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DILMA DE MELO SILVA POR ENTRE AS DÓRCADES ENCANTADAS: OS BIJAGÓ DA GUINÉ-BISSAU C o l e ç ã o ÁFRICA Centro de Estudos Africanos APOIO

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DILMA DE MELO SILVA

POR ENTRE AS DÓRCADESENCANTADAS:

OS BIJAGÓ DA GUINÉ-BISSAU

C o l e ç ã oÁ F R I C A

Centro de Estudos Africanos

APOIO

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copyright © by DILMA DE MELO SILVA, 2000

Nenhuma parte desta publicação pode ser gravada,armazenada em sistemas eletrônicos, fotocopiada,

reproduzida por meios mecânicos ou outros quaisquersem a autorização prévia da editora e da autora.

2ª impressão

Direção editorial: Liana Maria Salvia TrindadeProjeto gráfico e editoração: Raimundo Lopes Pereira

Capa: Lyara ApostólicoTiragem: 1.000 exemplares

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Silva, Dilma de MeloPor entre as Dórcades encantadas : os Bijagó da

Guiné-Bissau / Dilma de Melo Silva. -- São Paulo :Terceira Margem, 2000.

1. Bijagó (Povo africano) - Condições sociais2. Bijagó (Povo africano) - Estudo de casos 3. Bijagó(Povo africano) - Usos e costumes 4. Etnologia -Guiné-Bissau 5. Guiné-Bissau - História 6. Pesca -Arquipélago dos Bijagó I. Título

ISBN: 85-87769-03-0

00-0626CDD-966.57

Índices para catálogo sistemático:1. Bijagó : Guiné-Bissau : História 966.57

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As Dórcades passamos, povoados das irmãsque outro tempo ali viviamque, de vista total sendo privadas,Todas três dum só olho se serviam.

Tu, só tu, cujas tranças encrespadasNeptuno já nas águas acendiamTornada já de todas a mais feia,De víboras encheste a ardente areia.

(Camões, OS LUSÍADAS)

Tudo o que conhece é uma parte de tudo.PROVÉRBIO AFRICANO

À memória de Amilcar Cabral,combatente da liberdade e fundadorda nacionalidade guineense e cabo-verdiana

Aos amigos Bijagós, não citando nomes,pois o que importa é a satisfação de quemdá e o reconhecimento de quem recebe.Indjram.

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S U M Á R I O

APRESENTAÇÃO ...................................................... 7

INTRODUÇÃO .......................................................... 9Os Bijagó .............................................................. 17Pressupostos teóricos ............................................ 20O trabalho de campo ............................................. 26

O PALCO DOS ACONTECIMENTOS..................... 31Dados básicos sobre a Guiné-Bissau ..................... 33Os portugueses entram em cena ............................ 34Colonização portuguesa ........................................ 35Administração colonial ......................................... 37A luta da libertação ............................................... 40Situação pós-independência do país ...................... 45A ajuda externa ..................................................... 48

POR ENTRE AS DÓRCADES ENCANTADAS ...... 53O isolamento geográfico ....................................... 55A sobrevivência e a natureza da sobrevivência ...... 55O homem, a mulher, o grupo ................................. 68As categorias da idade ........................................... 69As categorias masculinas ...................................... 70As categorias femininas: a iniciação após a morte . 77As relações entre os sexos ..................................... 81Os irans protetores ................................................ 83A habitação bijagó ................................................ 87Odjoco ou Cadjoco?.............................................. 90

VENTOS SOPRAM DO CONTINENTE.................. 99

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De Bissau, outras idéias, outros modelos ................ 101Cooperantes europeus organizam o trabalho ........ 108Máquinas, motores, melhor cultura ..................... 113E o arroz, como obtê-lo? ..................................... 116Novos conceitos de felicidade ............................. 119Cooperação ou competição ................................. 123

BOMBOLOM RESSOA PELOS ARES ................. 125Casas, quadradas, notícias ao amanhecer ............. 127Mais transporte, mais sociabilidade ..................... 128Come-se bem ou come-se menos?....................... 130As palmeiras irão secar ....................................... 132Nas praias ensolaradas sopram aragens adversas . 133A família vai à praça: primeiro o homem,depois a mulher ................................................... 135Novos tempos, novos rumos? .............................. 137

BIBLIOGRAFIA .................................................... 145

GLOSSÁRIO .......................................................... 159

ANEXOS................................................................ 165Cronologia da Luta da Libertação ........................ 167Mitos, lendas e narrativas Bijagó ......................... 171

A chuva de Oraga ............................................ 171O quinca Pampa .............................................. 171Não há lugar para amizades ............................. 172A invulnerabilidade de Numocantécontra os guerreiros Bijagó .............................. 173Ocanto: mulher bijagó ..................................... 174

Descripção das ilhas dos Bijagó eseus ritos e costumes ........................................... 179

MAPAS E FOTOS .................................................. 185

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OS BIJAGÓ DA GUINÉ-BISSAU 7

A P R E S E N T A Ç Ã O

A Editora Terceira Margem tem a honra de incluir emsua Coleção África, a publicação da professora Dilma deMelo Silva, “Por entre as Dórcades encantadas: os Bijagóda Guiné-Bissau”.

A Coleção África, com o apoio do Centro deEstudos Africanos, USP (CEA), tem como propósitodivulgar junto a um público mais amplo, textos sobre aÁfrica, que por várias razões, permanecem restritos aouniverso da Academia.

Tradição e modernidade em oposição, complemen-tação e contradição constitui a lógica atual da dinâmicados povos africanos sul-americanos e caribenhos.

Neste trabalho a autora detém-se sobre o processode mundialização/globalização/ocidentalização em cursono Continente Africano, no qual tradição/modernidadesão esferas complementares e conflitantes, e, a presençado “outro”, do europeu (nesse caso) é o introdutor demudanças estruturais. O movimento decorrente da“modernização” assemelha-se a uma dança de caótica, comum passo à frente e dois à atrás.

Este trabalho perpassa pela repercussão da expansãocapitalista dentro do cotidiano de uma etnia guineense,indicando como as raízes da africanidade se abalam, ante asinovações do capital estrangeiro, por se fixarem no solo deuma lógica produtiva não-capitalista.

Para nosso universo cultural, resultante do longoprocesso de transculturação e de simbiose com a vertenteafricana, tais informações se revestem de suma importância,

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na medida em que propiciam ao leitor o conhecimento sobreuma realidade desconhecida.

Nada, ou quase nada sabemos sobre África, a nãoser por estudos de autores africanos e africanistascomprometidos com a cultura africana, que estamosdivulgando.

No estudo, a autora aponta que a “MissãoCivilizadora” do capital estrangeiro, conduz a penetraçãode um “estilo ocidental de vida” que age como umfermento precipitando alterações e forçando a emergênciade novos estilos de vida.

Contudo, muitos dos valores civilizatórios africanospermanecem pulsantes nas culturas latino-americanas,somos o que somos, por não sermos o retrato docolonizador, mas por termos vivas em nossas culturaspresenças afro-americanas visíveis em nosso cotidiano,em nossas crenças, visões da realidade, imaginário eexpressões artísticas.

Pretendemos assim, propiciar um conhecimentomais aprofundado sobre a realidade africana para umreconhecimento de tais supervivências culturais em nossopaís.

Liana Trindade

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I N T R O D U Ç Ã O

O estudo do processo de transformação ocorridodentro de um dos grupos étnicos da Guiné-Bissau, a partirde um projeto de desenvolvimento da pesca, apresenta-se como um estudo de caso que poderá contribuir comsubsídios para o estudo da transformação social, aindaem curso, em inúmeros países africanos, no processo deglobalização atual.

Muitos cientistas sociais têm estudado essa questão,com diferentes abordagens e pressupostos. Somente a par-tir de Balandier (1969) é que a variável colonialismo/neo-colonialismo foi introduzida e a situação contemporânea,em África, colocada como resultante do período colonial.

Na expansão da produção capitalista, os paísesfornecedores de matéria-prima, ou de trabalhadoresescravizados, tornaram-se, num momento seguinte, paísesdependentes das ex-metrópoles. Galtung (1977) coloca aquestão em termos explícitos: países hegemônicoscontrolam os países periféricos, estabelecendo um sistemade relações harmônicas de interesse entre o centro e aperiferia em cada um desses países.

Inovações econômicas são introduzidas nos paísesrecém-emergentes no cenário mundial contemporâneo,com a implantação de tecnologias mais avançadas. Nesseprocesso de alteração estrutural, novas formas de pensar,e de viver, assim como outros valores são introduzidos,uma vez que a economia não se dá no vazio. Inúmerosingredientes são difundidos no processo: justificação dolucro e do acúmulo de riquezas, exaltação de incentivos

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proporcionados pelo individualismo, legitimação da ação ourelação baseada no interesse, justificação da apropriação,valorização da conceituação das instituições, surgimento dacompetição como elemento dinâmico norteador das ações,entre outros.

No estudo desse processo, autores como Dumont(1980), Ziégler (1980), Schwartz (1982), Tevéodjéré(1982) escrevem sobre a realidade africana de hoje,focalizando como as transformações econômicas trazemdesigualdades crescentes com efeitos irreversíveis no seiodas populações atingidas. Nas estruturas comunitárias,introduz-se um fermento que precipita a desintegraçãoda ordem e organização social vigentes, propiciando aemergência de novos estilos de vida.

Esses estudos intensificaram-se a partir da décadade 60, com a emergência no cenário internacional de novosEstados africanos, com a independência das ex-colôniaseuropéias. Esses novos países são classificados pelasNações Unidas por meio de índices euro-americanos;parâmetros estatísticos são estabelecidos rotulando, dessemodo, uns como ricos, desenvolvidos e, outros, comopobres, subdesenvolvidos. E, a partir desses índices sãoelaboradas teorias e estratégias pelas quais torna-senecessário introduzir novas formas de produção quepermitam o desenvolvimento; na visão desta perspectiva,o desenvolvimento é encarado como sinônimo de cresci-mento econômico, capaz de melhorar as condições sociaise culturais, integrando as comunidades locais na Nação.

Para efetivar esses propósitos, estabelece-se, emnível internacional, uma ajuda para permitir aos paísesrecém-libertados superarem sua pobreza: os paísesemergentes continuam a ser encarados como incapazes

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de sair sozinhos do seu estado de não-desenvolvimento.Assim, as ex-metrópoles, criadoras da pobreza nascolônias, se dispõem a ajudar para que essa mesmapobreza desapareça. Para isso, enviam especialistas,equipamentos, planos, capital; estudos preliminares sãoelaborados, estratégias e metodologias são estabelecidas,tudo conforme o modelo do país de origem dos técnicos.O subdesenvolvimento é encarado como etapa natural emesmo necessária na vida desses países.

Na década de 70, o número de especialistas emdesenvolvimento aumenta, assim como o número decolóquios, conferências, ciclos de estudo, debates, teses,publicações. Nas universidades criam-se cursos deespecialização, centros de pesquisa recebem financia-mentos, formam-se mais especialistas que buscamtrabalho junto às fundações, às Nações Unidas, àsorganizações privadas. Tudo em nome de um desejáveldesenvolvimento dos países pobres. E esse desen-volvimento passa a ser aceito de forma indiscutível comoa nova religião dos tempos contemporâneos que, aliadoao mito do progresso, se opõe à tradição.

Muitos autores apoiam-se, ainda, na formulação doesquema dual da sociedade vista como tendo dois eixosopostos complementares: o moderno e o tradicional. Aíteríamos as dicotomias: campo/cidade, desenvolvido/subdesenvolvido, fundamentadas na idéia de progresso,de que existe necessariamente uma evolução natural: doimperfeito para o perfeito, do simples para o complexo,do inculto para o culto; a idéia do progresso materialinerente à naturezahumana, que é encarada comoperfectível visando um ideal acima dela, que a superariasempre. Existem etapas sucessivas, pois existe uma lei, a

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lei do progresso, em direção a um estágio superior. Temosinúmeros exemplos na bibliografia sociológica queexplicam a passagem de uma estrutura para outra e osmomentos de transição. Haveria pois, um momentoinferior a ser superado e um superior a ser buscado.

Assim, até 1960, com algumas exceções, comoDumont, é o que vemos na literatura sobre África; asexplicações são dadas desse ponto de vista. O pensamentoantropológico que se forma, surge com o viés doetnocentrismo. O centro do pensamento se localiza naEuropa, logo, de lá é que provém e deve ser disseminadaa verdade, o conhecimento. Essa teoria se articula noevolucionismo, segundo o qual uma lei dirige ahumanidade: aplicação da lei de Darwin, lei do mais apto.Assim, os mais aptos vencem e se impõem. As sociedadesdiferentes das européias são descritas como estáticas;viveriam numa harmonia, num equilíbrio, sem conflitosou tensões. Os fatores externos é que explicariam toda equalquer mudança.

Conforme afirma Copans (1974), ao criticar aantropologia e etnologia coloniais, tanto inglesa quantofrancesa, havia uma negação de toda dimensão históricadas sociedades africanas e essas escolas se adaptavam àsituação colonial.

A partir da década de 60, surge outra preocupação,a de colocar o objeto de estudo, África, dentro do contextode formação do capitalismo; assim, a partir das análisesdas mutações ocorridas, Balandier elabora um método deapreensão das realidades africanas, restituindo a Históriaàs sociedades analisadas, buscando a dinâmica social sobsua dupla figura: du dedans e dehors. Surge oreconhecimento de que existem diversos dinamismos

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sociais, que devem ser levados em conta, e essa nova posturalevou a uma crítica também das posições científicas maiscomuns e generalizadas nas ciências sociais. Balandier propõea construção de uma sociologia e de uma antropologiadinâmicas a partir do estudo empírico dos problemassuscitados pelas tentativas de modernização dassociedades pré-desenvolvidas. O que se busca é aapreensão da dinâmica das estruturas e toda sociedade évista como campo de uma luta interna entre os mecanismosde direção. Assim, todo estudo deve ser feito em função dossistemas de relações internacionais, num exame da dialéticada tradição e da modernidade. A sociedade passa a serconsiderada como formação heterogênea, e não como formamorta, devendo ser vista em função de sua dinâmica, seumovimento próprio. Balandier (1976) propõe inúmerasrevisões, não somente de teorias, conceitos, métodosconcebidos em função, principalmente, de sociedadesindustriais, como também uma renovação do pensamentosocial.

A partir dessa proposição, acentua-se um esquemade explicação elaborado através de uma visão estruturaldas relações internacionais, mostrando a distribuiçãodesigual de poder entre os Estados, mostrando tambémque além dos limites do campo político e econômico, háum campo de valores, com a elaboração de um modelo euma forma de conceber a vida em sociedades.

A formação do centro, nos países centrais, levou àformação simultânea de países periféricos, que tiveramsua história interrompida, seccionada, alterada – no casoafricano 22 milhões de pessoas foram de lá retiradas paraviverem como trabalhadores escravizados na América.Isso representou uma sangria que até hoje não se refez.

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Há uma totalidade, a do capitalismo hoje, que se impõenas economias periféricas, não globalizadas. O importantenão são os fatores, mas a totalidade; há um desenvolvimento

Além do aspecto demográfico populacional, houve tambéma alteração de suas economias, a partir do século XIX, coma instituição dos impostos, essas nações foram obrigadas ase monetarizar para pagá-los. Diferentes cultivos para aexportação foram introduzidas, obrigando as populações ase organizarem a partir de pressões vindas pela violência defora. Dentro das comunidades, formam-se grupos aliados aoscolonialistas que oprimem.

Assim, como afirma Galtung:

a idéia básica é que o Centro tem uma cabeça de pontena nação periférica e um ponto estratégico: o centrona nação Periferia. Isto é feito de forma a amarrar ocentro da Periferia ao centro do Centro de forma maissegura: atuando pela harmonia de interesse.

centroCentro

periferia

centroPeriferia

periferia

harmonia de interessedesarmonia de interesse

Centro

Periferia

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desigual, diferenciado no processo de globalização/mundialização. Existe, segundo Wallerstein (1974: 152-153),uma economia-mundo, nesse império mundial, asinfraestruturas organizam-se diferentemente em cada formaçãosocial e, óbvio, as superestruturas políticas e culturais tambémsão diferenciadas. Há desigualdade crescente e sempre seobserva: sub-consumo e super-produção, tanto no centrocomo na periferia.

A perspectiva do sistema mundial repousa sobre ahipótese, explícita ou implícita, de que o mundo modernocompreende um mundo econômico único, capitalista,emergente do processo histórico depois do século XVI,existente até nossos dias, que gestou e impôs tesesevolucionistas e desenvolvimentistas.

Aqueles que se dispõem a estudar o problema dastransformações, e os efeitos sociais dentro das comunida-des envolvidas, defrontam-se com o seguintes modelosde explicação:

1. Um paradigma que justifica as desigualdades,pois vê o país não desenvolvido como atrasado, compopulações primitivas, portadoras de tecnologia pobre,elementar, não criadora de excedentes. Para sair dessasituação é imprescindível a introdução de técnicasevoluídas, vindas de fora, dos países desenvolvidos, ouseja, industrializados.

Muitos economistas que se apoiam nesse esquemametodológico de análise, como Kamarck, analisando aseconomias africanas, propõem soluções:

Com a expansão da economia monetária, os indivíduospodem preparar uma margem de segurança para si

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próprios , pondo de parte um certo valor permanentena forma de dinheiro, e podem viver separados dacomunidade. Podem transpor o limiar da segurança,planejar o futuro, e trabalhar com o fito em objetivospara lá da mera sobrevivência do dia a dia. Istoacontece agora por toda a África. A sede cada vezmais espalhada de instrução, e a disposição dos paispara suportarem grandes sacrifícios para que os filhosse instruam, é outra indicação de que os africanosestão a transpor este limiar e a perder o passivofatalismo do passado. (KAMARCK, 1972: 63).

No prefácio do livro citado, o continente africano éapontado como sendo aquele em que o subdesenvol-vimento se encontra em estado puro e, para sair do círculovicioso da subsistência, é essencial a ajuda dos paísesindustrializados. Afirma-se: A África tem grandenecessidade do auxílio do ocidente, e não apenas empessoal; tem também de absorver, dos países ocidentais,as línguas e, em grande parte, as filosofias destes.(KAMARCK, 1972: 16) (negrito nosso)

2. No segundo paradigma referencial vemos aquestão tratada por uma outra perspectiva, a distribuiçãoassimétrica de poder é levada em conta, assim como agestão da ordem mundial, pondo em relevo a mística dodesenvolvimento, uma modernidade de segunda mão,como diz Schwartz, adaptada para as exigências docapitalismo, com a proposta de projetos de modernização,de melhoria das instituições, burocratização das empresase do aparelho do Estado, expansão do neo-liberalismo.

Nesses projetos elaborados de fora, nos paíseshegemônicos, observa-se um total desconhecimento darealidade social, onde tais projetos irão atuar. Ou, havendo

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esse conhecimento, ele não é levado em conta, uma vez quese transforma em obstáculo à implantação das novasatividades.

As culturas enquadradas nesses projetos sãoencaradas como exóticas e não como portadoras de outravisão de mundo, de um quadro de valores articulados emoutras bases, com singularidades próprias. Como afirmaRuy Coelho, as formas da razão são várias e nãoconstituem apanágio de nosso pensamento arrogante,imperialista e ocidental.

No estudo dessas t ransformações torna-seindispensável um estudo diferencial das formações sociaisque se articulam sob outros princípios. Isso pode nos levara rever as idéias etnocêntricas surgidas na formação docapitalismo e da ideologia justificadora do colonialis-moe do neo-colonialismo Somente assim poderemos pensarum modelo econômico alternativo, numa solução auto-sustentável que permita um verdadeiro expandir depotenciais próprios e não simples transferências demodelos exógenos.

Os Bijagó

No que se refere ao grupo em questão, os Bijagó, aliteratura sobre os mesmos é bastante limitada, sendo quea maior parte trata-se de trabalhos etnográficos do períodocolonial, realizados por funcionários, chefes de posto,administradores do governo português, com viésetnocêntrico visível às primeiras linhas.

Nessas publicações são ressaltadas as intenções dasautoridades coloniais de conhecer o funcionamento dasinstituições indígenas das colônias, para uma dominação

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mais eficiente, para se evitarem erros ou exageros cometidospor desconhecimento da organização familiar daspopulações (CARREIRA, 1959).

O objeto das descrições etnográficas do períodocolonial mostrava o grupo desta forma:

Os habitantes do arquipélago do mesmo nome são osmais puros de raça, os mais limpos de cruzamentos,de índole belicosa, gostam da vida do mar (p. 59)...Os Bijagó, mais próximos da animalidade que osindígenas do continente, por motivo do isolamento emque a sua insularidade os tem mantido, praticam umaespécie de politeísmo animalista, que se reflete em suasdanças (p. 60) ...a vida é licenciosa antes do casamentoque só tem lugar nos 25/30 anos. Práticas abortivas eanti-conceptivas defendem as raparigas solteiras daprocriação ilegítima. O prestígio da mulher é nitida-mente superior àquele de que gozam as mulheres deoutras tribos, o que explica uma espécie dematriarcado na constituição e regime familiar (p. 61).

Os textos sugerem um cenário de bárbarie, de caos,irresponsabilidade, ignorância e promiscuidade. Asinstituições societárias nativas explicam-se num viésetnocêntrico: por exemplo, quanto à poligamia, deve-seà excessiva sexualidade do negro (CARREIRA, 1959);quanto à divisão do trabalho, conhecemos a sua índolemanifestadamente preguiçosa (MARQUES, 1955).

A produção colonial focaliza o grupo Bijagó domesmo modo que os demais indígenas da Guiné. Umacategoria sócio-política surgida num processo de articu-lação consciente de teoria e prática. Amilcar Cabral(1977), em seus trabalhos, analisa o Estatuto dos Indíge-nas, mostrando como eram definidos pelos portugueses:

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Indivíduos de raça negra ou seus descendentes quenão possuem o nível e os hábitos individuais e sociaisconsiderados indispensáveis para a aplicação integraldo direito político e privado dos cidadãos portugueses(CABRAL, 1977: 80).

Os trabalhos etnográficos visavam fornecer infor-mações sobre os grupos étnicos aos órgãos controladoresdo regime colonial e se vinculavam à premissa básica deque o negro africano era um ser primitivo, pré-lógico,portador de superstições e praticante de irracionalidadesreligiosas e os Bijagó, considerados como não-civiliza-dos, aos quais os portugueses deviam civilizar e mesmoaportuguesar (LIMA, 1974).

A ótica portuguesa nunca os encarou como porta-dores de cultura própria, de uma visão de mundo, comum quadro de valores perfeitamente articulados em outrosreferenciais. Isso traduz um pensamento alheio à realidadenegro-africana e, sem dúvida, do grupo em questão.

Durante o período colonial, os Bijagó eram vistoscomo belicosos por promoverem lutas constantes comoutras etnias. O fato é que resistiram à penetração portu-guesa, enfrentando com armas próprias os invasores e tam-bém as tentativas de dominação de outros grupos islamiza-dos – mandingas e fulas – aliados dos portugueses.

Acreditamos que, mesmo depois da independênciado país, os Bijagó continuam pouco conhecidos, devidoà inexistência de estudos sobre os mesmos. Um dos maisimportantes trabalhos sobre a cosmologia do grupo, foiescrito por Scantamburlo (1977), mas publicado fora daGuiné e, ainda, em inglês, dificultando a difusão dessadissertação de Mestrado com dados sobre Bubaque. Em1983 Danielle Duquette publica excelente trabalho, em

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francês, sobre a Arte Bijagó. Nesse mesmo ano, LadislauDowbor publica uma reflexão sobre a busca daindependência econômica por parte da Guiné, nação livre.

Desse modo, nossa intenção é a de contribuir comalguns subsídios para o estudo dos impactos produzidosdentro do grupo a partir de uma transformação introduzidano setor pesqueiro e fazer uma reflexão sobre o papel docientista social na elaboração das estratégias de atuaçãomodernizadoras.

Acreditamos, como afirma Whrigt Mills, que osociólogo/antropólogo pode se converter em interlocutordo grupo estudado e, concluído seu trabalho, o cientistasocial deva dirigi-lo:

a) aos poderosos, para mostrar a responsabilidadede suas decisões, ou carência delas;

b) aos que desconhecem as conseqüências de suasações;

c) aos dominados, para ajudá-los a compreenderas implicações das relações desiguais de podere informar-lhes sobre as ações dos poderosos.

Pressupostos teóricos

Partimos do pressuposto básico de que uma inova-ção introduzida no nível da economia leve a alteraçõesem outros níveis da estrutura e organização sociais; isso,sem a adoção da tese simplista do determinismo econô-mico, deixando de lado outras determinações, mas apre-endendo o papel, em última instância, decisivo das trans-formações econômicas como fator de dinâmica social.

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Observamos, a partir de nosso trabalho de campo, queum tipo de inovação, representada por um projeto de desen-volvimento do setor pesqueiro, produziu – e continua produ-zindo – impactos não esperados inicialmente, por ocasião daelaboração do referido projeto.

Nesse sentido, os trabalhos de Galtung (1977) eSchwartz (1983) nos oferecem análises de como os efeitosperversos1, não pensados pelos idealizadores de estratégia,objetivos e metas, surgem, em vários países onde seintroduzem projetos de desenvolvimento econômico.

Galtung (1975), em sua análise de um projeto –também de pesca – em Kerala, Índia, conclui que, emboraos objetivos estabelecidos inicialmente pretendessem:

a) melhoria do nível de vida da população enqua-drada;

b) melhoria das condições de saúde e sanitária;

o que ocorreu foi o inverso, pois os benefícios da ajudanorueguesa aumentaram o abismo entre ricos e pobres naregião. Entre outros, Galtung aponta a introdução dotrabalho assalariado, ocasionando a exploração antesinexistente. E conclui que, apesar do aumento da capturade pescado, houve uma diminuição do consumo deproteína animal, no plano dos produtores e suas famílias,pois essa captura se destina à exportação e não ao mercado

1. Efeitos perversos, segundo Schwartz, significam as conseqüências nãoesperadas de ações intencionais.

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local e nacional. Em sua análise mostra que a alteraçãointroduzida dentro das atividades econômicas obedecia aoseguinte esquema:

O ponto de saída é a natureza (N), neste caso, oOceano. Os produtores (P) são pescadores em suas canoasde madeira. Com seus métodos antigos e instrumentossimples, obtêm uma captura baixa. A produção é levadapara terra e escoada até os consumidores (K), dos quaismuitos são os próprios produtores. O que sobra édevolvido à natureza. Nesse ciclo, não se pode falar deesgotamento de recursos, há um balanço ecológico enenhuma alienação: todos sabiam de onde vinham as coisas,e para onde iam. O pescador era a um só tempo: produtor/distribuidor/consumidor.

Com o projeto de Kerala, pôs-se em ação umaestrutura diferente, com uma dinâmica própria quesobrepassa aquilo que as pessoas possam mobilizar quantoà sua defesa. Ocorre uma expansão do ciclo econômicopara muito além dos limites da aldeia, para o plano global(internacional) em termos de natureza, do produtor e doconsumidor. O quadro agora se amplia:

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Aparentemente, trata-se da introdução de umaeconomia de escala e que as relações são as mesmas.Contudo, as relações antigas foram solapadas e agora sãoqualitativamente diferentes.

Com a introdução do projeto de Kerala, ospescadores passam a ser profissionais a bordo deembarcações de aço ou fibra de vidro; esses novosprodutores não aprenderam com os mais velhos, com asgerações dos antepassados, e sim, jovens que receberamoutros ensinamentos, seguiram cursos e sabem o queninguém sabia antes na aldeia. Quanto ao consumidor,não é o mesmo que antes. E, aqui, temos um ponto crucial,que apresenta três fases:

a) Na primeira fase, há grande intensidade decapital e pesquisa, com menos intensidade detrabalho, tornou-se necessário encontrar ummodo de conservar o pescado e isso encareceu opreço do produto. Os preços subiram de 200 a300% e, com isso, muitos deixam de consumirpeixe.

b) Na segunda fase, tratou-se de encontrar consu-midores para esse pescado. Mas a elite não come

Desenvolvimento – expansão do ciclo econômico

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peixe e sim camarão ou caranguejo. Assim, intro-duz-se uma tecnologia cara para a captura dessescrustáceos, o que torna o produto ainda mais caro.Os produtores já não são os consumidores do ex-terior, do Japão, EUA, Europa. O mercado inter-nacional vai consumir essa produção ampliada.

c) Na terceira fase, o consumo vai determinar econtrolar a produção. São construídas fábricaspara congelar camarão e a maioria da população,nas aldeias, trabalha como assalariado, comsalários irrisórios.

Quanto à exploração dos recursos, sabe-se que sepesca mais com métodos melhores e mais perfeitos, maso consumo de peixe não aumentou nas aldeias, depois de20 anos de ajuda, desse projeto.

O que se observa é que, com a introdução dessaeconomia de escala, tornam-se necessários centros deadministração, de finança e de pesquisa, que não selocalizam nos locais do projeto, nas aldeias, mas noscentros urbanos.

Um outro fator que deve ser levado em conta, foi omodo pelo qual o projeto foi concebido: o que é bompara a Noruega é bom para Kerala. A tecnologiatransferida para a Índia era a mais atual em termos daindústria pesqueira escandinava. E, assim, também tudoo que foi concebido em termos de financiamento epesquisa. As decisões tomadas pelos administradoresindianos e noruegueses em Nova Delhi saíam de pessoasque falavam a mesma língua, o inglês, e comungavam omesmo respeito pela cultura e civilização européias. O

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diálogo entre eles era mais fácil do que com os pescadoresmalayalam, com sua língua própria, seus padrõesconceituais, cultura local, incompreensíveis para ostécnicos que ali estavam praticamente como turistas.

E Galtung (1979: 185) conclui: esse processo criao desenvolvimento no centro, pois envolve experiênciapara projetos em outros locais do mundo. E criou tambémnovos tipos de dependência, nos quais o centro se fortaleceem detrimento da periferia.

Após 20 anos de ajuda norueguesa, houve umaumento de 40% na captura, aumento da exportação depescado; os botes tradicionais desapareceram. Todas asavaliações sobre o projeto sempre enfatizam a perspectivageral do centro, sem nenhuma palavra sobre os objetivossociais, quais sejam: igualdade, auto-gestão, auto-subsistência,auto-desenvolvimento.

Schwartz (1983) também estuda os efeitos perversosem seus trabalhos sobre o Zaire, mostrando como camadasda população podem ser feridas no processo de introduçãode inovações na produção. Em vez de um desenvolvimento,diz ele, o que ocorre é um envelopment, uma aparência demudança, em que são consumidos os símbolos do moderno.E esse processo, nessa captação das migalhas doprogresso branco, também se observa a miséria damaioria e conclui: a modernidade das sociedadesafricanas se faz no caos, na incoerência de condutasindividuais e coletivas.

Balandier nos oferece uma contribuição para aapreensão e entendimento da dialética tradição-modernidade, elucidando que não são entidades separadase absolutas, mas se envolvem numa totalidade contraditória e

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ambígua, que não se parecem em nada com as categoriasmonolíticas dos principais paradigmas do desenvolvimentointernacional. Afirma que são conjuntos co-ocorrentes,sendo necessário buscarmos a dinâmica das chamadassociedades tradicionais, pois a situação atual é deincontestável complexidade, coexistindo a tradição e omoderno, com a permanência de uma estrutura advinda dosespaços específicos da vida comunitária e uma outra estruturaelaborando-se a partir das propostas do Estado que seorganiza. Essas sociedades são portadoras de muitospossíveis, devendo o cientista social buscar captar essedinamismo capaz de fazer surgir novas configurações quetrazem consigo mudanças de natureza estrutural.

Galtung, Balandier e Schwartz são os autores nos quaisnos amparamos no que se refere aos fundamentos teóricos emetodológicos para estudarmos as transformações por quepassam os Bijagó da Guiné-Bissau.

O trabalho de campo

O trabalho de campo foi efetuado em diversaspermanências na Guiné-Bissau, nas ilhas do arquipélagodos Bijagó, nas décadas de 70 e 80, que nos permitiu umacoleta de material etnográfico sobre o grupo e umconhecimento inicial da situação geral do país. Isso nospropiciou começar a conhecer o que são e como vierama ser o que são, quer dizer, a situação interna dentro dogrupo e as forças atuantes vindas de fora. O dedans e o dehors na expressão de Balandier.

Durante esse período e convívio diário, tivemosoportunidade de conhecer todas as aldeias da ilha de

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Bubaque2 e algumas das ilhas do arquipélago: Soga, Canogo,Rubane, Orangozinho e Cabanhaque.

A coleta de dados deu-se através da utilização dediferentes técnicas disponíveis no âmbito das ciênciassociais, não nos atendo a um respeito rigoroso para comas fronteiras entre antropologia/sociologia. Essedesrespeito para com os limites disciplinares ocorreu apartir de uma exigência de apreensão global da realidadeanalisada, combinando as orientações do sociólogo e doantropólogo.

A técnica mais empregada foi, sem dúvida, a ob-servação participante, devido à possibilidade de poder-mos permanecer nas aldeias do arquipélago dos Bijagó.Foram feitas, também, inúmeras entrevistas com infor-mantes escolhidos em Bissau, capital do país; nos Comi-tês de Estado da região – órgão que constitui a autoridademáxima do governo na área estudada – tivemos oportu-nidade de consultar documentação, estatísticas, etc...

A opção por um estudo de caso, ou seja, de umúnico projeto de desenvolvimento, propiciou-nos oaprofundamento numa única situação visando oconhecimento de situações particulares dentro de umgrupo étnico.

Esse mergulho num único caso, talvez nos possafazer entender e contribuir para o estudo desse processode transformações ocorridas em inúmeros paísesafricanos.

A primeira hipótese norteadora do trabalho consisteem demonstrar que ao receber a ajuda internacional

2. Ver mapa.

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através da instalação de um projeto de desenvolvimento dapesca, o grupo recebedor passa a integrar um setor muitomais amplo do espaço social externo, alcançando Bissau e omercado internacional. E, internamente, uma transformaçãona estrutura organizacional do grupo poderá ocorrer. Assim,os indivíduos antes hierarquizados por critérios de prestígioadvindos da idade, passam a se estratificar por critérios deposse de bens. Dentro do grupo poderá surgir um novo tipode hierarquização de indivíduos, numa emergência, a longoprazo, de classes, desigualdades, no sentido capitalista.

Subseqüentemente ao aparecimento dessa nova formade hierarquização dos indivíduos, intensifica-se o confrontoexistente entre jovens e velhos, devido à subordinação dosprimeiros aos segundos. O enfrentamento das idades se agrava,uma vez que os mais velhos resistem às inovações e os jovensse integram mais rapidamente a elas.

Desse conflito surge, pois, uma situação de crise:resistências por parte dos velhos aos planos, metas,objetivos, etc, do projeto de desenvolvimento da pesca.Daí surge nossa hipótese subsequente.

As elites dirigentes e os responsáveis estrangeirospela execução da ajuda, certamente, irão recorrer aotrabalho de cientistas sociais – antropólogos ou sociólogos– para que se ponham em prática ações eficazes, ou seja,para que esses profissionais busquem as causas e apontemas soluções para o problema da resistência às inovações .Assim, a antropologia e a sociologia seriam solicitadaspara umA produção de conhecimento que é também umaintervenção da realidade. Qual seria a posição dessesprofissionais que devem atuar em dois níveis dentro daaldeia: buscando a aliança dos velhos, para que os mesmosautorizem as ações a serem efetivadas e ajudando os

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jovens, para que fortaleçam sua posição de enfrentamento ede oposição junto aos velhos a favor das inovações. Nessesentido, pensamos que o discurso das ciências sociais poderávir a ser a justificativa para a expansão da economia demercado, a consolidação da dependência e do neo-colonialismo, do neo-liberalismo, do mesmo modo que foramas justificativas para o colonialismo no século passado e nasdécadas iniciais do século XX.

Sabemos que o grupo não vive num isolamentototal, mas se insere dentro de uma nação que se faz, quebusca caminhos e soluções aos problemas do período pós-libertação; sabemos que há uma reivindicação de umamodernidade e que segmentos da população na Capital,Bissau, já vivem dentro desse outro tipo de vida. Assim,acreditamos que deverá haver uma nova síntese, umasimbiose entre o tradicional e o moderno, na qual,conforme pensava Cabral (1977), o homem novo africanonão será a negação total da tradição mas haverá umareabilitação dos valores das civilizações negro-africanas.

A versão original deste trabalho foi apresentada eaprovada, como tese de doutoramento junto a Faculdadede Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidadede São Paulo sob a orientação do prof. dr. Ruy Galvão deAndrada Coelho, em 1984, tendo como banca examinadora:

– Fábio Leite– João Baptista B. Pereira– Milton Santos– Pasquale Petrone

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O PALCO DOSACONTECIMENTOS

Como a Guiné-Bissau poderia sobreviverNas águas do capitalismo internacional

Em busca de seu próprio caminho?

Quem de nós não sabe que essa canoinhapode ser engolida pelo oceano em

qualquer momento?

Mas, quem não tem esperança de que suatravessia tenha sucesso, e quem não se

sente comovido pela tentativa?(Dowbor, 1983:25)

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Dados básicos sobre a Guiné-Bissau

A Guiné-Bissau é um pequeno país, com área de36.125 Km², situado na costa ocidental da África, limitadoao norte pelo Senegal e ao sul e leste pela República da Guiné-Conakry. A extensão de suas fronteiras é de 865 Km, dosquais 705 terrestres e 160 marítimos. Excluindo-se os terrenoscobertos periodicamente pelas marés, a superfície do paíspassa a ser apenas 28.000 Km². O território compõe-se deuma parte continental e de uma parte insular, formada pelasilhas do arquipélago dos Bijagó, a ilha de Bolama, a ilha dePecixe e outras ilhotas.

De acordo com dados do primeiro censo geral dapopulação feito após a independência, a população guineenseé de 777.214 habitantes, com uma densidade de 21,51 hab.por Km².

O país é constituído por diversas etnias, que implicamvariedade cultural e lingüística. As diversidades étnicasconstituem também uma diversificação em termos deorganização social e econômica. Os dados sobre a distribuiçãodas principais etnias ainda não foram totalmente elaborados,mas, conforme o censo de 1950, ter-se-ia:

EtniasBalantasFulasManjacosMandingasPapéisMancanhasBeafadasBijagó

Populações160.296108.40271.71268.75236.34116.30011.58110.332

Percentagem31,5%21,3%14,0%13,6%7,2%3,3%2,3%2,0%

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Os portugueses entram em cena

A África, muitas vezes, é referida como não tendonenhuma história antes da chegada dos europeus(KIZERBO, 1982: 50); desse modo, a história se iniciariacom a descoberta desse continente pelos portugueses, noperíodo de sua expansão marítima.

Contudo, estudos recentes de arqueologia e lingüística,entre outros, comprovam ter havido inúmeras populações ecivilizações que possuíam sua própria dinâmica de vida, muitoantes de ali terem aportado os europeus.

Inúmeros povos viviam na região da costa da Guiné,antes de 1446, quando Nuno Tristão ali chegou pela primeiravez. A tradição oral desses povos narra feitos e epopéias detempos longínquos, quando foram obrigados a se deslocarempara o litoral fugindo à expansão islâmica (século XII).

Os mandingas islamizados, vieram do Mali e seestabeleceram em Gabu, exercendo autoridade em nome doMansa do Mali. Entre os séculos VII e XVIII os mandingasdominaram todo o interior guineense e forçaram os outrosgrupos a se deslocar para o litoral. Entre os Beafadas e osNalus existem relatos que mantêm viva a memória de suafuga para o Oeste, buscando esquivar-se à islamizaçãopretendida pelos mandingas.

Essas etnias do litoral sofreram, no período anterior aocolonialismo, pressões dos Mandingas e dos Fulas vindos do

EtniasFelupesBaiotesNalusOutros

Populações8.1674.3733.0099.715

Percentagem1,6%0,8%0,6%1,8%

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interior, com outro tipo de religião e organização social,baseadas no islamismo.

Após 1446, Lisboa concede a comerciantes omonopólio de navegação e comércio entre o Rio Senegal e aSerra Leoa e assim a região ficou dominada pela ação doslançados (comerciantes), havendo um governo único paraGuiné-Bissau e Cabo Verde (PAIGC, 1974: 51).

Em 1630, foi criada a capitania-mor da Cacheu,que comportava entre 200 e 300 habitantes, quase todosmestiços, um governador, um padre e um convento com4 frades (PAIGC, 1974). Com a criação, em 1692, dacapitania de Bissau, Portugal procurou dotar o territóriode est rutura administ rativa para fazer frente àsdificuldades causadas pelos desentendimentos entrecomerciantes e nações estrangeiras, que procuravamfixar-se e traficar na região – franceses e ingleses. Em1870, após a sentença proferida por Ulisses Grant,presidente dos Estados Unidos, foi reconhecido o direitode Portugal à posse da ilha de Bolama, contestado pelaInglaterra. Em 1879, a Guiné separou-se da provínciade Cabo Verde e nomeou seu primeiro governador,Augusto Coelho, iniciando-se a moderna história daGuiné. Após a conferência de Berlim, em 1884/1885,Portugal firmou um acordo com a França e manteve seudomínio sobre a região (PAIGC, 1974: 74).

Colonização portuguesa

Durante os vários anos de colonização, entre os séculosXV e XVIII, a presença dos portugueses limitou-se aosentrepostos comerciais, não havendo nenhuma preocupaçãoem colonizar e fixar a população no local, como ocorreu em

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Cabo Verde, Angola, Moçambique e no Brasil. Por meiodesses entrepostos, efetivava-se o comércio de gruposescravizados no chamado comércio triangular (PAIGC,1974: 75): Europa, África, América. Desse período surgiramas Companhias de Comércio das Índias Ocidentais e ÍndiasOrientais, que recebiam ajuda dos reis em seus países deorigem. País não industrializado, Portugal nada tinha a exportarpara a África e o seu comércio baseava-se no monopólio daCompanhia de Cacheu e Cabo Verde, e depois no daCompanhia do Grão-Pará e Maranhão – que tambémexplorava as costas brasileiras. No final do século XVIII einício do século XIX, o pacto colonial foi abolido com aexpansão do capitalismo europeu. O comércio escravocratadeclinou, sendo a escravidão abolida nas diversas colôniaseuropéias. A partir daí, surgiu um maior interesse pelapenetração no interior do país, tendo início então a conquistado território.

Começou assim a nova colonização portuguesa, quepassou a comercializar produtos locais, óleo de palma, azeitede dendê, coconote, semente de dendê e introduziu a culturado amendoim, através da Companhia União Fabril (CUF)3,que também controlava os transportes pela filial, Gouveia.Para obter recursos para administrar e manter as tropasdestinadas à ocupação, o governo português instituiu direitosde alfândega e criou impostos.

3. A Companhia União Fabril (CUF) foi criada no início do século XX, emPortugal, associada a outras empresas da Alemanha Ocidental, França eEstados Unidos.

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Carreira (1959: 7), se refere à:

instituição do regime tributário regular destinado aassegurar o funcionamento da máquina administra-tiva, e acrescenta: a criação de obrigações de cará-ter fiscal impeliram os naturais ao cultivo de gênerosde exportação (amendoim) ou aproveitamento da pal-meira (coconote, óleo de palma), concorrendo parauma profunda modificação da economia rural, so-bretudo no tocante a gêneros alimentícios.

De 1913 a 1915, Portugal levou a efeito a pacificaçãodo território guineense, ou seja, a submissão definitiva de todoo interior do país, através de tropas militares comandadaspelo Capitão Teixeira Pinto (PAIGC, 1974), que estabeleceua ocupação através de postos permanentes comadministradores portugueses e forças armadas4.

Contra os Bijagó citam-se expedições militares emCanhabaque, 1900, e em Formosa, 1904, que prosseguiramem 1917 e 1981 e, posteriormente, em 1924 e 1936 (PAIGC,1974: 103). O recurso ao pagamento do imposto exigidopelos portugueses foi a causa da maioria das revoltas queprovocaram estas expedições.

Administração colonial

Portugal instituiu um aparelho de serviços deadministração colonial para exercer sua dominação política e

4. Essa submissão definitiva das regiões guineenses foi efetuada através depilhagens, massacres e destruição de aldeias. Os crimes e abusos cometidospelo Capitão Teixeira Pinto levaram ao seu afastamento em 1915 peloMinistro das Colônias que ordena a instalação de uma Comissão deInquérito.

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conseqüente exploração econômica. Em 1911, é criado umMinistério das Colônias, cuja Constituição estabelece que naadministração das províncias ultramarinas predominaráo regime da descentralização, com leis especiais de acordocom o estado de civilização de cada uma (CABRAL, 1976:79). Em 1914, a população das colônias ficou submetida aum estatuto especial, que cria a condição de indígena. Assim,de acordo com esse Estatuto, são considerados indígenas:

(...) os indivíduos de raça negra, os seus descendentesque (...) não possuem ainda o nível é os hábitos indi-viduais e sociais considerados indispensáveis para aaplicação integral do direito público e privado doscidadãos portugueses (p. 80).

Para adquirir esses direitos, o indígena deveria serassimilado, ou seja, obter os hábitos civilizados, aprendendoa língua, sendo alfabetizado, exercendo profissão, tendo bomcomportamento e não sendo desertor.

Em toda a Guiné não se concediam direitos políticosaos africanos, mesmo no domínio das suas própriasinstituições, pois o exercício desses direitos estava subordinadoaos interesses da soberania portuguesa imposta pela forçadas armas.

Esse Estatuto, por seu artigo 12, define o indígena,que não é homem, constituindo uma nova categoria sócio-política, criada pelas necessidades da colonização portuguesa.Para exemplificar citamos alguns trechos do mesmo:

a) ao indígena é destinado um ensino especial;b) não lhe é permitido mudar de residência, sem

prévia autorização

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c) não pode eleger, investir, depor nem reintegraros chefes tradicionais, sem aprovação daadministração;

d) não tem direito de seguir seus usos e costumesse forem considerados incompatíveis com oexercício da soberania portuguesa;

e) as penas de prisão podem ser substituídas portrabalho obrigatório.

De acordo com o Estatuto do Indígena, apenas 0,3%da população era considerada assimilada; assim, o restanterepresentava apenas mão-de-obra para o trabalho forçado.

A situação antes da independência, conforme relatóriode administradores (1941), confirma que o país era uma dasregiões mais pobres de toda a África. Quanto à educação,havia uma única escola secundária em Bissau, com 37 alunos.O total da população escolar representava 1.602 alunos,assim distribuídos:

brancos............................................... 95mistos ................................................. 405negros ................................................ 1.103

A rede de estradas totalizava 3.300 km, dos quais 60km eram vias pavimentadas e 1.400 km de estradas de terra,picadas ou caminhos.

No setor econômico, o produto básico para vendaexterna era o amendoim, responsável por 50% da exportaçãototal, de 30.000 toneladas anuais. Também eram exportadosóleo de palma e coconete, produzindo-se complementarmente

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arroz, milho, mandioca, cana, batata e frutas, ao mesmo tempoque se explorava madeira, aproveitando as florestas existentes(PAICG, 1974: 128).

Na área da saúde, na capital da colônia havia umhospital militar e um hospital civil, sendo comuns as doençasendêmicas (malária, filária, e doença do sono), como tambémera comum a subnutrição por carência alimentar.

Durante todo o período colonial a política portuguesaesteve direcionada apenas para a exploração rudimentar deprodutos agrícolas; Dantas(1999) aponta para uma únicaexceção:o projeto de valorização hidráulica e hidro-agrícolano Rio Corubal em 1950, apresentado em 1960, mas quenão foi implementado, provavelmente, afirma ele, por causado início da Luta Armada de Libertação.

A luta de libertação

Após a Segunda Guerra Mundial, começaram a surgir,por toda a África, os primeiros movimentos pelaindependência nacional, e os povos das colônias portuguesasmostraram-se sensíveis às transformações do pós-guerra. EmAngola, Moçambique, Cabo Verde e Guiné surgemmanifestações visando a libertação.

Não foi por acaso que esses movimentos, que seconstituíram em organizações políticas para dirigir a luta,surgiram na mesma ocasião. Além das condições político-econômicas da África, para qualquer análise histórica doperíodo, temos que pensar na natureza e característicassemelhantes da dominação fascista do governo português,nas colônias e na metrópole, e seus métodos de exploração.

Desde 1926, com a instauração do fascismo salazaristaem Portugal, a exploração das colônias africanas se faz com

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empresas capitalistas inglesas, francesas, americanas, alemãs.E foi graças ao apoio dessas potências que Salazar se manteveno poder após a Segunda Guerra Mundial. A situação emPortugal era péssima: 46% da população era analfabeta,imperando a miséria e a opressão, com a censura e a PIDEencarregando-se de calar qualquer esboço de protesto5.

Nas décadas de 20 e 30, começam a surgir em jornaise outras publicações da metrópole, denúncias de abusos earbitrariedades praticadas por autoridades coloniais. Aomesmo tempo, vão aparecendo nas colônias, associaçõeslegais de tipo cultural e recreativo que divulgam valoresafricanos.

Nas décadas de 40 e 50, fundam-se diversasassociações de jovens e estudantes das colônias portuguesas:Casa da África Portuguesa, Casa dos Estudantes doImpério, Centro de Estudos Africanos, Clube Marítimo;em 1960, criou-se uma organização unitária dos estudantessob a denominação UGEAN – União Geral dos Estudantesda África Negra.

Na Guiné, o processo se intensificou com a fundação,em Bissau, em 1956, do Partido Africano da Independênciada Guiné e Cabo Verde – PAIGC - que se constituiu eminstrumento eficaz para a mobilização e luta contra ocolonialismo português. Nas outras colônias ocorrem açõessemelhantes. Em Angola é criado o MPLA – MovimentoPopular para a Libertação de Angola; em Moçambique, aFrente de Libertação de Moçambique – FRELIMO, em 1962.

5. A Polícia Internacional e Defesa do Estado – PIDE –, na década de 70passou a ser Direção Geral de Segurança. DSG

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Após a criação do PAICG, a luta contra a dominaçãocolonial passa por várias fases, desde a atividade clandestina– de 1956 a 1963 – até a luta armada, com a libertaçãopaulatina de várias áreas do território guineense6. Nessa faseos portugueses intensificaram as ações repressivas, aumentamseu contingente e, em 3 de agosto de 1959, ocorre o massacrede marinheiros e trabalhadores no cais de Pidjiguiti, porto deBissau. Dessa data em diante, o PAIGC adota a estratégiade mobilização das populações do interior e as ações deguerrilha.

A realização do Primeiro Congresso do Partido, em1964, em Cassacá, demonstra a força de organização dosdirigentes do PAIGC, que efetivam uma reestruturação dopróprio Partido e uma sistemática de atuação nas regiões dopaís sob seu controle, livres do jugo colonial.

Nas regiões libertadas, o PAIGC conseguiu pôr emprática um sistema de auto-gestão nas tabancas, mobilizandoas energias sociais para a defesa dos interesses nacionais.Com essa finalidade, surgem estruturas para cuidar da saúde,educação, comercialização, etc. Para todas essas atividades,o Partido necessita de quadros com preparação adequada,assim, jovens são enviados ao exterior, a países amigos, ou àEscola Piloto de Conakry e à Escola Teranga, em Zinguinchor,países vizinhos – Guiné e Senegal. Consegue instalar 164escolas, com 14.531 alunos e 258 professores. Sãoigualmente organizadas as Forças Armadas Revolucionáriasdo Povo – FARP.

6. Vide anexo.

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Desde o primeiro momento, destacou-se a figura dogrande líder Amilcar Cabral, que sistematizou, desde o início,as bases para a luta contra os portugueses. Atuando tambémno plano internacional, ele denuncia o que ocorre no país;participa da 163ª. Sessão do Conselho de Segurança dasNações Unidas, em 1972, realizada na Etiópia, e pede à ONUque envie à Guiné uma delegação para conhecer a realidadedo país e a disposição da população em livrar-se docolonialismo (PAIGC, 1974).

As denúncias são confirmadas e a opinião públicainternacional é inteirada da destruição, por bombardeios denapalm, de tabancas inteiras; campos de arroz, queimadospor lança-chamas; pessoas e rebanhos, mortos, sem piedade;portos destruídos; fios telegráficos cortados. O exércitoportuguês atinge o número de 45.000 homens, para umapopulação guineense menor que um milhão de habitantes, umaproporção de 1 para 20 (no Vietnam os americanos tinhamuma relação de 1 para 50 e recebiam apoio logístico eestratégico da OTAN).

A 20 de janeiro de 1973, na República de Conakry, olíder Amilcar Cabral foi assassinado, em circunstânciascontrovertidas, por mercenários a serviço da PIDE(YGNATIEV, 1975). Em 24 de setembro do mesmo anoreuniu-se, em Boé, a Assembléia Nacional Popular, queproclamou a independência.

Em Bissau, nasceu o Movimento dos Capitães que,convertido no Movimento das Forças Armadas, derrubou ofascismo português a 25 de abril de 1974 (PAIGC, 1979).Ainda nesse ano, a 26 de agosto, Portugal assinou oreconhecimento da independência do novo país.

O Estado Guineense, reconhecido por vários países,passou a fazer parte das Nações Unidas e, na política externa,

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optou pelo não-alinhamento, o que permite receber ajudaexterna de fontes socialistas (países do Leste, Rússia e China)e países capitalistas (da Europa, Escandinávia); no TerceiroCongresso, em Novembro de 1977, o Partido Africano daIndependência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC) definiu-sepor uma Democracia Nacional Revolucionária, capaz de:

a) liquidar a dominação colonial;

b) criar as bases indispensáveis para a construção deuma vida nova para o povo da Guiné;

c) construir a paz, o bem-estar e o progresso contínuodo povo.

No Relatório desse 3° Congresso, firma-se, comoobjetivo, alicerçar a economia no setor agrícola, orientandoa industrialização de modo a satisfazer as necessidades daagricultura.

Em 1980 ocorre uma enorme carência alimentar,devido a prolongadas secas, sucessivas desde 1977, etambém devido às dificuldades do governo em pôr em práticauma política agrária capaz de superar esses problemas. Assim,em 14 de novembro de 1980, o Presidente Luís Cabral éafastado, tomando o poder o primeiro Ministro JoãoBernardo Vieira, conhecido como Nino, que dissolve oConselho de Estado e a Assembléia Popular e rompe a unidadecom Cabo Verde.

Nino acusa o governo anterior de Luís Cabral de terabandonado o projeto socialista de Amilcar Cabral e prometeinverter a situação, conforme se pôde ler em suas declaraçõesno jornal “No Pintcha”, dias após. E, passa a enfrentar osmesmos dilemas que o seu antecessor frente a um governode um país pequeno, deixado arrasado e ainda mais pobre

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após a guerra colonial, com enorme dependência da ajudaexterna.

O regime de partido único, adotado pelo PAIGC, deixade vigorar em 1994, legalizando-se a existência de partidospolíticos;são realizadas eleições e o PAIGC vence o pleito,com maioria absoluta, formando a nova Assembleia NacionalPopular.

Em 1998, aflora nova crise, com veiculação de notíciade que haveria acordo secreto entre os presidentes Nino Vieirae Abdou Diouf, do Senagal, visando a manutenção de Ninono poder, com apoio militar senegalês; a sociedade civil semobiliza e a Guiné entra no noticiário internacional devido àviolência da repressão e dos conflitos desencadeados; ochefe do estado Maior das Forças Armadas é acusado detráfico de armas; é afastado e, dias depois, encabeça revolta,com apoio popular, depõe Nino Vieira que ficara 18 anos nopoder.

As condições de vida difíceis da população têmpersistido nos anos pós -independência, apesar dos inúmerosprojetos e programas de desenvolvimento implementados; apopulação teve algum crescimento, a migração para a Capital,Bissau, fez com que a expansão urbana aumentasseexpressivamente, devido, também, aos problemas dedegradação do sistema organizacional das comunidades.

Situação pós-independência do país

A herança colonial persiste anos após a independência;a cultura imposta, do amendoim, levou ao desgaste de terrasem muitas regiões; grandes extensões de terra foraminutilizadas por bombardeios; houve grande dispersão dapopulação, que emigrou para países vizinhos em busca de

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segurança; as bolonhas7 foram destruídas pelas bombas; asestradas, minadas e o rebanho dizimado.

Conforme afirma Dowbor (1977: 2): ”o país foitornado pobre durante o período colonial, tendo umrendimento anual de menos de 150 dólares por habitante”e a principal característica da estrutura sócio-econômicaconsiste no fato de que 87% da população vivem numaeconomia não monetária, assim repartidos nos vários setoresde atividade:

– setor primário: 87,8% (agrícola e extrativo)– setor secundário: 3,2% (industrial)– setor terciário: 9,0% (serviços públicos e privados,

seguros) (DOWBOR, 1977:76)

As vias de comunicação entre a capital e o campo sãoinsuficientes e precárias; restaram poucas pontes, ficando-sena dependência de balsas para cruzar os inúmeros rios quecortam o território.

Além dessa situação econômica, dividindo o país emdois setores diferenciados – capital e interior – há que seconsiderar as elevadas taxas de analfabetismo. Taxas oficiaisindicam a existência de 90% de iletrados; contudo, temosque levar em conta as populações islamizadas – 34,9% - quelêem e escrevem árabe (fulas e mendingas).

No que se refere à produção energética, existemgeradores movidos a óleo diesel na capital e nas cidades maispopulosas (Gabu, Bafatá, Farim, Canchungo, Bissorã) e

7. Ver glossário em anexo, sobre as bolanhas, nome crioulo para as planta-ções de arroz em alagados.

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outras pequenas localidades, nas quais esses equipamentos,muitas vezes, permanecem desativados por falta de peças ede combustível.

No setor de saúde, as carências continuam enormes,pois existem poucos hospitais em Bissau e no interior.

Com todos esses problemas, seja qual for o Partidono poder, enfrentam-se inúmeras dificuldades em coordenaras atividades e iniciativas para levar a cabo planos integradosde sustentabilidade regional (DOWBOR, 1980).

Nesse pretendido desenvolvimento poderá ocorrerum reforço das desigualdades internas, favorecendo cada vezmais a melhoria da Capital em detrimento ao interior,principalmente se, como Dowbor ressalta: dominar umaeconomia de mercado; o que se vê é a orientação dapolítica de investimentos, concentrar mais em Bissau emvez de levar o desenvolvimento ao interior, reforçou essatendência (DOWBOR, 1980: 12).

Em vez de se tornar o instrumento mobilizador doconjunto do país, Bissau continuou, em grande parte,representando o seu velho papel de escoador do produto doesforço camponês, buscando ainda na ajuda estrangeiraum nível de vida urbana que as suas capacidadesprodutivas próprias não permitiriam.

O Estado enfrenta problemas de financiamento ea ajuda externa torna-se importante, traduzindo-se soba forma de inúmeros projetos de desenvolvimento, quesão elaborados fora, na Europa e nos EUA, baseadosnos cr it ér ios e ensinamentos da economia dodesenvolvimento, que nada mais é que uma adaptaçãoda ciência econômica dos países desenvolvidos nospaíses onde o fundamental é a formação de infra-estrutura e de estruturas produtivas.

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Segundo essa perspectiva, é preciso enfrentar asbarreiras de uma fraca produtividade no interior e tambémde uma fraca e quase inexistente monetarização. Esses doisfatores estão interligados: uma baixa produtividade, dada afalta de equipamentos modernos, impede a criação deexcedentes e rendimentos mais elevados, impedindo tambéma monetarização da economia, pois não há quase nada acomercializar, ou seja, a produção dentro da economia não-monetária, de auto suficiência, baseia-se em outra lógica, quenão a capitalista.

De acordo com especialistas, é necessário elaborarestratégias para romper com o círculo da pobreza, para pôrem ação um processo de transformação, de ruptura, levandoàs populações impulsos, estímulos, saltos, incentivos paramodificar a forma de produção, implantando-se a economiamonetária, entendida como uma forma de produção na qualem vez de produzir os bens que lhe são pessoalmentenecessários, cada trabalhador produz um só produto parao mercado, vende-o diretamente, ou vende sua força detrabalho como assalariado e com o dinheiro obtidocompra os bens que lhe são necessários para seu consumoe o de sua família (DOWBOR, 1980).

A ajuda externa

A situação financeira do país, pós independênciapolítica, mostrava-se deficiente, pois o Estado dispunha dereceitas insuficientes tendo de recorrer a financiamentoexterno que, segundo Dowbor (1980), em vez de constituiro impulso inicial do desenvolvimento, constitui cada vezmais o eixo vital da economia, colocando o país numasituação difícil de dependência. E ele acrescenta:

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à medida que a situação interna e externa foi-setornando mais difícil, o governo viu-se forçado arecorrer cada vez mais a empréstimos, em condiçõescada vez mais desfavoráveis, levando o país à situaçãoque hoje enfrenta, de uma dívida da ordem de 150milhões de dólares, que exige pagamentos anuais queultrapassam 10 milhões de dólares.A ajuda externa recebida pela Guiné-Bissau a títulode donativo encontra-se hesitante. Os organismos quefornecem ajuda desse tipo orientam-se por critériosde utilidade real dos fundos fornecidos, em termos damelhoria das condições de vida e de produção daspopulações. O fato de grande parte da ajuda ter sidoorientada para projetos não prioritários, que nãomelhoram as condições de vida das populações,prejudicou fortemente o acesso às fontes definanciamento.

Nesse quadro da ajuda internacional, da necessidadedo financiamento para a instalação de projetos, é inevitável aconclusão de que essa ajuda venha a reforçar a situação dedependência. Alguns autores referem-se à indústria daajuda, que na verdade beneficia os países doadores que seutilizam desse comércio direcional centro/periferia parafortalecer o sistema atual da divisão das nações no planointernacional (DOWBOR, 1980: 42).

Autores como René Dumont (1980), Jean Ziegler(1980), Alf Schwartz (1983), N’Dongo (1976) têm escritosobre o assunto, focalizando a reformulação dos laços dedependência, concluindo que a cooperação oferecida pelasantigas metrópoles (ou pelas Nações Unidas) nada mais fazque acentuar uma desigualdade cada vez maior nos planoseconômico, político, militar, cultural e jurídico.

A ajuda externa, ao se concretizar, faz-se através deum projeto de ação junto às populações enquadradas pelo

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programa de atividades. Muitas críticas têm sido levantadasaos projetos de desenvolvimento, chamando a atenção parao fato de as pessoas atingidas serem consideradas comodestinatárias passivas do dinheiro a elas destinado e não selevar em conta a estrutura e a organização do grupo(BORDENAVE, 1983).

Essa ajuda, em vez de solucionar os problemas que osespecialistas acreditam existirem, cria outros problemasnas tabancas, uma vez que introduz necessidades novas, antesinexistentes, que precisam ser satisfeitas.

Bordenave (1983) elabora uma tipologia de atuaçãopara se atingir o desenvolvimento, classificando os projetosem diferentes modelos:

a) o difusionismo, que supõe uma transferência etecnologia, através de agentes de mudança ecampanhas para a aceitação de novas idéias;

b) o modelo de pacotes, que além de difundir técnicas,oferece também um pacote de serviços, com umaestratégia integrada de pesquisa, extensão,informação, comercialização, mercado e crédito.Esse modelo surgiu após a constatação dadeficiência infra-estrutural do país que recebe ajuda.

(Nos dois modelos, é o Estado quem assume aresponsabilidade pela promoção dos esforços paraa atuação dos agentes de mudança).

c) o modelo de inovação induzida pelo mercado, queencara o mecanismo de mercado como sendo oprincipal fator, o determinante das direções que to-marão as inovações;

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d) o modelo de organização/ participação, que surgiuapós a constatação da necessidade de participa-ção das populações no estabelecimento das políti-cas e das ações. Isso porque, segundo Bordenave,na maioria das vezes os projetos são formuladosnum verticalismo de tecnocratas aliados às classesempresariais e às empresas multinacionais que ig-noram as populações atingidas;

e) o modelo de transformação estrutural, que encarao desenvolvimento como processo político culturalde transformação radical e global, e não apenascomo alterações técnico-econômicas. Nesse mo-delo, a meta final é a de colocar o Estado a serviçoreal de toda a população.

Na realidade, contudo, o que se constata é que asformas de cooperação não passam de novas formas depenetração, uma vez que os projetos de desenvolvimentovoltados para o comércio exterior podem tornar todo oprocesso de desenvolvimento dependente de decisõesexternas ao país, comprometendo-o totalmente. Isto é tãomais verdadeiro e tão mais preocupante, do ponto de vistados países periféricos, quando se verifica que os própriosdirigentes desses países passam a ser pressionados porimposições de alinhamento aos blocos hegemônicos.

Vale lembrar que a Guiné-Bissau conquista suaindependência num contexto internacional em que a Á fricaestava polarizada entre dois extremos:os países com inclinaçãosocialista e os com tendência capitalista; e a escolha pelaprimeira opção deu-se, como afirmamos, durante os anos daLuta de Libertação, uma vez que Portugal tinha apoio daOTAN.

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No final da década de 80, ao terminar a chamadaGuerra Fria, tal opção repercutiu muito na situação do país,conforme afirma Dantas (1999), ter havido um esforço paraimpulsionar o país, com tentativas de mecanização agrícola,monetarização do setor rural, liberalização econômica edinamização do setor agrário; aponta, ainda, para umatentativa de reorganização do mundo rural com amultiplicação dos agrupamentos de base dos pequenosagricultores tradicionais e associações de ponteirosprofissionais.

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POR ENTRE ASDÓRCADES ENCANTADAS

Do alto de uma colina vês um vulto na estradaao longe e dizes: É um homem. Quando estámais perto de ti, dizes: Pelo modo de vestir,é alguém de nossa província. Quando está ameio do caminho, dizes: Parece-me ser um

homem da minha aldeia. Quando o encaras,finalmente, vês que é teu irmão.

(Coelho, 1981: IX)

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Os BIJAGÓS DA GUINÉ-BISSAU:Subsídios para o estudo do processo de trans-formação da economia tradicional e suas re-percussões na realidade sócio-cultural

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O isolamento geográfico

O grupo étnico Bijagó vive no arquipélago que leva oseu nome, em dezenove ilhas habitadas e inúmeras outrasocupadas apenas durante a estação das chuvas para o plantiodo arroz; as Dórcades Encantadas, como as denominouCamões em Os Lusíadas.

Essas ilhas fazem parte da região administrativa deBolama, tendo dois setores: Bubaque e Caravela. Situam-seentre 10°45’ e 11°35’ de latitude norte e 15°35’e 16°30’delongitude oeste, na costa ocidental da Guiné-Bissau, em águasdo Atlântico. As principais ilhas são: Bubaque, Canhabaque,Canogo, Caravela, Caraxe, Eguba, Formosa, Galinhas, Maio,Meneque, Orango-Grande, Orangozinho, Ponta, Rubane,Uno, Unhocomo, Unchocomozinho, Uracane.

A localização geográfica das ilhas condiciona acomunicação entre elas e o continente. São de difícilnavegação, com bancos de areia movediça que exigemextrema perícia e conhecimento por parte das tripulações dasembarcações que por ali navegam. Existem correntesmarítimas que cortam as águas do chão dos Bijagó, massendo necessário muita perícia para encontrá-las, por entreos bancos, e navegar com segurança.

A sobrevivência na naturezae a natureza da sobrevivência

Para podermos apreender as transformações queocorrem dentro do grupo, faz-se necessário conhecer ascondições nas quais funcionavam anteriormente. Nãopretendemos efetuar uma descrição etnográfica minuciosa,mas apenas indicar certos elementos significativos para

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podermos perceber os efeitos perversos de modernização– os impactos desestruturadores causados dentro dogrupo – que não tinham sido concebidos inicialmente.

A estrutura social dos Bijagó está centrada na tabanca– designação em crioulo para aldeia – que é uma unidade deprodução autônoma em relação às demais da mesma ilha.Na ilha de Bubaque existem 11 aldeamentos, totalizando2.133 habitantes assim distribuídos:

Tabancas População

Bijante 447Ancadona 83Ancabas 36Anhimango 58Brusse 283Bijama 42Agumpa 109Amabanha 69Etimbato 92Ancamona 133Tcharo 63Bubaque (sede) 718 8

A população total das ilhas atinge a 10.332 habitantes,2% da população total do país, (DOWBOR, 1980: 63).Vivem nas tabancas de 100 a 200 pessoas em média, divididaspor categorias de idade e sistema clânico de 4 gerações:Oraga, Orácuma, Ogubane e Ominca.

Cada tabanca tem a proteção de uma dessas gerações,ou seja, dos ancestrais desse clã, que se supõe tenham sido

8. Fonte: Comitê de Estado do Setor de Bubaque; dados obtidos em dezembrode 1977.

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os primeiros a chegar naquele local, tendo feito primeiramenteo pacto com a terra, isto é, o estabelecimento de regras eprocedimentos para a manipulação da terra, consideradacomo sagrada, necessitando de atos propiciatórios para suautilização. Essa geração é considerada a dona do chão9, delasaindo os indivíduos (homens e mulheres) que lideram aspráticas políticas e religiosas.

A compreensão da estrutura e organização dos Bijagó,como uma realidade africana diversa, obriga-nos a repensaras relações entre homem e natureza a partir de valorescivilizatórios próprios, pelos quais universo, vida, natureza esociedade estão simbolicamente envolvidos. Assim, um doselementos imprescindíveis, para podermos entender como ogrupo se relaciona com a Natureza, refere-se à noção deforça vital. Alguns autores já estudaram esse princípio, entreeles Tempels (1965), Zahan (1970), Leite (1983) e Trindade(1981), que analisando diferentes grupos concluem sobre aconcepção da existência de uma energia inerente aos seresque faz configurar o ser-força ou força-ser, não havendoseparação possível entre as duas instâncias que, dessaforma, constituem uma única realidade. Leite (1983)afirma:

Um aspecto que demonstra ser, a força-vitalinstrumento ligado à estruturação da realidadeconsubstancia-se na figura do pré-existente, que étomado como fonte mais primordial dessa energia,dela servindo-se para engendrada a ordem naturaltotal dentro de situações diferenciais, isto é, referidas

9. A geração dona do chão conhecendo os segredos, as palavras, detém opoder de manipular a terra, e reatualiza aquilo que os ancestraisestabeleceram e que sustenta o mundo na forma organizada que atualmentepossui.

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especificamente a cada sociedade que, assim, defineseu próprio pré-existente. A origem divina da forçavital e a consciência da possibilidade de suaparticipação nas práticas históricas explicam anotável importância que lhe é atribuída, e, não raro,a sacralização de várias esferas em que se manifesta.

Para a sobrevivência, o fator básico da produção é aterra, considerada também ela como portadora da força-vital.E a organização da produção não se dá na dependência dainiciativa individual, mas é realizada no quadro de umaresponsabilidade coletiva determinada.

O sistema de cultivo agrícola, baseado em culturaitinerante e em queimadas, obriga a uma extensa mobilidade,pela necessidade de aumentar o espaço da subsistência. Aspráticas econômicas milenares repetem-se ao quadro de umciclo de produção determinado pelo clima, pelas necessidadesde subsistência e pelo calendário das cerimônias religiosas,observando-se a existência de uma complementariedade nasatividades referentes à agricultura, coleta, criação, caça, pescae produção material.

O grupo organiza sua produção através de valorescomunitários e tais atividades, por nós denominadas detrabalho, não se diferenciam dos outros aspectos da vidagrupal. Isso porque as atividades não criam valor no sentidomercantil da expressão, não ocorrendo o fetichismo damercadoria, pois os bens produzidos destinam-se aoconsumo, ao uso dentro do grupo. Esses bens produzidossatisfazem os objetivos de reprodução dos produtores e daordem social. As necessidades fundamentais são satisfeitas,uma vez que se referem a necessidades concretas, limitadas,e não visam atender a um mercado abstrato e, portanto,inacessível. O universo cultural do grupo estipula as relações

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com a natureza e, dado seus meios de produção, os bensobtidos são satisfatórios, pois não se destinam à acumulação,nem à produção de excedentes.

Os produtos cultivados nas ilhas são: arroz de sequeiro,amendoim, mancarra bijagó, milho, inhame, mandioca eabóbora. As técnicas usadas para o cultivo do arroz, de longocultivo mais importante do grupo, são a devastação e aqueimada, com sistema de rotação ou pousio da terra de 5 a7 anos.

Nos meses de abril e maio, o terreno é preparado coma derrubada do mato, queima das árvores e arbustos eposterior revolvimento da terra. A partir das primeiras chuvas,em meados de junho, o arroz é semeado, iniciando-se a lavra.

Agosto, setembro e outubro são os meses da tarefamais incômoda, que é a vigilância. Os adolescentes e ascrianças são incumbidos de guardar os campos dos assaltosde pássaros, macacos e outros animais predatórios queatacam as searas.10

A partir de novembro, começa a colheita do arroz, ouquebra, numa operação demorada que consiste em se quebrarfeixe por feixe. Depois, esses feixes são amarrados em saiasque variam de 50 a 60 quilos e, em meados de dezembro, acolheita é levada para a tabanca. Às vezes, com grandestranstornos e morosamente, pois os campos se localizam longedas moradias, até mesmo em outras ilhas. O transporte éfeito, nesse caso, em canoas a remo, durante vários dias.

10. Recomendamos a leitura da obra Flagelados do vento leste de ManuelLopes, São Paulo, Ática, 1981, que mostra, magistralmente a importânciadessa tarefa.

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Os instrumentos usados são, praticamente, os mesmosencontrados entre os demais grupos da Guiné-Bissau: o aradobalanta, usado para revolver e abrir sulcos na terra(QUINTINO, 1971), o terçado, usado para limpar o mato,principalmente na operação que precede a derrubada dasárvores de grande porte, e os machados são de diferentestamanhos.

As tarefas agrícolas absorvem praticamente metade doano, durante toda a estação das chuvas. Nesse período, todaa família se desloca para o lugar, ou seja, o campo onde oarroz é semeado, muitas vezes situado em outras ilhas,reservada estritamente para o cultivo, não sendo habitadasfora do período de trabalho agrícola.

Entre os Bijagó encontram-se criações de bovinos,caprinos, porcos e galinhas; os animais crescem livrementeem torno dos aldeamentos, sem nenhum cuidado especial oulocal específico para sua criação. Alguma tabancas têm ilhasdesabitadas onde os animais vivem livremente, quase emestado selvagem, sendo caçados quando se deseja abatê-los. Uma das cerimônias rituais é a vaca bruto, adolescentescom máscaras zoomórficas narram através da dança, damúsica, do canto a luta desses animais. Os animais de criaçãodestinam-se às cerimônias religiosas e o consumo de sua carnesó ocorre nessas ocasiões.

Nas ilhas há uma grande variedade de animais depequeno e grande porte, como hipopótamos, jacarés,tartarugas, gazelas, cabras do mato, macacos, cobras. Natarefa da caça são usadas armadilhas simples, pois quase nãoexistem armas de fogo.

Nas atividades relacionadas com a elaboração deobjetos, encontramos inúmeras tarefas visando o fabrico de:esculturas em madeira, confecção de esteiras, construção de

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habitações (celeiros, casas, depósitos), tecelagem de saias,chapéus e artefatos para a casa. Todas essas atividades sãouma complementação das agrícolas. Como já se afirmouanteriormente, o grupo produz praticamente tudo o quenecessita não dependendo do mercado nacional para suasobrevivência. Pode-se mesmo afirmar que o grupo se mantêmautônomo em relação ao resto do país e se fossem rompidosos laços com o continente, não haveria alteração significativada vida no arquipélago.

No que se refere à produção em madeira, os Bijagó,juntamente com os Nalus, são famosos em toda a Guiné. Oartífice é encontrado em várias ilhas, criando com muitahabilidade peças extremamente expressivas, reproduzindofiguras de animais, bailarinos, figuras antropomórficas,máscaras, barcos.

Os trabalhos nessa área se desenvolvem, basicamenteem três direções:

a) objetos rituais: sendo, sem dúvida a atividade demaior prestígio, que merece mais consideração eimportância. Revestem-se de um caráter sagrado,com técnicas rigorosamente secretas, assim comoo tipo de madeira, etc. O conhecimento dessessegredos são transmitidos pelos grandes aos maisjovens que demonstrem habilidade. Além das figurasque representam os ancestrais, ou outros seressacralizados, também são feitos os instrumentosmusicais para as cerimônias.11

11. Dentre os tambores, podemos citar o bombolom, um instrumento feitode um tronco de madeira que é escavado de modo especial, pois o espaço

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b) objetos de utilidade doméstica, como colheres,pilões, cabaças, pratos. Encontram-se já objetoscomprados em mercados de Bissau, mas, aindapredominam as peças feitas ali mesmo na tabanca..

c) objetos para comercialização, ao lado da confecçãodos objetos apontados anteriormente; ocorretambém a execução de peças para venda aosturistas estrangeiros ou visitantes do continente. Essetipo de produção tem aumentado, conforme assinalaScantanburlo (1978), com a introdução de temasvindos de fora, como cinzeiros, carros, caminhões,helicópteros.

Neste ponto da cultura material do grupo, seria profícuoum estudo mais minucioso da transformação por que passa aprodução desses objetos12. A comercialização amplia-serapidamente e mesmo peças consideradas sagradas, feitaspara serem usadas unicamente em cerimônias rituais, têm sidovendidas para turistas ou para estrangeiros que trabalham emBissau e oferecem pagamento elevado por este tipo deescultura. Contam-se mesmo casos de roubos para seremcomercializados no mercado em Bissau. Segundo algunsinformantes, algumas peças são enterradas com os mortos

para a entrada do cinzel ou da faca é diminuto, mal havendo lugar para apenetração da mão. Também as máscaras e roupagens usadas em rituaissão consideradas como portadoras do sagrado e impõem-se ao artíficeregras de como executá-las, tendo que antes passar por cerimônia depurificação.

12. Citamos aqui trabalho de Danielle Duquete (1983).

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que não deixam descendência, ou então, quando já estejamdanificadas pelo tempo ou umidade. Como esse procedimentoé conhecido, ocorrem roubos nas tabancas, quando aspopulações se dirigem para outras ilhas durante o períododas chuvas para o cultivo do arroz.

Na produção de objetos para a comercialização,bastante diferenciados daqueles destinados ao uso domésticoou ritual, observa-se a introdução de outros padrões e autilização de novos materiais, como por exemplo, plástico,fios de nylon etc. Essa transformação responde a um estímulodo mercado e não aos critérios de necessidade de dentro dogrupo.

No caso das máscaras e das esculturas sacralizadas acomercialização implica uma separação das mesmas do corposagrado das crenças que as conceberem. A escultura não éem si mesma um significante, mas um dos inúmeros elementosde um conjunto coerente de concepções; materialização doimaterial revelado pelas forças tutelares durante um ritual. E,nessas cerimônias manifestam-se as forças vitais através dessesuporte material que se torna a sua expressão. Os artefatossão feitos como um meio para se atingir um certo fim, nãosendo um fim em si mesmo. A comercialização leva,forçosamente, a uma alteração no modo de conceber osignificado das peças: se destinadas ao mercado, se destinadasaos rituais religiosos ou cerimônias sacralizadas.

No processo de introdução da monetarização naeconomia do grupo, a venda desses objetos significa a entradade dinheiro, ou a obtenção de uma mercadoria rara: um rádiogravador, um relógio. Nesse processo, surgem mudanças deatitudes e condutas, agora visando outros fins, objetivando aobtenção de bens vindos de fora. No caso das esculturas emáscaras, um elo na sugestão e comprovação da presença

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de uma entidade sagrada, estamos diante de concretudes dasforças vitais, com uma significação admitida e codificadapelo uso, não havendo por parte dos produtores umapreocupação, ao elaborá-las, de que venham a sercontempladas, ou exibidas, ou colecionadas.

No arquipélago dos Bijagó abundam as palmeiras Elaesguineenses, que circundam as praias, os caminhos e veredasem todo o interior das ilhas; da palmeira tudo se aproveita.Em primeiro lugar, os produtos indispensáveis à vida do grupo:óleo de palma e o vinho de palma. O óleo, sendo rico emproteínas, é usado na alimentação diária, para untar o corpoe cabelo em muitas cerimônias religiosas. O vinho de palma éconsumido diariamente, e também nas festas e cerimônias;para a obtenção do vinho e do cacho de chabéu13, de ondese retira o óleo, é necessário subir à palmeira. Para isso, oshomens usam uma espécie de cinto (feito da palmeira batidae defibrada, depois encordoada), que os mantém segurosjunto ao tronco, fornecendo um espaço para a subida. Ovinho é obtido pela incisão do tronco da palmeira e com acolaboração de uma vasilha que recolhe a seiva. A operaçãoé feita pela manhã, com um furador – instrumento cortante –e repetida pela tarde. De cada palmeira obtém-se cerca de 4a 5 litros de vinho diário durante 15 dias, depois passa-separa outra árvores, é adocicado se ingerido logo após aextração. Depois de algum tempo começa a fermentar e ganhacada vez mais teor alcóolico.

Verifica-se a coleta de mariscos e ostras feita pelasmulheres e crianças durante a maré baixa e também do frutodo mangrove (agbá – Avicenia germinans), usado na

13. Ver glossário em anexo.

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alimentação durante os meses críticos em que a reserva dearroz terminou e não se colheu a nova safra. E devem serlembradas as frutas existentes nas ilhas que complementam adieta alimentar: limão, laranjas, cajus, abacaxi, cabaçeira,banana, manpatás, mamão, que crescem ao redor dastabancas, não tendo atenção especial no seu cultivo.

A atividade da pesca é favorecida pela existência degrande variedade de espécimes nas águas que circundam oarquipélago. As técnicas de captura são antigas, visando asatisfação das necessidades do grupo familiar ou da tabancae havendo pouquíssimo excedente para venda. São diversosos métodos utilizados para a pesca, com produtividadevariada, usados de acordo com a finalidade do consumo.Por exemplo, se se tratar da preparação de uma festa sãoempregados os métodos que se sabem mais produtivos. Sãoeles:

a) rede emalhar (radia, em crioulo) – é lançada duranteo anoitecer e retirada na manhã seguinte, em lugaresde passagem de cardumes;

b) rede redonda ou rede de mão – essa rede, quandoaberta, tem forma circular e é lançada sobre ocardume. Tendo pesos nas bordas, ela forma comoque um saco captor de peixes. Essa técnica exigegrande perícia por parte do pescador e é muitodifundida;

c) linha de fundo – numa linha são colocados váriosanzóis, uma de suas pontas é amarrada a uma árvoree a outra a uma pedra que a mantêm submersa.Periodicamente, as linhas são verificadas pararecolhimento do peixe capturado e renovação das iscas;

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d) varas – com cerca de 3 metros, são usadas comlinha e anzol do modo como nos é bastante familiar;

e) arpão (ou canhaco) – é uma espécie de lança parafisgar peixes grandes em lugares rasos. Exigeextrema habilidade e velocidade por parte dopescador;

f) esteira – consiste num traçado de palha, ou de fibras,usado para fechar um canal, sendo colocado deacordo com as marés;

g) filho de impande – é uma espécie de funil trançadode palmeira, empregado de preferência ao lado oudebaixo da esteira. Uma armadilha na qual o peixeentra e não pode sair;

h) gamboa – uma das técnicas mais antigas relatadaspelos informantes: cerco, feito de pedras ou madeira,que aprisiona os peixes quando a maré desce,permitindo assim sua coleta.

Durante o período colonial foram introduzidas algumastécnicas européias, como a utilização de redes de algodão edepois de nylon, pois nesses anos existiam algumascompanhias comerciais portuguesas que pescavam nas águasdo arquipélago, tendo pescadores bijagó a bordo de seusbarcos.

Como dissemos anteriormente, as atividadesreferentes à obtenção da sobrevivência são feitas dentro deum quadro de necessidades coletivas da unidade produtiva,que é família.

A terra, principal fator de produção, é de propriedadecoletiva sendo distribuída no início do ano agrícola pelosgrandes da tabanca, ou seja, pelos indivíduos mais velhos

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que controlam o uso do solo, saídos do clã da geração donado chão. Não há falta de terra, pois existem. Ilhasdesabitadas, destinadas unicamente à agricultura, à coleta e àcriação.

A divisão do trabalho é feita a partir de critérios desexo e idade, dentro das unidades familiares; algumasatividades exigem a cooperação de vários indivíduos aomesmo tempo. Na agricultura, existem processos alternadosde trabalho feminino e masculino. Assim, num primeiromomento, os homens ocupam-se da limpeza do terreno,derrubada das árvores, queimada e revolvimento da terra.Num segundo momento, entre o trabalho das mulheres,responsáveis pela semeadura e cuidado das plantas na faseinicial. Num terceiro momento, participam as crianças e jovens,vigiando dia e noite, para que a plantação não seja atacadapor animais (macacos, aves, pássaros, hipopótamos, etc).Na fase final, há a cooperação de todos, homens, mulheres,crianças e jovens, num trabalho conjunto de colheita etransporte.

As formas de cooperação dentro dos processos detrabalho, nas unidades produtivas, fornecem-nos indíciossignificativos para compreendermos as relações entre os sexose a forma pela qual surgem grupos associativos, conforme asgerações donas-do-chão – ou seja, as relações clânicasreferidas ao ancestral comum – ou, as categorias de idade,que são um outro elemento básico para a estruturação dogrupo.

Assim, para a sobrevivência, o grupo define tarefasmasculinas e tarefas femininas. Entre as primeiras salientam-se: pesca, artesanato em madeira, caça, parte das atividadesagrícolas já indicadas, subida à palmeira para obtenção dovinho de palma e do chabéu. Às mulheres são reservadas as

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tarefas domésticas que complementam as atividades daagricultura, até que o produto final seja consumido, e tambéma tarefa de construir a casa. Somente as mulheres conhecemo segredo da obtenção do barro e da modelagem dasconstruções redondas, que formam as paredes dashabitações. O homem incumbe-se unicamente da cobertura.

O homem, a mulher, o grupo

Entre os Bijagó a família é matrilinear, o indivíduopertence ao clã materno, ou seja, a uma das gerações Oraga,Orácuma, Ogubane e Ominca. O parentesco é determinadopelos laços uterinos – interferindo inclusive na definição daschefias, pois estas devem sair das gerações donos-do-chão,que têm o pacto com a terra – e seu uso implica uma sériede observâncias de práticas ancestrais, que se formalizamem inúmeras cerimônias sacrali-zadas14. Também desse clãdeve sair os que exercem alguma responsabilidade religiosa,por exemplo a oquinca – mulher grande – que é a aplacadorados ancestrais da geração dona-do-chão.

A fixação de residência é virilocal., quer dizer, a mulher,quando casa, deixa sua família para ir viver com o marido, nacasa que ela mesma constrói.

Os Bijagó vivem em aldeamentos que congregam de100 a 200 pessoas, constituindo unidades autônomas quantoà auto-suficiência comunitária. Quase não há criação de

14. Conforme nos referimos anteriormente, a geração dona-do-chão seconstitue no grupo que chegou primeiro naquele local, estabelecendo asregras de manipulação da terra; dado seu caráter de sagrado, são necessáriosatos propiciatórios antes de sua utilização.

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excedente, inexistindo mercado de troca monetária, mas,quando ocorre, na maioria das vezes, é feita em espécie;por exemplo, uma galinha pode ser trocada por cinco folhasde tabaco, ou por determinada quantidade de noz de cola.Cada tabanca é uma unidade econômica, política, religiosa,cultural. Em certas cerimônias religiosas ocorre a junção deduas ou três tabancas para uma celebração conjunta.

As categorias de idade

A definição da posição social do indivíduo é prescritapelas categorias de idade, correspondentes a um estágiodefinido do ciclo de vida, determinando os direitos e deveresde cada um para com o grupo. Desse modo, o indivíduo éintegrado lentamente no corpo social, num longo processode socialização, pelo qual se faz a transmissão dosconhecimentos concernentes à sociedade e sua organização,bem como à produção e suas técnicas.

Todos os indivíduos têm as mesmas oportunidadesde obter status, poder e riqueza, sendo a idade oelemento propiciador a cada pessoa de grandeza,tornando-a um integrante do Etute (Conselho dosGrandes); todos avançam, lentamente, em direção àgrandeza, atravessando as várias fases, ultrapassandoas diferentes faixas etárias, submetendo-se às inúmerascerimônias iniciáticas que mantêm e transmitem osvalores fundamentais de coesão do grupo. Para vir aser um grande os jovens são compelidos a pagar aosidosos com bens e serviços, pois as várias categoriasde idade formam como que um escalonamentohierárquico, sendo que os mais moços devem sesubmeter aos que estejam acima deles, prestando-lhes

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obediência e tendo de lhes pagar grandeza15 comdiferentes produtos: óleo de palma, vinho de palma,peixe, arroz, tabaco, tecido, etc.

As categorias de idade citadas por Scantamburlo(1978) são as seguintes:

15. O pagamento da grandeza constitue o mecanismo pelo qual se dá acirculação dos produtos dentro do grupo; os mais velhos como quegerenciam a produção, se apropriam de parte dela e, depois efetuam suaredistribuição. Os jovens plantam, coletam, pescam, etc., devendoentregar o solicitado aos velhos. Existem punições severas para os quese negam a efetuar esse pagamento.

Idade (anos) Masculinas Femininas1 recém-nascido recém-nascido

(B. Neea) (B. Neea)2-6 Criança pequena criança pequena

(B. Ongbá) (B. Ongbá)7-11 criança criança

(B. Cadena) (B. Cadena)12-17 adolescente adolescente

(B. Canhocam) (B. Canhocam)18-27 rapaz mulher casada

(B. cabaro) (B. ocanto)28-35 jovem adulto --------------

(B. Camabi)36-55 adulto --------------

(b. caxuca)mais de 35 homem grande mulher grande

(B. ocoto) (B. ocoto)

As categorias masculinas

A integração lenta dos indivíduos no corpo social sefaz através da transmissão de conhecimentos concernentes à

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sociedade e sua organização e pela internalização dasproposições e valores grupais, com a fixação de momentosimportantes na vida de cada integrante do grupo.

O grupo possui, pois, um processo próprio desocialização durante o qual o homem e a mulher passam porfases com preceitos estipulados em cada uma delas.

No que se refere aos primeiros anos de vida, meninose meninas são tratados indistintamente, recebendo a mesmadenominação, Néa, até atingir os primeiros anos, seis, sete,quando começa a diferenciação que marcará toda a vida deadulto até atingir a etapa denominada Ocotó, na qualnovamente, homem e mulher recebem o mesmo nome e têmos mesmos direitos e deveres.

O recém-nascido, Néa, depois de ter o cordãoumbilical cortado é lavado e untado com óleo de palma (azeitede dendê) e, para que se desenvolva e cresça de maneirasatisfatória, recebe ao redor da cintura e em volta do pulsoum cordão de contas, ou de couro, numa invocação de forçaspré-existentes que possam zelar pela criança na primeirainfância. Nesse caso, a figura do Coracató, que se pretendeesteja presente, afastando o mau-olhado, ou qualquer outrainfluência maléfica que possa prejudicar o bebê. A mãe temsempre o filho consigo, amarrado às costas, participando detudo o que faz. Mesmo durante os períodos em que asmulheres se dirigem para o local sagrado das cerimôniasfemininas, lá permanecendo, às vezes, por várias semanas,elas levam seus bebês.

O período de amamentação prolonga-se até os dois,três anos, durante o qual a mãe se abstém de ter relaçõessexuais com o companheiro, evitando uma gestação quepoderia prejudicar o aleitamento da criança. Por ocasião dodesmame, a família realiza uma cerimônia, com o sacrifício

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de um animal de pequeno porte – galinha ou cabrito – eoferecimento de arroz, com a finalidade de se suplicar aosentes sagrados que a criança se desenvolva e atinja as fasesposteriores16.

Desse momento em diante passa chamar-se Ongbá,continua em contato com a mãe, acompanhando-a em tudoo que faz pela tabanca. Tanto a Néa como a Ongbá, crescemnum contato quase que epidérmico com a mãe, começandoa ser socializado, conforme afirma Leite (1982: 114):

pelo desenvolvimento das propriedades sensoriaissegundo as técnicas africanas (...). Ao que parece, ocostume de trazer as crianças às costas revela, alémda circunstância prática, uma proposição da mater-nidade africana acerca do destino da pessoa em suafase social incipiente e totalmente dependente: a vidaintra-uterina deve de certa maneira ser prolongada,facilitando a transição do mundo exterior nos pri-meiros contatos do indivíduo com ele.

Ao seis, sete anos, a criança atinge uma outra fase,denominada Cadene, com o recebimento de um outro cinto,feito de pequenas contas, que lhe é atado ao redor dos quadris,abaixo da cintura. Esse cinto, o campende, lhe é colocadodurante uma cerimônia, para que a criança perceba que seinicia uma nova fase em sua vida, diferente da anterior. Apartir daí, aprende a obedecer aos mais velhos, deve ajudar

16. Esse apelo pela sobrevivência após o desmame se justifica dada as eleva-das taxas de mortalidade infantil que ocorrem nessa fase da vida entre ascrianças, não somente desse grupo, mas em toda Guiné-Bissau, devido àinexistência de uma alimentação apropriada às crianças, que passam doleite materno diretamente à alimentação do adulto, sem nenhuma transi-ção ou alimentação complementar após os seis meses.

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a mãe e outros parentes a coletar frutos, mariscos, cuidar davigilância das plantações, trabalhar com madeira. Durante ascerimônias sacralizadas em que todos da tabanca participam,o Cadene participa das danças, tocando pequenos tamborese dançando com chocalhos, feitos de conchas e caroços demanga, nos tornozelos. Nessa fase, começa a se situar noesquema de diferenciação social, aprendendo e sesubmetendo ao princípio do pagamento de grandeza, poisdeve pagar grandezas ao Canhocam17.

Atingindo a puberdade, aos onze, doze anos, tem inícioa fase denominada de Canhocam, com o recebimento deum outro objeto, evocando o protetor Coratacó, seja umapulseira, ou um cordão para o pescoço. A partir daí oadolescente penetra num quadro mais amplo da socialização,começando a se inteirar dos segredos das plantas,conhecendo-as, bem como o modo de prepará-las e tambémseus efeitos. Continua a acompanhar os mais velhos nasatividades produtivas, ajudando a mãe e irmãs na vigilância.Aprende a escalar a palmeira com o cinto especial existentepara subir em árvores, a colher o fruto do chabéu,indispensável para a alimentação, pois é dele que se extrai oóleo de palma (azeite de dendê). O pagamento degrandeza, iniciado na fase anterior, do Cadene, temcontinuidade, sendo que agora deve pagar grandeza aoCabáro, sob a forma de diferentes produtos que lhes sejamsolicitados: cacho de chabéu, mariscos, conchas, frutos,pimenta, etc. Continua o aprendizado das técnicas de trabalhona madeira, fazendo pequenos objetos como, canoas,

17. Conforme já nos referimos anteriormente, o pagamento de grandeza é omecanismo pelo qual os produtos circulam dentro do grupo.

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colheres, remos, figuras; acompanha os homens mais velhosna pesca, aprendendo a remar, a localizar cardumes, a usar arede, o canhaco – espécie de arpão para a captura de peixesgrandes.

O Canhocam também participa das danças usandoornamentos feitos de ramos de arbustos, tocando os tamborese chocalhos próprios dessa faixa etária. Durante as danças,usa máscaras representando animais – em geral peixes,pássaros – e entoando cânticos que relatam feitos de batalhase aventuras ocorridas dentro do grupo, seja naquela tabanca,ou em outra ilha do arquipélago. Acompanha os mais velhosnos deslocamentos e viagens que fazem para outros Lugares,aprendendo, pela vivência, as regras da vida dentro do seugrupo de idade, tanto em relação aos mais velhos quanto aosmais jovens. Junto aos seus companheiros de idade, o jovemadolescente tem um viver fraternal, igualitário, estabelecendocom eles vínculos permanentes que se estenderão por toda avida, uma vez que formam como que associações que sãoverdadeiros centros de aprendizado social.

Aos dezessete, dezoito anos, tem início a melhor fasedos Bijagó, o Cabaro, durante o qual o jovem participa dasfestas, danças, caçadas, folguedos, etc, em todas as tabancas,percorrendo as diferentes ilhas do arquipélago. Sua vida édescompromissada de aventuras amorosas, conquistas,galanteria. Canta, toca os tambores, dança, relata seusinsucessos amorosos., pedindo o amor e complacência dasmulheres que escutam. O Cabaro enfeita-se com esmero,usa o cabelo com tranças primorosas, lenços coloridos,brincos, pulseiras, chocalhos. O componente narcisista dapersonalidade é trabalhado e aceito socialmente, bem comoos ingredientes femininos. O Cabaro, ao mesmo tempo quedemonstra um vigor másculo, utiliza um elemento feminino –

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no nosso sentido de feminilidade da mulher – que, através dasedução, provoca uma atração no outro, uma certa passividadena conquista amorosa, uma espera da resposta por parte damulher que, entre os Bijagó, deve tomar a iniciativa da relaçãoamorosa.

Integra essa faixa etária, a dança mais conhecida forado universo cultural do grupo, atingindo o continente dadasua beleza, força e destreza: é a Vaca bruto; nela, dois outrês Cabaros representam animais selvagens – vacas e touros– que vivem indomados, necessitando ser caçados, quandose faz necessário. Através de uma coreografia aprimorada,os jovens dramatizam a movimentação desses animais, numdesafio entre eles. O bailado prolonga-se por horas, trazendofama e glória para os que conseguem agüentar o esforço físicointenso até o fim. Na mão, os bailarinos levam uma espéciede haste de madeira, onde se fixam chocalhos, pedaços deferro, argolas que, ao serem agitados, fazem umacompanhamento ao som dos tambores e cânticos entoadospor todos.

O Cabaro, além do pagamento de grandeza aosgrandes, tem incumbências várias: devendo ajudar a limparos caminhos da tabanca até o porto, até a fonte, derrubar omato perto dos locais sagrados, enfim, deve ajudar nosinúmeros trabalhos que exigem força física e habilidade. Nãopode recusar nenhuma tarefa, pois sabe que será castigadose incorrer em alguma desobediência aos mais velhos, osgrandes da tabanca.

Se a vida do Cabaro é de festas, alegrias,comemorações, etc, a fase subsequente é o seu oposto. Aítem início um longo rito de iniciação do Camabi, o coitado,que nesse período leva uma vida de sofrimentos intensos eprovações. O Camabi nada pode possuir, deve viver no mato,

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não pode conviver com mulheres, devendo deixar acompanheira que tinha anteriormente e também os filhos. Emalgumas ilhas, o Camabi nem sequer pode dirigir a palavraàs mulheres. Nesse período, aprende com os grandes todosos segredos da vida do grupo. Nessa fase da vida, os rapazessofrem um processo particular de iniciação, no qual devemabandonar tudo da vida anterior, submetendo-se aos penososencargos feitos pelos mais velhos. Ao final, surgirá um novoindivíduo, com uma nova personalidade e cidadania plena,que se comprova pela atribuição de um outro nome,substituindo o anterior. Durante os ritos ocorremespancamentos, escarificações, deixando visíveis as marcasidentitárias do grupo no indivíduo. Nessas ocasiões, osCamabis são colocados, sangrando, deitados ou sentadosjunto à terra e, depois, levados para a praia e mergulhadosna água do mar, para receberem da natureza-mar e terra-força e o lenitivo para as dores das iniciações.

Através desse longo rito iniciático, em algumas ilhas,que pode durar até 7 anos, adquirem a cidadania, formamsua identidade e, a partir daí, são adultos plenos, podendoouvir e ser ouvidos durante as reuniões decisórias do grupo.O iniciado passa por experiências profundas, inesquecíveis,segundo muitos informantes. Tudo o que se passa durante ascerimônias ocorridas no local sagrado, constitue segredo, nãopodendo ser revelado a ninguém.

Após a fase do Camabi, tem início a fase do Caxucá,a fase adulta propriamente dita. Nesse período, o homempode tomar parte nas reuniões dos grandes18, exigir o

18. Conselho dos Grandes - designação em crioulo, ou Etute, dada ao con-junto dos homens e mulheres acima dos 55 anos que exercem poderdentro do grupo.

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pagamento de grandeza dos mais jovens, pode casar-se, terfilhos, participar das cerimônias, ensinar os imaturos, tendoplenos direitos dentro do grupo.

Ao atingir os cinqüenta e cinco, sessenta anos inicia-sea fase do Ocotó – designação única para homens e mulheres–, fase esta em que o adulto é considerado como grande,como ancião, sendo o detentor dos conhecimentos maissecretos do grupo. O/a Ocotó está mais próximo que todosda região do originário dos ancestrais, que estabeleceram aordem atual. E, no sentido da temporalidade circular, doretorno às origens, é ele que está mais próximo a se juntaraos fundadores.

As categorias femininas:a iniciação após a morte

Meninas e meninos têm a mesma categoria de idadeaté a puberdade, ou seja, até os onze, doze anos. A partirdaí, a menina passa à categoria Campuni (adolescente), atéo momento do seu rito de passagem, quando recebe o nomede dança do defuntu19, cerimônias de iniciação femininas.

A extraordinária importância atribuída às cerimôniasdo defuntu pode ser melhor compreendida se analisarmos osignificado que o grupo atribui às relações vivos e não vivos.Como entre outros grupos africanos, acreditam que aexistência não termina com a morte. Dentro do princípio deque, para vir a ser um homem completo e atingir a maturidade,

19. Dança do defuntu é a designação crioula para o ritual de iniciação feminino,durante o qual as jovens se transfiguram nos rapazes que morreramantes de realizarem a sua iniciação.

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o indivíduo deve passar por todos os rituais iniciáticos; sealgum jovem morre antes de cumprir as cerimônias, estaráimpossibilitado de vir a se juntar aos grandes e se encaminharao mundo dos ancestrais. Há mesmo uma designação, Oshó,para essas pessoas, que não participaram dos atos referentesà sua iniciação.

Contudo, isso pode ser superado: através dos rituaisfemininos os jovens que morreram poderão realizar acontinuidade de suas cerimônias de iniciação, numa forma detranse e possessão, pois, as adolescentes os tornam capazesde atingir seu caminho final para a terra dos ancestrais –cadjoco cadene20.

Nas cerimônias femininas o papel representado pelaoquinca21 é de extraordinária importância, por ser aplacadorados irans da geração dona-do-chão; escolhida pelo Conselhodos Anciãos, sempre pertence a essa geração, que é a mesmado chefe do Etute; cuida do fogo dentro da Candjan-ô22,onde estão as figuras dos ancestrais; deve fazer as oferendasdiárias, presidir e dirigir as cerimônias da dança do defuntue outras de cunho funerário.

O local sagrado onde se realizam as cerimôniasfemininas é interditado aos homens, que não podem passarpor ali nunca; fica nas proximidades da tabanca, junto a árvoresenormes, os poilões. Os tambores são tocados por mulheres,vestidas com saias longas, que ali permanecem reunidas, semos filhos, levando apenas os que estiverem amamentando.Apenas um homem é escolhido para ir e vir, entre a tabanca

20. Ver glossário em anexo.21. Ver glossário em anexo.22. Ver glossário em anexo.

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e o local sagrado – a grandeza das mulheres – trazendoalimento e bebidas para elas.

O período de permanência na grandeza varia detabanca para tabanca, de ilha para ilha (1 mês, 2 meses, 3meses); lá, as mulheres convivem entre si, fora da rotina dosdeveres domésticos, comendo, bebendo e dançando. Emdiferentes oportunidades, saem do local sagrado e entram natabanca, muitas vezes em transe, vestidas de modo especial,mas não podem se comunicar com ninguém da comunidade.As pessoas observam de longe as evoluções e coreografiasdas danças das mulheres no centro da tabanca; os homensparticipam, após o toque do bombolom – tambor sagrado –que convoca todos para virem receber o defuntu, tocandotambém seus instrumentos. Depois de uma permanência dealgumas horas, retornam ao local sagrado.

Durante a permanência no mato sagrado, as jovensCampuni recebem nomes masculinos, usam roupas e armasmasculinas e se portam como os jovens mortos aos quaisestão emprestando seus corpos.

Durante as cerimônias na grandeza das mulheres, asjovens são submetidas a intensas provas físicas, ingerindogrande quantidade de vinho de palma, dançando durante horase tocando tambores sagrados, no ritmo comandado pelaoquinca; inúmeros cânticos acompanham as invocações feitasaos irans protetores.

Essas cerimônias se prolongam por vários dias, até asjovens entrarem em transe e incorporarem as almas dos jovensmortos. Algumas vezes a mãe do filho morto o reconhece,lançando gritos de reconhecimento e invocando seu nome,na campuni incorporada que ali está dançando. Em geral, ajovem e o morto pertencem ao mesmo clã, à mesma geração.As jovens adolescentes permanecem nesse transe dançando

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ao som do cumbonke (tambor sagrado). Em diferentesocasiões, por determinação das mulheres-grandes e daoquinca, elas se dirigem à tabanca para serem vistas por todose depois regressam ao local sagrado; a jovem nunca se recordado que se passou durante as cerimônias, como se tivessepenetrado num universo sagrado do qual não resta nenhumamemória, nenhum vestígio. Às vezes, menciona uma sombraque viu entrar e sair do local onde dormia. Nessas ocasiões,somente as mulheres-grandes têm acesso ao local ondeestão as adolescentes e todas se interpelam por seus nomesmasculinos; usam uma linguagem própria e os nomes quereceberam nas cerimônias a que se submeteram quandoadolescentes.

Tudo o que ocorre nesse local é secreto e as mulheresnão podem contar a nenhum homem o que se passou, nemmesmo seu nome pode ser citado, sendo conhecido apenaspelas mulheres; aquela que infringir essa regra morre.

As jovens que foram tomadas de possessão sãodeixadas na floresta por período determinado de tempo,variável conforme a ilha ou a tabanca, e aprendem as técnicasde sobrevivência no meio do mato; sendo submetidas àsmesmas provas que os rapazes, inclusive as escarificações.Terminada essa fase, recebem novas vestes, são levadas aoEtute local do Conselho dos Grandes e depois recebidas comgrandes festas por todos da tabanca.

Contudo, a cerimônia não termina aí; passada essa fasea jovem pode casar-se, ter filhos, mas de tempos em temposocorrem períodos sagrados em que o defuntu vem novamenteà tabanca. Nenhuma mulher sabe exatamente quando issopoderá ocorrer; às vezes pode ter ocorrido uma calamidade,uma epidemia, um acidente, uma desarmonia que deve sertrabalhada para que o equilíbrio volte à tabanca. Essas são

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razões que podem justificar a vinda do defuntu e todas asmulheres devem se reunir na grandeza e receber aqueles quejá foram e retornaram para superar as tensões existentes.

As relações entre os sexos

Nas relações entre os sexos, a posição ocupada pelamulher é de extrema consideração e respeito. Além do fatordo parentesco matrilinear, colocando a unidade familiar emtorno da mulher, define-se através dela a sucessão das chefias(no caso das gerações donas-do-chão).

Um outro fator que dá a ela essa importância advémdas cerimônias de iniciação (dança do defuntu), pois é elaque dá a vida, que semeia, que conhece os segredos dafertilidade, da terra.

O casamento, desde épocas remotas, semprerepresentou iniciativa da mulher, tanto na sua constituição,como na sua dissolução. Quando ocorre a separação, amulher volta para sua tabanca com os filhos, que pertencemao seu clã, e têm sua segurança garantida pela família (peloirmão ou pelo tio).

Existe a poligamia, sendo comum o homem ter duasou três esposas na sua tabanca (casamento virilocal). Asesposas dividem entre si as tarefas agrícolas e domésticas,numa vida de intensos trabalhos físicos e partos sucessivos.

Observam-se, pois, tarefas femininas e masculinas, masas diferenças entre as mesmas não acarreta uma desigualdadesocial, com inferioridade de um e superioridade de outro.Durante as danças do defuntu as mulheres se transformamem homens e, de modo significativo, os homens durante essetempo devem cuidar da casa, dos filhos. Nesse momento, asmulheres ocupam um espaço social único, unindo-se aos

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ancestrais, fazendo com que haja a ligação com os mortos,restabelecendo a harmonia dentro da tabanca.

A identidade feminina é dada e reforçada nessascerimônias periódicas, que ligam sua função à vida, àfecundação, à produção, ao equilíbrio, à ordem,proporcionando um status de suma importância dentro dogrupo. Periodicamente, praticam um viver feminino, emcomum, na floresta sagrada, na grandeza das mulheres, numconvívio com os ancestrais protetores. Não estão confinadasa um único espaço doméstico, dividem com outras osencargos do casamento, podendo, quando quiserem, rompero contrato, escolher outro homem, ou um jovem cabaro, quea ela pode se ligar durante todo o período em que permaneçanessa faixa etária.

As categorias de idade regulamentam a sexualidade,uma vez que interditam à classe dos camabis (jovem adulto)o acesso às mulheres do grupo e obrigam os cabaros (rapazes)a deixar as mulheres com as quais conviviam, ao entrarem nafaixa etária seguinte. Durante a fase da interdição devemabandonar tudo (os filhos nunca lhe pertencem, pois são damãe) e ao se tornarem caxuca (adulto) não podem procuraras mulheres antigas ou ex-companheiras; a transgressão aessa regra pode mesmo ser punida com a morte em algumasilhas, ou um outro tipo de castigo. Assim, o fator idade édeterminante para a mobilidade social e torna cada indivíduodependente em relação aos mais velhos, dos quais recebeensinamentos e todos os códigos da vida comunitária; apredominância do mais velho fundamenta-se, segundoBalantier (1976), em seu papel de produtor biológico e socialda nova geração. O curso da idade levaria os indivíduos dadependência à predominância no fim do ciclo de vida. Essaformulação coloca dentro do grupo um sistema de

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desigualdades, estratificando os indivíduos, com diferentesgraus de autoridade, competência e poderes. Essas relaçõesnão contratuais, mas de natureza obrigatória e durável,estabelecem os parâmetros da mobilidade do indivíduo;ninguém sai voluntariamente de uma categoria de idade, massomente depois de ter-se submetido às obrigações, deverese restrições que cada estágio lhe impõe.

A não participação nesse processo, ou a recusa naaceitação de alguma imposição, acarreta conseqüênciasgraves, conforme afirma Leite (1983), sobre a importânciados ritos de iniciação:

a importância atribuída a esses processos é tão sig-nificativa que os indivíduos que não se submetem aeles são considerados, de certa maneira, como pesso-as sem cidadania. Sofrem as mais severas restriçõesem todos os níveis: não podem estabelecer contratosde casamento e, consequentemente, não obtêm ces-sões de terra; a eles é vedada a manifestação verbalnos conselhos de família e da comunidade, não parti-cipando portanto das decisões; e não chegam a assu-mir funções de importância para a comunidade...”

Os irans protetores

O entendimento dos esquemas explicativos dosprincípios que norteiam o comportamento dentro do grupoleva-nos a buscar a compreensão de cada prática sacralizada.Entre os Bijagó, assume fundamental importância as que sereferem aos irans, ou seja, as estatuetas que contém parteda vitalidade das entidades sagradas que simbolizamempiricamente. Durante os rituais, estabelecem-se relaçõesquase que diretas com essas entidades, materializadas nos

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objetos, que são animados, pois parte da energia vital ali seencontra. Quando íamos regressar ao Brasil, foi-nos oferecidauma estatueta – um ancestral familiar – que se encontra noMAE (Museu de Arqueologia e Etnologia da USP). Aorecebermos o objeto das mãos de uma amiga da ilha deBubaque, perguntamos como fazer para homenageá-lo, aíela respondeu: não se preocupe, ele não está mais aí.

Conforme Scantamburlo (1978), essas práticasconstituem parte importantíssima da vida comunitária e podemser agrupadas conforme a destinação. Assim, temos:

– práticas relacionadas à estrutura sócio-religiosa;– práticas relacionadas às atividades agrícolas23;– práticas relacionadas à vida diária;– práticas relacionadas às atividades medicinais;– práticas relacionadas às atividades funerárias.

O ser supremo, a força vital primordial, é designadopor Nindo, sendo distinto das demais entidades que sãoinúmeros seres ou forças sobrenaturais., ligadas com anatureza. Segundo Scantamburlo (1978), também o Sol, aLua, as estrelas, o vento e o fogo são considerados comoseres superiores.

23. Sendo o cultivo do arroz a atividade mais importante para obtenção daalimentação básica, foram observados cinco momentos, durante oprocesso de cultivo, nos quais se realizam atos propiciatórios; a) antesda derrubada da floresta, na estação seca; b) antes de semear; c) antes decolher; d) antes de armazenar e, e) antes de começar o consumo.Scantamburlo também se refere à celebração de cerimônias durante operíodo de crescimento do arroz, para pedir chuvas, ou para limitá-las.

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Além do Nindo, existem outras forças presentes emtodas as atividades da vida diária, designadas por:1) Uniken orebok ocotó, o guardião do espírito da tabanca,da geração dona-do-chão; 2) Unikan euko, o espíritorelacionado com a vida passada guerreira do grupo;3) Erandé, ou Eramunde, o espírito relacionado com asforças da natureza, especialmente a água, árvores, asserpentes; relaciona-se com as actividades de práticasmedicinais; 4) Unikan coratacó, relacionado com os poderesmágicos dos feiticeiros; usado como proteção ao mau-olhadoe má sorte; 5) Unikan Uggonne, o espírito relacionado comas práticas funerárias, especialmente nas cerimônias em quese procura saber as causas da morte das pessoas (em crioulocham de djongago).

Em quase todas as ilhas, o Unikan orebuk Ocotó érepresentado por uma figura antropomórfica de madeira. Porocasião da consagração da estatueta, são feitas oferendascom bebida, ovos e sangue de animais, tudo colocado nobojo da peça de madeira onde há um espaço vazio. A estatuetaé coberta por tecido de diferentes cores. Essa figura éreverenciada em todas as tabancas, pois é vista como oGuardião-protetor de todos.

O Unikan Leko é o protetor que torna a pessoaque o usa protegida, resguardando-a de ferimentos debalas, facas ou outras armas. Essa proteção é feita coma fusão de diferentes ingredientes, plantas, ovos, sanguede animais, tudo é colocado num chifre de vaca, búfaloou cabrito, ou mesmo numa concha de tamanho grande.Esse protetor relembra o período de guerras e disputasvivenciado pelos Bijagó, quando em luta com outrasetnias do continente, especialmente os fulas. E, depois,num período mais recente, nas lutas contra os

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portugueses, durante a pacificação. (Em crioulodenominado como mezinho).

O Erande ou Eramunde é a designação dada aosobjetos mágicos para uso pessoal , com a finalidade de obterlonga vida, prosperidade e defesa contra os inimigos. O Erandeé feito com pequenos chifres de animais, onde se colocamingredientes como os do Unikan Ueko; a pessoa deve levá-lo sempre consigo para, desse modo, ter proteção garantidaem suas viagens. Também os djambacus (nome crioulo paraos medicine-men) usam o Erande em suas curas e práticasmedicinais.

O Unikan Coratacó é o poder que os Bijagó maistemem, pois se liga aos poderes dos feiticeiros e são usadosquando alguém deseje prejudicar outra pessoa. Nos primeirosanos de vida, o indivíduo recebe um Coratacó para protegê-lo e acompanhá-lo sempre.

O Unikan Ugonne também é representado por umaestatueta de madeira. Cada tabanca tem o seu Ugonne, queé usado nas cerimônias funerárias.

Uma vez que entre os Bijagó, a família extensa, comoem outras comunidades africanas, é composta de vivos emortos; os mortos não vivem, mas continuam existindo, osancestrais são membros de importância fundamental; suasfiguras estão presentes em todas as práticas, sendoreverenciadas de inúmeras maneiras. Os homens participamtambém, podendo penetrar no espaço sagrado dosantepassados, pois há o pressuposto de que existem doisníveis do universo da vida – a terrestre e a dos antepassados.A natureza, o ser humano, as instituições são concebidos comouma totalidade em permanente interação e simbiose. Dentrodessa concepção de totalidade, o grupo possui um sistemaorganizacional pelo qual se harmonizam o político, o

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econômico e o sagrado; o conjunto de todas as práticassacralizadas fundamentadas por uma outra visão de mundo.Como afirma Trindade (1980):

O pensamento lógico africano baseia seus conceitossobre o universo cósmico e social na premissaepistemológica que trata das ações e relações entreos fenômenos como constante processo dialético deequilíbrio e desequilíbrio, provocado pelas forçascontidas neste fenômeno (...). O universo é concebidocomo um complexo de forças que se defrontam, opon-do-se ou neutralizando-se.

Possuindo uma singularidade própria, suas práticassociais nos comprovam a existência de uma sabedoria milenarque sobrevive, apesar de todos os processos de imposiçãode transformações exteriores, e sua compreensão pode nosfazer buscar um modelo de desenvolvimento alternativo quepermita uma solução autosustentável dos potenciaispróprios e não transferências de modelos exógenos.

A habitação bijagó

A casa mais comum é de forma circular (MOTA,1948), havendo referência a ela em estudos realizados porparte dos portugueses durante o período colonial. É formadapor três círculos concêntricos: a varanda exterior, a varandainterior e a casa propriamente dita. Para a sua construçãoutilizam barrão avermelhado amassado com água, cana ouvaras de mangue, corda de ramos de palmeira e palha para acobertura. Sua forma, num corte pelo centro, é cilíndrica.

Na varanda interior, dormem os hóspedes e amigos, eé onde se prepara a comida e são guardados os utensílios decozinha.

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A construção da casa é uma tarefa essencialmentefeminina, pois só as mulheres conhecem o segredo damodelagem do barro; primeiramente modeladas as paredese o chão é alisado; depois, é feita a cobertura pelos homens,que trabalham cooperando com outros integrantes do grupoclânico, ou de idade. Os moradores oferecem comida, vinhode palma e tabaco para os que os ajudam no trabalho. Aocupação da casa só pode ser feita depois de uma festa,para a qual todos são convidados, geralmente com o abatede um animal de criação ou de alguns de caça, consumidocom muitos litros de vinho de palma. O mobiliário inexisteverificando-se a presença de algumas esteiras, bancos,armações para potes de água e utensílios, como panelas deferro, cabaças para azeite e para arroz, balaios e vasilhas debarro. As camas são um complemento da parede, na qual secolocam madeiras atravessadas (como estrados) e sobre osquais se colocam colchões com palha ou capim. Não há águacorrente, nem instalações sanitárias.

A água é recolhida em fontes ou poços sempre distantesda tabanca, tarefa das mulheres ou das crianças, que devemandar quilômetros carregando água à cabeça. Algunsinformantes explicam que não se recolhe a água perto databanca, nem se abrem poços perto, porque os mortos sãoenterrados dentro das casas24.

24. Após a independência, na ilha de Bubaque o PAIGG pretendia ampliar oaeroporto local, foi escolhido um local onde se localizava uma aldeia; asconversações se estenderam por dias e dias, até que as autoridades sederam conta de que os moradores não iriam mudar-se. Como poderiamlevar os mortos que ali estavam enterrados?

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A obtenção de água é um problema permanente, umavez que os Bijagó não conhecem a técnica de perfurar poços,os poucos e raros existentes foram feitos durante o períodocolonial, por pessoas vindas de fora, do continente. Na maioriadas vezes, recolhem água de fontes à superfície do solo.

Os animais vivem soltos ao redor das casas, dormindona varanda exterior; não há estábulos, galinheiros ouchiqueiros.

Em cada tabanca, além das casas redondas, destinadasaos casados, há a casa dos solteiros, em geral retangular,nela vivendo os rapazes que ainda não passaram pelascerimônias de iniciação e que, dessa forma, não podem secasar.

Os alimentos são guardados em celeiros, as bombas(B. Caurá), feitos com muito cuidado para que os produtosfiquem protegidos dos animais de insetos. São construçõesquadradas ou retangulares, assentadas sobre pedras, comsuperfície média de 12m² e altura de 1,70m.

Outra construção existente é aquela destinada àscerimônias religiosas, é nela que se guardam os irans protetoresde todo o grupo. Uma tabanca pode ter várias candjan-ô, deacordo com as diferentes cerimônias que realiza.

Geralmente as aldeias são construídas no interior dasilhas, longe das praias e sob a sombra de árvores gigantescas,os poilões, onde vivem os irans protetores. Os campos deagricultura localizam-se longe da tabanca, às vezes em outrailha, o que obriga o grupo a deixar a tabanca durante a estaçãodas chuvas e improvisar habitações ainda mais rústicas noperíodo que vai do plantio até a colheita do arroz.

As construções são feitas de forma espontânea e livre,não obedecendo a nenhum plano anterior, mas à proximidadecom familiares; a qualidade do local da habitação está

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diretamente ligada à utilização da casa. Ela é o local onde sedorme, onde se armazenam os produtos alimentícios e ondese efetuam as cerimônias. Tudo é realizado fora, ao ar livre,em contato direto com a natureza. Não há um ficar em casa,o local do lazer do junbai (conversa, em crioulo) é debaixodos poilões enormes, no centro das tabancas.

Nas habitações, muitas vezes, são feitas pinturasdecorativas, reproduzindo cenas de pesca, caça ou danças.Algumas vezes são desenhos geométricos, utilizando-se ascores branca, negra e vermelha obtidas com material existentenas ilhas – cinza, carvão, barro, seiva, etc.

Odjoco ou Cadjoco?

A etnicidade Bijagó, como fator definidor de suaparticularidade e especificidade em relação aos demais gruposdo país, existe de forma bastante explícita, dentro e fora domesmo. Se um grupo se caracteriza pela língua, por sua históriae por elementos de sua cultura, seria oportuno relembrar eenfatizar alguns aspectos já citados anteriormente, para pensaro problema de identidade.

Um primeiro traço distintivo que faz com que oindivíduo se considere como Bijagó é descender de um dosquatro clãs (ou geração), como dizem no arquipélago:

Ogubane – poder do fogo;

Oraga – poder da chuva e dos ventos;

Ominca – poder das plantas medicinais;

Orácuma – poder do chão.

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E se, num primeiro momento, a filiação pelamatrilinearidade integra o indivíduo no grupo, no momentoseguinte surge a oposição, o conflito: o pagamento daGrandeza, mecanismo pelo qual se materializam as relaçõesentre jovens e velhos, maturos e imaturos, com aobrigatoriedade de prestação de serviços, obediência total eentrega de bens aos grandes. Isto quer dizer que pertencer àordem social Bijagó, estar inserido na trama de relaçõesformadoras do tecido social, significa estar submisso aosanciãos do grupo25.

Um outro traço marcante, apontado pelos não bijagó,como sendo reconhecidamente característico deles, é a intensasociabilidade do grupo, concretizada, num sem número deronia26, darmá27, choros28, festas de todos os tipos, mostrandoa necessidade de estimular as relações do indivíduo com outrasformas de materialização da força vital.

Ousando, adentra pelo campo da psicologia – apesardos nossos marcos teóricos estreitos para essa trajetória –parece-nos, a partir da observação dos rituais de iniciação,que o grupo oferece todos os elementos para a formação daidentidade sexual do indivíduo. A bi-sexualidade é levada emconta e trabalhada: a) nos rituais,femininos durante a dançade defuntu29 ocorre uma mudança nos estados de consciência

25. Esse elemento sempre nos foi ressaltado como de extrema importância,a tal ponto que, todas as vezes que visitávamos um aldeamento, éramosaconselhados a levar algum presente aos grandes, sob a forma de folhasde tabaco, como um pagamento de grandeza, e como reconhecimento daautoridade dos mais velhos..

26. Vide glossário em anexo.27. Vide glossário em anexo.28. Vide glossário em anexo.29. Vide glossário em anexo.

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da jovem adolescente, que permanece numa espécie de transehipnótico, durante o qual os elementos masculinos de suapersonalidade assumam-se, sendo socialmente aceitos e,mesmo requeridos; cada jovem deve transformar-se numrapaz, agindo como se fosse homem, recebendo e, daí pordiante, possuindo um nome masculino. Regularmente, esseviver masculino ocorre, quando as mulheres se reúnem nolocal sagrado da grandeza das mulheres quando o defuntuvem à tabanca, devido a uma crise, perturbação, problema,etc, b) nos rituais masculinos, durante a fase do Cabaro, osrapazes elaboram e trabalham os elementos femininos de suaspersonalidades, uma vez que deixam emergir os componentesde narcisismo, vestindo-se de modo a atrair atenção dasmulheres, através de colares, brincos, lenços de cores vivasao redor da cabeça, procurando exercer uma sedução passiva– o que nos parecia uma atitude tipicamente feminina – aovê-los nas festas, pelos caminhos, lançando olharesprovocativos às mulheres à sua volta.

Em ambos os casos, a identidade sexual de cada um,homem/mulher, é reforçada na faixa etária seguinte, em que oOcanto exerce a maternidade e o Camabi comprova, a cadadia, sua função de protetor, produtor.

Complementando essas observações, arriscaríamosafirmar que mesmo elementos de sadismo, são socialmenteaceitos e resolvidos. Durante os rituais de iniciação os grandespraticam a violência física sobre os jovens, praticando aescarnificação, que exige, não somente daquele que está sendosubmetido à prova, mas também por parte daquele queempunha o instrumento, um controle sobre a dor e a piedade.É necessário enfrentar as provas de ambos os lados, pelosjovens e pelos velhos. Não poucas vezes, ocorremcomplicações, devido a hemorragias e infecções, sobrevindo

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a morte de alguns que não regressam do mato sagrado –local onde ocorrem as cerimônias secretas.

Esse indivíduo, com uma identidade formadalentamente, através de ritos e cerimônias, sob a orientaçãodos mais velhos, é socializado num respeito a tudo o que osantepassados ensinaram. Qualquer alteração pode correr orisco de alienar a proteção dos irans30, de romper o pactoestabelecido pelos ancestrais com as forças tutelares. Umamodificação no fazer pode implicar numa alteração nasrelações socialmente aceitas. As condições de existência socialdo grupo limitam a esfera de eclosão do inesperado, uma vezque o sistema organizatório pressupõe valores que resguardamo aparecimento de situações que possam acarretar alteraçõesbruscas. O conhecimento acessível a cada um, conformeprescrições de sexo e de idade – a herança cultural écompartilhada por todos – ocorre numa participaçãoigualitária nesse universo. Tudo é uma questão de tempo.

Os rituais iniciáticos estabelecem a natureza doindivíduo, definindo diferencialmente homem e mulher, etambém regulam a presença do ser humano na natureza. Anão necessidade de especialização, devido a um nível detecnologia que dispensa a transmissão de técnicas através demomento e espaço próprios, mas feita pelo intercâmbiocotidiano de contatos pessoais, em relações primárias, face aface. O conhecimento adquire caráter sagrado, por ser aentrega da experiência dos ancestrais, num sentido modelardo legado dos antepassados. O homem constitui o principal

30. Vide glossário em anexo.

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meio para se atingir o outro homem, ensinar os mais jovensdemanda uma participação contínua e conjunta de todos, emqualquer momento de trabalho em grupo.

As práticas ligadas ao sagrado envolvem componentesdinâmicos que permitem a tomada de consciência e manipularativamente as energias, coisas, os acontecimentos. Aocontactarmos os homens grandes de uma tabanca, semprehouve por parte deles, uma orientação eficaz referida aexperiências anteriores em situações análogas. Haviareferência aos brancos – europeus – que lá tinham estado,inúmeras vezes, com palavras persuasivas, presentes... e aofinal o que desejavam era a cobrança de impostos, ou , nãohavendo dinheiro, o recrutamento de mão-de-obra para aconstrução em outras ilhas e no continente. E, sempre a mesmapergunta, feita e refeita: porquê estão nos propondo isso?Referiam-se à instalação do projeto; a oferta de equipamentos,a comercialização, o transporte, etc. A inovação, para seraceita, devia relacionar-se com os ensinamentos que sepodem extrair do confronto presente e passado. Assim, omanter e o renovar, a tradição e o moderno surgem comocondições ou como efeitos correlatos do mesmo processosocial básico. A tradição e, em última análise, a experiênciaacumulada de ajustamentos bem sucedidos é capaz decontrolar os acontecimentos enquanto prevaleçam certascondições. Juntamente com os costumes, constitui o poderautoregulador do grupo, que garante a regularidade, oequilíbrio e a continuidade.

Ainda nessa reflexão, talvez se possa entender porqueo desenvolvimento não seja um requisito pertinente ao grupo,uma vez que as crenças e rituais agem como substituto àpesquisa e à busca de supostas melhorias técnicas. Na medidaem que a produção supõe uma relação fundamental com o

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sagrado – a terra é entidade sagrada cuja utilização pedeatos propiciatórios, oferendas – há um limite à extensão ealcance de sua exploração. O ritmo do processo produtivoregula-se por um total respeito à natureza. Os homens apenasajudam as entidades na obtenção da produção realizandocerimônias para conseguir uma colheita mais favorável,pedindo mais chuva. Não há outro modo para interferir noaumento da produção, uma vez que o que ela pede é oresultado da ação das forças pré-existentes que formam asentranhas da terra. Inexiste a vontade de um domínio sobre anatureza, pois a relação com ela é sempre uma relaçãosagrada. Não se controla a natureza, vive-se num perfeitoequilíbrio com ela, e não se retira do mato o que é do mato,conforme as palavras do homem grande da ilha de Canogo.

Parece-nos que as atividades relacionadas com aobtenção de bens para a sobrevivência não se distinguemdas rituais-religiosas, pois todas se realizam sob a égide dorelacionamento com manifestações da força vital. Numacomplementariedade de ações, a vida é garantida, nãoexistindo lugar, nem para a acumulação, nem para aespecialização das funções. Ocorrendo uma produção maior,uma melhor colheita, isso significa que os irans são benfazejos,sendo um indicador de que são dadivosos para com acomunidade, devendo ser grande a festa de repartição doarroz. Muitas serão as oferendas e, evidentemente, oconsumo, pois há muito o que comemorar. Assim, festas,cerimônias antigas, que não puderam ser feitas, serãorealizadas. Vivendo num equilíbrio instável com os fatoresnaturais, sobre os quais o grupo não possue nenhuma formade interferência, as atividades econômicas subordinam-se aosatos propiciatórios, capazes, esses sim, de uma eficácia sobrea produção.

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Os Bijagó, como outros grupos étnicos africanos,elaboram suas identidades através de processos de socializa-ção e de reprodução de sua ordem social. Esses processosse fazem em termos das relações dos homens entre si, com anatureza e com o sagrado, refletindo uma visão de mundovivenciada por todos, tendo como matéria-prima básica,como já apontamos anteriormente, os fatores comunaissedimentados nos valores civilizatórios próprios: a força vital,a dança do defuntu, o culto aos ancestrais, a gerontocracia,a matrilinearidade, entre outros. Todos esses elementos fazemcom que o indivíduo, o Bijagó, comporte-se em função dedeterminações de compromissos de ordem social societária,sendo a sociabilidade um elemento dominante. Existe comoque um cordão umbilical ligando o indivíduo à comunidade,cada um faz parte dela, como a abelha pertence à colmeia.

Uma reflexão sobre a natureza dos bens produzidosnos faz supor que neste grupo social a produção não se dávisando o lucro, mas sim numa modéstia de exigências – osbens produzidos são personalizados e não reificados – poisse lida com homens e não com mercadorias. Parece-nos quea noção capitalista de desenvolvimento e progresso aí nãose coloca e não encontra eco, nesse tipo de economiasuficiente. Vistas dentro de seus objetivos, de sua lógica edados os seus meios para a produção, as necessidades sãosatisfeitas, uma vez que não se deseja muito, mas sim, osuficiente. A concepção de riqueza para o grupo, parte deoutras premissas, diferentes das ocidentais – na economia demercado – as necessidades são finitas e poucas e os meiosadequados. Não se coloca o problema da escassez, mas sim,da prodigalidade e da abundância. A produtividade existepara a satisfação de necessidades sociais e não em funçãodo lucro, do acúmulo.

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Nessa linha de raciocínio, parece-nos que a aceitaçãode novas técnicas de captura, na atividade pesqueira, com aintrodução de um outro tipo de produção – circulação econsumo – poderá fazer com que surjam outras formas deorganização, administração e gestão dos bens produzidos emoutras bases, outros pressupostos e objetivos. Essa inovaçãotraz, para dentro do grupo, elementos de fora que podemgerar a desorganização das instituições vigentes, uma vez quelevará à diminuição da autoridade dos velhos, o desprestígiodas cerimônias, o apelo ao acúmulo individual, entre outros.Outros valores passam a ser sucessivamente veiculados dentrodo grupo.

Daí nossa pergunta, título desse item: “Odjoco (Bijagó,em língua Bijagó) ou Cadjoco (não Bijagó)?” Como continuara ser Bijagó se as instituições básicas vierem a ser solapadasem sua base?

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VENTOS SOPRAMDO CONTINENTE

Temos que levá-los a ter necessidadesNecessidades quer dizer coisas:

só então é que eles ganharão de fatogosto pelo trabalho.

(Scheurman, 1983: 59)

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De Bissau, outras idéias, outros modelos

Dentro do plano do PAIGC de desenvolver o país,foram adotados inúmeros programas de ajuda, elaboradospor delegações de especialistas, que percorremdeterminada região assessoradas por técnicos estrangeirose representantes do governo local. Após as visitas, sãofixados os objetivos, o montante da ajuda, o pessoal a sercontratado, o cronograma de atividades, etc. De modogeral, os grupos de trabalho reúnem-se na Capital edeliberam o que deverá ser feito nas regiões escolhidaspara receberem os programas.

No caso em questão, que pretendemos examinarmais de perto, a ajuda internacional voltou-se para o setorpesqueiro, uma vez que a região em que vivem os Bijagóé extremamente piscosa e, especialistas na matéria,estimam que o potencial eleva-se a 400.000 toneladas decaptura por ano31.

Desse modo, com plena justificativa do ponto devista da rentabilidade da ajuda – uma vez que existe peixe,existe necessidade de pescado no mercado interno do país,existem pescadores, existe capital a ser doado e tecnologiapara tal – um plano inicial é traçado em novembro de197632, visando elevar a captura no setor da entãodenominada pesca artesanal (com essa denominaçãoentendia-se a pesca praticada pelo grupo apenas para

31. Dados do CECAF – Development of Fischeries in the Eastern CentralAtlantic – Dakar, Senegal.

32. Uma delegação da Agência Sueca para o Desenvolvimento, visita o paísde 3 a 12 de novembro de 1976; é elaborada a sugestão, em 26 denovembro de 1976, de um plano de ajuda de desenvolvimento da pescaartesanal.

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consumo próprio, sem a criação de excedentes). Esse planoinicial propunha como etapas:

– desenvolvimento da pesca artesanal;

– introdução de técnicas modernas (barcos/ motores/equipamentos);

– elaboração de sistema de distribuição no país (trans-porte/ armazenamento, etc).

Os objetivos desse plano foram definidos: paraaumentar a produção pesqueira, para cobrir em primeiramão as necessidades internas e, em segunda mão, aexportação. Além desses, complementarmente seobjetivava: a desenvolver a pesca tradicional e construiro setor pesqueiro baseado em recursos internos; a melhorara distribuição de peixe no país e criar possibilidades deexportação; a desenvolver um tipo de barco e de métodode pesca adequados para as águas da Guiné-Bissau.

A proposta orçamentária foi fixada, de 1976/77 a1981, num total inicial de 20.700 milhões de coroas dentroda ajuda sueca à Guiné-Bissau.

O plano foi recebido com entusiasmo por todos,pois iria atingir objetivos importantes: aumentar a ofertade proteína no interior do país e na capital, Bissau. Alémdisso, acrescente-se a situação do novo governo recém-saído de uma luta de libertação e necessitando apresentarresultados positivos para os diferentes grupospopulacionais que apoiaram o PAIGC durante a guerra.E, no panorama mundial, seria preciso mostrar ao mundoque o país levava a cabo projetos visando o interesse dapopulação carente, subnutrida e enferma.

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Basicamente o projeto se propunha a fornecer umponto de estocagem do produto (câmara frigorífica),meios de transporte, rede de comercialização (DOWBOR,1982 : 97). Além disso, fornecer meios de produção, quaissejam: redes para pesca de diferentes tamanhos, anzóis,linhas de nylon, motores fora de bordo, canoas ecombustível.

Para efetivar tudo isso foi necessário criar umsistema de financiamento, uma vez que o material doadopela ajuda externa ao Estado guineense deveria servendido à população das ilhas. Um sistema de crédito foielaborado nos anos iniciais de instalação do projeto: ospescadores recebiam todo o equipamento necessário acrédito, num contrato de compra para pagar em 3 ou 5anos. Recebido o material, começa-se imediatamente apescar, vendendo-se ao Projeto o produto da captura.Desse modo, elabora-se de fora, em Bissau ou na Europa,um projeto de melhoria da captura numa região do país,fornecendo à população os meios de produção. Ao Estado,competiria o restante: estocagem, t ransporte ecomercialização.

Como foi dito anteriormente, os acordos e os planosiniciais foram elaborados por especialistas europeus quevisitaram o país, percorreram toda a região, contataramoutros especialistas em Dakar, Senegal, ligados ao CECAFda FAO.

Ao se elaborar o projeto, as necessidades e objeti-vos fixados inicialmente enfatizam como um dos maio-res problemas da Guiné-Bissau, a carência de proteínajunto à população, o que contribui para as altas taxas demortalidade infantil, devidas à subnutrição alimentar.Também são citados como dados importantes o déficit na

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balança de pagamentos devido à importação de alimentos eo desemprego declarado ou o subemprego, principalmentena Capital. Todos esses problemas poderiam ser abarcadose resolvidos pelo desenvolvimento da pesca.

Parece-nos importante enfatizar que, nesse primeiromomento, quando os planos iniciais são traçados, osobjetivos e as necessidades a serem atendidas estãovoltados, prioritariamente, para fora do grupo, para aCapital, para o Estado Guineense.

Evidentemente, do nível governamental, por partedo Ministério do Plano, existia uma vontade política demobilizar a população para o desenvolvimento. Inúmerosrelatórios, discursos, entrevistas, etc. desse períodopoderiam ser citados para mostrar como o Estado apontavapara os obstáculos existentes e propunha as soluções que,de seu ponto de vista, seria a melhor estratégia possível.Os recursos externos são encarados como elementoscomplementares (DOWBOR, 1980) de uma dinâmicainterna do desenvolvimento, não devendo constituir adinâmica em si. Isso acarreta, como conseqüência, queos projetos sejam realizados menos em função depropostas externas de financiamento que sãoapresentadas e mais de acordo com prioridadespreestabelecidas, em função das necessidades internasmais prementes.

Recorrendo-se à ajuda externa, é criada uma infra-estrutura a fim de propiciar aos pescadores da região oaumento de sua produção pesqueira em 5 toneladas depeixe por canoa e por mês. Isso tornaria possível a umaunidade de pescadores obter uma certa quantia de dinheiromensalmente (50.000 pesos, caso o preço fixado fosse ode 10 pesos o quilo), dinheiro que permitiria comprar

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mais canoas, financiar outros bens de produção, entrandonum ciclo cumulativo que rompe o círculo cumulativo dapobreza. Assim, mais do que de uma empresa que viessepescar no seu lugar, a população precisava das redesbásicas, das infra-estruturas iniciais, para poder tomarnas suas mãos o seu próprio desenvolvimento(DOWBOR, 1980).

As metas produtivas são fixadas para 2.000 ton.anuais, durante os três primeiros anos do acordo, e oProjeto de Desenvolvimento da Pesca Artesanal/PESCARTE contou inicialmente com 9 milhões de coroassuecas para os primeiros anos das atividades. O períodode 1981/85 recebeu um acréscimo, assim distribuído:

1981 1982 1983 1984 1985 Total1. Pessoal Consultoria 1.080 1.080 1.080 1.080 1.080 5.400

2. Investimentos Construção 210 210 210 210 210 1.050

Construção 1.800 950 1.500 1.500 1.500 7.250

Transporte 1.300 500 800 – 500 3.100

Teste e experimentos: pesca 500 – 100 – – 600

diversos 50 50 50 50 50 250

3. Equipamentos, barcos depesca, redes, motores 600 600 600 – – 1.8004. Outras atividades 250 250 250 250 250 1.250

Totais 5.790 3.640 4.590 3.090 3.590 20.700

TOTAL: 20.700 milhões de coroas suecas. (1 dólar = 8,2 coroas)Fonte: Programa da Pesca Fluvial e Costureira da Guiné-Bissau, plano

para 1981/1985, p. 11.

A estimativa apresentada pelo CECAF(Development of Fisheries in the Eastern Central Atlantic)demonstra que há viabilidade econômica para o Projeto.A demanda interna não era, então, satisfeita (TURPIN,

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1982). Inúmeras são as espécies comercializáveis no país eelas foram classificadas em quatro categorias para a fixaçãode preço no mercado interno:

Categoria Preço ao produto Preço ao consumidor

1a. 30 PG 50 PG

2a. 25 PG 40 PG

3a. 15 PG 30 PG

4a. 11 PG 22,50 PG

Segundo Bonnardel Nguyen (1967:35) a zona doarquipélago dos Bijagó constitui uma zona de importanteconcentração na estação seca, pois as águas costeirasabrigam inúmeros tipos de cardumes, advindo a fertilidadebiológica das condições hidrológicas específicas dessaregião da África Ocidental.

A existência de duas correntes marítimas, a dasCanárias e a Contra-Corrente Equatorial influenciamduplamente a região, podendo mesmo se falar emverdadeiras estações hidrológicas: a) de novembro a maiosopram os alísios do nordeste e ocorre o predomínio deáguas frias e salgadas, a salinidade aumenta. Nesse períodotemos grande fertilidade biológica, devida àpredominância de sais nutrientes; b) de maio a outubrotemos o predomínio de águas quentes, não salgadas,devido às precipitações abundantes.

É importante ressaltar o fenômeno da ressurgência– upwelling – provocado pela subida das águas frias dofundo para a superfície. As causas são desconhecidas nacosta africana; as águas frias trazem em dissolução grandesquantidades de sais minerais, em especial nitratos e

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fosfato. São, por isso, mais próprias para o desenvolvi-mentomaciço de pastagem dos animais aquáticos em geral, ouseja, as Algas Diatomáceas que são o substrato alimentarbásico da vida do mar.

A variação na salinidade no meio ambiente causaconseqüências no comportamento dos animais. Assim,nos meses da estação seca em que a salinidade aumenta,a fertilidade biológica é significativamente maior,ocasionando uma captura mais abundante. Durante essaestação, os organismos do fitoplancton se reproduzemrapidamente devido à fotossíntese da matéria orgânica,sendo grande a piscosidade no período.

Inversamente, na estação das chuvas, com adiminuição da salinidade, os cardumes se afastamprovocando, consequentemente um decréscimo na capturanessa região, uma vez que as embarcações não avançammar adentro, limitando-se à pesca costeira.

Nas ilhas do arquipélago, no período de altapiscosidade, encontram-se também pescadoresconsiderados como profissionais, uma vez que se dedicamunicamente à pesca, vindos do Senegalou Gâmbia, duranteo período da estação seca – meses de dezembro a maio.

Esses pescadores sanzonais têm vindo pescar naságuas guineenses há anos, havendo registro dessas vindasmesmo durante o período colonial, e teriam sido osresponsáveis pela introdução do uso das canoas, queficaram conhecidas por seu nome – nhomincas – e tambémpor algumas técnicas de pesca usadas em seus países deorigem.

Os nhomincas senegaleses estabelecem-se nas ilhasSoga, Rubane, em habitações provisórias, dispondo decanoas grandes, motorizadas, e todo equipamento de

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pesca. O produto da captura é vendido, diretamente por eles,no mercado de Bissau, e uma parte é conservada, seja porfumagem, seja por secagem. Terminada a estação seca,regressam ao seus países levando peixe defumado, seco ousalgado. Segundo alguns relatos, que não comprovamos, essespescadores também comercializam o óleo de palma – azeitede dendê – que compram diretamente dos produtores, nasdiversas tabancas das ilhas, aprovisionam e depois levam paravender no Senegal e em Gâmbia. Não sabemos se isso sedá, mas, certamente, devem utilizar de algum modo o montanteobtido pela venda do pescado em Bissau, pois não lhes serviriade nada sair do país com pesos, moeda de circulação restritaao país.

Com a instalação do Projeto de Desenvolvimentoda Pesca Artesanal – PESCARTE – em Bubaque,passaram a vender toda a captura ao Projeto, não maisnecessitando ir a Bissau em busca de gelo e combustível.Evidentemente, que a instalação dessa infra-estruturabeneficiou a esses pescadores, facilitando e tornando maisreconhecida pelo Estado, sua atividade.

Cooperantes europeus organizam o trabalho

Do acordo firmado entre os dois países (Suécia eGuiné-Bissau), coube à Suécia o planejamento daorganização e administração do projeto, que se denominouPESCARTE e que ficou sob a responsabilidade daSecretaria de Estado da Pesca da Guiné.

Um plano inicial de contratação de pessoal técnicofoi elaborado, assim como uma linguagem de compra dosprimeiros equipamentos necessários. A princípio foram

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contratados técnicos estrangeiros e a Secretaria da Pescaforneceu pessoal guineense para a administração.

Os trabalhos iniciaram-se na ilha de Bubaque, ondeexistia um mínimo de infra-estrutura indispensável paraa execução do projeto.

Em conjunto, técnicos europeus e representantes doEstado Guineense (no caso, o Comitê de Estado do Setorde Bubaque) visitam as aldeias, contatam a populaçãodessa ilha e de outras, visando a mobilização e oenquadramento da população Bijagó dentro do programa.Nesse primeiro momento, buscava-se saber quantospescadores estariam interessados em participar dostrabalhos. Foi feita uma relação de nomes de grupos de,praticamente, todas as aldeias da ilha de Bubaque. Ocontato feito durante reuniões com a população, da qualparticipavam todos, falando sempre os mais velhos, osgrandes.

Após as reuniões, os interessados se inscreviam parareceber os equipamentos. Não foi imposto nenhum critériode prioridade ou preferência quanto à distribuição deredes, anzóis e linhas. Para a distribuição de canoasmotorizadas ficou estipulado que receberiam: 1 na linhade Canogo, 1 em Orangozinho e as demais ficariam emBubaque, de preferência 1 por aldeia, evitando que umaaldeia recebesse duas, pelo menos no início.

Nessa primeira etapa não foram atingidos muitosindivíduos, que assumiram pessoalmente as dívidas; setereceberam canoas de madeira novas e motorizadas e todoequipamento para pesca: redes, cordas, bóias, linhas; cincoindivíduos receberam motores que foram colocados emcanoas já existentes, melhoradas, e também o equipamentopara pesca; oitenta restantes receberam apenas material

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para pesca, devendo utilizar as antigas canoas escavadas, aremo, sem motor.

A forma de pagamento não foi fixada rigidamente,esperando-se que, apoiados nessa infra-estrutura deprodução, os indivíduos viessem a capturar mais peixe,ou vendessem ao Projeto e assim pagassem a dívidaassumida num prazo de 3 a 5 anos.

Os cálculos eram perfeitamente razoáveis, uma vezque os objetivos fixados de cinco toneladas de peixe porcanoa e por mês significaria uma renda bruta de 50.000pesos mensais para cada unidade produtiva de 5 homens.Se tomarmos o limite máximo fixado de 5 anos e a dívidaassumida de 75.000 pesos (referentes a 25.000 do motor,30.000 da canoa e 20.000 da rede), haveria umaobrigatoriedade de pagar 15.000 pesos ao ano, o querepresentaria pouco mais de 1.000 pesos por mês.

Comparando os salários vigentes no período,constatamos que um professor do Ministério da Educação,ou um trabalhador da Secretaria da Pesca junto à Câmarafrigorífica, recebia 3.500 pesos mensais.

Assim, os integrantes de uma unidade produtivacom canoa motorizada e equipamento moderno de pesca,capturando cinco toneladas de peixe ao mês, receberiamum total de 50.000 pesos, o que significaria três vezesmais do que recebia um trabalhador na região. Além disso,teriam possibilidade de pagar folgadamente a dívida nos5 anos de financiamento.

Para a consecução desse índice de 5.000 quilosmensais por canoa, qual a necessidade diária, ou semanal,de trabalho? Sabemos que a média de captura a cada vezque se vai à pesca é de 200 a 300 quilos. Portanto, paraatingir tal índice, seria necessário ir à pesca 20 a 22 dias

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por mês. Ou 20 dias, numa média de 250 quilos por dia. Ir àpesca 20 dias ao mês significa organizar o trabalho de talmodo que o indivíduo se dedique exclusivamente à atividadepesqueira, pois é necessário reparar as redes e o motor nosdias em que não se vai ao mar.

Em termos do indivíduo produtor, o que istosignificaria? Sem dúvida, uma dedicação a essa atividade,ou seja, a transformação do indivíduo, que é pescadorocasional, sabe pescar, conhece as técnicas, mas não viveapenas dessa atividade, pois ele é também agricultor,coletor, artesão e criador, como foi descrito anteriormentequando nos referimos à natureza do trabalho entre apopulação Bijagó.

Portanto, não se trata apenas de introduzir dentrodo grupo uma infra-estrutura de meios de produção paramelhorar a captura, pois isso representa a imposição deum novo procedimento econômico, que obedece a outralógica, a outros critérios que não os da satisfação danecessidade do grupo. Até então, ir pescar significavaobter peixe para a família ou para a aldeia toda, se setratasse de uma cerimônia, uma festa religiosa ou umritual. Pescava-se em maior, ou menor quantidade,conforme a necessidade do consumo; quer dizer, se sevai consumir mais num choro33 de um régulo, então seusa um cerco para se conseguir o triplo do que se obteriacom a rede ou o arpão. Se não vai haver consumo tãogrande, não há necessidade de produzir mais. Por quê?Não há necessidade de se criar excedente. Apenas seproduz o que se necessita para o consumo imediato.

33. Ver glossário em anexo.

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Com a vinda do Projeto, um grupo de pessoas dentroda aldeia deve ir à pesca regularmente e dedicar-se totalmentemais a essa atividade, não mais no sentido artesanal, mascomercial, ocorrendo uma transformação no ritmo detrabalho. Em outras palavras, trabalha-se para a obtençãode surplus a ser vendido para o projeto, que será levado aocontinente, para a capital e interior do país, onde a proteínase faz necessária.

O procedimento habitual, conhecido e usado portodos, deve ser alterado: o projeto fixa o horário e os diasde recebimentos: por exemplo, como os trabalhadores dacâmara frigorífica não trabalham aos domingos, dá-sepreferência a que se vá pescar nos dias úteis. Como aogrupo a idéia de Domingo, Sábado, dias úteis (ou inúteis)não existia, usou-se um artifício: aos domingos o preçopago seria menor até que os Bijagó aprendessem. Assim,o cronograma de fora, planejado em função de umanecessidade empresaria, precisa ser respeitado. Aatividade antes complementar, em relação a tantas outras,passa a ser prioritária, exclusiva, dominante, passandotambém a ter um outro valor. Surge a figura do pescadorcomo uma categoria de trabalho. Até então as atividadesprodutivas obedeciam ao ritmo da natureza, do calendárioagrícola, da satisfação das necessidades de sobrevivência,ou de sociabilidade, ou ainda de estruturação do grupo,onde os jovens produziam para os mais velhos, poisdeviam pagar grandeza. Agora o processo produtivoobedece a outros parâmetros: pescar terá uma outrasignificação, pois a atividade terá que produzir excedentepara o mercado.

Além disso, esse mercado, assentado pelo Projeto,determina o valor do produto; o preço do peixe, por

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exemplo, é fixado em Bissau. O Projeto também determina oequipamento a ser usado; qual o tipo de motor (no caso emquestão os motores são Volvo-Penta de 15 cavalos), omaterial das redes, se nylon, se algodão ou outro material. Omercado, através do Projeto, é que regula a atividade dopescado, tornando-o alienado da decisão caso queira tersucesso na atividade; capturar tanto, vender tanto e lucrartanto. Com o dinheiro obtido poderá comprar as coisas quedeixa de produzir, se as encontrar no mercado local, podendotambém, como afirma Kamarck (1971), transpor o limiarda segurança, planear o futuro; assim, como escreve Turpin(1983): uma modificação de suas mentalidades para fixare amadurecer idéias de produzir para ganhar e melhorarsua própria condição de vida.

Máquinas, motores, melhor captura

Para tornar a captura mais produtiva e otimizar aatividade pesqueira, os técnicos estrangeiros estão àdisposição dos pescadores para ajudá-los e ensinar-lhesas novas e modernas tecnologias.

Os motores de marca Volvo-Penta, antesdesconhecidos no local, são demonstrados através deexplicações sobre seu funcionamento; qual proporção deóleo deve ser juntada à gasolina, como trocar as velas,como limpar, como fazer a manutenção, etc. Um tipo delógica racional ocidental é introduzida e a ela é necessáriorecorrer quando houver uma pane no motor. Dentro dosbarcos refrigerados para o transporte do pescado existemradar, bússola, mapas e eco/sonda. Os pescadoresaprendem a usar aparelhos refinados, vindos da Europaou de Bissau. Antes, quando um grupo saía à pesca,

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sempre havia uma cerimônia propiciatória a um iran protetor.As entidades protetoras deviam ser invocadas para quefossem benfazejas, ajudando a captura farta, sem que as redesse perdessem ou que o cerco fosse destruído por correntesviolentas, ou ainda para que não viessem ventos outempestades que levassem as frágeis embarcações de remos.

Agora, as coisas se modificaram, com a vinda dostécnicos pode-se localizar um cardume através deaparelhos dentro dos barcos e as bússolas indicam o rumoa seguir mesmo durante o mau tempo. Os motores sãovelozes, potentes e vencem as correntes levando a canoarapidamente para o canal adequado. A captura torna-semelhor, mais farta, e o grupo torna-se mais produtivo,com a utilização das novas tecnologias, seguindo aorientação dos técnicos, ou mesmo, a instrução escritaque acompanha o motor. Mas, para isso, é necessário saberler, conhecer o português. E quem sentiu a necessidadede escola naquele grupo? Muitas vezes nenhum dosintegrantes. A necessidade de conhecimento da leiturasurge de modo muito incipiente, mas é reforçada pelostécnicos europeus que explicam que naquele papel estãoas instruções de como fazer para que o motor seja limpo,ou algo nesse sentido.

O que era ensinado anteriormente, pela tradição oral,nas cerimônias de iniciação, na escola do mato, já nãobasta. Somente a crença nos preceitos dos ancestrais éinsuficiente. É preciso conhecer outros preceitos,reverenciar outros deuses, respeitá-los! Assim, o técnicoeuropeu traz consigo um novo procedimento produtivoque pressupõe outras habilidades e implica outros valores.Agora, o que passa a predominar é a racionalidade inerenteao raciocínio econômico, que conflitua com o que foi

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ensinado anteriormente na comunidade. A segurança de umindivíduo socializado por outros processos, sem dúvida, éabalada. E os irans protetores? Onde ficarão nisso tudo?Elementos novos devem ser assimilados e passam a serdisseminados dentro das aldeias.

Os procedimentos ligados à lógica econômica,estrangeira, impõem-se e parecem ser mais eficientes esedutores. Pode-se pescar mais, pode-se ir mais facilmentepara outras ilhas ou transportar um doente que necessitede cuidados médicos e as canoas motorizadas são muitomais rápidas, se comparadas com as pirogas à remo;pode-se ir mais longe, para locais onde se sabe existirempeixes maiores, antes inacessíveis em embarcaçõespequenas, sem motor. Como negar esses benefíciosadvindos de um transporte veloz e os proporcionados pelapossibilidade de compra de produtos novos, existentesno mercado? Como foi dito anteriormente, através dodinheiro recebido pela venda do peixe, seria possívelcomprar outros bens, consumir outros produtos dantesinviáveis para o grupo.

Com a organização da captura pelos técnicoseuropeus, ensinando a utilização racional de modernosinstrumentos de pesca, capacita-se um grupo de pessoasdentro de cada aldeia que pode se dedicar integralmente àpesca, deixando as outras atividades produtivas, transfor-mando-se assim em pescadores. Esses indivíduos passam ater contato mais direto com os integrantes do Projeto emBubaque; muitas vezes os recebem em suas casas, bem comovisitas de delegações que por ali passam em diferentesmissões. Sem dúvida, os pescadores do Projeto adquirem umoutro tipo de prestígio ou status dentro do grupo.

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Dentro das aldeias surgem, pois, novas diferenciaçõessociais, por meio da afirmação de uma desigualdade: quemtem ou não tem certos meios de produção (canoa, motor,redes, etc.). Há uma valorização do possuidor e isso conferea ele um prestígio antes inexistente. Fica aqui, então, a questãonão respondida: essas novas categorias sociais, osproprietários, demonstrando que já ocorrem mudanças nosistema de status social, levarão a mudanças nas formas deautoridade intragrupal?

E o arroz, como obtê-lo?

Os Bijagó vivem num tipo de organização em queexiste uma complementariedade das atividadesprodutivas, não havendo especialização ou outro tipo dedivisão de trabalho que não seja o por sexo e idade. Cadaunidade familiar forma na aldeia uma unidade autônomaauto-suficiente, capaz de se manter pela produção donecessário para a sobrevivência e pela sociabilidadeintensa que caracteriza o grupo.

Se, na aldeia, um ou dois grupos se dedicaminteiramente à pesca, abandonando a agricultura, nãocultivando o arroz, produto básico da alimentação,como irão obtê-lo, se não existe outra forma deproduzi-lo?

Num primeiro raciocínio a resposta é fácil: se ascategorias referenciais forem as ocidentais, basta comprarno mercado local, com o dinheiro obtido na pesca, o quesem dúvida, seria possível se esse mercado fosse garantidoe efetivamente existisse. Mas não é o que ocorre. Nãoexiste esse produto em nenhuma das lojas dos Armazéns

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do Povo34 das ilhas e, em Bissau, raramente é posto à venda.Somente se consegue por requisição governamental e paratanto é necessário estar-se ligado ao aparelho estatal, querequisita para seus funcionários o produto, Arroz é merca-doria importada que não existe à venda.

Outra solução possível seria pagar alguém paracultivá-lo em seu lugar. Vejamos como isso se daria: ohomem e sua família devem cultivar o arroz, mas comoele deixa de ir porque vai pescar, ninguém mais vai .Somente a mulher com as crianças e os mais jovens nãoconseguem levar a cabo as tarefas pesadas dedesmatamento, queimada, preparo do terreno. E depois,na colheita e transporte, também a ajuda masculina éimprescindível. Se um dos integrantes falta, o todo nãose mantém, pois a contribuição de cada um é necessária.Desse modo, a mulher não poderá mais contribuir comsua parcela na atividade de obtenção de arroz. Deixa de irao campo também e passa a depender do homem paraconseguir a alimentação sua e da prole. Assim, essehomem terá de decidir se compra o arroz que talvezexista no mercado ou se paga alguém para substituí-lono cultivo.

Para a sobrevivência do grupo temos: homemdependente do mercado para vender o peixe e comprarcombustível e equipamento; mulher dependente dohomem para a compra do arroz; e outros homensdependentes do pescador assalariam-se para trabalhar nocampo nas tarefas consideradas como masculinas.

34. Armazens do Povo: após a independência as autoridades guineenses nopoder controlam e organizam a distribuição dos bens através dessa redede estabelecimentos comerciais.

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Um novo eixo de equilíbrio se instala e se deslocapara a figura masculina: o homem passa a ser o únicoprodutor dentro daquela família em que surge a figurado pescador fulltime. À mulher restam as tarefasdomésticas: cuidar dos filhos, artesanato de palha, coletade frutos e moluscos. Para obter arroz, a mulher, já quedepende totalmente do homem, não consegue rompersozinha o ciclo do autoconsumo. Não lhe foi destinadainfra-estrutura que propicie atividade independente pois,dentro do grupo, a pesca é uma atividade masculina e oProjeto destina-se apenas à melhoria da captura depeixe.

Haveria a possibilidade de se criar um espaço paraleloà mulher: são as mulheres que coletam ostras e mariscos,mas até então não havia interesse na comercialização dessesprodutos.

Para um abastecimento suficiente de arroz nas al-deias, o Projeto deveria garantir a oferta do produto aosseu integrantes. Mas, como obtê-lo? O país ainda nãoconseguiu atingir os índices de auto-suficiência alimen-tar, importando de fora o arroz necessário.

Desse modo, caberia ao Projeto a tarefa de conseguirarroz para seus pescadores. Talvez também requisitando,como fazem vários ministérios em Bissau, com isso,aumentando a necessidade de importação. Seria a soluçãomais cômoda, mais fácil. Ou, então, alternando osobjetivos iniciais do projeto, deixando de serexclusivamente de pesca e atuando dentro das aldeias emoutros setores; em outras palavras, propiciandoimplementos agrícolas para que a produção de arroz fossemaior e para que se criasse um mercado interno nasaldeias; haveria assim um surplus alimentar de que se

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beneficiariam os pescadores, que poderiam comprar ali mesmoo arroz necessário às suas famílias.

Uma outra alternativa seria integrar diferentesregiões do país: o Projeto iria buscar arroz na região sul,para lá levando peixe, num sistema de troca bastantesimples. Dessa forma estaria garantida a oferta do arroz35.

Contudo, isso implicaria uma divisão de trabalhodentro do país, integrando pescadores (Bijagó das ilhas)e agricultores (Balantas de Buba), sem que os mesmosdependessem do incipiente mercado nacional, mas issotambém significaria deixar de abastecer a capital com opescado. O grupo de dirigentes responsável pelo setoradministrativo do Projeto e também da comercializaçãoteria que deixar de lado a prioridade do abastecimentodos hotéis, restaurantes, cooperantes e funcionários doEstado. Porém, até aquele momento não nos parecia haveruma vontade política nesse sentido. Bissau carece de tudo;possui 110.000 habitantes que precisam ser alimentados,e estômagos não se enchem com papéis, como afirmaDowbor (1983). A Capital enfrenta, periodicamente,dificuldades alimentares crescentes que o Projeto de PescaArtesanal deve ajudar a resolver, ainda que isso lhe custea insegurança na obtenção de arroz.

Novos conceitos de felicidade

Os ventos de modernização, vindos do continente,trazem consigo outros conceitos e outros valores, ligadosa outras formas de vida, de produção e de consumo.

35. Essa experiência foi feita em algumas ocasiões.

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O que se assiste inicialmente é a possibilidade de umgrupo de pessoas se destacar dos demais na aldeia, poisobtiveram inst rumentos de trabalho modernos,profissionalizam-se como pescadores e, com isso,integram-se numa economia de mercado, no processo demonetarização iniciado pela pesca.

Esse grupo se diferencia dos demais, pois na unidadefamiliar nem a mulher nem os filhos podem cultivarsozinhos o arroz, que precisa ser comprado (ou trocado)através de dinheiro. Essa nova unidade familiar, na qual amulher e os filhos são dependentes do homem, tempossibilidade de obter bens de produção até entãoinacessíveis ao grupo, começando por canoas motorizadase redes modernas, até chegar à compra de mercadoriasvindas através do Projeto, ou dos técnicos a ele ligados,como relógios, rádios e tecidos. E, claro, há também apossibilidade de se comprar o que existir à venda nosmercados locais de Bubaque (muito pouco, mas semprealguma coisa), seja através dos comerciantes particulares,seja através dos vendedores (djulas) que para lá se dirigemem busca de produtos comercializáveis no continente(óleo de palma, coconote, sementes, pimenta malagueta).E como o pescador ligado ao Projeto de Pesca conheceos técnicos ou os nacionais que administram as atividadesnas ilhas, consegue lugar nos barcos de transporte de peixepara Bissau, tendo acesso ao seu mercado e lá podendocomprar o que existir à venda.

A diferenciação inicial dentro da aldeia faz surgirum grupo emergente, não existente antes: os proprietáriosde determinados meios de produção – canoas, motores,redes. Esse grupo, por sua atuação, poderia obterexcedentes comercializáveis e com o dinheiro obtido teria

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um poder de compra maior que os demais habitantes da aldeia,ao mesmo tempo em que teria possibilidade de adotar umsem-número de inovações, desde técnicas modernas de pescae novas mercadorias, até a introdução do trabalho assalariado.

Um novo conceito e um novo valor para as atividadeseconômicas é introduzido: agora não se trata de fazer algoem conjunto para o grupo, mas produzir para obter dinheiroe com ele ter o poder de compra/ consumo. Desse modo, otrabalho representaria uma forma retificada de algo que podeser vendido, comprado, com preço estipulado. Surgem assimnovas relações sociais com outras bases, modificando osconceitos existentes de reciprocidade e ajuda mútua. Oelemento norteador que irá fixar as metas, os preços e osvalores será o Estado, categoria, até então, totalmente ausentedentro do grupo, mas que agora se faz presente, atuandodiretamente dentro do grupo. É esse Estado que, através daajuda internacional, organiza a produção em termos modernose impõe também as condições, as premissas, a disponibilidadede recursos para a instalação na região dessa nova rede derelações e interações. Os preços são fixados a partir de custosestudados, em função dos preços internacionais docombustível, das redes e dos motores.

É esse mesmo Estado que, através de seus comitêsde base, e da região, estabelece os impostos a seremcobrados e, para isso, novamente o dinheiro se faznecessário.

Num momento anterior não havia diferenciaçãodentro das aldeias, a não ser as reconhecidas e aceitas, asde sexo e idade, não havendo nenhuma diferenciaçãoadvinda da propriedade de um determinado bem deprodução, pois o único bem de produção existente era aterra e essa é de propriedade coletiva do clã dono do chão,

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que não a possui, mas gerencia, quer dizer, distribui as parcelaspor ocasião do início do ano agrícola. O grupo vivia, pois,num equilíbrio de atividades produtivas diferenciadas, semespecialização.

Agora, dentro dessa aldeia aparecem indivíduos quese especializam num setor, o da pesca, e isso significa umrompimento com o sistema de produção e reproduçãoanterior, pois implica em criar outros valores, outros tipos derelações entre os produtores. Em cada novo produtorindependente, ocorre uma alteração de sua relação com anatureza. Antes, a natureza estava sujeita às determinações evontades de entidades pré-existentes, pois de outro modo sesobrepunha e dominaria totalmente os indivíduos impotentespara dominá-la. Agora o indivíduo domina a natureza atravésde um aprendizado técnico, vence o medo e se impõe. Comseu barco veloz, movido a motor de explosão, vence as ondas,combate as correntes, enfrenta as tempestades. Aprende ase fortalecer interiormente, adquire uma segurança física aose sentir mais forte que os elementos; ele sabe e pode, estáseguro. A navegação é mais segura, efetiva, e os riscos sãomenores. Para isso, no entanto, torna-se necessário conheceros segredos dos motores, dos novos processos de captura ede conservação do pescado, pois os inúmeros aparelhosnovos implicam habilitações inexistentes dentro do grupo.

Passa a ser importante, então, sabe ler, escrever, fazera própria gestão de sua comercialização. Onde encontrar tudoisso dentro dos recursos limitados da aldeia ancestral? OEstado surge novamente como a agente capaz de trazerconsigo as inovações necessárias. Assim, os jovens sãoincentivados a freqüentar as escolas, se existirem por ali; casocontrário, devem ir para as ilhas onde existam, começandoassim o êxodo dos adolescentes.

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Os jovens deixam o sistema rígido de controle edominação dos mais velhos, formam grupos dentro da mesmafaixa etária e se dirigem a outras ilhas mais urbanizadas, ou,do interior da ilha de Bubaque, vão para a praça, ou seja,para o pequeno núcleo urbano onde vivem os europeus e osnacionais ligados ao Projeto ou ao Estado. De todos os ladosaflora um bombardeio de inovações: novos conceitos de vidae ideais são vivenciados, existem outros modelos que podemvir a ser seguidos. Enfim, existem outros mundos, na praçaos horizontes se alargam e relativizam os valores grupais.

Cooperação ou competição

As aragens transformadoras vindas do continentetrazem consigo a emergência de grupos modernizantesdentro das aldeias, os quais cumprem papel de introdutoresde novas formas de atuações na vida grupal.

A natureza do processo social até então secaracteriza pela cooperação, pelo esforço conjunto detodos contribuindo igualmente para a manutenção dogrupo. A produção se dá na dependência da iniciativaindividual, mas é realizada no quadro de umaresponsabilidade coletiva explícita, como foi descritoanteriormente. Assim, a cooperação dos esforços para aconsecução dos fins é estipulada e aceita sem restrição,não existindo acumulação por parte de alguns poucos emdetrimento dos demais.

Na base do princípio da cooperação existe asolidariedade da faixa, esta na qual o indivíduo estáinserido, onde o que importa é o intercâmbio, areciprocidade. Contudo, com os novos processos de

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trabalho, a competição intervém através da legitimação deações baseadas em interesses individuais e introdução denovos códigos de conduta.

Uma vez que no país existem etnias consideradasmais civilizadas, porque já adotaram comportamentostípicos dos europeus, para os Bijagó, encarados como umadas mais atrasadas etnias da Guiné desde os temposcoloniais, torna-se imprescindível superar a inferioridadepelo processo civilizatório. E o que esse processo implica?Implica converter-se ao cristianismo, ter nome de batismo(ou da praça), usar roupas ocidentalizadas (abaixo olopé...), falar português, ter freqüentado uma escola, terdinheiro, acumular, consumir...

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O BOMBOLOM RESSOAPELOS ARES

A grande ambição do Branco é realizarsempre novos e cada vez mais imponentes milagres...

(...) Muito fraco será aquele de nós que,subjugado por suas obras, se prostenar o Branco,aquele que se sentir pobre e desprezível por não

ser capaz de conseguir obrar coisas porsuas próprias mãos e espírito...

(...) Todos esses milagres têm um ponto fraco,oculto em qualquer parte, Não há máquina

que não necessite ser vigiada e impulsionada.A máquina é um ser sem vida, frio, incapaz deseu trabalho, de sorrir quando o terminou...

(...) O Branco corre sempre para umdeterminado fim. A maior parte das

máquinas destina-se a fazê-lo atingir maisdepressa esse fim. Nenhuma de suas máquinas,

nenhum de seus artifícios foi capaz detorná-lo mais alegre e feliz

(Scheurman, 1983)

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Casas, quadradas, notícias ao amanhecer

A pergunta se torna inevitável: quais os benefícios daglobalização/ocidentalização? A resposta à mesma, formuladade fora, também se orienta por perspectivas externas ao grupo.Uma alteração que se pode entender como positiva refere-se às habitações, que passam a ser construídas de mododiferente; a estrutura agora é quadrada, com portas, janelas,mais ventilação, mais espaço e menos umidade. Surgem algunspoucos móveis; alguns colchões passam a ser utilizados, assimcomo candeeiros de querosene, facas e garfos. O pisocontinua de chão batido, embora muitos desejem cimentá-los; mas, esse material, o cimento, é importado, caro e nãose encontra à venda. A cobertura deixa de ser de palha paraser de zinco; se por um lado contribui para aumentar o calordentro da casa, por outro lado é mais seguro contra osincêndios que ocorrem com grande freqüência, destruindoaldeias inteiras.

Além das casas quadradas, cobertas de zinco,aparelhos de rádio estão presentes. As notícias emitidas pelaRádio Difusão Nacional de Bissau são ouvidas no final datarde na tabanca que fica informada sobre os acontecimentosda capital através do noticiário em português e em crioulo;isto significa ter que saber uma dessas duas línguas. Emboranem todos saibam, sempre há alguém na família que entende,podendo traduzir e comentar, se houver interesse. Assim, oaparelho a pilha traz para as ilhas a ligação com a capital ecom o mundo, rompendo-se o isolamento existente até então,A voz dos locutores penetram nas casas ecoando pelospoilões, ressoando pelas palmeiras. De Bissau...

Bissau distante no espaço, cerca de 75% das pessoascom as quais estivemos nunca tinham ido lá, mas esperavam

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fazê-lo um dia. Há sempre uma referência , um amigo que láesteve e que conta como é a Capital, as lojas, o movimento,carros, o cinema, o hospital, tudo grande (garande, comodizem em crioulo).

Os que vão à Capital voltam com novos produtos:sandálias de plástico, tênis, roupas diferentes. São objetosde consumo que começam a surgir e penetrar dentro dogrupo. Como situar essas novas aquisições? São positivasou negativas? Podemos argumentar que o calçado representaproteção, que existem espinhos, plantas nocivas, cobras,formigas, bichos-de-pé que serão evitados se o pé estiverprotegido; então, o calçado representa algo de positivo. Assimtambém a vestimenta. Até então as mulheres faziam as saiascom fibras de uma raiz que é macerada para se obter aproteção contra as intempéries. Agora se compram tecidos,vestidos vindos de Bissau, do Senegal, da Europa. O corpofica coberto, trazendo mais calor, abrigo e proteção nas noitesfrias e nas manhãs chuvosas.

As crianças são cobertas com mantas mais quentes,assim como os doentes. Alguns até utilizam mosquiteiros,excelente proteção contra os pernilongos e, por extensão,contra a malária que infesta todas as ilhas. Dessa forma, éindiscutível o benefício que tais aquisições trazem ao indivíduo.

Mais transporte, mais sociabilidade

Outro elemento a ser apontado como extremamentepositivo é o fato de terem surgido mais meios de transporteentre as ilhas e entre o circuito Bubaque-Bissau. Existe ummaior número de canoas circulando por entre as ilhas, commotores a explosão, obviamente nos momentos em que existegasolina à venda.

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De todo modo, é possível deslocar-se para ir a umchoro36, uma cerimônia de fanado37, em encontro de régulos.A sociabilidade intensa do grupo é favorecida. Além disso, otransporte regular que existe entre Bubaque e Bissau permitedeslocamentos maiores. Ainda que, em princípio, os barcosexistam em função do transporte do peixe capturado para omercado em Bissau, é sempre possível conseguir um lugar,pagando uma certa taxa à tripulação; basta obter a aprovaçãoda direção em Bubaque, ou em Bissau. Isto sem dúvida,significa muito para eliminar o isolamento geográfico queperdurou durante anos, na região. Também os pescadoresprofissionais, os nhomincas senegaleses, facilitam otransporte de passageiros e de carga em suas canoasmotorizadas.

Desse modo, doentes são evacuados para o hospitalem Bissau e mercadorias necessárias trazidas para as ilhascom regularidade como, por exemplo, os medicamentos parao hospital ou para os postos sanitários de algumas ilhas.

Nessa reflexão sobre a intensa sociabilidade observada,cumpre acrescentar que, num primeiro momento de criaçãode excedente, devido à maior produtividade e à introduçãode equipamentos mais eficientes, a motivação por ganhosmonetários não corresponde à criação de um acúmulo paranovos investimentos. Os incentivos monetários, pretendidoscomo motivação para o trabalho, esbarram , ao nível dasaldeias, nos valores grupais que condenam o acumulo emmãos de poucos e prestigiam um consumo igualitário. Assim,ocorrem mais choros, mais festas; cerimônias sacralizadas

36. Ver glossário em anexo.37. Ver glossário em anexo.

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que não foram realizadas há anos, por algum tipo deimpossibilidade, agora são anunciadas e efetivadas. Citam-se festas onde são abatidas vacas, cabritos, porcos, galinhase consumidos dezenas e dezenas de litros de vinho de palmaentre outras bebidas; na repartição do arroz, tivemosoportunidade de assistir a colheita e armazenamento dos grãosem três partes;uma para o consumo do grupo, outra para oplantio do próximo ano e a terceira reservada para oshóspedes.

Come-se bem ou come-se menos?

Mais ajuda, menos comida... é o título de um artigonuma revista (Education, 1981) sobre desenvolvimento naÁfrica que choca à primeira vista. Depois, os dados simplesfalam mais que qualquer argumento contrário: a ajudainternacional nos anos 70 operaram dentro de um vaziopolítico. As medidas necessárias para assegurar uma justadistribuição dos recursos e o controle de seus efeitos nãotêm sido tomadas com o rigor que seria desejável.

Assim, fornece-se mais proteína para a capital e omercado local nas ilhas não tem oferta. O Bijagó deve entregartoda a captura para ser comercializada, deixando de levarum excedente para a aldeia. A capital se beneficia, mas, noplano local, come-se menos peixe, a alimentação torna-semais deficiente. E, como já foi afirmado anteriormente, se oindivíduo tornar-se pescador profissional deixará de trabalharna agricultura, tornando-se dependente do mercado local paraa compra de arroz. Aí então a situação será dramática: nãohá arroz à venda nos armazéns das ilhas. Que fazer? Onde ecomo obter o arroz?

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A monetarização da economia, dentro dos preceitosda lógica capitalista, para que possa ter algum benefício noque se refere à obtenção de produtos, pressupõe um mercadointerno organizado, com produtos à venda, de forma regular.Mas não é o que acontece nas ilhas. As poucas lojas existentesquase nada têm para ser comercializado: uns poucos panos,cana, velas, pasta de dentes, ocasionalmente sabão;raramente, óleo de amendoim e querosene.

Na fase anteriormente à introdução dos projetos, senão se comia bem, pelo menos se comia o suficiente. A dietanão variava muito: arroz, peixe, mariscos e, por cima, o óleode palma (azeite de dendê), condimento indispensável nacozinha Bijagó.

Dumont (1975) nos alerta para o problema dedependência alimentar citando estudos da FAO e do BancoMundial, nos quais se prevê a necessidade cada vez maiordos países do Terceiro Mundo importarem toneladas etoneladas de cereais. E, para tais compras, será necessário,afirma ele, pagar um preço político, o preço de umadependência econômica aumentada, de um reforçamentodas empresas multinacionais, de um neocolonialismoagravado.

Nesse cenário de dependência externa, para asatisfação das necessidades alimentares, a Guiné é forçada aapelar para a caridade, pois não dispõe de recursos parapagar suas importações.

Dowbor (1983), analisando os problemas que opaís enfrenta nos anos pós-independência, ressalta atarefa de erradicar a fome, propondo, como objetivonacional estratégico do I Plano de DesenvolvimentoEconômico e Social para 1983-1986, a auto-suficiênciaalimentar. Ressalta que, sem auto-suficiência alimentar,

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não se pode falar de saúde, educação, ou qualqueroutro programa.

As palmeiras irão secar

Os palmeirais enormes recobrem as ilhas como bênçãosdo Pré-existente e,sua a seiva , o vinho de palma, não évendido. Se o vinho for vendido, a palmeira seca, disse-nosum homem grande de Canhabaque. O vinho é o testemunhoda fraternidade, da hospitalidade existente por todas as aldeias,consumido em conjunto, ao entardecer, sob os poilõesprotetores, na solidariedade do convívio comunitário. Osjovens sobem às palmeiras e trazem o vinho para os grandes.Isso, porém, já é coisa do passado.

Hoje, o que ocorre? Dois ou três jovens passam porBubaque com cabaças de 10 a 15 litros, cheias de vinho,vendendo-o aos moradores da praça, ou seja, da zonaurbana da ilha. Vendem o vinho que antes era oferecido numgesto de hospitalidade e acolhimento para com os visitantes.Como reagirão os irans? As palmeiras irão secar? Qual otemor que nossa racionalidade ocidental poderá detectar nessepreceito antigo, sábio? O consumo familiar, amigável daseiva significa, claro, um consumo restrito, controlado. Mas,advindo a comercialização, o vinho será consumido atravésdo mercado, insaciável na sua característica de visar o lucro,a acumulação. Assim, as palmeiras furadas sem controle, semum repouso necessário para que se recuperem e continuem aproduzir sua seiva nutritiva para todos. Perfuradas semrotatividade, irão secar. As palavras sábias do homemgrande são proféticas: vender o vinho é atrair a desgraçapara as ilhas.

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A expansão do ciclo econômico para além dos limitesdas necessidades das aldeias pode levar a uma exploraçãodesordenada da natureza, resultando em graves danosecológicos.

Nas praias ensolaradassopram aragens adversas

Nas aldeias dos Bijagó sente-se o sopro dastransformações...o grupo se dá conta de que os tempos sãooutros, existem pressões contínuas, permanentes, dentro dasaldeias; a escola está ali, com o professor vindo de fora, muitasvezes de outra etnia e, quase sempre, de outra ilha no casode ser Bijagó. E que escola é essa? Qual o tipo deensinamento que propicia aos jovens? Os currículos da escolaelementar são preparados em Bissau, visando a formação dohomem novo guineense, preparando o cidadão para a novaidentidade desejada pelo Partido, pelo Estado. A língua usadanão é o Bijagó, mas o português, os conteúdos e os objetivosvoltados para fora das necessidades atuais do grupo. Então,para que mandar os filhos à escola?

Na ilha de Bubaque, onde é mais marcante a presençado Estado, assim como de outros grupos vindos do continente,existem algumas escolas e as crianças das aldeias maispróximas da praça vão às aulas. Nelas predomina o sexomasculino sobre o feminino; as meninas ajudam as mães eminúmeras tarefas e são necessárias, muito mais que os meninos,nas atividades cotidianas da casa, na aldeia.

Esses jovens estudam até a quarta classe, alfabetizam-se e, se quiserem continuar, terão que sair do arquipélago.Assim, a Escola funciona também como um instrumento queaumenta a pressão para o êxodo rural: o jovem terá que ir,

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ou a Bolama, capital da região, ou a Bissau. Significa, deinício, deixar o grupo fisicamente, para entrar em contatoagora direto com outra forma de vida. O que conhecia apenaspela referência do professor irá vivenciar indo para o centroda periferia, a zona urbana muito mais enriquecida e atraentedo que a periferia da periferia.

No centro de periferia entrará em contato direto comoutros pensares; irá vivenciar outros conceitos, outras formasde organização, encontrará outros valores, que fortalecem asdiferenças em relação à aldeia e por certo enfatizam aqualidade superior da vida na praça. Essa outra forma devida tem uma aura especial, uma legitimidade dada pelapresença do moderno, dos estrangeiros que vivem em Bissau.O jovem Bijagó, depois de se defrontar com os valores dacidade, volta para a aldeia com outros quadros de referência,já não aceita a dominação dos velhos, procura não pagar agrandeza. O jovem vindo da cidade traz para dentro osgermens da destruição da vida comunitária. E, como muitosafirmam: a modernização é a modernização dos homens(Fougeyrollas, 1967); se os jovens são socializados pela açãoconsciente da escola, num projeto de qualificá-los para omoderno e incompatibilizá-los com a pertencença às classesde idade que, como vimos, são etapas sucessivas de umaeducação iniciática, então a ida à cidade significa uma rupturainevitável com essas instituições características e integradorasdo grupo.

A escola na Guiné-Bissau,no período de implantaçãodo projeto , conforme documento publicado pelo Ministériode Educação Nacional (LEPRI, 1984), convém a apenas 2ou 3% da população que ela visa, pois, é uma escolaelitista, arremedo da escola colonial, e sua função éconsagrar os assimilados. Nesse documento o autor afirma

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ainda: essa escola de base não ensina nada ou quase nadaque sirva à vida de todos os dias nas tabancas e ignora acultura local.

O documento aponta a inadequação de conteúdos,programas, calendários de festas, métodos, administração,que se afastam da população e se destinam apenas aos 3%dos aportuguesados que vivem na capital, em Bissau. Eaponta, com tristeza, que as críticas feitas por Amilcar Cabralà escola colonialista ainda são de atualidade ardente: todaeducação deprecia a cultura e civilização do africano; aslínguas africanas estão proibidas nas escolas; as criançasafricanas adquirem um complexo de inferioridade aoentrarem na escola primária.

A família vai à praça:primeiro o homem, depois a mulher

Nessa comunidade matrilinear, a mulher tem umaposição equilibrada, pois participa da produção agrícola. Coma monetarização da economia, nesse tipo de projeto queprofissionaliza um setor, o da pesca, a situação da mulhertende a piorar. Ela passará a depender do homem para acompra do arroz, uma vez que sozinha com a prole nãoconsegue desempenhar todas as tarefas necessárias naagricultura. Como as atividades desenvolvidas pelo Projetose fizeram à margem das da aldeia, as mulheres não foramfavorecidas nem enquadradas pelas novas atividadesprodutivas. Uma nova estrutura familiar começa a surgir,com o fortalecimento da figura do homem. Em algumasaldeias já se percebe a predominância da figura paterna,com a influência de outros valores religiosos, cristãos(protestantismo e catolicismo), em que o casamento ocorre

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nos moldes ocidentalizados, em torno do pai e não mais damãe.

Entre os Bijagó a figura da mulher é extremamentevalorizada, principalmente pela função por ela desempenhadanas práticas sacralizadas das cerimônias da dança do defuntu.Durante essas manifestações a mulher entra em transe erecebe um morto, que passa a estar presente na aldeia e setorna visível a todos, incorporado nas jovens e nas mulheres.O papel que ela desempenha nessas cerimônias reveste-sede importância fundamental em termos do equilíbrio que sereestabelece na comunidade, por ocasião de algum distúrbioou alguma perturbação. A dança do defuntu garante acoesão grupal.

Apesar dessa posição ser reconhecida comoimportante, desde a época colonial – os documentos deixadospor administradores e viajantes confirmam esse dado – aproposta de desenvolvimento da pesca artesanal não se ocupada situação da mulher, não propiciando a sua integração naprodução.

A opção pela forma de conservação do pescado,refrigerado a uma temperatura entre 3 e 4 graus, etransportado com gelo, ocupando apenas mão-de-obramasculina nas câmaras frigoríficas da ilha de Bubaque,descarta qualquer possibilidade de participação feminina.Outra teria sido a situação se a escolha recaísse sobre o peixedefumado ou salgado, métodos de conservação conhecidospelos Bijagó e de competência das mulheres.

Na divisão de trabalho entre os sexos a posição damulher se mantém em nível de igualdade com relação aohomem. Mas, a alteração introduzida dentro do grupo, coma inclusão do modelo de família nuclear, tipo ocidental, trazuma desvantagem para a mulher. Nesse sentido é que nos

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parece que a família que vai à praça o faz nessa seqüência:primeiro o homem, depois a mulher. A subordinação social eeconômica da mulher torna-se maior com o processo detransformação decorrente da nova divisão do trabalho.

Com a profissionalização do pescador, ou seja, quandoo Bijagó passa a dedicar-se integralmente à pesca, obtendoatravés dessa atividade a remuneração em dinheiro, o que secomeça a perceber é que compete à mulher a responsabilidadepelas atividades de subsistência. Ela deve dedicar mais tempoà coleta de mariscos e ostras, ou ao cultivo de tubérculos.Como a captura deve ser comercializada e muitas vezes levadapara local longe da aldeia, o pescador deixa de levar opescado para casa, dificultando desse modo a obtenção daalimentação diária da família e sobrecarregando a mulher emsuas inúmeras tarefas.

Além da diminuição do peixe na dieta alimentar,também se observa a falta do óleo de palma, pois o homemdeixa de coletar chabéu38, matéria – prima indispensável paraa obtenção do precioso azeite, rico em proteínas.

Novos tempos, novos rumos?

À guisa de conclusão temos a acrescentar que o projetode desenvolvimento da pesca artesanal distancia-se cada vezmais de seus objetivos iniciais, tornando-se uma empresaestatal, voltada unicamente para a comercialização do pescadoem Bissau. Toda sua infra-estrutura é dependente de apoiotécnico para manutenção e reparação, sendo extremamentevulnerável pela falta de combustível e de madeira.

38. Ver glossário em anexo.

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A dependência da ajuda externa se mantém, não setendo previsão de quando poderá vir a ser auto sustentável;isso significa que o peixe comercializado em Bissau ésubvencionado pela ajuda externa, o que reafirma o princípiode Galtung, de que o centro da periferia se beneficia mais doque a periferia da periferia, quer dizer, Bissau, como o centrodo país, é que consome o pescado e que detém a sede doProjeto onde todas as decisões são tomadas.

Além disso, o montante de dinheiro injetado nas ilhas,apesar de significativo, tem efeito multiplicador fraco, nãofavorecendo a maioria da população (como indicamos nocomeço deste trabalho, o Projeto compreendia 7 milhões decoroas suecas, depois 9,5 milhões e, depois 20.700milhõesde coroas).

Em termos de aumento da captura, a produtividadeainda é pouco significativa, não se atingindo os índicesdesejáveis no início da instalação dos trabalhos. Como sepôde observar nas tabelas de desembarque de pescado nosanos de 1981 a 1983:

a) ocorre uma baixa considerável nos meses daestação das chuvas (junho a outubro);

b) os meses de maior captura são os da estação deseca (novembro a maio);

Visitando-se as aldeias nas diferentes ilhas observamosque agricultura e pesca ainda são complementares; nos mesesda estação seca, de novembro a abril, os Bijagó vão à pescae, nos meses da estação chuvosa, de abril a outubro, dedicam-se às tarefas agrícolas para o autoconsumo das unidadesfamiliares. A economia de mercado monetária não atingiutodas as ilhas.

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Na ilha de Bubaque, onde foram construídas asinstalações de conservação e armazenamento de pescado,pôde-se constatar os elementos mais visíveis das alteraçõesapontadas.

O Projeto de desenvolvimento põe em confronto doismundos, dois modos diferenciados de se vivenciar o mundo.Contudo, os que recebem o Projeto não têm possibilidadede colocar suas condições: como num pacote, as alteraçõessão introduzidas, sem se respeitar as diversidades eespecificidades dos outros, de cima para baixo, dodesenvolvido para o subdesenvolvido, do civilizado parao primitivo, rearticulando conceitos nessa fase deneocolonialismo.

Existem efeitos perversos da modernização epopulações envolvidas por tais projetos não participaram doprocesso inicial de decisão sobre o que desejam em termosde modificações dentro do próprio grupo. As unidadesbásicas, as aldeias, as comunidades, não foram consultadassenão depois dos acordos firmados, dos técnicos contratados,das metas definidas, das estratégias escolhidas. O que vemos,são as jovens nações recebendo ou comprando tecnologiaaltamente sofisticada; em seguida cria-se um modeloeconômico exportador dependente do mercado internacional;depois as populações são motivadas, através de inúmerosprogramas, a cultivar produtos para a exportação, muitasvezes, em detrimento às culturas voltadas à própriasubsistência como, por exemplo, a obrigação de plantar cana-de açúcar ou amendoim em vez de milho, mandioca ou arroz.

O africano, desse modo, deixa de produzir os produtosindispensáveis à sua própria família a fim de produzir para omercado nacional ou internacional. Num mercado de trocasdesiguais, ele vai se colocar no interior do grupo da economia

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periférica, com situação de extrema dependência em relaçãoaos demais países centrais (GALTING, 1977).

Desequilibrando-se a economia da aldeia, intensifica-se também a urbanização, o êxodo rural. Os jovensabandonam os velhos e as crianças nas zonas rurais e vãopara as cidades em busca de emprego, do sonho do dinheiro,da vida fácil, modelada pelo consumo, ocidentalizada. Aomesmo tempo em que se introduz o modelo dessa vida,também se introduz uma consciência da superioridade dessetipo de vida em relação ao modo de vida rural anterior vividopelos ancestrais, pelos antepassados.

Ao colocar em execução um projeto dedesenvolvimento, os dirigentes (a elite modernista, naterminologia de Balandier) dão-se conta de que sua margemde manobra é bastante limitada, face à

prodigiosa máquina internacional cujas infra-estruturas são controladas e monopolizadas pelospaíses ocidentais. As estruturas das quais dependecontribuem para desviar o esforço dos dirigentes quetentam utilizar as ferramentas tortas que herdam emfavor do povo. Estas ferramentas, no entanto, só semanejam para cima, para as elites, por mais que setente voltá-las para baixo (DOWBOR, 1983).

Em nome da ef iciência e do progresso asmultinacionais montam seus microparaísos para 5% dapopulação, na capital, em Bissau, onde se concentram osrecursos, apertando o torno implacável dos projetos dedesenvolvimento que deformam e desviam de seus objetivosqualquer boa intenção local (DOWBOR, 1983).

Aos poucos, os dirigentes descobrem que o jogo deinteresses torna-se um combate desigual. Um combate desi-

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gual e mesmo ambíguo; todos querem que o paísprogrida:

• o país quer vender seus produtos;

• os países do norte querem estender o seu modelo.

E todos apresentam soluções para o país. Só que opaís não é apenas Bissau, e essa modernização pretendidabeneficia prioritariamente a capital e impede umdesenvolvimento integrado, estrutural, pois se restringe a umúnico segmento da população urbana.

À elite modernista cabe reorientar o dinamismo dasforças de mudança, através de uma mobilização ideológicaque, além da escolha, possa suprir as condições objetivasnecessárias, quando os atores sociais não estiverem todospreparados para reconhecer tal necessidade(BALANDIER, 1976).

A tese liberal de que a economia monetária é libertária,capaz de salvar o indivíduo das incertezas da dependênciada natureza, é inculcada através de outros meios. Odesenvolvimento implica, pois, a apreensão de novos valores,outros que não os da sociedade comunitária; e, na suaexpansão, surgem fontes de tensão e conflito, incertezas nasocialização de geração a geração, inovações casuais,exigências competitivas no desempenho de papéis.

As jovens nações já foram de algum modo solapadase, num certo grau, já estão influenciadas pelos padrõesocidentais. Mas essas reflexões se fazem para se repensar oquadro no qual essas mudanças ocorrem. As alterações sãojustificadas e aceitas reforçando-se conceitos surgidos noperíodo de expansão colonialista: do desenvolvido para o

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subdesenvolvido, quer dizer, do superior para o inferior. Asestruturas desenvolvidas, supostamente superiores, devemser imitadas, adotadas, copiadas pelas naçõessubdesenvolvidas/ primitivas; o recurso a Galtung (1977)nos faz refletir sobre a teoria: toda teoria deve ser analisadanão só quanto ao seu potencial como fonte de implicaçõeshipotéticas, a serem postas à prova em relação a realidadeatual, mas também como fonte de implicações políticas aserem postos à prova contra a realidade potencial. Asimplicações hipotéticas seriam: o empobrecimento da periferiae o enriquecimento do centro, a existência de dinheiroacumulado por poucos e a falta de comida ocasionando afome e a miséria em muitos.

As elites dirigentes tornam-se os agentes das mudanças,ocorrendo não uma irrupção do inesperado, mas aaceleração de processos em ação desde há muito tempo(BALANDIER, 1976), devendo gerir, planificar e dinamizaro conjunto das forças produtivas do país. Surge daí uma buro-cracia responsável por esse processo e o Estado se imper-trofia, com a cabeça maior que o corpo (DOWBOR, 1983).

Décadas após a independência ocorrida nos anos 60/70, a África sofre de pobreza crescente, desnutrição, doençasendêmicas, desemprego agudo. A desafricanização (ouacidentalização/globalização) dos usos e costumes aumentadia a dia, agora pela penetração mais efetiva dos meios decomunicação de massa (rádio, jornais, TV).

Schwartz (1983) afirma que no caminho tortuoso paraa modernização há meandros, idas e vindas. É suficienteinculcar um horror por tudo o que pareça tradicional , pré-técnico e mostrá-lo como retrógrado. Surge o novo deus damodernidade que deve ser cultuado. Agora a palavra doespecialista em desenvolvimento substitui a do missionário,

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uma nova bíblia passa a regular os comportamentos, ascondutas. Novos projetos se estabelecem, assentados sobreuma dupla infalível: a racionalidade e a técnica.

O discurso da modernização é sempre ocidental,elaborado por ocidentais, europeus, norte-americanos ououtros a seu serviço. Esse discurso esta a serviço de quem?A quem beneficia?

Lewis (1973) afirma:

em alguns casos existe o fato de que os africanos nemmesmo se tenham beneficiado materialmente; pelocontrário, suas aldeias se acham economicamentearruinadas, seu modo de vida destruído, eles própriosmoram em barracas, favelas, em cidades improvisadas,em condições de lastimável pobreza material eespiritual.

Nesse caminho tortuoso podem ocorrer meandros, idase vindas, mas o que se pretende atingir é um final nem semprefeliz: a espiral sem fim da aquisição de bens...

E continuaremos sem resposta para a pergunta crucial:o sociólogo deve aceitar, passivamente, a condição deapologista do desenvolvimento que, no fundo, asseguravantagens apenas às camadas que se beneficiamdiretamente da ordem social existente? (FERNANDES,1960).

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Glossário (explicação de palavras encontradasno texto em crioulo – C – ou em Bijagó – B)

Assimilado – durante o período colonial, prevalecia na Guinéo Estatuto dos Indígenas, em cujo artigo 230 seestabelecem os critérios para que os guineensesadquirissem o estatuto de cidadão, ou assimilado.Para tal deveria preencher as seguintes condições(art. 56 do estatuto): a) ter mais de 18 anos; b) falarcorretamente a língua portuguesa; c) exercerprofissão, arte ou ofício que garantam o sustento;d) ter bom comportamento e viver à européia; e)Não ser desertor.

Bemba – local onde se guardam os mantimentos – espéciede celeiro (C)

Bolanha – local onde se cultiva o arroz de alagado

Bombolom – tambor usado nas cerimônias sacralizadas,espécie de tronco oco, alongado, que é golpeadocom outra madeira, obtendo-se som alto ( C ).

Cabaro – classe de idade dos rapazes, dos 18 aos 25/2anos (B)

Cadjoco – local onde ficam as almas dos que morreram semfazer as cerimônias de iniciação (B)

Camabi – classe de idade dos rapazes, dos 25/ 27 aos 32/35 anos (B)

Campuni – classe de idade das moças, dos 14/15 aos 18/19anos (B)

Candi – nome dado às saias feitas do desfibramento deuma planta (B)

Candjan-ô – construção existente dentro da aldeia que abrigaos irans protetores (B). Em crioulo chamam debalôba.

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defuntu

Canhaco – espécie de arpão usado pelos homens, na pesca,constituindo em longa haste de madeira com pontade metal ou osso (B)

Canhocam – classe de idade dos rapazes adolescentes, dos12 aos 18 anos (B)

Caora – local onde se guardam os alimentos, espécie deceleiro (B)

Caxuca – nome dado ao homem adulto, que já fez todas ascerimônias, podendo casar-se e constituir família(B)

Chabéu – nome dado ao cacho onde se encontram os cocosda palmeira e de onde se extrai o óleo de palma(dendê) (C)

Coconote – caroço que sobra após a extração do óleo depalma; dele também se extrai um outro tipo de óleo(C)

Choro – nome dado às práticas sacralizadas referentes acultos funerários de ancestrais; durante o choro asociabilidade é intensa, com grande consumo decarne, arroz, bebidas, num clima de festa, commúsica, danças, etc. Comenta-se na Guiné quenestes últimos anos, com a criação de excedentesatravés do aumento da produtividade agrícola, temsido feito o choro de homens-grandes falecidoshá cerca de 20 a 30 anos (C).

Comitê – tabanca é a designação crioula de povoação,aldeia. O comitê é a organização política do PAIGCao nível das bases; compõem-se de 5 pessoas: 3homens e 2 mulheres (C)

Coratacó – designação dada ao ente sobrenatural protetorcontra os feiticeiros, ou inimigos (B)

Dança do – nome crioulo da cerimônia sacralizada da qualparticipam, unicamente as mulheres, durante osritos de iniciação das jovens adolescentes (C)

da tabanca

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OS BIJAGÓ DA GUINÉ-BISSAU 161

Darmar – designação crioula do ato de oferecer algo(bebida, animal) aos ancestrais protetores;provavelmente originária da palavra portuguesaderramar (C)

Djambacus – designação crioula dada aos homens queconhecem a medicina da terra, ou seja, os segredosdas plantas, folhas e raízes, em relação às práticasmágicas ou rituais (C)

Djon-gago – designação crioula da cerimônia funeráriadurante a qual se interroga o morto sobre as causasde sua morte (C)

Erandé – designação dada ao ente sobrenatural queprotege as pessoas contra os seus inimigos;materializado num pequeno chifre que deve serusado quando a pessoa se desloca de um lugarpara outro (B)

Escola – designação crioula dos ritos de iniciação queocorrem no local sagrado, na floresta, nos quaisos jovens aprendem tudo o que é necessário paraa vida na comunidade (C)

Etute – local onde se reúnem o Conselho dos Anciãos,ou a Grandeza, formada pelos homens e mulheresvelhos da aldeia (B)

Fanado – designação crioula das cerimônias de iniciaçãodos jovens (C)

Fazer ronco – designação crioula que significa: jactar-se dealguma coisa, ou de algum acontecimento (C)

Gerasson – designação crioula do clã, ou seja, grupo socialao qual o indivíduo se sente ligado, por parentesco,a um mesmo ancestral comum (C)

Gerasson – grupo clânico que primeiro chegou no local eque tem o pacto com a terra (B)

Grandeza – designação crioula para o local onde os velhos

ou Darmá

do mato

dona-do-chão

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(os grandes) se reúnem; o mesmo que etute emBijagó (C)

Homem – designação crioula para o indivíduo que faz parteda grandeza, do etute, e que ocupa a última etapadas classes de idade que hierarquizam os indivíduosconforme a idade (C)

Iran – designação crioula para os seres sobrenaturais,as forças vitais, que existem por toda parte e quedevem ser cultuados, apaziguados, e dos quais serecebe proteção (C)

Jumbai – conversa, bate-papo (C)

Mulher – designação crioula para a mulher que participado etute, ou seja, da grandeza, ocupando a últimaetapa das classes etárias femininas (C)

Nawa – interrogatório do defuntu (djon-gago), cerimôniafunerária durante a qual se interroga o morto sobreas causas de sua morte (B)

Nindo – o pré-existente, a força vital que existe por todaa parte (B)

Ocanto – mulher (B) depois de Ter passado pelascerimônias da dança do defuntu (C)

Ocotó – homem ou mulher grande que ocupam a últimafaixa das classes etárias dentro da hierarquia deidades (B)

Okpé – filho da filha (B)

Ongbá – criança (sexo feminino ou masculinoindistintamente) (B)

Onsum – mãe (B)

Orebuk – ente sobrenatural, chamado iran em crioulo, opré-existente, a força vital (B)

Oté – pai (B)

grande

grande

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OS BIJAGÓ DA GUINÉ-BISSAU 163

Oxoni – marido ou mulher, os esposos (B)

Pagar – designação crioula para a obrigatoriedade dosjovens em entregar aos mais velhos determinadosbens: peixe, tecidos, tabaco, vinho de palma, etc.Eles pagam para se tornarem grandes (C)

PAICG – Partido Africano da Independência da Guiné eCabo Verde (B)

Piroga – canoa pequena, feita de um tronco escavado (C)

Praça – designação crioula para cidade, ou zona urbanade uma certa ilha, onde já comércio, mercado,comitê de Estado, etc. (C)

Ronia – designação crioula para cerimônia, ou práticasacralizada, em que são feitas oferendas aosancestrais protetores, aos irans da geração dona-do-chão (C)

Tuga – designação crioula para o português colonialista(C)

Yeko – protetor do corpo (B)

Uegonne – protetor ligado às práticas funerárias (B)

Unikan – ente sobrenatural, o pré-existente, o iran de umancestral (B)

Vinho de – seiva da palmeira, extraída a partir de uma incisãofeita no alto, junto às folhas. O líquido é recolhidonuma cabaça e retiradohoras depois; ingerido frescotem gosto adocicado e com pouca dosagem aumentabastante. É consumido em grande quantidadedurante as festas, práticas sacralizadas, ronias,rituais, choros, etc.

grandeza

palma

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A N E X O S

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OS BIJAGÓ DA GUINÉ-BISSAU 167

Cronologia da Luta de Libertação (*)

1911 – Criação da Liga Guineense, anunciadora domovimento de libertação

1954 – Tentativa de criação da Associação Desportiva eRecreativa dos Africanos em Bissau

1955 – Fundação do Movimento para a Independência daGuiné

1956 – Criação do Partido Africano da Independência deGuiné e Cabo Verde, em Bissau, a 19 de setembro

1959 – Massacre de Pidjiguiti, porto de Bissau– Reunião ampliada do PAICG que decidemobilização prioritária no interior do país

1960 – Publicação, em Londres, da A verdade sobre ascolônias africanas de Portugal, de Amilcar Cabral– Criação, em Salisbury, da União DemocráticaNacional de Moçambique– Aparição do 1º número da publicação do PAICG:Libertação

1961 – Início da luta pela independência de Angola sob adireção do Movimento Popular de Libertação deAngola – MPLA

1962 – Criação da FRELIMO – Frente de Libertação deMoçambique, unificando três diferentesorganizações políticas, tendo como líder EduardoMondlane

* Fonte: Afrique Asie, n°66, set/out. de 1974, pp. XIV, XV, XVI. SuplementoEspecial sobre a Guiné-Bissau

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– Revisão dos estatutos e dos Programa do PAICG– Relatório apresentado por Amilcar Cabral aoComitê Especial da Organização das NaçõesUnidas sobre os territórios administrados porPortugal

1963 – Ataque por um comando do PAICG a umacaserna em Tite, sul Guiné, desencadeando a lutaarmada na Guiné-Bissau– Aparecimento da Organização da UnidadeAfricana – OUA– Conferência dos quadros do PAICG tendo porobjetivo o desenvolvimento da luta nas ilhas deCabo Verde

1964 – Batalha da ilha de Como, com a vitória do PAICGapós 85 dias de combates– Realização do 1º Congresso do PAICG, emCassacá a 15km de Como– Proclamação da FRELIMO pela insurreiçãogeral aramada em Moçambique– Ampliação da luta no interior da Guiné– Edição do primeiro livro escolar nas regiõeslibertadas

1965 – Inauguração na Guiné Conakry, da EscolaInternacional para filhos dos combatentes,denominada Escola Piloto– Visita da primeira missão militar da OUA àsregiões libertadas da Guiné-Bissau

1966 – Reorganização das Forças ArmadasRevolucionárias do Povo – FARP– As forças coloniais portuguesas aumentam seusefetivos para 25 mil homens; apesar disso, 60%do território já está libertado

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OS BIJAGÓ DA GUINÉ-BISSAU 169

1967 – Inauguração da estação radiofônica, a RádioLibertação

1968 – Ataque ao aeroporto de Bissalanca, nos arredoresde Bissau

1969 – Assassinato do líder da FRELIMO, EduardoMondlane– Libertação da região de Boe– Intervenção de Amilcar Cabral na Comissãodos Direitos Humanos das Nações Unidas– Seminários de Quadros do PAICG em Conakry– Conferência de Solidariedade aos Povos dasColônias Portuguesas, em Khartum, Sudão

1970 – Conferência Internacional de Solidariedade aosPovos das Colônias Portuguesas, em Roma, Itália– O Papa Paulo VI recebe os líderes AgostinhoNeto, Amilcar Cabral e Marcelino dos Santos,respectivamente do MPLA, PAICG e FRELIMO– Ataque de agressão do exército português àRepública da Guiné Conakry, com ajuda daOTAN

1971 – Reunião do Conselho Superior de Luta quedecide proclamar o novo Estado Independenteda Guiné-Bissau

1972 – Visita de uma delegação da ONU aoterritório libertado– Amilcar Cabral apresenta o comunicado sobreo papel da cultura na luta pela independêncianuma reunião de peritos sobre noções de raça,identidade e dignidade, realizada em Paris pelaUNESCO– Intervenção de Amilcar Cabral perante a 4a,Comissão da Assembléia Geral das Nações Unidas,

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sendo recebido pelo então Secretário Geral daONU, Kurt Waldheim

1973 – Mensagem de Ano Novo de Amilcar Cabral aopovo guineense– Assassinato líder Amilcar Cabral, por agentesdos colonialistas portugueses em Conakry, a 20de janeiro– Realização do 2o. Congresso do PAICG com aescolha de Aristides Pereira para Secretário Geral– Realização da 1a. Assembléia Nacional Popularna região de Boé– Proclamação da República da Guiné-Bissau eescolha de Luis Cabral como 1o Presidente, a 24de setembro

1974 – Intensificação da luta já nos centros urbanos– Queda do fascismo em Portugal– Reconhecimento da independência da Guiné-Bissau por Portugal

1978 – Regime de Partido Unico1994 – Revisão Constitucional com legalização de

partidos politicos– Eleições multipartidárias

1998 – Crise militar e violência, denuncia de acordoentre Guiné e Senegal

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OS BIJAGÓ DA GUINÉ-BISSAU 171

Mitos, lendas e narrativas Bijagó

A chuva de Oraga

Nas terras de Orango viviam vacas e hipopótamose a voracidade destes últimos não permitia que ervaalguma ficasse para alimento do gado.

Ogubane (deus do Fogo e da Terra) foi tratar juntode Oraga (senhor dos hipopótamos e deus da chuva) docaso que punha em risco seus animais.

Oraga determinou que os hipopótamos fossem viverno mar, e ficaram conhecidos como peixeS-cavalo, mas,sendo senhor da chuva, resolveu que essa não deveriamais cair sobre os campos de Ogubane, na ilha de Orango.

Tem início uma seca terrível, pior ainda que oshipopótamos...

Ogubane volta a procurar Oraga, e em tom humildeoferece-lhe vacas para que estabeleça as pazes.

Satisfeito com a oferenda, Oraga, deus da chuva,determinou que a mesma caísse em Orango e oshipopótamos só pudessem vir à terra, em busca dealimentos, durante a noite.

O quinca Pampa

Nas terras de Orango, viveu durante anos umaoquinca (sacerdotisa) de nome Juliana Pampa, quedominou como soberana todas as ilhas do arquipélago. Juliana

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viajava a Bissau em canoas enormes, com inúmerosremadores, e castigava durante os que a ela não obedeciam.

Por isso a ilha era conhecida pelo nome de Eti (ilha)Coa (castigo). Quando morria um grande, ela escolhiaum jovem e uma campuni para serem enterrados com omorto, para acompanhá-los até Unhocomo (o fim domundo).

São muitas as histórias da rainha Pampa...

Não há lugar para amizades

O iran-cego (piton, cobra não venenosa queestrangula as presas) quer ser amigo do fogo. Um dia vaiTer com ele e diz:

– Fogo, gosto muito de ti!O fogo ficou desconcertado.– Gostas de mim? Mas, olha...sou muito bravo, não

sirvo para amizades...O iran-cego insiste:– Gosto de ti! Quero ser teu amigo.O fogo se esquiva, mas o iran-cego insiste, inúmeras

vezes. Até que cede:– Bom...amanhã espera-me. Virei Ter contigo.Quando todas as ervas estavam secas, o fogo

levanta-se, a palha queima, as gazelas fogem, os saposcorrem, os bichos fogem e o próprio iran-cego acaba por,tchumbum, cair na água. Quando o fogo se aproxima, oiran-cego o reconhece:

– Eh! É verdade! Já me tinhas dito que não vale apena ser teu amigo...

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OS BIJAGÓ DA GUINÉ-BISSAU 173

A invulnerabilidade de Numocantécontra os guerreiros Bijagó (*)

O bijagó é uma etnia tradicionalmente marcada poruma cultura autóctone de raiz e guarda em largas gerações,ricas histórias(meritórias experiências primitivas da con-quista ao mar, de resistência anti-colonial) e memóriasde um povo cuja audácia e inteligência, emborarudimentar, colocaram-no na posição de segregado eodiado pelo colonizador invasor.

Nos tempos das guerras contra a penetraçãocolonial, forma os próprios bijagó que servindo-se demodelos das cerabinas européias, moldaram paus ecriaram suas próprias armas e projéteis, potentescahangulos com que defrontaram vitoriosamente oexército bem armado do colonizador.

Numocanté, morto possivelmente na ilha deCanhabaque, era um nativo servindo como guia dosportugueses na sua penetração às ilhas bijagó. Segundocontos populares, Numocanté era um destemido guerreironativo mobilizado pelos brancos para combater os bijagó,pois as ilhas eram impenetráveis pelos estrangeirosdesconhecedores do terreno.

Há documentos históricos que atribuem a morte doprimeiro descobridor da Guiné, o marinheiro NunoTristão, às populações da costa do rio Cacheu (manjacosou felupes). Mas outros investigadores apresentam ahipótese de o mesmo Ter sido morto com outros soldados,ao tentar desembarcar numa das ilhas bijagó.

* No Pintcha – Suplemento Cultural, fev. 1981.

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As expedições de Numocanté (já na fase chamada depacificação) compreendiam soldados brancos e grandeshostes de guerreiros enviados pelo rei fula.

Numocanté mostrava-se invulnerável perante oscanhangulos bijagó. Mas estes arranjaram um remédiopara desvendar essa invulnerabilidade.

Destacaram clandestinamente um escultor e espiãoque veio até o porto de Bissau conhecer discretamente afigura do famoso homem. Voltou a Canhabaque e esculpiuem madeira fina o busto do sujeito Numocanté.

No dia da nova batalha os resistentes das ilhasserviram-se das instruções do escultor e encarregaram umhomem de entre os considerados de cabeça que acertou,em plena cabeça. Numocanté (o projétil – pedaço de ferrotrabalhado – furou de uma orelha a outra), numaemboscada feita por meia dúzia de guerreiros, escondidosdentro de uma cavidade propositadamente escavada nabase de um pilão, com orifícios só para apontar as armas.

Surpreendidos com a perda do guia, os inimigosbatem em retirada e o povo cantou vitória em longasnoites, de ilha em ilha, aclamando os poderes dos seusantepassados que lhes legaram a força, a coragem e ainteligência.

Ocanto: mulher bijagó

Ocanto estava serena. Os seus olhos vendados porum lenço de tom avermelhado, jamais veriam o solbrilhante das ilhas. O seu corpo, cansado do duro trabalhoe curvado sob o peso dos anos (apenas uns cinqüenta, setanto), jazia agora inerte, naquilo que iria ser a últimamorada. As suas mãos jamais moldariam o barro

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avermelhado do seu chão para construir a habitação que sóela, mulher, era capaz de fazer para si, ou seu homem e filho.Nem mesmo colheriam as combés ou lingüeirões parapreparar a ligeira (e única) refeição do dia, após uma longajornada de trabalho no campo.

É que Ocanto, enquanto viva, e tal como toda amulher bijagó, repartia o trabalho em pé de igualdade comos membros da sua comunidade. Ainda lhe cabiam astarefas consideradas próprias das mulheres. Ela nuncaprotestava. Sempre aprendeu a submeter-se aos caprichosdo seu homem e, também, da própria natureza. Esta últimahavia-a condenado já de antemão a ser mulher e Ocantosempre soube sê-la: mulher-companheira, mulher-mãe emulher-trabalhadora.

No campo, depois de devastado o mato e preparadoo terreno pelo marido, ajudado por elementos da tabanca– uma prática comum ao grupo – Ocanto e o filho, o únicoque lhe sobrou, colaboram na sementeira e na monda.Um outro trabalho ainda a esperava e, por sinal, o maisdifícil: a guarda do lugar contra os ataques dos pássarose de outros animais daninhos, como o macaco que abundanas ilhas. Cabia-lhe ainda a tarefa da safra, enquanto omarido furava a palmeira para tirar o vinho que,juntamente com a comida por ela preparada, geralmentecom ostras e mariscos, que vai apanhar ao mar,compensaria os que colaboraram nos trabalhos.

Desde pequenina Ocanto aprendeu a enfrentar asdificuldades da vida. Ainda criança foi viver com a mãena casa do tio. É assim a tradição. Quando um casal sedivorcia, a mulher, juntamente com os filhos, abandona olar e vai viver com os pais ou irmão casado. Os pais deOcanto já tinham morrido. Restava-lhe o único irmão que

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a acolheu e ao filho. O pai deste não tinha mais direitos sobreele, que agora era considerado propriedade da mãe.

Como toda mulher bijagó Ocanto, ainda campuni(rapariga adolescente), passou pelo manrass (fanado).Praticou a dança do defuntu, submeteu-se à operação detatuagem e ofereceu o seu corpo ao espírito dos mancebosque morreram sem terem ido ao fanado, a fim de setornarem adultos e poderem fazer parte da família dosantepassados.

Adulta, Ocanto escolheu o seu marido, construiu asua casa, onde viveram anos felizes, até que chegou o diaque tiveram que se separar. Dois anos depois, juntar-se-ia ao novo homem e aceitou sempre com resignação aparte que lhe cabia dentro do lar, cujos deveres e direitosrepartia com as outras mulheres.

Vencida pelas canseiras da vida, Ocanto ficariaprostrada vários anos, atacada de uma doença incurável,não recorreu ao médico, pois que o djambacus já lhe havialido a sina. Ela estava condenada por forças sobrenaturaisa morrer e a ser enterrada ali, na ilha que a viu nascer.Naquela tarde amena das ilhas, Ocanto foi a enterrar, longeda tabanca, aos ombros dos que com ela viveram os anosdifíceis das ilhas. Mais uma vez foi vítima do destino,que não a permitiu ser enterrada na tabanca. o iran dageração assim decidira.

Depois de lavada e vestida pelas mulheres –enquanto os homens preparavam a sepultura – Ocanto,embrulhada na sua pobre mortalha (uma esteira serviu-lhe de caixão), foi sepultada com a sua humilde herança:um balaio, uma panela com comida e outra com água,uma tigela, um cufo trabalhado com objetos de adorno epouco mais. Dali ela apanharia o barco para Onhocomo,

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ilha por onde segundo a tradição passam todas as almas antesde entrarem para o outro mundo.

Ocanto já não sã participará na reconstrução da suaterra e nem poderá colaborar com a comissão das mulheresda sua ilha na tarefa de mobilizar e enquadrar as mulherespara arrancar o arquipélago do atraso herdado da épocacolonial. Mas outras Ocantos tomarão sobre os seusombros pesada tarefa e lutarão pela sua emancipação etotal libertação.

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DESCRIPÇÃO DAS ILHAS DOSBIJAGÓ E SEUS RITOS E COSTUMES *

Esta casta de negros dizem os antigos que forrampovoadores do Reino dos Beafares os quaes conquistadospelos ditos Beafares gente do sertão dentro, e que vendosseapertados fugirão em canoas que também chamãoalmadias, e vierão povoar estas ilhas em as quaes os vinhãodezemquietar os mesmos Beafares, e dar lhe guerra, evendo elles que não tinhão mais donde fugir tirárão forçasde fraqueza e se começarão de deffender de modo que devencidos se fizerão vencedores, e não contentes com oserem nas suas ilhas os vierão buscar nas canoas á terrafirme, donde tiverão depois tantas vitorias, e amarrarãotantos que dizião erão os Beafares suas galinhas, e comisto se fizerão tão grão soldados que cometterão outrasnações principalmente de Papeis de que amarrarão muitose entrárão até o rio de Cacheo, e o da Jeba, e em toda aparte erão temidos, e tinhão pouca comunicação com osbrancos, e não se fiavão delles por que erão traidores, etomárão muitos navios de brancos, e matárão tambemalguns, se bem aqui mais que em outra parte mostrou DeosNosso Senhor suas maravilhas, porque não houve nenhumque fizesse mal ao branco que acabasse bem ,pelo queassim por isto que elles experimentarão, como por muitoscastigos que os brancos lhe derão, sendo o mais famozo oque lhe deo o capitão Christovão de Mello Coelho, se

* COELHO, Francisco de Lemos – Duas descrições seiscentistas da Guiné(Manuscritos inéditos publicados com introdução e anotações históricaspelo Acadêmico de Número Damião Peres). Lisboa, AcademiaPortuguesa da História, 1953

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amansárão de modo que hoje he a gente mais doméstica quetem Guiné, e mais amiga de branco, ainda costumão fazerguerras pelo mar, e costumarão dizer que não tem pazes nomar com ninguem, e hoje as fazem entre si mesmos suas ilhascom as outras multiplicárão de modo que são nas suas aldêascomo enxâmes de abelhas com se venderem todos os anosinfinitos, os homens são valentes traidores, e não uzão, maisque da guerra, e na paz pescarem, e tirarem vinho daspalmeiras, as mulheres são formozissimas, na sua terra vestemsayas de palha que lhe dão até ó joelho, que ellas mesmofazem de condinhas como de molho de deciprinante tão juntasque com ellas ficão muy compostas, e honestas, e he trajoque parece muito bem, lavrão as terras, cortão os mantimentosque tem muitos muito, fazem as cazas, e cobre-nas com muitaperfeição, e todas com todo este serviço vão buscar o mariscoque há muito na terra para os maridos comerem, não heprohibido o matrimónio se não no primeiro grão deconsanguinidade, o homicidio não se castiga, mas os parentesdo morto podem matar o matador se podem, não há Reyentre elles, mas os grandes são juizes em suas dezavenças,adorão pãos, e cornos de animaes, a que chamão seusreboques, aos quaes matão vaccas, cabras e galinhas, e como sangue os untão; he a gente mais apta para receber a FéCatholica de toda quanta há em Guine, dão os grandes dasaldeas seus filhos aos brancos para que lhos criem, e lhosfação christãos, e eu lhe criei muitos, e os trazia em minhacompanhia como escravos e me servião de chalona em suasmesmas terras, e muiro negros grandes que rão/são/ comodônos das aldêas me pedião que lhe levasse padre á sua terraque se querião confessar, e principalmente o frade que estavano Bição, que tem grande devoção com os padres capuchos,mostrando-se citios nas sua ilhas para fazerem igrejas, e

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OS BIJAGÓ DA GUINÉ-BISSAU 181

prometendo-me as farião em levando o dito padre, o quenão teve effeito pela pouca saude do religioso, e vir a morrerlogo, e eu levantar caza do Bição, e vir para Cacheo, dedonde segui outras viagens, e o certo he por que Deos nãoquis; quererá Deos abrir os olhos a quem pode para que seganhem tantos milhares de almas como há nestas ilhas, quese perdem por falta de mestres. Isto he o que toca á gentedestas ilhas, cuja descripção he a que se segue.

A primeira ilha que nos fica mais á banda do nortedefronte das Ilhetas he a Dacamona a qual está junta comoutra mais ao norte que chamão o Corete adonde não vãobrancos por ter muitos arecifes, e corôas, e estar tão pertoDacamona que não há entre huma e outra mais que humriozinho que de baixa mar se passa a vão, tem hum portoformozissimo, muy abastecida, e o negocio he de negroscomo nas mais, tambem se compra algum marfim deelefantes que passão a nado da terra firme, não he ilhamuito grande, mas muy aprazivel, e alegre, e muy povoadacomo todas as mais. Segue-se logo a Ilha da Carraxa,tambem ilha formozissima se bem muy esparcelada porcuja cauza surgem os navios longe da terra que se nãoouvem se não por acenos, no trato e gente he como todas,e ha muita vaccaria como em todas, de que elles fazemmuita estima para matarem nos seus choros, e com – avertantas vaccas costumam dar hum negro por duas vaccas,e talvez com huma com pouco dinheiro que se lhe poemmais. Segue-se logo a Ilha do Ágo, que o seu porto he emhum riozinho que a devide da ilha da Ponta, que tambemse paça de baixa mar a vão, e a Ilha de Xerimga tambemconjunta do mesmo modo, ainda que esta tem os seusportos de persi, em todas há o mesmo negocio, e para seviver muy boas principalmente a Ilha da Ponta donde

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encareciadmente me pedirão fosse morar, e levasse religiosos,e o branco que lá for se não arrependerá.

Logo fica a Ilha Formoza, huma das mayores que temos Bijagos com muitos portos, e muito negocio de negros eem tudo condiz com o seu nome, fica seguindo-se á vista aIlha de Uracão, pequena mas muy aprazivel, e o melhor quetem muy boas pescarias de parguetes, e muitas ostras comoas mais, fora outra quantidade de marisco de que sãomuy abastecidas, e a elle se atribue multiplicarem tantoque são como enxâmes de abelhas.

Está logo a Ilha de Uno a melhor a meu modo de todasquantas hei nomeado, porque tudo tem bom, e os negros queaqui se comprão os melhores para se não venderem, se nãopara os lograr quem os tira da sua terra de todos os outros eque o assim fizer experimentará esta verdade, he huma dasgrandes, e de verdade das 4 grandes he a mais pequena, e detodas as pequenas he a mais grande, tem em todo o redondodella mais de dez portos, e os Bijagos como não tem Rey ecada hum o quer ser na sua aldea dezejão muito que va brancoao seu porto, he assim por isto como por que os negros quese vendem ao branco tem do vendedor huma dadiva comoalcavalla para o dôno do porto, e há porto donde o dôno donegro leva a metade do dinheiro que se lhá/ lhe dá(?)/ pelonegro, e o dôno do porto fica com outra ametade, e por issotalvez lhe he necessario ao navio que vai ás Ilhas dos Bijagósem huma tão pequena correr oito, e dez portos, que não seenfadando talvez em huma ilha se despacha, e a mim mesuccedeo só em esta e a de Uracão comprar huma viagem69 negros, e noutra, só na Ilha da Ponta comprar cincoenta eoito.

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OS BIJAGÓ DA GUINÉ-BISSAU 183

Está ao mar desta ilha obra de seis lagoas e Ilha deNhojó, ilha a que não vão os navios por ficar mui fora d mão,e eu mandei lá huma vez estando em Uno e me trouxeraõdella mui bons negros.

Fica logo abaixo de Uno, e defronte a Ilha de Oramgoa mayor que tem os Bijagós, não tem bons portos, mas abondade dos negros, e a quantidade que se vende nos faz irlá, e tambem ás vezes se acha ambar, e occaziaõ ouve emque sahio nella mais de dous quintaes de que se aproveitãraõmui bem os brancos moradores do Bição.

Adiante está e á vista a Ilha da Xoga, e defronte a Ilhade Bonabo, e Esteiro, que ainda que estas derradeiras estaõmais chegadas a Oramgo costumamos ir á Xoga primeiro,porque tem primeiro o porto, nenhuma destas trez tem maisque um porto, o da Xoga mias alegre que todos, e costumaõ-se vender aqui nestas ilhas mui bons negros Beafares quetomaõ na guerra que os brancos estimaõ muito para fazeremgrumetes.

Passando por Bonabo ao Esteiro que são duas ilhasconjuntas que se podem contar por huma, fica logo a Ilha Rôxamais pegada ao Rio Grande que todas, e que deu povoadoresás mais ilhas, se he vedade o que dizem he sem encarecimentoa corôa das mais ilhas assim da mayoria da terra, como nabondade de tudo e principalmente apraziveis portos, e sobretudo he ella donde tem sahido mais vezes ambar que em todasas outras; testemunha o Capitão Manoel de Mello, tio meu,que de huma vez comprou oitenta e quatro libras, e de outravez dez, sendo muitos os que gozáraõ deste bem, merecedoraa quem a engrandessa, pois em meus princípios me deo, e dáo principio com que busquei a vida, ou a principiei, vendendoa troco delle hum vestido com que sahi de caza de meuspays, princípio de todos os bens que tive em Guiné.

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Á vista da Ilha Rôxa para o sul se vêm trez ilhas, quechamaó a Ilha dos Cavallos, outra que chamó a Ilha do Meo,outra a Ilha de João Vieira; estas são despovoadas, aindaque mui alegres, e a do Meo com mui bom porto, e serve sóaos negros de suas sementeiras que como são tantos nas suasilhas não lhe bastaõ só as em que moraõ para semearem, eassim os proveo Deus de innumeraveis ilhas que ficão no meyodestas que hei nomeado despovoadas, que lhe servem domesmo, e por isso as não hei nomeado, e somente nomeheias trez acima, porque na narração adiante as heide nomear, ese saiba donde ficão muitas cousas podéra dizer destas ilhascomo quem fez a ellas mais de vinte e cinco viagens, nãoficando nenhuma a que não fosse, e em muitas aos mais deseus portos, descubrindo caminhos por entre ellas que nenhumbranco andou, e sendo hum dos mais favorecidos branco, dafortuna que a ellas foi, e o mais bem quisto de negros, detodos quantos lá faraõ, e por remate direi hum costume galanteque tem que he quando algum grande morre o parente que ohade herdar hade ser o que as mulheres do defunto quizerem,que cada hum tem muitas, e – a negro que tem cincoentamulheres, assim que aquelle que as ditas mulheres nomeaõaquelle entra na herança, e a graça he que sabem ellas já qualhade satisfazer melhor a seus appetites torpes, por que comoo marido tem tantas, e às vezes são velhos tem ellas liberdadea pezar delles a fazerem a experiência antes que chegue ahora da aleição; e com isto tenho acabado a narração destasilhas, e torno ao meu porto de Bição de donde me aparteipara o Rio de Jeba.

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M A P A SE

F O T O S

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186 DILMA DE MELO SILVA

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188 DILMA DE MELO SILVA

Divisão Administrativa da Guiné-Bissau

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Homens grandes de Bubaque: Caetano (esq.) e Coia (dir.),informantes da pesquisa

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190 DILMA DE MELO SILVA

Oquinca: mulher grande de Canhanbaque

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OS BIJAGÓ DA GUINÉ-BISSAU 191

Mulher bijagó, ilha de Bubaque

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192 DILMA DE MELO SILVA

Cabaro bijagó: chamado para o ritual Vaca-bruto

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OS BIJAGÓ DA GUINÉ-BISSAU 193

Escarificações marcando o momento iniciático

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