populaÇÕes negras no brasil: construÇÃo de identidades...
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POPULAÇÕES NEGRAS NO BRASIL: CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES,
POLÍTICAS DE RECONHECIMENTO E CONSTRUÇÃO DA CIDADANIA
1. DELIMITAÇÃO INICIAL DA PROBLEMÁTICA
Refletir sobre a questão das políticas nacionais de efetivação da cidadania das
populações negras, considerando as particularidades históricas do Brasil, exige que
fiquemos atentos aos diversos fatores que fazem interface com a questão. Sob essa
perspectiva, a questão do processo de construção de identidades, da efetivação da
cidadania e da construção do que se entende por Nação brasileira deve ser trazido ao
cerne da discussão.
O amplo debate em torno da desconstrução oficial do mito de fundação do
Estado nação brasileiro embasado na existência da democracia racial está relacionado
com o processo atual pelo qual vem passando a sociedade brasileira em torno da
implementação de políticas públicas que visem a efetivação da cidadania das
populações negras e superem a crença da noção abstrata de igualdade entre os diversos
segmentos populacionais que compõem a Nação brasileira.
Em meio a esse debate, a necessidade de conceber raça tanto como ferramenta
válida empregada como diretriz para a construção de políticas públicas para as
populações negras no Brasil e como categoria social portadora em si de uma realidade
histórica surge como dilema frente a unidade do Estado nacional.
É objetivo do presente estudo, sistematizar elementos que compõem a análise
sobre o processo de implementação de políticas públicas que visem à efetivação da
cidadania das populações negras (rurais e urbanas), buscando compreender a articulação
que existe entre esse tema e a questão do reconhecimento, da construção das identidades
e do papel desempenhado pelo Estado nessas questões.
Nessa perspectiva, as reflexões em torno da construção do arranjo institucional
brasileiro, traduzido em políticas para efetivação da cidadania dos segmentos negros
que vivem sob território nacional, representam uma oportunidade para o debate sobre o
processo de extensão da cidadania às populações historicamente marginalizadas no
Brasil.
Partindo da concepção de Estado Nação, o presente estudo visa compreender as
possibilidades de construção de identidade e reconhecimento das populações negras no
Brasil, buscando construir um quadro que analise em que medida a inclusão das
demandas desses ‘novos’ sujeitos políticos na elaboração das políticas nacionais tem
contribuído para estabelecer uma nova concepção da noção de identidade nacional,
embasada no reconhecimento e inclusão das populações negras.
O dimensionamento dessa questão realizar-se-á através de um levantamento
sobre as políticas de Estado voltadas para atender as reivindicações advindas das
populações negras, rurais e urbanas, desde o primeiro governo pós-ditadura militar até o
atual governo (pleito de 2010), tentando traçar os princípios norteadores dessas
políticas.
A hipótese que acompanha a presente pesquisa é a de que diferentemente dos
governos anteriores, as políticas públicas destinadas à população negra no Brasil entre
2003 e 2010, reconhecem as necessidades específicas históricas das populações negras,
passando a conceber o princípio da igualdade entre as diferentes populações que
compõem o Brasil, como um ideal a ser perseguido (não como uma realidade já dada) e,
portanto como guia norteador na elaboração das políticas públicas.
Sugerimos como hipótese inicial no presente estudo que o princípio norteador na
concepção das políticas de Estado para as populações negras no período entre 2003 e
2010, parece se contrapor basicamente à duas idéias norteadoras dos governos
anteriores: de um lado a noção de que a igualdade entre os diversos segmentos que
compõem a Nação brasileira era algo dado, e que, portanto, não necessitaria de políticas
que o efetivassem; e de outro a concepção de que a diversidade deveria ser tratada do
ponto de vista da assimilação cultural, sucumbindo as diferenças (culturais, sociais,
políticas) para dar vazão a uma identidade nacional.
O texto que segue procura situar o assunto e demonstrar a importância do debate
sobre a relação entre a efetivação da cidadania e a construção das identidades das
populações negras no Brasil, assim como as implicações desse processo na concepção
de unidade do Estado nação em termos identitários.
2. CONTEXTUALIZAÇÃO E JUSTIFICATIVA
A história da formação do Estado nação brasileiro registra a desigualdade como
uma realidade concreta entre brancos e negros, ao mesmo tempo em que no plano dos
discursos institucionais a democracia racial por longo tempo foi afirmada como
característica essencial à fundação do Brasil enquanto Estado-Nação (Fernandes, 1978).
A ideologia preponderante que regia até meados dos anos 80, as relações inter-
raciais no Brasil do ponto de vista de políticas públicas de inclusão de grupos não-
brancos, era pautada por uma noção de identidade nacional embasada nas noções
miscigenacionistas e assimilacionistas em detrimento de resquícios de qualquer tipo de
herança (física, cultural) dos grupos de descendência indígena e africana (Nogueira,
2006).
Nesse sentido, as políticas públicas voltadas para atender as demandas dos
grupos não-brancos atuavam sob uma perspectiva muito mais de tolerância a esses
grupos do que de reconhecimento de suas particularidades e inclusão das reivindicações
que eles demandavam (Fernandes, 1978).
Considerar esses aspectos é fundamental para compreender o pensamento
vigente durante décadas no Brasil, constituído como aspecto histórico herdado desde a
colônia, que resultou em um complexo de ideologias e teorias que foram ‘modelando’ a
estrutura normativo-institucional, pautada pela negação do reconhecimento, e que em
muito limitou o processo de construção das identidades das populações negras no Brasil
(Feres Jr., 2006).
Até fim dos anos 80 o Estado não reconhecia e se punha indiferente as
reivindicações das populações negras no que tange a elaboração de políticas nacionais
que contemplassem suas demandas. Nos anos 90 ocorreram eventos que podem ser
considerados divisores de água no que tange as relações entre organizações negras;
representações estatais e as políticas de efetivação da cidadania das referidas populações
(Santos, 2007).
A Marcha Zumbi dos Palmares; o Seminário Internacional Multiculturalismo e
Racismo e os preparativos para a participação do Brasil na Conferência Mundial contra
o Racismo, a Discriminação Racial, a Xenofobia e Formas Correlatas de Intolerância
em Durban, na África do Sul em 2001 implicaram: na criação do Grupo de Trabalho
para a Promoção da População Negra (GTI); o reconhecimento da discriminação racial
e do racismo pelo então presidente Fernando Henrique (1995-2002); um plano de ação
de combate as desigualdades raciais (Santos, 2007).
No entanto os avanços ocorridos na década 90 não foram canalizados pelo
Estado sob novas concepções e arranjos institucionais que implicassem em políticas de
Estado para as populações negras: o GTI em decorrência da verba limitada que recebia
do governo federal foi relegado praticamente a inatividade; mesmo admitindo que o
Brasil era um país racista, o então presidente da República, Fernando Henrique Cardoso
se opôs à introdução do sistema de cotas em universidades públicas como forma de
ampliação do acesso às universidades às populações não-brancas1.
Nos anos 2000 foi criada a Secretaria Especial de Políticas de Promoção da
Igualdade Racial, com o objetivo de ser um órgão de assessoramento direto e imediato
ao Presidente da República na coordenação de políticas para a promoção da igualdade
racial.
Foi criado também um programa de ação afirmativa para alunos pobres, pretos,
pardos e deficientes no ensino superior privado. Outro marco ocorrido também nos anos
2000 foi a criação do Programa Universidade para Todos (ProUni), isentando de
tributos instituições privadas de ensino que oferecessem bolsas de estudo parciais ou
integrais a esses alunos. A instituição do Estatuto da Igualdade Racial em 2010
estabeleceu dentre outras coisas, cotas de participação mínima de negros no cinema e na
televisão.
A partir desses primeiros indícios tentaremos assinalar que se faz necessário
atentar para o fato de que ainda que o Estado brasileiro tenha já algum tempo
reconhecido que a discriminação e o racismo são fenômenos estruturantes das
desigualdades entre os grupos raciais, ocorreu no Brasil modos de atuação diferenciados
por parte do Estado em lhe dar com essas desigualdades: ora pela via da tolerância a
esses grupos excluídos historicamente e por vezes tentativas de assimilação dessas
populações à uma idéia de identidade nacional; ora pela via do reconhecimento das
diferenças e oportunização, visando a igualdade e ampliação dos direitos entre as
populações que constituem a Nação, construindo arranjos institucionais para a
diversidade.
Partindo do que foi apresentado acima, nos parece que as políticas de
reconhecimento e inclusão dos negros implementadas nos últimos anos, em especial na
última década, apontam para mudanças no trato com as diferenças no âmbito do Estado
Nação. Nesse sentido esse estudo visa mostrar em que medida esses novos arranjos
institucionais estão articulados com o processo de construção das identidades das
populações negras, rurais e urbanas, no Brasil. No tocante a esse aspecto que é foco
principal da pesquisa, tentaremos compreender também outras questões que entrecruzam
a temática maior:
1 No entanto vale ressaltar aqui que, como observado por Sousa (2007), a existência de políticas estatais
de inclusão em alguns estados do Brasil remete aos anos 30. Por outro lado é necessário frisar que
políticas de inclusão a nível federal não são observadas ao longo da história do Brasil até os anos 2000.
1) Em quais aspectos as políticas públicas para as populações negras rurais e
urbanas entre 2002 e 2010 divergem das políticas para esses segmentos da
população nos anos 80 e 90? É possível falar em um novo projeto de Nação a
partir de 2002?
2) Se forem constatadas mudanças nos princípios norteadores das políticas
nacionais para as populações negras, quais as implicações que essas mudanças
têm acarretado para o processo de construção das identidades dessas
populações?
3) Observando o desenho institucional que norteia as políticas nacionais para
populações negras rurais e as políticas para negros que vivem nas cidades, quê
analogias e disparidades há entra essas políticas? Em que medida as
identidades que cada grupo reivindica para si tem influência nos arranjos
institucionais? Nesse sentido é possível falar em uma identidade negra
brasileira, onde tanto os negros que vivem em quilombolas como os negros
que vivem nas cidades se reconheçam? Que identidades essas populações
reivindicam pra si?
Buscando por categorias analíticas que forneçam contribuições elucidativas sobre
a temática, no próximo tópico há uma breve incursão bibliográfica a cerca das principais
categorias empregadas no presente estudo: identidade, políticas de reconhecimento,
cidadania, Estado Nação, populações negras, populações rurais. O objetivo principal é
informar aos leitores sobre a base teórica na qual está assentado esse trabalho, além de
tentar estabelecer sistematizar as contribuições dos diversos autores.
Vale ressaltar que a importância de trazer ao cerne do debate da ciência política
a questão da efetivação da cidadania das populações negras no Brasil se deve, dentre
outras razões, pela constatação de que diferentemente do que ocorreu com a produção
bibliográfica na sociologia e na antropologia brasileiras, que produziram trabalhos
fundamentais para compreensão da situação das populações negras no Brasil (Florestan,
1964; Bastide, 1951; Ginsberg, 1954; Nogueira, 1950; Zimmermman, 1951; Hasenbalg,
1979, Souza, 2000; Munanga, 1988), na ciência política houve um incompreensível
silêncio que reinou entre os cientistas políticos brasileiros diante dessa questão. Só mais
recentemente é que algumas vozes começam a se colocar e apresentar diagnósticos do
ponto de vista da ciência política quanto a essa problemática (Feres Júnior, 2003;
Santos, 2007).
3. BASES ANALÍTICAS: REFERENCIAIS TEÓRICOS
As reformulações ocorridas na pauta de reivindicações dos movimentos sociais
nos anos 80 em decorrência do recuo Dos ideais socialistas acarretaram mudanças
também nas reivindicações dos movimentos negros (Santos, 2007).
Centradas na noção de cidadania, as mobilizações das populações negras não
reivindicavam, como fora anteriormente, modificações estruturais na ordem social mas
suas ações tem no horizonte de reivindicações o novo paradigma de democracia e
cidadania, fortalecido após o período da ditadura militar. Nesse sentido, o objetivo das
reivindicações era a inserção dos grupos negros na esfera pública por meio do
reconhecimento ou ampliação de seus direitos, reivindicando para si a atenção por parte
do Estado no que diz respeito ao atendimento de suas demandas específicas (Cohen,
2003).
Sob essa perspectiva é que o presente estudo, no intuito de analisar o processo de
implementação de políticas de inclusão da população negra no Brasil e compreender a
articulação que existe entre esse tema e entre a questão do reconhecimento, da
identidade e do papel do Estado nessa problemática, orientará suas análises a partir de
algumas categorias principais: cidadania, Estado Nação, identidade, reconhecimento.
No intuito de aprofundar o debate a que se propõe esse estudo, se faz necessário
uma pormenorização das categorias, citadas acima, que nortearão a discussão.
A construção da cidadania e a estruturação do Estado nacional
Compreender o processo de luta pela conquista de direitos requer que atentemos
para um outro processo que se delineou conjuntamente com a ampliação da cidadania: a
estruturação do Estado nacional. A cidadania se constituiu através de um elo de lealdade
e integração dos indivíduos ao Estado, que inclui homogeneidade da população e
fixação ao solo (Arendt, 1978), favorecendo a subordinação dos direitos individuais aos
planos nacionais e contribuindo para o processo de configuração dos Estados nacionais
(Marshall, 1967).
Ao ressaltar a importância das relações entre construção da cidadania e
constituição do Estado nacional, Charles Tilly (1996), Reinhard Bendix (1996), T. H.
Marshall (1967), Hannah Arendt (1978) nos dão não apenas uma definição de cidadania
e de Estado nacional, mas uma tentativa histórica de explicar ambos os processos como
em conexão através de raízes políticas e sociais interligadas. Seguindo esse raciocínio,
podemos discutir a construção das nações modernas a partir das constantes lutas
políticas específicas, objetivas, delineando-se como lutas por direitos que adquiriram
um caráter heterogêneo na sua construção, variando sua caracterização no espaço e no
tempo. Os conteúdos dos direitos se redefinem constantemente, portanto, são históricos.
O Estado Nação moderno não é apenas produto da atuação do Estado, mas da
emergência dos embates entre forças sociais que tornaram possível a viabilidade de um
projeto de nação a partir da concepção de que o Estado tem autonomia limitado pelas
pressões externas e internas que o encaminhariam na direção de ferramenta dos
interesses de vários grupos, revelando-se uma arena aberta às demandas políticas, a
priori, de elites em ascensão.
Entre os estudos clássicos que tratam do tema, a obra de Tilly (1996) apresenta
uma nova interpretação sobre a origem do Estado moderno e de outro processo atrelado
a ele: a cidadania moderna. O Estado nacional se impunha na tentativa de suplantar os
micro-nacionalismos locais em favor da coesão de um todo mais vasto do que suas
pequenas partes, ao mesmo tempo em que para isso concedia ajustes, "exigências e
compensações", envolvendo os interesses dos governos e das populações locais.
O processo de extração de recursos para realizar as guerras acarretou não só a
imposição de obrigações, mas também a concessão de direitos. A chave explicativa para
compreender o processo de construção do Estado nacional é, portanto a ação coletiva,
tendo em vista que a estruturação do Estado tem origem nas configurações de ações
coletivas que se deram numa relação entre lutas, negociações que acarretaram acordos
negociados incorporados ao arranjo institucional estatal, isto é, na concessão também de
direitos (Tilly, 1996).
Durante a formação dos Estados nacionais, Charles Tilly ressalta o fenômeno do
"nacionalismo". Os governos passaram a aplicar políticas de homogenização da
população, como a padronização das línguas, a expansão dos serviços educacionais e a
criação de símbolos nacionais que passaram a depender fortemente do Estado para sua
existência. Em sentido oposto ao caráter homogeneizado das políticas dentro dos
Estados, ocorreu um processo inverso de heterogeneização entre os Estados nacionais.
O estímulo ao nacionalismo, atenta Tilly, tinha um único objetivo: criar as bases
das identidades coletivas e das lealdades nacionais - não só entre a própria população,
mas também entre a população e o Estado. O Estado à medida que passa a intervir na
produção e distribuição de alimentos originou um aumento dos serviços sociais,
passando o Estado a intervir na saúde, na educação, na vida e nas finanças das famílias.
Assim caminhou-se historicamente dos direitos humanos voltados para tutelar a
diferença entre Estado e Sociedade e impedir a dissolução do indivíduo num todo
coletivo para os direitos concebidos como créditos dos indivíduos com relação à
sociedade, a serem saldados pelo Estado em nome da comunidade nacional.
A cidadania, portanto, para Tilly nasce dentro de um espaço delimitado (Estado
nacional), assim “[...] o núcleo que hoje denominamos cidadania na verdade consiste de
múltiplas negociações elaboradas pelos governantes e estabelecidas no curso de suas
lutas pelos meios de ação do Estado [...]” (Tilly, 1996).
Reinhard Bendix (1996), tal como Tilly, estabeleceu uma relação entre o Estado
nacionalista e a cidadania, no entanto ele parece ir mais além ao afirmar que esse
fenômeno se constituiu numa simultaneidade histórica entre igualdade e autoridade
governamental. Sua análise focará a transição nas relações de grupos a nível nacional,
marcada por mudanças de idéias concernentes a direitos e obrigações das classes baixas.
Nesse sentido um dos aspectos cruciais da construção da nação e da cidadania na
concepção de Bendix é a entrada das classes inferiores na arena política nacional,
ocasionando transformações que ocorreram devido as exigências sobre a causa da
pobreza.
A industrialização na Europa acarretou um declínio das relações paternalistas e o
advento de uma postura mais impessoal no traquejo com a pobreza, conjugado a uma
crescente confiança no modelo educacional, isto é, as proteções paternalistas somem
tendo em vista a concessão de direitos, subtendendo-se que com isso os cidadãos tinham
o poder de engajar-se com esforço no âmbito econômico, portanto com capacidade
plena para cuidar de si mesmos (Bendix, 1996).
A extensão dos direitos, segundo Bendix, às classes inferiores (formar
associações com pretensões básicas a justiça social; direito social a educação básica;
direito de votar e ser votado) contribuiu para uma crescente confiança no modelo
educacional atrelada à concepção de uma total autonomia e capacidade para o sujeito
desenvolver-se.
Bendix, dando continuidade a seu raciocínio, apresenta um fenômeno crucial à
compreensão de sua análise que estaria interligado a extensão dos direitos: enquanto
ocorria no âmbito da cidadania uma igualdade perante a lei, as desigualdades de classes
desenvolviam-se concomitantemente na medida em que num primeiro momento os
direitos são definidos em forma de leis e codificações, restrigindo-se a definir sua
capacidade apenas no âmbito legal, sem, no entanto definir sua capacidade real de
aplicabilidade. Essa extensão dos direitos objetiva igualar os cidadãos em termos de
institucionalização dos critérios de igualdade em um nível abstrato (Bendix, 1996).
Buscando compreender o impacto do processo de conquista de direitos sobre a
desigualdade social que T. H. Marshall (1967) se aproxima das afirmações de Bendix ao
conceber como integrado os processos de uma crescente igualdade no âmbito da
cidadania e uma profunda desigualdade no âmbito econômico, no entanto Marshall não
compreende que esses dois processos tenham se originado, em um primeiro momento,
de modo conflituoso.
As contribuições de Marshall (1967) apontam para o que ele identificou como
resultado da tensão bipolar do processo de ampliação da cidadania: a preservação da
liberdade do mercado competitivo impôs limites ao progresso das classes trabalhadoras
no que tange a efetiva ampliação dos seus direitos. A crescente igualdade política
através da política social logrou modificar a desigualdade econômica, tornando a
desigualdade do sistema de classes sociais, aceitável desde que a igualdade perante a lei
fosse reconhecida. Nesses termos os direitos não se originaram buscando extinguir
necessariamente as desigualdades, ao contrário, segundo a construção analítica de
Marshall, a concessão dos primeiros foram necessários para manter os segundos.
O status de cidadania era um auxílio e não necessariamente uma ameaça ao
capitalismo e a economia de livre-mercado porque este status era dominado pelos
direitos civis que confeririam a capacidade legal de lutar pelos objetos que o indivíduo
gostaria de possuir, no entanto sem garantir a efetiva posse deles. Nesse sentido
cidadania e classe social são diferentes e incongruentes na medida em que a primeira
concede status e tenta originar igualdade, enquanto a segunda restringi status, gerando
desigualdade (Marshall, 1967).
Marshall demonstra, baseado numa análise histórica, o desenvolvimento dos
direitos, e como a cidadania se configura enquanto um processo cumulativo de
conquistas de direitos, em dois sentidos: primeiro, enquanto aquisição de novos direitos;
e, segundo, enquanto ampliação dos direitos para camadas da população que se
encontravam excluídas desses direitos. Ele constrói uma classificação normativa da
cidadania, dividindo-a em três elementos: civil (liberdade individual), político
(exercício do poder político) e social (bem-estar econômico e segurança ao direito de
participar, por completo, na herança social).
A conscientização cada vez maior entre os indivíduos de que o reconhecimento
formal de uma capacidade igual no que diz respeito aos direitos de cidadania não
superaria a desigualdade total inerente ao sistema de classe social é acompanhada por
uma outra questão: o crescente interesse pela igualdade como um princípio de justiça
social implícita no conceito de cidadania, ainda que limitada em conteúdo, tem colocado
em xeque a desigualdade do sistema de classe que era, em princípio, uma desigualdade
total (Marshall, 1967).
A cidadania representa, para Marshall, a possibilidade de uma superação dessa
desigualdade inerente ao sistema de classes. E é à cidadania social que ele credita a
possibilidade de uma ordem social mais justa, e não à cidadania política e a questão da
cidadania política, que é, no limite, a cidadania propriamente dita, na medida em que os
cidadãos têm poder de interferir decisivamente nas questões nacionais, que Hanna
Arendt (1978) colocará no cerne do debate a cerca da cidadania.
Reconhecimento e Identidade
A experiência histórica dos apátridas levou (1978) a problematizar a questão da
construção das identidades nacionais e a existência de identidae plurais dentro do
mesmo território.
Hannah Arendt recorre a definição aristotélica do homem como animal político e
que por definição vive em comunidade. Isso implica dizer que a perda do direito de
pertencimento a uma comunidade política significa a perda da liberdade de opinião e
ação, portanto da própria existência efetiva do indivíduo no mundo. Nesse sentido a
cidadania é o direito a ter direitos e só pode ser construído na convivência coletiva, que
requer o acesso a um espaço público comum. Esse acesso ao espaço público – o direito
de pertencer a uma comunidade política – que permite a construção de um mundo
comum através do processo de construção pela igualdade orientada pelo princípio de
justiça (Arendt, 1978).
A contribuição de Arendt para a temática dos direitos humanos, resultado de
uma reflexão sobre o significado do totalitarismo problematizou e acarretou um
esfacelamento dos padrões e categorias que, com base na idéia de um Direito Natural,
constituíam o conjunto da tradição ocidental a qual havia historicamente feito
portadores de direitos apenas os “nacionais, [...] consumando a transformação do
Estado de instrumento de lei em instrumento de nação” (ARENDT, 1978, p. 309).
Arendt problematizará o padrão, antes implícito e, só depois colocado em
questão pelas realidades históricas do primeiro pós-guerra, da questão dos apátridas e da
constatação da convergência entre os direitos humanos e os direitos dos povos.
A convergência entre os direitos humanos e os direitos dos povos baseada no
pressuposto implícito de que a cidadania estava assentada em territórios nacionais
(Tilly, 1996; Bendix, 1996; Marshall, 1967; Arendt, 1978), implicava em: na medida
em que os seres humanos perdiam sua nação, perdiam conseqüentemente seus direitos.
De fato, à medida que os refugiados e apátridas se viram destituídos, com a perda da
cidadania, dos benefícios do princípio da legalidade, não puderam se valer dos direitos
humanos, e não encontrando lugar – qualquer lugar – num mundo como o do século
XX, inteiramente organizado e ocupado politicamente, tornaram-se efetivamente
indesejáveis.
Sob essa perspectiva os arranjos institucionais no trato com as populações negras
no Brasil durante décadas, parece refletir os apontamentos feitos por Hannah Arendt
quanto à espoliação da cidadania das populações negras. Essa espoliação não apenas os
restringiu o direito à proteção, mas também da possibilidade de construção e
reconhecimento das suas identidades (Arendt, 1978). Nesse sentido as populações
negras estão pleiteando, não somente o atendimento de suas demandas e a inclusão
desses enquanto sujeitos políticos, mas também o reconhecimento da própria
identidade.
Olhando como se tivessem sido diluídos em meio a sociedade branca, o Estado
parece ter perdido o fio condutor da construção da identidade das populações negras
durante décadas. Esse enquadramento no mínimo inadequado, foi por muito tempo a
idéia norteadora da metodologia de trabalho interno das instituições em relação à
elaboração de políticas para os negros.
O movimento de passagem do desconhecimento à constatação pública de uma
situação de desrespeito que atingia a coletividade das populações negras não se deu,
após a abolição da escravatura. Mesmo com a ‘forjada’ extensão dos direitos a esses
indivíduos, eles ficaram esquecidos pelas agências governamentais. Suas
especificidades foram diluídas, ao longo da história de construção do Estado nação
brasileiro, na vastidão do significado das medidas de construção da unidade nacional
embasada em uma identidade nacional sem cor, sem raças.
A possibilidade das populações negras poderem construir a igualdade as impede
que continue a ocorrer o risco, apontado por Arendt nas conclusões do The origin of
totalitarianism sobre o "isolamento" que levaria à impotência, frustrando a capacidade
humana para ação e o poder na esfera pública, e sobre o desenraizamento, impedindo o
pensamento e reduzindo a condição humana de criar artifícios comuns exclusivamente a
“[...] mera elementaridade natural, a sua mera diferenciação” (Arendt, 1978, p. 335).
A abolição do regime de escravidão no Brasil em 1888 estabeleceu apenas
formalmente os direitos ao recém libertos, sem, no entanto garantir-lhes sua efetivação e
muito menos as condições necessárias para a construção de suas identidades (Fernandes,
1978). A cidadania concebida com o "direito a ter direitos", não pode deixar de levar
em consideração o direito a paridade de estima, pois a igualdade que requer acesso ao
espaço público necessita que os indivíduos sintam-se não apenas protegidos, mas que se
sintam reconhecidos pelos demais (Marshall, 1967).
O reconhecimento das populações negras no Brasil como sujeito público de
direitos, em nível local e nacional dá condições de apresentação e recepção das
demandas desse novo sujeito na esfera pública. A identidade é situacionalmente
definida e o Estado assume aí um papel incontornável de garantidor da produção da
igualdade através da organização política “[...] porque o homem pode agir sobre o
mundo comum e mudá-lo e construí-lo juntamente com os seus iguais, e somente com
os seus iguais” (Arendt, 1978).
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