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GUARDIÃO DE MEMÓRIAS Prestes a completar 90 anos, o artista pernambucano Francisco Brennand tem seus diários reunidos em livro, que será lançado este mês. Aqui, o pintor e escultor com fama de recluso abre as portas de seu universo fantástico para a Vogue e conta como a literatura e as mulheres são as peças-chaves de sua vida e obra POR ANA CAROLINA RALSTON FOTO JORGE BISPO Marianna Brennand Fortes e seu tio-avô Francisco Brennand na oficina do artista, em Recife

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Page 1: POR FOTO GUARDIÃO DE MEMÓRIAS - Editora Globoeditora.globo.com/premios/assets/vogue_guardiaode... · a personagens da mitologia grega quanto a monstros medievais – seres imaginários,

GUARDIÃO DE MEMÓRIAS

Prestes a completar 90 anos, o artista pernambucano

Francisco Brennand tem seus diários

reunidos em livro, que será lançado este

mês. Aqui, o pintor e escultor com fama

de recluso abre as portas de seu universo

fantástico para a Vogue e conta como a literatura e as mulheres

são as peças-chaves de sua vida e obra

POR ANA CAROLINA RALSTON FOTO JORGE BISPO

Marianna Brennand Fortes e seu tio-avô Francisco Brennand na oficina do artista, em Recife

Page 2: POR FOTO GUARDIÃO DE MEMÓRIAS - Editora Globoeditora.globo.com/premios/assets/vogue_guardiaode... · a personagens da mitologia grega quanto a monstros medievais – seres imaginários,

A20 minutos de carro do agitado centro de Recife, entramos em uma estra-da de terra que nos coloca em meio à densa mata que acompanha o rio Capibaribe. Bastam poucos quilô-metros para que a floresta se abra e deixe à mostra galpões construídos em 1917 e enormes esculturas de ce-râmica que podem nos remeter tanto a personagens da mitologia grega

quanto a monstros medievais – seres imaginários, boa parte deles com forte carga sexual. Quem nos recebe na porta des-se universo fantástico criado pelo pernambucano Francisco Brennand é sua sobrinha-neta Marianna Brennand Fortes, autora de um premiado documentário que conta a trajetória do artista, lançado em 2012. À frente da produtora e editora Inquietude, a brasiliense radicada no Rio realiza este mês o grande sonho do tio-avô: publicar, com ele ainda em vida, os diários que Brennand escreve há mais de meio século.

O artista, que completa 90 anos em junho próximo, nos espera em seu amplo ateliê, em um dos galpões da oficina – uma antiga olaria fundada por seu pai, transformada em museu a céu aberto por ele em 1971. Hoje, em seu espaço par-ticular de trabalho, cavaletes e pincéis estão quase submer-sos entre dezenas de estantes de livros que sobem até o teto. Já na entrada, avisto em sua escrivaninha um exemplar do recém-lançado romance do escritor britânico Ian McEwan – derrubando de cara a ideia de que a idade avançada e o isolamento em que vive desde os anos 70 o tenham deixado habitar em um universo paralelo. “Atualmente, também as-sisto a The Walking Dead”, dispara ele, referindo-se à série da Fox, febre atual entre os jovens, que fala sobre zumbis. Essa ânsia pelo saber, chamada de “antropofagia brennaniana”

pelo curador Paulo Herkenhoff na introdução dos diários, é o que o torna mais que um grande artista – é também um dos maiores intelectuais brasileiros de seu tempo. “Ariano Suassuna batizou nosso trio [formado por Brennand, a primeira mulher do escultor, Deborah, e o escritor] de Aca-demia dos Emparedados, porque, apesar de passarmos dias discutindo seu destino, o mundo nos ignorava”, brinca ele, relembrando saudosamente o grande amigo, morto em 2014.

Mesmo conversando com desenvoltura sobre assuntos que vão da moda (“ela nos dá a noção de tempo”) às eleições nos Estados Unidos, fica claro que a grande amante de sua arte sempre foi a literatura. “A leitura é um vício tão forte quanto o ópio ou a cocaína. Eu não conseguiria viver sem ela”, diz. São os romances, as biografias, os poemas e contos que leu durante a vida que servem de fio condutor para as 2.000 páginas, divididas em quatro tomos, que compõem o belíssimo Diário de Francisco Brennand (R$ 100). “Na adoles-cência, descobri que grandes pintores como Van Gogh, Paul Gauguin e Eugène Delacroix eram ávidos escritores. Assim, aos 20 anos, achei que poderia fazer o mesmo e decidi co-meçar a escrever minhas memórias.”

E Brennand não parou mais. Na publicação, podemos acompanhar suas impressões sobre o clássico Guerra e Paz, de Leon Tolstoi, a bordo do navio que levou os recém-casados Francisco e Deborah – a quem ele dedica todos os volumes – do Rio a Paris, em 1949. Lá, seu grande padrinho profissional, o pintor (também pernambucano) Cícero Dias, o aguardava, levando o jovem artista ao encontro de mestres da efer-vescente cena da capital francesa de então, como Fernand Léger, Balthus e Picabia (de quem Brennand chegou a alugar um antigo ateliê), que influenciaram sua obra a partir daí.

Também fazem parte dos diários histórias de amantes do artista, fictícias ou não, responsáveis por grande parte do

“As formas de nossos órgãos sexuais não me escandalizam. Acho a aparência das nossas

ORELHAS muito mais perturbadora, e ninguém fala delas. Fato é que essa sexualidade transbordante

está ligada diretamente à reprodução. E ela é a verdadeira chave para a ETERNIDADE.

Com isso, me sinto anistiado em trazer o tema tanto nos meus escritos quanto em minha obra”

O artista em seu ateliê, entre as telas inéditas

que expõe este mês no Espaço Brennand,

no bairro de Boa Viagem, em Recife

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teor sensual de seu trabalho como pintor e, depois, escultor. Entre elas, a jovem modelo Fenícia, mãe de uma de suas filhas, Helena Viktória. “Tudo começou como começam todos os amantes. Os equívocos se transformando em cer-tezas para logo depois emergirem como dúvidas”, escreve Brennand sobre a modelo. São muitas as passagens em que o artista descreve os encontros que teve no ateliê com mulheres que se dispunham a posar para suas telas e que terminavam em sua cama. “A casadinha veio ao meu ateliê e como todas as outras acabou deitada nua sobre o divã”, escreve ele, sobre uma delas. Ao perguntar sobre a influência do sexo em seu trabalho, ele dispara: “As formas de nossos ór-gãos sexuais não me escandalizam. Acho a aparência das nossas orelhas muito mais perturbadora, e ninguém fala delas.Fato é que essa sexualida-de transbordante está l igada dire-tamente à reprodução. E ela é a verdadeira chave para a eternidade. Com isso, me sinto anistiado em trazer o tema tanto nos meus escritos quanto em minha obra.”

Outro ponto alto de seus diários é a descoberta da ce-râmica como suporte artístico, que aconteceu em uma exposição de Picasso, durante a temporada em Paris no

fim dos anos 40. “Fiquei maravilhado e ao mesmo tempo humilhado. Como é que uma pessoa nascida dentro desse universo como eu passou 22 anos ignorando essa admi-rável forma de expressão?”, escreve ele. Afinal, Brennand cresceu dentro da antiga olaria do pai. “Eu e meus irmãos sempre tivemos uma fixação com esse lugar. Foi aqui que vivemos alguns dos melhores momentos da nossa infân-

cia”, conta o artista. Depois de instalar seu ateliê ali na

década de 70, ele dedicou os anos se-guintes à produção das gigantescas es-culturas que se espalham hoje pelos mais de 15 mil m² de área construída do espaço, que conta ainda com um fabuloso jardim projetado pelo pai-sagista Burle Marx. E o artista segue até hoje em plena produção. Este mês, além da caixa com seus diários, inaugu-ra em Recife uma exposição no Espaço Brennand, no bairro de Boa Viagem,

com 20 pinturas inéditas de paisagens, todas feitas este ano e inspiradas na obra do pintor alemão Caspar David Friedrich. “Agora, no fim da vida, me volto novamente à pintura, minha primeira expressão artística. Ter diários de uma vida e obras inéditas sendo lançadas no mesmo mês é maravilhoso. O que mais posso querer?”

“A LEITURA é um vício tão forte quanto o ópio ou a COCAÍNA. Eu não conseguiria VIVER

sem ela”

Brennand no jardim da oficina, que tem projeto

assinado pelo paisagista Burle Marx. Na página ao lado,

detalhes do ateliê do artista, com pinturas e os cadernos

originais que deram origem ao Diário de Francisco Brennand