas: o ponto comum 6 constitufdopela exigencia de uma "grama'tica de reconhecimento" suscetf-vel de responder as exigencias te6ricas internas da lingufstica e,ao mesmo tempo, as necessidades do que chamamos o "campoexterior":

No que se refere a no's diremos que a grama'tica de reco-nhecimento necessaYia a analise do discurso deve responder adois requisites:

a) esta gramdtica deve poder produzir algoritmicamenteuma representagao do que foi designado acima com o nome desuperftcie lingufstica, sendo que esta representagao produzidaalgoritmicamente constitui o que chamamos o objeto discursivocorrespondente;

b) esta representagao (o objeto discursivo produzido) devepermitir um cdlculo efetudvel sobre a relagao entre os diferentes

objetos discursivos assim produzidos, com o objetivo de restituiro vestfgio dos processes semantico-discursivos caractef^st'cos

do corpus estudado.

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E claro que, nas condigoes atuais de desenvolvimento dateoria lingufstica, a solucao de um problema deste tipo se chocacontra multiples dificuldades. E certo que, jd ha" alguns anos,existem gramJSticas capazes de reconhecer (com vistas a docu-mentacao ou a traducao) textos especializados em Ifngua ingle-sa, russa ou francesa, mas elas sucumbem ao peso das crfticas(no mais das vezes perfeitamente justificadas) da "lingufsticapura", e a solugao que propusemos nao escapa mais que outra aisto. Consideremos os dois casos que acabamos que evocar, emque esta" em jogo uma grama"tica de reconhecimento, a saber, atradugao de um lado e, de outro, a documentacao ou comparagaode textos; podemos Ihes fazer corresponder respectivamente osdois esquemas seguintes cuja "evidencia" garante a estabilida-de:

A) Traducao

Dx »-Mxy »Dy

onde Dx e Dy representam duas "versoes" do "mesmo" texto,nas lihguas x e y, e onde Mxy designa a "representacao profun-da" subjacente comum a Dx e a Dy.

B) Documentacao e comparagao de textos

Dx-

Dy

Sx

--*SyR(Sx/Sy)

onde Dx e Dy representam duas seqiiencias a serem relaciona-das, Sx e Sy as descricoes que a analise lingufstica fornece delasrespectivamente, e R(Sx/Sy) o resultado do relacionamentoefetuado pelo dispositivo comparador qu documentario. A des-peito das aparencias grdficas sustentamos que o segundo esque-ma 6 mais elementar que o primeiro e, para dizer a verdade, Ihepreexiste logicamente: com efeito, o termo de "representacaoprofunda" que aparece no esquema "tradugao" desapareceno segundo esquema; 6 substitufdo pela relacao entre duasestruturas Sx e Sy das quais nao se pressupoe que constituam as

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"representacoes profundas" de Dx e Dy respectivamente. Dire-mos, por nossa conta, que a idela de fazer corresponder uma"representagao profunda" a uma superffcie lingufstica (caso doesquema A) coloca em jogo pressupostos psico-semanticos que aconcepcao discursiva da significacao coloca precisa e radical-mente em causa. Efetivamente, na perspectiva do esquema A, aconcepgao da relac,ao entre sintaxe e semantica € a de uma rela-cao inteiramente infra-linguistica, j£ que a analise representadapela flecha horizontal ( •-) conduz, por etapas, da superffciemorfo-fonolo'gica do texto a sua estrutura semantica ou repre-sentacao profunda Mxy, supostamente comum a todas as Ifnguase constituindo assim uma espeeie de ponte Idgica ou "piv6"(sendo esta estrutura Idgica formada por argumentos e predica-dos extraidos da Ifngua Idgica universal, isto 6, da "estrutura doespfrito humano"). Na perspectiva que corresponde ao segundoesquema, ao contraYio, observa-se que a "representacao profun-da" (ou antes, o que a substitui, a saber a relagao R(Sx/Sy) )nao 6 concebida como o resultado da analise lingufstica (- -0,mas como o produto de uma operagao especffica que se efetuasobre o resultado preVio da analise lingiifstica, a saber, Sx e Sy.Tudo isto para melhor colocar em evidencia que, quando fala-mos agora de "andlise lingufstica", nos situamos na segundaperspectiva, onde Sx nao designa uma "representacao profun-da" mas simplesmente o resultado de uma delinearizagao mor-fossintdtica aplicada de modo eventualmente algorftmico a su-perffcie lingufstica de partida: em outros termos, a analise quedesignamos como "lingufstica", e que constitui a segunda faseda AAD que comentamos atualmente, tern como fim exclusiveproduzir o que foi descrito acima como objeto discursive, ex-ciuindo qualquer "representacao profunda".

Daqui por diante podemos reformular, precisando-as, asduas exigencias definidas acima:

a) 6 necessario que a gramdtica de reconhecimento sejacapaz, a partir de uma dada superffcie lingufstica Dx, de produ-zir sua representacao morfossinta'tica coerente Sx, isto 6, umarepresentagao linguisticamente deslinearizada, que restitui anao-linearidade sintdtica, que 6 objeto do que designamoscomo "esquecimento n- 2". A coerencia desta representasao,baseada na autonomia relativa das estruturas morfossintAticas

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("funcionamento da Imgua em relac.ao'a si prdpria") pressupoea possibilidade senao de reconstituir o texto de partida, dada arepresentagao dele fornecida pela gramatica de reconhecimento,ao menos de decidir, considerando uma representagao Sx dada,aquela a qual ela corresponde (isto 6, da qual € derivada), entreduas superffcies lingiiisticas cuja proximidade € tal que o estadoatual da teoria lingufstica apesar de tudo permite distingui-las.

b) Por outro lado, 6 indispensavel que a representagao Sxconstitua uma entrada possivel para efetuar a comparac.ao querepresentamos por uma flecha vertical (cf. p.190) no esquema B.Digarnos ja" que esta segunda condigao, exterior a analise lin-gufstica enquanto tal, 6 a fonte de grandes dificuldades que seresumem defmitivamente no fato de que e", ao que parece, muitodiffcil comparar estruturas complexas entre si, com a ajuda deprocedimentos algorftmicos.

Nao tentaremos descrever aqui as diferentes soluc.6esatualmente utilizadas ou consideradas; sem nenhuma pretensao aexaustividade, mencionemos simplesmente:

- Os analisadores sintaticos baseados nos "sistemas-Q"(Colmerauer, Vauquois) e as representac.6es de tipo "pi-vo 2" (Equipe TAL de Grenoble),45 que parecem tercomo propriedade comum o ato de realizarem ou de te-rem sido concebidos com o objetivo de realizar de ma-neira algorftmica os procedimentos antigamente pro-postos por Tesniere (Elements de syntaxe structurale,Klincksieck, 1959), articulando dependencias hierarqui-zadas em filiagoes num ponto inicial constitufdo em ge-ral pelo verbo.

— Os dispositivos de anaUise sintdtica diretamente inspira-dos nos trabalhos de Harris (compreendidas af as "stringgrammars") que se baseiam na extragao de "esquemas-ndcleos" (NV, NVN, NVPN etc.) e na distinc.ao entrecadeia central e adjungoes.46

- As grama'ticas de caso desenvolvidas a partir dos traba-lhos de Fillmore (ver principalmente Slakta, 1974) sobrebase gerativo-transformacional.

- Pelas razoes expostas acima, nao incluiremos nestaenumerasao o procedimento de "analise lingufstica do

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discurso" de F.Bugniet,47 na medida <*«,^ - i j? m que a repre-

sentacao que ele fez corresponder a sequoia de partida€ mais uma hsta de tracos (suscetivel de estudo estatfstico) do que uma estrutura munida de caractensticas formais que permitam um cdlculo algorftmico nao-trivial

- A fase de "analise lingufstica" que a apHcacao da AADnecessita, foi descnta de maneira mais ou menos com-pleta em Pecheux, 1969, e sobretudo no Manual (Haro-che-Pecheux, 1972). Logo, nao retomaremos em detalheo procedimento de analise sintdtica aproprfado a esta fa-se, tanto mais que um trabalho esPecif1Camente lingufs-tico acerca deste ponto esta" sendo elaborado

Todavia pareceu-nos necessa"rio recordar brevemente oscaracteres principais da fase lingufstica da AAD, aparentada noessencial as perspectivas de S.Z.Harris. Poderfanios resumir di-zendo que o procedimento (concebido como suscetfvel de apli-cacao algorftmica) consiste em produzir, dada uma sequencia decomprimento variavel, uma representacao desta seqiiancia naforma de um grafo conexo, valorado e de s6 raiz cujospontos sao constitufdos por erwnciados elementares de dimen-sao "canonica" e cujos arcos sao relacoes que conectam dois adois certos enunciados, sendo que estas relacoes podem tomardiferentes valores (de determinacao, como no caso da relativada adjetiva ou do objeto direto; de subordinagao-coordenacao nocaso das diferentes relacoes temporais e/ou l<5gicas que podemafetar um par de enunciados).

Exemplo:

Os enunciados elementares saoaqui designados pela sequenciade nUmeros inteiros e a valora-gao dos arcos que os ligam 6marcada por letras gregas.

GlC...

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Se tentamos caracterizar a especificidade deste procedimento,parece importante insistir nos dois aspectos seguintes:

a) Diferentemente das arvores, arborescencias ou grafosprdprios das grama"ticas gerativo-transformacionais de Harris oude Chomsky, os nds (ou pontos) nao sao aqui categorias sintdti-cas pre"-terminais ou terminals (do tipo GN ou DET etc.) ou uni-dades lexicais, mas espe"cies de relacoes-pontos ou, se quiser-mos, subgrafos reduzidos a um ponto no m'vel da estrutura dografo que representa o conjunto da seqiiencia. Isto quer dizerque ha" dois sistemas imbricados um no outro: o sistema dosenuneiados e o das relafoes inter-enunciados, de tal modo queos objetos do primeiro sistema servem de elementos para aconstruc,ao dos objetos do segundo. Assinalemos que no domi-nio das teorias gerativas, a estrutura deste subgrafo48 poderia serrepresentada da seguinte maneira:

DET,

comE : enunciado elementarESN : esquema-nucleo, sobre o qual se exerce uma se"rie

de determinac.6es verbals por interme'dio de FF : forma do enunciado, contendo indicates morfossinta-

ticas acerca da voz, do estatuto, do modo e do tempo gramati-cais do enunciado.

ESN = SN1 e SV

SNj: sintagma nominal sujeito, formado por um determi-nante (eventualmente vazio) e um substantivo.

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3) SNi SV P SN24) SNX SV a A5) SNj E a A6) SNX E P SN27) SNi SV a SN28) SNj SV p' SN3

SV: formado pela composicao V + ADV (vert,o .bio = VA) e pelo sintagma nominal objeto SN2> eventualmenteintroduzido por uma preposicao P (derivando entao com ele dosfmbolo SP).

Acrescentemos que DET2 pode tamb6m ser vazio, espe-cialmente no caso em que SN2 € adjetival, e que escolhemosconvencionalmente representar a preposicao vazia introduzindoo complemento de "objeto direto" por *, o vazio diante do "a-tributo" por "a"49 e a cdpula subentendida na determinacaoadjetiva50 etc. por "E". Vemos facilmente que estas disposicoespermitem reconslruir os seguintes "esquemas-nucleos":1) SNj SV O O Pedro dorme2) SN! SV * SN2 Pedro come o bife

Pedro se debruga na janelaPedro parece estupefatoO chap^u € bonito—-»O bonito chap^uO chap<5u € de Pedro---*O chap^u de PedroPedro 6 professorPedro come com um garfo

Podemos aqui em diante precisar o que entendemos quan-do falamos da imbricagao de dois sistemas. Sejam com efeitoos fenomenos sintdticos classicamente conhecidos desde as gra-rn^ticas gerativas pelo nome de "encaixe" ou "imbricacao" (re-cursividade): na perspectiva destas grama'ticas, o encaixe 6 re-presentado como uma complexificagao do grafo do enunciado(cf. p.193), do modo que, passo a passo, o enunciado £ a matrizda frase como uma forma abstrata e despojada e" o esqueleto docorpo acabado. Em outros termos, menos figurados, pode-se di-zer que a imbricacao (e de modo mais geral a recursividade) 6 acondigao que assegura a homogeneidade te6"rica e metodoldgicaentre o enunciado e qualquer formac,ao mais complexa, de talmodo que, todas as relagoes se efetuam man mesmo sistema,que se marca pelo encaixe do grafo do enunciado determinanteno grafo do enunciado matriz. Ao contrario, no caso do proce-dimento que estamos expondo, a decisao de nao reintroduzirenuneiados no interior do enunciado supoe que a questao da re-cursividade seja regulada de outro modo (a saber, pela passagemdo primeiro sistema, intra-enunciado, ao segundo sistema, das

entre enuneiados). E colocar no mesmo ato que o enun-

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ciado EJ pode determinar um outro £2 por uma relagao dissi-me'trica que equivale a uma imbricac.ao de Ej em £2, e mais ge-ralmente que uma porcao do grafo que organiza vaVios enuncia-dos pode equivaler a um ponto do grafo geral; isto constitui, defato, o segundo ponto caracterfstico que gostan'amos de apre-sentar com alguns detalhes.

b) Este segundo ponto se refere as relacoes entre enuncia-dos como relacoes de dominancia. Seja a seguinte frase: "Pare-ce-me que a Igreja fica nas nuvens e que esquece das dificulda-des e dos problemas da vida". Podemos extrair daf os seguintesenunciados:1) Parece-me que S (= alguma coisa),2) a Igreja fica nas nuvens,3) a Igreja se esquece das dificuldades,4) as dificuldades (sao) da vida,5) a Igreja esquece dos problemas,6) os problemas (sao) da vida.

Se, a!6m disso, colocamos os conectores QUE, E e DT(este ultimo conector servindo para marcar a determuiacao deum enunciado sobre o N de um outro enunciado), € claro que sepode representar a seqiiencia inicial da seguinte maneira:

sequencia/A//B//C//D/

= 1 QUE /A/= 2 E /B/= /C/ E /D/= 3 DT 4= 5 DT 6

onde se constata que os enunciados sao relacionados com cons-trugoes de enunciados, indicadas pelas maitisculas /A/, /B/ etc.,e que se imbricam uns nos outros.

Entretanto € possfvel representar estas dependencias porum esquema comportando apenas enunciados e relagoes entreenunciados, isto e", onde as construcoes intermedi^rias /A/, /B/etc. nao aparecem mais como tais, o que constitui, a nosso ver,uma condic.ao indispensavel da fase 3 do tratamento informStico,de que falaremos adiante.

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Este esquema, de forma combinatdria, 6 o seguinte:i

T QUEET

Observaremos que a escrita parent6tica abaixo € estrita-mente equivalente:

1 QUE (2 E ((3DT4) E (5 DT6»)

Quando comentarmos a fase 3, retomaremps a questao desaber se um procedimento algorftmico de comparaQao poderia seefetuar sobre representacoes deste tipo;51 contentemo-nos porenquanto em expor o sistema de transformacoes pelo qual pas-samos da representacao acima para um grafo de enunciados li-gados por relacoes binarias, como foi dito acima.

Sejam as duas condi^oes seguintes:

a)

b)

Observe-se que se Ihes aplicamos o esquema se torna:

1I QUE

* IImpoe-se entao uma constatacao, a saber, que o carater

distributivo do "QUE" em rela$ao aos enunciados da constru-cao /A/ desapareceu; logo, 6 necess^rio que se restabelecam asligacoes existentes entre 1 e 3, e 1 e 5. (Recordemos que estas

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ligacoes assim restabelecidas recebem o nome de "saturacoes").Chegamos desta maneira a um grafo saturado como o que se se-gue:

1QUE

DT _ AQUE

Os dados de entrada da fase 3 sao, pois, em definitive:a) a lista dos enunciados elementares, sendo cada um, co-

mo jd foi dito, uma seqiiencia e 8 categorias "morfossintiticas'munidas de seu valor respective;

F

noooo2)0000

3)0000

4100J052

5)0000

610040

DETj

tL

R

R

R

R

N,

S

IGREIA

IGREJA

DIFICULDADE

IGREJA

PROBLEMA

V ADV

PARECER 4

FICAR 0

ESQUECER j)

E ftESQUECER (1

E t

P

A

EM

*

DE*

DE

LS

LS

L

LS

L

N2EX3O

NUVEM

DIFICULDADE

V1DA

PROBLEMA

VIDA

b) a lista das relagoes bindrias:

1 QUE 21 QUE 32E 31QUE53DT 45DT 6

OBSERVACAO: teremos notado, na coluna DETj, a presencada forma "R" que significa a retomada de uma determinacaoprecedente.

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2.2 Crftica da fase de analise lingufstica da AAD

Ap6s recordar quais eram, para no's, os objetivos da fasede analise lingiifstica do discurso e a maneira global pela qual,no momento, tentamos realizd-los, podemos, daqui por diante,expor as diversas crfticas formuladas acerca deste ponto, semterner confundir uma crftica justificada, de nosso pr<5prio pontode vista (crftica que pode ser vital para a analise do discurso le-var em conta em sua teoria e sua prdtica), e uma "crftica" quecamufla na realidade uma regressdo te6rica para aqu&m dateoria do discurso.

Evidentemente esta questao se coloca sobretudo no que serefere as crfticas de ordem geral que visam o conjunto do pro-cesso de analise; por isso, comegaremos por este tipo de crftica,mais precisamente pela questao da manipufacdo implfcita dotexto por consideracdes semdnticas dissimuladas. Este pontoaparece independentemente, em formas bastante prdximas, nosdiferentes comentadores, em particular em A.Trognon, S.Fis-cher, E.Veron e Borillo-Virbel. Distinguiremos, aqui, dois nf-veis de crftica, mostrando por que um € aceitaVel e o outro nao.O primeiro nfvel consiste em acentuar que, na analise dita "mor-fossintdtica" tal como foi apresentada, intervem, inevitavel-mente, consideracoes habitualmente chamadas "semanticas", eque estas consideragoes, permanecendc impUcitas, possibilitamque toda a analise seja por elas afetada, na forma de incoeren-cias que dissimulam ds fen6menos, ou, pelo contrArio, produ-zindo artefatos com conseqiiencias nas fases ulteriores do pro-cessamento da AAD. Digamos claramente que reconhecemosesta crftica como perfeitamente justificada. Ela se refere a nossaproblema'tica, e num ponto vital enunciado precedentemente co-mo a primeira condigao a ser preenchida por uma grama'tica dereconhecimento: se, com efeito, intervem na analise "operagoessem^nticas nao-definidas" (Fischer-Veron, 1973, p.167), nomesmo ato, a coerdncia e a estabilidade dos resultados sao atin-gidas de modo que nao € garantida a reprodutibilidade da repre-sentacao associada a uma determinada seqiiencia, o que, conse-quentemente, coloca em causa a condigao de bi-univocidade ex-pressa pela primeira condigao. Neste sentido, estamos totalmentede acordo com a crftica de Fisher-Veron: "se o me'todo (de ana-lise lingiifstica) impede a localizacao de certas propriedades,

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estas jamais serao recuperadas" (art. cit., p.167), em outras pa-lavras, uma simples "codificac,ao" estenogrSfica da superffcie,filtrando o que 6 importante reter e o que pode ser deixado delado, nao satisfaria a "primeira condigao"; e 6 precise reconhe-cer efetivamente que certas questoes de teorias lingufsticas nao-resolvidas afetam a analise, e nao apenas perifericamente, masno prdprio principio do processo, como mostraremos em segui-da.

Nestas condigoes, nos consideramos ainda mais funda-mentados a criticar a crttica que nos € feita num segundo m'vel,que 6 a da relafdo entre a semantica e a lingufstica j£ referidaacima a propdsito da dupla "categoriza$ao" (na terminologia deBorillo-Virbel). Quando, por sua vez, S.Fisher e E.Veron des-qualificam nossa perspectiva pelo fato de ela estar "sempre as-sociada a pretensa diferenc,a entre sintaxe e semantica" (1973,p.167. Grifo nosso) fazem "como se" fosse uma aquisigao re-cente e decisiva da lingiii'stica contemporanea ter reinscrito asemantica no campo da lingufstica, a ponto de torna"-la uma rea-lidade intralingufstica. Acerca deste assunto,53 nao podemos,evidentemente, aceitar as crfticas que nos sao feitas; apenas re-metemos ao que j£ foi dito aqui mesmo.

Voltemos, pois, ao que chamamos "o primeiro nfvel decn'tica", que nos parece inteiramente justificada de nosso prd-prio ponto de vista, com a intengao de determinar o de que setrata, para eventualmente definir os princfpios que permitamremediar as dificuldades reconhecidas. Certamente concordamoscom G.Provost-Chauveau em reconhecer a heterogeneidade dasreferencias lingiifsticas que traduz a ausencia de uma reflexaotedrica global acerca dos fenomenos sintAticos. Como observa-mos no comego, fomos ao mais urgente, com os meios de quedisptinhamos, e sabendo exatamente que as "soluc,6es" lingiifs-ticas que propdnhamos eram outras tantas "provocacoes" ende-regadas aos "Hngiiistas puros" para que delas fizessem uma crf-tica transformadora. Assinalemos todavia que esta heterogenei-dade tedrica, geradora de incoere'ncias e artefatos, que fazemcom que todas as "solugoes" nao tenham a mesma "idade tedri-ca", nao deve ser confundida com a inevita"vel combinagao decaracterfsticas morfoldgicas e sintdticas nem tampouco com aexperiencia, na representa$ao, de termos lexicais e de meta-termos como *, S, X, E etc. (com efeito, seria necessaVio ignorar

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que a Ifngua e" "sua pn5pria meta-lfngua" para se espantar comisso! Logo, digamos de uma vez por todas que as crfticas sobrea aparigao de um "verbo" (E) nao-atestado na superffcie, bemcomo assim as leituras apressadas que colocam no mesmo pianoas operates de lematizagdo-e mesmo de redugao ortogrSfica - eas transformagoes sintdticas, nao nos parecem admissfveis).

Por outro lado, € evidente que o dispositive de analisesintdtica continuarS ainda por muito tempo em evoluc,ao (o quequer dizer que sua realizacao na forma de um autfimato seriaprovavelmente do tipo "experimental"), de modo que certas in-coerSncias "locais" serao progressivamente eliminadas. A esserespeito, daremos como exemplo a confusao entre os conectores"porque" e "j£ que" o ressaltado independentemente por Bo-rillo-Virbel e por Fisher-Veron a propdsito de um texto apareci-do em 1971, e que desaparece na nova lista dos conectores pu~blicada em Haroche-Pecheux, 1972.54 Entretanto, estamos longede pensar que esta heterogeneidade se reabsorverS assim pro-gressivamente, por uma esp£cie de "reformismo", roendo pa-cientemente o campo dos problemas que permanecem em sus-pense. Achamos, ao contrario, que as dificuldades que encon-tramos (e que encontram todos os projetos de ana"Hse sinta'tica)constituem um bloco tenaz e consistent^, baseado em grandeparte no que se pode chamar a dominagao tedrica da frase. Nestesentido, nao basta simplesmente um ato de boa vontade tetfrica,que aceda a uma "abordagem sem preconceito" (Fisher-Veron,p.169), mas uma tfansformagao do prdprio objeto da lingufstica.No texto de 1969, a necessidade de um estudo se*rio da inter-frase era mais evocada do que realmente empenhada (cf. AAD69, p.44 ss.), O atual desenvolvimento das pesquisas lingiifsticase a ligagao que progressivamente se estabelece entre a inter-fra-se e a pardfrase no domfnio das "lingiifsticas do texto" que apa-receram permitem pensar que a lingufstica tomou, hoje, o cami-nho da solu§ao deste problema que, como dissemos, comandaum grande nrimero de outros. A este aspecto se junta, igual-mente, a diffcil questao das andforas, que coloca em jogo neces-sariamente fendmenos sintdtico-semanticos complexos que Com-binam a localizagao das ligac.oes entre pronomes e substantives,a consideragao dos deslizamentos e das oposic.6es lexicais, aconstrugao da imagem de uma proposisao (representada por"S") etc. Ora, os exemplos de anaforizagao dados no Manual de

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1972 constituem apenas um caso relativamente privilegiado dofenomeno, por causa de sua simplicidade: bastante facil mostraros casos de anaforizac.ao que colocam problemas de restabele-cimento autom£tico dificilmente soluveis. Citemos, por exemplo:

— um substantive anaforizado por um novo termo lexical,

- uma proposigao inteira anaforizada por um novo termolexical,

— a anaforizac.ao por oposigao (ex.: "o assassino, JeanDupont"),

— a anaforizacao "vazia", mas sustentada por uma opera-C.ao de determinacao suplementar, como em "os estu-dantes estavam reunidos. Alguns.../ aqueles que... /Uns...."55

Sem subestimar a importancia das dificuldades que acabamde ser mencionadas, acreditamos, entretanto, que ainda naoatingimos com elas o ponto central que arrasta em sua sucessaotodas as outras dificuldades. Ora, este ponto central, no qual "adominac,ao tedrica da frase se exerce", nao 6 outro senao o pres-suposto tedrico que reune^ose, proposigao e enunciado. E so-bre este ponto, e com toda razao a nosso ver, que as crfticas fo-ram mais numerosas e mais pertinentes; em seu princfpio, elasconsistem em sublinhar que esta fase de analise sintatica coinci-de praticamente com a de uma "analise Idgica" tradicional, co-mo o indica, alids explicitamente, a parte correspondente do"Manual"; ela repousa, de fato, na ideia de uma organizagao aomesmo tempo hierarquizada (principal/subordinada) e seqiien-cial (coordenagao) da frase em proposigoes. Esta concepgao,que se ap6ia na noc.ao de um tecido formado de n6s constituindooutro tanto de "graos de enunciagao", redunda, na pratica, em"casos de consciSncia" do analista, ligados ao carater arbitrariodo recorte, oscilando entre o desejo de representar fielmente arealidade lingufstica e a necessidade de "dar uma maozinha", oque pode levar a "enunciados elementares" nao-enunciaVeis,nao-afirm<Sveis e ate" mesmo simplesmente nao-interpretaveis.Assinalemos, para lembrar, o caso classico dos predicados commais de dois argumentos obrigatdrios, que ainda espera umasolugao satisfatdria.

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Evidentemente, esta dominacao tedrica da frase nao deixade ter conseqiiencias no pr6prio nfvel dos constituintes do enun-ciado. Lembraremos os casos de ADV, P, DET e F, sem quererdizer com isso, de resto, que as outras "categorias morfossinta-ticas" nao colocam problemas!

- ADV: esta categoria 6 apresentada explicitamente comoprovis6ria; € claro que nao se poderia atribuir aos adve"rbios umadnica forma de tratamento. Parece necess^rio distinguir entre os*'adv^rbios" que funcionam como qualificadores de marca deparada e aqueles que se aplicam a urn enunciado em seu con-junto, ou ainda ao predicate, ou a um adjetivo. Esta simplesconsideragao impoe, para um tratamento correto do adve"rbio,que se coloque, em relacao o seu funcionamento de um ladocom os conectores e de outro com as modalidades.56 Por outrolado, 6 precise levar em conta o duplo estaruto morfolb'gico doadve"rbio, que remete ao mesmo tempo a uma classe fechada e auma derivacao adjetival por meio do sufixo "-mente".

— P: a solugao adotada atualmente consiste em tratar dife-rentemente o "complemento preposicional obrigatdrio ligado aofuncionamento sintatico do verbo e o complemento circunstan-cial, no caso em que a construgao sintatica autoriza sua supres-sao" (Manual, p.34). Na pr^tica, tal posigao nao funciona semalguma dificuldade, nao sendo sempre muito nftida a fronteiraentre os dois tipos de complementos preposicionais, e a escapa-tdria, que consiste em registrar as duas construgoes em caso deambigiiidade, nao resolve fundamentalmente a dificuldade.57

— DET: no estado atual do processo trata-se, em grandeparte, de uma codificagao de superffcie, que deixa completa-mente & parte a questao crucial da referenda no discurso. E dese assinalar que uma tentativa, visando precisamente a ultrapas-sar este est^gio, foi objeto de um artigo publicado em 1970(C.Fuchs e M.Pecheux in Considerations th^oriques & propos dutraitement formel du langagel Documents de linguistique quan-titative n- 7, Dunod) de que falaremos mais adiante. As dificul-dades de aplicac.ao prdtica das solugoes propostas neste artigo sereferem, entre outros, aos problemas ligados & construgao doobjeto de chegada chamado "lexis" a partir da sequencia anali-sada.

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— F: numerosas crfticas foram igualmente dirigidas endere-gadas a "categoria" Forma, na medida em que ela reagrupaelementos morfoldgicos, sintaticos e semanticos muito dispara-tados. For outro lado, nao € levada em consideragao a ligagao,cada vez mais evidente, com o sistema dos determinantes; enfim,todas as "formas" estao em um nfvel homogeneo, em relagao aosistema dos enunciados, o que exclui qualquer hierarquizagao equalquer imbricagao ou composigao destes, numa perspectivaque levaria em conta as relagoes de "profundidade estrutural"58

entre os enunciados.

Enfim, a"dominagao teorica da frase" (e da teoria implfcitado enunciado que ela sustenta) apresenta conseqiiencias nao-negligenciaVeis sobre as relagoes inter-enunciados. Quanto a is-so, deve ser, de novo, trazida a baila a distingao estabelecidaentre os conectores de determinagdo (do tipo "delta") e os co-nectores de coordertagao-subordinagao (do tipo "phi"), na me-dida em que as transformagoes permitem passar de um conectora outro, em particular por interme'dio da preposigao. Disso re-sulta uma heterogeneidade de nfvel que reflete o fato de que os" ^ " recobrem, sem diferencia-las, relagoes sintdticas relati-vamente diferenciadas no nfvel dos " *& ". Inversamente, saocolocadas relagoes nos "b" que nao sao consideradas nas ccne-xoes verbais.59

3. A cmdlise do processo discursivo

A terceira fase se refere, assim como indicamos mais aci-ma, ao conjunto das operagoes de "des-sintagmatizagao" discur-siva, a deslinearizagao lingiilstica que foi efetuada antes, isto 6,pelas operates da fase 2.

Come9aremos lembrando os aspectos principals desta fase,sob a forma com que € atualmente executada pelo programa decalculo que a realiza.60 Em seguida, assinalaremos as diferentescrfticas formuladas acerca deste procedimento, sugerindo diver-sas possibilidades capazes de remedia'-las, ao menos parcial-mente. Ftnalmente, colocaremos tamb^m a questao mais geral da

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relagao entre as fases 2 e 3, para examinar se as duas condigoesque colocamos anteriormente encontram sua relac.ao em disposi-goes ao mesmo tempo necessdrias e suficientes, e que solugoesnovas se nos oferecem no caso de uma resposta negativa a essaquestao.

3.1 Aspectos principals do processo de des-sintagmatizagaodiscursiva, dita "fase 3"

Nos consideramos que, tendo a fase 1 determinado as con-digoes de produgao (ou, como vimos, de preferencia, dos) cor-pus, e tendo-os realizado materialmente sob a forma de uma fa-mflia de "superffcies lingiifsticas", e tendo a fase 2, por sua vez,feito corresponder a cada uma dessas seqiiencias lingiifsticas suarepresentagao dessuperficializada, estaremos em presenga de ncorpus suscetiveis de constituir as "entradas" da fase 3, n a me-dida em que cada um destes corpus 6 composto de duas listas, asaber, a lista dos "enunciados elementares" (EN) e a lista das"relagoes binarias" (RB)61 que corresponde ao conjunto dosgrafos que constituem o corpus. Deixando de lado todas as pre-caugoes a serem tomadas para que os dados EN e RB nao con-tenham erro62 (processamento de normalizagao puraiiKnte me-canogrdfico dos dados, renumeragao — dos ndmeros — dos enun-ciados, por exemplo), nos contentaremos em expor as duaspartes fundamentals deste processamento, a saber:

— uma comparagao das estruturas "grafos" introduzidascomo dados por uma varredura "ponto a ponto'% desti-nada a munir cada um destes pontos de comparagao deuma caracterfstica matem^tica que exprima o resultadoda comparagao,

— um processamento de reconstrugao de subestruturas, apartir da informagao obtida na primeira parte do proces-samento. Descrevamos sucessivamente essas duas subfa-ses:

a) A primeira consists em efetuar uma comparagao siste-mdtica ponto por ponto, tomando a relagdo bindria como uni-dade de comparagao.

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Deve-se acentuar que esta varredura pode tomar vdriasformas, em funcao das condigoes pr6vias introduzidas: de fato,al em do caso em que todas as relacoes binarias do corpus saocomparadas umas com as outras, pareceu interessante restringira comparagao de dois modos que podem, ali^s, se associar. Aprimeira restrigao consiste em so" efetuar a comparagao de umdiscurso com outro, o que se constitui de fato numa decisaooposta a de Harris que, como se sabe, definiu o processo deandlise de discurso em referenda a um so texto, isto 6, em refe-rencia a um funcionamento intratextual; assim procedendo,Harris se orienta pela hipdtese implicita de acordo com a qualum texto se repete, reproduz sintagmaticamente estruturas quepodem ser superpostas pela operagao de analise, chegando a pa-radigmatiza-las. Isto explica por que Harris concede uma im-portancia metodologicamente privilegiada aos textos de propa-ganda ou de publicidade e, em geral, as formas "estereotipa-das" da discursividade. Nesta perspectiva isto corresponde a ne-cessidade de que o texto seja seu pr&prio dicionario, enquanto,na perspectiva que descrevemos atualmente (e cuja filiacao evi-dente com as pesquisas de Harris foi inumeras vezes sublinha-da), 6 o corpus que desempenha este papel de auto-diciondrio: e6 de fato, na passagem da intra para a inter-repetitividade que adessubjetivizagao da discursividade, preparada pelo trabalho deHarris, encontra suas verdadeiras condigoes de realizagao. Osentido metodoldgico da restrigao aqui exposta 6, pois, o depermitir o estudo do efeito da diferenga entre uma comparagaointer-discurso (na qual um discurso nao € comparado a ele mes-mo, isto 6, na medida em que duos subsequencias, pertencentesa este discurso, sao aproximadas por interme'dio de uma outrasubsequ'Sncia que pertence a um outro discurso), e uma compa-ragao na qual esta aproximagao entre as duas subsequenciasconsideradas 6 operada diretamente. Pode-se, alias, procurar ascondigoes as quais deve responder um corpus para que a escolhade uma ou outra das duas opcoes assinaladas nao exerga rtenhu-ma influencia nos resultados: € nesta diregao que parecem seorientar, em parte, os trabalhos de M.Dupraz e C.Del Vigna(1974); essa pesquisa deveria permitir a expressao precisa decertos aspectos formais que caracterizam a autonomia de umprocesso discursive, pela diferenga entre sua inter e intra-repe-titlvidade.63

206

A segunda restrigao mencionada a respeito do processo decomparagao "ponto por ponto" entre relagoes binarias se referea natureza dos conectores das duas relagoes consideradasAtualmente, 6 possfvel ou efetuar todas as comparacoes entreRB (evidentemente nos limites da primeira restrigao), ou restrin-gir esta comparagao aos pares de RB que apresentam um co-nector identico. Esta dltima opgao, que corresponde as disposi-goes descritas na AAD 69 (construgao das "classes-psi") e queera obrigatdria na versao inicial do programa Fortran (Paris) eem sua versao Algol W (Grenoble), foi objeto de crfticas na me-dida em que o tratamento particular dos conectores os exclufa,de fato, do processo de comparagao, j£ que a distancia entredois conectores so" podia ser considerada nula, no caso da iden-tidade pura e simples dos conectores, ou muito grande a prioripara conservar qualquer interesse na comparagao entre duas RB,que nao era efetuada no caso de conectores diferentes.

Agora podemos recordar brevemente em que consiste acomparagao "ponto por ponto". Coloquemo-nos nas condigoesem que duas ordens de restrigao sobre a varredura nao funcio-nam. Observamos facilmente que, se a lista das RB cont6m "n"relagoes binarias, haverd n(n-l)/2 comparagoes levando emconta o fato de que nao se compara uma RB a ela mesma (o quenao exclui a comparagao de duas RB identicas entre si!), e deque o resultado da comparagao C(RI/RBj) & iddntico ao deC(RBj/RBi). Observemos que cada um destes pontos de compa-ragao tera" a forma

Em Ki En

Ep Kj Eq

Recordemos enfim que, atualmente, a proximidade que ca-racteriza um ponto de comparagao 6 calculada da seguinte ma-neira:

Sejam de um lado os dois enunciados a esquerda (Em/Ep)e de outro os dois enunciados & direita (En/Ep): a cada um des-tes dois pares de enunciados pode ser associado um vetor boo-leano que exprime, por uma sucessao de 0 e 1, o resultado dacomparagao, coluna por coluna, dos conteddos literals dos dois

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mesmos numeros de ordem na lista dos enunciados) aosdois enunciados a direita do outro.

Exemplo:

Em En En Es Em En Es

K + K1 > K K'

Ep Et Et Ev Ep Et Ev

quadruple quadruple infcio de cadeia1 2

Assim se gera um "quadro de cadeias" a partir do quadrodos quadruples. Recordemos ainda uma vez que os quadruplesresiduals que permanecem "solteiros" sao integrados, no fimdesta operagao, ao conjunto das cadeias (na qualidade de "ca-deias de comprimento 1", na terminologia do programa realiza-do em Grenoble).

- Os domfnios correspondem a fase paradigmdtica da re-construgao sendo que a regra de sua formagao pressupoea definigao intermediaria da "seqiiencia" como meia-cadeia. Desse modo, distinguiremos, na cadeia acima, asduas sequencias "Em, En, Es" e "Ep, Et, Ev". Lembra-da esta definigao intermediaria, diremos que as duas ca-deias pertencem a um mesmo domfnio se elas tiveremuma sequencia em comum. Aplicando esta regra, vemosque se podem aproximar num mesmo domfnio sequen-cias que nao foram diretamente formadas de quadruple.Diremos entao que esta aproximagao se efetua por tran-sitividade, lembrando bem que esta transitividade 6 im-posta pela regra de formagao dos domfnios, e de modoalgum constatada como uma propriedade "demonstra"-vel" do objeto-domfaio. Enfim, € evidente que, comoanteriormente, as cadeias que nao sao associadas a umaoutra cadeia para formar um domfnio sao integradas ao"quadro dos domfnios", no fim desta etapa do proces-samento. Desta maneira, nao 6 raro que um quddruplo

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(objeto de nfvel 1), que permanece sintagmatica e para-digmaticamente isolado, se torne uma cadeia de com-primento 1, isto 6, um objeto de nfvel 2, e depois umdomfnio formado de duas sequencias, quer dizer, umobjeto de nfvel 3.

c) Mencionemos um iiltimo aspecto do procedimento atualantes de voltar a seu resultado central, a saber, a representaqaodo processo discursive pelos "domfnios semanticos" cujo modode gerar acabamos de expor. Trata-se da constituigao de um"quadro das relagoes entre domfnios", do qual lembraremosapenas os dois tipos de informacao que fornece, que poderiarnser designadas respectivamente como relacoes paradigmdticas,definindo as relacoes de intersecgao e de inclusao entre domf-nios e relagoes sintagmdticas, caracterizando o andamento prd-prio ao processo discursive do corpus. Digamos simplesmenteque as primeiras relagoes conduzem a construgao de reagrupa-mentos de domfnios (ou "hiperdomfnios"), enquanto as segun-das permitem tra^ar o grafo do processo discursivo, grafo cone-xo, nao-valorado, cujos no's sao constituidos por domfnios oupor hiperdomfnios.

Retomemos entao a questao que deixamos em suspense,isto 6, a questao dos "domfnios" enquanto elementos de basepelos quais 6 obtida uma representagao do processo discursivo:na forma atual dos resultados constatamos que os "domfniossemanticos" se apresentam como reagrupamentos de n subse-quencias extrafdas do discurso do corpus, atrav£s da deslineari-zacao sintatica fornecida pela segunda fase. Estes n objetos es-tao, por construcdo, numa reiacdo de substituicao cuja naturezanao e mais especificada, no processo que acabamos de descre-ver. No infcio (Pecheux, 1969), pensdvamos que estas substitui-goes eram necessariamente indices de equivalencia, em outrostermos, que as n sequ'Sncias de um domfnio constituem nformassemdnticas equivalentes de uma mesma proposigao, no sentidoIdgico do termo.65

Desde a publicagao do Manual, chamamos a atengao parao fato de que as relac.6es de substitui?ao a que chegaVamos des-se modo nao parecem poder se reduzir a simples equivalencia;foi entao que fomos levados a distinguir dois tipos fundamentalsde substituigao, a saber:

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1) As substituigoes "sime'tricas", tais que, dados doissubstitufveis (morfemas, sintagmas ou enunciados) A e B, o ca-minho que conduz de A a B 6 identico ao que conduz de B a A,o que pressupoe uma eqmvalencia A = B, de tipo dicionaiio, ouum efeito contextual equivalente. Neste primeiro caso, A 6 con-textualmente sinonimo de B, ou entao, £ uma sua metaTora ade-quada (e reciprocamente para B em relagao a A), no caso emque esta equivale'ncia € produzida no pr<5prio processo, sem serreferfvel a um efeito de tipo diciona"rio.

2) As substituicoes "orientadas", isto €, aquelas em que ocaminho de A a B nao 6 id£ntico ao caminho de B a A. Nesteultimo caso, os substitufveis nao sao equivalertt.es, mas se podepassar de um a outro, "deduzir" um do outro. Em outros termos,A e B estao numa relacao que, em seu nfvel mais geral, pode serqualificada de meton&nica. A existSncia desta "relagao nao-si-me"trica de dedutibilidade" entre A e B remete, a nosso ver (cf.Haroche-PScheux, 1972, pp.47-49), a possibilidade de uma sin-tagmatizagao A + R + B (ou B + R' + A), onde R (e R') re-metem a existencia de uma relagao sintAtica entre os dois ele-mentos A e B. Desse modo, dado o resultado bruto:

A = uma cata"strofe aconteceu

B = as pessoas evitam

a abertura da porta

levantamos a hip6tese de uma sintagmatizacao implfcita entre Ae B, do tipo: "e porque uma cata"strofe aconteceu em X que aspessoas evitam X", que devemos supor ser formulada em algu-ma parte (nao necessariamente no corpus estudado), o que nosleva a colocar a questao a respeito daquilo que, no "exterior es-pecffico" de um dado corpus, intervem nas substituicoes neleproduzidas, com o fim de orientS-las.66 O resultado e" entao con-vencionalmente representado assim:

Bt t

A abertura da porta.

212

Todos estes pontos serao retomados e desenvolvidos num tra-balho que esta" sendo realizado e que tem como tema as relagoesentre semantica e processo discursive.67

Terminaremos este comentdrio acerca dos atuais processesde dessintagmatiza^ao discursiva lembrando a significagao dev^rias "opcoes" introduzidas mais ou menos recentemente:

— o processo chamado de "compactagem", que permitesubmeter & analise o corpus (A + B), ape's haver efe-tuado a analise distinta de A e de B, e portanto ap<5s terestudado sistematicamente as diferengas entre os doiscorpus, e, em particular ap<5s ter deterrninado os domf-nios que pertencem especificamente a A e a B, aquelesque resultam da aglomeragao de domfnios de A e de B eaqueles, enfirn, que sao produzidospe/a compactagem A+ B;

— a distingao entre as duas modalidades de comparagaodas RB (inter-discurso, apenas, ou inter e intra-discur-so) abre caminho, ao que parece, para importantes pes-quisas para a caracterizagao da repetitividade, da este-reotipia de um corpus, estudando em que medida ele sereproduz parcialmente a si prdprio. Nao se exclui queesta problema"tica tenha uma ligacao com o discwso dooutro no interior mesmo do discurso do locutor;

— a integragao dos conectores no ca"lculo da distancia entreduas relacoes bin^rias levanta, como dissemos, uma di-ficuldade freqiientemente assinalada. Em todo caso, arelacao entre os diferentes tipos de conectores nao foiainda estudada do ponto de vista de sua substituibilida-de; este estudo teria eventualmente efeitos de retornoneste ca*lculo permitindo associar um valor a cada par deconectores que se encontram em co-ocorre'ncia. Istopressuporia uma tabela cartesiana de conectores, inte-grando os valores para cada par, as relac,6e$ de compati-bilidade e de permutabilidade (tais como Ea Ri Eb —^Eb Rj Ea).

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3.2 Crftica ao procedimento atual, com base nas entradas EN —RB.

Para a exposigao destas crfticas retomaremos o mesmo pia-no seguido no dltimo paragrafo, mencionando de infcio que, demaneira geral, foi o carrier relativcunente arbitrdrio dos proces-ses efetuados o que foi mais frequentemente criticado. Em re-cente artigo, J5 citado, Borillo e Virbel observam que muitasoperagoes "sao consideradas como naturais" ao passo que pode-riamos localizd-las no interior de uma famflia de operagoes, oque obrigaria a dar os motives da escolha desta ou daquela ope-rac,ao. A.Trognon, por sua vez, formula a natureza te<5rica dodesvio que critica falando de um misto de empirismo e defor-malismo.

Digamos claramente que o princfpio destas crfticas nos pa-rece plenamente valido na medida em que ainda nao foi efetuadoo trabalho de modeliza§ao matemdtica que permite localizar ospontos de "escolha" no processo, e de motiv^-los.68

Examinemos agora, sucessivamente, do ponto de vista dascrfticas que suscitam, as duas etapas do processo que expuse-mos, mencionando, cada vez que for possfvel, a direcao em quese deve ir para evit£-las.

O problema do valor atribufdo a camparag&o entre duasRB.

Sobre este ponto levantaremos tres observances de impor-tancia variavel.

A primeira constatac.ao consiste em observar que a prdpriadefinigao dos "pontos de comparacao" apresentada como natu-ral 6, de fato, bastante arbitraVia. Efetivamente, seria falso pen-sar que este processo, sob o pretexto de efetuar-se ponto porponto, considera todas as possibilidades de comparacao. Nao &nada disso, como se pode facilmente perceber pelo caso da inci-

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Tsa de um enunciado numa sequencia, no sentido que acabamosde dar a este termo no paragrafo 3. Seja, com efeito, o quSdru-plo:

Ea

K

Em

Eb

En

Se admitimos que as distancias calculadas sobre estescomponentes conduzem a um valor aritme'tico superior ao limiar,vemos que as sequencias Ea K Eb e Em K En estarao num mes-mo domfnio. Suponhamos agora que, em lugar da seqiiSncia EmK En,tenhamos a sequ'Sncia Em K' Ep K" En: vemos que a in-terpolagdo do enunciado Ep impede a comparagao que coloca-mos no infcio como conduzindo a um resultado positive. Prati-carnente parece bastante diffcil atenuar este inconvenience senao colocarmos ao mesmo tempo "heurfsticos" que permitamlimitar o campo de extenaSo deste procedimento que consiste em"saltar" enunciados na sequencia, e portanto em nao mais secontentar em comparar relagoes bin^rias entre si.

A segunda observagao crftica 6 de maior alcance imediato:consiste em levantar o cardter, ao mesmo tempo empfrico e ar-bitrdrio, da dist^ncia (qualquer que seja, alids, sua zona de apli-cagao): trata-se do sistema de pondera§ao (o "pattern" na termi-nologia dos programas realizados) pelo qual se multiplica o ve-tor booleano obtido no fim da comparagao, coluna por coluna,de dois enunciados. Pode-se dizer que se trata af de uma duplaarbitrariedade, na medida em que, nem linguisticamente nemmatematicamente (de um ponto de vista estatfstico), a significa-cao do princfpio desta ponderac.ao, e ainda menos a significasaodas diferencas de "peso" entre as categorias do vetor-enuncia-do, foi claramente definida. A questao que se coloca, particu-

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larmente, 6 a de saber se a identidade ou a nao-identidade entredois "conterfdos" deve revestir-se da mesma significacao,quaisquer que sejam estes conteddos.69 Nao se trata, natural-mente, de retomar ao prdprio principle da AAD, que, como sesabe, inf erdita a constituigao a priori de classes de morfemas, desintagmas ou de enunciados, mas de se interrogar, de urn pontode vista linguistico, acerca da diferenga de funcionamento, noque concerne a este fato, do que se cbama habitualmente "clas-ses fechadas", em oposigao as "classes abertas". Na resenhaque tez da AAD 69 em La Pens&e (n^ 161, junho 70), G.Pro-vost-Chauveau comenta este aspecto do procedimento, dizendoo seguinte a propdsito do valor atribufdo a cada categoria: "adeterminacao aproximativa deste valor apela (atualmente) paraas nogoes de probabilidade, assim, Dj, *escolhido* num con-junto restrito de termos (artigos, demonstratevos...) tern valor 2,enquanto que Nj, caso em que a escolha dos lexemas se efetuanum conjunto mais vasto, tern valor 5". Dizendo isto, G.Pro-vost-Chauveau "ultrapassava nosso pensamento" como fora ex-presso na AAD 69, onde nao havia nenhuma mencao de proba-bilidades, mas ela o ultrapassava na diregao que nos parecehoje titil tomar, na condicao de levantar certas ambigiiidades.Assim, submetemos a discussao a seguinte ideia: antes de tratarde maneira bomogenea cada co-ocorr€ncia, qualquer que seja acategoria morfossintdtica em que ela aparega, nao seria conve-niente distinguir dois momentos fundamentalmente diferentes daco-ocorrgncia, em fungao do cara"ter "fechado" ou "aberto" dacategoria em que esta co-ocorrencia aparece? Poderiamos, aoque parece, para o conjunto das categories DET (1 e 2), F, P eCONECTOR, considerar facilmente a possibilidade de um pro-cessamento da co-ocorrSncia no qual qualquer par de elementos(compreendido af, naturalmente, o par de elementos identicos)seria munido a priori de um valor a ser integrado no cdlculo ge-ral da distancia.

Quanto as "classes abertas" (essencialmente N, V e ADJ),podemos encarar a possibilidade ou de manter o processo atual,ou de instaurar um sistema de aprendizagetn, no qual as substi-tuigoes ja" localizadas seriam reinjetadas nos dados na forma deum meta-termo que assume o lugar dos dois substitufveis. Dessemodo se constituiria progress! vamente um "autodicionaiio" queregistraria as equivalSncias de nfvel n, com vistas a localizagao

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de outras no nivel n + 1 (observaremos que esta sugestao seaproxima muito do procedimento harrissiano). Acrescentemosque seria possfvel, por outro lado, combinar este processo com adeterminagao a priori de "palavras-chaves" (a partir de medidasestatfsticas previas) atribuindo o valor concedido a sua co-ocor-rencia.

A terceira observagao de que devemos dar conta tern comoobjeto a utilizacao da medida de distancia assim calculada: ante-riormente mostramos que esta etapa volta a associar definitiva-mente um valor nume"rico a cada um dos n(n - l)/2 pontos decomparagao. Ora, a questao que se coloca € a de saber se estadistribuicao dos valores atiibuidos aos pontos de comparagaonao apresenta um interesse maior do que a simples operagdo dedicotomiza^do a que 6 reduzida atualmente a sua utilidade. Sa-be-se, de fato, que o processo 6 efetuado aqui em termos de tudoou nada: um ponto de comparagao e, ou nao, registrado no"quadro dos quadruples". Assim se perde uma seiie de informa-goes que permitiriam distribuir os quadruples realizados em fun-gao do valor do "limite P alfa" (notado PAL na terminologiados programas realizados). Nao se pode deixar de pensar que oestudo de uma distribuigao como essa para cada corpus poderiafornecer interessantes informagoes, compreendida af talvez umaestimativa do valor optimal do limite P alfa para o corpus consi-derado. Observemos por outro lado que esta distribuigao permi-tiria seriar as substituigoes na medida em que elas afetam ummorfema (uma s<5 categoria comporta um 0), um sintagma ou umenunciado. Isto poderia apresentar um grande interesse para arealizagao de um algoritmo "do contexto rndximo", que ser^mencionado adiante. Enfim, para fechar provisoriamente estaquestao da definigao da distancia entre dois objetos (no's noscolocamos sempre no caso em que se trata de relagoes binaVias),acrescentemos que se pode naturalmente encarar outros tipos demedida alem da m6dia aritm^tica atualmente utilizada. Deve-seobservar, por outro lado, os trabalhos de Lerman70 acerca destesproblemas, e o conjunto dos me'todos de classificacao autom^ti-ca, que requerem, todos, uma medida de dist^ncia. Situar as exi-gencias especfficas da analise AAD no interior da famflia dassolugoes formalmente possfveis serfi um dos aspectos da moaeli-zagao matemfitica de que falaVamos hd pouco.

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TO problema da construcdo dos domfnios

A questao central, a nosso ver, foi abordada de modo in-dependence por G.Provost-Chauveau e por A.Trognon. Ela sereporta a referenda a semantica implicada pela expressao "do-mfnios semanticos". G.Provost-Chauveau coloca a questao de sesaber se 6 justificada, ou nao, a afirmagao de que "as substitui-goes nao mudam o sentido", o que nao deixa de assinalar a liga-gao entre nossa problema'tica e a da paraTrase, no domfnio deuma teoria transformacional; A.Trognon, por sua vez, questionaa afirmagao da AAD 69 segundo a qual "duas seqiiSncias per-tencentes a um mesmo domfnio tern uma interpretagao semanticaidentica". Sem ter a experiencia dos resultados, nos quais cons-tatamos efetivamente reaproximagdes incongruentes e artefatosdevidos ao caracter formal (formalista) de nosso procedimento,A.Trognon ja" tinha pressentido a dificuldade. Sena necessariomesmo dizer que as relagdes utilizadas sd se referem a proximi-dade fra'stica, excluindo todo "efeito de sentido"? De fato,achamos hoje que a questao 6 mais complexa, na medida em queconvem discernir os artefatos sintdticos puros que seriam emprincfpio eliminaVeis por uma corregao da ana"lise sinta'tica e/ouuma modificagao do sistema de ponderagao que forneceu a co-ocorrencia que conte"m este artefato, e os fenomenos semanticosde substituigao, os quais, como ja" tivemos a ocasiao de dizer,nao se reduzem, de qualquer maneira, a uma "identidade da in-terpretagao semantica": com efeito, distinguimos dois tipos defuncionamento que merecem, a nosso ver, tanto um quanto ou-tro, ser qualificados de semanticos, a saber, por um lado, a rela-gao de substituicdo-equivalgncia, que remete a estabilidade Id-gica de um sistema formal metalingufstico, e, por outro lado,a substitidgao-orientada que, se fomos bem compreendidos,constituiria a condigao de possibilidade de uma equivalenciaulterior, ou, se quiserem, uma equivaldncia "em estado nascen-te". Isto quer dizer que a equivalencia 6 o resultado do desapa-recimento, esquecimento ou apagamento de uma orientagao, oque faria da pardfrase Idgica (salvaguardando o sentido) um ca-so particular do funcionamento dos efeitos de sentido. Ainda,em outros termos, diremos que toda metonfmia (ligada a umaorientagao sintagma"tica) tende a se "degradar" em sinonfmia,

218

por apagamento da sintagmatizagao, o que nao exclui, eviden-temente, que as sinonfmias (ou as metaToras) sejam de novo"suturadas" por novas relacoes sintagm^ticas.

Nestas condicoes, consideramos que a dificuldade princi-pal vem nao da necessidade de justificar aqui o uso do termosemantico mas do fato de que estes dois tipos de relagao no es-tado atual do processo nao sao produzidos por um algoritmoautomatiz^vel, como se pode claramente ver nos dois esquemasque seguem.

Indiquemos, todavia, que a realizagao dos algoritmo impli-ca duas condigoes:

— de inicio, 6 necessa"rio que as zonas de substituigao se-jam identificadas por um procedimento automa'tico, oque nao € o caso, atualmente,

— por outro lado, a orientagao deve ser definida pela loca-lizagao de sintagmatizagoes, atestadas em outros domf-nios pertencentes aos resultados, ou no corpus dos da-dos, ou mesmo no "interdiscurso" do corpus ou do sis-tema de corpus estudado.

Na falta de elementos que permitam abordar este problema,nada mais diremos sobre esta ultima condigao. No entanto, fa-remos algumas precisoes sobre a primeira condigao enunciada.

Seja, com efeito, um "domfnio semantico" tal que o pro-grama atual seja capaz de calculable: podemos considera"-lo co-mo uma lista de seqiiencias da mesma extensao, supondo queelas apresentem entre si relagoes de substituicao; a primeira ope-ragao a ser efetuada 6 a de reconstituir estas zonas de substitui-gao (ou melhor, evitar a perda de informagao que se produziu nomomento da dicotomizacao do conjunto dos "quddruplos possf-veis"). Para isto, parece dtil definir o "contexto ma"ximo" de umdomfnio como o conjunto dos n elementos pertencentes a pelomenos duas seqiiencias de um mesmo domfnio e colocados namesma posigao, tal que n seja o maximo para o domfnio consi-derado. O complementar deste contexto mdximo 6, para o domf-nio considerado, uma zona de comutagao contendo no mfnimodois elementos.

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Esta investigagao deveria, a nosso ver, ser efetuada na du->,- pla perspectiva da defmigao das propriedades estatfsticas co-ffi, muns a todo corpus e de propriedades diferenciais entre corpus.

m 221

e complexidade das sequSncias laterais e da seqiienciacentral.

• analise da estrutura do grafo: frequencia relativa dos co-nectores, das relagoes de saturac,ao, comprimento m^dio

• localizagao dos pares Nj x N2 numa matriz de incidSn-cia.

categoria morfossinta'tica dos enunciados, inclufda af a"forma do enunciado".

• calculo da freqiiSncia relativa dos itens lexicais em cada

H^ w s- n o M CL a o (a 3 B 3* P 2 * w

contentaremos em recordar que o princfpio da AAD 6, tornadoem si prdprio, exterior a toda consideragdo estatfstica. O quenao exclui, entretanto, que sejam efetuadas certas investigatesestatfsticas, das quais mencionaremos rapidamente as mais uteis.

No que diz respeito a validade estatfstica dos resultadosobtidos na forma de domfnios e de relac.6es entre domfnios, nos

As outras observances referentes a construgao dos domf-nios se referem em geral ou sobre a validade estatfstica dos re-sultados obtidos, ou sobre sua apresenta^ao.

O algoritmo considerado consiste, no caso em que o con-texto ma'ximo € unico, em substituir a zona de comutacao porum meta-termo indiciado, em considerar as sequ'6ncias (ao me-nos duas) como uma s6, e em re-efetuar o algoritmo. No casoem que va"rios contextos m£ximos aparecem simultaneamente,serii conveniente efetuar a uniao dos resultados sucessivamenteobtidos assim determinados. E evidente que, como indicamosanterionnente, a informac.ao produzida pelo calculo das distan-cias — que abastece o conjunto dos pontos de comparacao —contribuiria amplamente sem ddvida para a realizagao pra*ticadeste algoritmo, que forneceria desse modo as questoes perti-nentes que servem de base para a pesquisa das rela§6es de sin-tagmatizagao, que constitui o que chamamos aqui a segundacondigao.71.

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For outro lado, parece oportuno examinar as aproximagoeseventuais entre estes resultados e aqueles que podem ser efetua-dos sobre um corpus de discurso em seu estado "natural".

2. Sobre os resultados obtidos pelo tratamento AAD:

Relacionando os resultados ao ndmero de enunciados, derelagoes e de discursos, propomos estudar:

• a distribuigao dos valores de distancia paradigmStica,em fungao do limite Pa e do "pattern", a densidade(relacao do numero de quadruples retidos, com o ndme-ro de quadruples possfveis),

• o ndmero dos quadruples, cadeias e domfnios,

• a estrutura dos domfnios (ndmero de discursos que in-tervem em sua constituigao, discursos "facultativos" i.e, que nao intervem em nenhum domfnio) e a estruturadas dependencias entre domfnios.

3. Assinalemos, enfim, que a confrontagao de caracterfsti-cas de um corpus (em sua forma "natural" e como conjunto deobjetos discursivos) com as caracterfsticas dos resultados obti-dos pelo tratamento pode conduzir a construcao de um procedi-mento de avaliagdo pr&via que permita "predizer" se um trata-mento AAD 6 ou nao aplicaVel a um corpus determinado. En-flm, no que se refere a apresentacao dos resultados, parece que aprincipal crftica recai sobre o "quadro das relagoes entre os do-mfnios", que necessita de um trabalho manual ulterior facil-mente automatiza"vel, jd que consiste em reagrupar os dommiosligados entre si por intersecgoes ou inclusoes em "hiperdomf-nios", e em reconstituir o grafo que representa os andamentosentre domfnios e hiperdomfnios pertencentes ao corpus. Deve-seobservar que uma das conseqiiencias tedricas da constituigaodos hiperdomfnios seria a de permitir o reagrupamento de se-qiiencias de extensao desigual, o que poderia conduzir, even-tualmente, 5 renovagao da problema"tica da substituicao.

3.3 Em diregao a uma transformagao das entradas da fase 3

No fim deste exame, parece-nos desejaVel voltar & questaogeral da relacao entre a fase 2 e a fase 3: lembremos que esta

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relagao se articula em torno de uma dupla exiggncia, a saber quea representagao da superffcie lingiifstica deve:

1. restituir a nao-linearidade das estruturas sint^ticas e demodo geral apresentar as garantias de estabilidade e de coeren-cia que expusemos anteriormente,

2. autorizar, por sua estrutura, a realizagao de um cdlculode comparagao-reconstrugao do tipo daquele que acabamos deconsiderar na fase 3.

Ora, parece que a representagao utilizada atualmente, eque designaremos por "representacao EN-RB", apresenta o gra-ve defeito de nao respeitar plenamente a primeira condigao, seencarregando inteiramente de exigencias que nao sao impostas,de fato, pelo segunda condigao. Em outros termos, esta segundacondigao nao parece impor a transformagao da foima "combi-nat6ria" do grafo em sua forma "EN-RB"; no entanto, pareceque, como o observa M.Dupraz (1974), a representagao que en-tra presentemente nos dados para a fase 3 nao conserva o vestf-gio das relagoes de hierarquia estrutural entre os enunciados, oque poderia explicar, efetivamente, a aparigao de um certo tipode artefato caracterizado pela heterogeneidade do nfvel estrutu-ral dos enunciados que constituem as "seqiiencias" de um do-mfnio. Nesta perspectiva, duas solucoes estendidas no temponos parecem possfveis: em prazo relativamente curto, parecepossfvel tentar melhorar a representacao "EN-RB", de modoque os conectores integrem as relacoes de parentetizagao exis-tentes entre os enunciados.

Mais a longo prazo, o objetivo seria o de transformar a fa-se 3, de modo a permitir o tratamento dos grafos (em sua formacombinatdria), o que seria o preludio de mudancas ainda maisradicals na medida em que se trata de comparar entre si as es-truturas que contem "lexis".

Conclusao

Em sua resenha j& citada, G.Provost-Chauveau ressalta,acertadamente, o fato de que uma das condigoes para que nosso

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empreendimento tenha sentido 6 a possibilidade de, em um dadocontexto, operar certas substitui§6es entre dois termos x e y semmudar "a interpretagao semantica" do enunciado (art. cit., pp.136-137).

Partiremos desta observacao para abordar os problemastetfricos levantados atualmente pela fase dita "de interpretagaodos resultados" na qual, como j£ tivemos ocasiao de assinala-lo,os diferentes tipos de substituicao existences entre as sequenciasde um mesmo domfnio sao reconstrufdas pelo analista. Para de-signar todo o alcance deste problema, em torno do qual se arris-ca, de fato, a validade e as possibilidades do desenvolvimentoposterior da analise de discurso nesta via, voltaremos sobre nos-so pressuposto quando da redacao de AAD 69, a fim de liqui-dar, para n6s mesmos e, acreditamos, tambe"m para o leitor, umailusao referente a estrutura dos processos semanticos. A esserespeito, a id6ia central do texto que evocamos era a de que "assubstitutes nao mudam o sentido", com a condigao de assegu-rar-se uma identidade minima de contexto. Neste sentido, pen-sdvamos ter ido ate" o fim das possibilidades abertas pelo traba-Iho de Harris, fornecendo uma interpretagao mais estrita das"classes de equivalencia" por ele introduzidas em seu procedi-mento de ana"lise, e a propdsito das quais ele permaneceu estra-nhamente vago: "Os resultados formais obtidos por este generade ana"lise fazem mais que definir a distribuicao das classes, aestrutura dos segmentos ou mesmo a distribuigao dos tipos desegmentos. Podem tambem revelar particularidades no interiorda estrutura, em relacao ao resto da estrutura. Podem mostrar emque certas estruturas se assemelham a outras, e em que diferem.Podem conduzir a numerosas conclusoes referentes ao texto.

"Tudo isto, entretanto, ainda € distinto da interpretagaodos resultados (aqui 6 Harris quern sublinha), que deve darconta do sentido dos morfemas e colocar a questao de se saber oque o autor queria fazer quando escreveu o texto. Esta interpre-tagao 6, evidentemente, completamente distinta dos resultadosformais, se bem que possa segui-lo estritamente na via queabrem", (Harris, 1969, pp. 43-44. Salvo indicacao contrSria,somos n<5s que sublinhamos).

Ora, havfamos pensado que, estando assegurada a identi-dade do contexto (nao apenas pela construc.ao do material, na

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medida em que este impunha uma repeticao do texto na forma deum corpus homoge'neo quanto a suas condic.6es de producao,mas igualmente pelas disposicoes internas de comparacao entreelementos do corpus), poderfamos tirar a reticencia que Harrismanifesta aqui, retice"ncia acompanhada, evidentemente, de umabandono a uma espe~cie de semantica intuitiva do sujeito falantee de suas intencoes (o que o autor queria fazer...) que critica"va-mos e continuamos a criticar radicalmente. .Falando de retice"n-cias, querfamos dizer que, a nosso ver, tudo conduziu Harris aestabelecer que "os resultados formais" que ele obte"m consti-tuem, na verdade, tudo o que uma analise nao-subjetiva 6 capazde fomecer, salvo eventuais reelaboragoes tao formais quanto asprecedentes. E, de fato, continuamos a pensar que, entre o queD.Leeman (1973) chama de uma "semantica forte" que seria "oestudo das relac.6es entre os enunciados e a realidade extralin-giifstica", — e uma "semantica fraca" — caracterizada pelo fatode que "remete a uma equivalencia entre os enunciados, semque se coloque a questao de saber o que significam estes doisenunciados", a soluc,ao correta deve ser buscada na segunda di~recdo. Se acrescentarmos enftm que, como o observa igual-mente D.Leeman, a pardfrase & um "concetto fundamental dasemantica fraca" (p. 85, loc, cit.), pode-se dizer que a "reti-cencia" de Harris consiste no fato de que ele hesita em ligardiretamente pardfrase, substituibilidade, e sinonimia. Quanto an6s, parece-nos que esta ligagao deve, inevitavelmente, ser co-locada para que se possa ir ate* o fim das instituicoes linguisticase Idgicas de Harris caracterizadas, antes de tudo, pela recusa dequalquer andlise extralingufstica do "sentido". Esta ligaQao nosconduziu, de fato, em 1969, & ide"ia da invariante proposicionalsubjacente a uma famflia parafrdstica, numa perspectiva que,por motives tedricos muito afastados dos seus, recorta a de PaulGochet (1972). Nosso objetivo72 era mesmo, de fato, o de atin-gir, pelo procedimento de analise proposto, estes "nexos se-manticos" que constituent o conteddo comum a um conjunto deproposicoes, e que ainda se pode chamar "proposi9ao de ba-se"."

Nesta perspectiva, que achamos necessaYio expor com al-gum detalhe — nem que fosse apenas porque, atualmente, nao 6possfvel determinar se ela nao tern, em certos limites, sua vali-

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dade -, o resultado da analise seria, entao, urn grafo conexo,nao-valorado, cujos nos seriam constitufdos de "proposicoes debase". A partir deste memento, serfamos reconduzidos a umproblema de Idgica formal, que poderia ser formulado como sesegue: dado um grafo, ligando entre si "proposig.6es de base",sendo o conjunto associado a um corpus discursivo determina-do, defmir as regras que permitam:

1. construir, a partir de um lexico de predicados e de ar-gumentos, o conjunto de proposigoes de base, e somente elas,

2. construir o grafo que liga entre si as proposigoes de ba-se assim definidas.

Esse sistema de regras constituiria, na realidade, o que sepoderia chamar, com razao, o "processo de produ?ao" do dis-curso correspondente ao corpus analisado.

Sem abandonar completamente esta perspectiva (daqui apouco veremos por que), parece-nos necessario fazer duas ob-servagoes. A primeira consiste numa simples constatagao, cujocarater de generalidade nao pode ser garantido como tal: trata-sedo fato, ja" assinalado, de que os "domfnios semanticos" efeti-vamente obtidos pelo procedimento AAD nao se reduzem a umafarmlia de enunciados inter-parafrasaVeis por uma dnica e mes-ma proposigao de base, de modo que fomos levados a distinguirdots tipos de relafdes de substituicao. A segunda observagao seap(5ia na primeira, e dela tenta extrair as causas a partir da dis-tingao entre semanticas "forte" e "fraca", colocando em evi-dencia o fato de que, partindo de uma "semantica fraca", nossaperspectiva tentava, na realidade, reconstituir a partir desteponto os elementos de uma "semantica forte". Observaremos,com efeito, que a ideia de uma correspondencia entre uma inva-riante (a proposigao de base) e uma se"rie de variacoes que a re-presentam & homologa & dlstincao entre "estrutura profunda" e"estrutura de superffcie", baseando-se estas duas distincoes emuma terceira que as engloba, a saber, a distingao entre de um la-do a "informacao objetiva" — denotacao —, domfnio ao qual seaplicam os valores de verdade etc. e de outro o car<Ster subjetivoda mensagem — conotacoes —, domfnio de expressao (observa-remos, de passagem, que esta distingao permite igualmente asse-gurar a teoria retonca do "desvio da norma" que, em uma "se-

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mantica fraca", se torna o desvio em relagao & invariante) Con-trariamente, portanto, ao que havfamos colocado desde o infcioa saber, que a metafora 6 primeira e constitutive, e nao segundae derivada, tal perspectiva, abandonada a si propria, leva neces-sariamente a relegar o funcionamento da metaTora a categoriados "fen6menos de superffcie" que acompanham o sentido, oque pressupoe que este ja" esteja constitufdo.74 Em seu limite, aquestao que se coloca €, a de saber se essa "semantica fraca",levada ate" o fim nesta perspectiva, 6 ainda discernfvel de uma"semantica forte": o sistema de oposicoes que acabamos delembrar pressupoe, fundamentalmente, que o sentido existe co-mo um objeto, de modo que a estabilidade do objeto (objeto realou referente) 6 primeira, e que os processes devem ser concebi-dos como objetos colocados em movimento deslocados atrav^sda representagao que deles € dada.

Ao passo que, ao contrario, se aceitamos a tese materialistasegundo a qual os "objetos" nao sao invariantes primeiros, maspontos de estabilizagao de processos, veremos entao que a pers-pectiva se modifica notavelmente, em particular no que se refereao princfpio segundo o qual "as substituicoes nao mudam osentido", Nao mais do que o princfpio correspondente aplicadoas transformacoes ("as transformacpes nao mudam o sentido"),6 evidente que este princfpio nao pode ser validamente colocadono universal, Seu exercfcio pressupoe, de fato, um campo maisvasto no qual nada garante a priori que as substituic.6es e astransformagoes nao mudem o sentido.

Isto nos conduz, evidentemente, a especificar de novo oque conve"m se entender por "pardfrase", ligando este conceitoao de substituicao e de sinonfmia e, por outro lado, ao de trans-formagao.

D.Leeman, em trabalho jd citado, expoe a evolucao dasconcepcoes de Harris, resumindo assim: "tem-se, portanto, numprimeiro tempo, um conjunto nao-ordenado de transformasdesdefinidas em termos de co-ocorrencias, e todas parafr^sticas,sem que o termo pardfrase aparega... (num segundo tempo) che-ga-se a dois tipos de operadores, cada um com caracterfsticasdescriti'veis na gramdtica: os operadores incremenciais e os ope-radores parafrasticos" (Leeman, 1973, p.42).

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A caracterfstica das transformacoes parafrdsticas 6 a de"que elas nao determinam, em geral, nenhuma mudanga de sen-tido em seu "operando", (que) elas nao Ihe acrescentam nenhu-ma informacao suplementar" (ibid.,p.43).

O segundo tipo de transformacao se caracteriza, ao contrii-rio, por "acrescentarem uma certa informacao de modo que po-dem, por esta razao ser interpretadas como sendo predicativas"(ibid., p.51). Pensamos que esta distingao corresponde (numaformulagao que nao 6, entretanto, desprovida de ambigiiidade) adistincao introduzida anteriormente entre substituicao-equiva-lencia e substituigao "orientada". Se falamos de ambigiiidade apropdsito da formulagao de Harris, € porque ela nao deixa deevocar os pressupostos da "sem^ntica forte", particularmente, adistingao entre objetivo e subjetivo, e suas consequencias lin-gtifsticas na forma da distincao Ifngua/fala; isto 6, como se sabe,a distincao entre um sistema e atos que, ao mesmo tempo, Ihepreexistem, o constituem e se "perdem nele". Podemos julgar apertine'ncia desta aproxima^ao a luz do texto abaixo:

' 'A diferen$a entre o sistema incremencial e o siste-ma de T parafrdsticos e grosso modo compardvelaquela existente entre as atividades diretas da vida eo aparelho institutional que os canaliza. Como asinstituigoes sociais, a estrutura do sistema de Tfaci-lita, inflecta e petrifica as atividades que entram emuso no sistema /I/, e este sistema € inflexfvel, con-vencional e, em parte, historicamente acidental..."(Z.S.Harris, ibid., p.68).

Nestas condigoes, nao parece que a aquisigao seja aprecid-vel, j£ que a nova distin<jao nos reconduz aos pressupostos dosquais gostariamos de escapar. Propomo-nos demonstrar que, defato, esta distingao abre o caminho para uma concepcao nova,mats de acordo com os requisites te<5ricos que formulamos, mascom a condicao de distinguir nao dois, mas tres tipos de trans-formafdes, de tal modo que o terceiro tipo seja suscetfvel de seabsorver nos dois outros, sob certas condicoes que iremos pre-cisar.

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Distinguiremos, pois, quanto a n<5s, tres tipos de transfor-magao (ou de relagoes entre pares de —•"*- •

1. As transformacoes de unidades lexicais constantes Apesquisa lingufstica atual se baseia em grande parte na hipdtesede tais transformacoes (por exemplo: "Os romanos decidiramdestruir Cartago" -> "A destruicao de Cartago foi decididapelos romanos").

Trata-se do que se poderia chamar transformagoes sintati-cas puras, transformagoes-substituicoes que, em princfpio, naomudariam o sentido na medida em que se constituiriam em con-versoes de uma seque'ncia de fonemas em outra. Conservamosesta designacao, ao menos a tftulo de caso-limite, permanecendocircunspectos acerca do fundamento desta hipdtese (que se ba-seia, em definitive, em um pressuposto logicista por interm^dioda oposicao competencia/desempenho, necessariamente ligada aesta concepcao) quanto a sua compatibilidade com uma concep-gao da enunciagao, como a que foi esbocada.

2. As transformacoes-substituicoes que "mudam o senti-do", na medida em que 6 impossfVel considerar como equiva-lentes os substituiveis: trata-se das substituigoes que chamamosde "orientadas", isto 6, com mudanga lexical, e utilizando umarelacao de sintagmatizacao entre os comutaVeis. Elas correspon-dem as transformagoes "incremenciais" de Harris.

3. Enfim, e 6, a nosso ver, o que constitui o ponto decisi-vo, propomos a introducao de um terceiro tipo de relacao, a sa-ber, a substituicao nao-orientada, com mudancas lexicais. Trata-se da relagdo de sinonimia, sublinhada por D.Leeman como"uma relagao de equivalencia entre frases, diferente da relagaotransformacional: a constatacao da similitude semantica € ime-diata e nao-empfrica; em outras palavras, nao encontramos omeio lingufstico de derivar a sinonfmia de uma operagao lin-gufstica" (loc. cit.,p. 49). Adiantaremos a hipdtese de que as di-ficuldades levantadas pela andlise lingufstica da sinonfmia pro-v6m do fato de que esta ultima 6 pensada em referSncia a pri-meira categoria de transformacoes (a das parafrases "sintdti-cas"), como uma equivalencia atenuada, e nao em referencia Ssegunda categoria, porque ela parece antite'tica a prdpria nogaode sinonfmia. No entanto, 6 nessa perspectiva que concebe a si-

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nonfrnia como um apagamento da orientacao (e nao como umaextensao lexical da equivalencia sintdtica), que nos parece fe-cundo orientar as pesquisas.

Se, daqui por diante, voltarmos aos problemas concretoslevantados pela interpretacao dos domfnios semanticos produzi-dos pela analise AAD, poderemos dizer, a luz do que precede,que o problema mais urgente 6 o dos criteries que permitem lo-calizar as "orientac.6es" entre comutaVeis: sabemos que o prin-cibio desta localizagao consiste na pesquisa de construgoes queligam os comutaVeis por uma sintagmatizacao de algum modeperpendicular ao eixo das seqiiencias de comutacao; deve-seobservar, alia"s, que estas constru$6es podem recobrir tanto en-cadeamentos temporais do tipo narrativo quanto relagoes logi-cas, como a dedutibilidade. Em todo caso, a realizacao concretedesta localizac.ao se choca com o obsta"culo das fronteiras docorpus: nada prova (e todas as pesquisas sobre a pressuposicaoparecem provar exatamente o contraYio) que o tipo de informa-c.ao que procuramos localizar desse modo seja discursivamentehomogenea Ji zona na qual se estabelecem as comutagoes. Estaquestao nos reconduz assim a um problema te<5rico: o da relagaode um processo discursive com o "interdiscurso", isto 6, oconjunto dos outros processes que intervem nele para consti-tuf-lo (fornecendo-lhe seus "pre'-construfdos"75) e para orien-ta"-lo (desempenhando, em relagao a ele, o papel de discursotransverso, ou, como dizfamos h£ pouco, de discurso perpendi-cular).

Como se ve, esta questao remete diretamente a problema'ti-ca dos dois esquecimentos que haviamos apresentado no comecodeste trabalho: vemos, com efeito, que o que haviamos designa-do como "esquecimento n9 2", analogicamente referido ao PCS-CS, e que diz respeito ao ponto de articulagao da linguisticscom a teoria do discurso, corresponde, antes de tudo, ao funcio-namento das parSfrases "sinta"ticas" e das sinonfmias linguisti-camente "naturals", isto €, cuja orientacao foi objeto de umapagamento. Todo o sistema de autopardfrase (que leva tododiscurso a se explicitar, separando o que poderia ser dito do que6 conscientemente rejeitado), isto 6, em grande parte, a presengado outro (com um o minusculo), no discurso do locutor, remeteportanto as transformagoes-substituicoes do tipo 1 e 3.

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Quanto & relagao do tipo 2, nao se exclui que ela remeta,em parte, tambem, ao "esquecimento n- 2", na exata medida emque o prdprio locutor seja capaz de convocar os processes dis-cursivos que permitam orientar as substituigoes. Logo, definiti-vamente, o que chamamos de "esquecimento n- 1" se caracteri-zaria pela inacessibilidade, para o locutor-sujeito, aos proces-ses que constituem os discursos transversos e os pre-construf-dos de seu proprio discurso, em outras palavras, o que designa aexpressao j£ introduzida do "discurso" do Outro (com um OmaiiSsculo).76 Nestas condigoes, podemos facilmente levantar ahip(5tese de que os domfnios semanticos identificados atualmentepelo procedimento AAD nao sao homog^neos, levando em con-sideragao a distincao entre os dois "esquecimentos"; por outrolado, permanece aberta a questao de se saber se esta mixagemnao 6 redobrada por uma outra heterogeneidade, devido a nao-dissociagao de processes combinados.

Todavia, no estado atual das safdas, a comparagao em umpiano de tratamento dos resultados oriundos de corpus diferen-tes nao deveria ser efetuada da mesma maneira, na medida emque a diferenca entre os corpus depende, predominantemente,ou da zona de esquecimento n9 1, ou, ao contraYio, da zona deesquecimento n- 2.

Finalmente, a questao dos crit^rios que permitem reconhe-cer a autonomia de um processo, e localizar as fronteiras destaautonomia permanece ela tambe"m nao resolvida. Enquanto naofor encontrada a solugao para esta questao subsistird a incertezaacerca da possfvel relacao entre substituicoes orientadas e com-binagao de processes; efetivamente, nao abandonamos a id^ia deque a orienta§ao deveria ser concebida como o efeito da articu-lagao entre processes diferentes, com relasoes de apagamento,de subordinacao e de depend^ncia: nesta rfltima hipdtese, a au-tonomia de um processo seria marcada, em definitive, exata-mente pela existencia de famflias inter-parafr^sticas, onde toda"orientacao" € apagada, e a natureza dos resultados obtidosatualmente proviria do fate de que nao chegamos ainda a isolarum processo; nestas condicoes, poderfamos pensar em obter esteresultado aumentando, talvez bastante consideravelmente, a di-mensao do corpus (que estaria atualmente abaixo da "massa crf-

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tica"), e elevando o limite P alfa, que fixa a proxhmdade mfni-ma conservada entre as seqiiencias comparadas.

Para terminar, voltemos ao problema da relagao entre se-mantica e sintaxe, que 6, na verdade, o proprio fundamento detodo o debate crftico do qual expusemos os eixos principals:atualmente, parece ser possfvel formular tres hip(5teses sobreesta questao:

a) Pertence & lingiifstica apenas o domfnio dos fatos desintaxe (como prolongamento da fonologia e da morfologia),que remete a funcionamentos calculaveis; a semantica, ao con-trario, € do dominio subjetivo do sentido. Esta hip<5tese, em suaorigem, assenta-se em um postulado de independencia da sintaxeem relacao & semantica, inscrevendo-se na linha do estruturalis-mo que visa a caracterizar um sistema de formas. Esta solucaofoi adotada ao mesmo tempo pelo behaviorismo e pelos te<5ricosdo distribucionalismo e do funcionalismo. E igualmente o pontode vista adotado inicialmente por Chomsky, em Estruturas sin-tdticas.

b) A semantica pertence inteiramente ao campo da lingiifs-tica. Paradoxalmente, esta segunda hipdtese 6 herdeira da pri-meira. O estudo da semantica aparece como o prolongamentonatural dos fatos de sintaxe, visando a explicates (os me'todosdistribucionalistas mostraram os seus limites). Esta e", entre ou-tras, a posigao de Chomsky, em Aspects, onde o componentesemantico interpreta a sintaxe. Deve-se observar que a integra-530 da semantica neste modelo de linguagem se faz a partir deum postulado, implfcito em grande parte, segundo o qual o sen-tido 6 um fato de Ifngua; do ponto de vista metodoldgico, o pro-cedimento de analise semantica das unidades € comparaVelao utilizado pela fonologia (decomposigao em tragos, cf. Katz eFodor). Esta solugao se baseia em uma teoria que e", ao mesmotempo, uma "teoria do conhecimento" & uma psicologia da pes-soa humana - uma construcSo do mundo referida a um sujeitoneutro e ideal.

Apesar do torn pole"mico assumido pela discussao entreChomsky e os aspectos da semantica gerativa, esta segunda cor-rente se aparenta, ela tambem, a hip<5tese b) apresentada aqui:em ultima instancia, tudo que 6 semantico € da algada do estudo

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lingiifstico, mesmo se, contrariamente a Chomsky, a semanticanao esteja dissociada da sintaxe (cf. as estruturas subiacentes"Idgico-semantico-sinta'ticas") e se alguns fenomenos semanti-cos (por exemplo, os "pressupostos") sejam tratados no quadrode uma "teoria dos mundos" que visa a romper a unicidade do,,sujeito. No entanto, estes sujeitos ainda sao sujeitos neutros,fontes de sentido, e nao referidos a determinagoes objetivas; 6.por isso que a semantica gerativa pode ser considerada como"um passo a mais" na via da confusao entre ideologia, discursoe linguagem.

c) Apenas uma parte dos estudos semanticos e" da alcada deum estudo lingiifstico. Esta terceira hip6tese pode dar origem adois tipos de solugao mutuamente exclusivos (podendo, desteponto de vista, se prestar a confusao o termo "enunciagao", aoqual ambos se referem):

cl) A solugao de Benveniste que, no interior do processode significac,ao, distingue "o sentido" e "a referenda" (ou '*de-signagao"). A interpretagao mais imediata desta distingao con-siste em ver af uma oposigao entre uma semantica lingiifstica euma semantica extralingiifstica. Este parece ser o caso enquantose permanece no estudo da Ifngua concebida como sistema es-truturado e hierarquizado de signos: "o sentido de uma unidade6 o fato de que ela tern um sentido (...) o que equivale a identifi-ca-la por sua capacidade de exercer uma "fungao proposicional"(Probletnes, p.127); isto € do domfnio de uma analise lingiifsti-ca. Ao contrano, a referenda do signo remete "ao mundo dosobjetos gerais ou particulares, tornados na experiencia ou forja-dos pela comunidade lingiifstica" (ibidem, p.128). Mas, paraBenveniste, a Ifngua nao 6 apenas um sistema de signos, 6 tam-be"m "um instrumento de comunicagao, cuja expressao 6 o dis-curso" (ibidem, p.30). Sistema de signos e discurso constituem"dois universes diferentes, ainda que abranjam a mesma reali-dade e possibilitem duas lingiifsticas diferentes" (ibidem,p.!30).A articulasao destas duas lingiifsticas se opera no nfvel da frase,e, af, o estudo da referSncia 6 reintroduzido no campo da lin-giifstica; efetivamente, o sentido da frase (sua fungao de predi-cado) 6 descrito, analisando as relagoes entre os signos que acompoem; a referenda da frase (isto e", as "situagoes concretas eempfricas" (ibidem, p.!28))€ do domfnio da lingiifstica discursi-

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va (teoria da enunciagao). Esta segunda direcao abre caminhopara a idela de discurso-fala enquanto lugar da 0113530 indivi-dual. Assim, as modalidades de frase traduzem, para Benveniste,tres fungpes "inter-humanas" caracterfsticas do discurso, cadauma correspondendo a uma "atitude do locutor", a saber,"transmitir um elemento de conhecimento, pedir uma informa-530, dar uma ordem" (ibidem, p.130). A caracterfstica desta so-lugao reside, a nosso ver, no fato de nao poder escapar a duali-dade ideologica que reune o sistema (de signos) e a criatividade(individual): "discurso", af, nao € outra coisa senao um novoavatar da "fala".

c2) A solugao de acordo com a qual a fronteira entre o lin-guistico e o nao-Hngiifstico se situa no interior dos fenomenossemanticos, precisamente af onde se opoem uma "semanticaformal" e uma semiintica discursiva. Reencontramos realmente a"enunciagao" mas, desta vez, defmida como a teoria da ilusaosubjetiva da fala (teoria do "corpo verbal"), e nso como sua re-peticao. Tudo o que precede demonstra seguramente que tenta-mos constantemente nos colocar no ambito desta hipdtese (c2), oque nao significa, naturaimente, que os diferentes aspec(os doprocedimento AAD, deste ponto de vista, nao possam, precisa-mente, ser objeto de crfticas.

Podemos, sem duvida, constatar que fenomenos como anominalizagao, o "esvaziamento" dos DET ou do SN, o "pr£-construfdo", etc. sao, desde agora, identificados no nfvel dos re-sultados,77 entretanto, todas as crfticas que lembrarnos ou for-mulamos em relagao 3s modalidades atuais da analise morfos-sintdtica permanecem validas e exigem profundas mudangas. Pa-ra terminar, gostarfamos de colocar acerca deste ponto a questaoda pr<5pria relagao entre as fases 2 ("lingufstica") e 3 (compara-tivo-discursiva); nao € possfvel conceber que, ao inv^s de sejustaporem seqiiencialmente, estas duas fases se codeterminam,de modo que haveria um "efeito de retorno" da fase 3 a fase deanalise sintatica; nada nos impede de imaginar a realizagao deuma leitura em varios nfveis que, partindo de um sistema mor-fossintatico mfnimo, reintegraria, em seguida, progress! vamente,as "infonnagoes" semanticas localizadas depois desta primeiraleitura e de seus efeitos no nfvel da fase 2.

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Pode-se pensar, em particular, que os resultados interme-di&ios obtidos, referentes as relagoes de sinonfmia, de par^frase

"sinta'tica" e de sintagmatizacao entre comuta'veis, pudessem serreinvestidos em uma analise morfossinta'tica de nfvel mais eje_vado, especialmente sobre a determinagao dos fenomenos deinter-frase, ligados, ao mesmo tempo, a identificagao dos "cen-tros sintaticos" e a das relagoes de sintagmatizagso. E nesta di-recao que contamos engajar, a longo prazo, as pesquisas refe-rentes a articulagao entre lingufstica e teoria do discurso.

Tradugao: Pericles Cunha

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NOTAS

1 Verbibliografiall, 1 e 2.2 VerbibliografiaII,3.3 C.Haroche, P.Henry, M.Pecheux, 1971.

Confira particularmente o artigo de L.Althusser, "Ideologic et appareils idgolo-giquesd'Etat"(1970).5 As rela$6es de produ$ao nao estao, de modo nenhum, fixadas numa repeti$5o

eterna, como pretende a sociologia funcionalista. Na realidade, e na medida em queas relacoes de producao correspondem a relagoes de classe, 6 conveniente falar de re-pradufao-transformagaa das relagoes de produ§ao. Aqui nao 6 o lugar para desen-vol ver mais este ponto essencial do materialismo historico.

" A ideologia burguesa, como a forma mais completamente desenvolvida, instrui-nos nao apenas acerca do funcionamento da instSncia ideoltfgica em geral, mas tam-bem sobre as formas histdricas que a precederam. Todavia, nao se deve projetar asfonnas burguesas de interpelacao sobre as formas anteriores. Nao 6 evidente, porexemplo, que a interpelac 3o consiste sempre em aplicar sobre o pniprio sujeito a suadeterminagao. A autonomia do sujeito como "representacSo da relacao imaginana"6, de fato, estritamente ligada a aparigao e a extensao da ideologia jurfdico-polfticaburguesa. Nas formacdes sociais dominadas por outros modos de producao, o sujeitopode se representar sua prdpria determinacao como se impondo a ele na forma deuma restricao ou de uma vontade esterna, sem que, para tanto, a nelagao assim re-presentada deixe de ser imagindria.

No's nao dissimulamos senao quando, utilizando termos como "atitudes" e "re-presentagoes" tomamos ao vocabulaYio da sociologia, deixamospairarumequfvoco;as prdticas no sentido marxista nao sao "comportamentos sociais" ou "representa-9oes sociais".

8 C.Haroche, P.Henry, M.PScheux, 1971, p.102.

" Esta necessidade remete a especificidade da linguagem inerente ao homem comoanimal ideoldgico.10 C.Haroche, P.Henry, M.Pecheux, 197I,p.l02.

1 Precisemos que o termo produfdo pode, aqui, acarretar certas ambigiiidades.Para eviti-las, distinguiremos o sentido econdmico do termo, de seu sentido episte-moldgico (producSo de conhecimentos), de seu uso psicolingOfctico (producSo damensagem), e, enfim, da significasSo que recebe na expressSo: "produgao de umefeito". Antes de tudo, 6 neste ultimo sentido que se deve entender este termo. En-tretanto, veremos mais adiante que s5o, igualmente, objetos de discussSo os meca-nisrhos de realizagao do discurso produzido pelo sujeito. Por outro lado, o uso destetermo assume, a nosso ver, uma funclo polimica em rela§5o ao emprego reiteradodo termo "circulacao", e atfi mesmo "criasSo", paracaracterizar processos de sigm-ficacao.Acrescentemos, enfim, que a materialidade verbal (f6nica ou grdfica) & um dpspressupostos da produg5o econdmica como coodic§o infra-estrutural de comercio (e,de modo geral, do contrato) e, ao mesmo tempo, como condigSo de aproveitamento

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social das forsas produtivas ((ransmissao do "modo de usar" dos meios de uabalho e"educagao" da for^a de trabalho).A significacao da expressao "condigoes de producao" sera" precisada adiante.

12 Cf. P.Henry(1971,1974).13 O termo "esquecimento" nao remete, aqui, a urn disturbio individual da raemd-ria. Designa, paradoxalmente, o que nunca foi sabido e que, no entanto, toca o maisproximo o "sujeito falante", na estranha familiaridade que mantem com ascausasque o determinam... em toda ignoiancia de causa.14 Nao colocamos de infcio uma "identidade de sentido" entre os membros da fa-mflia parafrastica. Ao contrario, pressupomos que 6 nesta relagao que sentido e iden-tidade de sentido podem se definir.15 Damos, logo, urn exemplo do que entendemos, do ponto de vista discursivo, poruma "famflia parafrastica" atraves daapresentacao de um "dommio semantico" ob-tido em recente estudo efetuado com a A AD:

Distribuicao

eqiiitativa

justa

dosdas

benslucros

riquezasmelhor

Veremos mais adiante que as relac6es aqui representadas por chaves devem ser inter-pretadas como relacoes sime'tricas (tracos verticals) ou relagoes nao-sime'tricas (fle-chas). Observemos, ao mesmo tempo, que a par£frase discursiva n5o deve set con-fundida com o que alguns lingfiistas chamam de para'frase (por exemplo, a transfbr-macao passiva). Voltaremos a isso.16 Acentuamos que esta concep$ao nao se identifica com a das "leituras plurais"que sugerem a id6ia de um pululamento infinito de significacoes, cada sujeito mani-festando af sua singularidade. Isto seria perder de vista a matertalidade do discursivoe 6, ao que parece, o que faz A.Trognon quando escreve: "O que o discurso diz e"oqueescrevemos, ua problematicaque nos definimos". Trognon, 1972,p.28.17 S,Fischer, E.Veron, 1973,pp.l62-181.1 Q

As expressoes pelas quais tentamos caracterizar as relacoes entre "formacoesimaginarias" (Pecheux, 1969, pp.I9-21), do tipo: Ia(A)( Ia(B), etc. deixam ampla-mente aberta a possibilidade de uma interpretagao "interpessoal" do sistema dascondigoes de produgao. Encontramos as repercussoes desta ambiguidade em variestrabalhos como, por exemplo, M.J.Borel (1970). Por outro lado, a ide"ia adiantadapor A.Trognon (1972, p.164) deacordocom a qua! a AADteriacomofun§aoadis-tribuicao dos "elementos do discurso" ou "unidades textuais" em fungao destas di-ferentes expressoes (Ja(A) etc.) nos e estranha. Enfim, estamos de acordo comL.Guespin quando reconhece que a multiplicacao dos "mecanisraos" nao regula,fundamentalmente, a questao.

y Adiante veremos as conseqiiencias desta dificuldade em relagao a constituic.ao docorpus.

Assinalemos desde ja1 que os termos "discurso", "processo discursivo", "forma-cao discursiva", "texto" (ou "sequencia") nao sao, de nenhum modo, intercambi^-veis. A definigao deles ser£ dada logo em seguida.

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21 Entendemos por "corpus discursivo" um conjunto de textos de extensao variavel(ou sequencias discursivas), remetendo a conduces de produ9ao consideradas est5-veis, isto 6, um conjunto de imagens textuais ligadas a um "texto" virtual (isto 6 aoprocesso discursivo que domina e engendra as diferentes sequ'Sncias discursivas per-tencentes ao corpus). Retomaremos esta questao a propdsito da construgao dos corpus,

22 O fato de que o discurso esteja no ponto de articulacao dos processes ideo!6gicose dos fenomenos lingiifsticos nao deve levar & confusao pela qual a Ifrigua seria assi-milada a uma superestrutura ideolcSgica. Esla precauc_ao, que constitui um dos pontosde partida tedricos da AAD, pode parecer a alguns como uma interdicao (uma nor-malizacao!) conflnando o linguista a tarefas subalternas (o sentido interditado ao lin-guista!!!). Adiante veremos que, muito ao contrdrio, esta distincao entre Imgua eideologia conduz a uma reformulac.ao fecunda da problema'tica lingufetica atrav^s daconsideragao dos processos de enunciagao.23 O caso da anftlise "sintatica" das relativas constitui um exemplo privilegiaclo dareintrodu^ao sub-reptfcia de consideragoes semanticas. Este aspecto, j£ abordado emC.Fuchs, J.Mibier e P. Le Goffic (1974), 6 retomado nesta coletanea pelos textos deP.Henry e A.Gresillon.24 Cf.Langages37,p.5Q.

2* O termo "ilusao necessaria" foi introduzido pela primeira vez por P. Le Goffic(Cf. obra coletiva sobre as relativas, por C.Fuchs, J.Milner e P. Le Goffic, 1974).2" Esta concepc.ao da enunciacao volta a colocar, de fato, o "sujeito psicolo"gico"idealista na base da lingufstica. ^ o que constata R.Robin dizendo: "A lingufstica dodiscurso nao conseguiu operar o descentramento do sujeito do discurso porque elanao conseguiu integrar nem o sujeito ideoldgico do materialismo histdrico nem osujeito psicanalitico a sua teoria do sujeito" (Robin, 1973, p,81).2' Cf. a nogao de "antipara'frase" introduzida por S.Fischer e E.Veron (1973).

2° Esta zona n? 2 6 o domfnio do que se chama as vezes de "estrat6gias discursivas"incluindo, particularmente, a interrogacao retdrica, a reformulagao tendenciosa e ouso manipuiabSrio da ambiguidade. Sobre este ponto, cf. C.Haroche (1974).2" Por isso entendemos o "exterior especffico" de um processo discursivo determi-nado (Cf. AAD 1969, p. 111), isto 6, os processos que intervem na constituic_ao enaorganizagao deste Ultimo.30 Ver em particular C.Haroche e M.Pecheux, 1972 (b), pp.67-83.Q1JI Acerca deste ponto, e em particular acerca da distingao lei inconsciente/regrapr^-consciente-consciente, cf. Th.Herbert (1968). Ver a discussao de R.Robin (1973,p. 100).32 Cf. Culioli, Fuchs, Pecheux (1970).

•" Os processos de enunciacao constituent o que, no interior mestno da "base" lin-gufstica, autoriza o desenvolvimento de processos em relacao a ela.34 Por exemplo, quando se fala do "discurso de uma cie"ncia".35 Precisemos que a teoria desta articulacao necessita de elaboracao em um pianogeral e nao se poderia confundir com as condicdes e os resultados desta ou daquelaanalise discursiva particular; fazemos, aqui, esta observac,ao para evitar a ide"ia deum cfrculo vicioso.36 Esta transpantncia 6 desmentida na prdtica pela alternSncia dos comentarios napresen§a de urn mesmo conjunto de resultados AAD. Esta alternSncia funciona de

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acordo com o princfpio: "VocS diz que obtdm este resultado, prove-o" / "Este re-sultado que vocfi obteve 6 evidente".37 A analise concreta de uma situac.ao concreta pressupoe que a materialidade dis-cursiva em uma formac.ao ideologica seja concebida como uma articulac.ao de pro-cessos. A este respeito, recordemos a observac.§o de P.Fiala e C.Ridoux (1973, p.45)':"O texto" - dirfamos - o discurso - "nao € um conjunto de enunciados portadores deuma, e ate" mesmo varias, significagocs. Ii antes um processo que se desenvolve demdltiplas formas, em determinadas situagoes sociais."38 Geffrey etal. (1973).39 Cf, acima, p. 181-182 e abaixo, pp. 205-207 c 221.40 Em rela$6es de lugares inscritas no interior das relac.des de classes,

O procedimento AAD foi utilizado (na perspectiva "arquivista") pelo historiadorG.Gayot em tres estudos independentes sobre textos do s6c. XVIII. Eis as observa-c.6es que ele transmitiu acerca deste assunto:"Nos tres casos, os processes discursivos que localizamos correspondiam ao que umaleitura informada dos textos sugeria ao historiador. Mas dois fatos merecem atenc.ao:1) Sabemos que, na forma de processamento 'arquivos' , o corpus & constitufdo pe-las sequ&icias extrafdas de um conjunto determinado que contemn o termo escolhidoem razao do papel determinante que eu Ihe atribuo hipoteticamente enquanto histo-riador,Ora, apesar do cuidado com a minha escolha, aconteceu que os resultados foram'pobres' , no sentido em que os mecanismos discursivos empregados no contexto do

termo escolhido nao fornecem nada mais do que o que fomeceria uma longa apren-dizagem da leitura dos textos submetidos a analise (cf. Histoire et Linguistique,A.Colin, 1973,p.242).Acredito que, de fato, sera" sempre assim com corpus centrados em um tenno cujapotencia & tal, nas condigoes discursivas consideradas, que ele cria um vazio em tor-no de si e, al&n do processo principal que o contem, n5o convoca senao processosderivados direlamente subordinados, Assim, se acha 'experimentalmente' questio-nada a evidencia que pretendia que a importancia indiscutfvel de uma palavra, paraaqueles que a utilizaram em uma determinada fipoca, fosse necessariamente produti-va, do ponto de vista dos processos discursivos que Ihe sSo ligados.2) Ao contrario, os dois oulros estudos (Gayot-P8cheux, Annales 1971, (3-4)pp.681 -704 e Gayot, a ser publicado) demonstraram que a forma dominants de sele-c^o-combinac^io das palavras ligadas ao emprego do termo escolhido cedia lugaraofuncionamento de processos discursivos secunddrios relativamente autonamos que,pela simples leitura, poderiam ser percebidos como principals (Exemplos: os enca-deamentos sobre o tema do progresso geral realizado pelas massas, na obra de Saint-Martin; os encadeamentos sobre o tema da fratemidade e da igualdade entre os ho-mens, nos franco-mac.ons do sec. XVin). A AAD demonstrou, de fato, que estesmecanismos secundarios eram retomados, integrados e como que digeridos na orga-nizac.ao geral do discurso gerida em Saint-Martin pela confianc.a concedida a dnicaelite dos eleitos de Deus e, nos franco-magons, pelo servic.o prestado pela fratemida-de mac,6nica a ordem estabelecida, a ordem tradicional e nao a ordem 'a vir' .

Desse modo, a partir de uma colecao de enunciados determinados, a AAD permite aohistoriador recompor e distinguir as regras - principals e anexas- que os produzem.Esta distinc.ao 6 capital para escapar das armadilhas armadas, ao longo das leituras,pelos processos discursivos secundarios que projetam uma zona de sombra em tomodo processo dominante. No que nos diz respeito o beneffcio que obtivemos se refere,

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antes de tudo, ao evidenciamento da armadilha constitufda pela ideologia singularconservadora ou contra-revolucionana submetida pelo discurso tnagdnicooumarti-nista no sec. XVIII, ideologia que pdde enganar, e ainda engana, certos defensoresdo progresso."4^ Algoritmo: sequfincia regulada de operagoes realizaVel em tempo finito por umcomputador, produzindo um resultado determinado, a partir de um ponto de partidadado.43 t. por isso que nos parece haver, as vezes, abuso de linguagem quando se utiliza otermo "lingmstica do discurso" para designar, de fato, uma Knguistica dos textos (emesmo de um texto), sob o pretexto de que ela ultrapassa o domfnio da analise dafrase, muitas vezes recoberta, por outro lado, pela expressao "lingufetica da fala".Indicamos acima as razoes de nossa reticencia a este respeito.

Empregando o termo "aplicacao", airiscanio-nos a introduzir uma ambigiiidadeque convfim ser explicada, o que faremos, distinguindo "aplicagao tficnica" e "apli-ca?ao tetfrica".

- A aplicacao t£cnica consists em utilizar uma teoria e uma aparelhagem como ins-trumento para a produ§ao de um efeito, objeto ou resultado, na prftica (a teoria dossemicondutores 6 aplicada tecnicamente a fabricagao de transistores).

- A aplicagao tedrica consiste na intervensao de uma disciplina tedrica em outra (a-plicagao da matemdtica na ffsica) ou na aplicacao de uma disciplina a ela mesma.Acentuemos que, no caso da informa'tica lingufstica, infelizmente, nem sempre £ f&-cil distinguir as aplicagoes t^cnicas das aplicagoes te«5ricas.45 Esta equipe, dirigida por J.Rouault, coloca como um dos seus objetivos a consti-tuigao de uma GRF capaz, especialmente, de automatizar (ao menos parcialmente)a fase de analise lingufstica da AAD.4" Sena interessante comparar sistematicamente o grafo da analise AAD em enun-ciados elementares e o que produz o analisador sint&tico de M.Salkoff, que aplica aofrances o m^todo proposto por S.Z,Harrisem "String Analysis". Cf. Salkoff (1973).47 F.Bugniet(1971-1972).48 Assinalemos realmente que se trata aqui da representagao adotada no texto de P6-cheux, 1969. Adiante veremos as modificagoes atualmente consideradas.

49 Este ponto foi introduzido desde a publicagao do Manual 1972.5® A questao da determinat;ao adjetiva levanta problemas analogos e tao diffceis deresolver quanto os que ressaltamos a propdsito das relatives, porque reencontramosnao apenas a distingSo entre adjetivagao determinativa e nao-determinativa(i7a«to-m6vel negro/a neve bronco), mas tamb£m oposigoes de um outro tipo como: am sim-ples soldado/um verdadeiro democrata, ou ainda: o passo mardal de X/a cone mar-cialetc.51 Cf. Haroche-PScheux, 1972, p.40.C-)J* A introducao de um novo valor de modo, correspondente ao nao-afirmado liga-do ao restabelecimento de G foi efetuado desde a publicagSo do Manual (Haroche-PScheux, 1972).

^3 Que leva, logicamente, os crfticos a nos acusar de ter efetuado uma "prestidigita-S5o" (e f. A.Trognon, 1971) enlre os dados e os resultados, na medida em que suaposicao 6 sua impossibilidade em distinguir entre a semSntica "lingufstica", que in-

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terve'in implicitamente na analise sinta'tica, eos processes semantico-discursivos cu-jos trac.os sao localizados pela fase 3 do processamento AAD,

™ A impressao de uma crftica um tanto apressada, onde o acidental se mescla aoessencial, & reforc.ada pelo exemplo de aplicac.ao da analise lingufstica AAD propostapor S.Fisher e E.Veron, em artigo citado. Tendo escolhido como sequfincia a setanalisada o texto publicitario abaixo, bastante particular quanta a sua forma ret6rica:

"Baranne 6 um creme,E porque Baranne 6 um cremeOue Baranne penetra a ciitis tao profundamenteE porque Baranne penetra a ciitis tao profundamenteQue Baranne alimenta a ciitis.Todas as ciitis'.'

motivo pelo qual nos resguardariamos de pretender efetuar a analise. Os autorcs exe-cutam, a seu propdsito (e em todos os sentidos do termo) "o m6todo de P&cheux",isto 6, aplicam-no, deformando-o para fazer a sua crftica.Que os autores nao tenham se preocupado em respeitar as convenc.6es relativas ao re-gistro dos verbos (no infinitivo) e dos substantives (no singular), que ignorem, poroutro lado, a disn'ngao entre ausencia de preposi$ao (0) e a casa vazia da preposic.aodiante de SN2 (*) tern apenas, naOiralmente, pouco efeito sobre a demonstrasao.

Ao contrSrio, o fato de terem esquecido de reconstruir a ordem canSnica no interiorda seqtie'ncia (cf. "Manual", p.17) faz com que proponham com desenvoltura solu-c.6escomo, particularmente, o estranhoenunciado:

"00000 C'e"j3 0 0 0"que Ihe deixamos a total responsabilidade.Com todas as precaugoes devidas a particularidade deste texto, indicamos abaixo aque teria conduzido a aplicasao do processo descrito no Manual 72, e levando emconta a distinsao entre * e a surgida ape's a publicacjlo do "Manual".

O restabelecimenio da "ordem canfinica" teria conduzido & seguinte reformulac,ao:"Baranne 6 um creme. Baranne penetra a ctitis tao profundamente pprque Baranne &um creme. Baranne alimenta a ciitis, Baranne alimenta todas as ciitis porque Barannepenetra a ciitis tao profundamente".Os enunciados elementares seriam entao os seguintes:

1 0000 0 Baranne ser2 0000 0 Baranne penetrar profundamente3 0000 0 Baranne ser4 0000 9 Baranne alimentar5 0000 0 Baranne alimentar6 0000 (J Baranne penetrar profundamentereunidos pelo grafo abaixo:

1

*2I4

I5-

0 a U creme* L cdtis

creme* L ctfn's* TLS cdtis

* ciitis

porque

porqueporque

242

Observacoes:

a) O "tao" de "tSo profundamente" nao foi levado em considera^ao,b) O problema de "6 porque... que" e o da permutaslo que representaestaconstru-c5o em relagao a ordem candnica poderia ser tratado ou por uma marca intra-enun-ciado afetando a forma F, ou por uma reflexao de certas relagSes do grafo, o que te-ria como efeito, ao mesmo tempo, a supressao da repeti^ao do contetfdo dos enuncia-dos 2 e 4 pelos enunciados 3 e 6. Para esta segunda possibilidade nos contentamos emsugerir o seguinte grafo:

1

porque

porque porque

Nada prova que, nas condicdes normals de utilizac.ao da AAD (pressupondo, entreoutras, a existencia de um corpus de sequencias discursivas), os erros que acabamosde assinalar nao tivessem consequSncias, De qualquer modo, o fato de que uma partedas crfticas gerais que os autores dirigem ao processo sinta"tico proposto pennanesavilida nao os dispensava, a nosso ver, da aplicacao conscienciosa desta analise.55 Cf., particularmente: M.Gross( 1973).56 Cf. o problema das composic,6es do tipo: "certamente, j& estfl um pouco muitoquente".

Serf conveniente poder tratar, igualmente, o caso em que uma preposic.ao na su-perffcie pode remeter a interpretacoes semSnticas diferentes; cf., por exemplo, a po-lissemia da preposigao "de": "ele vem de Paris", "o chapdu de Pedro".GOJ0 A profundidade estrutural remete ao problema das diferengas de nfvel entre osenunciados, Iraduzidas pela parentesagem (op. cit., p.40). Adiante (op. cit., p.78)consideramos a possibilidade de levar em conta diretamente estes fendmenos, noprocesso de comparagao. Cf. igualmente as tentativas de diferenciagao dos compo-nentes de F na comparagao dos enunciados (Del Vigna e Dupraz, 1974).59 Mencionemos, enfim, o problema nao-resolvido colocado pelas relatives do tipo:"a escola 6 o lugar onde as crianc.as aprendem a ler", "o homem de quern eu encon-trei o filho", "a casa no teto da qua! as cegonhas fizeram o seu ninho".60 Cf. bibliografia, II, 4.

61 A lista das RB 6, de fato, a lista dos arcos do grafo, munidos de sua valoragao que6 um conector. O grafo, tendo como vertices os enunciados elementares, define umarela§5o binSria sobre o conjunto dos enunciados. Por abuso de linguagem, chamamos"relagoes binarias" um par de enunciados elementares em relacSo, e mumdo do co-nector que Ihe 6 atribufdo.62 Um programa preliminar de detecgSo de erros nos dados foi realizado por J.Leonno quadro do Service Calcul Sciences Humaines CNRS.63 Este procedimento poderia ser apUcado ao estudo das condicfies de fechamentode um corpus, considerando que & sempre possfvel obter este fechamento duplicandoo corpus.

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64 A diferenc,a entre os dois programas reside, essencialmente, na ordem em queefetuam as operac.6es. Digamos, simplesmente, que o programa ALGOL W seguemais literalmente o texto AAD 1969, particularmente no que se refere & nogao de"psiclasses" e, de modo mais geral, trata todas as relacoes paradigmaticas antes deabordar os encadeamentos sintagma'ticos inter-enunciados, o que nao 6 o caso naversao parisiente.65 Cf.Pecheux, 1969,pp.35-38.66 Em artigo jS citado, S.Fisher e E.Veron fazem alusao a este exemplo. A este res-peito, criticam a representacao acima como "deixando de lado a aparicao na superff-cie da expressao: "e porque... que" encontrada na frase". (art. cit., p.166). Era suma,os autores, distraidamente, tomaram esta conexao sintatica hipot&ica como umafrase do corpus analisado, ainda que eles critiquem a segmentacao sinta'tica destafrase em dois elementos, segmentac.ao que, com toda razao, jamais ocorreu.67 M.Pecheux, 1975.68 Um trabalho sobre este ponto estfi sendo realizado (cf, Langages 37, p. 4.).6^ Cf. os fenomenos de homonfmia, como o caso de "compreender" (conter^cap-tar pelo pensamento), recentemente mencionado no comentario dos resultados AAD(Michel Morin, 1973, p.III, 12).70 I.Lerman(1970).7 Assinalemos, por outro lado, a relacao evidente entre o algoritmo do contextomaximo e o processo dito de "re-injecao"7^ Nesla medida, a perspectiva que tentamos desenvolver 6, em certos pontos devista, pnSxima da de I.A.Mel'Cuk, em particular sobre a questao da parffrase e darelacao entre sentido e texto, em ZoIkovskij-Mel'Cuk (1971).

Seja, por exemplo, o seguinte domfnio semantico:

dar

assegurar

O Estado assegura

um mfnimo vital.

Neste caso particular, 6 possfvel Ihe fazer corresponder a proposis5o:

R(A,B)

com R = dar, assegurar,...A = X, o Estado,...

B = mfnimo vital,...74 A questao da metafora e do efeito metaftfrico (cf. PScheux, 1969, p.29) 6 decisi-va, em nosso sentido. Afirmando que a metaTora 6 primeira e ndo-derivada nao que-remos inverter a relacao entre sentido prdprio (ndcleo de sentido, denotacfio, funda-mento da proposicao l<5gica) e sentido figurado (periferia do sentido, maneira de fa-lar, conotacao e competencia do "estilo"), fazendo entender que todo sentido 6 fi-gurado e perif&ico, o que levaacrerna perspectiva das "leiturasplurais".Trata-se,ao contrano, de liquidar o pniprio par nucleo/periferia, considerando a metdforacomo o transporte entre dois significantes, constitutivo de seu sentido, e a orientacfiodes-equalizante desta relacSo como a condicao de aparecimento do que, em cada ca-so, poderf funcionar como "sentido prtfprio" ou como "sentido figurado".

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5 Acerca destes pontos ver o trabalho de P.Henry (1974) e Pecheu

Os "atos do sujeito falante", numa "situacao" e em nresenca H,, ,»„.-««• , , . » • * * -i , • • , . ue aetcrminadosinterlocutores - isto e, a ilusao subjebva que algumas teonas da enunciacao tomam como dinheiro vivo - sao portanto, na realidade, o efeito de relacoes entre Dcessos discursivos. Em particular, o fato de que uma sequencia (ffinica oumaterialmente especificada - e nao outra - seja, a cada instante, "filtrada" "selecionada", nao 6, de modo algum, o resultado de uma escolha do locutor, mas traduz aintervencao, numa determinada forma^ao discursiva (com seus pr<5prios funciona-mentos parafrasticos), de outras formagoes discursivas que des-equalizam uns em re-lafdo aos outros, os elementos que entram em jogo nestes tuncionamentos e os or-denam de tal modo que um dentre eles recebe a cada instante o "privile"gio" de apa-recer como a palavra, a expressao, etc., "justas". No domfnio do que se convencio-nou chamar de literatura, este "privil^gio" assume a forma da evidente impossibili-dade de pararrasear o texto "genial" (isto 6, "nao se poderia dizeMo de outro mo-do"). Este ponto, que podemos aqui apenas esbocar, nos parece de natureza a inver-ter a problema'tica do "sentido prfiprio" concebido como um liame natural entre "alinguagem e o pensamento", e, consequentemente, a recolocar em causa as teoriasliterarias do estilo concebido como desvio. O que, habitualmente, 6 designado coraoo carfter linico da sequencia literaria (a insubstituibilidade das palavras, expressdes,contornos), onde, muitas vezes, acreditamos discernir a vontade, mais ou menos"genial" em sua umcidade,deumafastamentomantido (isto £, prolongado, como sefala de uma nota sustentada) seria, nestas condicoes, o produto sobredeterminado darelagfio contraditdria e desigual entre formacoes discursivas. A materialidade fono-16gica e morfossiBtib'ca da sequencia (o Significante) seria desde entao determinadocomo unica entre as multiplicidades parafrasticas que suportam "o sentido", domesmo modo que a existencia de um jogo de palavras impoe em sua literalidade talformulacao (e nao esta ou aquela parSfrase logicamente equivalente) para que o"compromisso' entre duas formacoes discursivas seja mantido, isto 6, para que sejarealizado o que designamos aqui como sobredeterminagao.77 Damos a seguir alguns exeraplos de fen6menos lingiifsticos localiziveis nos re-sultados atualmente obtidos pela AAD, extrafdos do estudo sobre S .MansholtPrfi-constntfdos:

mmimo vital

desenvolvimento cultural

distribuicao dos bens

desenvolvimento do homem

Modalidades:

serf necessario.../a acao do Estado deverf...

Instanciacao - Esvaziamento:

darassegurar

o Estado assegurarecuo do bem-estar de

um mfnimo vital.

cada um.o mdivfduo.

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Determinantes:

"espera-se uma'V'a" estabilizagao

Os Estados/o Estado

Nominaliza§6es:a humanidade conhece urn

amsca-se afalta de

materias-primas

bens

falta-nos

pendria

liniitagao

distribuigao

problema

i "i <

de

bens de consume

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Uma versao do programa, redigido em Fortran IV porPh.Duval foi implantada, atualmente, em Paris (Service de Cal-cul Sciences Humaines CNRS), e em Bolonha, no IBM 360.Uma adaptacao deste mesmo programa para calculadora CDCfoi realizada na Universidade de Quebec, em Montreal.

Uma outra versao, redigida em Algol W por M.Dupraz e"utilizada, atualmente, em Grenoble pela equipe de Processa-mento Automa'tico da Linguagem (Dupraz, 1972).

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APRESENTA^AO DA ANALISEAUTOMATICA DO DISCURSO (1982)

Michel PdcheuxJacqueline Le"on

Simone BonnafousJean-Marie Marandin

Apresentacao tetfrica da AAD69

As referencias tedricas (positivas e negativas) que, a partirde 1966, presidiram a construgao do dispositvo AAD (AndliseAutomdtica do Discurso, editado em 1969 pela Dunod, primeiroprograma informatico "operacional" em 1971) inscrevem-se noespaso do estruturalismo filos6fico dos anos 60 , em torno daquestao da ideologia e, em particular, da leitura dos discursosideoldgicos.

A problema'tica estruturalista que se estava condensandoem tomo de alguns nomes como os de Le"vi-Strauss, Foucault,Barthes, Althusser..., era um dispositive polSmico contra asid&as dominantes da 6poca, bem como um programa de traba-Iho. As idelas dominantes da ^poca:

- Os "restos", que nao estavam tao mal (e que demoram amorrer!), de um espiritualismo filosdfico adepto de umaconcepcao religiosa da leitura: da hermeneutica literfria,perseguindo os "temas" atrav^s das "obras", a concep-gao fenomenoldgica do "projeto" como projegao dosentido sobre a mate'ria verbal, pelo poder constituintedo sujeito-leitor... a iddia de que o sentido dos textos 6 ocorrelate de uma consciencia-leitora instalada numasubjetividade "interpretativa" sem limites.

- Mas tambe~m as formas secularizadas, mais cotidianas,daquela prfitica espontanea da leitura que, sob as mdlti-plas formas da "analise de conteiido", estava invadindoas ciencias hutnanas.

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- E, finalmente, o objetivismo quantitativo reagindo aosespiritualismos impress ion istas por uma referenda ao se~-rio das ciSncias e, em primeiro lugar, nessas circunstan-cias, as teorias da informacao: o projeto de tratar ostextos como populacao de palavras, suscetfveis de umaesp6cie de demografia estatfstica dos textos (tal como elase realiza, por exemplo, nos estudos lexicome"tricos).

O estruturalismo filos<5fico dos anos 60 partia em guerracontra essas diversas formas (espontaneas ou cientfficas) de evi-dencia empfrica da leitura, com suas bandeiras de conceitos taiscomo "leitura de sistemas" e "teoria do discurso", e palavras deordem como "ajuste de eficacia de uma estrutura sobre seusefeitos, atrave"s de seus efeitos".

Marx, Nietzsche, Freud e Saussure eram recrutados paraum mesmo combate, tomando por objeto, nesse momento, aquestao de saber o que 6 falar, escutar e ler.

"E a partir de Freud" - escreveu Louis Althusser no come-90 de Ler O Capital - "que come$amos a suspeitar aquiloque escutar, portanto aquilo que falar (e calar-se), quer di-zer; que esse 'querer dizer* do falar e do escutar desco-bre, sob a inocencia da fala e da escuta, a profundidadeatribufvel de um fundo falso, o 'querer dizer' do discursodo inconsciente - esse fundo falso do qual a lingufsticamoderna, no interior dos mecanismos da linguagem, pensaos efeitos e condigoes formais." (N.T.: A tradugao e" nos-sa).

Assim, o apoio estrate'gico sobre o estruturalismo lingufsti-co estava claramente reinvidicado; se era questao de analisar o"discurso inconsciente" das ideologias, a lingufstica estrutural,ciencia "moderna" da e"poca, era o meio "cientffico" de deslo-car o terreno das questoes do domfnio do quantitativo em dire-c,ao ao qualitative, da descri$ao estatfstica em diregao a uma teo-ria quase algdbrica das estruturas, rejeitando o "nao importaque" das leituras "literarias".

Se os discursos ideoldgicos eram de fato os mitos prdpriosde nossas sociedades, comparaVeis aqueles que haviam sido es-tudados por Vladimir Propp, depois Claude LeVi-Strauss, deve-ria ser possfvel construir procedimentos efetivos capazes de res-

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tituir o tracp da estrutura invariante desses discursos (o sistemade suas "fungoes") sob a seYie combinatdria de suas variancessuperficiais, "empfricas": portanto, reconstituir algurna coisadessa "estrutura presente na seYie de seus efeitos".

O projeto da AAD69 constitui uma tentativa, entre outras,de realizar esse programa, esfor$ando-se em levar a seYio "a lin-gufstica moderna" e, em particular, os trabalhos de um linguistaamericano, autor de um texto providencialmente intitulado Dis-course Analysis, que serviu, durante todo um perfodo, de refe-renda cientffica concreta aos lingiiistas que trabalhavam nocampo da analise do discurso, sob o impulse dos trabalhos deJean Dubois.

Desse ponto de vista, parece que a especificidade da AADversao 69, no espago dos trabalhos da analise do discurso esta-va, em primeiro lugar, em impelir a lingufstica harrisiana ao li-mite de suas conseqiiencias, do ponto de vista teorico que aca-bamos de lembrar.

Se o sentido de uma superficie textual existe no jogo dasrelagoes (de equivalencia, comuta§ao, pardfrase...) que se esta-belecem necessariamente entre essa e outras superficies textuaisespecfficas, daf resulta que o estudo dos processes discursivos(inerentes a estrutura subjacente a ser estudada) supoe a referSn-cia a conjuntos de superficies (ou "corpus discursivos") que odispositivo teriS por efeito colocar em estado de autoparAfrasepotencial, para interrogar sobre sua estrutura generalizando, pa-ra os corpora assim recuperados por suas "condigoes (sdcio-histdricas) de produsao", os procedimentos que Harris haviaaplicado a certas seqiiencias particulares, marcadas por repeti-goes, estereotipias internas, como o famoso exemplo "Millionscan't be wrong", apresentado no n2 13 de Langages.

A ordem e a disposigao dos procedimentos da AAD69 en-contravam-se, assim, fixados. A AAD69 comportava necessa-riamente:

- uma fase de construgao socio-histdrica dos corporasubntetidos a analise;

- depois, uma fase "harrisiana" de delinearizac.ao sint^ticadas superficies textuais do corpus, isolando os enuncia-dos elementares e as relagoes lingiifsticas entre essesenunciados;

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- e uma fase de tratamento automa'tico dos dados resul-tantes da analise sintdtica.

E essa dltima fase que justifica a pretensao "automa"tica"da AAD. A objetividade de um processo funcionando por simesmo visava explicitamente a eliminar as "evidencias subjeti-vas" da leitura, esperando trazer a tona tragos dessa famosa"estrutura subjacente" do corpus textual estudado.

A utilizagao de procedimentos algorftmicos efetivos era,pois, uma condigao essencial do empreendimento, e ela se man-te"m ainda hoje, em meio a reestruturagoes bastante radicais dediferentes aspectos da AAD, nas quais estamos atualmente en-gajados.

Apresentacao do procedimento da analise antomatica do discur-so

Esta "apresentagao" tern interesse apenas de um ponto devista hist6rico: ela constitui uma espe"cie de balango, senao deponto final, das utilizagoes do me'todo de an&ise do discursoproposto por Michel Pecheux em 1969.

Este texto apresenta, de fato, um resume, na verdade umaconstatagao desse me'todo, na medida em que ele nao retoma osaspectos tetfricos que presidiram sua elaboragao e que acabamde ser evocados. Ele pode servir de ponto de referSncia para oleitor que se interessar pelos novos algoritmos (versao AAD80)da ana*Hse do discurso, cujas perspectivas serao apresentadas nofinal deste artigo.

No novo projeto, a estruturagao dos dados apresentados aseguir, retrospectivamente inaceitivel de um ponto de vista lin-gufstico, sera" completamente transformada. Contudo, a id£ia de

algoritmo paradigmatico de parafraseamento, a ide"ia de umlevantamento de caminhos ligados ao fio do discurso nao saoinvalidadas: elas podem efetivamente constituir um aspecto, in-terpretado de modo diferente, dos novos algoritmos.

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Os dados

A fim de ilustrar, atrav^s de um exemplo, a exposicao doalgoritmo AAD69, escolhemos uma parte do corpus de SimoneBonnafous sobre as mocoes do Congresso de Metz do PartidoSocialista, de 1979 1, do qual apresentaremos, a seguir, os re-sultados.

Esse corpus do tipo "arquivo" 2 foi constitufdo a partir deties moc.6es desse congresso: a mogao A (Mitterrand), a mogaoC (Rocard) e a mogao E (CERES) 3, escolhidas em fungao daship6teses polftico-histdricas de Simone Bonnafous. Dois temas(a uniao da esquerda e a economia) para cada mogao permitiramconstruir seis corpora de base. O tratamento realizar-se-a" sobreonze corpora: seis corpora de base e cinco compactagens 4 (trdscompactagens reagrupando dois corpora por mogao e duas com-pactagens reagrupando tres corpora por temas ).

Exemplo 7: Os 6 corpora de base + as 5 compactagens

Economia Uniao da esquerdaMocao A (Mitterrand) ACE ACU Comp.AMogao C (Rocard) CCE CCU Comp.CMocao E (CERES) ECE ECU Comp.E

Comp.Economia Comp.Uniao da esq.

Decidimos nos interessar pelo corpus de base ACU em ra-zao da dimensao dos resultados que podem ser facilmente ex-postos.

As sequencias discuisivas autdnomas

A primeira etapa - manual - do procedimento consiste emdividir o corpus em Sequencias Discursivas Aut6nomas (SDA)que constituem as unidades ma^timas de comparagao. A ide"ia deuma segmentacao em SDA 6 coerente com uma das hipdtesesprincipals da AAD, que diz respeito ao processo de produgao deefeito de sentido. Na verdade, 6 a partir da relagao de duas se-

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qiiSncias, do estudo de suas possibilidades de comutagao, desubstituigao, eventualmente de equivalencia, que poderemos porem evidencia os processes discursivos. As SDA sao, no entanto,o produto de um "arrancar" pedagos de texto, que impede todotratamento desse texto em sua sequencialidade.

Assim, se tomamos como exemplo o corpus ACU, a seYiede paragrafos inicialmente retida pelo analista 6 dividida emvinte e cinco seqiiencias discursivas autonomas, resultado doprocedimento de segmentagao.

Esse procedimento de segmentac.ao de um corpus em SDAefetua-se segundo criteYios lingufsticos tais como os nexos inter-frasticos (andforas, elipses, conectores da jungao 5), aos quaissera" necessario acrescentar, depois de um serio estudo lingufsti-co, as questoes de modalidade, aspecto, tempo, determinantes.

As SDA, no mfnimo uma frase, se definem por sua unida-de tem^tica:

- Seja uma frase i, se a frase j seguinte comega por um co-nector de junc.ao (por exemplo "mas"), nao se segmenta;ha" continuidade temdtica de i a j, e as frases / e j perten-cem a mesma SDA.

- Se a frase j cont6m uma anafora cujo referente est£ con-tido na frase i (tipo anafora simples 6: Joao... Ele), asfrases i e j pertencem a mesma SDA, na medida em quea anaTora assegura uma unidade temStica entre as frases ie;7-

Essas duas condisoes constituem, assim, as duas condigoesprincipals de nao-segmentagao.

A analise sintatica

A analise sintdtica das SDA corresponde a uma delineari-manual da superffcie do texto. Cada SDA € analisada sob

a forma de um grafico cujos pontos sao proposicoes (no sentidoda gramatica tradicional) com oito lugares morfossintaticos, ecujos arcos sao as conexoes entre essas proposicoes.

258

As oito categorias morfossintaticas que constituem as pro-posi?6es (ou enunciados elementares) sao as seguintes:

- DI, determinante do N.

- NI, em geral um nome ou metatermo na posic.ao do su-jeito.

- V, verbo ou metatermo indicando a presenc,a de um sin-tagma nominal complexo.

- ADV, adve"rbio modificando adjetivo, verbo ou frase.

- PP, preposigao ligada a regencia do verbo ou introdu-zindo um complemento adverbial de circunstancia.

- D2, determinaQao do N2-

- N2, nome em posi^ao de complemento, adjetivo ou me-tatermo imagem de uma completiva/infinitiva 8.

O grdfico 6 representado por uma Hsta de relagoes binariasque associam dois enunciados elementares atrave"s de um co-nector, designado CO (ver grafico da SDA 9, p. 261).

Apresentamos aqui, por necessidade da nossa exposic.ao,os exemplos da analise sintdtica das SDA, ACU5 e ACU9.

Exemplo 2: SDA ACU5

O Partido Comunista s6 participou (com De Gaulle,Gouin, Bidault e Ramadier) em governos de uniao nacional deconcentrac.ao republicana.

a) Lista dos enunciados 9

F DIACU0540410003LACU0540420000RACU0540430000RACU0540440000RACU0540450000RACU0540460003RACU0540470003RACU0540580003RACU0540490003R

NI V ADVPP D2

PCGOVERNOUNIAOGOVERNO

PARTICIPAR SOE 0E 0E 0

CONCENTRACAO E OPCPCPCPC

PARTICIPAR SOPARTICIPAR SOPARTICIPAR SOPARTICIPAR SC-

DE DSDE O

ODE O

OCCMOCOMOCOMOCOMO

N2

GOVERNOUNIAONACIONALCONCENTRACAOREPUBLICANADE GAULLEGOUINBIDAULTRAMADIER

259

Page 131: Por uma análise automática do discurso - introdução à obra de Michel Pêcheux - F. Gadet e T. Hak (Orgs.)

b) Lista das relates binaYias

404192404240429240434041924044404240404440449240454041094046

404109404740410940484041094049404640404740474040484048404049

Exemplo3: SDA ACU9O ponto que nos importa no momento 6 saber se 6 possfvel

imaginar que o PC mude de atitude, que deixe de considerar ossocialistas como seus principals adversaries e de preferir o go-verno da direita e do grande capital a vitdria dos trabalhadores.Nada o mostra.

a) Lista dos enunciados.

F DIACUOW 11 700000ACUOM1 1800CXK)ACU0041I 900000ACU094I200020LACUOW 12 10020RACUOM I220000RACUOW1230000RACU094I240000RACUOM1250000RACU0941 2GOOOORACUOM 1270000RACUOM I280000RACUOMI290000RACUOM1300000RACU09413101000

H]S,Nbs5PCPCPCPCADVERSARIOPCGOVERNOGOVERNOCAPITALK *VITORIANADA

VIMPORTARSABERSERMUDARCESSARCONSIDERARCONSIDERARePREFERIREEEPREFERIREMOSTRAR

ADVKOJEOOoOTOTOOOOOOOOOO

PfA*

DEO•co;*

DEDE

ADE*

ooooLSSESOLLLOLLSO

NiNOS

IMAGINAVELATITUDEOSOCIALIS.TAADVERSARIOPRINCIPALGOVERNODIREITACAPITALGRANDEVITORIATRABALHADOR1SSO

b) Lista de relacoes bindrias

411705411841181341194119054120411905412141204041214121064122412210412341239241244121064125

41224041254125924126412592412741264041274127924128412508412941299241304117604131

260

GrdficoACU9

CHI

261

Page 132: Por uma análise automática do discurso - introdução à obra de Michel Pêcheux - F. Gadet e T. Hak (Orgs.)

O algoritmo

Um programa em FORTRAN IV, atualizado por PhilippeDuval e Michel Pecheux em 1971-1972, permitiu a realizagaodo algoritmo exposto a seguir.

A fonnagao das quadruples

O procedimento 6 o seguinte: o programa compara todas asrelagoes bindrias de uma SDAi com todas as relagoes binaYiasdas outras SDA do corpus, de maneira a excluir as relagoes bi-narias da SDAi, isso na medida em que as SDA podem apre-sentar uma repetigao interna que viria interferir nos efeitos deparaTrases detectaVeis no corpus.

Hustraremos o procedimento de parafrasear duas relagoesbinaYias tomando do corpus ACU a relagao bina*ria 4041 924O42 (SDA5) e a relagao binaVia 4125 92 4126 (SDA9). Compa-ramos as duas relagoes bina"rias categoria (morfossinta'tica) porcategoria. Construimos assim um vetor booleano: 1 se o I6xico 6identico na categoria estudada, 0 se 6 diferente. Multiplicandsem seguida esse vetor por um "padrao" que entra como dado,atribuindo a cada categoria morfossinta'tica um peso determinadode maneira empfrica10. A soma dos pesos obtida 6 comparada aum limite, que igualmente entra como dado, e 6 estabelecida de

6o par de relagoes binarias comparado € retido e constitui o quechaniamos de qua"drupla.

Exemplo 4:

ACIJ5ACU9vetorpesovclor

ACU5ACU9veliwpesovetor

40414125hoolcaito

x peso

40424126booleano

x peso

F00030000050

00000000155

Comparagao de duas relagoes binarias

DILfi000

FRR100

N]PCPC166

D|GOVERNOGOVERNO166

VPARTICIPARPREFBKIR060

N|EEI33

ADVs6o00o

viz00100

ppA•050

ADVDEDE155

D2DSL000

pp0L000

N2

GOVERNOGOVERNO16fi

D2UNlAoDIREITAD6D

CO929216ft

N2

262

Quando o limite introduzido como parSmetro € igu^j „ ->fi

quddrupla fbrmada por duas relacoes binaiias € retidai3.

Obtemos sete quddruplas ao final da comparagao (jas rela_goes binaYias das SDA5 e SDA9. Por outro lado, a coinpaj^p^Qdas relagoes biniSrias do conjunto das SDA do corpus fornecemvinte e cinco quddruplas.

Exemplo 5: Lista das quadruples formadas ao final dacomparagao das SDA: ACU5 e ACU9.

40414125

40414125

404]4125

40414125

9292

9292

9292

9292

40424126

40424127

40444126

40444127

40424127

40424126

40444127

9292

4040

9292

4O43412H

40444127

40454128

A fonnagao das cadeias

As vinte e cinco quadruplas constituem a primeira etapa,quantitativamente exaustiva, dos resultados sobre o conjunto docorpus ACU. Esses resultados serao, agora, reorganizados portransit!vidade segundo dois eixos, vertical e horizontal.

Exemplo 6: Lista das cadeias que reagrupam 7 quadrupletes

ijuau i t u

quad 2 e 5 ~*

quad 4 e 7 -*

i— quad 6 e 7 -»

_^ L» cadeia 1 e 4-*

quad 3 ~*

cadeia 2

cadeia 3

cadeia 4

cadeia 5

quad 3

4125

40414125

40414125

40424126

40414125

40414125

92

9292

9292

4040

9292

9292

4126

40424127

40444127

40444127

40424126

40444126

40

9292

9292

9292

4040

4127

40434128

40454128

40454128

4044 924127 92

40454128

263

Page 133: Por uma análise automática do discurso - introdução à obra de Michel Pêcheux - F. Gadet e T. Hak (Orgs.)

Se os cddigos nume'ricos dos enunciados a direita de umaqua"drupla sao identicos aos cddigos nume'ricos dos enunciados aesquerda de uma outra qua"drupla, eles formarao uma cadeia portrahsitividade.

Retomemos o caso das SDA5 e 9. Em um primeiro mo-mento, as sete quadruples resultantes da sua comparagao darao,por transitividade horizontal, as quatro primeiras cadeias, fican-do isolada a quadruple 3.

Em um segundo momento, as cadeias 1 e 4 sao reagrupa-das, tendo como resultado a cadeia 5, A etapa de formagao dascadeias 6 conclufda quando todos os reagrupamentos por recur-sividade foram efetuados.

Fonnacao dos domfnios

Se duas cadeias t£m uma seqiiencia comum, ou seja, se ase*rie dos cddigos nume'ricos dos enunciados e de conectores su-periores de uma cadeia 6 identica a uma s6rie de outra cadeia,por transitividade vertical formaremos um domfnio. Reagrupa-remos apenas cadeias de comprimento semelhante.

No que concerne a formagao dos domfnios corresponden-tes as SDA5 e SDA9, obteremos tres domfnios:

Exemplo 7: Lista dos domfnios que reagrupam as sete qua"-druplas

cadeia 5 -» Dj

cadeia 2 e 3 -» D2

4041 92 4042 40 4044 92 40454125 92 4126 40 4127 92 4128

4041 92 4042 92 40434125 92 4-27 92 41284041 92 4044 92 4045

quad 3 D4 4041 924125 92

40444126

O ato de parafrasear e", pois, realizado em dois nfveis, ver-tical e horizontal. Os domfnios apresentam classes de equivalen-

264

cia que serao interpretadas a partir das invariantes que pemuti-ram o reagrupamento das seque"ncias.

Sobre o conjunto do corpus ACU obtivemos treze domf-nios, dentre os quais os tres domfnios acima referidos, cuja listafigura a seguir (exemplo 8).

Relacoes entre domJhios

Depois da lista dos domfnios, um segundo tipo de resulta-dos 6 constitufdo pelas relagoes entre domfnios. Elas sao de doistipos: uma, paradigma'tica, leva a construgao dos hiperdomfnios;outra, sintagm^tica, estabelece relac.6es de dependencia entre osdomfnios e os hiperdomfnios entre si.

a) Constitugao dos hiperdomfnios

Os hiperdomfnios sao formados a partir de cddigos nume'-ricos dos enunciados a esquerda dos domfnios, em ftingao detres tipos de relagoes: a inclusao (ICL), a intersecgao (INT), e aidentidade de origem (IRG).

- ICL: todos os cddigos nume'ricos dos enunciados a es-querda de um domfnio Di pertencem igualmente a Dj,exemplos: Dl ICL D2, o domfnio 1 estd inclufdo no do-mfnio 2. Dl e D2 formam um hiperdomfnio.

- INT: o domfnio Di tern em comum com o domfnio Dj umou va"rios enunciados a esquerda; exemplo: D12 INT Dl,D12 e Dl formam um hiperdomfnio.

- IRG: os domfnios Di e Dj t§m todos os seus cddigosnume'ricos de enunciados a esquerda em comum, exem-plo: D4 IRG Dl, Dl e D4 formam um hiperdomfnio.

Exemplo 8:

265

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For transitividade, podemos formar um unico hiperdomfniocompreendendo os domfnios Dl, D2, D4 e D12: HD1 = (Dl,D2, D4, D12).

Os hiperdomfnios constituem classes de equival^ncia dedimensao superior aquelas dos domfnios a partir de um parafra-seamento sobre o eixo paradigma"tico,

b) Relagdes de dependencies entre domfnios

Dois domfnios estao em relacao de dependSncia se elescontem cddigos nume'ricos de enunciados que pertencem a ummesmo percurso da mesma SDA: exemplo: DIG -* D4.

O domfnio DID domina o domfnio D4: D10 contftn oenunciado 4122 que pertence ao mesmo percurso (4117 -» 4118-> 4119 -» 4120 -> 4121 -» 4122 -> 4125 -» 4126 -» 4127-* 4128) - ver p. 261 - do enunciado 4125 de D4. O enunciado4122 domina o enunciado 4125 na medida em que ele apareceantes no percurso do grdflco da SDA.

Essa localizagao anterior no gnlflco de uma SDA corres-ponde a posigao relativa dos enunciados numa frase ou na SDA(proposicao principal/proposigao subordinada, determinado/de-terminante, sucessao de duas principals em duas frases diferen-tes).

Poderfamos dizer, entao, que essas relacoes de dependen-cia sao a imagem de um tipo de micro-argumentagao interna aSDA.

Assim, essas relacoes de dependdncia reagrupam domfniossegundo um eixo sintagmatico (pertencendo a um mesmo per-curso). Contudo, elas introduzem uma relacao paradigma'ticaentre as outras partes do domfnio que nao pertencem necessa-riamente a um mesmo percurso, tais como as relagoes bina'rias4041 92 4044 e 4094 40 4095. A questao 6, entao, saber se po-demos interpretar o conjunto das relagoes entre domfnio de umcorpus como a "argumentac,ao subjacente" do corpus.O con-junto dessas relacoes de dependencia podem representar-se soba forma de um grdfico que sera" comentado mais adiante quandoda anfilise dos resultados do corpus ACU comparados aos re-sultados do corpus CCU.

266

Apresentacao de resultados da AAD69 sobre dois subcorpus

Escolhemos apresentar um exemplo de resultado da AAD apartir de dois subcorpus estudados no referido trabalho, que saoACU e CCU, ou seja, os corpora (C), "Uniao da esquerda"(U), mogoes Mitterand (A) e Rocard (C).

Para o pesquisador em analise do discurso, o verdadeirotrabalho de analise s6 comeca depois de todo o processo acimaapresentado: segmentac.ao em SDA, anSlise sinta"tica e analiseautomdtica. A base do trabalho 6, entao, constitufda pela listados domfnios (e hiperdomfnios) que correspondem a cada cor-pus, bem como pelas relacoes de dependencia que ligam os dife-rentes domfnios.

Duas pistas de pesquisa possfveis

Poderfamos ter estudado em detalhe a organizagao de cadadomfnio para distinguir sinonfmia contextual, implicagao e con-tradigao (cf. M.Pe^heux, Un exernple cTambiguitg id&ologique:le rapport Mansholt). Isso nos teria permitido classiflcar os do-mfnios por temas, estudar as emergencias de sentido em cadacorpus, e especificar identificaeoes, divergdncias e contradigoesde um corpus a outro. Esse nao era nosso principal objetivo,

Mais que nos detalhes dos domfnios, no's nos fixamos nasrelagoes de dependencia que se estabelecem de um domfnio aoutro e permitem, portanto, construir um trajeto discursive decada corpus. Para no's, os domfnios constitufram apenas umaetapa em direcao aos trajetos discursivos.

Para que esses trajetos possam ser estabelecidos de manei-ra legfvel, seria precise poder apresentar, sobre um quadro dni-co, o contetido de cada domfnio. Procuramos, entao, representarcada domfnio ou hiperdomfnio por uma frase de base que o re-sumisse de maneira exata.

O papel representado pelas frases de base em nosso estudonao tern relagao com o de outros trabalhos de AAD. Na medida

267

1

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em que estes se interessam em primeiro lugar pelas relagoes in-ternas a cada dominio e, em seguida, apenas pela estrutura geraldos processes discursivos, o proprio contelido dos domfnios s<5 €lembrado ocasionalmente e a ti'tulo de indicac.ao nessa segundafase.

Para no's, pelo contrario, as frases de base que figuram nosgrdficos representam os trajetos discursivos e permitem recom-por uma especie de segundo texto, cuja leitura constitui a basede nossa interpretacao.

Os principles que presidiram a elaboragao dessas frases debase sao simples: coordenacao ou justaposigao dos elementosque ocupam o mesmo lugar no interior do dominio, supressaodas redundancias e adjuncao entre parenteses dos elementos docontexto absolutamente indispensaVeis a inteligibilidade dessasfrases.

Considerando, por exemplo, o hiperdominio HD1 de ACU,constitufdo pelos domfnios Dl, D2, D4 e D12 formamos a se-guinte frase de base:

HD1 = 1. O PC participou somente de governos deuniao nacional e de concentrac,ao republicana;ele preferiu o governo da direita e do grandecapital a vit<5ria (dos trabalhadores).

2. (Alguns sugerem) preferir (outras) noc,6es &nogao e a prdtica (de uniao da esquerda e defrente de classe).

Cada dominio ou hiperdomfmo de ACU foi assim resumi-do, e seu conteu"do representado no interior de quadros ligadospor setas, simbolizando as relagoes de dependSncia.

Obtemos, assim, um trajeto discursive com domfnios"fontes", "pontos de chegada", ou "passagens" que permitemver aquilo que, na argumentacao de cada texto, 6 ponto de parti-da, conclusao ou lugar de passagem obrigatdria.

Andlise do trajeto discursivo da ACU

Uma primeira conclusao pode ser tirada do esquema damogao A: o papel preponderante reconhecido aos partidos (ve-

268

remos que 6 diferente na mogao (C) "O partido", "nosso parti-do", "no's", "o PS", "os socialistas", frente a "o PCF", ou o"comunismo" constituem duas series de termos que uma diale"ti-ca retine em torno das nocoes de "dia"logo", "acordo", "alian-ga", "pacto", "uniao". O problema central ^ claramente colo-cado como aquele da relagao PS-PC. Mas € preciso notar,-a esserespeito, a dissimetria entre duas series: de um lado fala-se dos"socialistas", enquanto que do outro s<5 se menciona o "PCF"ou o "comunismo". Isso diz respeito a analise feita pela cor-rente A, alia"s por todo o Partido Socialista, e que distingue entrediregao e base do PCF (cf. Introdugao da moc.ao A: "Cada umdiz em que condigoes os dirigentes comunistas, nao podendoimpedir que o Partido Socialista se tomasse o primeiro partidoda Franca, mantiveram a direita no poder").

ACU

O pmida nuotcrii e rcfor^trt>eui tKpa com limJEUni,siioci»SfiCi c moiiinewoi »ci«B. HPKI-Z-4-12)

.DJEiu propoiiijio eiprtme. limptdmenliwna evkUncit tc ell ajnUln

-Aei de fT*nce*e* dc CH|uenlH>:di 4 Juirinuda 10 quer dlier que

inn o movfanenk* vtckal).

I - O P.C.F, til funicipou de gode uniio lucioiil e cnnccmRptihlEcnru: el« preferiu a ^jdm DireiJa edt>i{nndcciipiDi

(dot intburhmdarEik

I not^tot 1 plili

dg fignlc de c

DID

0 P.C.F. AniunnM rompeu i

JAoDcondulcu a*

ilaliiui. Ele 01 conilden

leomD Kia pdocijiBEi Rilverulrtoi

pnftiiu 0 govtrno (d( dinila).

IIU2IT-8]

Em (odo lu^

BKOlhCU 0 1

preferential

, Silvon.Fn

*r o P.C.F. pmcunw

eic...)t nvti nuncieordo dirciu,coin o. xuiilliiai.

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1 - Evolu(

2- (I'.S.U

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MI - OP.C.F. (proquronemoulmi lugoreiji

com p*nidoi de osrara d. Fnn;i,

! - P.S. t IB partulo Ji Pmnfi. Devepropor *ui paiiidot de eiquetda umpacto [de njo ifttssto} c lim cmnum(pan emprego).

3 - (Ncm rcalib(ak ncm I|CKJUHI) Je iiKluir

pirttdin poiniaa [emum.-J )

mm ilinHcdiiii c iom»-iBviVi.

269

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Centrada nas relagoes PS-PC, a mogao A nao atribui omesmo lugar aos dois partidos. Todo o raciocfhio 6 estruturadosobre o PC: fontes (Dl 1 e HD2) e centres (D10 e HD1) sao, defato, consagrados a analisar sua atitude, enquanto que pontos dechegada (D13, D7, D9, D6) e domi'nios laterals (D3) tratamprincipalmente da estrate"gia do PS: o PCF 6 assim colocado co-mo o ponto cego do qual tudo depende e, em particular, o futuredo PS.

De HD2 a Dll, passando por DIG, ponto de encontro dosdois primeiros, temos uma sintese da evolugao do PC com: alembranga do acordo preferencial acontecido na Franca entrecomunistas e socialistas (HD2), a menc.ao da ruptura (D10), e ashipdteses sobre a mudanga de atitude do PC (Dll).

Articulando-se sobre o ponto central, aparecem dois tiposde percurso: um, que passa sobretudo por HD1, D3, D13, mastamb6m parcialmente por D6, e" uma refutagao das sugestoesformuladas por "alguns", e que visariam a "incluir os partidospoliticos num vasto agrupamento com sindicatos e associagoes",outro, que desemboca nos pontos de chegada D7, D9, D6, evi-dencia a forca do PS por/para preconizar uma polftica de propo-sigao ofensiva aos partidos de esquerda (D9, D6) em geral e aoPC em particular (Dll).

Pelo fato dessa dupla polarizagao sobre as relagoes PC-PS,e no interior destas sobre o PC, duas ausencias maiores sao pro-duzidas, Uma concerne a responsabilidade do PS pela ruptura,cuja eventualidade nao 6 nem mesmo mencionada. A outra con-cerne as lutas. Esses dois temas ocupam um lugar importante naargmentagao da mocao CERES.

Andlise do trajeto discursive de CCU

Se a mogao C nao deixa de afirmar sua fidelidade S estra-te"gia de uniao da esquerda, a delinearizagao do texto que estd nabase da AAD permite constatar que esse nao 6 o tema recorrenteda mogao,

"PS", "PC" e "Uniao da esquerda" nao figuram enquantotais em domfnio algum, e os acordos polfticos evocados sao

270

acordos eleitorais do passado, al^m do mais, deslocados para fo-ra do circuito no domi'nio isolado (D6). O essencial, no que dizrespeito aos dois circuitos centrals, 6 a id6ia de um debate e deuma a§ao comum com "os movimentos sociais", "os partidos,sindicatos, associagoes, movimentos sociais", ou seja, com "to-das as forgas"14, mas a maior desconfianga se exprime com re-lagao a um dialogo com o PC (D2).

Mesmo nao tendo inclui'do em nosso corpus da AAD o pa-r£grafo sobre os "movimentos sociais", que julgamos muito es-pecffico dessa mogao, e tendo apenas retido os paragrafos cen-trais sobre a "Uniao da esquerda", 6 interessante notar que os"movimentos sociais" figuram, apesar de tudo, em dois domf-nios (Dl e D5).

CCU

D2

D6

I - responsabiltdade nas efetivagoes

dos acordos com o M.R.C.

2- balangoda efetivajao dos

acnrdos dc 1977.

1 - Necessidade transformagao social

e renovagao aijao pal flic a

2 - (PS) & inicialiva de um debate

politico e social e agio

com todas as forc,as; man nao

diSlogo (com PC) ?_

a ai-ao comum.3 - _ ' _ '?_ __ _ do corpo social sobre

(PC).

D3

Dl1 — desenvolvimento 2.

operdri os.

2 — confronlo com movimcrlossociaia.

3 — organizagao do mowimeniooperfSrio.

debate politico e social

(com as pessoas ilc esquerda).

confronto e iniciativa de

agao com todos os

paitidos, sindicatos,

associagoes e movimentos sociais

6 preciso tomar e retomar

iniciativas (di^Iogo com PC

+ agao com mavimentos

sociais).

271

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A prioridade do "social" sobre o "politico" 6, pois, bem acaracterfstica da moc.ao C, haja vista seu apoio a linha de Epi-nay: a procura de acordo PC-PS € remetida a dias melhores, erabeneffcio da "Uniao das forcas populares". Essa expressao ja-mais figura nos domfnios da AAD, mas € ela que subjaz a todoo circuito argumentative e 6 claramente desenvolvida em D5("confronto e iniciativa de agao convtodos os partidos, sindica-tos, associates e movimentos sociais").

Vemos, por esses dois exemplos muito simples, que acomparagao das linhas argumentativas de dois ou va"rios corpora6 de interesse: a delinearizagao do texto operada pela constitui-530 dos domfnios provoca a quebra da uniformidade das refe-rencias (a uniao da esquerda em particular), e revela percursosmuito divergentes, de uma mo$ao a outra.

Em razao do passado politico e da ambiguidade da posigaode muitos membros do PS, em razao da ambivaldncia funcionaldas mogoes, em razao tambe"m do clima muito particular do con-gresso de Metz, nosso corpus derivava desses textos que divi-dem a tema"tica e que propiciam nos leitores a intuicao, para re-tomar a expressao de M. Pecheux, de que "isso pode ir em umsentido ou em outro". A AAD pode permitir desfazer essa am-biguidade discursiva, e especificar em que sentido vao uns eoutros.

Da AAD69 a AAD80: novas perspectives

O procedimento da AAD69 6 um "marco", no sentido emque corresponde especificamente a uma probleina"tica, aquela aque se referia M. Pecheux na introducao. So" se pode tratar, paran(5s, de tirar os ensinamentos das experie"ncias que ele permitiu,e de esboe,ar, aqui em linhas gerais, um novo projeto.

AAD69:

Quais os resultados?

O programa AAD69 produz, como vimos, dois tipos de re-sultados: uma lista de domfnios semanticos e uma lista de rela-

272

goes de dependencia entre domfnios. O problema 6 saber o que 6tornado nessas duas listas.

a) Os domfnios semanticos

Eles foram concebidos e sao interpretados como paradig-mas nos quais se decide o valor dos itens lexicais por diferenc.aem um contexto distribucional equivalente. Essa concepc,ao ba-seia-se (assim como a totalidade do procedimento) em uma in-terpretagao particular da analise harrissiana, que assiimla equi-valSncia e identidade de sentido (sinonimo lexical e parafrase).Os domfnios semanticos, tal como sao produzidos e quando saoconfrontados com os discursos a partir dos quais foi obtidoo corpus, parecem, antes de qualquer coisa, indicar objetos dediscurso: um referencial disperso em suas realizagoes lexicais.Se assim for, essas sao as modalidades particulares de constru-500 de um objeto15 (que valem como actante, processo, situa-gao...) que deveriam prender a atengao no interior de uma pro-blemdtica que considere as series discursivas16 como o trago deuma prdtica discursiva ou de uma maneira de falar. A interpreta-c.ao semSntica dos domfnios semanticos desvia-se daquilo queparece o objeto de uma andlise do discurso17.

Os domfnios semanticos mostram muito frequentementeuma proposigao modalizada, tal como: "X fazer Y, X dever fa-zer Y, X nao fazer Y,...". Esse tipo de resultado sempre pren-deu a atengao dos analistas de discurso, que v£em af um pontode divisao de uma formagao discursiva ou de interfere"ncia entreformagoes discursivas. Ainda que essa interpretac,ao parega fun-damentada (em relacao as hipdteses da AD), ela s6 pode ser rati-ficada ao levar em conta, de modo generalizado, todas as moda-lidades enunciativas. Isso nao somente porque elas marcam "adistancia" (tal como e" definida por Dubois, Langages i\- 13) daenunciagao em relagao a seu enunciado, mas porque as diferen-tes regioes de uma formac,ao discursiva podem se realizar em lu-gares e formas enunciativas diferentes. Assim, o estudo daenunciagao pode ser um Sngulo de ataque para descrever umaformagao discursiva, mas a enunciac.ao permanece fora do cam-po da AAD69.

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b) As rela§6es de dependencia entre domfnios

As relagoes de depende"ncia entre domfnios, representadassob a forma de graficos, sao interpretadas como delineando per-cursos argumentativos profundos (ou seja, diferentes da ordemseqiiencial). Sua modalidade de construc,ao convida a especificarmelhor. A analise sinta'tica (pela codifica§ao no interior de umarelacao bindria constitufda por dois enunciados em oito lugares,ligados por um conector), depois a comparac.ao, tratam de rnodouniforme (totalmente, poderfamos dizer) e aproximam gruposnominais complexos, sintagmas verbais, proposicoes e proposi-c.6es encadeadas (por coordenacao ou subordinagao). Isso, que 6apontado, 6 a interpenetragao dos diferentes niveis discursivos(nfvel fra'stico, subfra"stico, interfrastico) e, em particular, a rela-c,ao entre a construc.ao dos grupos nominais complexos (deter-minagao e nominacao) e o encadeamento de superffcie das pro-posisoes que constitui relato ou argumentagao. O fato de esseimportante fenomeno (que poderia ter aberto todo um campo dedescrigao: por exemplo, qua! € o grau de dependSncia entre adefini£ao - descrigao dos actantes de um relato e o desenvolvi-mento deste, a definicao dos objetos e uma argumentacao) naoter sido objeto dos usuarios da AAD69, sem diivida, diz respeitoa inexistencia no procedimento (e na problema"tica) do fato se-qiiencial.

A leitura dos resultados da AAD69 e suas interpretacoes, aconfrontac.ao desses resultados e dessas interpretacoes com oscorpora tratados, s<5 nos podem levar a redefinir uma estrate"giade descrigao e de analise.

Crftica

Lembraremos aqui as tr6s maiores crfticas que fazemos aesse procedimento:

a) O lugar e a definicao da pardfrase

Ainda que a pardfrase tenha um lugar central, constitutiveno interior da AD e na AAD69, resta a questao de que ela foi

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muito pouco estudada em si mesma, e que os analistas de discur-so, bem como um gra'nde ndmero de lingiiistas18, tern dela umaconcepcao ingSnua. No que conceme a AAD69, a parafrase &definida de maneira composicional: duas frases estao em relacaode parafrase se a soma de suas partes constitui um mesmo senti-do por identidade ou equivalSncia lexical (ver a fase de compa-ragao). Trata-se, entao, para n6s:

- De relativizar o lugar da para"frase, reconhecendo queum discurso nao se limita a produgao de significagoespor substituigao lexical;

- De retomar o problema da pardfrase em uma perspectivanova, que responda melhor a posicao geral de nossoprojeto: o estudo "do outro no interior do mesmo": estu-dar as relac.6es entre estruturas sintdticas que fazem comque um contetido proposicional est^vel (por construgaodiscursiva) possa ser investido de sentidos diferentes(reverberacoes lexicais, enunciativas, aspectuais...)-

b) O lugar e a definigao da andlise sint^tica

Na AAD69, a autonomia da sintaxe € compreendida comoa existencia, anterior a todo discurso, de uma forma (proposi-cional) universal, Daf o lugar e a forma da analise sinta'tica: co-dificagao (e "forgage") das seqiiencias discursivas na estruturasint^tica sobre os algoritmos textuais. Daf tambem a impossibili-dade de tratar discursos que, com relagao a essa concepcao dasintaxe, aparecem como "desvio, nao-padrao, falado etc". Epreciso, pois, retomar o problema da analise sinta'tica e da sinta-xe em si mesma. Mencionaremos, apenas, nossos dois pontos departida:

- A impossibilidade, por princfpio, e no procedimento, deuma fase de analise sinta'tica anterior e separada da fasede analise discursiva. Basta lembrar os exemplos de am-biguidade bem conhecidos da sintaxe transformacional(EM fotogrqfo as crianfas diante do banco etc.) para seperceber que a analise sinta'tica nao pode ser levada acabo sem fazer apelo a um saber discursive (definicao doprocesso, construgao de actantes etc.). De uma formatnais aprofundada, esses casos de "ambigiiidade" nao

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sao acidentais, mas podem ser caracterfsticos de um fun-cionamento discursive. Seremos obrigados a conceberuma andlise sintStica interativa, que retome uma ana*liseinicial minimal para refina-la;.

- Uma reflexao sobre a fonna da sintaxe. Ao adotar, paraa confecc.ao dos novos algoritmos, um analisador ja"existente - a Gramfitica de superffcie (CDS) de P. Plantea tftulo de sintaxe minimal — trabalhamos por muito tem-po na perspectiva de uma analise que articulou dois sis-temas: um sistema de regras hierarquizadas e um sistemade regras seqiienciais.

c) O propdsito geral do procedimento

AAD69 e" uma maquina para produzir desde a identidade, apartir da constituicao do corpus fixando as condicoes de produ-gao, ate" a interpretac.ao dos resultados reduzindo os discursos auma identidade: o discurso socialista, na verdade a formacaodiscursiva socialista (ou comunista etc.). A AD sempre foi umatipologia que exclufa os tipos retdricos (ou os restringia a es-quemas simples demais em termos de frases de base). Tratava-se, fundamentalmente, de reencontrar os discursos-tipos onde seamalgamam e se cristalizam o aparelho (politico), o conteddodoutrinal e os diferentes tipos de memdrias mobilizados ao to-mar a palavra.

Perspectives AAD80

A confecgao de algoritmos de analise do discurso & apenasuma parte de uma problematica mais vasta. Isso se deve a duasrazoes: .

- Sd podem ser suscetfveis de c&lculo as regioes bem co-nhecidas, em que hipdteses suficientemente gerais po-dem ser testadas sobre corpora bastante vastos. Ii atual-mente diffcil ir alem, dada a insuficiencia de pesquisasnos domfnios da enunciagao e da sequenciagao.

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- As questoes formuladas pelo analista sobre seu corpus eas interpreta§6es sao por definicao nao-calculaVeis.

No's consideramos, para descrever series discursivas, doisespac,os e, em cada espac.o, varies algoritmos que respondent adiferentes definicoes de objeto:

- Um espago, dito vertical, que remete a dimensao histdri-ca do discurso e comanda algoritmos de reagrupamentode unidades extrafdas de series discursivas: todo enun-ciado 6 tornado em uma se"rie de enunciados, que perten-cem a outras sequencias discursivas emitidas anterior ousimultaneamente, e que constituem sua condigao deexistencia;

- Um espago, dito horizontal, que remete ao "fio do dis-curso", a essa unidade complexa em que se seqiienciali-zam as series discursivas: todo enunciado 6 tornado emum encadeamento de enunciados organizado em relagaoa um sistema de lugares enunciativos e em relacao a vd-rios sistemas ret<5ricos de disposigao19;

- 6, definitivamente, a significagao do sintagma andlise dodiscurso que queremos modificar. Ele designa ao mesmotempo uma decomposi^ao de se'ries discursivas e uma re-gressao que reduz a complexidade dessas series a umalei ou a um modelo de representagao simplificador. Essegesto estando inserido em uma visao hermeneutica: re-vela o sistema de pensamentos, de atitudes ou de repre-sentagoes daqueles que produzem essas series.

E essa priitica que queremos abandonar, para substituf-lapor uma pr^tica contradit6ria, tomando a morfologia e a leitura:

- Morfologia, quando o analista descreve formas reagru-pando ou distribuindo os elementos heterogeneos de to-das as sequencias discursivas;

- Leitura, quando o analista regra e escreve essa descri-gao. Hd, de fato, uma analogia profunda entre o gesto deleitura e o gesto de descricao: toda leitura destrinca otexto, privilegia certos elementos para ocultar outros,reaproxima o que dispersou, dispersa o que estava um-do20. Nossa aposta 6 fazer dessas intervengoes operacio-nalizadas de alguma forma "selvagem ou inconsciente"

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na "leitura espontanea", intervengoes reguladas des-montando o objeto a ser lido segundo os prdprios eixosque o estruturam. A anSlise do discurso nao sera matsuma prdtese da leitura21, mas uma provoca$ao a leitura

Tradugao: Silvana M. SerraniSuzy Lagazzi

NOTAS

N.T.: Para uma exposicjio detalhada desse trabalho de Simone Bonnafous, cf,Langages 71, setembro de 1983.

-1

Os corpora tratados pela AAD69 foram de dois tipos: os corpora experimentais eos corpora de arquivo. Esses ultimos constituent, em funcao das perspectivas te<Sricasatuais, os unices tipos de corpora passfveis de ser tratados pela AnaUise do Discurso.

3 N.T.: Cf. Bonnafous, op. cit., pp. 17-33.

Chamamos "compactagem" o reagrupamento de dois ou mais corpora, que seraoentao tratados como um tinico corpus.5 For conector de jun^ao entendemos: as conjunc,6es de coordenac_ao, as locu§6es

conjuntivas, as locu$6es preposicionais, as locugSes adverbiais e adverbios de frases.6 Nao sao examinados aqui todos os tipos de anSfora que, em certos casos, colocam

problemas complexes de segmentagao.7 Essa nova condi$5o sobre a nao-segmentac5o discursiva no caso da anafora sim-

ples constitui uma retificac.a'o das proposic,6es apresentadas no artigo de J. Leon e M.E. Torres-Lima, que nao levavam em conta a definigao da SDA enquanto unidadetemStica.° N.T.: As 7 categorias morfossintSticas acima relacionadas completamente com a

categoria F, tal como consta no trabalho de Simone Bonnafous (op. cit.), e que a a«-tora define da seguinte maneira: F (forma) recobre a voz, as modalidades (aflrma-(jao/negagao, interrogacao/interro-negac_ao), o modo e o tempo. A cada um desseselementos corresponde uma cifra precisa, e a cada emmciado £ atribufdo um niimerode quatro cifras que representa sua forma.

" N.T.: Dada a impossibilidade de traduzir a correspondencia dos ccSdigos infor-mfiticos usados nos quadros que representam as listas de enunciados, traduzimos ape-nas os termos nao-codificados. Exemplos da codifica§ao utilizada: L = artigo defi-nido,E = copula. Para uma apresentagao minuciosa, cf. Bonnafous, op, cit..

^ O termo "empfrico", no que concerne ao slstema de ponderacao, remete aomesmo tempo a uma hierarquia intuitiva (evidentemente muito discutfvel) institufdaentre as categorias sintSticas, e ao fato de essa hierarquiza§ao otimizar os resultados,ao menos quantitativamente.1 * O termo "empfrico", no caso do limite, significa que & a experifincia comparadados resultados obtidos sob diterentes condigoes, e nao esse ou aquele procedimentode valida§5o estatfstica, que conduziu a reter certos valores de vari^veis.

^ Os metatermos introduzidos como parfimetros no interior do programa sao afeta-dos por um peso menor que um item lexical pleno.

^ Ressaltemos, a tftulodeindicasao, que o valor maximo da soma dos pesos, obti-do quando as duas relac.o'es bin&ias aao identicas, & igual a 62.14 N.T.: Cf. D2, D4 e D5 no esquema do trajeto discursivo de CCU, para localizaressas citagoes.15 VerJ.-J.Courtine, 1981,p. 113eseguintes.

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16 Chamamos "sfirie discursiva" urn fragmento de discurso tal como ele aparece, talcomo & lido numa apreensao ingenua, e "sequ'encia discursiva", o sistema construfdopela descricao que faz de uma se"rie um todo. A construgao das sequ&ncias nao se li-mita a uma segmentacao das s&ies; uma mesma s6rie 6 suscelfvel de pertencer a v&-rias sequ'Sncias,

'' Abreviado AD daqui em diante.18 Para uma posigao diferente, e exemplar, ver o artigo de C.Fuchs em DRLAV n-21: "Referentiation et paraphrase: variation sur une valeur aspectuelle".

'" Esses dois espacos nao estao separados, sem relac.ao um com o outro, Lugarescnunciativos e disposicoes nao sao a inven§ao continuamente renovada de um sujeitode enunciacao, eles sao regrados por uma formacao discursiva. Nesse procedimento,os algoritmos verticals, ao tomarem o fio do discurso, permitem conrrontar cadaponto desse fio com seu con junto: eles funcionam como uma memoVia,

20 Ver a boa descri§ao do gesto-da leitura em La seconde main, A.Compagnon,Seuil, 1979.

2' Sobreesse ponto conferir M.Pecheux, Introduction au Coiloque Mat&riaKtes dis-cursives, 1980.

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VIANALISE DO DISCURSO:

ESTRATEGIAS DE DESCRI^AOTEXTUAL (1984)

Alain Lecomte

Jacqueline Leon

Jean-Marie Marandin

Descrever ou ler textos sao operacoes naturais sobre aspalavras, os enunciados, as sequencias, as configurac.6es que ascompoem: desarruma-se, mexe-se na ordem linear da seqiiSnciade enunciados para obter alguns constituintes (lexicais, semanti-cos, fra"sticos) que se recompoem segundo outras leis em umoutro espaco ou, ao contraiio, segue-se essa ordem para isolar assequencias que definem as ilhas de coerencia. Compagnon(1979) compara a leitura aos gestos de quern recorta de um textoas citagoes e as reune num outro texto. "A leitura (solicitagaoou incentive) e a escrita (reescrita) nao t6m relagao com o senti-do: sao manobras e manipulagoes, recortes e colagens, E se, nofim da operac.ao, se reconhece um sentido, tanto melhor ou tantopior - mas isto ja" 6 uma outra coisa" (ibid, p. 37). Esta formula-gao define uma leitura que s<5 6 definida pelos jogos do prazer edo significante. Uma abordagem morfo!6gica dos textos (ou demate'rias textuais em uma pesquisa so'cio-histo'rica) define-se porum conjunto de "manipulagoes"; ela se distingue, em relagao5 leitura descrita por Compagnon, pela exigencia de se normali-zar essas manipulagdes operando-se sobre a base de marcas for-mais das quais se faz a hipdtese de que designem linhas de cortee de coesao que dao informagoes acerca do intratexto e de sualeitura. Algumas dessas manipulacpes podem ser suficiente-mente determinadas para investir em procedimentos algoritmosaplic&veis a textos (ou a mate'rias textuais).

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DEREDEC parece-nos ser o software melhor adaptado aesse objetivo. Exporemos, apds resumo de algumas propriedadesformais do DEREDEC, em que esse software 6 um vetor apro-priado a nossos objetivos em anallse do discurso l.

Breve resumo das propriedades formais de DEREDEC

DEREDEC, elaborado por Pierre Plante (1981), 6 umsoftware escrito em LISP, linguagem especialmente adaptada aotratamento simbolico. DEREDEC conserva todas as proprieda-des de LISP: as entradas, as saidas e os programas sao arbores-cencias. Tamb6m como LISP, DEREDEC utiliza muito a recur-sividade.

O formalismo adotado por Plante para representar e mani-pular essas "arvores" assemelha-se aos ATN (Augmented Tra-sition Network) de Woods. Oferece, assim, a possibilidade de seacrescentar informagoes aos no's das aYvores, de estoca"-las, ana-lisd-las e modifica-las atrav6s de procedimentos posteriores.

Tradicionalmente, as grama'ticas baseadas em ATN saodescendentes. Elas obrigam a que se descreva exaustivamente oscaminhos que "descem" dos sfmbolos gerais (P, SN ou SV, emsintaxe) para os itens lexicais. Pierre Plante privilegiou, ao con-triSrio, uma abordagem ascendente, que consiste em construir,etapa por etapa, a partir dos itens lexicais, sintagmas estrutura-dos. Esta caracterfstica tem a vantagem de ser menos incomodae de fazer com que o analisador (a gramdtica de superffcie, porexemplo) seja mais firme, isto 6, fornega sempre um resultado 2.

DEREDEC permite, pois, a construgao de grama'ticas de-critivas de textos, linguageiras ou nao, e de sistemas de explora-930 de textos; esses dois procedimentos, como os objetos mani-pulados, tdm todos a mesma sintaxe: sao arborescencias 3. To-das as fungoes do slstema poderao, portanto, se aplicar a todosos mementos do tratamento.

As grama'ticas descritivas de textos e os procedimentos deexploragao empregam, respectivamente, funcoes demonstrativase fungoes explorat<5rias.

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Fungoes descritivas de textos

Uma descrigao de texto (DDT) se da" como a construgao dedrvores em relagao a expressoes atomicas; por exemplo, a des-crigao sinta'tica de um texto (em Ifngua natural) terd a forma deuma seqiiencia de an£lises hierarquizadas de constituintes dasfrases desse texto. Uma grama'tica de texto desse tipo chamara'de EXFAD (expressao de forma admissivel a descrigao) tanto asexpressoes atomicas (os itens lexicais) quanto os no's (os cons-tituintes sintagm£ticos). Por outro lado, o DEREDEC permite aconstrugao de relagoes horizontals entre os constituintes: as re-la§6es de dependencia contextual (RDC).

As gramSticas de texto sao realizadas gragas as fun^oesdescritivas de textos que admitem, como argumentos, autfimatosem estados finitos, ou seja, maquinas munidas de um ponteiroque percorre, nas duas diregoes, uma seqiiencia de entrada, e deuma unidade de controle que se desloca nos diferentes estadosde uma rede. Esses automatos constroem, em relacao aos ele-mentos da seqiiencia de entrada, estruturas arborescentes: asdescricpes de texto.

Um automato compreende um certo numero de estados aosquais se associa uma seqiiencia de regras, cada uma delas com aforma de uma te"trada: condigao/seqiiencia de operagoes/nomede estado/diregao. A recursividade 6 uma caracterfstica: um au-tomato pode chamar a si mesmo ou a um outro.

A16m disso, podem-se associar informagoes do tipo para-digm^tico a cada expressao atomica da seqiiencia de entrada.Sao as EXFAL (expressao de forma atomica ligada). As EXFALveiculam a informagao paradigmaiica porque esta se refere aocomportamento de uma expressao atomica em outras sequenciasque nao aquela apontada. No momento da descrigao sint^tica deum texto, pode-se associar, em posigao de EXFAL, traces sint^-ticos ou semanticos aos itens lexicais; por exemplo, tragos desubcategorizagao estrita nos verbos ou, entao, tragos sint^ticoscomo g§nero, no caso dos substantives.

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Fungoes explorat6rias de textos

As describees de texto produzidas pelos automates seraoanalisadas por fungoes exploratdrias cujos argumentos, denomi-nados modelos de exploragao, sao estruturas de pattern-mat-ching que tentam fazer corresponder uma estrutura a estruturado texto.

Um modelo de exploragao 6 a representagao parent&ica deuma subarborescencia.

Seja o seguinte modelo:

(1) ((GV((GV)(P1-)

Ele corresponde, no texto analisado, a uma subarboresc£n-cia do tipo:

GraTico 1

GV

GV PI GN

Nl

O elemento procurado € precedido do signo "="; s6 seprocura um unico elemento por modelo. Esse elemento pode seruma categoria sintagmatica, uma categoria de base, uma expres-sao atomica (elemento lexical), acompannado- ou nao de uma ouvarias EXFAL. O modelo 6 lido da direita para a esquerda: nocaso, trata-se de encontrar um substantive (Nl), dominado por

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um (GN) complemento de objeto de um verbo. O (GV) mais aesquerda 6 a categoria dominante dos dois constituintes unidospela relagao de dependencia contextual (PI). As RDC sao sem-pre orientadas: o sinal "-" indica que o (GN) 6 a origem da re-lagao (o sinal "+" indicaria que ele 6 a fonte dela). Essa orien-tagao aperfeigoa a descrigao e melhora as possibilidades de pes-quisa; particularmente, ela permite a distingao determinante/de-terminado num (GV).

Esquema de aplicagao do DEREDEC

A utilizagao do DEREDEC geralmente exige a aplicagaodas fungoes descritivas do texto antes das fungoes exploratdrias;com efeito, 6 necessaYio ter em maos uma descrigao do textoantes de proceder a sua exploragao. As duas etapas sucessivasdo tratamento sao, pois, as seguintes:

- aplicagao de fungoes descritivas que fornegam uma des-crigao de texto (por exemplo, uma analise sint^tica);

- aplicagao de fungoes exploratoYias de texto sobre taldescrigao.

A utilizagao de DEREDEC nao se resumira, entretanto, auma sucessao linear descrigao-exploragao; ela permitird a com-binagao das fases de descricao com as de exploragao, utilizandoresultados exploratdrios em novas descrigoes, que poderao, porsua vez, ser objeto de novas exploragoes. Sao as fungoes de tra-dugao, que garantem a interagao dos diferentes nfveis. Bias per-mitem transformar toda EXFAD (entrada ou safda das fungoesdescritivas) em regra obrigatdria num modelo de exploracao; in-versamente, elas podem transformar um modelo de exploragao,argumento de uma fungao exploratdria, em regra obrigat6rianum aut6mato, argumento de uma fungao descritiva. Assim, to-do resultado, em qualquer nfvel que seja, pode ser utilizado cc-mo entrada para um outro nfvel do sistema; trata-se sempre dearborescencias.

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Podemos imaginar a aplicagao de DEREDEC atrave"s dograTico seguinte 4:

Grafico 2

Texto(s)

Texto

/ „'descnto

Grama"tica descritiva de

texto (GOT)

Procedimentos

de explorasao

Resultados de

exploragao de

texto

O que evidentemente este esquema pode exibir 6 que umtexto "descrito" pode ser sempre o objeto de multiplas explora-goes que virao "enriquecer" esse texto com informagoes dispo-nfveis para uma analise posterior. Do mesmo modo, um texto as-sim enriquecido por diversas exploragoes poder£ se tornar umtexto que poderemos submeter a uma outra gramatica descritivade texto (GDT).

Assim, dados e resultados jamais sao definitivamente soli-dificados: eles sao sempre reutilizaVeis numa nova analise.

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A gramdtica de superftcie (GDS)

Utilizamo-nos do analisador sintdtico elaborado porP.Plante (apresentado em Mots, 6, marc.o 1983). Este sistema 6uma gram^tica ascendente de reconhecimento do frances. Com-porta cerca de 1.600 regras para uns sessenta automates queconstroem categorias sintagmdticas, e RDC que reagrupam cate-gorias de base. Produz uma analise hierarquizada das frases, daqual daremos abaixo um exemplo.

Seja a frase 5:

(2) Eu tenho desejado fazer inserir um artigo em um jornalregional para a continuagao da pena de morte.

Gr£fico 3. Exemplo de analise sint£tica pela gramatica de su-perffcie

Bu rinhn qucrido fizer Imcrir um aitlgc jornsl regional pi

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categorias de base categorias sintagmdticas

CPO: frase/proposigaoGN: grupo nominalGV1

N211: clftico sujeitoNl: substantivoV1: verbo conjugadoV21: infinitive GV21 grupo verbalV23: particfpio passado GV23D12: determinanteD13: adjetivoC21li preposigaoC22 )

relagoes de dependencia contextual

TP: tema-prop<5sitoPI: desenvolvimento do propdsito

complemento direto do V

DET: determinagao

DET ?: detenminagao com ambigiiidade

P2 ?: desenvolvimento do propdsito com ambigiiidade

outros complementos de V

A analise fornecida pela GDS 6 representada pelo grafico3. Veremos que algumas RDC sao munidas de urn "?" e que,assim, concorrem com outros RDC. O tratamento dessas ambi-guidades relativas a frase (2) serd feito a seguir.

Tratamento da ambigiiidade

Sem retomar em detalhe as ana*lises produzidas pela GDS,sublinharemos o tratamento de certas ambigiiidades que estagrama'tica enfrenta.

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Ambigiiidades das formas funcionais

Algumas formas funcionais sintaticamente ambfguas saomodificadas por uma categoria atrave"s do procedimento de cate-gorizac.ao, antes da aplicagao do analisador sinta"tico. A desam-bigiiizagao dessas categorias (por exemplo o/artigo e o/prono-me) 6 feita por aut6matos da GDS que precedem os reagrupa-mentos sintagmaticos.

Ambigiiidades da analise em constituintes

A GDS une as categorias sintagma'ticas pelas relagoes dedependencias contextuais. Essas RDC sao cinco:

- a relagao "tema-propdsito" (TP) une, numa proposigao,todo sintagma nominal nao preposicional a esquerda deum verbo conjugado ao resto da proposi§ao;

- as duas relagoes de "desenvolvimento do propdsito" (PIe P2) correspondem aos complementos do verbo;

- a relagao de "determinagao" (DET) reagrupa gruposnominais complexos ou uma relativa e seu antecedente;

- a relagao de "coordenagao" (CO) une enumeragdes ouproposigoes coordenadas.

Nos casos de uma possibilidade estrutural de ambigiiidadena analise dos constituintes, a GDS gera duas RDC. E assim quena frase (2), representada pelo graTico 3, GDS gera, a partir dosintagma "para a continua$ao da perm de rnorte", duas rela-goes:

1. DET? une esse sintagma a "em um jornal regionaT'(cf. "um jornal para a continuagdo dapena de morte");

2. P2? une esse sintagma a "inserir" (cf. "inserir ion ar-tigo para a continuafdo...^'); "para a continuafdo" € af consi-derada como um complemento circunstancial.

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Da mesma maneira, a GDS gera, a partir do sintagma "emion jornal regional", as seguintes relacoes de dependenciescontextuais:

1. DET? une esse sintagma a "umartigo" (cf. "umartigoemjornaf);

2. P2? une esse sintagma a "inserir" (cf. "inserir em urnjornal").

A presenc.a do ponto de interrogagao (DET?) € a indicagaode que coexistem duas relates: uma de complemento de verbo(PI?, P2? ou PI P2? aqui P2?), a outra de determinac.ao(DET?).

Esta possibilidade apresenta a vantagem de nao pressupora unicidade da andlise sintatica. Nao reduzindo a ambigiiidade,ela deixa abertas vdrias estrate"gias de desambiguizacao. De fato,a analise nao € interrompida e os termos da ambigiiidade ficamexplfcitos e recuperaVeis em urn tratamento que tenha novos pa-rametros. Lembramos que a GDS opera da mesma maneira noscasos de frases atfpicas: se a gramatica nao consegue construir aanalise de uma frase dada, ela reserva essas frases e segue aandlise das outras seqiiencias.

DEREDEC e an&ise do discurso

As propriedades que acabam de ser mencionadas sao asque fazem de DEREDEC um vetor mais apropriado as escolhase aos objetivos de descrigao morfoldgica do discurso 6. Elepermite nao somente ultrapassar os obstdculos encontrados pelaanalise automdtica do discurso (AAD) 7 mas tambe"m oferecernovas possibilidades para uma abordagem de textos que nao sereduza a descrigao de um dnico nfvel de estruturac.ao. Se reto-mamos, a tftulo de exemplo, a AAD69, vemos que o procedi-

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mento sd se aplicava aos sintagmas constituintes de proposicao(SN ou SV, com uma primazia de fato dada aos SN) produzindozonas de substituicao lexical e aproximando os fenomenos dedeterminacao. Essa abordagem redutora, caracterfstica da analisedo discurso (AD, a partir de agora), deve ser ultrapassada, sejana definigao da disciplina, seja na de seu objeto, DEREDECrealiza isso no nfvel das montagens descritivas informatizadasde textos.

E preciso recordar aqui que a intencao geral de P.Plante 8

na concepgao e na confeccao de DEREDEC est5 muito prdximado ponto de vista que quer elaborar a abordagem morfoldgica dodiscurso. Podemos notar tres pontos de concordancia:

1. Toda descrigao de textos deve se apoiar na descrigaodas estruturagoes em Ifngua desse texto, particularmente sobresua estruturagao sintdtica. Um texto 6 escrito em uma Ifngua da-da 9.

Levar em conta sd a dimensao sinta"tica 6, sem ddvida, in-suflciente para esgotar a materialidade lingufstica de um texto (eisso contrariamente a hipdtese da sintaxe operada por muitas ADfrancesas e, particularmente, pela AAD69). A descrigao dasformas de enunciagao, das formas do l^xico e das formas da se-qiiencialidade deve ser construfda na perspective da AD. DE-REDEC torna possfvel a programacao de certos algoritmos quepermitirao abordar essas formas nos textos (ver abaixo).

2. Uma descrigao de textos nao pode ser confundida comuma analise que os reduza, isolando uma parte do texto para sersubmetida a descricao, deixando na sombra o resto, ou um tipoque supostamente representaria o funcionamento discursivo(sintaxe, enuncia^ao, l^xico....).

A descricao de um objeto tao complexo incentiva a multi-plicacao dos pontos de vista descritivos. E assim que P.Plante serecusa a especializar DEREDEC no tratamento estatfstico de fe-nomenos de coocorrencia ou na simulacao de raciocfnio sobrerepresentagoes semanticas, mas deixa aberta a possibilidade deefetuar tratamentos e de se servir disso para enriquecer a des-cri^ao10.

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A multiplicidade dos pontos de vista descritivos nao se in-duz somente pela complexidade do objeto mas pela prdpria natu-reza do ato de descri$ao de textos11. Se toda descrigao supoea interpretasao (por exemplo, se toda morfologia jd 6 considera-da numa leitura, segundo os termos introduzidos em Mots, 4,marco 1982), uma descricao nao pode ser uni'voca. Resta-nosestabelecer a plurivocidade desses pontos de vista descritivosreconhecendo a irredutfvel heterogeneidade dos niveis de estru-turacao de lingua e sua trama desestratificada no discurso.

3. Enfim, a escolha de uma estrat£gia informdtica ascen-dente 6 da mesma maneira uma descrisao unilateral. Ela minimi-za os dados de partida, privilegia uma abordagem construtivistaque 6 tao atenta as etapas estabelecidas quanto ao resultado eque produz objetos remodeldveis (cf., a seguir, a andlise sintdti-ca). Uma descric.ao ascendente nao € a especificagao local deuma teoria que deve prever tudo; mas ela se apresenta como umamontagem instdvel tomada entre a generalidade adquirida pelarepetigao e a singularidade que pode atrapalhar essa generalida-de ou Ihe escapar.

Muitas crfticas e autocrfticas dirigidas a AD t6m sua razaode ser. A esse prop<5sito, sao exemplares os debates em tomo danogao de corpus. Muitas vezes se criticou a AD por ser apenasum desvio que encontra, como resultado no final da andlise, osaber a propdsito de uma exterioridade do discurso (conducesde produgao, situagao de enunciacao, histdria das idelas) que elamobilizou para declarar terminado um corpus. Esta cri'tica (justi-ficada quando se considera seu discurso interpretative sobrecorpora particulares) mostra bem a dificuldade encontrada pelaAD para se libertar de seus conhecimentos (sobre a lingua, ahistdria, a ciencia) que ela reunia, "articulava" e projetava so-bre textos que nao tinham contribufdo em nada para isso12.

Retomaremos agora — sob forma de uma lista — algumaspropriedades ou fungoes dos objetos DEREDEC que explora-mos na concepgao e na programagao de algoritmos de descricaode textos.

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A gramdtica de superffcie e a andlise do discurso

A ausencia de analisador sinta"tico constituiu-se realmenteno maior bloqueio de toda analise de discurso feita com ajuda decomputador. Em particular, ela impedia a descrigao de qualquercorpus, por menos importante que fosse (o que explica, aliSs, anecessidade para a AD de limitar a descrigao a um corpus res-trito declarado representative de um corpus maior). Nao sd essedecodificador existe como tamb6m apresenta duas caracterfsti-cas, em nossa opiniao, importantes:

- ele 6 concebido para produzir diferentes esta"gios de umaandlise sintdtica;

- o procedimento de uma andlise sintdtica nao 6 bloqueadoa nao ser que ela seja a andlise de uma construc.ao atipi-ca.

Quer dizer, entao, que a andlise sintdtica nao & concebidacomo um mundo isolado, perfeito e primeiro (e tal tinha sidoa interpretagao da andlise do discurso do princfpio chomskyanode autonomia da sintaxe), mas como uma fase provisdria da qualse pode:

- mudar os termos em func.ao da utilizagao visada na des-cric.ao de um texto;

- enriquecer, burilar as andlises nos mesmos termos, ex-plorando uma informacao produzida fora ou introduzidapor interacao.

Tomemos dois exemplos para ilustrar essas duas possibili-dades.

Modificagao dos termos da andlise fornecida pela GDS

GDS gera um RDC "tema-propdsito" entre um verbo e osintagma (nao-proposicional) a esquerda desse verbo (conjuga-do) numa frase. Esta relagao nao 6, propriamente falando, uma

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relacao sintdtica13. Se se quer introduzir relagoes sintdticas (emparticular, no nosso exemplo, "sujeito de"), £ possfvel proceder,atrave"s de modelos de exploragao, a uma re-analise das DDTproduzidas por GDS. Daf o procedimento:

Andlise das descrigdes de textos (DDT)

Sao dados em posigao "tema" pela GDS os sintagmas quesao considerados sujeito do verbo ou justapostos (ao sujeito):

Exemplos:

(4) Pedro come.

(5) Apressado. Pedro come.

(6) Estudante, ele mentia.(7) O rapaz, mestre de aldeia, fala.

Os termos sublinhados sao as cabegas de GN Ugadas aoverbo pela RDC "tema-propdsito". Sao sujeitos a maior partedos sintagmas em posigao de tema, mas tambe'm, nos casos deinversao, os sintagmas em posigao PI.

Exemplo: (8) Depois vence a guerra.

Passos

Para marcar os sujeitos a esquerda do verbo, 6 precise si-tuar os GN em posigao de tema. Em (5) deve-se isolar apressa-do que € categorizado GV23 (grupo verbal particfpio). E preci-se, em seguida, separar o GN sujeito e o GN em justaposigao,procurando saber se hd um clftico sujeito (N211): o GN concor-rente esta", entao, justaposto (estudante, em (6)). Deve-se tam-be'm estudar a distribuigao dos determinantes nos dois GN (casode (7), em que o rapaz € sujeito e mestre esta" justaposto a ele).

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Para marcar sujeitos a direita do verbo (caso 8), € preciseencontrar frases sem tema e, em seguida, os GN que mantenhamuma relagao PI com o verbo.

Pesquisa efetiva

Toda pesquisa esta" sujeita a um modelo de exploragao doqual daremos alguns exemplos (para a sintaxe dos modelos, videexemplo (1) acima).

(9) (=GP((X) (TP-) (X))): modelo que situa as frases comtema e as sem tema. E o mesmo modelo, aplicado positiva ounegativamente.

Aplicagao positiva: este modelo encontra GP que exibemuma relagao "tema-prop<5sito" (TP) entre dois sintagmas (cujacategoria nao esta especificada (X)).

Aplicagao negativa atrav6s da avaliagao de uma variavel(Positive): o modelo encontra GP nos quais nao se da" a relagaoTP entre sintagmas.

(10) ((GV) (((GV) (P1-) (GN ((=N1)))))): modelo que si-tua os Nl nos GN, mantendo uma relagao PI com GV (6 o mo-delo que vem explicado atrds, em "Fungoes exploratdrias detextos").

(11) (GP (GV(TP-) (N211)) ((GV(TP-) (GN ((=N1))))))Esse 6 um modelo conjuntivo: ele "obtem" os Nl que apa-

recem quando se realizam as duas restrigoes estruturais (N211em posigao tema em GV e Nl em um GN em posigao tema emum GV). Essa pesquisa se liga a avaliagao de uma varidvel (co-ordenagao a T).

Sao tais modelos que fornecerao o input de um algoritmoem preparagao (dito "variagao sintdtica de um item lexical ,VSIL). VSIL fornece, para cada item (palavra-cheia) de umtexto dado (ou de um subconjunto especffico de itens dessetexto), sua defmigao sintdtica, ou seja, suas situates e fungoes

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sintaticas. Essa definicao podera" ser dada sincronicamente ou aolongo do texto (algoritmo "VSIL dinamico"). Esse procedi-mento permitirS estudar o tratamento sintatico do texico numtexto e o contraste entre varies textos, desse ponto de vista.

Aperfeicpamento da analise fomecida pela GDS

Sejam a frase (2), a analise fornecida pela GDS (3) e asambigiiidades encontradas, expostas em "Tratamento da ambi-giiidade". Sem entrar em detalhes de uma abordagem da ambi-giiidade no discurso, podemos conceber a construcao de umprocedimento que permita, se nao escolher, ao menos privilegiaruma leitura14.

Nos dois casos acima, nos quais constatamos uma ambi-guidade na analise em constituintes, podemos considerar dois ti-pos de informacao que permitem privilegiar uma das leituras:

1. Uma informagao discursiva referente & constituicao dosgrupos nominais na seqiiencia discursiva. Se marcamos gruposdo tipo jornal contra os vadios... ou artigo para o governo.,.,podemos atribuir maior peso a DET? na analise de jornal para acontinuagao... ou artigo em um jornal, no caso do nosso enun-ciado.

2. Uma informaeao lexical referente a subcategorizagaoestrita de inserir ("inserir + N + preposicao locativa + N").Esta subcategorizagao levaria a se privilegiar P2 no caso de emum jornal.

No primeiro caso, seria necessaiio recorrer ao modelo deexploracao DETER (descrito em Mots, 6, marge 1983, p. 121)que descobre os itens determinantes, no caso, de jornal, ou itenscontidos no paradigma discursividade construfdo de jornal. Nosegundo caso, podemos pensar em subcategorizagao sobre umabase sintatica (subcategorizagao estrita).

Permanecem os casos interessantes de "conflito" dos quaisnossa frase pode ser um exemplo. Admitamos que encontrare-

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mos na seqiiencia textual artigo para o governador/artigo noParis-Match... Parece, no entanto, que aqui falta privilegiar umarelagao P2 entre inserir e em um jornal. O problema estci emaberto. Ele constitui, de qualquer modo, um ponto de apoio pri-vilegiado no estudo da constituigao dos grupos nominais em umtexto, modalidades de passagem entre domi'nio friistico e domf-nio nominal.

Generalizacao da possibilidade de subcategorizagao

Nas linhas precedentes, consideramos a possibilidade desubcategorizar a categoria de base V (verbo). Essa possibilidadeest£ aberta para todas as categorias de base e representa umaoutra propriedade da GDS. A estrutura arborescente das catego-rias de base permite a introducao de informagoes particularesque podem ser pertinentes a uma pesquisa dada sem sobrecarre-gar a fase de analise sintatica propriamente dita. Tomemos umexemplo. Os substantives sao categorizados Nl. Os nomes prd-prios nao tern propriedades particulares para por entre parente-ses os constituintes sinta"ticos e estabelecer as fungoes sintaticas.Em contrapartida, eles podem ser um fndice importante na cons-tituicao de seqiiencia tematica (seqiiencia de nfvel 1. Ver adianteem "Segmentacao do intradiscursivo em seqiiencia"). Se os Nlsao subcategorizados Nil (nome proprio) e N12 (outros subs-tantives), o analisador sintatico s6 levara em conta o nfvel 1 desubcategorizacao (Nl) enquanto que um automato de segmenta-cao sequencial trabalhara com o nfvel 2 (N11/N12). Essa possi-bilidade de subcategorizagao € um outro exemplo dessa proprie-dade de GDS que 6 a de fornecer estagios diferentes de descri-cao.

EXF AD e EXFAL

Se as EXF AD sao estruturas arborescentes que codificam adescricao de uma seqiiencia (constituintes e relagao entre esses

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constituintes, neste caso em particular), os EXFAL sao arbores-cencias associadas as expressoes atomicas da sequencia de en-trada, veiculando informagoes que nao aparecem nessa sequen-cia. Simplificando: os EXFAD fornecem um estdgio de analisesintdtica das sequencias enquanto que os EXFAL permitem quese introduzam af informa9oes sobre seus cotextos15. O tipo deinformacao so" 6 limitado por nossas capacidades de imaginar oque 6 pertinente para a descricao discursiva de uma sequencianum texto.

Podemos pensar em "exfalizar" para um item dado:

1. Os itens lexicais com os quads ele concorre nas propo-sic.6es do texto (terfamos, assim, o item no seu referencial dis-cursive).

2. Um subconjunto desses itens, por exemplo, os sintag-mas que os determinam (assim, ten'amos acesso a construgaodiscursiva do objeto denotado e o meio de estudar o impactodessa determinacao sobre a construcao das proposigoes).

3. Os sintagmas que sao equivalentes no sentido de Har-ris, que aparecem num contexto lexical e sintaticamente identico(ten'amos, assim, um paradigms discursivo mais proximo da-queles que a AAD69 construia) etc.

O ponto essencial 6 que essa informac,ao nao 6 um pesomorto, sempre agarrado aos constituintes de uma sequencia. Elae" ativa na formulacao dos modelos de exploracao: um modelo(como o definimos) pode levar em consideracao um item lexicalnuma sequencia, a reuniao de um item lexical e do EXFAL queesta" ligado a ele, sd um EXFAL ou uma sequencia deles. Querdizer, um item lexical pode ser tratado isoladamente, como ele-mento de um paradigma, como fndice de um paradigma ou deum membro desse paradigma.

Esta dualidade de estruturas, acoplada a sintaxe dos mo-delos de exploragao, abre a possibilidade prdtica de considerarum item lexical ou um enunciado num texto como um ponto nu-ma rede de formula§6es ou de enunciados. Ela corresponde afungao que fixamos para distinguir algoritmos verticais de hori-zontals: poder comparar uma sequencia textual em cada um deseus pontos (num subconjunto qualiflcado desses pontos) comseu antecessor e seu sucessor; e, numa estrate'gia de cotexto

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construfdo, com sequencias pertencentes a outros textos. Esseponto 6 crucial para a abordagem que pretendemos. A partir deentao, se se admite, para todos aqueles que descrevem textos ousequencias de enunciados, que a sequencia 6 lacunar, que ela s<5"resiste" por aquilo que nao 6 materialmente realizado, resta de-finir esse nao-material. Sua descrigao como argumento (Ducrotet alii), inferencia (Bellert), proposicoes consideradas verdadei-ras num uni verso de crengas (pragma'tica) pressupoe que se pos-sa reconstruir essa ausencia atraves de calculo sobre enunciadosco-presentes na consciencia dos co-enunciadores. Esta onipre-senca do sujeito (e af a metafora da plenitude na designacaodesse sujeito pleno d£ bem a impressao da imagem) implica umatomada de posicao a qual nao compartilhamos. Esses enunciadosausentes podem se encontrar invertidos na interpretacao ou naleitura dos co-enunciadores, porque eles estao inscritos no inter-discurso que sustenta o texto lido ou interpretado. Deve, por-tanto, ser possivel perseguir esse interdiscurso e revelar seustragos. Esta tomada de posigao necessita ser desenvolvida etransformada em montagens descritivas. DEREDEC parece nosdar a possibilidade de concebe-las.

Os modelos de exploracao

Um modelo de exploragao busca, atrave's de um procedi-mento de pattern-matching, um elemento numa sequencia tex-tual e/ou nos EXFAL ligados aos itens lexicais dessa sequencia.O elemento procurado pode ser definido pela conjunc,ao ou dis-juncao de restrigoes de diferentes ordens. Ilustraremos essa pos-sibilidade com dois modelos que realizam uma pesquisa simplessobre um texto:

(12) (GP((GV) (TP-) (GN((GN:padrao) (DET+)

Esse modelo compoe duas ordens de restricao: uma sintati-ca (o elemento procurado (Nl) esta1 em posigao "tema" numafrase) e uma discursiva (ele estd determinado por um conjuntode substantivos "contidos" em "padrao", sendo esse conjunto

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construfdo na sequencia textual). Esse modelo poderia ser oponto de partida de uma pesquisa acerca do entrelagamento defios tema'ticos: como e onde, no texto, um fio tema"tico se uneaos objetos introduzidos num outro lugar do texto.

(13) (= GP ((N2111))

((N213))

Esse modelo muito simples busca todas as proposigoes emque hd uma marca explfcita de uma primeira ou segunda pessoasob a forma de um clftico (N21...), ou de um pronome possessi-vo (D1311). Ele pode portanto permitir uma primeira "enxuga-da" da sequencia textual considerada sob o angulo de sua enun-ciagao.

A sintaxe dos modelos de exploragao permite, portanto,combinar as caracten'sticas relevantes da sintaxe, do le"xico, dacoocorrencia, da inclusao em um paradigma (tao diversamenteconstrufdo quanto aqueles que lembramos a pSgina 299). E issocorresponde bem aquilo que define a AD: a busca de configura-goes de elementos que pertencem a ni'veis distintos de Ifngua.Essas configuragoes, que DEREDEC nos permite situar numtexto, constituem nosso objeto de estudo. Nos as chamamos deformas. Uma forma 6 a unidade integrada por constituintes for-mais de Ifngua distribufdos de maneira organizada no fio do dis-curso. Atualmente estudamos as formas "tema do discurso" e"sequencia".

O intradiscurso

O fato de que o input das descricoes textuais seja consti-tufdo por describees de textos (DDT) que recobrem o domfniofrSstico nao significa que a descrigao deva ficar restrita a isso.J3 vimos que a "exfalizacao" introduzia na frase elementosqualificados de seu cotexto, o que e" um primeiro modo de tornar"porosas" as fronteiras frdsticas. Por outro lado, a noc.ao de

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forma que regulamenta nossa descrigao nao leva em conta a fra-se enquanto um domfnio autonomo. Mais radicalmente, ela nao aleva em conta enquanto um padrao, um modelo do discurso oudo texto: nossas formas nao sao nem frases de base nem macro-proposigoes nem seqiiencias de proposigoes. Enfim, introduzi-mos uma categorizagao, intuitiva por enquanto, da sequencia: €um espago dinamico, um espago de reformulagao e de transfor-magao. O exemplo mais cl^ssico 6 o da constituicao em seqiien-cia por retroacao, pela retomada catafdrica de uma sequencia deenunciados por um sintagma nominal correferente, o qual, aonome^-los, fornece o quadra de sua interpretagao e os combina.Estamos longe de poder descrever esses fenomenos; 6 preciseainda preparar o terrene. E, para isso, devemos poder:

1. Localizar qualquer fenomeno que isolamos em certomomento do texto em relagao a seu antecessor e seu sucessor, nadimensao textual do antes e do depois. Trata-se portanto de umprocedimento diferente da "exfalizagao'% na qual o texto €transformado em lista.

2. Trabalhar sobre unidades sequenciais mais amplas quea frase nas quais as fronteiras de frases sao um elemento entreoutros.

Essas duas possibilidades estao abertas por DEREDEC en6s as esquematizaremos abaixo.

Descricao dktcrdnica do intradiscurso

O estudo de um fenomeno levando em conta sua vizinhan-ca textual 6 um objetivo fixado por P.Plante para DEREDEC:"Pode-se exigir que a descrigao de um acontecimento textual le-ve em conta a situagao particular desse acontecimento no con-junto do texto que segue o acontecimento daquela que o precede(Plante, 1981, p. 7).

A tftulo de exemplo, podemos retomar a definigao deFSIL (ver "Modificagoes dos termos da andlise fornecidapela GDS") e um dos estudos que ele poderia permitir: ofenomeno

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de nominaliza§ao em discurso. A nominalizagao tern sido objetosobretudo de estudos paradigma'ticos em AD. Estudd-la em suadimensao textual 6 procurar o momento no qual se passa da fra-se ao substantivo16. Pode ser importance saber se o enunciadocorrespondente a nominalizagao a precede ou a segue. De ma-neira intuitiva, quando esse enunciado ou esses enunciados aseguem, eles aparecem como uma especificac.ao, uma definigaoque pode entao ser empregada numa narragao, numa descrigao(particularizante, exemplificadora), numa reformulac.ao. Quandoele(s) a precede(m), a nominalizacao limita uma sequdncia e in-troduz af aquilo que A. Lecomte chama de um desnivelamen-to17, Se vdrias nominalizagoes aparecem no mesmo momento dotexto, isso seria, sem duVida, um indice para se construir umfuncionamento textual particular; va"rios textos ou vdrias zonasde um texto poderiam ser comparados com base nesse funcio-namento.

Segmentacao do intradiscurso em sequ£ncias

Como ja" dissemos antes, a utilizagao do DEREDEC emanaJise do discurso deve-nos permitir trabalhar sobre as frontei-ras que definem o domfnio frastico. Esse jogo corresponde &questao: o que 6 "produzir seqiiencia"? Como, num texto ounuma superficie discursiva, se realiza esse efeito particular peloqual as formulagoes se mantem em conjunto? Por outro lado, senos voltarmos para os conceitos da AD, veremos que se tratara',portanto, de explorar a constituigao de um intradiscurso. Nossashipdteses nos levam a representd-lo como um espago cuja es-trutura se forma a partir de morfemas e de regularidades obser-vaveis gragas a modelos de exploragao. Em particular, sao te-matizaVeis aqui as ligagoes por anafora, correferSncia e deitici-dade. Para resumir, diremos que a homogeneizagao de uma se-quencia de constituintes se opera por essas ligacoes. Gragas aandfora ou, dito de outra forma, a estabilidade de um espago nointerior de um discurso18. Pelos delticos se instaura um efeito doreal pelo qual uma seqiiencia 6 designada como se referindo aum objeto-de-discurso, e pela correferencia se constrtfi uma es-tratificagao da seqiidncia no fim da qual certas expressdes apa-

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recem como resumindo/condensando um conjunto de formula-goes anteriores e sao postas em posigao de ter como referente omesmo objeto-de-discurso.

E possi'vel descrever essa "estrat^gia" do desnivelamentopor meio da correferencia na produgao de textos explicativos oudemonstratives, isto 6, na argumentagao (Lecomte, 1981).

Vejamos aqui o seguinte exemplo:

"A luz do sol 6 branca; apds ter atravessado um prisma,ela revela todas as cores que existem no mundo visivel. A natu-reza reproduz o mesmo resultado na bela gama das cores do ar-co-fris. As tentativas de explicar esse fendmeno sao muito anti-gas".

Af se combinam:

anaTora: "A luz ... ela..."

correferSncia: "...A natureza reproduz o mesmo resulta-do..."

deiticidade: "o mesmo resultado... esse fen6meno...",

mecanismos pelos quais se constrdi a homogeneizagao discursi-va da seqiiencia sob a reformulagao de uma se"rie ("a luz do sol6 branca; ap<5s ter atravessado um prisma, ela revela todas as co-res que existem no mundo visfvel") e sua referencializagao pordenominacao: "resultado", "fenomeno".

DEREDEC e", entao, utilizado para construir seqiiencias.Trata-se, neste caso, de criar novos automates, reunindo-seaqueles que formam o corpo de GDS, que se aplicam depoisdeles e que introduzem marcas e categorias suplementares. Numprimeiro momento, por exemplo, contentamo-nos em descreveras relagoes anaf6ricas mais simples e em utiliz^-las para catego-rizar uma sucessao de frases como sequencia, e para colocar emuma DDT marcas suplementares de pontua?ao que delimitam es-sas seqiiencias.

Em fungao dos fins que atribufmos a analise 6, entao, pos-sfvel "restabelecer as an^foras". Basta, de fato, criar um aut6-mato que contenha uma fungao LISP encarregada de substituirum anafdrico, etiquetado N211, pelo GN ao qual ele remete.

^ possfvel, levando-se em conta essas "primeiras expe-em DEREDEC, imaginar um prolongamento do per-

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curso: ap<5s ter segmentado o texto em seqiiencias de um primei-ro nfvel, pode-se procurar regularidades de construc.ao dessasseqiiencias de um segundo nfvel fazendo com que aparegam re-lac^es de substituic.ao entre GN (por exemplo, entre "a luz dosol", "a natureza", "o arco-fris") e, enfim, conectar algumasdessas ultimas em virtude das ligagoes de repetic.ao/substituic.aolexical assim detectada e das ocorre'ncias de d&ticos. Se, numaseqiiencia assim aglomerfeda (isto 6, construfda nao por seg-mentac.ao mas por reconhecimento de um homomorfismo e deuma ligagao intertextual), figura este mdice de deitico, dizemosque hd desnivelamento ou entao liga^ao de referencialidade.

O objetivo a se alcangar 6, entao, destacar um esquema deorganizac.ao das seqiiencias de primeiro nfvel, ao fun do que adescric,ao sinta'tica, de alguma maneira, se manifesta, se "des-compacta", sendo o resultado dessa operac,ao a possibilidade deperceber em que pontos do texto circula aquilo que liga as for-mulae, oes.

Tradugao: Maria Augusta B. de Mattos

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NOTAS

Este artigo sucede outros dois: "Apresenta^ao da Analise Automa'tica do Dis-curso (AAD69): teoria, procedimentos, resultados, perspectivas", aqui mesmo nestevolume, e "Le systeme de programation DEREDEC", Mots, 6, marc,o 1983. Agra-decemos a D.Begue que colaborou na priraeira versSo deste texto, trazendo-nos pre-ciosas indaga$6es sobre o lugar do DEREDEC na histtfria dos softwares de trata-mento de textos em lingua natural. Remetemos a Begue (1983).

Ver adiante, em "DEREDEC e a analise do discurso", as vantagens da ascenden-cia para a analise de discurso.

T

Trata-se de uma caracterizac,ao minima do que torna possfvel a composicao dosdiferentes objetos DEREDEC que s5o as estruturas de retenc.ao e as funtjoes de mani-pulacSo (descritivas e exploratcSrias). Cf. P. Plante (1984).4 ~~*se aplica em; produz.

Esta frase foi extrafda dc corpus de cartas de autodefesa reunido por R. Dulong.

A morfologia discursiva esta" exposta em Pecheux et alii (1982), Marandin(1983), Lecomte e Marandin (1984).

7 Cf.Pecheuxetalii(1975).8 Ver P. Plante (1981), Manuel de t usager, mtroduc,ao.y Lembramos que so* descrevemos textos escritos; conhecemos pouqufssimo da es-

trutura$ao da Ifngua oral para descrevS-la.10 Ver Plante (1981), p. 4-5.

* Ver, para um ponto de vista semelhante, Todorov (1983), parte 2.12 Quanto ao corpus, notamos que P. Plante previu vfirios casos de figura: descricaode um texto, de uma parte de texto, comparacao entre vinos textos, questionamentode um a partir de outro.13 Muitas vezes se serviu desta anSlise em "tema-propdsito" para condenar (comcondescendencia) este analisador. E claro que ela~nao corresponde nem a uma anSlisesinta^ica nem a uma analise funcional, tal como foram desenvolvidas nas lingufsticascontemporSneas. Podemos aproximS-la do que 6 proposto por Halliday (1967). Asanalises fomecidas pela CDS nao repousam basicamente sobre este relacao. Lem-bramos que 6 possfvel programar um analisador inteiramente ou parcialmente di-versodoquePlantepropoecomaGDS. A "versao 1984" da GDS, alias, e"diferentedaversao!98L

^4 Empregando "privilegiar", evocamos o que poderia ser nossa abordagem: a lei-tura n5o-privilegiada nao & anulada. Ela permanece como fndice discursive de umatransformac.a'o possfvel do objeto ou do ponto de vista sobre o objeto.

Que esse contexto seja definido como o texto do qua! se extraem as sequfinciasou outros textos reunidos em corpus, rl possfvel, segundo as orientacfies de descn-5&o, introduzir informac^oes menos discursivamente construfdas (por exemplo. sino-nimos, campos semanticos etc).16 Para este exemplo, restringimo-nos as Dominalizasoes em que a revelasao ver-bo/substantivo 6 morfologicamente marcada e/ou aparece num sintagma livre.17 VerA.Lecomte(1981),p.74ess.18 As palavras "estabilidade" e "espago" remetem & representa§5o tipoltfgicaintradiscurso proposta por Lecomte (1983).

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a...

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BIBLIOGRAFIA

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LECOMTE, Alain. "Topologie et e"nonciation". Archives etDocuments de la SHESL, 3, 1983.

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PECHEUX, Michel et alii. "Apresentagao da Analise AutomSti-ca do Discurso (AAD69): teoria, procedimentos, resulta-dos, perspectivas", neste volume.

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TODOROV, Tzvetan. Mikhail Bakhtine, le principe dialogique.Paris, Le Seuil, 1983.

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VIIA ANALISE DE DISCURSO:

TR£S EPOCAS (1983)

Michel Pecheux

I. A primeira epoca da analise de discurso: AD-1 como explora-metodoldgica da nocao de maquinaria discursivo-estrutural

A. Posic.ao te<5rica

- Um processo de produc,ao discursiva 6 concebido comourna maquina autodeterminada e fechada sobre si mes-ma, de tal modo que um sujeito-estrutura determina ossujeitos como produtores de seus discursos: os sujeitosacreditam que "utilizam" seus discursos quando na ver-dade sao seus "servos" assujeitados, seus "suportes".

- Uma Imgua natural (no sentido lingufstico da expressao)constitui a base invariante sobre a qual se desdobra umamultiplicidade heterogenea de processes discursivosjustapostos.

Esta tomada de posicao "estruturalista" que se esfuma de-pois da AD-1 produz uma recusa (que, esta, nao vai variar daAD-1 a AD-3) de qualquer metalfngua universal supostamenteinscrita no inatismo do espfrito hutnano, e de toda suposigao deum sujeito intencional como origem enunciadora de seu discur-so.

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Ad-1 supoe a possibilidade de dois gestos sucessivos:

- Reunir um conjunto de tragos discursivos empfricos("corpus de seqiiencias discursivas") fazendo a hip<5tesede que a produgao desses tragos foi, efetivamente, domi-nada por uma, e apenas uma, mdquina discursiva (porexemplo um mito, uma ideologia, uma episteme).

- Construir, a partir desse conjunto de tragos e atrave"s deprocedimentos linguisticamente regulados, o espago dadistribuigao combinato'ria das variagoes empfricas dessestragos: a construgao efetiva desse espago constitui umgesto epistemoldgico de "ascensao" em diregao 5 estru-tura desta m£quina discursiva que supostamente as en-gendrou.

B. Conseqiidncias dos procedimentos

o ponto de partida de uma AD-1 € um corpus fechado desequencias discursivas, selecionadas (o mais freqiiente-mente pela vizinhanga de uma palavra-chave que remetea um tema) num espago discursive supostamente domi-nado por condicoes de produgao est&veis e homogeneas.Donde a focalizagao das diversas AD-1 sobre discursivi-dades textuais, elas proprias auto-estabilizadas; porexemplo, discursos polfticos sob a forma de discursosteoYico-doutrinaYios.a analise lingufstica de cada seqiiencia € um prl-requi-sito indispensaVel para a analise discursiva do corpus: aanalise lingiifstica e" considerada como uma operagaoautonoma, efetuaVel exaustivamente e de uma vez portodas. Ela supoe a neutralidade e a iildependencia dis-cursiva da sintaxe; ela 6 opaca em relagao a enunciagaoe as restrigoes subjacentes ao fio do discurso (quer dizerque ela as leva em conta implicitamente).a analise discursiva do corpus consiste principalmenteem detectar e em construir sftios de identidades para-fra'sticas intersequenciais (isto 6, entre fragmentos de se-

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qu^ncias safdas de discursos empfricos diferentes): en-quanto pontos de variagaq combinatdria, estas identida-des parafra'sticas formam o lugar de inscrigao de propo-sicoes de base caracterfsticas do processo discursivo es-tudado. Uma indicagao dos trajetos que conectam essasproposigo'es entre si prolonga eventualmente a anaJise.

No horizonte, a'ide'ia (que permanece em estado de ide"ia!)de uma algebra discursiva, que permita construir formalmente -a partir de um conjunto de argumentos, predicados operadoresde construgao e de transformagao de proposigoes - a estruturageradora do processo associado ao corpus.

- "a interpretagao" consiste em reinscrever o resultadodesta analise no espago discursivo inicial, como "res-posta" as questoes que tematizam esse espago: o maisdas vezes a interpretagao toma a forma diferencial deuma comparagao de estrutura entre processes discursivosheterogSneos justapostos.

Conclusdo: AD-1 € um procedimento por etapa, com or-dem fixa, restrita tedrica e metodologicamente a um comego eum fim predeterminados, e trabalhando num espago em que as"ma'quinas" discursivas constituem unidades justapostas. Aexistencia do outro esta" pois subotdinada ao primado do mesmo:

- o outro da alteridade discursiva "empftica" 6 reduzidoseja ao mesmo, seja ao resfduo, pois ele 6 o fundamentocombinatdrio da identidade de um mesmo processo dis-cursivo;

- o outro alteridade "estrutural" s<5 6, de fato, uma dife-renga incomenswdvel entre ' 'mdquinas" (cada umaidentica a si mesma e fechada sobre si mesma), quer di-zer, uma diferenga entre mesmos.

IE. AD-2: da justaposicao dos processes discursivos a tematiza-de seu enbelacamento desigual

O deslocamento tedrico que abre o segundo perfodo resultade uma conversao (filosdfica) do olhar pelo qual sao as relagoes

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entre as "ma'quinas" discursivas estruturais que se tornam oobjeto da AD. Na perspectiva da AD-2, estas relac.6es sao rela-coes de forca desiguais entre processes discursivos, estruturandoo conjunto por "dispositivos" com infludncia desigual uns sobreos outros: a noc.ao de formagao discursiva tomada de empre'sti-mo a Michel Foucault, comega a fazer explodir a noc,ao de m<i-quina estrutural fechada na medida em que o dispositive da FDest3 em relagao paradoxal com seu "exterior": uma FD nao €um espago estrutural fechado, pois 6 constitutivamente "invadi-da" por elementos que v£m de outro lugar (isto €, de outras FD)que se repetem nela, fornecendo-lhe suas evidencias discursivasfundamentals (por exemplo sob a forma de "preconstrui'dos" ede "discursos transversos").

A nocao de interdiscurso 6 introduzida para designer "oexterior especffico" de uma FD enquanto este irrompe nesta FDpara constituf-la em lugar de evidencia discursiva, submetidaa lei da repetic.ao estrutural fechada: o fechamento da maquina-ria 6 pois conservado, ao mesmo tempo em que 6 concebido en-tao como o resultado paradoxal da irrupc.ao de um "ale"m" exte-rior e anterior.

Resulta que o sujeito do discurso continua sendo concebi-do como puro efeito de assujeitamento a maquinaria da FD coma qual ele se identifica. A questao do "sujeito da enunciagao"nao pode ser posta no nfvel da AD-2 senao em termos da ilusaodo "ego-eu" ["moi-je"] como resultado do assujeitamento (cf. aproblem5tica althusseriana dos Aparelhos Ideoldgicos de Esta-do) frequentado pelo tema spinozista da ilusao subjetiva produ-zida pela "ignorahcia das causas que nos determinam".

Mas, simultaneamente, colocando uma relagao de entrela-gamento desigual da FD com um exterior, a problemdtica AD-2obriga a se descobrir os pontos de confronto polSmico nas fron-teiras internas da FD, as zonas atravessadas por toda uma se"riede efeitos discursivos, tematizados como efeitos de ambigiiidadeideoldgica, de divisao, de resposta pronta e de replica "estrate"-gicas"; no horizonte desta problematica aparece a ide*ia de umaesp6cie de vacilac,ao discursiva que afeta dentro de uma FD asseqiiencias situadas em suas fronteiras, at^ o ponto em que setorna impossfvel determinar por qual FD elas sao engendradas.

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Assim, a insistencia da alteridade na identldade discursivacoloca em causa o fechamento desta identidade, e com ela apropria nocao de maquinaria discursiva estrutural... e talveztambe'm a de formagao discursiva.

Do ponto de vista dos procedimentos, AD-2 manifestamuito poucas inova§6es: o deslocamento € sobretudo sensfvel aonfvel da construgao dos corpora discursivos, que permitem tra-balhar sistematicamente suas influencias internas desiguais, ul-trapassando o nfvel da justaposigao contrastada.

ffl. A cmergeocia de novos procedimentos da AD, atraves dadesconstiucao das maquinarias discursivas: AD-3

Sena indril pretender descrever como um objeto este quese tenta hoje: apenas se pode procurar falar do interior dessatentative. Indicar algumas diregoes referfveis em um trabalho deinterrogacao-negacao-desconstrugao das nocoes postas em jogona AD, mostrar alguns fragmentos de construgoes novas.

A. Alguns pontos de referenda

1. O primado tedrico do outro sobre o mesmo se acentua,empurrando at6 o lunite a crise da nocao de maquina discursivaestrutural. E mesmo a condigao de construgao de novos algorit-mos enquanto "mfiquinas paradoxais".

2. O procedimento da AD por etapas, com ordem fixa, ex-plode definitivamente...

- ... atraves da desestabilizagao das garantias sdcio-hist<5-ricas que se supunham assegurar a priori a pertinenciate6rica e de procedimentos de uma construgao empfricado corpus refletindo essas garantias.

- ... atrave"s de uma interacao cumulativa conjugando aalternancia de mementos de andlise lingufstica (colocan-do notadamente em jogo um analisador sintfltico de su-perffcie !) e de momentos de andlise discursiva (algo-ritmos paradigmaticos "verticais" e sintagm5ticos/se-

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qiienciais "horizontals"): esta interagao traduz nos pro-cedknentos a preocupagao em se levar em conta a inces-sante desestabilizagao discursiva do "corpo" das regrassintaticas 2 e das formas "evidentes" de seqiiencialidade(por exemplo narrativo/descritivo, argumentative); elasupoe a reinscricdo 3 dos tracos destas andlises parciaisno prdprio interior do campo disc,wsivo analisado en-quanto corpus, acarretando uma reconfiguragao destecampo, aberto simultaneamente a uma nova fase de ana-lise lingufstico-discursiva: a produsao "em espiral"destas reconfigurac.6es do corpus vem escandir o pro-cesso, produzindo uma sucessao de interpretacoes docampo analisado. Que lugar o "mesmo" deve necessa-riamente guardar no interior de tal processo de analise?

3. No m'vel da AD-1, a dissociagao entre analise lingufsti-ca (de cada seqiiencia) e analise discursiva interseqiiencial (deum corpus de sequencias) tornava vazia de sentidos a nogao deanalise discursiva de uma sequSncia na sua singularidade. En-tretanto, a analise lingiii'stica do tipo AD-1 supunha implicita-mente a homogeneidade enunciativa de cada seqiiencia analisadana medida em que o registro da enunciagao e das restric,6es desequencialidade permanecia opaco.

O desenvolvimento atual de numerosas pesquisas sobre osencadeamentos intradiscursivos — "interfra"sticos" — permite &AD-3 abordar o estudo da construcao dos objetos discursivos edos acontecimentos, e tambe'm dos "pontos de vista" e "lugaresenunciativos no fio intradiscursivo".

Alguns desenvolvimentos tedricos que abordam a questaoda heterogeneidade enunciativa conduzem, ao mesmo tempo,a tematizar, nessa Hnha, as formas lingitfstico-discursivas dodiscurso-outro:

- discurso de um outro, colocado em cena pelo sujeito, oudiscurso do sujeito se colocando em cena como um outro(cf. as diferentes formas da "heterogeneidade mostra-da");

- mas tambe'm e sobretudo a insistencia de um "ale"m" in-terdiscursivo que vem, aquem de todo autocontrole fun-cional do "ego-eu", enunciador estrate"gico que coloca

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em cena "sua" seqiiencia, estmturar esta encenasao(nos pontos de identidade nos quais o "ego-eu" se ins-tala) ao mesmo tempo em que a desestabiliza (nos pontosde deriva em que o sujeito passa no outro, onde o con-trole estrate'gico de seu discurso Ihe escapa).

B. E sobretudo muitos pontos de interrogacdo...

1. Como separar, nisso que continuamos a chamar "o su-jeito da enunciac.ao", o registro funcional do "ego-eu" estrate-gista assujeitado (o sujeito ativo intencional teorizado pela fe-nomenologia) e a emergencia de uma posicao do sujeitol Querelagao paradoxal essa emergencia mante'm com o obstdculo, airrupgao imprevista de um discurso-outro, a falha no controle? Osujeito seria aquele que surge por instantes, 15 onde o "ego-eu"vacila? Como inscrever as conseqiiencias de uma tal interroga-c.ao nos procedimentos concretos da analise?

2. Se a analise de discurso se quer uma (nova) maneira de"ler" as materialidades escritas e orais, que relagao nova ela de-ve construir entre a leitura, a interlocugao, a memdria e o pen-samento?

O que faz com que textos e sequencias orais venham, emtal momento precise, entrecruzar-se, reunir-se ou dissociar-se?Como reconstruir, atrav^s desses entrecruzamentos, conjuncoese dissociagoes, o espaco de memoria de um corpo s<5cio-nist<5ri-co de tragos discursivos, atravessado de divisoes heterogdneas,de rupturas e de contradi§6es? Como tal corpo interdiscursivode tracos se inscreve atrav^s de uma Ifngua, isto e", nao somentepor ela mas tambe'm nela?

Se o pensamento que se confronta com um "tema" sob umcerto "ponto de vista" 6 uma posicao no interior de uma redede questoes, como esta posigao vem se inscrever, de uma s6 vez,nas figures da "troca" conversacional (do didlogo a ruptura,passando por todas as formas de conflito) e nas figuras quepoem em perspectiva, como gesto que estrutura um campo deleituras (indicagao de filiagoes, de "trajetos tem^ticos" convo-cando series textuais heterogeneas)? O que € que faz, desse mo-

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do, o encontro entre um espago de interlocugao, um espago demembiia e uma rede de questoes?

3. Como conceber o processo de uma AD de tal maneiraque esse processo seja uma interagao "em espiral" combinandoentrecruzamentos, reunioes e dissociagoes de series textuais (o-rais/escritas), de construgoes de questoes, de estruturagoes deredes de memdrias e de produgoes da escrita?

Como a escrita vem escandir tal processo, af produzindoefeito de interpretagdo!

Como o sujeito-leitor emerge nessa escansao?

O que € interrupcdo nesse processo?

Em que condigdes uma interpretagao pode (ou nao) fazerintervengao?

Pode-se (re)defmir uma "polftica" da ana"lise de discurso?

Tradugao: Jonas de A. Romualdo

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NOT AS

1 Trata-se da gramdtica de superflcie (CDS) trabalhada pelo software DEREDEC.O conjunto foi concebido e realizado por P. Plantef da UQAM, em Montreal. Cf. P,Plants, "Le systeme de programmation Deredec", que apareceu em Mots n- 6, mar-ge de 1983.

2 Cf. os movimentos de fronteiras de constituinte, os deslocamentos l&dco-sinta'ti-cos da aceitabilidade das construgoes, os equfvocos gramaticais (por exemplo, sobreo estatuto do infinitivo).

•jJ No quadro de DEREDEC esta reinscri^ao & realiz^vel por meio da comtruc_ao de"Expressoes de Forma Atomica Ligada" ou EXFAL: "Sao redes de cxpressoes atd-micas ligadas entre clas por relagoes orientadas, redes cuja profundidade e complexi-dade nao s3o sujeitas a nenhum iimite formal". P. Plante, obra citada.

REFERENCES CRONO-BIBLIOGRAFICAS

Sobre AD-1:Re vista Langages n2 11, 13, 23.M.Pecheux, Analyse Automatique du Discours, Dunod, 1969.

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Sobre AD-3:Mat&rialites Discursives, Pul, 1981.P.Plante, Le systetne de programmation Deredec, no prelo.

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