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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC/SP RIVANIL RUBENS NOGUEIRA A MAIÊUTICA COMO TÉCNICA EDUCATIVA NO SERVIÇO SOCIAL MESTRADO EM SERVIÇO SOCIAL SÃO PAULO 2008

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC/SP

RIVANIL RUBENS NOGUEIRA

A MAIÊUTICA COMO TÉCNICA EDUCATIVA NO SERVIÇO SOCIA L

MESTRADO EM SERVIÇO SOCIAL

SÃO PAULO

2008

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC/SP

RIVANIL RUBENS NOGUEIRA

A MAIÊUTICA COMO TÉCNICA EDUCATIVA NO SERVIÇO SOCI AL

MESTRADO EM SERVIÇO SOCIAL

Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para a obtenção do título de MESTRE em Serviço Social , sob a orientação da Professora Doutora Myriam Veras Baptista .

SÃO PAULO

2008

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BANCA EXAMINADORA

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Dedico este trabalho

Aos homens e mulheres que, ao longo da História, estiveram envolvidos na caminhada pela superação da sociedade das mercadorias, em busca da emancipação humana.

A minha mãe Leontina ..

A meu filho:

A Gustavo, que nasceu com esse trabalho, elo das novas gerações.

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AGRADECIMENTOS

Um dia um menino me disse que amava muito uma pessoa e por isso pensou em desistir de tudo ao se ver sozinho, mas juntos chegamos à conclusão de que passaremos a vida toda com a certeza inabalável de que nosso amor e a pessoa que amamos serão eternos! E em um dia próximo teremos nossa liberdade outra vez.

Ao primeiro passageiro que veio a sentar ao meu lado – minha mãe. Nada

explica tamanho sentimento que esse ser dedica a seus filhos; é por natureza a

excelência das criaturas; enquanto vive mantém aceso o princípio da vida e a ela

recorremos quando nenhuma coisa ou teoria nos conforta. Minha mãe, sem dúvidas,

tem sido a grande responsável por um homem em comunhão.

Meu pai já desembarcou na estação principal. Não foi um exemplo a seguir, mas

no fundo eu gostava dele e ninguém poderá acusá-lo sem antes reconhecer as trevas

que a humanidade tem vivenciado desde seus primórdios.

Um legado ele me inspirou: não existe a paternidade ideal e essa deve ser

construída com aquilo que se tem para dar. Quando se ama um filho não é preciso

privar-se da vida por ele, como demonstração de amor; contudo, ele deve entender que

seus pais fizeram o melhor que puderam para seu crescimento. Nesse sentido, meu

filho (Gustavo), seu embarque nessa viagem me ensinou outras coisas, principalmente

a olhar os pequenos detalhes que suas perguntas revelam durante a viagem,

transmitindo-me que ensinar é um ato de amor. Amor esse que sinto às vezes com

tristeza, por não poder compartilhar mais tempo com você.

Outros passageiros que me são raros e nada me pedem nesta viagem a não ser

o simples e sublime ato de estarmos juntos em alguns momentos: meus irmãos

Carlinhos, Lauro, Cidinha, Nita, bem como, meus sobrinhos Jose, Leandro, Leonardo,

Lucas e Guilherme. Desejo profundamente a todos que não percam tempo com

bobagens e curtam cada instante dessa viagem.

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Houve um período em que na minha viagem estavam presentes algumas

pessoas significativas e valiosas. Por motivos ínfimos hoje estão distante do vagão que

ocupo. São eles: Vicente, Vicentina, Lucimara, Luan, Lucas, Mariana, Rafael, Cibele,

Mateus, Eza, João, Maria, Beto e, em especial, a Lucimeire, pela qual tenho profunda

admiração.

Muitas são as pessoas que embarcaram e desembarcaram e que merecem

atenção em minha trajetória; mas aqui as incluo no conjunto dos trabalhadores que são

o cerne de minha continuidade nessa luta. Devo muito a esses grandiosos, verdadeiros

edificadores de tudo o que existe e que possibilita a vida humana: da produção material

da vida aos pilares que sustentam toda nossa história. Agradeço, em especial, às

pessoas que colaboraram com a pesquisa; sua participação e respostas serviram de

matéria-prima para as reflexões teóricas aqui desenvolvidas.

Agradeço, também, aos amigos que acompanharam e têm acompanhado de

perto os mesmos cenários e paisagens que se vão delineando pelos caminhos da vida.

Num mundo compelido pela ótica do mercado e de relações mercenárias, ter um amigo

é ter um grande tesouro. Eis o que me disse o velho camarada Analto, que hoje

percorre terras distantes, mas, tenho certeza, percorre com a mesma máxima que nos

faz continuarmos próximos:

“A maior ambição de um revolucionário é ver o homem libertado de sua

alienação”

Che Guevara

Desse mesmo sentimento raro, posso descrever algumas amigas que partilham

a idéia e a prática da necessidade de alavancar 2/3 da humanidade da pré-história. São

elas: Michele, Ana Carla e a Milka. Gostaria de agradecer também à camarada

Lindamar, minha grande amiga, pela força que me tem dado, pelo seu desprendimento

que faz com que a gente continue acreditando no ser humano e na possibilidade de

uma sociedade nova. Lindamar, temos uma irmã em comum que se chama “liberdade”.

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Quero agradecer aos professores que muito me ajudaram na formação

teórica deste trabalho. Suas aulas e orientações foram fundamentais. Refiro-me ao

Professor Evaldo Vieira, a Carmelita Yazbek e à Professora Myriam que me orientou,

sendo seus comentários, reflexões e leituras acuradas do trabalho o ponto necessário

para sentir-me no caminho certo.

Agradeço também à CAPES por proporcionar as condições materiais que

impulsionaram a construção desta pesquisa.

Por fim, agradeço aos companheiros do 13 de Maio pelo conhecimento que lá

me foi socializado. Não teria chegado até aqui se não fizesse parte de minha formação

a experiência revolucionária dos ensinamentos do 13 de Maio.

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RESUMO

A dissertação em questão tem sua origem no trabalho realizado junto aos adolescentes inseridos na medida de Liberdade Assistida. A necessidade do desenvolvimento de uma técnica que realmente contribuísse para a formação destes foi o arcabouço de todo o processo que culminou na utilização da maiêutica no cotidiano da prática profissional. Por outro lado, foi como militante do NEP (Núcleo de Estudos Popular 13 de maio) que conseguimos apropriar e, identificar-se com o jeito trezista de socialização do conhecimento, ou seja, a superação do senso comum através da maiêutica que por si também superada na sua gênese. Mas não se trata apenas de esclarecer e analisar uma técnica. Trata-se de demonstrar, sendo este nosso objetivo, a aplicabilidade da maiêutica como técnica educativa no serviço social. Todavia, entendemos aqui como educativo, o processo de libertação do homem de sua alienação, por isso evidenciamos a todo o tempo que nosso trabalho consiste na formação do homem no seu sentido político. Em nossos estudos, buscamos compreender que para superar uma prática imediatista e mecânica, o profissional que pretende intervir no processo de formação humana, principalmente com relação à libertação do homem de sua opressão e alienação, precisa operacionalizar mecanismos e instrumentais que possam desvelar aos oprimidos suas correntes e indicar meios para estes forjarem suas próprias armas na luta contra o capital. Neste sentido, não podemos nos eximir de compreendermos o processo de consciência. Desde sua forma embrionária até a possibilidade do salto para a universalidade, ou seja, da plena consciência de nosso papel na história. Partindo desta perspectiva, o destino da classe e da humanidade depende da totalidade do coletivo e, podemos e devemos intervir neste processo com a clareza de uma ação desmistificadora da realidade social ideologicamente deformada. Diante de uma teoria social revolucionaria, do processo dialético de sua interpretação, temos na maiêutica uma forma de socializarmos este conhecimento fundamental não só para a superação da sociedade do capital, bem como, o nascimento do homem critico e liberto da desoladora uniformidade que vivemos nos dias atuais.

Palavras-chave: Serviço Social; Método; Maiêutica.

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ABSTRACT

This dissertation thesis has its beginning in the work realized with teenagers inserted in the measure of Assisted Freedom. The need of development of a tecnic that really contributed for their formation was the foundation of a whole process that culminated in the use of maiêutica in the daily of professional practice. By the other hand, were as militant of NEP (Núcleo de Estudos Popular 13 de maio) that we could appropriate and identify ourselves with their manner of knowledge socialization, that is, with the overcoming of common sense through maiêutica that for itself is too overcame in its genesis. But it’s not only to clarify and analyze a tecnic. It’s to demonstrate, being this our goal, the applicability of maiêutica as an educative tecnic in Social Work. However, we understand here as educative the process of human’s release of its alienation, therefore we evidence all the time that our work consists in human’s formation in its politics way. In our studies we search for to comprehend that to surpass an immediate and mechanic practice, the professional that intends to intervene in the process of human’s formation, mainly in relation to the human’s release of oppression and alienation, needs to operate mechanisms and instruments that can disclose oppressed to its chains and indicate ways for them to forge its proper weapons in the fight against the capital. In this way, we can not exempt ourselves of understanding the process of conscience. Since its embryonic form until the possibility of the jump for the universality, that is, of the full conscience of our role in history. From this perspective the destiny of the class and the humanity depends on the totality of collective and we must intervene in this process with the clarity of an action to demystify the ideologically deformed social reality. Ahead of a revolutionary social theory of dialectical process of its interpretation, we have in maiêutica a way to socialize this basic knowledge just not for the overcoming of capital’s society, as well as the birth of the critical and free human of desolating uniformity that we live in the current days.

Key-words: Social Work; Method; Maiêutica.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO .........................................................................................................12

PRIMEIRO CAPÍTULO: A FORMAÇÃO DO HOMEM ............. ................................19

1.1 – UM BREVE HISTÓRICO DA EDUCAÇÃO DO HOMEM ..............................19

1.2 – A FORMAÇÃO DO HOMEM NO CAPITALISMO .........................................25

1.3 – SUBSUNÇÃO FORMAL E SUBSUNÇÃO REAL DO TRABALHO AO CAPITAL

...............................................................................................................................30

1.4 – VALOR E PREÇO DA FORÇA DE TRABALHO ..........................................32

1.5 – O CONTROLE DO PROCESSO DE TRABALHO E DA VIDA DO

TRABALHADOR ...................................................................................................35

1.6 – O ATUAL PADRÃO DE ACUMULAÇÃO E A SUBSUNÇÃO REAL DA VIDA

SOCIAL AO CAPITAL............................................................................................36

1.7 – O HOMEM ONILATERAL ............................................................................43

1.8 – O NASCIMENTO DA PEDAGOGIA SOCIALISTA .......................................47

SEGUNDO CAPÍTULO: O PROCESSO DE CONSCIÊNCIA ....... ...........................52

2.1 – A CONSCIÊNCIA COMO PROCESSO.........................................................52

2.2 – O INÍCIO DA CONSCIÊNCIA .......................................................................54

2.3 – ALIENAÇÃO E IDEOLOGIA .........................................................................59

2.4 – A CONSCIÊNCIA EM SI E A CONSCIÊNCIA DE CLASSE .........................63

TERCEIRO CAPÍTULO: O MÉTODO........................ ...............................................72

3.1 – O MÉTODO REVOLUCIONÁRIO DE SOCIALIZAÇÃO DO CONHECIMENTO

...............................................................................................................................72

3.2 – MAIÊUTICA: DE SÓCRATES (A ARTE DE FAZER PARIR A VERDADE) AOS

DIAS ATUAIS. SOBRE A SUPERAÇÃO DO SENSO COMUM ...........................78

QUARTO CAPÍTULO: MAIÊUTICA E SERVIÇO SOCIAL: DA PRÁ TICA INDIVIDUAL

À POSSIBILIDADE DA UTILIZAÇÃO COLETIVA ............ ......................................86

4.1 – O PONTO DE PARTIDA: TRABALHO E FORÇA DE TRABALHO DO

ASSISTENTE SOCIAL ..........................................................................................86

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QUINTO CAPÍTULO: O DESENVOLVIMENTO DA TÉCNICA: APAR ÊNCIA E

ESSÊNCIA – HAJA MAIS VALIA... ..................... ....................................................92

5.1 – CONSIDERAÇÕES TEÓRICAS SOBRE A PESQUISA ..............................92

5.2 – A PESQUISA DE CAMPO: A APROPRIAÇÃO DA MAIÊUTICA NA PRAXIS DO

SERVIÇO SOCIAL ................................................................................................94

5.3 – A INTERPRETAÇÃO DA MEDIDA SOCIOEDUCATIVA: UM EXEMPLO DA

UTILIZAÇÃO DA MAIÊUTICA NA ATUAÇÃO DO PROFISSIONAL .....................98

5.4 – O GRUPO GAIA .........................................................................................101

5.5 – OFICINA COM AS FAMÍLIAS DOS ADOLESCENTES ..............................105

SÍNTESE CONCLUSIVA ................................ .......................................................117

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ........................ ..............................................118

ANEXOS ................................................................................................................123

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INTRODUÇÃO

Em primeiro lugar, quero esclarecer que o tema original de meu projeto de

pesquisa foi alterado. No projeto anterior, propus-me a analisar a pedagogia no serviço

social. Mas, com o auxílio imprescindível de minha orientadora, somado às reflexões

realizadas durante as disciplinas e estudos, percebi que a primeira proposta me levaria

à direção da pedagogia no âmbito escolar. Não era esse o meu propósito.

Diante disso, conclui que meus estudos deveriam focar a análise de um método

que possibilitasse a socialização do conhecimento crítico e a superação do senso

comum, na práxis do Serviço Social, em sua proposta de formação do homem no

sentido político.

No seminário de lançamento de seu livro sobre economia política, realizado no

ano de 2006, em São Paulo, José Paulo Netto abriu o debate com a seguinte questão:

“todos aqui estão convencidos de que necessitamos transformar a realidade

econômica, política e social?"

Os dados apresentados pelo professor revelaram a brutal concentração de

riqueza no mundo e o estado de barbárie de alguns povos, considerando o contexto

mundial. O professor mencionou também que existe um processo mistificador da

realidade embutida na ideologia das classes dominantes.

Neste sentido, é fundamental transformar o mundo, mas transformá-lo para

melhor, não para pior. É necessário antes de tudo compreendê-lo. É preciso estudar,

relacionar os problemas do presente aos do passado, definir os conceitos fundamentais

para evitar as superficialidades e as confusões. Dar-se conta da história, com seus

problemas não resolvidos, para que não recomecem a cada geração. Em suma, fazer

da política um objeto de análise racional e não apenas uma ocasião de desabafos

pessoais, de projetos fantasiosos, de controvérsias desprovidas de finalidades

infecundas.

Decorrente de uma concepção de homem e de mundo, bem como da

compreensão crítica de nossa sociedade, concebemos que o trabalho do assistente

social deve transcender a uma prática meramente reprodutora da ordem pré-

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estabelecida e de conceitos que justificam a cidadania burguesa. Por isso, creio que

nossa ação é, antes de tudo, educativa e política.

Para cumprir o estabelecido no Código de Ética Profissional, principalmente com

os novos valores (a saber: a liberdade, a democracia, a cidadania, a justiça e a

igualdade social), não podemos negar que a nossa história está profundamente

relacionada à história das lutas de classes. E uma vez que a História ensina, não

podemos nos eximir de saber elucidá-la, de apreender como ela é, contrapondo-a à

ideologia dominante. É justamente neste ponto que percebo que sem uma perspectiva

pedagógica em nossas ações não apreenderemos a dimensão socioeducativa da

profissão.

Conforme assinala Yazbek,

as ações profissionais dos assistentes sociais apresentam duas dimensões: a prestação de serviços assistenciais e o trabalho socioeducativo, sendo que há uma tendência histórica a hierarquizar a ação educativa em face do serviço concreto. Na realidade, é pela mediação da prestação de serviços sociais que o assistente social interfere nas relações sociais que fazem parte do cotidiano de sua "clientela". Esta interferência se dá particularmente pelo exercício da dimensão socioeducativa (política e ideológica) da profissão, que tanto pode assumir um caráter de enquadramento disciplinador destinado a moldar o "cliente" em termos de sua forma de inserção institucional e na vida social, como pode direcionar-se ao fortalecimento dos projetos de lutas de classe. (YAZBEK, 1993, p. 57).

Há oito anos tenho realizado o trabalho de atendimento ao adolescente inserido

em medida socioeducativa de Liberdade Assistida, sendo tal medida prevista no artigo

112 do Estatuto da Criança e do Adolescente.

No Estado de São Paulo, a antiga FEBEM, (Fundação Estadual do Bem Estar do

Menor), hoje CASA, (Cento de Atendimento Socioeducativo ao Adolescente) é a

instituição governamental responsável pelo acompanhamento dos adolescentes em

conflito com a lei, seja na internação, seja no meio aberto. Sua ação tem sido parte de

uma política de contenção dos efeitos da questão social, que hoje se expressam nas

mais variadas formas. Contudo, sempre estão relacionados ao processo de

concentração de renda e de pauperização das massas, como afirma Netto (1995).

A questão do adolescente infrator, vista como categoria jurídica, faz com que ele

– pelo fato de haver infringido algum dispositivo legal que lhe foi atribuído ou imputado

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previamente definido como crime, falta ou contravenção segundo as leis do país – seja

declarado responsável e que receba una medida socioeducativa.

Convictamente, é valido ressaltar que, mesmo antes da infração, é atribuído o

estigma de "adolescente infrator" àqueles jovens que vivem em condições de

marginalidade, pois pertencem à classe social considerada "perigosa", ou seja, à

população que, desprovida de bens e tendo a sua força de trabalho subutilizada pelo

capital, é brutalmente reprimida nas franjas do sistema.

Essa é a condição, é a demanda dos adolescentes que chegam para o

atendimento na Liberdade Assistida. Esses adolescentes fazem parte dos que têm, no

processo de exclusão social, a marca de algoz e de vítima, visto que o nefasto projeto

político da modernidade anuncia o extermínio direto, que ocorre por vários caminhos:

pelos agentes do Estado, por agentes contratados pela sociedade, por questões

estabelecidas até mesmo entre eles próprios, pela extinção ou ausências de políticas

básicas que garantam condições de sobrevivência aos excluídos.

Trabalhar, nesse contexto, atender jovens e famílias que vivenciam a

transformação de seus filhos em seres brutais, compelidos e expostos numa ordem em

que a continuidade da vida é ceifada por situações irracionais, não é tarefa fácil e

requer uma intervenção competente, ética, política, com apoio teórico e através de um

método pedagógico coerente.

Contudo, o Assistente Social faz parte do conjunto dos trabalhadores que, nas

relações capitalistas de produção, não têm o controle sobre o seu processo de trabalho,

dificultando uma real compreensão da dinâmica social imposta.

Vale aqui ressaltar como se dá a reflexão sobre o processo de trabalho em Marx.

O trabalho é a categoria fundante da história humana, pois antes de fazer a História, os

seres humanos devem estar em condições para isso, ou seja, devem produzir as

condições materiais necessárias para a sua sobrevivência, sendo este, o primeiro

pressuposto da história humana. O segundo pressuposto é que, ao prover sua

existência material, os homens estabelecem relações sociais de produção,

independentes de sua vontade e conforme o grau de desenvolvimento das forças

produtivas. Nesse processo, os homens criam os meios, os instrumentos, tanto para a

transformação da natureza, como de si mesmos.

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Abstraindo as formas primitivas do processo de trabalho, nas quais o trabalhador

ainda detém a posse sobre o conhecimento técnico e as habilidades específicas

inerentes à sua atividade, nas sociedades capitalistas o modo de produção passa a

organizar o processo de trabalho, o qual tem por produto a divisão social do trabalho,

de forma a otimizar os recursos, revolucionando as suas condições objetivas. Não mais

o trabalhador realiza todo o processo de produção, ele está agora coletivizado e com

finalidades determinadas sob a égide da produção capitalista. Dessa forma, o trabalho

útil submete-se ao trabalho abstrato.

Aqui não se trata mais do trabalho, ou do processo simples de trabalho que produz valores de uso para seu produtor, no qual o produtor também é proprietário dos meios de produção, dos instrumentos, habilidades e conhecimentos que lhes endossam esta posse. Trata-se de um tipo especial de trabalho que, ao ser vendido no mercado como força de trabalho, acaba por constituir-se em mercadoria e, portanto, deve conter um valor. (GUERRA, 1995, p. 104).

A força de trabalho na sociedade capitalista tem um valor que se expressa em

dinheiro e é definido, como qualquer outra mercadoria, pelo tempo de trabalho

socialmente necessário, materializado na produção de suas condições de reprodução.

Para que a força de trabalho se converta em mercadoria é preciso que haja a

separação do trabalhador de qualquer meio que lhe garanta a sua existência material,

condicionando-a a uma única forma, ou seja, a venda de sua força de trabalho. Esta

separação histórica é pontuada por Marx no processo de acumulação primitiva, que

evidencia as formas violentas e brutais pelas quais se deu esse processo, a partir do

qual o trabalhador passou ao regime de assalariamento, ou seja, a receber uma quantia

em dinheiro pela venda de sua força de trabalho.

Sendo o Assistente Social um trabalhador assalariado, embora seu trabalho não

seja considerado produtivo, ele também está inserido no processo de produção

capitalista e na divisão sócio-técnica do trabalho.

A inserção do Serviço Social na divisão do trabalho e as novas perspectivas daí decorrentes são um produto histórico. Dependem, fundamentalmente, do grau de maturação e das formas assumidas pelos embates das classes sociais subalternas com o bloco do poder no enfrentamento da "questão social" no capitalismo monopolista; dependem, ainda, do caráter das políticas do Estado, que, articuladas ao contexto internacional, vão atribuindo especificidades à

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configuração do serviço social na divisão do trabalho. (IAMAMOTO, 1995, p. 87).

Temos claro que o Assistente Social não produz mercadorias, no entanto, seu

trabalho e os resultados obtidos pertencem a um contexto do capital que se define

numa relação social. Portanto, o processo de trabalho do Assistente Social,

corresponde, a meu ver (baseado nas referências teóricas utilizadas), a procedimentos

que também ocultam as essências dos fenômenos quando as tarefas são executadas

sem o entendimento pedagógico, ou seja, sem o controle do seu processo de trabalho.

Agora, uma vez compreendidas as mediações do sistema capitalista, temos o

compromisso de desvelar o funcionamento desse sistema, não apenas no âmbito dos

profissionais, mas também junto à população que faz uso de seus serviços.

Se somos também educadores, agentes que formam opiniões, se nossas ações

com a população não são neutras, como transmitimos o nosso conhecimento?

Certamente o trabalho do Assistente Social não é intrinsecamente o de

educação, mas relaciona-se com ele, não só no atendimento direto, como também na

realização de tarefas coletivas educacionais. Quantas vezes ele é convocado para

ministrar palestras, cursos, seminários, grupos, entre outros? Qual é a sua preparação

profissional para essas atividades? Acredito que não basta uma pragmática forma de

aplicar técnicas e instrumentais; é imprescindível assumir uma linha pedagógica para

que o trabalho seja coerente, não apenas com a realidade política e social, mas

também com a proposta ético-política da profissão. Portanto, não basta o conhecimento

de qualquer pedagogia; é necessário assumir uma pedagogia libertária de formação

humana, como por exemplo, a de Makarenko.

Assim, nada obsta à afirmação de que se faz necessário apreender o processo

socioeducativo fundamental no trabalho do Assistente Social. Para tanto, a utilização de

uma diretriz pedagógica é indispensável. Pensar que somente o vínculo entre o

profissional e o "cliente" será o bastante numa intervenção sociopedagógica certamente

levará ao fracasso. Posso descrever que no trabalho com os adolescentes em conflito

com a lei e seus familiares um dos princípios, o de estabelecermos a igualdade humana

presente num método pedagógico libertário, é condição básica, sem a qual qualquer

tentativa será um fracasso. Por outro lado, temos clara também a necessidade de um

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método revolucionário de socialização do conhecimento, o que nos leva ao ponto

central de nossos estudos: a proposta de análise da maiêutica socrática como

método educativo válido para a práxis do Serviço So cial.

Nesse contexto, esse trabalho foi estruturado da seguinte forma:

No primeiro capítulo procurei situar o contexto-histórico-político-econômico sobre

a educação do homem, visto numa perspectiva da formação humana. Baseado na obra

de Aníbal Ponce, busquei, desde o princípio, revelar que a história da formação do

homem se deu sob a divisão das classes sociais, conseqüentemente na égide da

dominação de uma classe sobre a outra. Nesse sentido, um trabalho que propõe a

formação do homem tem que apresentar propostas de desalienação do processo de

mistificação da realidade, assumindo claramente o tipo de homem que queremos

formar. Assim, podemos visualizar na obra de Marx e Makarenko um tipo ideal de

homem contrapondo o ideário do homem burguês.

No segundo capítulo, focalizei uma reflexão sobre o processo de consciência,

fundamental para a intervenção educativa. A esse respeito, busquei analisar os

elementos que compõem a formação da consciência, demonstrando que as fases

desse processo não são estáticas e lineares. Por outro lado, é nesse processo que se

dá a implantação da ideologia dominante, através de uma base já consistente da

alienação. Porém os estudos nos revelam que, por ser um processo dialético, a

consciência sofre interferências da realidade e das relações sociais que o indivíduo irá

estabelecer em sua vida, podendo desenvolver nesse processo uma consciência de si

e para si e o educador (assistente social) pode e deve interferir para acelerar os

acontecimentos nesse sentido.

Quanto ao terceiro capitulo, abordei os elementos básicos sobre o método de

formação na direção da educação popular, esclarecendo que existe um conhecimento

teórico que precisa ser socializado; no caso desta pesquisa, a teoria social de Marx.

Para tanto, não poderíamos realizá-lo sem o método dialético para sua interpretação.

Todavia, é na superação da maiêutica socrática que encontramos o caminho para a

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socialização do conhecimento já sistematizado; trata-se do processo de construção e

reconstrução de conceitos através da superação do senso comum.

No quarto capítulo, buscamos apresentar, a maneira como o serviço social pode

apropriar-se dessa forma revolucionária de abordagem, que possibilita ao profissional

assistente social criar espaços menos alienados nas esferas das instituições capitalistas

em que opera. Refletimos sobre o trabalho do assistente social no processo de

emancipação humana em detrimento do enquadramento realizado por muitos

intelectuais da classe dominante.

No quinto capítulo, organizei a exposição da trajetória de meu trabalho junto aos

adolescentes e seus familiares, mencionando algumas peculiaridades do trabalho

direto, da produção de recursos didático-pedagógicos e do desenvolvimento da

formação política. Dessa frente de trabalho, destaquei como se desenvolveu o trabalho

de formação política dos adolescentes, desde o início até a sistematização dos grupos

e palestras que conseguimos elaborar. Efetivamente, trata-se da aplicação da Técnica

a uma realidade concreta e a conjuntura apropriada para que as bases teóricas que

fundamentam nossa prática se pudessem expressar num coletivo crítico e consciente

de seu papel. Realizamos uma pesquisa em lócus com as famílias dos adolescentes;

na ocasião, aplicamos a maiêutica através de uma dinâmica que denominamos “a

fábrica”. Apresentam-se, pois, no capítulo, as passagens necessárias para a aplicação

da maiêutica, bem como os resultados imediatos de uma ação que não tem a pretensão

de valer-se como verdade transformadora, mas sim, como um instrumento capaz de

viabilizar um processo questionador e desalienador do mundo capitalista que tem, no

âmbito da formação, muitos defensores e propagadores de sua ideologia.

Ao final, teceram-se algumas considerações esclarecendo que o tema não se

esgota aqui e, que, certamente, ainda existem diversas lacunas e veios de pesquisa

para uma compreensão mais ampla sobre a questão.

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PRIMEIRO CAPÍTULO

A FORMAÇÃO DO HOMEM

1.1 – UM BREVE HISTÓRICO DA EDUCAÇÃO DO HOMEM

Se os tubarões fossem homens, eles fariam construir resistentes caixas no mar, para os peixes pequenos, com todos os tipos de alimentos dentro, tanto vegetais, quanto animais. Naturalmente, também haveria escolas nas grandes caixas; nessas aulas os peixinhos aprenderiam como nadar para a goela dos tubarões. Eles aprenderiam, por exemplo, a usar a geografia, a fim de encontrar os grandes tubarões, deitados preguiçosamente por aí. Aula principal seria naturalmente a formação moral dos peixinhos. Eles seriam ensinados de que o ato mais grandioso e mais belo é o sacrifício alegre de um peixinho, e que todos eles deveriam acreditar nos tubarões, sobretudo quando esses dizem que velam pelo futuro dos peixinhos. Se encucaria nesses peixinhos que o futuro só estaria garantido se aprendessem a obediência.

Bertold Brecht

A formação humana não pode ser concebida apenas como uma questão de

educação, como se bastasse um processo de treinamento e o aprendizado de técnicas

formais. Ela está intrinsecamente relacionada às formas históricas sob as quais se têm

estabelecido as relações sociais de determinadas sociedades, o que, até o momento,

corresponde à História da humanidade, ou seja, à história das lutas de classes.

A produção social da vida é o fator fundante das relações sociais. Conforme o

homem foi evoluindo, as forças produtivas e as relações sociais tornaram-se mais

complexas e foram alcançando patamares superiores. Contudo, desde a superação do

comunismo primitivo, quando a propriedade comum da terra estabelecia relações de

igualdade de direitos e resoluções democráticas entre todos da tribo, a formação

natural do homem no processo de coletividade se foi metamorfoseando para um

processo privado de interesses de classes.

Nesse sentido, destacam-se, a priori, alguns pontos da formação do homem,

tendo como base teórica a obra de Aníbal Ponce sobre Educação e Luta de Classes

(1991). Destaca-se também a trajetória das mudanças no processo de aprendizado

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humano; podemos observar que, na comunidade primitiva, o ensino era para a vida e

por meio da vida: para aprender a manejar o arco, a criança caçava; para aprender a

guiar o barco, navegava. As crianças se educavam tomando parte das funções da

coletividade. O trabalho, nesse período histórico de garantia dos meios necessários

para a sobrevivência e para o aprimoramento humano, era a fonte de toda a educação

do homem. Uma sociedade sem classes, de divisão das tarefas sociais, de igualdade

quanto à posse dos meios de produção e dos produtos suscita uma relação social

baseada não apenas na solidariedade, na coletividade, mas também nas formas de

tomar decisões. Nesse tipo de sociedade a consciência social é baseada na realidade

vivenciada por todos.

O dever ser, no qual está a raiz do fato educativo, lhes era sugerido pelo meio social desde o momento do nascimento. Com o idioma que aprendia a falar, recebia certa maneira de associar ou de idear: com as coisas que viam e com as vozes que escutavam, as crianças se impregnavam das idéias e dos sentimentos elaborados pelas gerações anteriores, submergiam de maneira irresistível numa ordem social que as influenciava e as moldava. Nada viam e nada sentiam, a não ser através da maneira consagrada pelo seu grupo. A consciência era um fragmento da consciência social, e se desenvolvia dentro dela. Assim, antes de a criança deixar as costas da mãe, ela já havia recebido, de um modo confuso certamente, mas com relevos ponderáveis, o ideal pedagógico que seu grupo considerava fundamental para a sua própria existência. Em que consistia este ideal? Em adquirir, a ponto de tornar imperativo como uma tendência orgânica, o sentimento profundo de que não havia nada, mas absolutamente nada, superior aos interesses do grupo e às necessidades da tribo. (PONCE, 1991, p. 21).

Esse tipo de sociedade perdurou na maior parte da História, ao contrário do que

diz a ideologia dominante – que as diferenças de classes sempre existiram.

O estudo dos elementos que proporcionaram as transformações para uma

sociedade de classe é importante para entendermos a História; entretanto, nesse

trabalho, apontamos dois fatores primordiais para que isso ocorresse: a produção do

excedente e a substituição da propriedade comum pela propriedade privada.

Quando os homens alcançaram esse estágio, em que a sociabilidade também já

se fazia complexa, apareceram relações sociais em que o supertrabalho de uns

constituía condição para a existência de outros. Quanto mais a produção do excedente

crescia – e com o aparecimento de novas técnicas aumentou-se o poder do trabalho

humano – mais o produtor necessitava do aumento da força de trabalho. Incorporar

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indivíduos estranhos à tribo, para explorar seu trabalho, era, ao mesmo tempo,

necessário e possível.

Essa transformação tem grande importância para nós. Na sociedade primitiva, a colaboração entre os homens se fundamentava na propriedade coletiva e nos laços de sangue; na sociedade que começou a se dividir em classes, a propriedade passou a ser privada e os vínculos de sangue retrocederam diante do novo vínculo que a escravidão inaugurou: o que impunha o poder do homem sobre o homem. Desde esse momento, os fins da educação deixaram de estar implícitos na estrutura total da comunidade. Em outras palavras: com o desaparecimento dos interesses comuns a todos os membros iguais de um grupo e a sua substituição por interesses distintos, pouco antagônicos, o processo educativo, que até então era único, sofreu uma partição: a desigualdade econômica entre os "organizadores" - cada vez mais exploradores - e os "executores" - cada vez mais explorados - trouxe, necessariamente, a desigualdades das educações respectivas. As famílias dirigentes que organizavam a produção e retinham em suas mãos a distribuição e a defesa, organizaram e distribuíram também, de acordo com seus interesses, não apenas os produtos, mas também os rituais, as crenças e as técnicas que os membros da tribo deviam receber libertados do trabalho material, o seu ócio não foi nem estéril, nem injusto, a princípio. Com os rudimentares instrumentos da época, não seria concebível que alguém se entregasse às funções necessárias, mas não produtivas, a menos que muitos outros trabalhassem para esse alguém. Mas, se a aparição das classes sociais foi uma conseqüência inevitável da escassa produtividade de trabalho humano, também não é menos certo que os que se libertaram do trabalho manual aproveitaram a vantagem conseguida para defender a sua situação, não divulgando os seus conhecimentos, para prolongar a incompetência das massas e, ao mesmo tempo, assegurar a estabilidade dos grupos dirigentes. (PONCE, 1991, p. 25-26).

A partir desse contexto, as diferenças e as contradições permeariam o processo

de formação do homem. Aquilo que era compartilhado por todos – crenças, hábitos

costumes, ou seja, as tradições históricas – tomaram outras características. Frente às

relações de dominância e submissão, surge a necessidade de uma educação

sistemática, organizada e violenta. A hierarquia, a disciplina e a obediência fazem parte

dessa educação que deve justificar e manter a ordem das classes dirigentes. Para

estas, a riqueza e o saber; às demais, o trabalho e a ignorância.

Quanto mais aumenta o poder do homem sobre as forças produtivas, a estrutura

social se vai transformando; no entanto, tal acontecimento tem ocorrido com a

adequação dessas transformações aos interesses da classe dominante. A classe que

detém o poder econômico também precisa deter as formas de tomar decisão, as leis, as

forças armadas e se completa com a dominação ideológica.

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Nesse sentido, toda a educação imposta pelas classes proprietárias deve

cumprir três finalidades essenciais, como aponta Ponce (1991): destruir os vestígios de

qualquer tradição inimiga; consolidar e ampliar a sua própria situação de classe

dominante e prevenir uma possível rebelião das classes dominadas. Assim, o ideal

pedagógico já não pode ser o mesmo para todos; não só esses ideais são distintos,

como se faz mister para as classes dominantes fazer com que as massas laboriosas

aceitem essa desigualdade de educação como uma desigualdade imposta pela

natureza das coisas, contra a qual seria loucura se rebelar.

Diante do exposto, é significativo para nossas reflexões salientarmos que a

formação do homem se dá através das relações sociais, que por vez estão

fundamentadas sob a base do modo de produção material da vida. Concluiu-se então

que, com exceção do comunismo primitivo, nas sociedades que se passaram, bem

como na contemporaneidade, o ideal de formação humana distingue-se entre as

classes, mas tanto em uma, como em outra, sofre alterações conforme as relações de

produção.

Vamos ver numa breve análise, mas crucial, o tipo de homem e de qual

educação as classes dominantes buscaram nas sociedades escravista, feudal e no

capitalismo.

A antiga sociedade grega desenvolveu um período de pouca expansão comercial

e a base material da vida consistia na exploração do trabalho escravo. O escasso

desenvolvimento dos meios de produção não permitia lançar no mercado um grande

excedente de produtos. As técnicas de produção eram ínfimas, o que exigia uma

intensa exploração da força dos braços dos escravos. Possuir terras e ser proprietário

de escravos e guerreiro era o que caracterizava o homem das classes dominantes.

Assegurar a superioridade militar sobre as classes submetidas era o fim supremo da

educação. Nesse sentido, os exercícios militares se sobrepunham à exígua instrução

intelectual dos nobres. Assim, a formação guerreira era proibida aos escravos, uma vez

que a dominação consistia no exercício das armas.

A posição de classe dominante era reforçada na consciência dos jovens. Estes

eram submetidos pelo Estado a exames sobre o seu grau de educação, tanto no

manejo das armas, quanto nos deveres de cidadão.

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Nessa sociedade, os direitos cívicos eram reservados àqueles que não

necessitavam trabalhar para viver; estes eram considerados cidadãos. Na concepção

de senhor e de escravo de Aristóteles, uns nasciam para mandar e outros para

obedecer. A política aristotélica revelava, na realidade, que a essência do homem

residia na sua capacidade de ser cidadão e, como a cidadania era privilégio das classes

dominantes, então, só era considerado homem aquele que pertencia às classes

dirigentes.

Até esse momento, temos que a formação do homem nobre em sua virtude

fundamentava-se não na moral e, sim, na capacidade do mesmo de governar, o que se

dava, como vimos, através das armas. Só mais tarde, desvinculado totalmente do

trabalho produtivo, outros ideais de virtude apareceram. Com o ócio que o trabalho

escravo permitiu, as classes dirigentes passaram a realizar atividades totalmente

alheias à vida prática.

O diagogo (ócio elegante), trouxe a superioridade da teoria sobre a prática, o que

levou a classe nobre à descoberta da filosofia, da arte e da literatura. À medida que

essas atividades foram aumentando de importância, surgiu a necessidade da criação

de uma instituição que ensinasse a ler e a escrever: a escola. A partir de então, o

Estado foi, aos poucos, interferindo em todo o processo da educação.

No entanto, somente os nobres tinham condições de enviar seus filhos para

estudar; as outras classes trabalhavam. Todavia, as alterações nas estruturas de

produção e a expansão comercial trouxeram para cena outras classes que iriam mudar

o ideal de homem e a estrutura social entre as classes. O homem cavalheiresco,

guerreiro e as doutrinas baseadas na religiosidade vão cedendo lugar aos ideais

comerciais e industriais. A filosofia mística e divina é substituída pela filosofia do

homem. Este passa a ser a medida de todas as coisas.

Essas transformações ocorreram em função dos conflitos que o processo de

contradições carrega no seu bojo. A luta entre as classes revela os antagonismos e

resulta em perseguições e no uso indiscriminado da violência; várias pessoas foram

executadas por contestarem a ordem dominante. Toda a classe dominante faz uso do

que for preciso para se manter no poder. A dominação ideológica se revela na História

uma preocupação contra idéias subversivas. Platão, por exemplo, via a multidão como

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um monstro feroz, que é necessário manter afastado e em absoluta dependência, bem

como excluído da vida intelectual.

Nada obsta pontuarmos os avanços filosóficos e científicos do período grego.

Temos a considerar, por exemplo, a questão da Paideia, que significa a formação do

homem grego. O humanismo implícito na descoberta do homem como o detentor de si

mesmo: uma educação com intensidade e consciência pode até mudar a natureza

física do homem. A educação grega inaugurou um conceito de formação humana do

mais alto nível da intelectualidade e do homem genérico. Esculpir o homem vivo, eis o

ideal. Na Grécia, segundo JAEGER (1979), a educação e a formação do homem se

distinguem por meio da criação do tipo ideal intimamente coerente e claramente

definido. A formação/cultura tem raízes profundas na forma integral do homem, na sua

conduta e comportamento exterior, na sua atitude interior. Homem sábio, culto, de

conhecimentos diversos, honrado e cidadão, o filósofo grego, tem sido uma imagem

que inspira os estudantes. No entanto, toda a estrutura da sociedade grega se

sustentava pela praticidade do trabalho escravo.

Com a queda da Antigüidade, o mundo feudal trouxe alterações nas relações

sociais de produção e, conseqüentemente, a superestrutura da sociedade também

mudou. Com o fim da força motriz escrava, surge o trabalho servil que irá sustentar as

classes dos nobres, dos senhores feudais e o clero.

Nesse tempo, as forças produtivas continuavam precárias e a terra ainda era a

principal base da riqueza. Por outro lado, as guerras, os assaltos e a usurpação da

propriedade alheia também eram práticas comuns; práticas essas que completavam a

economia dos senhores feudais. Sendo assim, não precisamos alongar os

esclarecimentos de que tipo de homem eles desejavam. Tratavam da formação do

homem guerreiro que não necessitava de outra instrução que não fosse a das armas.

Toda a responsabilidade pela instrução da época ficou sob a égide da igreja. As

transformações que a sociedade sofreu durante o feudalismo impuseram o domínio

religioso. A classe sacerdotal se tornara poderosa não só economicamente, mas

sobretudo ideologicamente.

Com o monopólio da educação, os monastérios eram o único caminho para

aqueles que não eram servos e que queriam alguma instrução intelectual. Esses teriam

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que se submeter ao enclausuramento e aos ensinamentos religiosos. Numa outra

posição, os ensinamentos da igreja à plebe (massas campesinas) eram destinados a

familiarizá-las com as doutrinas cristãs e, ao mesmo tempo, mantê-las dóceis e

conformadas.

Até aqui, vimos que a história da formação humana, com exceção do comunismo

primitivo, ocultou a realidade das classes inferiores, que quando recebiam alguma

instrução, a recebiam com um caráter místico, de pura dominação e alienação. Será

que, com a queda do mundo feudal e a ascensão do homem burguês, a realidade da

nova sociedade, "o capitalismo", trouxe alterações à classe explorada?

1.2 - A FORMAÇÃO DO HOMEM NO CAPITALISMO.

O capitalismo inaugurou uma outra era da humanidade. As transformações

ocorreram aceleradamente e os avanços do domínio do homem sobre a natureza

certificaram a superioridade desse período histórico em comparação às sociedades

passadas.

Tão logo o capitalismo se fortaleceu, as exigências de uma nova educação e de

um novo tipo de homem se estabeleceram. O homem burguês pautava-se na

racionalidade e seus ideais de classe pareciam contemplar toda a humanidade.

Depois de tantos séculos de sujeição feudal, a burguesia afirmava os direitos dos indivíduos como premissa necessária para a satisfação dos seus interesses. Liberdade absoluta para contratar, comerciar, crer, viajar e pensar. Nunca, como então, se falou tanto em humanidade, cultura, razão e luzes. (PONCE, 1991, p. 130).

Mas logo que a burguesia triunfou, a classe revolucionária tornou-se

conservadora; a humanidade e a razão passaram a ser humanidade e razão

"burguesas".

Como tudo o que existe, porém, tem uma gestação, uma evolução e uma

decadência, o capitalismo também vivenciou esse processo.

A primeira fase é a da acumulação primitiva. Este é o período de gestação do

modo de produção capitalista que ocorreu, mais ou menos, desde o século XIV ao

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XVIII. Foi neste período de gestação que se formam os elementos que irão constituir o

organismo que nascerá. Assim, foi neste período que se formaram os componentes

principais do capitalismo: de um lado, os proprietários dos meios de produção e, de

outro, a imensa massa de despossuídos que só tinham sua força de trabalho para

vender. Nessa fase, nenhuma educação, nem a mais elementar, era pensada para os

trabalhadores que viviam na mais absoluta penúria.

A acumulação primitiva foi construída através de séculos de expropriação de

camponeses e servos no final do feudalismo. O principal instrumento, por exemplo, na

Inglaterra, foram os cercamentos das terras para que servissem de pasto para ovelhas,

o que expulsou milhares de servos que marcharam para as cidades. Aqueles que

vagavam palas estradas eram taxados de vagabundos e severamente perseguidos,

presos, marcados a ferro e, se fossem reincidentes, eram enforcados.

Ao lado da formação dessa massa de despossuídos se foi formando uma classe

de arrendatários capitalistas que acumularam riquezas graças à renda da terra. Pouco

a pouco se foram formando também as manufaturas, onde os proletários iam vender a

única coisa que lhes restava: a sua força de trabalho.

Assim, os meios de trabalho se tornaram os elementos do capital constante e os

meios de sobrevivência se transformaram em meios do capital variável. Os proprietários

dos meios de produção formariam a classe dos capitalistas e os vendedores de força

de trabalho seriam os proletários.

Neste período, sem dúvida, a trajetória do Estado serviu para que os elementos

necessários da acumulação primitiva ocorresse. Foram séculos de transformação das

forças produtivas que impulsionaram as transformações no âmbito da superestrutura. A

usurpação, a exploração e a legislação – que, através do Estado, deram respaldo a um

verdadeiro massacre da classe trabalhadora – foram âncoras da expansão do

capitalismo.

A concorrência, como segunda fase do capitalismo, nasceu com a revolução

industrial do século XVIII. Com a passagem das manufaturas para as fábricas

modernas, o modo de produção capitalista pôde se expandir rapidamente, tornando-se

determinante, primeiro na Europa e depois em todo o planeta.

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A primeira forma que essa fase assumiu foi da livre concorrência entre os

capitalistas que se iam formando. O pensamento que corresponde a essa fase é o

liberal, pelo qual a busca do lucro de cada um produziria a felicidade geral da

sociedade; o Estado não deveria interferir para regular a economia, que se organizaria

em função da "mão invisível" da concorrência, graças à lei da oferta e da procura.

As idéias principais dessa fase vêm de Adam Smith, de Ricardo e de outros

economistas clássicos e são também muito influenciadas pelo pensamento de Charles

Darwin, por sua idéia de seleção natural, pela qual, na luta pela adaptação, os mais

fortes vencem e os mais fracos perecem. Formar indivíduos aptos para a competição do

mercado era o ideal da burguesia. Contudo, para a competição capitalista, se faziam

necessários trabalhadores aptos aos novos meios de produção, o que exigia um

mínimo de instrução ao povo.

Cada vez mais a produção capitalista engendrou novas tecnologias exigindo que

a educação fosse se adaptando às linhas de produção. Toda a ciência foi posta a

serviço do capital. Com a divisão social do trabalho, a distância entre o trabalho manual

e o intelectual vai diferenciando os trabalhadores em especializados e não-

especializados. A classe dirigente, como nunca na História, necessita não só ser

instruída, como contar com servidores com um certo nível de cultura.

Mas no que consiste tal formação? Na emancipação do homem, como pregava a

burguesia revolucionária, no racionalismo e no conhecimento que levaria ao ideal

humano do homem pleno e realizado? Não! Na mais miserável face humana, do

homem egoísta, que direciona sua vida pela razão técnica, em que os fins justificam os

meios, não importando que para isso se destrua o humanismo, do qual tanto a própria

burguesia era precursora, como a História e a razão dialética.

Na época em que a burguesia era o porta-voz do progresso social, seus representantes ideológicos podiam considerar a realidade como um todo racional, cujo conhecimento e o conseqüente domínio eram uma possibilidade aberta à razão humana. Desde a teoria de Galileu de que ä "natureza é um livro escrito em linguagem matemática" até o princípio hegeliano da " razão na história”, estende-se uma linha que - apesar de sua sinuosidade - afirma claramente a subordinação da realidade a um sistema de leis racionais, capazes de serem integralmente apreendidas pelo nosso pensamento. Ao tornar-se uma classe conservadora, interessada na perpetuação e na justificação teórica do existente, a burguesia estreita cada vez mais a margem para uma apreensão objetiva e global da realidade; a razão é encarada com um ceticismo cada vez maior, renegada como instrumento do conhecimento ou

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limitada a esferas progressivamente menores ou menos significativas da realidade. (PONCE, 1991, p.146).

A terceira, e a que parece ser a última fase do capitalismo, foi gerada no seio da

livre concorrência que levou ao capitalismo monopolista.

Lênin (1979) relata na obra “Imperialismo, fase superior do capitalismo" que,

quando Marx escrevia o Capital, a livre concorrência aparecia à imensa maioria dos

economistas como uma lei da natureza. A ciência oficial tentou aniquilar, pela

conspiração do silêncio, a obra de Marx, a qual demonstrava, através de uma análise

teórica e histórica do capitalismo, que a livre concorrência gera a concentração da

produção, a qual, atingindo certo grau de desenvolvimento, conduz ao monopólio.

As metamorfoses sofridas pelo capitalismo impuseram ainda mais: não bastava

o controle dos meios de produção por parte dos capitalistas, nem a posse integral da

mercadoria e da força de trabalho, tornou-se necessário que o capital abrangesse toda

a esfera da vida social do trabalhador. Portanto, a formação do ser (homem) no capital

corresponde ao atual modo de acumulação capitalista, da fundamental relação capital x

trabalho. Nesse sentido, é crucial entendermos essa atual relação.

A relação entre o capitalista e o trabalhador é estabelecida pela venda e compra da força de trabalho, mediada pelo valor desta mercadoria. O valor da força de trabalho, como o de toda outra mercadoria, é determinado pelo tempo de trabalho necessário à produção, portanto, também à reprodução, deste artigo específico. Enquanto valor, a própria força de trabalho representa apenas determinado um quantum de trabalho social médio nela objetivado. A força de trabalho só existe como disposição do indivíduo vivo. Sua produção pressupõe, portanto, a existência dele. Dada a existência do indivíduo, a produção da força de trabalho consiste em sua própria reprodução ou manutenção. Para sua manutenção, o indivíduo vivo precisa de certa soma de meios de subsistência. O tempo de trabalho necessário à produção desses meios de subsistência ou o valor da força de trabalho é o valor dos meios de subsistência necessários à manutenção do seu possuidor (...) A soma dos meios de subsistência deve, pois, ser suficiente para manter o indivíduo trabalhador como indivíduo trabalhador em seu estado de vida normal (...) Em antítese às outras mercadorias, a determinação do valor da força de trabalho contém, por conseguinte, um elemento histórico e moral. (MARX, 1988, p. 137).

Mas, como a força de trabalho precisa ser continuamente substituída, tendo em

vista que quem a detém é mortal, a produção e reprodução da força de trabalho

pressupõem a produção e reprodução da vida de seus filhos, vale dizer, de sua família.

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O valor da força de trabalho corresponde, pois, a um determinado quantum de trabalho

abstrato, socialmente necessário para produzir a massa de meios de subsistência

necessária para a produção e reprodução normais da vida do trabalhador e de sua

família em sua totalidade — alimentação, moradia, transporte, vestuário, saúde,

educação, lazer, etc. Note-se que o valor da força de trabalho não corresponde

somente aos meios de subsistência necessários para que o trabalhador realize uma

determinada tarefa durante o tempo que vendeu ao capitalista – sua jornada de

trabalho; mas, àqueles necessários ao trabalhador e a sua família para a produção

normal e digna da vida em sua integralidade durante as vinte e quatro horas do dia, 365

dias no ano, etc. Isto inclui, portanto, uma soma de meios de subsistência para além

daqueles necessários ao tempo de trabalho vendido. Por exemplo, a alimentação e o

vestuário devem suprir as necessidades não só do “tempo e espaço de trabalho”, mas

também do “tempo e espaço do não-trabalho”, quer dizer, da vida da família do

trabalhador; assim como a educação não pode restringir-se à formação ou qualificação

para o trabalho, mesmo que tal formação tenha um sentido geral e abrangente, mas

abarcar o acesso ao conhecimento e à cultura necessários à vida humana em

determinado tipo de sociedade.

Em suma, do ponto de vista do capital, a produção e reprodução da força de

trabalho pressupõem a produção, na sua totalidade e em todas as dimensões, da vida

da família do trabalhador, “dentro e fora do trabalho” ou, em outras palavras, a

constituição do trabalhador implica a constituição do cidadão. É como ser que vive

integralmente na sociedade do capital, satisfazendo as necessidades de todas as

dimensões humanas — do estômago à fantasia —, ou seja, é como cidadão e, por

conseguinte, consumidor de todos os meios de subsistência necessários à sua vida,

que o sujeito produz a força de trabalho, para “depois”, na condição de proletário,

vendê-la ao seu comprador. Assim, livre e proprietário de uma única mercadoria – sua

força de trabalho que, como cidadão, produziu – o trabalhador comparece à esfera da

circulação para vendê-la ao proprietário do dinheiro e dos meios de produção.

A esfera da circulação ou do intercâmbio de mercadorias, dentro de cujos limites se movimentam compra e venda de trabalho era, de fato um verdadeiro éden dos direitos naturais do homem. O que aqui reina é unicamente Igualdade, Propriedade e Liberdade! Pois comprador e vendedor de uma

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mercadoria, por exemplo, da força de trabalho - são determinados apenas por sua livre-vontade. Contratam como pessoas livres, juridicamente iguais. O contrato é o resultado final, no qual suas vontades se dão uma expressão jurídica em comum. Igualdade! Pois eles se relacionam um com o outro apenas como possuidores de mercadorias e trocam equivalente por equivalente. Propriedade! Pois cada um dispõe apenas sobre o seu. Bentham! Pois cada um dos dois só cuida de si e nenhum do outro, realizam todos, em decorrência de uma harmonia preestabelecida das coisas ou sob os auspícios de uma previdência toda esperta, tão somente a obra de sua vantagem mútua, do bem comum, do interesse geral. Ao sair dessa esfera da circulação simples ou da troca de mercadorias, da qual o livre-cambista vulgaris extrai concepções, conceitos e critérios para seu juízo sobre a sociedade do capital e do trabalho assalariado, já se transforma, assim parece, em algo a fisionomia de nossa dramática personalidade. O antigo possuidor de dinheiro marcha adiante como capitalista, segue-o o possuidor de sua força de trabalho como seu trabalhador; um cheio de importância, sorriso satisfeito e ávido por negócios; o outro, tímido, contrafeito, como alguém que levou a sua própria pele para o mercado e agora não tem mais nada a esperar, exceto o — curtume. (MARX, 1988, p. 141).

A exploração capitalista — o trabalhador que leva sua pele para o curtume —

pressupõe, portanto, a produção da vida integral do trabalhador na sociedade do

capital. Isto quer dizer que, pressupõe a formação do cidadão. Dilui-se, assim, a linha

divisória entre “espaço e tempo de trabalho” e “espaço e tempo fora do trabalho”, já que

eles se determinam mutuamente e só podem ser espaço e tempo constituídos

historicamente na lógica do capital. Esses dois “espaços” se encerram, ou melhor, são

expressão fenomênica de um único “espaço”, o lócus do capital. Não obstante, tudo

isso foi resultado de um processo de construção histórica, o processo de consolidação

do capital expresso pela subsunção real do trabalho ao capital.

1.3 - SUBSUNÇÃO FORMAL E SUBSUNÇÃO REAL DO TRABALHO AO CAPITAL

A transição histórica da subsunção formal para a subsunção real do trabalho ao

capital, quer dizer, da mais-valia absoluta para a mais-valia relativa, exigia que o capital

tivesse o real controle sobre todo o processo de trabalho. Ao longo do desenvolvimento

capitalista, tal controle foi se operando, entre outros fatores, por um gradual e efetivo

processo de alienação do trabalhador, que perde a propriedade dos meios de produção

e, por desdobramento, do produto de seu trabalho, sobretudo dos meios de sua

subsistência. Por essa razão, sem condições de sobrevivência, só lhe resta a

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propriedade de sua força de trabalho, que, não sendo para ele valor de uso, acaba por

aliená-la vendendo-a para o capitalista. É a consolidação do trabalhador como

proletário, quer dizer, como vendedor de sua única propriedade, a força de trabalho.

Uma vez alcançado esse estágio de controle histórico, o capital se empenha na

tarefa de diminuir o valor das mercadorias, inclusive o da força de trabalho; o que se dá

por um conjunto amplo e articulado de elementos desencadeados por mudanças

operadas nos processos de trabalho, principalmente a introdução da maquinaria e da

organização industrial, que propiciaram, de um lado, a diminuição ou eliminação dos

“poros” da produção e, de outro, a utilização do trabalho feminino e infantil, na medida

em que facilitavam os procedimentos de trabalho. De fato, o uso do trabalho feminino e

infantil resultou, primeiramente, numa redução do valor da força de trabalho, uma vez

que o valor dessa mercadoria corresponde, como já foi visto, ao quantum de trabalho

socialmente necessário para produzir a vida da família do trabalhador. Se apenas um

membro da família, o homem, por exemplo, vende sua força de trabalho, o valor da

massa de meios de subsistência recai sobre apenas uma unidade de mercadoria a ser

vendida. Se a mulher e os filhos passam também a ser vendedores da força de

trabalho, o seu valor se divide por várias unidades, reduzindo assim o valor unitário. É

preciso considerar que, quando vários membros da família se tornam vendedores da

força de trabalho, o seu valor absoluto tende a aumentar, pois agora esta família

precisará consumir uma quantidade maior de meios de subsistência, por exemplo, o

transporte para ir ao local de trabalho, que antes era desnecessário para a mulher e os

filhos; mas essa massa maior de valor agora é dividida pelos membros trabalhadores

da família, cujo efeito é a diminuição do valor relativo, ou melhor, do valor (individual) da

força de trabalho.

Ao mesmo tempo, em razão da permanente concorrência no mercado capitalista,

as mudanças operadas nos processos de trabalho, por intermédio da utilização de

meios de trabalho com incorporação de tecnologia mais avançada articulada com

formas inovadoras de racionalização da produção, propiciaram uma redução no valor

das mercadorias, de tal maneira que, quando atinge as cadeias produtivas dos meios

de subsistência, resulta também numa diminuição do valor da força de trabalho.

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De modo muito resumido, a conexão orgânica dos fenômenos acima relatados

criou as condições para a redução do valor da força de trabalho e, por isso, para a

produção e exploração da mais-valia relativa. Se a mais-valia absoluta demandava

apenas uma subsunção formal do trabalho, já que se tratava apenas de um aumento

quantitativo da jornada de trabalho para além do valor da força de trabalho, a mais-valia

relativa, diferentemente, exige uma subsunção real do trabalho ao capital, cujas

condições básicas são o constante revolucionamento das forças produtivas no conjunto

de uma sociedade e o controle real do processo de trabalho pelo capital. De fato, Marx

(1984, p. 106) afirma que:

A produção da mais-valia absoluta gira apenas em torno da duração da jornada de trabalho; a produção da mais-valia relativa revoluciona de alto a baixo os processos técnicos do trabalho e os agrupamentos sociais. Ela supõe portanto um modo de produção especificamente capitalista, que com seus métodos, meios e condições nasce e é formado naturalmente apenas sobre a base da subordinação formal do trabalho ao capital. No lugar da formal surge a subordinação real do trabalho ao capital.

Todavia, como o movimento do capital é contraditório, a produção da mais-valia

relativa pressupõe a crescente utilização proporcionalmente maior do capital constante

(trabalho morto) em relação ao capital variável (trabalho vivo), ou seja, um aumento da

composição orgânica do capital, o que implica, de um lado, a tendencial redução da

taxa de lucro e de acumulação de capital e, de outro, uma redução do número relativo

de trabalhadores explorados. Isto significa que parte da mercadoria força de trabalho

torna-se invendável, acarretando uma população proletária excedente e,

consequentemente, uma diminuição do preço da força de trabalho abaixo de seu valor.

A redução do valor da força de trabalho acaba causando, simultânea e

contraditoriamente, uma diminuição de seu preço, abaixo do valor.

1.4 - VALOR E PREÇO DA FORÇA DE TRABALHO

Para que se possa compreender melhor o processo acima descrito, é necessário

discorrer um pouco sobre o valor e o preço da força de trabalho. No arcabouço teórico

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marxiano, valor é uma categoria analítica relacional; diz respeito à relação de troca

entre quantidades de mercadorias distintas, ou melhor, à relação entre proprietários de

mercadorias que as levam ao mercado para serem trocadas. No que diz respeito à

força de trabalho, os agentes sociais são, por um lado, o produtor, proprietário e

vendedor dessa mercadoria e, por outro, o seu comprador, proprietário dos meios de

produção de capital. Se, nessa relação, o valor da força de trabalho é determinado pelo

quantum de trabalho abstrato socialmente necessário para produzi-la, o que

corresponde, no caso específico da força de trabalho, ao quantum de trabalho para

produzir os meios de subsistência necessários para produzir e reproduzir a vida da

família do trabalhador (e este valor têm uma medida objetiva, dependendo do grau de

desenvolvimento das forças produtivas de uma dada sociedade), o preço da força de

trabalho, embora seja, originalmente, expressão monetária do valor, é determinado pelo

poder que cada uma das classes detém no “palco” da luta de classes ou, se preferível,

pela correlação de forças entre as classes sociais que realizam o processo de

produção, troca e consumo dessa mercadoria — capitalistas e proletários. Nessa luta,

os contendores se apresentam munidos de seus respectivos instrumentos de poder e

lançam mão das armas mais adequadas e poderosas. Como detém a propriedade dos

meios de produção, fontes originárias para a produção da vida humana e, portanto,

fundamento maior de poder, a classe capitalista se utiliza dos meios de trabalho como

uma de suas principais armas contra os trabalhadores.

Como máquina, o meio de trabalho logo se torna um concorrente do trabalhador. A autovalorização do capital por meio da máquina está na razão direta do número de trabalhadores cujas condições de existência ela destrói. Todo o sistema de produção capitalista repousa no fato de que o trabalhador vende sua força de trabalho como mercadoria. A divisão do trabalho unilateraliza essa força de trabalho em uma habilidade inteiramente particularizada de manejar uma ferramenta parcial. Assim que o manejo da ferramenta passa à máquina, extingue-se, com o valor de uso, o valor de troca da força de trabalho. O trabalhador torna-se invendável, como papel-moeda posto fora de circulação. A parte da classe trabalhadora que a maquinaria transforma em população supérflua, isto é, não mais imediatamente necessária para a autovalorização do capital, sucumbe, por um lado, na luta desigual da velha empresa artesanal e manufatureira contra a mecanizada; inunda, por outro lado, todos os ramos acessíveis da indústria, abarrota o mercado de trabalho e reduz, por isso, o preço da força de trabalho abaixo de seu valor. (MARX, 1984, p. 48).

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Dialogando com o original, ao invés de se considerar que ‘uma parte supérflua

da classe trabalhadora sucumbe na luta desigual da velha empresa artesanal e

manufatureira contra a mecanizada’, consideremos que tal parte da classe trabalhadora

sucumbe na luta mais do que desigual da velha empresa artesanal (urbana e rural), do

“setor informal” ou do chamado “terceiro setor” (empresas de perfil mais ou menos

comunitário, que abarcam um amplo leque de atividades) contra os grandes

conglomerados empresariais oligopolistas e transnacionais; o fenômeno relatado por

Marx seria, outrossim, atual como nunca e, mais do que isto, viria se recrudescendo,

tendo em vista que a “maquinaria” utilizada, de base informacional e micro-eletrônica, é

uma arma muitíssimo mais poderosa porque muito mais “dispensadora” da força de

trabalho do que naquele período, o que implica o aumento do contingente supérfluo de

trabalhadores e, por conseguinte, a redução mais acentuada do preço da força de

trabalho, muito abaixo de seu valor.

Não obstante, além de ser um instrumento eficaz na redução do preço da força

de trabalho, a maquinaria também serve como arma na luta da classe capitalista contra

as formas de resistência e organização dos trabalhadores. Apresentando um conjunto

de exemplos, Marx (1984, p. 51) afirma que:

A maquinaria não atua (...) apenas como concorrente mais poderoso, sempre pronto para tornar trabalhador assalariado ‘supérfluo’. Aberta e tendencialmente, o capital a proclama e maneja como uma potência hostil ao trabalhador. Ela se torna a arma mais poderosa para reprimir as periódicas revoltas operárias, greves etc.

Em suma, as mudanças operadas nos processos de trabalho e o controle que o

capital exerce sobre eles produziram uma diminuição do valor e também do preço,

abaixo do valor, da força de trabalho e, ao mesmo tempo, serviram como instrumento

de neutralização e destruição das formas de resistência e organização dos

trabalhadores. A redução do preço da força de trabalho abaixo de seu valor,

ocasionada, sobretudo, pelo aumento do contingente de trabalhadores supérfluos,

obrigou, por sua vez, que os trabalhadores que ainda conseguiam vender sua força de

trabalho aumentassem sua jornada, para tentar compensar a corrosão do preço de sua

força de trabalho, o que propiciou a produção e extração da mais-valia absoluta.

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A transição histórica da subsunção formal para a subsunção real do trabalho ao

capital proporcionou a transição da mais-valia absoluta para a mais-valia relativa. Uma

vez consolidada, a subsunção real do trabalho ao capital criou as condições para uma

combinação entre a mais-valia relativa e a mais-valia absoluta. De fato, na seção IV de

O Capital, citada anteriormente, Marx não tinha o objetivo de examinar os processos de

trabalho “em si”, mas analisar a mais-valia relativa, tanto que o título da seção é “A

produção da mais-valia relativa”; analisa como foi possível, por intermédio das

mudanças operadas nos processos de trabalho e do controle exercido pelo capital

sobre eles, conseguir a diminuição do valor da força de trabalho e, por conseguinte, a

implementação da mais-valia relativa, o que implicou, contraditoriamente, uma redução

de seu preço, abaixo do valor, e, por desdobramento, a implantação da mais-valia

absoluta. A produção da mais-valia relativa e sua imbricação com a mais-valia absoluta

são, pois, o tema investigado por Marx nessa seção de sua obra.

1.5 - O CONTROLE DO PROCESSO DE TRABALHO E DA VIDA DO

TRABALHADOR

O controle sobre o processo de trabalho, elemento determinante de

materialização da subsunção real do trabalho ao capital, presente no período da grande

indústria, chega a seu auge durante a vigência do taylorismo/fordismo. Não obstante,

nessa fase da acumulação capitalista, o controle e a racionalização do processo de

trabalho passam a demandar o controle da vida do trabalhador, pois, como já foi visto, a

produção da força de trabalho implica a produção da vida humana em sua

integralidade. Tal fenômeno foi apropriadamente examinado por Gramsci (1984) no seu

clássico “Americanismo e Fordismo”. Para o autor, a implantação do fordismo (espírito

americano) exigia, além de um novo tipo de Estado, o Estado liberal, um novo tipo de

homem, tanto das classes dominantes que deveriam transitar de ociosos/parasitas

para industriais/produtivas, como da classe trabalhadora. Daí a necessidade de se criar

uma nova ética, o que explica:

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O relevo com que os industriais (especialmente Ford) se interessaram pelas relações sexuais dos seus dependentes e pela acomodação de suas famílias; a aparência de “puritanismo” assumida por este interesse (como no caso do proibicionismo) não deve levar a avaliações erradas; a verdade é que não é possível desenvolver o novo tipo de homem solicitado pela racionalização da produção e do trabalho, enquanto o instinto sexual não for absolutamente regulamentado, não for também ele racionalizado. (MARX, 1984, p. 392).

Tal máxima também era válida para o trabalhador, cuja vida deveria ser

controlada em todas as suas dimensões, até aquelas mais recônditas e mais íntimas,

como é o caso de sua afetividade e sexualidade, pois o novo industrialismo:

exige que o homem-trabalhador não desperdice as suas energias nervosas na procura desordenada e excitante da satisfação sexual ocasional: o operário que vai ao trabalho depois de uma noite de “desvarios” não é um bom trabalhador, a exaltação passional não está de acordo com os movimentos cronometrados dos gestos produtivos ligados aos mais perfeitos processos de automação. Esse conjunto de compressões e coerções diretas e indiretas exercidas sobre a massa produzirá, indubitavelmente, resultados e proporcionará o surgimento de uma nova forma de união sexual, da qual a monogamia e a estabilidade relativa parecem ser o traço característico e fundamental. (MARX, 1984, p. 399).

Se o período taylorista-fordista trazia como “novidade” o controle, não só do

processo de trabalho, mas também da vida do trabalhador, é possível inferir que o

domínio sobre esta última era uma espécie de “extensão” do domínio sobre o primeiro;

em outras palavras, que o controle do processo de trabalho ainda era determinante em

relação ao controle da vida e que, por isso, o controle da vida se dava por causa e por

intermédio do controle do processo de trabalho. Tratava-se, assim, não de uma

subsunção real do trabalho, mas de uma subsunção formal da vida dos trabalhadores

ao capital.

1.6 - O ATUAL PADRÃO DE ACUMULAÇÃO E A SUBSUNÇÃO RE AL DA VIDA

SOCIAL AO CAPITAL

O atual padrão de acumulação de capital, que começa a se configurar no início

dos anos 70 do século 20, herda do padrão taylorista-fordista essa mesma

característica, qual seja, a necessidade do duplo controle: do processo de trabalho e da

vida do trabalhador. Não obstante, minha hipótese é a de que os pólos da relação se

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invertem de tal forma que o controle da vida do trabalhador tenha se tornado

determinante em relação ao controle do processo de trabalho e de que tal fenômeno se

deveu à própria dinâmica, ao movimento mesmo do capital.

A subsunção formal do trabalho ao capital, expressa pela extração da mais-valia

absoluta, por razões históricas, produziu a necessidade e, contraditoriamente, criou as

condições para a emergência da mais-valia relativa; esta exigia a subsunção real do

trabalho ao capital, materializada pelo controle do processo de trabalho, que se logrou

no período da grande indústria e que resultou, por razões apontadas anteriormente, na

combinação das duas formas de extração de mais-valia.

O controle do processo de trabalho, por sua vez, demandou um controle também

da vida do trabalhador, de tal maneira que o capital atingiu o ápice, a consolidação da

subsunção real do trabalho ao capital na fase taylorista-fordista, situação que propiciou,

pelo menos no centro do sistema capitalista, a preponderância da mais-valia relativa em

relação à mais-valia absoluta. Isso significa que nos países centrais do capitalismo foi

possível, por um certo tempo, que o preço da força de trabalho dos trabalhadores

originários desses mesmos países se mantivesse num patamar de relativo equilíbrio

com o valor da força de trabalho, permitindo assim uma produção normal da vida

daqueles trabalhadores, o que criou o terreno propício para o surgimento da alternativa

socialdemocrata concretizada na “concertação” social entre Estado, trabalhadores e

capitalistas e que resultou no Estado do Bem-Estar Social. Embora tenha obedecido a

razões fundamentalmente políticas, dado o quadro histórico da época, a emergência e

consolidação do Welfare State, por um interregno, só foram possíveis devido, por um

lado, a esse elemento determinante da base material e, por outro, à “exportação” para a

periferia do sistema das características de agudização das contradições da acumulação

de capital; sobretudo, à redução do preço da força de trabalho acentuadamente abaixo

de seu valor, o que dificultou ou inviabilizou a implantação do Estado do Bem-Estar

Social nesta parte do sistema.

O controle da vida do trabalhador, que no modelo keynesiano-fordista era um

desdobramento do controle do processo de trabalho, chega ao seu patamar de

consolidação e se torna determinante em relação ao controle do processo de trabalho

no atual padrão de acumulação de capital. Por causa, sobretudo, da concorrência

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intercapitalista, um dos componentes decisivos do movimento do capital, o fantástico

desenvolvimento das forças produtivas das últimas décadas, em velocidade e grau

jamais assistidos, possibilitou a produção de quantidades imensuráveis de mercadorias

com um reduzido quantum de valor (trabalho abstrato); isso proporcionou uma

substancial diminuição do valor das mercadorias em geral, inclusive o da força de

trabalho, mas causou, contraditoriamente, dois efeitos. O primeiro, um incremento

brutal, sem precedentes na História, de força de trabalho supérflua, formada tanto pelo

contingente de trabalhadores que foi desempregado como por aquele que jamais será

empregado, fenômeno que muitos autores chamam de “desemprego estrutural”; e, o

segundo, uma acentuada diminuição da taxa de lucro e, consequentemente, da taxa de

acumulação, tendo em vista o considerável e necessário aumento da composição

orgânica do capital, ou seja, o investimento proporcionalmente maior em capital

constante em relação ao capital variável. Creio que seja possível inferir que,

contemporaneamente, este último problema deva estar se multiplicando

exponencialmente, já que os meios e instrumentos de trabalho utilizados pelas

empresas capitalistas, de base microeletrônica, prescindem cada vez mais da força de

trabalho, única e exclusiva mercadoria que, na condição de valor de uso do capitalista,

é capaz de produzir valor, portanto, mais-valia e, portanto, capital.

A combinação desses dois fatores vem causando uma substancial diminuição do

preço da força de trabalho, o que é, por sua vez, uma necessidade inelutável do capital.

Contudo, tal é o grau de agudização das contradições da acumulação que a redução do

preço da força de trabalho abaixo do seu valor, diferentemente do que ocorreu no

passado recente, vem se generalizando e atingindo gradativamente também os

trabalhadores originários dos países centrais do sistema capitalista; tal processo tem

provocado a necessidade de aumento na jornada de trabalho por parte dos

trabalhadores que ainda têm o “privilégio” de vender sua força de trabalho e, portanto, a

produção e extração da mais-valia absoluta. Além do empenho de alguns países no

sentido de ampliar, oficial e formalmente, a jornada de trabalho, é preciso ressaltar,

contudo, que a produção da mais-valia absoluta pode se realizar, seja pelo aumento do

tempo efetivo de trabalho vendido ao capital, que pode se representar por um ou

diversos capitalistas, e o trabalhador, que é obrigado a trabalhar em várias empresas,

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mesmo que tal fator não apareça nos dados e estatísticas oficiais, seja por uma forma

mais sutil e, ao mesmo tempo, muito mais eficaz, que é o aumento da intensidade, do

ritmo e da velocidade do trabalho acima de condições normais; o que é muito distinto

do aumento da produtividade, que pressupõe um incremento da produção de

mercadorias com um quantum de igual ou menor valor em condições humanas e

sociais normais.

O processo que propiciou a diminuição do valor da força de trabalho e, portanto,

a produção e extração da mais-valia relativa, criou, ao mesmo tempo e

contraditoriamente, a necessidade e as condições de redução do preço da força de

trabalho abaixo de seu valor e, por conseguinte, da produção e extração da mais-valia

absoluta. A utilização em larga escala, na atualidade, do trabalho feminino e também do

trabalho infantil, do imigrante, etc., além de outras táticas como a terceirização, tudo

isso faz parte dessa mesma lógica. Entretanto, no atual padrão de acumulação, pelos

motivos apontados anteriormente, há uma necessidade e, por essa razão, uma

tendência de diminuição mais acentuada do preço da força de trabalho em relação à

redução de seu valor; isso significa uma tendência de preponderância da mais-valia

absoluta em relação à mais-valia relativa, cujo resultado é o recrudescimento e a

generalização da degradação do trabalho. Marca distintiva do atual padrão de

acumulação é, pois, uma tendência de generalização da preponderância da mais-valia

absoluta em relação à mais-valia relativa, elemento determinante da base material que

explica as dificuldades de “concertação” social e a crise do Estado do Bem-Estar.

Além disso, a agudização das contradições do movimento do capital elencadas

ao longo do texto vem exigindo que o Estado capitalista intervenha cada vez mais no

processo de produção e acumulação de capital, destinando-lhe vultosos recursos, na

tentativa de salvaguardar a reprodução capitalista, o que se pode evidenciar por alguns

exemplos: primeiramente, o financiamento subsidiado e, em alguns casos, a doação

parcial ou total por intermédio da construção de infra-estrutura ou da redução e até

isenção de impostos, entre outros mecanismos oferecidos pelo Estado aos capitais

privados, que acaba por responder, dessa forma, pelo investimento em parte do capital

constante. O resultado disso é uma atenuação, mesmo que temporária, da tendência

de aumento da composição orgânica do capital e, por conseguinte, de diminuição da

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taxa de lucro, o que se constitui numa medida preventiva, ainda que precária, em

relação à eclosão das crises capitalistas. Em segundo lugar, a necessidade de injeção

de volumosos recursos estatais por ocasião das crises e de seus desdobramentos que

ocorrem, inevitavelmente, como conseqüência do conjunto de contradições da

acumulação com o escopo não só de prestar socorro, mas, sobretudo, de buscar a

manutenção da reprodução do capital.

A necessidade de uma maciça e crescente intervenção do Estado na economia,

bem como a utilização também ascendente de recursos para realização de suas outras

funções precípuas, inclusive as de coerção e repressão, vem obrigando o Estado a se

desvencilhar de tarefas que a ele foram atribuídas por razões histórico-políticas, a

saber, as chamadas políticas sociais de educação, saúde, previdência e seguridade

social, etc. Trata-se da constituição daquilo que vem sendo denominado de “Estado

mínimo”. Contudo, é preciso salientar que este é apenas um dos “lados da moeda”, já

que o “outro lado” expressa o “Estado máximo”, ou seja, ele é “mínimo e máximo” ao

mesmo tempo. Para ser “máximo” na sua função determinante de salvaguardar a

reprodução do capital no seu movimento contraditório, o Estado se vê obrigado a ser

“mínimo” no atendimento às políticas sociais.

Tendo em vista, sobretudo, os dois fatores apontados anteriormente – quais

sejam, o solapamento das condições de produção e reprodução normais da força de

trabalho, o que tem gerado uma crescente e generalizada degradação do trabalho, e a

necessidade de um gradual desembaraçamento do Estado em relação às políticas

sociais – o atual padrão de acumulação e o Welfare State são, no limite, inconciliáveis.

Por outro lado, desde o período da grande indústria, o capital, pela própria lógica

de seu movimento, vem se ampliando, estendendo seus tentáculos não só por todos os

quadrantes do mundo, cuja expressão mais significativa é o advento do imperialismo,

mas também por todas as atividades econômicas e ramos da produção. Da atividade

fabril, que era, no século XIX, praticamente o único espaço econômico onde se

estabelecia a relação especificamente capitalista e, por conseguinte, a produção da

mais-valia, o capital penetrou e dominou quase todos os outros setores e atividades:

agricultura, transportes, pesquisa e tecnologia, comunicações, saúde, educação,

serviços, cultura, entretenimento e esporte, etc., sem contar com um dos ramos mais

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cobiçados e lucrativos, a saber, a indústria bélica. Na medida de sua penetração, em

tais atividades econômicas passa a prevalecer a relação capitalista e, portanto, a

produção de mais-valia e, consequentemente, de capital.

Mesmo na condição de determinante, o mercado especificamente capitalista,

cuja característica essencial é a relação de produção capitalista intermediada pela troca

da força de trabalho, era quase que circunscrito à atividade fabril na época de Marx;

assim, ele convivia, tanto com um amplo mercado não-capitalista responsável pela

produção e troca de diversas mercadorias que estabelecia as mais variadas relações

sociais de produção, como com um conjunto de setores econômicos, relativamente

autônomos, produtores de valores de uso. No atual padrão de acumulação,

diferentemente, o mercado capitalista se ampliou sobremaneira em relação ao mercado

geral e açambarcou quase todas as outras atividades econômicas originalmente não-

capitalistas, o que pode ser evidenciado pela presença dos onipotentes e onipresentes

oligopólios transnacionais. Embora o mercado não-capitalista sobreviva – hoje e

sempre – no capitalismo, seu espaço e possibilidade de ação são cíclicos e tendem a

se contrair, restringindo-se a atividades para as quais o capital tem pouco ou nenhum

interesse.

Contudo, a ampliação do mercado capitalista foi e tem sido acompanhada,

simultânea e contraditoriamente, por uma contração relativa do mercado de trabalho

capitalista; isso ocorre na medida em que, conforme visto anteriormente, o

desenvolvimento das forças produtivas sob a forma capitalista causa a diminuição

relativa da utilização da força de trabalho, ou seja, reduz relativamente o número de

trabalhadores requeridos e explorados pelo capital. O mercado capitalista, pois, amplia-

se reduzindo relativamente a utilização da força de trabalho. O resultado da articulação

contraditória desses dois fenômenos é, de um lado, o incremento sistemático e

“estrutural” do desemprego, sobretudo no período recente, dada a velocidade do

desenvolvimento das forças produtivas e, de outro, a redução e, em muitos casos, a

eliminação de alternativas de produção da vida, quer dizer, de sobrevivência, além da

venda da mercadoria força de trabalho, seja pela produção e venda de outras

mercadorias, ou pela produção de valores de uso, tal o grau de abrangência, controle,

concentração e centralização do capital.

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Domínio sobre praticamente todas as atividades humanas, sobre a produção

social da vida e redução generalizada do preço da força de trabalho combinada com um

imenso (e insolúvel) contingente supérfluo de trabalhadores, eis os ingredientes

fundamentais para o controle do capital sobre a vida dos trabalhadores. A subsunção

real do trabalho e a subsunção formal da vida dos trabalhadores ao capital

transformam-se, na contemporaneidade, em subsunção real da vida dos trabalhadores

ao capital; mais do que isso: tendo em vista o controle do capital sobre toda a vida

social, transformam-se em subsunção real da vida social ao capital. Dessa forma, o

controle do processo de trabalho se realiza por intermédio do controle da vida social; o

primeiro se subordina ao segundo, de tal maneira que o capital tende a prescindir de

um controle mais sistemático e hostil sobre os trabalhadores no âmbito dos processos

de trabalho, dispensando, inclusive, os empregados que desempenham esse tipo de

função, tendo em vista o auto-controle exercido pelos próprios trabalhadores. Tudo isso

significa, portanto, o coroamento da articulação orgânica do “espaço do trabalho” e do

“espaço fora do trabalho” num único e mesmo “espaço”, o lócus do capital.

Se, como foi visto, a transição da subsunção formal para a subsunção real do

trabalho requereu o controle do capital sobre os processos de trabalho, que se logrou a

partir de um processo histórico de alienação do trabalhador, a passagem da subsunção

real do trabalho à subsunção real da vida social ao capital vem se realizando por

intermédio do controle que o capital tem exercido sobre praticamente todas as

atividades de produção e reprodução da vida humana em sociedade, o que vem

reduzindo ou eliminando formas alternativas de sobrevivência e cuja implicação tem

sido a agudização das contradições da acumulação capitalista e o agravamento da

degradação do trabalho. Como desdobramento, assim como o modelo keynesiano-

fordista demandou um novo tipo de Estado e um novo tipo de homem, o atual padrão

de acumulação exige, por sua vez, um novo tipo de Estado, nos moldes do chamado

“neoliberalismo” e um novo tipo de homem, integrado na lógica societal do capital.

Trata-se de um sujeito que não apenas “veste a camisa da empresa”, mas, acima de

tudo, um ser humano que, premido pelas condições materiais, “veste a camisa do

capital”.

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1.7 - O HOMEM ONILATERAL

Sabemos que toda a relação social corresponde ao atual estágio do modo de

produção capitalista e que o pensamento dominante está intrinsecamente presente na

consciência das massas, ou seja, a consciência predominante é a consciência

burguesa. Não é só o trabalho que está dividido e subdividido em pequenas peças

parcelares entre os indivíduos, é o próprio indivíduo que está dividido e transformado

em engrenagem automática de uma operação exclusiva. No capital, o grau de

alienação atinge patamares complexos e de difícil compreensão; as pessoas

defenderão o sistema enquanto as relações sociais atuais forem compatíveis com a

produção capitalista.

Vimos que no capital o homem está fragmentado, alienado e subsumido à ordem

irracional das mercadorias; toda a sua vida tende a formar o homem unilateral, ou seja,

um ser limitado, acanhado nas suas potencialidades, podendo desenvolver uma

especialidade, mas não a sua liberdade. Por outro lado, milhões de seres humanos

estão condenados ao embrutecimento quase total; condições degradantes de vida

retiram-lhes a possibilidade de realizar aquilo que Marx considerou como sendo

condição sine qua non para poder fazer História, ou seja: comer, morar e vestir.

Se o trabalho é responsável pela humanização e se foi através dele que o

homem se tornou Homem, então, como garantir esse processo para aqueles que,

talvez, nunca trabalharão? Todavia, o trabalho no processo de produção capitalista é

fonte de desumanização do homem. Essa contradição nos leva a refletir sobre o tipo de

homem que queremos formar, que seja possível e necessário para a emancipação

humana.

Frente à realidade da alienação humana, na qual todo o homem, alienado por outro, está alienado da própria natureza e o desenvolvimento positivo está alienado a uma esfera restrita, está a exigência da onilateralidade, de um desenvolvimento total, completo, multilateral, em todos os sentidos das faculdades e das forças produtivas, das necessidades e da capacitação de sua realização. (MANACORDA, 1991, p. 78).

Pode haver divergências no que diz respeito aos meios pedagógicos e o ideal de

homem, contudo, é inconcebível outra formação humana que não contemple a

onilateralidade do homem. O ser onilateral traz consigo a história das gerações

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passadas, pois é fruto desse processo, mas é no presente que realiza sua própria

história, portanto, é um ser criativo, vivo, repleto de possibilidades que também prepara

a base para um devir; assim, faz a conexão passado, presente e futuro; não se trata de

um homem dividido, vazio e sem história.

Enquanto na sociedade escravista e servil o homem estava limitado pelas forças

produtivas, o que lhe impedia alcançar um grau de desenvolvimento de sua plenitude, o

capitalismo, com o domínio do homem sobre as forças da natureza, poderia estabelecer

a exteriorização absoluta das faculdades criativas de todos.

Para Marx e Engels (1979), o homem onilateral corresponde ao contrário da

unilateralidade, ou seja, embora possa realizar uma atividade específica, como pintar,

escrever, barbear, isso não significa que precise ser pintor, barbeiro ou escritor; a trata-

se de um homem que rompe os limites que o fecham numa experiência limitada e cria

formas de domínio da natureza e que sempre se alça a atividades mais elevadas. Com

o máximo de suas capacidades desenvolvidas, esse homem pode ultrapassar sua

singularidade e alcançar seu ser genérico, colocar em movimento todo o seu ser,

abrangendo aspectos relevantes de sua personalidade. Assim, a igualdade humana

terá alcançado sua verdadeira essência. Ninguém seria colocado num patamar a mais

que o outro, pelo contrário, a capacidade do outro seria minha também, considerando

que somos todos produtos da História e todos estariam a serviço da humanidade.

A onilateralidade é, portanto, a chegada histórica do homem a uma totalidade de capacidades produtivas e, ao mesmo tempo, a uma totalidade de capacidades e prazeres, em que se deve considerar sobretudo o gozo daqueles bens espirituais, além dos materiais, e dos quais o trabalhador tem estado excluído em conseqüência da divisão do trabalho. (MANACORDA, 1991, p. 81).

Na sociedade capitalista, todos os seres humanos estão incluídos no processo

irracional e de desumanização, contudo, a classe trabalhadora é a mais suscetível à

alienação, vivenciando no seu cotidiano as barbáries do sistema capitalista, estando

presentes na maioria das vezes apenas na infra-estrutura, ou seja, na base da

produção. Isto significa a ausência das atividades que estão incluídas na superestrutura

da sociedade.

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À medida que a divisão do trabalho se desenvolve, o saber, a arte e a cultura separam-se dos produtores, passam para a esfera para a superestrutura e são monopolizadas pelas classes dominantes: Enquanto o conjunto do trabalho da sociedade produzir um rendimento que só o custo excede o que é preciso para assegurar parcimoniosamente a existência de todos, enquanto o trabalho exigir todo ou quase todo o tempo da grande maioria dos membros da sociedade, esta divide-se necessariamente em classes. A par do maior número exclusivamente votado à submissão ao trabalho, forma-se uma classe liberta do trabalho directamente produtivo que se encarrega dos assuntos comuns da sociedade: direção do processo de trabalho, administração do Estado e dos assuntos políticos, justiça, belas-artes, etc. É a lei da divisão do trabalho que está pois na base da divisão em classes. (MARX; ENGELS, 1979, p. 10).

Com a dominação econômica garantida, o conjunto dos elementos necessários

para a perpetuação dessa dominação encontra-se na superestrutura da sociedade,

como podemos observar acima. Nesse sentido, todo o sistema de ensino da sociedade

capitalista assenta no racionalismo burguês, ou seja, um idealismo descarado que

oculta a realidade antagônica. Toda a sociedade dividida em classe é,

necessariamente, idealista: a elite esclarecida dita as normas e a massa bruta deve

segui-la sem discussão. Nem sequer há espaço para a famosa ‘liberdade de

pensamento’ que a revolução burguesa pretendeu instaurar no mundo; isso porque se

trata de iluminar os espíritos a partir do monopólio científico de uma minoria, cujas

idéias refletem os seus próprios interesses econômicos imediatos, em oposição aos das

amplas massas que não podem escolher a sua verdade em função das suas condições

e interesses materiais.

Portanto, não é de estranhar o cidadão egoísta formado no seio da escola da

cidadania tão orgulhada pelos tecnocratas a serviço da elite. Esses reproduzem e criam

pragmáticas metodologias e discursos para inculcarem nas massas as idéias de uma

sociedade do consenso, da ordem e da justiça. Por outro lado, o individualismo

exacerbado revela o homem típico e necessário para o atual momento do capitalismo.

A indiferença pelo outro está no cerne do modo de se viver na sociedade capitalista; o

consumismo tornou-se uma fonte ilusória de se obter a felicidade, como se essa fosse

materializável. Somos uma sociedade de pessoas notoriamente infelizes: solitários,

ansiosos, deprimidos, destrutivos, dependentes. Pessoas que ficam alegres quando

matam o tempo que tão duramente tentam poupar. Numa passagem de sua obra TER

ou SER, Érich Fromm (1980) assinala que consumir é uma forma de Ter, e talvez a

mais importante da sociedade industrial. Consumir apresenta qualidades ambíguas:

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alivia ansiedade, porque o que se tem não pode ser tirado, mas exige que se consuma

cada vez mais, porque o consumo anterior logo perde a sua característica de satisfazer.

Os consumidores modernos podem identificar-se pela fórmula; eu sou = o que tenho e

o que consumo.

Dessa forma, abstraindo-se que a produção capitalista não só produz

mercadorias, como também os consumidores para as mercadorias, pode-se concluir

que se tem no processo de formação do homem, o resultado, do HOMEM CAPITAL.

Aquele, como já vimos, que veste a camisa do capital. Mas, o homem capital, como o

capitalismo, é repleto de contradições, principalmente a classe trabalhadora que

convive no seu dia-a-dia com outras características e com possibilidades de

transformar-se num outro tipo de homem. É no cotidiano que os valores capitalistas

podem ser derrubados um a um; é nos momentos de crise e contradição que os

mecanismos de dominação entram em dissonância com a realidade e o cidadão pode

vir a questionar seu modo de vida, estando aberto para uma instrução crítica sobre o

seu ser e seu papel na História.

Enquanto o indivíduo não tiver conquistado esta liberdade mediante um esforço viril do pensamento filosófico, não é ainda plenamente dono de si próprio e, com seus próprios sofrimentos morais, paga um vergonhoso tributo a necessidade exterior, com que se defronta. Mas, em troca, mal este mesmo indivíduo se liberta do julgo dos entraves opressivos e vergonhosos, nasce para uma vida nova, plena, desconhecida até então, e sua atividade se transforma em expressão consciente e livre da necessidade. O indivíduo se converte em grande força social e nenhum obstáculo pode nem poderá impedi-lo daí em diante de lançar-se com as fúrias dos deuses sobre a pérfida iniqüidade. (PLEKHANOV, 2000, p. 114).

Isso nos leva a considerar que o homem pleno, consciente de seu papel na

História, ainda está por vir. Para o homem onilateral nascer é preciso romper com a

história fundada na luta de classes, de forma que só poderá haver o pleno

desenvolvimento humano se toda a humanidade desenvolver-se onilateralmente, o que

significa que a totalidade das forças produtivas seja subsumida por todos os indivíduos

livremente associados. Então, enfatizamos que o homem possível hoje ainda é aquele

que está formado numa perspectiva de classe, preparado para a luta, para o embate

que se trava no decorrer do acirramento dos conflitos; em poucas palavras, é o homem

corajoso e desejoso pela emancipação humana que na atualidade se faz crucial; é o

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sentimento anticapitalista e consciente da necessidade de acelerar uma autodestruição

do sistema.

Mas, será que já existiu um exemplo na História de um processo de formação

humana, baseada na totalidade do ser – do homem corajoso, honrado, trabalhador,

guerreiro e intelectual? No nascimento da pedagogia socialista podemos nos aproximar

do que seria uma coletividade de pessoas em plena formação. É o que veremos

adiante com a obra de Makarenko.

1.8 - O NASCIMENTO DA PEDAGOGIA SOCIALISTA

Por isso permiti que vos diga: se quereis ter bons filhos, sede felizes. Empenhai-vos com todas as vossas forças, usai todos os vossos talentos, todas as vossas capacidades, utilizai os vossos amigos e conhecidos, sede felizes de uma verdadeira felicidade humana. Mas acontece que um homem que quer a felicidade trata de reunir as pedras para depois edificar a felicidade.

Makarenko

Sem dúvidas, a vida e obra de Makarenko foi uma epopéia; no decorrer de sua

criação, a transformação mais significativa para nós trata do nascimento do novo

homem, o qual teve por base a mais elementar pedagogia. Perguntaram a um dos

colonos da Colônia Gorki o que Makarenko lhes ensinara; simplesmente respondeu:

Makarenko sempre nos ensinou a sermos felizes.

Certamente, o aprofundamento da pedagogia makarenkiana nos traria elementos

valorosíssimos, todavia, não é esse nosso objetivo, porém, elencamos aqui passagens

fundamentais para a reflexão sobre a formação humana. A experiência da filosofia

Makarenkiana, em nossa perspectiva, foi a que mais se aproximou do que seria uma

sociedade com princípios socialistas. É importante notarmos também que a todo

momento Makarenko evidenciava que no processo de formação do homem estava

presente o ser político, com objetivos claros e coerentes de onde se quer chegar e de

que tipo de homem queremos. Uma pedagogia dinâmica e construtiva, baseada nas

inesgotáveis potencialidades do ser humano em geral e do jovem em particular.

Conseguiu associar disciplina com camaradagem, noções de honra e dignidade, senso

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social e respeito pelo indivíduo, responsabilidade pessoal e coletiva, trabalho e estudos,

direito e deveres, arte e lazer, com uma boa dose de autogestão.

Makarenko (1985) nos revela que educar o ser humano é proporcionar-lhe

perspectivas, conduzindo-o para a felicidade do amanhã dentro de uma disciplina

voltada para a construção do caráter, "exigindo o máximo da pessoa e respeitando-a ao

máximo". Trabalhou com diferentes recursos pedagógicos: expressão corporal,

exercícios físicos, trabalhos manuais associando o trabalho produtivo à teoria. Assim,

na colônia Gorki priorizava-se a prática, mas não se sacrificava a teoria.

Sobre uma base material socialista, Makarenko foi gradativamente

desenvolvendo uma superestrutura socialista com uma concepção de mundo da classe

trabalhadora, iluminada pelo marxismo. Para Makarenko, não poderia haver educação

senão na coletividade, através da vida e do trabalho coletivo. Por isso, Makarenko era

um educador, mas um educador que compreendia o caráter político da educação. Em

outras palavras, um educador para quem educar era também, e essencialmente,

politizar.

Assim, a visão de homem não é de um ser puramente determinado pelas

condições de seu meio, como uma visão fatalista; ele é visto como produto das relações

sociais vigentes, como também produtor dessas relações, cabendo-lhe, através de uma

prática crítica e transformadora, instaurar o mundo em um mundo propriamente

humano. E quando falamos numa sociedade humana, estamos essencialmente falando

da personalidade humana, que se vai formando no processo da construção de sua

consciência. Makarenko recrimina que todo o fracasso pela educação de um homem

está na "educação da cupidez", tal educação, presente na sociedade de classe,

degrada o homem na sua essência.

Na sociedade burguesa, a cupidez é regulada pela concorrência. A amplitude dos desejos de um encontra seu limite na amplitude dos desejos do outro, tal oscilação de milhões de balancés, dispostos ao acaso num estreito espaço. Batendo em direções e planos diferentes, agarram-se, chocam-se, esfolam-se uns aos outros, rangendo. Neste mundo é vantajoso, depois de ter acumulado em si a energia de uma massa metálica, bater com toda força, para partir e aniquilar o movimento dos vizinhos. Mas neste mundo importa também conhecer as forças da resistência vizinhas, para não se quebrar a si próprio num movimento inconsiderado. A moral do mundo burguês é amoral a cupidez, adaptada a cupidez. (MAKARENKO,1976, p. 356).

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Contra tudo que degenerava o homem e o transformava em um ser covarde e

egoísta, podemos observar a trajetória do trabalho na colônia Gorki, que tinha como

pedra angular o coletivo. O senso de responsabilidade social alcançara patamares de

um coletivo em comunhão que só foi possível com o estabelecimento de relações de

solidariedade, pela qual foi implantado um moral fruto dos próprios educandos. Exigia-

se do indivíduo a liquidação da cupidez, o respeito pelos interesses e pela vida dos

camaradas. Os educandos foram habituados a superar as dificuldades que um

processo extremamente difícil de crescimento coletivo comporta. Nesse sentido, a

consciência para si tem seu processo acelerado, pois a vivência de situações

libertadoras, esclarecedoras e protagonistas impõe um processo favorável ao progresso

do homem, enquanto pessoa singular e genérica. Ao passo que as instituições

burguesas estão para dividir o homem, enganá-lo, mantê-lo sob o julgo da classe

dominante. A idéia de homem não é a do homem real, problemático, prisioneiro das

estruturas do sistema, mas a do homem abstrato, personificador de uma natureza

humana ideal e a-histórica, mesmo quando relativizada em modelos ideológicos do tipo

"bom cidadão", "profissional competente", "homem livre e responsável", ou "operário

padrão". Modelos estes que visam ocultar as distorções das relações reais dos homens

entre si, relações de dominação. Por outro lado, a idéia de sociedade não é a da

sociedade real, composta por homens cujas relações são mediatizadas por estruturas e

instituições que determinam a natureza dessas relações, mas de uma sociedade

abstrata resultante de um pacto social utópico, que ignora as regras da dialética do

poder. Sem falar dos ideais e valores veiculados pela cultura dominante que são

metamorfoseados em ideais e valores universais pelo discurso pedagógico.

Em Makarenko, encontramos a filosofia do homem novo, visto a partir do que

ocorria na prática. Contudo, toda concepção de mundo e homem era discutido em

conjunto, partindo-se do pressuposto materialista da História; toda a existência e as

condições em que se encontravam eram bem conhecidas por todos e de total

responsabilidade de homens reais.

Dessa forma, acreditamos que é possível a intervenção de homens formando

homens, pois se a cultura dominante é de responsabilidades de homens, também é de

responsabilidade de outros homens a desmistificação dessa cultura. Makarenko foi um

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dos maiores exemplos no processo de construção de um novo sujeito histórico e deixou

claro que isto requer algumas condições básicas. Em primeiro lugar, é necessário

elaborar uma consciência coletiva sustentada em uma análise apropriada da realidade

e uma ética. Quanto à análise, trata-se de utilizar instrumentos capazes de estudar os

mecanismos de funcionamento da sociedade e de entender suas lógicas, com critérios

que permitam distinguir causas e efeitos, discursos e práticas. Não se trata de qualquer

tipo de análise, mas sim daquela produzida com o aparelho teórico crítico mais

adequado para responder ao grito dos trabalhadores. Exige um alto rigor metodológico

e uma abertura a todas as hipóteses úteis para esse fim. A opção em favor dos

oprimidos é um passo pré-científico e ideológico, que guiará a eleição do tipo de

análise. Entretanto, esta análise pertence à ordem científica sem concessão possível. É

um saber novo que ajudará a criar a consciência coletiva.

O segundo elemento que contribui para a construção de uma consciência

coletiva é a ética. Não se trata de uma série de normas elaboradas em abstrato, mas

sim de uma construção constante pelo conjunto dos atores sociais em referência à

dignidade humana e ao bem de todos. As definições concretas podem trocar segundo

os lugares e as épocas e quando se trata de realidade globalizada, a perspectiva ética

terá que ser elaborada pelo conjunto das tradições culturais, isto é, o conceito real dos

direitos humanos. A ética, nesse sentido, não é uma imposição dogmática, mas sim

uma obra coletiva que tem suas referências na defesa da humanidade.

Diante do exposto até aqui neste primeiro capítulo, temos a considerar que o

homem na totalidade formado pela perspectiva Makarenkiana, ou o homem onilateral

pretendido por Marx, não é possível enquanto perdurar o sistema capitalista. Esse

homem está por nascer, mas antes deve lutar para nascer. Matar o homem capital e

negá-lo não é tarefa fácil, depende das transformações radicais do modo de produção

da vida material, como, também de transformações no sentido de uma consciência

coletiva. Isso mostra que alguém que pretende intervir na formação do homem nos dias

atuais tem, em primeiro lugar, que considerar a necessidade de romper com esse

sistema de opressão e alienação; trata-se de operacionalizar mecanismos e

instrumentais que possam revelar aos oprimidos suas correntes e que possam indicar

meios para que estes forjem suas próprias armas na luta contra o capital. Para tanto,

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não podemos eximir de compreendermos como se dá o processo de consciência das

pessoas no qual está a base de todo o trabalho educativo.

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SEGUNDO CAPÍTULO

O PROCESSO DE CONSCIÊNCIA

2.1 - A CONSCIÊNCIA COMO PROCESSO

Existem vários caminhos para o estudo da consciência humana; o nosso

encontra-se imbricado na história de vida das pessoas, considerando as condições

objetivas materiais que determinam o seu processo de consciência em movimento.

Como disseram Marx e Engels (1979, p. 36):

A produção de idéias, de representações e da consciência está em primeiro lugar direta e intimamente ligada à atividade material e ao comércio material dos homens: é a linguagem da vida real. As representações, o pensamento, o comércio intelectual dos homens surge aqui como emanação direta do seu comportamento material. O mesmo acontece com a produção intelectual quando esta se apresenta na linguagem das leis, política, moral, religião, metafísica, etc.; de um povo. São os homens que produzem as suas representações, as suas idéias, etc. Mas os homens reais, atuantes e tais como foram condicionados por um determinado desenvolvimento das suas forças produtivas e do modo de relações que lhes corresponde, incluindo até as formas mais amplas que estas possam tomar. A consciência nunca pode ser mais do que o ser consciente e o ser dos homens é o seu processo da vida real.

Nessa direção, podemos esclarecer que não pretendemos aprofundar nas áreas

que estudam a consciência na perspectiva individual do ser humano. Isso porque

estamos fazendo uma reflexão sobre o processo de consciência, fundamental para o

entendimento da formação do homem, cuja compreensão é importante e principalmente

para aqueles que vivenciam um trabalho educativo. Nesse trabalho, o foco é entender

como as pessoas vão vivendo os impasses do cotidiano, suas formas de compreender

o mundo e a luta dos trabalhadores. Nesse esforço esperamos contribuir para o estudo

das formas como os seres humanos tomam consciência desse conflito e como essa

consciência pode levá-los às ultimas conseqüências. Conseqüências essas que

direcionam nossos esforços em apreender o processo de consciência de classe.

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Buscamos a superação do conteúdo positivista que aborda esse assunto dentro

de uma perspectiva psicologizante. Celso Frederico, em seus estudos sobre a

consciência operária no Brasil, vai colocar a questão em análise sobre a ótica da

totalidade. Comentando Lukács expõe:

Para Lukács não se deve separar sujeito e objeto, pensamento e ser, consciência e realidade. Essas atinomias são típicas do pensamento dualista que assume forma definida nas teorias de fundo positivista, em que o sujeito e o objeto são mantidos como se fossem elementos separados, abstraídos das situações históricas e sociais. O objeto (no caso, a realidade social) seria assim algo autônomo e exterior ao conhecimento (a consciência); este, por sua vez, é reduzido a um reflexo passivo e fotográfico de uma realidade pronta e acabada. Lukács contrapõe a esse enfoque dualista uma visão monista da realidade. O sujeito não é um simples espelho da história: ele e os fenômenos sociais fazem parte de um processo mais abrangente. O momento objetivo destes são os fenômenos sociais, econômicos e políticos; e o momento subjetivo é a formação da consciência. (FREDERICO, 1978, p. 23).

Uma ordem não se mantém por nenhum atributo inato, mas por sua capacidade

de se produzir e reproduzir continuamente nas relações que a constituem. Os seres

humanos concretos e as relações que estabelecem são as forças que mantém uma

determinada sociedade e que, igualmente, podem mudá-la. No entanto, como os

indivíduos moldados para a conformidade e o consentimento podem se rebelar contra a

ordem que os moldou?

Apoiar-se num processo educativo para emancipação humana requer falar em

consciência de classe, o que pressupõe compartilhar da compreensão de que a

dinâmica da sociedade é uma dinâmica de luta de classes. Portanto, como comenta Iasi

(2002), estudar o processo de consciência é refletir sobre a ação dos indivíduos e das

classes em sua pretensão de mudar o mundo.

A partir de uma compreensão marxista, o processo dinâmico e contraditório de

consciência é visto como um desenvolvimento do processo dialético, em que cada

momento já traz em si os elementos de sua superação e as formas da consciência já

incluem contradições que, ao amadurecerem, remetem-na a novas formas e a novas

contradições. Esse movimento se expressa num processo que contém saltos e recuos.

Falamos em processo de consciência e não apenas de consciência, porque não

a concebemos como algo que possa ser adquirido e que, portanto, antes de sua posse,

poder-se-ia supor um estado de "não consciência". Assim como para Marx não nos

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interessa o fenômeno e suas leis enquanto forma definida; o mais importante é a lei de

sua transformação, de seu desenvolvimento, as transições por que passa de uma forma

para outra1.

Nesse sentido, procuraremos entender o fenômeno da consciência como um

movimento e não como algo dado. Sabemos que só é possível conhecer algo se o

inserirmos na história de sua formação, ou seja, no processo pelo qual ele se tornou o

que é. Assim é também com a consciência: ela não é, torna-se . Amadurece por fases

distintas que se superam, através de formas que se rompem gerando novas que já

indicam elementos de seus futuros impasses e superações. Longe de qualquer

linearidade, a consciência se movimenta trazendo consigo elementos de fases

superadas, retomando, aparentemente, as formas que abandonou.

Vejamos, então, como se forma a consciência e o processo de seu

desenvolvimento.

2.2 - O INÍCIO DA CONSCIÊNCIA

Partindo da forma elementar na qual se apresenta à consciência, podemos dizer

que toda pessoa tem alguma representação mental de sua vida e de seus atos. Como

disse Gramsci (1984, p. 11):

Todos são filósofos, ainda que ao seu modo, inconscientemente, porque, inclusive na mais simples manifestação de uma atividade intelectual, na 'linguagem', está contida uma determinada concepção de mundo.

Essa representação que todos possuem é constituída a partir do meio mais

próximo, no espaço de inserção imediata da pessoa. Como nos diz Marx:

1 Para Marx o que importa: descobrir as leis que regem o fenômeno que ele pesquisa, importa-lhe não apenas a lei que o rege, enquanto tem forma definida e os liga a relações observadas em dado período histórico. O mais importante, de tudo, para ele, é a lei de sua transformação, de seu desenvolvimento, isto é a transição de uma forma para outra, de uma ordem de relações para outra. Método empregado por Marx contido no posfácio da 3a Edição de O Capital, 1988, p. 25.

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A consciência é, naturalmente, antes de mais nada, mera consciência da conexão limitada com as outras pessoas e coisas situadas fora do indivíduo que se torna consciente. (MARX; ENGELS, 1979, p. 43).

A percepção da consciência através da exterioridade também é confirmada por

Freud que, mesmo buscando compreender o fenômeno pela aproximação psicológica,

afirma que o processo de algo tornar-se consciente está ligado às percepções que

nossos órgãos sensoriais recebem do mundo externo.

Sendo assim, a consciência seria o processo de interiorização de uma realidade

externa ao indivíduo.

A questão se torna complexa na medida em que esta interiorização apresenta-se

como uma representação, não sendo um simples reflexo da materialidade externa que

busca representar na mente, mas, antes, é captada de um real aparente, limitado, uma

parte do todo e de seu movimento. Dessa forma, a consciência gerada a partir das

relações concretas entre seres humanos não apresenta conexão entre sua aparência e

sua essência, ou seja, o indivíduo, ao ser inserido no conjunto das relações sociais que

o antecedem e vão além dele, capta um momento abstraído do movimento.

As informações que chegam ao indivíduo já estão sistematizadas; são

pensamentos, idéias e conhecimentos que buscam compreender ou justificar a

natureza das relações determinantes de cada época.

Como isso ocorre? Se a consciência é a interiorização das relações vividas pelos

indivíduos, a família é a primeira instituição que coloca o indivíduo diante de relações

sociais.

No ventre materno, o novo ser (criança) não estabelece relações externas, ela é

uma coisa só, não se separa da mãe. Quando ela nasce, dizem os psicólogos que entra

numa fase pré objetal. O que quer dizer? No momento do parto, a criança vai ver

manchas e vai continuar assim por um período. Relevante também é o fato da mesma

não precisar realizar ações para a sua sobrevivência, assim não tem a compreensão de

si, nem dos outros. Trata-se de uma fase onde as coisas externas ainda são um

complemento de si mesma.

Até esse momento não podemos afirmar que a criança tenha consciência,

embora tenha percepções básicas, uma vez que, por não conceber algo que seja o

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outro, não estabelece propriamente uma relação. Suas ações são ainda determinadas

mais pelo universo pulsional, orgânico, que social.

Freud afirma que chegamos ao mundo munidos apenas de nosso corpo orgânico

e de seus instintos, os impulsos básicos, o ID.

O ID corresponde ao conjunto das necessidades físicas, orgânicas, que a pessoa

traz no seu código genético; são impulsos, desejos, como: fome, proteção, sexo e

afetividade. Esse conjunto vai se dividir em dois grandes blocos:

- sexualidade: conjunto de impulsos que tenha relação com a afetividade, com

certa sensação corporal de prazer;

- auto-sobrevivência: tem sua relação com a vida e a morte; se não for

resolvido o corpo sofre e morre.

Num determinado momento do amadurecimento, a criança percebe que não

pode controlar tudo que antes para ela fazia parte de seu corpo; então percebe que

existe uma realidade externa, somente aí, com essa percepção, é que faz sentido a sua

noção do eu.

Dessa forma, agora tem impulsos e uma realidade externa que nem sempre

estará disponível para a realização das suas necessidades. O mediador entre o ID e a

realidade externa chama-se EGO. Com isso, teremos dois critérios diante das

necessidades:

- O do prazer - o que é bom eu quero manter e do que causa desconforto

procuro me livrar;

- Os impulsos são de duas naturezas diferentes - alguns não são negociáveis

(exemplo, a fome) e outros podem ser maleáveis (por exemplo, o sexo).

Existe uma série de sensações que o ego utiliza para conter os impulsos

maleáveis, por exemplo, no caso do sexo eu posso deslocá-lo, sublimá-lo, adiá-lo,

enfim, substituí-lo por outra coisa, como pela religião, pela qual se busca reprimi-lo.

Diante disso, o ser humano tem duas saídas frente à necessidade e à realidade

externa: adaptar-se à realidade ou transformá-la. Na maioria dos casos, a fuga, a

adaptação, o esquivo ocorrem para não haver o confronto.

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Assim, o conjunto de normas, valores, regras que são externas ao ser humano

acaba sendo interiorizado, passando então a ser interno. O superego age agora

incorporando as normas externas como se fossem suas. Não são mais os impulsos que

vão determinar o que necessita ser satisfeito ou realizado, mas sim as leis morais da

sociedade (o externo) que o ego vai buscar para intermediar as exigências do id.

Toda criança elege um objeto de seu desejo e fantasia sua perfeita integração

afetiva com ele. Na estrutura triangular da família monogâmica, esta ação é

interrompida por uma terceira pessoa. A criança com a mesma intensidade que fantasia

seu desejo, fantasia a eliminação do concorrente. No entanto, a plena realização do

desejo colocaria em risco a sobrevivência da relação que garante a existência física da

criança.

Por uma série de mecanismos, a criança desenvolve sentimentos de impotência

e de culpa, que o ego sente como desprazer e busca eliminar. A forma encontrada é

dada pela própria natureza dos impulsos: reprime-se o desejo para garantir a

sobrevivência imediata.

A cada passo, o novo ser vai criando a base sobre a qual se estruturará seu

psiquismo e sua personalidade, ao mesmo tempo em que se amolda à sociedade da

qual está interiorizando as relações e formando, a partir delas, a consciência de si e do

mundo.

É evidente que o que fica interiorizado não são as relações em si, mas seus

valores, normas, padrões de conduta e concepções. Nessa fase, ainda embrionária,

cola-se na constituição do aparato psíquico uma concepção de mundo em que estão

presentes os principais elementos que constituirão as características da primeira forma

da consciência, ou seja:

1) A vivência de relações que já estavam pré-estabelecidas como realidade

dada.

2) A percepção da parte pelo todo, em que o que é vivido particularmente como

uma realidade pontual, torna-se a realidade (ultra-generalização).

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3) Em consonância com o segundo elemento, as relações vividas perdem seu

caráter histórico e cultural para se tornarem naturais, levando à percepção de

que "sempre foi assim e sempre será”.

4) A satisfação das necessidades, seja da sobrevivência ou do desejo, deve

respeitar a forma e a ocasião que não são definidos por quem sente, mas

pelo outro que tem o poder de determinar o quando e o como.

5) A luta entre a satisfação do desejo e a sobrevivência imediata, na qual o

indivíduo é levado a optar pela sobrevivência e reprimir ou deslocar seu

desejo.

Assim, o indivíduo se submete às relações dadas e interioriza os valores como

seus, zelando por sua aplicação, desenvolvimento e reprodução.

Gramsci tem razão ao afirmar que o senso comum é formado de maneira bizarra,

ou seja, amalgamam-se sem necessidade de uma consciência interna elementos dos

mais diversos herdados pelas mais diferentes influências que se materializam no campo

imediato de ação dos seres humanos em formação. No senso comum o ser humano

forma sua visão de mundo. Segundo Gramsci (1984, p. 12):

de maneira desagregada e ocasional, isto é, "participa" de uma concepção de mundo "imposta" mecanicamente pelo ambiente exterior, ou seja, por um dos vários grupos sociais. Nos quais todos estão automaticamente envolvidos desde sua entrada no mundo consciente (e que pode ser a própria aldeia ou província, pode se originar na paróquia e na "atividade intelectual" do vigário ou velho patriarca, cuja "sabedoria" dita leis, na mulher que herdou a sabedoria das bruxas ou no pequeno intelectual avinagrado pela própria estupidez e pela impotência para ação).

Nesse processo, as pessoas tomam como se fosse delas um conjunto de idéias

do outro e formam sua concepção de mundo com algo alheio/ do outro . Então, em

nosso entendimento, a primeira forma de consciência é uma alienação .

Ao nível do senso comum a alienação é tratada como sendo um estágio de não

consciência. Após a análise, percebemos que ela é a forma de manifestação inicial da

consciência. Essa forma será a base, o terreno fértil onde será plantada a ideologia

como forma de dominação.

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2.3 - ALIENAÇÃO E IDEOLOGIA

A alienação não é a mesma coisa que a ideologia e dela se diferencia

substancialmente. A alienação que se expressa na primeira forma de consciência é

subjetiva, profundamente enraizada com a carga afetiva, baseada em modelos e

identificações de fundo psicológico. A ideologia agirá sobre esta base e se servirá de

suas características fundamentais para exercer uma dominação que, agindo de fora

para dentro, encontra nos indivíduos um suporte para que se estabeleça

subjetivamente.

A ideologia não pode ser compreendida apenas como um conjunto de idéias que

pelos mais diferentes meios (meios de comunicação de massas, escolas, igrejas, etc)

são incutidas na cabeça dos indivíduos. Isso levaria ao equívoco de conceber uma

ação anti-ideológica como simples troca de velhas por novas idéias.

Quando, em uma nova sociedade de classes, uma classe detém os meios de

produção, tende a deter também os meios para universalizar sua visão de mundo e

suas justificativas ideológicas a respeito das relações sociais que garantem sua

dominação. "As idéias da classe dominante são em cada época as idéias dominantes".

(MARX; ENGELS, 1979, p. 72).

Essa universalização da visão de mundo da classe dominante explica-se não

apenas pela posse dos meios ideológicos e de difusão, mas, também e

fundamentalmente, pela correspondência que encontra nas relações concretas

assumidas pelos indivíduos e classes. Não são "simples idéias", como afirma Marx:

As idéias dominantes nada mais são que a expressão ideal das relações materiais dominantes, as relações materiais dominantes concebidas como idéias: portanto, a expressão das relações que tornam uma classe dominante, as idéias de sua dominação. (MARX; ENGELS, 1979, p. 72).

As relações sociais determinantes, baseadas na propriedade privada capitalista e

no assalariamento da força de trabalho, geram as condições para que a atividade

humana se aliene ao invés de se humanizar. A vivência dessas relações produz uma

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alienação que se expressa em três níveis. O ser humano está alienado da natureza, de

si mesmo e de sua espécie.

Ao viver o trabalho alienado, o ser humano se aliena da sua própria relação com

a natureza, pois essa relação ocorre através do trabalho, humanizando-o, assim,

podendo compreendê-lo. Quando ele vive relações em que ele próprio se coisifica, em

que o produto de seu trabalho lhe é algo estranho e não lhe pertence, a natureza se

distancia e se feitichiza.

Num segundo aspecto, o ser humano aliena-se de sua própria atividade. O

trabalho se transforma, deixa de ser a ação própria da vida para converter-se num

"meio de vida". Ele trabalha para o outro, contrafeito. O trabalho não gera prazer, é

atividade imposta que gera sofrimento e aflição. Alienando-se da atividade que o

humaniza, o ser humano aliena-se de si próprio (auto-alienação).

Isso nos leva ao terceiro aspecto: alienando-se de si próprio como ser humano,

tornando-se coisa (o trabalho não o torna um ser humano, mas é algo que ele vende

para viver), o indivíduo afasta-se do vínculo que o une à espécie. Ao invés do trabalho

se tornar o elo do indivíduo com a humanidade, com a produção social da vida,

metamorfoseia-se num meio individual de garantir a própria sobrevivência.

A materialidade dessas relações que produzem a alienação é expressa no

universo das idéias como ideologia. São, portanto, nas palavras de Marx, as relações

materiais concebidas como idéias.

A ideologia encontra na primeira forma da consciência uma base favorável para

sua aceitação. As relações de trabalho já têm na ação prévia das relações familiares e

afetivas os elementos de sua aceitabilidade. Antes mesmo que a criança venha a

receber qualquer informação sistematizada, já possui um conjunto de valores

interiorizados que para ela são verdadeiros e naturais, pois estabelece com ele

profundos vínculos afetivos e ela percebe que tem correspondência com as relações

concretas em que está inserida.

Assim, os valores, normas, regras, padrões de condutas não se dão pelo contato

perceptivo com as relações sociais determinantes na sociedade em que ela vive. Os

valores e o regime social são mediatizados por pessoas. As pessoas que servem de

veículo na formação humana são modelos. Não se trata de identificação com "a

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sociedade", com "as relações capitalistas" ou com suas idéias, são as relações de

identidade com os outros seres humanos, seus modelos, que a pessoa em formação

assume, contraindo os valores dos outros como sendo os seus.

O ser humano é modelo do ser humano. Nossa concepção de mundo e de nós

mesmos, nós as formamos a partir do outro. Numa passagem no Capital, Marx (1978a,

p. 60) afirma:

O homem se vê e se reconhece primeiro em seu semelhante, a não ser que já venha ao mundo com um espelho na mão ou como um filósofo fichtiano para quem basta o 'eu sou eu'. Através da relação com o homem Paulo, na condição de seu semelhante, toma o homem Pedro consciência de si mesmo como homem. Passa a considerar Paulo, com pele, cabelos, em sua materialidade paulatina, a forma em que se manifesta o gênero homem.

Assim o indivíduo vai construindo uma concepção de mundo que julga como

sendo própria. Apesar de sua utilidade prática, de sua aparente coerência, essa

concepção caracteriza-se, como vimos em Gramsci, por ser ocasional e desagregada.

Isso significa que não chega a formar um todo unitário e coerente, mas uma soma de

relações sociais de produção, dando a base necessária para que a ideologia frutifique e

garanta sua reprodução.

Aqueles que se servem de uma visão mecânica do mundo e do processo

histórico, fecham aqui o círculo da dominação. A ideologia corresponde às relações

concretas que a comprovam e a reforçam, ao mesmo tempo em que esta lhes justifica e

reforça. Não há saída. Isto constitui um dos mitos de nossos tempos: a dominação

ideológica quase perfeita.

Entretanto, o fato é que a ideologia e as relações sociais de produção formam

um todo dialético, ou seja, não estabelecem simples relações de complementariedade,

mas uma união de contrários. Por mais elaborada, sofisticada e eficiente que seja uma

ideologia, ela é ainda a representação mental de certo estágio das forças produtivas

historicamente determinadas.

Uma vez interiorizada uma visão de mundo não se transforma numa

inevitabilidade, pois ocorre em suas entranhas a contínua transformação das estruturas

produtivas e das relações que lhe deram origem e que lhes servem de base. Essa

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transformação, ao contrário da ideologia que tente a se eternizar, é necessária e,

mesmo, vital para os próprios interesses dominantes.

Eis aqui uma contradição insolúvel da sociedade capitalista: enquanto as forças

produtivas devem constantemente desenvolver-se, as relações sociais de produção e

sua manifestação e justificativa devem permanecer estáticas em sua essência. Com o

desenvolvimento das forças produtivas, acaba por ocorrer uma dissonância entre as

relações interiorizadas como ideologia e a forma concreta como se efetivam na

realidade em mudança. É o germe de uma crise ideológica. Os autores da Ideologia

Alemã descrevem desta maneira esse processo:

Quanto mais a forma normal das relações sociais e, com ela, as condições de existência da classe dominante acusam a sua contradição com as forças produtivas avançadas, quanto mais nítido se torna o fosso cavado no seio da própria classe dominante, fosso que separa esta classe da classe dominada, mais natural se torna, nestas circunstâncias, que a consciência que correspondia originalmente a esta forma de relações sociais se torne inautêntica: dito por outras palavras, essa consciência deixa de ser uma consciência correspondente, e as representações anteriores, que são tradicionais deste sistema de relações, aquelas em que os interesses pessoais reais eram apresentados como interesse geral, degradam-se progressivamente em meras fórmulas idealizantes, em ilusão consciente, em hipocrisia deliberada. (MARX; ENGELS, 1979, p. 78).

Como o indivíduo viveria essa contradição entre as idéias e a realidade em

mudança? Sabemos que sua consciência inicial é formada pela interiorização de

valores, normas, juízos e comportamentos a partir das relações imediatas que

estabelece. De posse dessa concepção de mundo, o indivíduo segue sua vida e

estabelece outras relações que se encontram em constante e dinâmico movimento. As

novas relações vividas têm o mesmo potencial de interiorização que as anteriores, da

mesma forma que geram novos valores, juízos e são a base para condutas e

comportamentos.

O indivíduo vive suas novas relações julgando-as e buscando compreendê-las,

com o mesmo arcabouço de valores e juízos de que dispunha anteriormente. Os novos

valores que são interiorizados nas novas relações coexistem com os velhos,

provocando uma contradição que é vivida pelo indivíduo como um conflito interno e

subjetivo.

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A primeira forma de manifestação dessa contradição ainda não é a superação da

alienação, mas a expressão de um sentimento de revolta.

Alguém, por exemplo, que acredite que trabalhando consegue tudo o que quer,

pode passar a viver uma situação em que, apesar de trabalhar muito, não consegue o

mínimo necessário para viver, e se revolta. As relações atuais passam

a não corresponder ao valor interiorizado, mas antes de fazer saltar toda a sua antiga

concepção de mundo, tal percepção é vivida como um conflito subjetivo, individual, que

é compreendido tendo por base a própria estrutura da primeira forma de consciência.

Nesse sentido, as relações agora podem não ser mais idealizadas: são vividas

como injustas e o indivíduo pode esboçar a não submissão. Porém, na maioria das

vezes, são tidas como inevitáveis, ou seja, "sempre foi assim", mudando apenas o

julgamento valorativo: "sempre foram injustas" e "sempre serão injustas". Dessa forma,

certas ocasiões de revolta podem se tornar passagem para uma nova etapa do

processo de consciência.

2.4 - A CONSCIÊNCIA EM SI E A CONSCIÊNCIA DE CLASSE

Em determinadas condições, a vivência de uma contradição entre antigos

valores assumidos e a realidade das novas relações vividas pode gerar uma inicial

superação da alienação. A pré-condição para essa passagem é o grupo. Quando uma

pessoa vive uma injustiça solitariamente, tende à revolta, mas em certas circunstâncias

pode ver em outras pessoas sua própria contradição. Esse também é um mecanismo

da primeira forma de consciência, mas aqui a identidade com o outro pode produzir um

salto de qualidade.

A injustiça vivida como revolta é compartilhada numa identidade grupal, o que

possibilita a ação coletiva. A ação coletiva coloca as relações vividas num novo

patamar. Vislumbra-se a possibilidade de não apenas se revoltar contra as relações

pré-determinadas, mas de alterá-las. Questiona-se o caráter natural dessas relações,

portanto, de sua inevitabilidade. A ação dirige-se, então, à mobilização dos esforços do

grupo no sentido da reivindicação, da exigência de que se mude a realidade de

injustiça. É a chamada consciência em si ou a consciência reivindicatória.

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Todavia, dizemos que isto é uma possibilidade; o grupo pode caminhar para

esse processo e as pessoas poderão ir gradativamente evoluindo sua consciência.

Sartre (1979), na sua obra Crítica da Razão Dialética, consegue sintetizar o

funcionamento de um grupo, abarcando todo seu processo, ou seja, de sua gênese até

a sua morte. Em sua análise, afirma que o coletivo antecede o grupo, porém se trata de

um coletivo da serialidade inerte, em que todos vivem na alteridade e a princípio sem

unidade. Contudo, considera que a reunião de um grupo não quer dizer que vá haver

ação. Para o autor, a reunião inerte com a estrutura da serialidade é o tipo fundamental

da sociedade. A força que age desde fora sobre o coletivo e pode transformá-lo em

grupo assume a forma de uma "impossibilidade". Sartre (1979, p. 14) descreve assim

esse processo:

Antes de tudo temos que conceber que a origem de uma reestruturação do coletivo em grupo é um fato complexo que tem lugar ao mesmo tempo em todos os pisos da materialidade, mas que está superado em práxis organizadora no nível da unidade serial. Entretanto, por universal que seja, o acontecimento não pode ser vivido como sua própria superação até a unidade de todos, salvo quando sua universidade é objetiva para cada um, ou, se preferirem, salvo quando se cria em cada um uma estrutura objetiva unificadora. Até aqui, de fato - na dimensão do coletivo -, o real se definia por sua impossibilidade. Aquilo que se chama de sentido da realidade significa exatamente: sentido daquilo que, por princípio, está proibido. A transformação tem, pois, lugar quando a impossibilidade é ela mesma impossível, ou se preferirem, quando um acontecimento sintético revela a impossibilidade de mudar como impossibilidade de viver. O que tem como efeito direto que a impossibilidade de mudar se volta como objeto que se tem que superar para continuar a vida.

O coletivo é colocado diante da impossibilidade de manter uma restrição ou

interdição (uma ameaça externa) que produz em cada um e, por conseqüência, no todo

a necessidade de romper com o campo prático inerte, o que obriga a ação. Ao agir, o

coletivo verifica com surpresa como, em um momento de sua atividade passiva, foi um

grupo.

Certamente, o processo de grupo é uma base para a evolução da consciência,

contudo, em que momento isso ocorre e quando há um salto de qualidade na

consciência dos indivíduos?

Seguindo ainda os passos de Sartre, a totalização do grupo, ou seja, todo o

processo dialético de sua formação, amadurecimento e degeneração inicia-se, como

vimos, com a serialidade , passando para a dissolução da série em direção ao grupo

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em fusão quando a "necessidade individual é sentida como necessidade comum".

Todavia, os dois aspectos ocorrerão somente na ação, do fluir da práxis aberta à

totalização.

O grupo vive permanentemente uma tensão entre o caminho aberto pelo grupo

em fusão no sentido da totalização e a ameaça de se dissolver novamente na

serialidade. Isso será resolvido num ato de reciprocidade mediada entre seus

componentes; emerge aí o novo estatuto do grupo que Sartre chamará de

"juramento". O estado que se segue é conseqüência direta desse movimento. O

grupo em fusão que se transforma em grupo jurado assume o ser no grupo como limite

insuperável, reforçando os laços e solidificando os mecanismos de identidade. Por

outro lado, o não juramento de um terceiro, ou seja, a traição de um membro

desencadeia um violento processo de "terror", uma vez que o grupo pode agir por

direito para eliminar tal ameaça. Num aparente paradoxo, esse é o momento da mais

elevada liga solidária do grupo, a "fraternidade terror" , em que os membros do grupo

se vêem como irmãos.

Mas, para a aplicação do terror, o grupo necessitará de certa disciplina, o que o

levará a um novo momento, a organização. A divisão de tarefas, a criação de órgãos,

direções, coordenações, mediações e distribuições, ajustes, disciplina, administração,

são funções do grupo em que cada membro é um indivíduo comum. Ainda assim, trata-

se de uma organização de controle do grupo que inventa suas próprias instituições,

muitas vezes em conflito com o campo prático inerte do qual partiu. Trata-se agora de

uma práxis organizada que se diferencia da anterior por ser uma ação do grupo sobre si

mesmo.

No entanto, ao proceder desse modo, o grupo se objetiva em produto - o grupo

organizado - de forma que essa objetivação comum não é a realização do objetivo.

Esse movimento na sua forma ampliada vai conduzir a substituição da livre práxis em

"processo". Enquanto a práxis se desdobra a si mesma diante de um campo de

possíveis em direção de um fim, o processo, por seu turno, é práxis constituída,

mediada por instrumentais que se tornam seus próprios fins, enquanto o fim antes

definido pelo grupo, converte-se em algo virtual.

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Esse é o momento em que o grupo se converte em instituição. Quando o grupo

passa a cristalizar-se enquanto práxis constituída, ele se institucionaliza a si mesmo,

endurece, envelhece; o que era movimento torna-se rotina; o que era ação converte-se

em procedimentos; o que eram laços de solidariedade torna-se disciplina; o que era

projeto torna-se programa. Sinteticamente, o grupo caminha para sua burocratização,

aquilo que foi constituído pela livre ação se distancia de seus criadores e objetiva-se em

algo que se torna estranhado. Até o momento da organização do grupo sobre si mesmo

ainda é uma ação, embora limitada na direção do projeto coletivo. No entanto, agora, a

organização instituída obedece às suas próprias leis, de um complicado funcionamento,

e os seres humanos olham-na desde fora e sentem-se incompetentes para modificá-las.

Isto significa a volta para a serialidade inerte.

Nesse processo, ou seja, a serialidade como fator inicial, o grupo como práxis

livre (negação da serialidade) e a instituição, burocracia e o retorno à serialidade

(negação da negação), coloca em seus participantes uma camisa de força,

demonstrando que esse não é apenas o mais provável desfecho, como também o mais

verificável. Se assim concluirmos, a consciência termina aqui seu destino com a

dialética circular de Sartre. No entanto, podemos apreender esse processo dando uma

nova dimensão à análise, de modo que essa não fique presa ao grupo e este à

inteligibilidade individual. Isso porque essa limitação nos impede de supor que esse

movimento do grupo encontre condições para uma fusão que vai muito além dele e que

a natureza da impossibilidade enfrentada se produza a partir de uma contradição mais

abrangente que a ameaça à continuidade da produção social da vida em níveis

societários. Essa particular circunstância, a nosso ver, produz uma identidade e uma

ação correspondente ao momento do movimento da consciência que não pode,

simplesmente, ser reduzido aos mecanismos do grupo, muito menos derivado dos

mecanismos individuais. Esse é o salto do grupo em direção à classe e à consciência

de classe.

A tradição marxista distinguiu esses momentos analisando as classes sociais (e

a consciência de classe) em si e para si. A classe em si seria aquela que em sua

finitude define-se com o ser determinado por suas relações com as outras coisas, nesse

caso na relação com o capital. Nesse momento, o ser da classe é determinado como

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ser para o outro, de modo que o ser que trabalha é definido pelo papel que ocupa na

relação com o capital, como vendedor da força de trabalho, como capital constante,

como produtor de valor, como mercadoria consumida no processo de trabalho ou como

consumidor na circulação da produção. A consciência que corresponde a esse

momento não é mais aquela que correspondia ao ser, isolado como indivíduo, ainda

que essa fosse também uma consciência em si, no sentido de que era definida na

relação mantida com o outro. A diferença é que, agora, é uma consciência do que ele é,

enquanto conjunto, e o que o distingue dos outros seres: ele é aquele que vende a

força de trabalho ou aquele que só tem a força de trabalho para vender e, nesse

sentido, distingue-se daqueles que podem vender o produto de seu trabalho ou de

outros que podem comprar essa força de trabalho. Ora, mas à medida que se abre a

possibilidade de ver a si mesmo como ser distinto dos outros é possível se ver como tal,

para si.

A classe que vive do trabalho, para utilizar a expressão de Ricardo Antunes

(1999), não desenvolve essa "identidade" necessariamente de forma valorativa e

positiva. O fato de ter que viver da venda da força de trabalho é uma sina, mas é uma

sina que os proletários compartilham com muitos outros. Daí a imagem de que já são

uma classe, ainda que não o sejam para si mesmos. Vamos encontrar na obra de Celso

Frederico (1978) a mesma perspectiva de que é a partir da situação de classe dos

agentes no processo de produção – que conforma um conjunto limitado de situações

vitais, que se determinam os diversos tipos de consciência de classe.

As classes ganham materialidade na medida em que os seres humanos, ao

produzirem socialmente sua existência, encontram diante de si relações que os dividem

e lhes atribuem papéis distintos, como compradores ou vendedores da força de

trabalho, ou como objetos a serem consumidos na produção do valor, ou como aquele

que acumulará privadamente o valor excedente daí produzido. As Classes e seus

comportamentos se materializam em determinadas relações de famílias, hierarquia de

sexo e idade e em formas particulares de estruturar a personalidade dos indivíduos

sociais. As classes ganham existência material quando os indivíduos encontram um

emprego, pois se empregar em busca por um salário é a única maneira de garantir sua

existência.

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Mas, para que um sujeito veja no assalariamento a possibilidade de ganhar sua

vida, é necessário que o outro tenha encontrado na compra e no consumo da força de

trabalho a sua forma de existência. O fato de os indivíduos, esta abstração com a qual

o pensamento liberal envolve o ser social humano, estarem submetidos a

determinações de classe é que os leva, em certos momentos, a possibilidade de agir

como classe. Assim como, inversamente, é a individualização do processo social, as

relações e todo o estilo de sua coexistência social a base real para que os seres

humanos se vejam na estranha forma de cápsulas individuais e não a natureza ou a

diversidade de organismos humanos.

A essa possibilidade objetiva de conhecimento da totalidade e de autoconhecimento (identidade do sujeito e do objeto) corresponde à consciência de classe como categoria adjudicada. Entende-se por “adjudicada” a consciência que é atribuída ao movimento operário em função dos projetos deste, efetivamente tentados e cuja direção seja a extinção das classes sociais (e não apenas a melhoria das condições operárias de vida). (FREDERICO, 1978, p. 26).

Com isso, podemos entender que o caráter reformista ou revolucionário dessa

classe em ação só pode ser determinado por essa ação. Ajuda muito pouco a reflexão

de trocar uma metafísica por outra. O pensamento não pode resolver em si mesmo a

gênese do real. Se esse é um problema para quem acredita em uma essência

revolucionária, quase sempre adormecida, não é menos um problema para quem

sustenta um reformismo freqüentemente negado pela persistência da resistência e a

eventual emergência da luta revolucionária.

A classe para si e a consciência correspondente é aquela que, além de ser uma

classe, pode se reconhecer como tal. Uma coisa é ser uma classe que vende a força de

trabalho e que produz valor. Outra é reconhecer-se como tal; porém, não é apenas

essa autoconsciência que verificaremos em Marx, mas a possibilidade, ou

potencialidade da ação, o que faz as outras classes também serem reconhecidas como

tais e superarem sua visão enquanto classe para si. No caso do proletariado, que sabe

que vende sua força de trabalho e produz valor, o ser para si pode interromper o

processo de valorização. Não é por acaso que a greve está na base dessa passagem

do ser em si em direção ao ser para si, em uma posição de centralidade que

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corresponde à centralidade mesma da produção de valor na sociabilidade do capital.

Mas outras formas representam o mesmo mecanismo. No caso de um soldado em si

ser apenas uma força repressiva do Estado, mas como ser para si, ele pode negar-se a

cumprir esse papel e somar suas armas aos trabalhadores em rebelião. Ou um jovem

que, por ser em si mesmo o futuro, resolve construir um futuro para si, e não aquele que

os outros planejaram para ele.

Nesse caminho, existe espaço para um processo educativo numa perspectiva de

classe, ou seja, a formação do homem crítico, uma vez que percebemos que o

processo de consciência no sentido da consciência de classe é fruto do fazer humano e

não algo natural. A consciência é movimento que ora se apresenta como consciência

do indivíduo isolado, ora como expressão da fusão do grupo, depois da classe,

podendo chegar a diferentes formas no processo de constituição da classe até a uma

consciência que ambiciona a universalidade.

Sendo assim e, tendo no cotidiano as possibilidades dessas transformações -

embasados na formulação de Lukács (1978) sobre a relação entre a imediaticidade

cotidiana e a dimensão genérica da ação humana, ou seja, a afirmação de que a vida

cotidiana é a mediação objetiva e ontológica entre a simples reprodução espontânea da

existência física e as formas mais altas de genericidade até agora conscientes – a vida

cotidiana seria o espaço heterogêneo no qual se inter-relacionam dinamicamente os

dois pólos humanos da realidade social: a particularidade e a genericidade.

É neste cotidiano que as informações são transmitidas e podem aderir ou não à

consciência das pessoas, como também à consciência de classe. É imprescindível a

leitura correta do movimento da consciência, principalmente da consciência de classe.

Portanto, as estratégias, as ações educativas empregadas no cotidiano,

principalmente às palavras chaves para o desvelamento de determinada ordem

ideológica, tem seus limites a depender do grau de amadurecimento da consciência.

Como diz Goldmam (1972, p. 10):

Ë, realmente, importante para quem quer que deseje intervir na vida social, saber quais são, num estado dado, numa dada situação, as informações que podem transmitir, quais as que passam sofrendo deformações mais ou menos importantes e quais as que não podem passar.

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Na sociedade capitalista não podemos alcançar uma nova consciência, a não ser

de forma embrionária. Somos, no máximo, indivíduos da sociedade burguesa dispostos

a destruí-la. É certo que já se apresentam, em germe, elementos dessa nova

consciência, no entanto, ela pressupõe uma nova ordem de relações para que tenha a

base que a torne possível.

Isso não deve levar à compreensão de que a transformação revolucionária se dá

materialmente e só depois é que o universo das idéias vai se transformando

automaticamente. Essas esferas se combinam, ainda que preservada a determinação

material, de forma que a luta das idéias e a capacidade de uma classe revolucionária

apresentar suas concepções e valores como os valores do conjunto da sociedade, se

antecipam e preparam o terreno para transformações revolucionárias.

Foi o que de fato ocorreu com a própria revolução burguesa. O pensamento

burguês antecipou a 1a revolução burguesa. No entanto, isso não implica no fim da

determinação material. As idéias revolucionárias burguesas, entre elas o liberalismo, só

puderam se constituir tendo por base a própria gestação material das bases objetivas

do modo de produção capitalista e, com elas, o desenvolvimento de novas classes

sociais que buscavam expressar, no nível das idéias, seus interesses materiais.

Gramsci (1999, p. 66), ao tratar da questão, afirma que:

A supremacia de um grupo social manifesta-se de duas maneiras, como dominação e como direção intelectual e moral. Um grupo social domina os grupos adversários que tende a liquidar ou a submeter valendo-se também da força armada e é dirigente dos grupos fins e aliados. Um grupo social pode e alias deve ser dirigente já antes de conquistar o poder governativo (e esta é uma das principais condições para a própria conquista do poder); em seguida, quando já está exercitando o poder e ainda que o mantenha firmemente em suas mãos, o gripo social torna-se dominante, mas deve continuar sendo dirigente.

A lógica indicada pelo revolucionário italiano, e que deve ser resgatada, é que

toda classe é uma manifestação particular da sociedade. Nos momentos

revolucionários, uma classe reúne condições para expressar, através de sua

particularidade, os anseios universais que sintetizam os interesses particulares de

outros setores sociais em luta. Tornar-se dirigente desses setores implica numa luta de

idéias, juízos e valores, e mais, numa luta teórica. Significa dar unidade e coerência à

sua concepção de mundo, em luta contra a do adversário de classe que tem sua

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própria unidade e coerência, as quais, pelas suas contradições objetivas com a

realidade, tornam-se cada vez mais imorais e hipócritas.

A questão de fundo aqui não pode ser discutida sem encarar o fato de o

processo de consciência se inserir em um movimento maior, que é a transição de um

modo de produção para outro. Na medida em que se operam transformações

revolucionárias, em que se passe a estabelecer novas relações, podemos estar

iniciando a construção de um novo patamar da consciência humana.

A consciência não está para além da evolução histórica real. Não é o filósofo que a lança no mundo; o filósofo não tem o direito, portanto, de lançar um olhar arrogante sobre as pequenas lutas do mundo e de as desprezar. (LUKÁCS, 1978, p. 92).

Portanto, a transformação das consciências não está além da luta política e da

materialidade onde esta se insere. É, ao mesmo tempo, um produto da transformação

material da sociedade e um meio político para alcançar tal transformação. Por isso,

transgredimos a ordem natural das coisas e as idéias já preestabelecidas sobre elas ao

agir criticamente. Visto que a consciência não é algo adquirido e que nossa perspectiva

é o seu amadurecimento até a consciência de classe para si, não podemos esquecer

que são os homens no seu cotidiano responsáveis pela reprodução das idéias

dominantes. Assim, a sociedade capitalista ao produzir seus escravos também produz

seus revolucionários, como afirma Marx e Engels no manifesto comunista. Dentre eles

estão os intelectuais da classe trabalhadora que têm um papel importante na formação

da classe.

Alguns dos desafios fundamentais dos intelectuais, a nosso ver, é a atuação na

transmissão de conhecimentos e na formação do trabalhador, numa perspectiva de

emancipação do ser humano, através da ação educativa, da desalienação, do

desvelamento das tramas e dos ardis do capitalismo. Para tanto, a socialização da

teoria social de Marx é condição imprescindível na luta de classes. Para a transmissão

de uma teoria revolucionária, se faz necessário um método revolucionário.

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TERCEIRO CAPITULO

O MÉTODO

3.1 - O MÉTODO REVOLUCIONÁRIO DE SOCIALIZAÇÃO DO CO NHECIMENTO

No capítulo anterior tivemos a fundamentação teórica dos principais elementos

que compõem o processo de consciência. Essa reflexão nos revela que é fundamental

para todos os profissionais que trabalham com formação saberem o momento do

processo de desenvolvimento da consciência.

O bom profissional é aquele que usa o instrumento certo na hora certa. Imagine-

se um marceneiro que, ao consertar um móvel, arranca seu sapato para bater num

prego, seria algo no mínimo muito estranho. Assim, o formador deve atentar para o

momento das pessoas e a conjuntura em que se encontra. A qualidade da formação vai

depender da escolha da teoria, do método e do instrumental correto. Existem

momentos em que a mobilização terá o papel central; em outros será a organização e,

em outros ainda, a agitação. O importante é compreendermos que as pessoas estão

em processo de formação de suas consciências e que, em algum momento desse

processo, a formação torna-se fundamental.

Por outro lado, todos os momentos exigem uma formação especifica, todas as

situações têm um caráter educativo e pedagógico, mas nem tudo é formação. Por

exemplo: uma assembléia não é formação, é uma assembléia; uma greve não é

formação, não exige um educador, mas sim um agitador, um organizador. A formação é

aquele momento no qual é imprescindível a presença de um educador.

Estamos falando de formação no seu caráter político e social, não de um

processo pedagógico escolar. Toda nossa reflexão está dirigida à questão da formação

humana, do processo educativo de formação do sujeito político.

Nesse sentido, face a esse nosso maior desafio, Oscar Jara (1985, p. 02) expõe

a seguinte questão:

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O desafio principal que temos a enfrentar é o de saber implementar uma estratégia educativa. Isto é, planejar e pôr em prática processos educativos, lógicos, coerentes, que tenham uma seqüência e uma perspectiva tal, que nos permitam chegar a apropriar-nos criticamente da realidade para transformá-la.

O autor demonstra com isso que a concepção metodológica deve sublinhar o

sentido mais profundo na busca de como orientar e organizar estrategicamente as

práticas de educação popular. Dessa maneira, a concepção metodológica dialética e

suas formas de aplicação à educação popular abrangem com mais profundidade e

riqueza os elementos fundamentais para o desvelamento da atual sociedade capitalista.

Reforçamos que se tratamos aqui da dialética materialista é porque a consideramos a

principal desmistificadora de uma leitura da realidade febril que insiste em considerar o

pensamento como caminho de saída para nossas mazelas sociais. Marx e Engels

(1987, p. 54) traduzem por excelência essa questão:

Segundo a Crítica, todo o mal vem unicamente do "pensamento" dos operários. Ora, os operários ingleses e franceses formaram associações onde eles não contentam apenas de se instruir mutuamente sobre suas necessidades imediatas enquanto operários, mas se instruem ainda sobre suas necessidades enquanto homens, sem contar que eles manifestam nestas associações também uma consciência muito profunda e muito extensa da força "enorme", "imensa", que provém de sua cooperação. Mas, estes operários da massa, estes operários comunistas, que trabalham nas fábricas de Manchester e de Lyon, por exemplo, não cometem o erro de acreditar que o "pensamento puro" os libertará de seus patrões e de sua inferiorização prática. Eles se ressentem amargamente da diferença entre o ser e o pensamento, entre a consciência e a vida. Eles sabem que a propriedade, o capital, o dinheiro, o trabalho assalariado, etc., não são minimamente simples criações de sua imaginação, mas resultados muitos práticos, muitos concretos da alienação de seu ser que devem, portanto, ser abolidos de forma prática, concreta, para que o homem se torne homem não somente no pensamento, na consciência, mas também no ser de massa, na vida. A Crítica crítica lhes ensina, ao contrário, que eles deixam de ser assalariados na realidade se, em pensamento, eles abolirem a idéia do trabalho assalariado, se eles deixarem, em pensamento, de se manter como assalariados e, em conformidade com esta excessiva pretensão, não quiserem mais ser pagos pessoalmente. Idealistas absolutos, entidades estéreas, depois disto, estes poderão, naturalmente, viver do etéreo, da idéia pura. A Crítica crítica lhes ensinavam que eles conseguirão suprimir o capital real ao ultrapassar a categoria do capital no pensamento, que eles conseguirão se transformar realmente fazendo de si mesmos homens reais, quando transformarem seu eu abstrato na consciência e quando desprezarem, como uma operação contrária à Crítica, toda a transformação de sua existência real, das condições reais de sua existência, ou seja de seu eu real. O espírito, que na realidade vê apenas categorias, reduz também, naturalmente, toda atividade e toda prática humana ao processo de pensamento dialético da Crítica crítica. É

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exatamente isto que distingue o socialismo da Crítica crítica do socialismo e do comunismo da massa.

Nesta crítica ao idealismo, podemos concluir que o método dialético supera as

formas especulativas encontradas na lógica formal que paralisa o movimento, nega as

contradições, as quais, em certo sentido, resultam de um processo profundo, que as

condicionam e as atravessa. Nesse sentido, o acento será colocado sobre a lei da

conexão, da interdependência universal. Ou, ainda, se uma metamorfose ou uma crise

são estudadas, a lei dos saltos passará ao primeiro plano. Pouco importa. Os aspectos

do devir são igualmente objetivos e indissoluvelmente ligados ao próprio devir.

Poderíamos resumir do seguinte modo as regras práticas do método dialético

sistematizadas por Henri Lefebvre (1979, p. 241):

1) Dirigir-se à própria coisa. Nada de exemplos exteriores, de digressões, de analogias inúteis; por seguinte, análise objetiva; 2) Apreender o conjunto das conexões internas da coisa, de seus aspectos; o desenvolvimento e o movimento próprio da coisa; 3) Apreender os aspectos e momentos contraditórios, a coisa como totalidade e unidade de contrários; 4) Analisar a luta, o conflito interno das contradições, o movimento, a tendência (o que tende a ser e o que tende a cair no nada); 5) Não esquecer, é preciso repeti-lo sempre - que tudo está ligado a tudo; e que uma interação insignificante, negligenciável por que não essencial em determinado momento, pode tornar-se essencial, num outro momento ou sob um outro aspecto; 6) Não esquecer de captar as transições: transições dos aspectos e contradições, passagem de uns nos outros, transições no devir. Compreender que um erro de avaliação (como, por exemplo, acreditar-se estar mais longe no devir do que o ponto em que está efetivamente, acreditar que a transição já se realizou ou ainda não começou) pode ter graves conseqüências; 7) Não esquecer que o processo de aprofundamento do conhecimento que vai do fenômeno à essência e da essência menos profunda à mais profunda é infinito. Jamais estar satisfeito com o obtido. Naquilo que um espírito se satisfaz, mede-se a grandeza de sua perda; 8) Penetrar, portanto, mais fundo que a simples coexistência observada; penetrar sempre mais profundamente na riqueza do conteúdo; apreender conexões de grau cada vez mais profundo, até atingir e captar solidamente as contradições e o movimento. Até chegar-se a isso, nada foi feito; 9) Em certas fases do próprio pensamento, este deverá se transformar, se superar: modificar ou rejeitar sua forma, remanejar seu conteúdo - retomar seus momentos superados, revê-los, repeti-los, mas apenas aparentemente, com o objetivo de aprofundá-los mediante um passo atrás rumo às suas etapas anteriores e, por vezes, até mesmo rumo a seu ponto de partida.

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O método dialético, desse modo, revelar-se-á ao mesmo tempo rigoroso já que

se liga a princípios universais - e o mais fecundo, já que é capaz de detectar todos os

aspectos das coisas, incluindo os aspectos mediante os quais as coisas são

vulneráveis à ação.

Dito de outra maneira, temos que o processo de conhecimento nos leva a saber

que só podemos realizar aproximações à realidade: em qualquer método de pesquisa,

incluindo a dialética, jamais seremos capazes de captar todo o movimento, pois este é

contínuo e complexo. Os seres humanos são apenas uma parte desse movimento, que

começa antes dele e que vai além dele. Por isso, pontuamos que o conhecimento é

infinito.

O método revolucionário é o único capaz de abstrair as metamorfoses dos

processos de transformação da vida humana e de elevar o ser a um estágio de

compreensão do todo e das partes que compõem os fenômenos.

Entendido que o pensamento dialético e a prática dialética consistem no mais

alto grau de aproximação da realidade, resta compreender na nossa reflexão o como

necessitamos também de um método revolucionário de socialização do conhecimento.

Vemos muitos educadores compilando pragmáticas formas de transmitir o

conhecimento, através da criação de novas dinâmicas e de outros artefatos, buscando

contrapor-se à ideologia dominante. Ora, esse é um grande e doce engano, pois a

tarefa de criar intelectuais orgânicos das classes dominadas é antiga. Porém, nossa

intervenção educativa não pode ser feita de forma a querer tornar o trabalhador um

grande conhecedor do movimento da sociedade desde as antigas formas de

organização até a contemporânea forma de exploração do capital, como se isso fosse

fácil. Os formadores que nos antecederam já o teriam feito. Mas, podemos proporcionar

aos trabalhadores situações que explicitem às suas mentes a clareza de que é possível

mudar, e que é importante acreditar nessa possibilidade.

A vida leva as pessoas à necessidade de formação. Ninguém conscientiza

ninguém, contudo, quando se chega à consciência do conflito que se vive, a teoria pode

dar embasamento para as respostas que as contradições cotidianas colocam como

desafio a ser superado. Como disse Lenin "não há revolução sem teoria revolucionária".

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A partir de então, a teoria pode tornar-se força material quando ela ganha a população,

quando se torna o pensamento das massas.

Portanto, não falamos da substituição das idéias burguesas pelas idéias dos

explorados, como se o processo de inculcação dessas idéias fosse resultar na

transformação social. Todavia, salientamos que a realidade material abre muitas vezes

janelas históricas para as transformações da história humana.

Porém, precisamos ter clareza de que o singular, o cotidiano é a base para as

ações revolucionárias, inclusive para a formação, que é uma ação específica, embora

não separada de outras ações; ela se realiza e se relaciona com as demais. Mas tem

um papel específico, que é o de formar teoricamente as pessoas. Dessa forma, ela

auxilia na luta dos oprimidos e dos movimentos sociais, contribuindo profundamente

para o salto da consciência.

Parte-se da percepção de que não se pode aplicar de qualquer maneira a

abordagem dialética da realidade. Para essa aplicação, é necessário que o movimento

esteja presente na consciência em todo o processo de socialização do conhecimento.

Na formação, da perspectiva do método dialético, o ponto de partida não é a realidade

imediata de cada indivíduo, mas sim a sua primeira forma da consciência, ou seja, o

senso comum. Na abordagem dialética, o movimento parte do singular para o particular e daí,

para o geral. O conhecimento e a produção teórica da dialética se dão com base na

relação prática x teoria x prática. Todavia, nosso ponto inicial na atividade pedagógica é

o conhecimento. Lembrando de que a formação não é a produção do conhecimento; a

formação é a socialização do conhecimento.

A criação de novos conhecimentos pressupõe o conhecimento profundo do

conhecimento anterior - o que não temos condições de fazer na nossa atividade

educativa. É pretensioso de nossa parte acharmos que produzimos conhecimento, se

não conhecermos o que já é conhecido, em profundidade.

Nós partimos do pressuposto de que existe um conhecimento e uma teoria já

acumulada. A questão que enfrentamos é como podemos traduzir essa teoria já

acumulada para que ela possa ser compreendida pelas pessoas. Nós temos

necessariamente que concretizá-la, torná-la algo prático, concreto, compreensiva.

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Nossa argumentação parte de uma concepção teórica - o que não significa uma

perspectiva idealista, uma vez que o conhecimento acumulado é proveniente de todo o

trabalho humano e vem sendo construído na História. Isso permite considerar que a

dialética do conhecimento não elimina o pressuposto materialista da História.

Dessa perspectiva, resultam três observações centrais de nossa metodologia:

a) Partir de uma certa teoria que precisa ser socializada. A forma de socializá-la

pressupõe que o indivíduo chegue ao educador com contradições e que seja

questionado;

b) Criar condições, situações, em que as pessoas falem o que pensam e entrem

em contradição com essas idéias;

c) Partir do singular, o que significa estabelecermos uma noção geral da coisa

em si. Por exemplo, a noção de fruta é um conhecimento singular, já a polpa,

a semente, sua consistência são conhecimentos particulares. A

particularidade leva à noção geral da fruta, no entanto, cada um pode ver de

um jeito próprio as suas particularidades.

Outro exemplo sobre a questão da singularidade pode ser o seguinte: estamos

num país capitalista, mas o capitalismo é uma abstração que deve ser analisada

profundamente. Do ponto de vista do particular vai ocorrer que um fenômeno que é

universal será tomado como uma realidade particular; no contexto da discussão sobre o

tema, haverá então uma ultra-generalização, a vivência de uma parte da realidade

como se fosse o todo.

Nesse sentido, no capitulo anterior pudemos esclarecer a concepção de que uma

pessoa assume idéias de outras através de vivências, de relações estabelecidas. Essas

pessoas, de forma geral, vivenciam uma parte da sociedade, nas suas mais variadas

formas e particularidades, e vão assim formando suas próprias consciências. Por isso, a

ideologia que encontra terreno fértil no cotidiano deve ser desvelada. Para isso, deve

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ser explicitada: a ideologia precisa ser trabalhada para que os conceitos das coisas

possam ser reconstruídos.

Como fazemos isso? Desmascarando o que está oculto e as mentiras da

realidade burguesa. É o que veremos com a velha arte de fazer parir a verdade.

3.2 - MAIÊUTICA: DE SÓCRATES (A ARTE DE FAZER PARIR A VERDADE) AOS

DIAS ATUAIS. SOBRE A SUPERAÇÃO DO SENSO COMUM.

Antes de falarmos sobre a maiêutica, é importante sinalizarmos que o

conhecimento e a prática deste método educativo tem sido utilizado pelo NEP (Núcleo

de Estudos de Educação Popular 13 de Maio), desde sua criação. A utilização desse

método como integrante do cotidiano do profissional e como fonte de pesquisa é fruto

do convívio militante junto a esse Núcleo.

O 13 de Maio – NEP, nasce juntamente com o movimento operário da Grande

São Paulo. Foi organizado em 1982 como uma entidade de apoio a grupos de

trabalhadores que, naquela época, buscava formas próprias de organização para atuar

na realidade brasileira, no sentido de uma democratização profunda de nossa

sociedade. Nossa atenção se voltou inicialmente para as oposições sindicais, que

emergiam em contraposição à estrutura sindical oficial, que não permitia uma

representação e uma ação que viesse ao encontro às necessidades dos trabalhadores.

Ao mesmo tempo, apoiávamos associações de trabalhadores em seus bairros e

elaborávamos subsídios e recursos para práticas educativas, como cartilhas e

audiovisuais.

A ação do NEP, neste primeiro momento, concentrava-se na região da Grande

São Paulo, local onde ressurgia um vigoroso movimento sindical que impulsionava

outros movimentos sociais. Pouco a pouco, associado a este trabalho de organização

de base, foi se estruturando nossa iniciativa no campo da formação. Com a criação da

CUT, em 1983, o NEP – 13 de Maio priorizou sua construção, fundamentalmente na

Secretaria de Política Sindical (que acompanhava eleições sindicais e dava apoio às

oposições) e na Secretaria de Formação. Esta etapa inaugurou um novo ciclo para

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nossa entidade e ampliou seu leque de ação. Formavam-se novas diretorias sindicais e

surgiam novas exigências, tanto ao nível da organização como da formação e produção

de subsídios. Neste momento, nossa pequena equipe já recebia pedidos de outras

partes do Estado de São Paulo e do restante do país, impondo alterações em seu

funcionamento e a necessidade de definições de prioridades, uma vez que se

estruturavam sindicatos com uma nova proposta de organização, consolidava-se a

CUT, fortaleciam-se os movimentos populares e emergia um forte movimento de base

cristã, através das CEBS (Comunidade Eclesiais de Base) e Pastorais.

A nossa entidade, respeitando o princípio da autonomia das organizações e

grupos, passou a representar, cada vez mais, um papel de apoio e de assessoria a

estes movimentos. O 13 de Maio se estrutura então como uma entidade com a

característica de orientação da classe trabalhadora na sua luta contra, não só o

sindicato de Vargas e o regime militar, mas de apoio àquelas situações que mudariam

de fato com a mudança daquele modelo sindical, que era o modelo que sustentava

aquela realidade. Com esta tarefa em mãos, foram organizados inúmeros cursos (que

são momentos de reflexão sobre os aspectos da luta) e materiais de apoio como

audiovisuais e produção escrita. Devemos acrescentar que os cursos formulados não

tratavam os trabalhadores como pessoas limitadas e incapazes, embora não se

pretendesse formar PHDs, mas militantes, com a tarefa de mudar e, para isto,

necessitavam “ver” o mundo de forma mais sistematizada e contra a lógica do capital,

para tanto, o método adotado foi a dialética marxista, tendo como mediação a maiêutica

socrática.

Mas foi no estabelecer a orientação na sua forma de atuação que o 13 de Maio

teve a felicidade - não apenas na criação de cursos, nem na elaboração de seu

diversificado material - de ampliar sua analise das condições da classe, de suas

carências e dúvidas e, a partir daí, estabelecer assuntos, conceitos e formas que

deveriam ser debatidas. Isso lhe permitiu construir conceitos que caracterizavam a sua

forma de existir, respondendo, não apenas aos anseios dos formadores, mas também

às necessidades de classe que se faziam presentes naquela ocasião.

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O cerne daquela que poderíamos chamar de principal característica da educação

popular praticada pelo 13 de Maio é uma técnica que nos foi apresentada por Humberto

Bodra (criador do programa de monitores), por ele apelidada de "saca-rolha".

No início tratávamos exatamente desta forma, como uma simples técnica que

consistia na prática de ir conduzindo o seminário através de perguntas que

envolvessem os participantes. Ficamos todos muitos surpresos quando fomos

informados pelo próprio Humberto de que aquele alegre procedimento tinha

aproximadamente dois mil e quatrocentos anos. Nós, que nos orgulhávamos de nossa

convicção marxista e de atuar a partir da dialética e dos conteúdos marxistas – os

principais elementos de nosso programa de formação – tivemos que assumir que, no

que diz respeito à forma, nossa principal referência era, ninguém menos, que Sócrates.

A discussão da maiêutica é algo escasso e não temos bibliografias que abordem

o assunto na profundidade necessária. Muito embora nosso grupo tenha utilizado o

método, há um espaço ainda não percorrido entre nossas discussões metodológicas e

nossa prática educativa. Quem participa de alguma de nossas atividades, seja no

programa de cursos, seja no programa de formação de monitores, identifica uma

característica fundamental: o fato de o monitor ir construindo os conceitos em diálogo

com os participantes. Nesse sentido, não se trata mais da forma originária da Maiêutica

como concebia Sócrates; com o objetivo político de possibilitar a reflexão crítica e o

avanço na direção de uma consciência de classe, apenas parte da maiêutica

individualista de Sócrates para um processo de superação do senso comum numa

perspectiva coletiva. Tal procedimento tem como premissa o desvelamento da ideologia

dominante e a contribuição para o processo de formação do homem crítico e consciente

de seu papel na luta de classes.

Muito já foi falado sobre essa forma de desenvolvermos nossas atividades.

Alguns a identificam com o construtivismo, outros consideram que é a mais fiel

expressão da "concepção metodológica dialética". Conhecemos muito pouco da

concepção construtivista para aceitá-la ou negá-la, o que já é em si uma boa pista de

que não é nesse campo que baseamos nossa prática. Da mesma forma, já expusemos

que a concepção dialética da realidade permeia nossas discussões, contudo, a

aplicação do método, em nossa prática, é mediada por essa técnica.

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O que supúnhamos ser apenas uma técnica de educação popular era na

verdade a velha "maiêutica socrática": cujo princípio consiste em perguntar a partir de

definições dadas. A palavra maiêutica vem do termo grego Maiêutiké, que significa

"parto". Sócrates teria dito, segundo Platão, que aprendera sua arte com sua mãe que

era uma parteira e que ele fazia o mesmo, só que com a verdade. Vamos conhecer um

pouco de Sócrates antes de falar de seu método.

Numa sociedade que cultuava a beleza, Sócrates destoava com uma feiúra sem

limites. Assim o descreve Marilena Chauí (2002): "rosto chato, nariz grande e aberto,

olhos de boi saltados, baixo, lábios grossos, mal vestido, sempre enrolado num manto

pouco limpo e gasto... não tem bons modos de chegar na hora, não é pobre, mas vive

como um desvalido, anda descalço, mas freqüenta a alta sociedade. Isto não o impedia

de ser disputado pelos jovens que queriam seu amor, pois, como sabemos, entre os

gregos o verdadeiro amor era entre os homens. Dizem que gostava de meninos, mas

adorava filosofar entre as prostitutas". (CHAUÍ, 2002, p. 137-138).

Faz parte da descrição de Sócrates também que ele não tinha o dom da oratória,

mas que ao falar "paralisava o adversário e apaixonava o aliado". Sócrates nunca

escreveu nada. Dizia que a escrita é muda e que sua mudez cristaliza idéias como

verdades acerbadas e indiscutíveis. Xenofonte descreve Sócrates andando pela rua e

na Ágora, perguntando aos transeuntes o que é a virtude, a justiça e o bem, deixando-

os enfurecidos e desesperados à medida que refutava cada uma das respostas que lhe

ofereciam, provando que eram ignorantes e, pior, nem sabiam que o eram.

A sua maior máxima é o sabido "conhece-te a ti mesmo". Oráculo escrito na

porta do templo de Apolo Delfo. Quando foi consultar o oráculo de Delfos, teria ouvido

de seu Dalmon que ele, Sócrates, era o homem mais sábio entre todos. Contam os

relatos que Sócrates sai, então, em busca daqueles que julgava ser os mais sábios,

perguntando-lhes o que era a sabedoria e descobrindo que estes tinham uma sabedoria

nula. Descobriu dessa forma que ninguém sabe verdadeiramente, nem reconhece isso.

Daí deriva a sua segunda afirmação mais famosa... "só sei, que nada sei".

Partindo desses dois princípios, Sócrates irá subverter toda filosofia grega. Para

ele, a filosofia não seria mais a pergunta ou conjunto de respostas. Mas o espaço entre

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a pergunta e a resposta, redefinindo o conhecimento, dessa forma, como uma

constante busca.

Por isso Sócrates vai se diferenciar dos sofistas. Para estes o conhecimento

deveria ser transmitido por aquele que julgava ter o saber na forma de monólogos ou de

aulas onde apenas o sofista falava. Os sofistas também eram céticos, pois acreditavam

que, assim como suas próprias práticas demonstravam, a verdade não passava de uma

opinião definida com tenacidade; para tanto usavam e ensinavam a retórica. Dessa

forma não haveria porque buscar a verdade, pois não existiria. Para transmitirem seus

ensinamentos, usavam e ensinavam a retórica.

Sócrates acreditava na possibilidade da verdade e a diferenciava da opinião.

Para ele a verdade está em cada um, mas a verdade fica obscurecida pelo saber que

cada um tem das coisas e que julga ser verdadeiro. Esse conhecimento superficial que

os indivíduos tomam pela verdade é a opinião, ou apenas uma imagem, ou ainda,

preconceitos sedimentados pelos costumes.

Daí a comparação de seu método com o trabalho das parteiras. Ele se

considerava um "parteiro de almas", sendo que seu papel era o de auxiliar o

nascimento da verdade através do diálogo (Dia, através – Logos, palavra ou razão).

Na verdade, a Maiêutica é apenas uma parte do método socrático. Em sua

primeira aproximação Sócrates convida à busca da verdade através de uma exortação .

Numa segunda parte do diálogo, Sócrates vai indagando ao interlocutor até chegar ao

que ele chama da "boa questão". Essa parte é subdividida em duas sessões: primeiro

Sócrates comenta as respostas demonstrando que são preconceitos, opiniões oriundas

da percepção aparente das coisas através dos sentidos e faz isso usando a técnica da

ironia, visando quebrar a solidez aparente do preconceito; depois o filósofo continua

com as perguntas, só que agora sugerindo certas direções para que o interlocutor

possa construir a definição do conceito da coisa. É nessa última parte do método que

Sócrates realiza a maiêutica, ou seja, o parto do conceito verdadeiro.

Devido às característica do método socrático, Aristóteles o considerava um

método indutivo, pois busca a verdade através de casos particulares, ou, em outras

palavras, busca o conceito geral, ou a lei, a partir de casos particulares.

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Os dois elementos principais do método socrático estão presentes em nossa

técnica de educação popular: o diálogo e a maiêutica. No entanto, no contexto da

educação popular, o método socrático sofre mediações significativas que o afastam de

sua forma original. Em primeiro lugar poderíamos dizer que, se concordarmos que, na

primeira aproximação ao conhecimento se encontra algo que ocupa seu lugar e que

este algo é o conhecimento baseado na percepção aparente das coisas, a opinião ou o

que nós definiríamos como "senso comum". Em sua reflexões Gramsci afirmava que

não poderemos retificar a afirmação de que a verdade está em cada um, como uma

essência a ser descoberta’. Nesse ponto, também Hegel quando afirma que a verdade

está no todo e que é exatamente essa percepção parcial de cada um, percepção não

apenas aparente, mas particular, que impede a compreensão da totalidade.

Essa análise remete-nos à conclusão de que na verdade usamos a maiêutica

como técnica para fazermos o parto da verdade, tendo como ponto de partida o senso

comum. Em nosso método de educação popular, realizamos uma fusão de maneira que

a maiêutica - que para Sócrates constitui a segunda parte do método e que leva ao

parto do conceito verdadeiro - se funde com a primeira parte: o parto do senso comum

é feito, assim, através de uma combinação da "ironia" com a maiêutica.

A esse primeiro momento do diálogo educativo poderíamos chamar de dialética

negativa, quando o monitor faz emergir o senso comum para colocá-lo em contradição

lógica. No segundo momento, de dialética positiva, o monitor trata da construção do

conceito, ou seja do conhecimento. Acontece que no nosso caso, partimos do

pressuposto de que o conceito já existe e que a tarefa educativa é tarefa

eminentemente de socialização de conceitos. Ainda nesse caso, o diálogo é um meio

de construção do conceito. Mas, caso se torne sua proposta original, seria melhor falar

em reconstrução do conceito. Daí, a impressão de vários pedagogos que já

participaram de nossas atividades de que nosso método seja de cariz construtivista.

Na verdade, aqui está posta uma questão um pouco mais complexa que liga

nossa concepção metodológica a uma certa compreensão do processo de construção

da consciência. Para nós, ninguém assume os valores do outro simplesmente através

do discurso ou da simples transmissão de valores novos para substituição dos antigos.

Acreditamos que os indivíduos assumem valores que constituirão sua concepção de

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mundo através das relações que assume na sua vida no interior de um processo de

construção de identidade. Uma pessoa assume valores de outrem na medida em que

são estabelecidos vínculos que permeiam o processo de identidade, ou dito de outra

forma, o vinculo é a ponte pela qual um valor de uma pessoa passa a ser partilhado por

outra.

Descrevemos esse fenômeno em nossas reflexões sobre o processo de

consciência, no qual afirmamos que uma pessoa forma sua consciência inicialmente a

partir das relações imediatas que estabelece com as outras pessoas e coisas situadas

fora dela. O senso comum seria exatamente a primeira forma de consciência, formada

por valores assumidos de maneira ocasional e arbitrária a partir da vivência imediata

das relações do indivíduo. Uma vez que o indivíduo se insere em relações sociais

determinantes, ele acaba por assumir uma consciência atribuída, construída pelo outro,

no caso, pela concepção de mundo da classe dominante. No entanto, toma essa

concepção como sua, até porque não são simples idéias, mas valores enraizados em

cargas afetivas.

O indivíduo orienta sua vida pelos valores que julga serem seus e que

correspondem à sua vivência imediata e particularizada de mundo. Dessa maneira, é

impossível atacar diretamente o senso comum, pois isso apenas o colocaria mais

ferrenhamente apegado aos seus juízos. Partimos do pressuposto de que "esforço vão

é querer trazer ao entendimento quem imagina que possuiu entendimento" – o que, no

caso do senso comum, é exatamente o que ocorre.

A primeira tarefa, portanto, da educação popular é fazer brotar o senso comum

como afirmação e colocá-lo em contradição, questioná-lo - não diretamente, mas

através do diálogo e da maiêutica - para que o educando veja a sua afirmação como

algo externo que saiu dele e que entrou em contradição lógica. Isso fica bastante

evidenciado, por exemplo, na primeira parte do seminário "Como Funciona a

Sociedade", que estaremos apresentando no próximo capítulo.

Uma vez parido o senso comum, abriu-se o espaço que antes era ocupado por

ele para a reconstrução do conceito. Mas esse conceito não pode ser uma simples idéia

que ocupa o lugar da antiga - pois assim se correria o risco do conceito simplesmente

se somar ao senso comum, como mais um dos elementos que compõem sua unidade

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incoerente. A reconstrução do conceito parte da simulação de uma relação vivida para

que se estabeleça o vínculo e, através dessa "vivência", possa ser apresentado o novo

conceito como um valor a ser assumido pelo indivíduo.

O vinculo educativo é algo que o educador busca desde o começo do método

através do diálogo e do envolvimento do grupo. O grupo é a peça chave da dinâmica

educativa, pois ele permite que o indivíduo reproduza na situação grupal o processo de

sua identidade e veja, no produto do grupo, a manifestação de si mesmo.

Recria-se dessa forma a base da relação que pode gerar a introjeção de novos

conceitos. O método se completa com o que se chama de ‘dinâmicas’, que nada mais

são que simulações ou, numa definição mais precisa, vivências de situações

psicodramáticas que tornam possível que o conceito seja primeiro vivenciado para

depois ser definido.

Dessa forma, em nosso seminário básico, por exemplo, vivenciamos a dinâmica

da "fábrica" para depois revelar o conceito de mais-valia ou, na segunda parte, primeiro

vivenciamos uma sociedade recriada na "ilha" para depois chegar às definições de

"relações sociais de produção", de "classes", de "Estado" e de "ideologia".

Cabe agora, demonstrar como o serviço social pode apropriar-se da técnica em

epígrafe e da sua aplicação na prática educativa do profissional Assistente Social.

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QUARTO CAPÍTULO

MAIÊUTICA E SERVIÇO SOCIAL: DA PRÁTICA INDIVIDUAL À POSSIBILIDADE DA

UTILIZAÇÃO COLETIVA

4.1 - O PONTO DE PARTIDA: TRABALHO E FORÇA DE TRABA LHO DO

ASSISTENTE SOCIAL

No capítulo anterior, esclarecemos não só sobre a maiêutica, mas também

apontamos as formas de sua superação no processo de uma ação educativa de

formação social. Cabe ressaltar que o trabalho demonstra o caráter político de nossa

proposta, contudo, tal modo de proceder, ou seja, a utilização dessa técnica

corresponde a outro tipo de prática educativa que não tem imediatamente por objetivo

contribuir para o processo de formação da consciência de classe.

Em nosso caso, temos claro que a intervenção do profissional na direção da

educação popular deve ter caráter ético e político, com objetivos consistentes e

definidos. Tal procedimento revela não só o grau de entendimento da dimensão

socioeducativa, como, evidencia o cerne necessário da prática dos trabalhadores

sociais.

Frente ao pressuposto acima, buscamos apresentar neste capítulo, como

compreendemos a maneira como o serviço social pode apropriar-se dessa forma

revolucionária de abordagem, que possibilita ao profissional assistente social criar

espaços menos alienados nas esferas das instituições capitalistas em que opera. Para

tanto, a priori, apreendemos a necessidade de refletir sobre o trabalho do assistente

social no processo de emancipação humana.

Nesse sentido, consideramos que o trabalho do assistente social está inserido no

contexto da produção social capitalista e tal atividade corresponde ao conjunto da força

de trabalho coletivo de produção direta ou indireta do capital.

Para Marx, a palavra ‘trabalho’ designa uma gama bastante ampla de formas

possíveis de atividade humana. Na medida em que se refere ao trabalho como

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atividade concreta, através da qual os homens, modificando a natureza, produzem seus

meios de subsistência e, através disso, sua própria vida material, acrescenta que essa

maneira de produzir não deve ser vista como simples reprodução da existência física

dos indivíduos. Trata-se, antes, de um modo de manifestar a vida, a sua maneira de

viver e maneira de ser. Sua maneira de ser conjuga-se à sua produção, tanto àquilo

que é produzido como ao modo pelo qual produzem.

O que os indivíduos são, portanto, depende das condições materiais de sua

produção. Aqui, o trabalho assume um sentido totalizante e é entendido sob uma dupla

dimensão: de um lado, a relação homem e natureza, onde o trabalho humano

transforma a natureza e marca com sentido humano as matérias naturais: de outro lado,

as relações homem-homem, que são as relações que se estabelecem entre eles para

organizar a atividade produtiva comum.

Podemos dizer que é nessa dimensão da relação homem-homem que se

estabelece o caráter do trabalho do assistente social, o qual está intrinsecamente no

cerne das relações sociais de produção capitalista. Portanto, é um trabalhador que tem

em sua práxis todo um processo ideológico determinado pela luta de classes. Assim,

em primeiro plano, esse trabalhador apresenta-se como parte integrante do movimento

do capital para manter inalteradas as estruturas econômicas e as relações de poder no

âmbito da superestrutura.

Para esse trabalhador, é fundamental a compreensão de tais relações,

principalmente as transformações no mundo do trabalho que vêm acarretando

profundas conseqüências para a sobrevivência da classe trabalhadora, inclusive dele

próprio. As demandas trazidas de forma caótica e desagregada pela população devem

ser sistematizadas, elaboradas teoricamente e devolvidas de maneira clara e objetiva

para a organização de estratégias de luta de classe.

Inserido na divisão sócio-técnica do trabalho, o assistente social vem cumprindo

o papel de intelectual nas relações de poder. Alguns, levando os indivíduos a aceitar

seu destino de subalternidade, preservando os mecanismos de dominação e

reprodução ideológica; outros conscientes de seu papel político no processo coletivo de

libertação do homem, desenvolve ações no sentido de sua desalienação, o que

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demonstra o compromisso que os profissionais vão estabelecendo frente à luta de

classes.

A análise dessas funções e a indicação de sua importância para a relação de

poder é um dos fulcros dos trabalhos de Antônio Gramsci. Em virtude da vinculação dos

intelectuais à posições de classe, a discussão da noção de intelectual é

constantemente encaminhada em termos de intelectual orgânico e intelectual

tradicional. Sem entrar no detalhe da questão, é importante considerar a definição de

Gramsci, segundo o qual os intelectuais modernos são os que dominam, em função do

próprio desenvolvimento da indústria e das forças produtivas, ou seja, o tipo técnico de

fábrica e engenheiro: o velho tipo de intelectual era o elemento organizativo de uma

sociedade predominantemente camponesa e artesanal.

A indústria moderna introduziu um novo tipo de intelectual: o organizador técnico,

o especialista em ciência aplicada. Nas sociedades em que as forças econômicas se

desenvolveram em sentido capitalista até chegar a absorver a maior parte da atividade

nacional, é esse segundo tipo de intelectual o que prevaleceu, com todas as suas

características de ordem e disciplina intelectual. Portanto, a determinação do lugar dos

intelectuais não privilegiou apenas as superestruturas ou a ideologia: ela parte daquilo

que é específico ao modo de produção, às forças produtivas modernas: o aparelho de

produção.

Entretanto, se é a partir das transformações ao nível do aparelho de produção

que se pode perceber a emergência dos novos tipos de intelectuais, nem sempre a

expansão desses tipos é determinada pela produção: no mundo moderno, a categoria

dos intelectuais ampliou-se de modo inaudito. Foram elaboradas pelo sistema social

democrático burguês, importantes massas de intelectuais, nem todas justificadas pelas

necessidades sociais de produção, ainda que justificadas pelas necessidades políticas

do grupo fundamental dominante.

Desse modo, é possível pensar nos intelectuais como indivíduos que ocupam

funções-posições de supervisão e comando e que, de acordo com as necessidades da

produção ampliada do capital, podem vir a constituir uma massa social que exerce

funções de organização no sentido amplo: seja no domínio da produção, da cultura ou

da administração pública.

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Assim entendida, fica claro que a ampliação de noção de intelectual operada por

Gramsci prende-se ao fato de o intelectual ser definido no conjunto do sistema de

relações no qual tais atividades (intelectuais) e, portanto, os grupos que as

personificam, encontram-se no conjunto geral das relações sociais. Como

conseqüência dessa ampliação, o conceito de intelectual passa a abranger desde

produtores de ideologia até os funcionários de Estado, passando pelos empregados

técnicos. O que une esses diferentes intelectuais e o que fundamenta essa ampliação é

o fato de que exercem concretamente uma função que os caracteriza especificamente:

“Todos os homens são intelectuais, poder-se-ia dizer; mas nem todos os homens

desempenham na sociedade a função de intelectuais”. (GRAMSCI, 1968, p. 07).

A discussão precedente evidencia a seguinte questão: qual a necessidade

emergente, na sociedade capitalista, dessas funções? A pergunta só pode ser

respondida se pensada dentro da relação Estado-sociedade, ou seja, entre um poder

político constituído e a dinâmica das classes sociais, numa formação social capitalista.

É dentro dessa discussão que frisamos o trabalho intelectual do assistente social e a

ideologia que permeia as relações cotidianas, impondo condições muitas vezes

estruturantes nas intervenções profissionais. Intervenções estas que se dão no interior

de um determinado tipo de Estado.

O estado capitalista surge como a esfera das superestruturas jurídico-políticas

para a reprodução das relações de produção, a partir da subsunção real do trabalho ao

capital. Ou seja, embora o processo de produção imediato engendre no seu próprio

movimento as condições da auto-reprodução do capital, definindo no seu interior as

posições que caracterizam as relações de produção capitalista, a reprodução ampliada

de capital coloca a questão da reposição, sempre problemática, das condições sociais,

isto é, condições materiais e jurídico-politicas da própria acumulação. Assim, se o

primeiro processo define as classes sociais básicas no capitalismo, definindo a

contradição inerente a sua existência, a produção em seu conjunto propõe um

problema para a continuidade da acumulação ampliada do capital, que vai implicar na

emergência de novos segmentos das classes sociais, com níveis distintos de atuação e

participação, e que acompanham a complexificação do processo de produção geral. A

reprodução ampliada do capital, na sua dinâmica intensiva e extensiva, diversifica

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ramos e setores da produção e redefine constantemente as relações sociais, o que

significa que amplia também o âmbito de sua contradição fundamental para outros

segmentos de classes e frações de classe. O que nos interessa é que essa ampliação

instaura dimensões também amplas e mais complexas na esfera política, ou seja, ao

nível da constituição do poder político. Essas mudanças para se concretizarem

precisam da ratificação do Estado. Pode-se dizer então, que com essa argumentação

tem-se a proposta, a questão de uma redefinição das funções do Estado no

capitalismo, funções estas que Gramsci procura abarcar através do conceito de

aparelhos de hegemonia.

O conceito de hegemonia, considerado nesse contexto, implica um duplo sentido

nas relações Estado-classes sociais: a direção e a dominação. Segundo Gramsci

(1984), a supremacia de um grupo social se manifesta de duas maneiras: como

dominação e como direção intelectual e moral. Um grupo social exerce sua dominação

sobre os grupos adversários, aos quais tende a liquidar e a submeter, mesmo se

necessário pela forças das armas. Desse modo, Gramsci tem razão ao conceber que o

Estado deixa de ser visto apenas como violência organizada e concentrada da

sociedade ou comitê executivo da classe dominante, mas também como instaurador de

uma ordem jurídica e repressiva que salvaguarda certas normas fundamentais à

existência do capitalismo e passa a ser também o inspirador da disseminação do

“consenso”. Em outros termos: ele penetra no interior da formulação dos interesses de

cada grupo, tentando desarticular uma “visão de mundo” autônoma e orgânica a cada

um dos grupos e classes sociais potencialmente adversários, e procura rearticulá-la sob

a égide de uma “visão de mundo” proposta como universal.

Para Gramsci, é através dos intelectuais que se realiza a íntima interpenetração

entre a estrutura produtiva e a superestrutura que, como já foi dito, só é assim

designada na medida em que ocupa uma função-posição no mundo da produção

capitalista. Em nossos termos, uma posição de saber e poder determinada, sendo,

simultaneamente, nessa qualidade, um comissário do poder político.

Quando agente dos aparelhos de hegemonia, o assistente social, como

intelectual, está integrado à idéia de expansão de uma classe, a qual depende de um

consenso espontâneo aceito pelas massas da população, em relação à orientação

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impressa à vida social pelo grupo fundamental dominante. As práticas desses

profissionais na ordem vigente devem expressar uma orientação centrada no que se

chama ideologia dominante. Contudo, o assistente social não está necessariamente

confinado a obedecer aos ditames sutis e velados dessa ideologia; ele pode, como

agente educador e formador das classes populares, intervir no processo de consciência

das massas através de uma prática educativa de emancipação.

Para nós, assumir esta última posição é a dimensão mais significativa do

trabalho do assistente social; não pode ocorrer de qualquer maneira, sem nexo com a

verdadeira realidade vivenciada pelas classes subalternas. Portanto, ele precisa de

uma metodologia que lhe permita colher das pessoas aquilo que elas trazem como

senso comum, de forma desagregada, confusa e alienada para devolver a questão de

maneira sistematizada e clara. Essa prática consiste em assumir não só uma teoria

social, como também uma metodologia capaz de viabilizar com que o próprio sujeito

faça a trajetória que vai do senso comum para uma visão crítica da vida social.

A maiêutica em si como técnica educativa não leva o individuo a interiorizar

novos valores para o avanço na consciência. Entretanto, traz subsídios para a

construção de uma forma de realizar um trabalho de formação crítica das pessoas.

Temos claro que nem toda técnica educativa contém esse processo que leva à

criticidade, o que existe na maiêutica; sua metodologia sempre exige a presença do

educativo e do movimento do pensamento.

Em um atendimento onde o assistente social utiliza reflexões contundentes, de

certa forma se está aplicando parte do processo da maiêutica, principalmente quando

encaminha a reflexão no sentido de questionar certas atitudes e ações dos indivíduos

ou discute determinada realidade social. Mas, na utilização da maiêutica é importante

superar sua proposta original de apenas questionar as pessoas; é preciso introduzir um

sentido político nesse processo, o que leva à superação de sua gênese. Consideramos

que esse procedimento é possível na práxis do serviço social.

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QUINTO CAPÍTULO

O DESENVOLVIMENTO DO MÉTODO: APARÊNCIA E ESSÊNCIA – HAJA MAIS

VALIA...

5.1 – CONSIDERAÇÕES TEÓRICAS SOBRE A PESQUISA.

Para a realização deste capítulo, a obra de Baptista (2006) configurou-se como

base teórica para o entendimento e explicação do processo de nossa investigação.

Portanto, dela extraímos os elementos necessários que nos permitem apresentar o

sentido da pesquisa.

Da referida obra “A investigação em Serviço Social”, compreendemos que o

objeto de pesquisa com o qual trabalhamos, sempre esteve presente em nossa prática.

Assim, não houve uma escolha do tema e os caminhos já estavam postos no decorrer

de nossa vivência histórica nessa profissão.

Ao relatarmos o trabalho com os adolescentes e seus familiares, bem como o

contexto que tem permeado a realidade da atuação profissional, notamos que tal

pesquisa já vem sendo realizada por nós e os resultados têm sido evidenciados no

cotidiano, com a demonstração de novas ações de intervenção.

Contudo, não nos eximimos de pontuar o histórico de construção desta pesquisa

em ação que nasce justamente da práxis de intervenção com definições claramente

éticas, políticas, sociais e técnicas, com objetivos contundentes de transformação e

superação da realidade de exploração social.

Temos em Baptista (2006, p. 85) que:

O esforço da investigação se dirige ao privilegiamento do cotidiano dos sujeitos, procurando construir caminhos que levem a gestar práticas em patamares superiores de conhecimento e de socialidade e que sejam capazes de romper com a estrutura técnico-burocratica institucional e com a cultura política que a sustenta, ambas freqüentemente impregnadas de uma herança conservadora com reflexos compensatórios e tutelares que legitimam a subalternidade, naturalizando a opressão, a desigualdade e a violência em suas diferentes

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formas de aparecer. A pesquisa-em-ação-da-intervenção profissional elabora transições, desenvolvendo um conjunto de atividades pelas quais os profissionais/ pesquisadores transformam as normas, as práticas preexistentes, as estruturas organizacionais, tendo em vista mudanças na adequação entre as necessidades a que têm que dar respostas e as contrariedades do contexto. Procura repor em outras bases a dimensão política da prática profissional, por meio da interlocução usuários / instituições, considerando que é nessa dinâmica que se dão as correlações de forças entre os segmentos, que irão construindo as possibilidades de trabalho.

A pesquisa-em-ação-da-intervenção profissional vem de encontro à necessidade

de dar respostas consistentes às demandas trazidas no cotidiano do profissional. Assim

foi conosco, entendendo a ação prática como ponto de partida e chegada para um

processo de rompimento com imediatismo. Para tanto, a investigação teórica

apresenta-se como o instrumento capaz de viabilizar outras formas de intervenção, bem

como de aprofundamento do conhecimento das leis gerais do fenômeno estudado.

Por outro lado, a pesquisa em questão está intrinsecamente relacionada com a

posição política do pesquisador. Consideramos que uma prática profissional esvaziada

de conteúdo teórico, crítico e metodológico não passa de uma prática imediatista,

utilitarista e mecanicista. Sem um processo de pesquisa que contenha uma análise que

desvele as entranhas da realidade caótica e perversa que oprime o homem, sem que

haja uma proposta libertadora de intervenção crítica, não teremos um avanço no como

e no fazer profissional.

Este tipo de pesquisa, que se relaciona diretamente com a prática interventiva do profissional que se quer crítico, deve em seus pressupostos definir-se ética e politicamente. Sua definição ética informa a clarificação do papel do técnico que a opera e de seu posicionamento diante das relações da sociedade. Sua definição política se faz necessária porque este tipo de investigação está relacionado às apostas e às ações profissionais sobre a realidade, no sentido de sua mudança ou de sua transformação, o que o leva a incluir-se na arena de disputas entre interesses diversos que movem as relações sociais, implicando poder, pactuação e decisões. (BAPTISTA, 2006, p. 72).

Prova disso, temos a considerar que a pesquisa, ou melhor, todo o processo de

investigação significou, na realidade, um aprendizado e uma apropriação do saber por

todos, revelando-se que a teoria se concretiza quando se torna meio e instrumento para

a modificação ou transformação da vida real.

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O caminho para a investigação científica traz no seu bojo um processo de difícil

compreensão, em que a relação com o objeto a ser investigado pode indicar várias

direções que possibilitam o movimento necessário para sua realização, bem como pode

significar a sua paralisação. No entanto, a pesquisa em ação tem a vantagem de logo

apresentar as reações práticas de uma intervenção. O conhecimento vai se

transformando paralelamente com a vida real.

O que distingue esse tipo de pesquisa de outras é, basicamente, o fato de constituir a forma de investigação que mais imediatamente responde às questões postas pela prática profissional, abrindo possibilidades concretas para a renovação da ação. Contribui também para superar o senso comum, o pragmatismo, o normativismo e o formalismo, apreendendo o movimento da sociedade e as particularidades dos sujeitos que o alavancam, na direção de finalidades determinadas. (BAPTISTA, 2006, p. 72).

A todo tempo nossa maior preocupação era garantir uma dinâmica de trabalho

com o desenvolvimento crítico das pessoas, de maneira a efetivar um fazer profissional

com bases teóricas capazes de superar o senso comum. Para tanto, a técnica

educativa que sobressaía e que sempre fez parte de nossa prática correspondia à

maiêutica. Assim foram construídos encontros (ou oficinas) que tinham em seu bojo o

questionamento da dominação capitalista.

5.2 - A PESQUISA DE CAMPO: A APROPRIAÇÃO DA MAIÊUTI CA NA PRAXIS DO

SERVIÇO SOCIAL

Para Baptista (2006), no decorrer da história dos profissionais assistentes sociais

ocorre um acúmulo de conhecimentos teórico-científicos, acumulando um patrimônio

específico de técnicas e de instrumentais. Constitui-se então um saber, produzido no

âmago da profissão, que vai desde as ações individuais dos profissionais à construção

coletiva desse saber.

Não poderia ser diferente o que apresentamos nesse trabalho; trata-se de uma

experiência acumulada durante anos de prática no acompanhamento de adolescentes

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em conflito com a lei. Nesse sentido, é através do relato dessa prática que buscaremos

demonstrar o processo em que vamos apropriando e transformando o método

socrático.

Em meados do ano de 1998, assumimos o trabalho com 80 adolescentes e seus

familiares na Cidade de Taubaté, onde atendíamos numa pequena sala na rodoviária

velha. Não havia qualquer tipo de recurso e tudo necessitava ser construído. Ali iniciava

o desafio de um técnico diante de uma realidade intensa, permeada pela cultura da

indiferença e da desresponsabilização do Estado frente à política de atendimento a

esses adolescentes.

Por outro lado, não podemos nos eximir de colocar que, além do contexto social,

tínhamos a “colaboração” de uma técnica, também assistente social, que tentou nos

moldar à sua velha forma de atendimento, pautada na mais clara expressão do que

Gramsci chamou de visão conservadora, bizarra e desagregada. Era uma verdadeira

prática do vigário, com direito a sermões e absolvições do ato cometido pelo

adolescente. Como a sorte pode piorar, essa técnica mais tarde veio a se tornar

coordenadora, dando origem a um período de dinastia no posto.

Tudo bem! Hegel já falava que na história humana teríamos muitos momentos

em que seríamos governados por meliantes, que dirá na sociedade capitalista, onde a

prostituição é deliberada no cerne das relações de poder. Dessa forma, tivemos ainda

alguns personagens na direção que vieram completar o cenário da festa capitalista, ou

seja: um “palhaço”, um “caubói” e algumas “colombinas”.

Em contrapartida, tivemos companheiros valorosos. Cito, por exemplo, o técnico

Analto Galvão, fundador da Liberdade Assistida Comunitária no Vale do Paraíba. Foi

um grande aliado nas discussões, percorrendo durante um período os mesmos

caminhos e trajetórias, como também, e sobretudo, as mesmas perseguições políticas.

É importante registrar essas passagens, pois têm forte influência no nosso

processo de formação política e, conseqüentemente, no fortalecimento cada vez maior

de nossa convicção frente à necessidade de contrapor o racionalismo tecnocrático ao

trabalho com os adolescentes. Por isso, raros foram os momentos em que fomos

reconhecidos na Fundação Casa. Dentre esses momentos podemos citar o período em

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que trabalhamos na Cidade de Guarulhos, onde os técnicos e a coordenadora

compreenderam nossa intransigência em enfatizar o aspecto socioeducativo.

Toda essa vivência implica em concluirmos que a transformação da realidade, e

até mesmo da vida pessoal, está condicionada ao trabalho. É no processo de trabalho

que o homem transforma o meio em que vive, como também se transforma, sendo esse

movimento o fator que possibilita ao ser humano a superação de suas próprias

criações.

No tocante ao trabalho direto com os adolescentes, podemos citar que nossa

prática sempre teve como pilar a filosofia Makarenkiana, determinando em todos os

sentidos as intervenções técnicas e pedagógicas. Era o contraponto para resistirmos ao

controle social e repressivo do Estado capitalista.

Mas como transmitir e proporcionar um espaço nessa direção? Como efetivar o

protagonismo dos adolescentes frente à realidade atual, numa perspectiva

Makarenkiana? Isto foi um processo gradativo que vivenciamos a cada dia de trabalho

com esses notáveis seres com inesgotáveis potencialidades.

A cada entrevista identificávamos a necessidade de uma abordagem crítica e

política. O diálogo com os adolescentes e familiares apresentavam sempre cenários

comuns de violência e marginalização. Percebemos a importância do que

conversávamos com as pessoas e como conversávamos! Questionávamos o que os

profissionais realizavam efetivamente em seus atendimentos. Concebíamos que uma

intervenção sem a intermediação da situação vivenciada a um contexto maior e

complexo, não contribuía para o amadurecimento e a emancipação humana.

Ao trabalhar com adolescentes em conflito com a lei, cabe ao educador desenvolver ações educativas numa perspectiva solidária – não apenas pessoal, mas também e, fundamentalmente, social – com o educando. Essa solidariedade está estritamente vinculada à sua dimensão política e, por seguinte, à sua dimensão histórica. (COSTA, 2006, p. 76).

Participamos de inúmeros encontros, seminários e cursos, sem esquecer das

Conferências dos Direitos da Criança e do Adolescente. As discussões giravam em

torno do que era prioridade, por exemplo, o combate à violência, a educação, o

trabalho, etc. Contudo, nunca se tocou efetivamente nas questões relativas às

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estruturas sociais e às relações de poder – não é surpresa o esvaziamento político que

perdura no dia-a-dia do trabalho com os adolescentes.

Durante esse tempo, percebemos que nunca houve um projeto pedagógico na

Fundação. Nunca o atendimento aos adolescentes foi priorizado. Todos os encontros e

discussões correspondiam à racionalização burocrática e legalista, as coisas eram

postas na lógica formal. Pouco se mudou nos dias atuais; vemos muitos tecnocratas

discursarem meios para a organização, ou seja, a maneira mais eficaz de controle

social, uma tautologia fundamentada em leis que não garantem há décadas os direitos

dessa população.

Sabemos que o trabalho com o ser humano deve ser extremamente pedagógico

e criativo. A formação do homem traz em si mesmo a impossibilidade de um trabalho

que não seja na direção da libertação de sua alienação.

Através de uma teoria social revolucionária, com a aplicação de um método que

viabilize um processo pedagógico libertário, é possível criar estratégias e instrumentais

que possibilitem ao indivíduo realizar um processo de avanços para uma consciência

crítica que, para nós, significa o processo de consciência de classe.

Por exemplo, a interpretação da medida socioeducativa é um procedimento

obrigatório para os educadores que trabalham com os adolescentes. É na sua essência

o primeiro contato com o adolescente e sua família, portanto, tem suma importância

para o todo do atendimento que se estenderá por seis meses ou mais.

Não é exagero apontarmos a padronização legalista e formal em que tem

acontecido essa etapa do atendimento. Infelizmente, muitas vezes tal prática se resume

apenas no esclarecimento da medida, na apresentação do projeto e no preenchimento

de dados.

Para nós, é imprescindível iniciar o acompanhamento do adolescente

diferenciando essa ação das outras situações pelas quais que ele passou, por exemplo,

o espancamento na polícia e os sermões que ocorrem no Fórum.

Nesse sentido, através de uma teoria social crítica e de um método também

crítico, demos uma forma dinâmica ao processo de realizar a interpretação da medida.

A utilização da maiêutica, buscando superar o senso comum, colocava desde início um

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movimento emergente que fazia todos participarem de um diálogo em que as

contradições do contexto social vivenciado eram colocadas à tona.

5.3 - A INTERPRETAÇÃO DA MEDIDA SOCIOEDUCATIVA: UM EXEMPLO DA

UTILIZAÇÃO DA MAIÊUTICA NA ATUAÇÃO DO PROFISSIONAL

Para efetuar a interpretação da medida, o profissional deve levar em conta o

estado em que lhe chegam os adolescentes e seus familiares, ou seja, angustiados,

nervosos, com medo, etc. Por isso, não pode ser feita de qualquer jeito; requer alguns

passos básicos, sobre os quais iremos expor e, ao mesmo tempo, evidenciar todo o

processo metodológico.

O primeiro passo trata do acolhimento do adolescente. Dois itens são

fundamentais – a preparação do ambiente físico e o acolhimento através de palavras e

gestos empáticos – tranqüilizando o máximo possível as pessoas. A seguir temos um

roteiro, que pode ser aplicado tanto de forma individual, quanto em grupo, sendo que

em grupo ocorre numa outra dimensão, com aprofundamentos valiosos.

O roteiro assim se define:

A) O que vocês conhecem ou já ouviram falar sobre Liberdade Assistida?

• Através de um apanhado das falas e impressões vamos

desmistificando o que é verdadeiro e falso com relação à medida.

• Depois fazemos uma pergunta: todos os adolescentes para chegarem

aqui realizaram algo comum; o que é?

B) A partir das respostas, fazemos a pergunta seguinte: o que é um ato

infracional?

• Levantamos as considerações sobre o ato infracional, que giram em

torno de citar exemplos, como o furto, roubo, etc. perguntamos se isso

explica totalmente a questão do ato infracional: O que é um roubo e se

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existe outras formas de roubar em nossa sociedade que passam

despercebidas e a quem atinge diretamente a infração.

• É possível vivermos em sociedade sem o mínimo de regras, normas e

valores? Quem nunca errou?

C) O que são regras, normas e valores?

• Discute-se aqui, de forma geral, sobre o que é justo e o que é injusto

na nossa sociedade. De quem são as regras e normas que permeiam

a vida social e quem é realmente punido no mundo em que vivemos?

• O que acontece com aqueles que são pegos cometendo atos

infracionais?

D) Quais são os órgãos e como eles agem no combate à criminalidade?

• Nessa discussão, as situações da Polícia, da Delegacia, do Fórum e

das Prisões são reveladas.

• Em particular, discutimos sobre as leis e sua eficácia em condenar os

pobres. Por outro lado, alguns avanços com relação aos direitos,

principalmente a respeito do Estatuto da Criança e do Adolescente.

E) O que é o ECA?

• Fazemos uma breve exposição sobre o ECA, enfatizando suas

medidas socioeducativas.

• Lembramos que, dentre as medidas, o Juiz pode aplicar a LA.

F) O que é a LA?

• Retoma-se a discussão da medida de LA, contudo, de maneira

sistematizada, abordando os aspectos legais e socioeducativos.

G) Qual o significado da socioeducação?

• Mais do que as prerrogativas impostas na medida e as discussões

sobre seu projeto de vida, buscamos compartilhar com o adolescente

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e seus familiares a responsabilidade da transformação de si próprio e

do mundo em que vivemos. O verdadeiro caráter do processo

socioeducativo é a libertação do homem de suas prisões.

Em todas as interpretações realizadas, temos condições de apontar que não

alcançamos a todos no nível de dar continuidade à reflexão iniciada. No entanto,

vivenciamos que a cada passagem desse trabalho, os adolescentes ficam instigados a

expressar e a ouvir sobre as realidades que permeiam suas vidas.

O processo inicia-se com o parto das idéias e opiniões sobre aquilo que eles

conhecem no âmago de seu cotidiano; depois, colocamos em discussão as questões,

desvelando as contradições e as tramas existentes nesse contexto. O que é posto

acaba estabelecendo sentidos e nexos com as relações sociais de dominação,

propiciando um espaço de reflexão para que o adolescente e suas famílias possam

situar-se nesse panorama social. Assistimos, em muitas situações, adolescentes e

familiares verbalizarem o quanto foram enganados esse tempo todo e que em nenhum

momento refletiram dessa forma a sociedade em que vivem.

A discussão aprofunda-se na medida em que os participantes vão percebendo

que existe na realidade uma estrutura montada para reprimir o povo, principalmente

aqueles que transgredirem a ordem. Já ouvimos de adolescentes a colocação de que

eles justificam os salários de Juiz, Promotor, Policiais, carcereiros, etc. Outros

mencionaram de imediato que as coisas colocadas dessa maneira os fazem pensar.

Num dia de interpretação, um adolescente disse que “seus neurônios estavam parados

e que aquelas coisas todas colocadas fizeram seus neurônios se mexerem”.

Nesse processo dialético da negação, vamos desconstruindo e reconstruindo

significados. Porém, é fundamental observarmos que tudo se faz em um constante

movimento e que o grupo dá a direção e a dinâmica ao trabalho. Assim, os resultados

imediatos e em médio prazo não são previsíveis, uma vez que se trata de um processo

gradativo. Todavia, podemos relatar em nossa experiência alguns avanços

significativos. Por exemplo, na superação da negação, ou seja, no momento em que,

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diante da pergunta, “que mundo vocês querem para seus filhos?” todos os

adolescentes são unânimes em dizer: “queremos um mundo justo”.

A partir de então, abrem-se inúmeras possibilidades de trabalho com os

adolescentes, inclusive na perspectiva makarenkiana. Por isso, apresentamos, no

próximo item, mais um resultado do trabalho com a maiêutica, agora não só de um ato

isolado, mas em todo ato coletivo, com os adolescentes e outros profissionais.

5.4 - O GRUPO GAIA

O grupo GAIA (Grupo pela Autonomia e Integração do Adolescente) foi nossa

epopéia. Uma obra construída por pessoas valorosas e conscientes de sua atuação na

história humana.

Através do atendimento isolado, fomos paulatinamente sensibilizando os

adolescentes da necessidade do grupo. Nesse processo, toda a metodologia já

mencionada foi a engrenagem da ação que levou do individual para o coletivo.

No início eram o técnico e aproximadamente 15 adolescentes. Nada possuíamos

de recursos e nos encontrávamos numa sala cedida pela administração da Rodoviária

Velha da Cidade de Taubaté.

Vivenciamos ali todo o processo de formação de um grupo, ou seja, desde a

identificação entres os participantes até o trabalho operacional de todos. Conseguimos

isso porque saímos da situação de indiferença para o estabelecimento de uma relação

de igualdade humana, conforme Makarenko.

Das discussões realizadas, ficava clara a todos não só a realidade vivenciada,

como também a necessidade de enfrentar os percalços da vida. Mais ou menos ‘o que

vamos fazer com o que fizeram conosco’.

Resolvemos formar um grupo de monitores, agentes multiplicadores da formação

que estávamos realizando no grupo.

O trabalho árduo e coletivo fortaleceu o grupo e outras pessoas se vieram somar.

Vieram uma assistente social, uma psicóloga, uma pedagoga e uma agente da pastoral

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do menor. Todas seguiram e começaram a aplicar a metodologia então existente no

grupo.

Em todos os encontros, seminários e reuniões, usávamos a maiêutica para o

esclarecimento do contexto e do trabalho que estávamos realizando com os

adolescentes. Com isso, fomos montando uma estrutura e desmistificando a questão do

adolescente em conflito com a lei no município.

Ressaltamos que os adolescentes organizaram internamente o grupo e tomaram

consciência de seus papéis em relação à mudança de si e à responsabilidade para com

o outro. Um deles chegou até a sugerir que montássemos uma guerrilha como forma de

luta. Isso para nós vislumbrava o trabalho que adquiria patamares superiores.

Com isso, íamos obtendo outros recursos e o reconhecimento da comunidade,

inclusive do Promotor Dr. Antonio Carlos, que se configurou um parceiro na luta pelos

direitos dos adolescentes.

Mais tarde, montamos um roteiro de palestra, nas quais os adolescentes

participavam como debatedores. Já expressavam suas idéias de forma clara e precisa.

Foram várias palestras realizadas em diversos órgãos do município, tais como escolas,

Guarda Mirim, SENAC, SESC, etc.

O roteiro foi fruto da dinâmica do trabalho em si e da compreensão dos

adolescentes ao discutir um assunto tão complexo a partir da realidade ocultada pela

ideologia dominante. Damos como exemplo o tema “Drogas e Violência, quais os seus

significados?”, que aborda as categorias necessárias para um processo revelador das

mediações existentes nas relações sociais que permeiam esse mundo. Portanto, assim

o construímos:

• O que é droga?

Um apanhado geral do conhecimento dos jovens a respeito das drogas e

suas conseqüências. Nesse módulo os jovens são convidados a expressar

suas opiniões.

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• Propósito da palestra.

Aqui esclarecemos que vamos refletir se existe algo mais complexo a

respeito das drogas, alguma coisa que não é perceptível no primeiro

momento. Qual o pano de fundo que permeia a questão das drogas.

• O que é a sociedade?

As drogas são um produto social, por isso temos que analisá-las inserido-as

no contexto da sociedade.

• O que é necessário para sobrevivência?

Estabelecemos aqui uma relação das necessidades humanas.

• O que é trabalho? Quem trabalha?

Buscamos nesse momento apreender a importância das atividades humanas

(o trabalho), que é o elemento criador de toda riqueza material. É a

valorização do ser humano trabalhador como o responsável pela

preservação da vida.

• O que é divisão da riqueza?

Trata-se de uma reflexão sobre a concentração da riqueza e suas

conseqüências sociais.

• O que é o controle social pelo sistema repressivo?

Quem são e como atuam os órgãos responsáveis pela “segurança da

população.”

• Quais são os outros elementos do controle social (drogas)?

Para finalizar discorremos sobre quais são as funções das drogas na nossa

sociedade.

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A síntese desse trabalho está diretamente relacionada aos esforços e ao

amadurecimento do coletivo, que, paulatinamente, ia se consolidando através dos

avanços no processo de consciência dos adolescentes. Todos passaram a ser

comandantes e comandados nessa experiência de exercer um papel de destaque

frente a nossa tarefa de socializar o conhecimento que apreendíamos nas atividades do

grupo. O uso coletivo da maiêutica culminou numa poesia que, para nós, foi a

expressão do método e de todo o trabalho educativo, além da certeza de que é possível

uma atividade profissional criativa e libertadora, mesmo nos ditames das relações

capitalistas, desde que estejamos abertos para atuarmos na lógica dialética.

Ser ou não ser Eis a questão.

Drogas! Usar ou não usar Eis a questão.

Antes, lhes pergunto:

O que são mesmo as drogas?

Ah! Uma substância. Não só uma substância, Algo concreto que eu possa tocar, consumir, usar.

Uma mercadoria que posso comprar.

Mercadoria que necessita alguém para fazer E para levá-la ao mercado para ser vendida.

Oh! Agora sim, eu sei o que é uma droga. Droga é dinheiro.

Pois as mercadorias são vendidas Para se transformarem em dinheiro.

Então se eu fumar o dinheiro, não vai ser a mesma coisa,

Pois as drogas não são feitas com o objetivo de se ganhar dinheiro?

Meu Deus! Diga-me a verdade. Estou numa confusão,

Preciso saber mais sobre um assunto tão difícil e complexo.

Pensei que, ao usar a droga, Eu estivesse realmente usando uma mercadoria

Que satisfaça todo minha fantasia E que por alguns segundos me faça viajar

Mas ao olhar as drogas mais de perto, Percebo que não a uso e sim ela é quem me usa

A cada tragada, a cada cheirada, a cada lambida,

Satisfaço em primeiro lugar A necessidade das drogas de serem vendidas,

De serem comercializadas, de enriquecerem pessoas Que também viajam e consomem.

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Entretanto, estes usam aviões e jatinhos particulares

Para suas viagens e consomem: chester, peru, caviar...., As melhores roupas, os melhores alimentos, os melhores vinhos, champanhe, etc.

Com a exposição da experiência e dos resultados obtidos, poderíamos concluir,

de certa forma, a validação de nossa pesquisa. Todavia, buscamos demonstrar em

seguida, dinamicamente, a aplicação da técnica a um grupo de famílias dos

adolescentes inseridos em Liberdade Assistida na Cidade de Santa Branca.

5.5 - OFICINA COM AS FAMÍLIAS DOS ADOLESCENTES

Em primeiro lugar, esclarecemos que esta parte da pesquisa foi realizada na

Cidade de Santa Branca com a participação das famílias dos adolescentes inseridos na

medida de Liberdade Assistida e as famílias do Programa Renda Cidadã da Secretaria

de Assistência Social do Município. Nessa oficina contamos com a presença de 25

pessoas. Desde o início foi solicitada autorização para que filmássemos o curso e para

que algumas pessoas pudessem colaborar respondendo por escrito a uma pergunta

que seria procedida no final. Salientamos, também, que contamos com o auxilio da

assistente social da Secretaria que foi anotando as falas e reações das pessoas

durante o curso.

A montagem dessa oficina teve por fundamento a reflexão de que todo

conhecimento deriva de uma prática em um contexto concreto, assim como tal prática é

parte de manifestações sociais. Assim, uma prática humana, uma ação social concreta,

histórica, possibilita uma reflexão, uma abstração teórica, nela baseada, que será

também base para futuras ações transformadoras e novas sínteses teóricas. Portanto,

trata-se de um processo ininterrupto de ações e sínteses sucessivas.

Para nós, a afirmação, na ação política geral, da anterioridade da prática, é a

confirmação do princípio materialista do método, ou seja, da antecedência do concreto

em relação à representação abstraída desse concreto na forma de teoria. Dessa

maneira, partimos de uma realidade aparente, daquilo que os indivíduos conhecem e

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trazem de sua experiência cotidiana, porque a prática educativa é, para nós, um

momento da prática política geral. A particularidade desse momento está na sua tarefa

específica de refletir, superar a aparência das coisas, buscar compreender a realidade

(seja da sociedade ou do movimento ou da organização onde se atua) para transformá-

la, produzir saltos de qualidade na eficácia de nossa ação.

Nesta oficina em que foi tratada a dinâmica da fábrica, partimos de uma pergunta

que suscita, em um primeiro momento, que as pessoas expressem seu conhecimento

aparente da realidade social. Nosso objetivo é refletir com os participantes quais

indicativos a própria realidade apresenta, na sua forma concreta de explicitar. Por isso,

a questão – Que país é este? – possibilita respostas e opiniões que devem ser dirigidas

por uma didática. Em nosso caso, utilizamos a figura de um extra terrestre que vem

visitar nosso país e perguntamos o que ele vai ver ao visitar os locais indicados por nós.

“No meu bairro ele vai ver casas, gente trabalhadora e pobreza”.

“Ele vai ver favelas, muitas pessoas desempregadas, esgoto a céu aberto...”

“Vai ver barracos, miséria, fome e moradores de rua”.

As respostas são trabalhadas no sentido de esclarecer com o máximo de

detalhes a forma aparente do que estamos discutindo, portanto, questionamos o que

significam as representações que vão surgindo, como: favelas, barracos e pobreza.

Bem como, seu contraste:

“Nesse bairro ele vai ver carros importados, mansões e gente bonita”

“Vai ver seguranças, limpeza, gente bem vestido, etc.”

“Fábricas, grandes lojas, terras”

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Sendo assim, logo concluímos com os participantes que a realidade social que o

ET acaba de ver e discutir trata de um enorme contraste; ao separarmos na lousa as

respostas, as pessoas visualizam suas próprias conclusões:

Carros importados Carros velhos

Mansões Barracos

Gente bonita Moradores de rua

Fábricas Trabalhadores

Terras Favelas

Temos de imediato o que buscamos nessa trajetória, a revelação da questão da

concentração da riqueza, ou seja, um país de uma enorme desigualdade social. Um

fenômeno que as pessoas tentam justificar com seu arcabouço de respostas baseadas

no senso comum:

“O país é assim porque as pessoas não sabem trabalhar direito”.

Mesmo não sendo filósofos profissionais e não desempenhando na sociedade a

função de intelectuais, todos pensamos a realidade, nem que seja a partir apenas dos

limites e das características de uma filosofia espontânea. Essa filosofia reúne de forma

acrítica, desordenada e contraditória uma mistura de elementos que incorporam os

mais variados aspectos das concepções de mundo, presentes e passadas, de todos os

setores sociais.

Ainda no plano das aparências, estamos utilizando do processo de exortação do

senso comum e, para tanto, nosso próximo passo é a questão de como se dá o

processo de concentração de riqueza, ou seja, como se fica rico. Seguindo o método,

perguntamos para as pessoas sobre a história de alguém conhecido, por exemplo,

Sílvio Santos. Assim, logo aparecerão as categorias necessárias para a continuidade

do processo da maiêutica.

“As pessoas ficam ricas pelo trabalho”.

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“Ah! Sem dúvida é pela sorte”.

“O que explica alguém ficar rico é porque ele foi inteligente e esforçado”.

O parto do senso comum aqui é algo fundamental para o questionamento dos

elementos que compõem a ideologia dominante que justificam e reforçam uma

realidade que oculta e naturaliza as verdadeiras causas dos fenômenos sociais. É

importante pontuarmos que cada categoria que aparece – trabalho, sorte, inteligência,

esforço, herança, roubo – será discutida. É o momento em que, já realizada a exortação

do senso comum através do diálogo, vamos colocá-lo em contradição. Isso significa

levar as questões que façam as pessoas refletirem sobre suas respostas e verificarem

que as mesmas não explicam de fato as causas de uma realidade que, embora se faça

aparente, necessita ser analisada.

Diante das provocações, o senso comum tenta resistir e alguns sentimentos

aparecem na forma de revolta, orgulho e de posições inconformadas com as novas

questões. Como exemplo, ao expormos que milhares de pessoas trabalham, que são

tantos os que dedicaram uma vida inteira ao trabalho e hoje estão aposentados, não se

tornaram ricas. Outro questionamento que mexe com os participantes é a pergunta: não

somos inteligentes e esforçados por não termos ficado ricos?

Uma vez esvaziadas as indagações e as certezas, o grupo se vê diante de uma

realidade para a qual não tem resposta e se pergunta: se não é isso, o que é então?

Nessa hora abre-se o diálogo sobre a necessidade de estudarmos, de analisarmos a

realidade e o fenômeno da desigualdade social. Aplicamos então a dinâmica do

triângulo, em que perguntamos quantos triângulos possui a figura ilustrada abaixo:

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Mediante várias respostas, desenhamos o triângulo na lousa e destacamos

aqueles que possivelmente não foram encontrados, concluindo que existem 47

triângulos explicando como chegar a eles. Concluímos com o grupo que a única

maneira de chegarmos aos 47 triângulos é refazendo toda a figura, ou seja,

decompondo e recompondo cada triângulo, de forma a entender todo o processo em

questão. Assim devemos fazer para buscar resposta sobre: como surge a riqueza nas

mãos de poucos e a maioria permanece sem nada ou com quase nada? Propomos,

então, a dinâmica da fábrica.

Propomos um personagem (o bom patrão) para tentar investigar como ele ficou

rico. Supõe-se, então, que ele vai montar uma fábrica. Exortamos as pessoas a

indicarem os elementos necessários para a construção de uma fábrica de sapatos.

Logo aparecem os três elementos necessários para a fábrica: o prédio, a matéria-

prima e as máquinas .

A partir do exposto, dividimos a turma em três grupos e pedimos que cada grupo

descreva a história de cada um dos elementos necessários para que a fábrica funcione.

Durante a exposição dos grupos vamos reforçando a idéia de que, em toda a passagem

(por exemplo, do barro para o tijolo, do tijolo para o prédio, etc) há sempre

trabalhadores. Se algo foi feito, alguém fez. Destacamos afirmações do tipo – “o minério

saiu da terra”, “o produto foi levado” – mostrando como na voz verbal passiva

desaparece aquele que trabalhou, oculta-se seu real ‘agente’. Passamos o vídeo

“Origem da riqueza” reforçando a percepção de que:

• A riqueza é fruto do trabalho;

• Tudo o que tem valor vem do trabalho;

• A riqueza que o patrão diz que ele tem para começar a fábrica é o

trabalho de muitos que foi parar na mão dele.

Considerando que se trata de um público iniciante, passamos então a colocar

alguns pontos chaves para a definição do valor.

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• Valor é a quantidade de trabalho abstrato socialmente necessário para a

produção de mercadorias;

• Quanto mais trabalho, mais valor;

• O valor de uma coisa se mede pela quantidade de trabalho que ela

possui;

• A quantidade de trabalho se mede por horas, o que, na nossa sociedade

é expresso por dinheiro.

Visto isso, assumimos a figura do patrão, questionando as explicações dadas

por alguns que vincularam a acumulação de riquezas ao roubo e à sacanagem . Por

isso propomos a história de um empresário extremamente “honesto” e pessoalmente

muito bom , que:

− não rouba ou infringe qualquer lei;

− cumpre os compromissos assumidos;

− realiza uma gestão transparente e participativa com seus funcionários.

Como parte da turma acreditava que tinha resolvido o problema com a

afirmação do roubo, afirmamos que, em verdade, existem aqueles que acabaram ricos

comprando mais barato e vendendo mais caro, sendo esta, aliás, uma forma que o

senso comum vivencia a cada dia no comércio, por exemplo. Mas isso seria desonesto,

pois implica em vender algo acima de seu valor, ou pagar menos do que uma coisa

vale. Fechamos com o grupo que em nossa história havia um princípio:

“Comprar pelo valor e vender pelo valor”

Estamos prontos para fazer funcionar nossa fábrica e nos propomos a

empregar os participantes; pedimos que eles realizem uma assembléia e que definam

em que condições desejariam trabalhar. Abre-se uma negociação a respeito de qual

deve ser o valor da força de trabalho, dos benefícios e da jornada de trabalho. É

interessante observar algumas posturas durante os exercícios. Enquanto alguns

reivindicam calorosamente um salário alto, outros se conformam com um salário base

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para uma linha de produção. Começamos com a negociação dos benefícios e

acatamos tudo o que o grupo pediu: vale transporte, vale refeição, convênio médico

(com a intermédica) e bolsa de estudo. Discutimos o assunto e acrescentamos creche e

participação nos lucros. As respostas foram imediatas:

“Esse patrão é muito bonzinho”.

“Você está querendo alguma coisa, até lembrar a gente de coisas você

lembrou”.

Para finalizarmos, negociamos então o salário e a jornada de trabalho. O grupo

decidiu por um salário de R$1.500,00 e uma jornada de 08 horas diárias. No entanto,

houve controvérsias entre pessoas que acharam que o salário deveria ser de R$

800,00, pois se trata de uma linha de produção e é isso o que estão pagando no

mercado. O grupo reagiu espantado quando fechamos com um salário de R$3.000,00 e

uma jornada de 06 horas.

“Eu não disse que este patrão está com história?”

“Não vai dar certo, a fábrica vai falir”.

“Minha vida vai mudar completamente com este salário, mas eu não acredito que

o patrão vai conseguir”.

Feito isso, as pessoas da turma se converteram em trabalhadores em um dia de

trabalho. Distribuímos, então, uma folha em branco; para cada um esta folha

representava a matéria prima a ser trabalhada naquele dia. A folha foi dobrada e

cortada de tal maneira que saíram 20 retângulos. Cada um representando um par de

sapatos. Definimos com o grupo o valor do par de sapatos. Em nosso caso, avaliamos

com os participantes quanto vale um bom par de sapatos, lembrando que deve ser tão

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bom, ou melhor, do que aqueles que têm no mercado, mas ser vendido a um preço

menor para ganharmos a concorrência. Assim, concluímos pelo valor de R$50,00.

Cada um ia dobrando e cortando os pedaços de papel. A produção ia sendo

recolhida em sacos não transparente (para que os participantes não tivessem a idéia do

total produzido, pelo menos visualmente) reafirmamos a condição de “bonzinho”; se

queriam música enquanto trabalhavam; que não deveriam correr, que deveriam fazer

um produto bem feito, pois não tínhamos pressa: que somos parceiros e não somos

capitalistas selvagens...etc. Buscamos ouvir novamente os comentários que surgiam...

“não vai dar certo”... “vai falir”. Patrão assim não pode existir.

Depois de recolher tudo, destacando e elogiando os que iam acabando primeiro,

aqueles que cortam e dobram com mais cuidado, recomendando que fossem solidários

e não competitivos, reafirmamos nosso compromisso de transparência abrindo a

contabilidade.

Começamos por mostrar o saco que continha 30% da produção, o que

correspondia ao capital constante, ou seja, à parte necessária para repor a matéria

prima, o desgaste do prédio e das máquinas, enfatizando que tal porcentagem eram

dados de pesquisas realizadas no mercado por grandes empresas, como a Embraer.

Passamos, então, ao pagamento dos salários, entregando a cada ‘trabalhador’

dois pares de sapatos que correspondiam a R$100,00 que, no final do mês, seria o

equivalente a um salário de R$3.000,00.

Antes de abrirmos o terceiro saco, perguntamos ao grupo, o que eles fariam com

um salário desse?

“Eu compraria um carro”.

“Eu compraria uma casa”.

“Eu iria viajar, comer bem, vestir bem, dar uma boa educação para meus filhos”.

Pois bem! Como prometido, começamos a tirar os papéis do saco, um montante

de dinheiro que deixava claro o contraste do lucro do patrão com relação aos seus

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salários. Fomos mencionando que o patrão com todo aquele dinheiro poderia comprar

todos os bens que eles disseram e ainda mais. Poderia também montar outra fábrica

para aumentar seu lucro. Cabe ressaltar, que as reações foram diversas, dentre elas,

notamos: revolta, desânimo, perplexidade, etc...

Como se trata de um seminário básico sobre o funcionamento da sociedade,

buscamos explicar a essência do que aconteceu. Dizemos que o trabalhador, ao utilizar

os instrumentos e meios de trabalho transformando a matéria prima, transferiu seus

valores ao produto final. Mas para fazer isso, despendeu uma nova quantidade de

trabalho gerando um valor novo. Esse valor novo é muito maior do que o valor da

própria força de trabalho. Assim:

“A força de trabalho é capaz de gerar mais valor que o seu próprio valor”

Na jornada de trabalho o trabalhador produziu o valor de sua força de trabalho e

continuou trabalhando, pois sua jornada era de 6 horas. Essa diferença entre o valor da

força de trabalho e o valor que essa força é capaz de produzir gera um valor a mais que

recebe o nome de mais-valia.

Por último explicamos que o sapato foi vendido pelo valor, pois a força de

trabalho despendido nas seis horas da jornada, seja na parte paga na forma salário,

seja concretizada num valor a mais para o capitalista, é trabalho que está incorporado

no sapato e, portanto, faz parte do seu valor. Desta forma o valor de cada sapato revela

a seguinte composição:

Valor Antigo Valor Novo

Transferência do valor antigo Salário Mais-valia

Instalações,

instrumentos,

matérias primas

Parte do valor novo que

remunera o valor da força

de trabalho.

Parte do valor novo não

pago.

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Retomamos com o grupo perguntando se as coisas eram assim mesmo. Se não

seria apenas o trabalho de manipulação... os papeizinhos cortados... será que aquela

simulação nos ajuda a entender por que uma sociedade como a nossa tem tamanhos

contrastes? Para tanto, solicitamos que alguns respondessem por escrito a seguinte

questão: O que mudou naquilo que você pensava antes?

“Mudou a forma de pensar sobre a desigualdade social, e que os trabalhadores

são explorados pelos patrões. O salário muito baixo, as despesas muito altas, daí esta

crise do país e o sofrimento do povo.” (J.B.S).

“Não imaginava o tamanho da exploração e da desigualdade social que existe

hoje. Poucos ricos e uma pobreza imensa, os trabalhadores são explorados e mesmo

sabendo disso ele não pode fazer nada, pois precisa desse dinheiro, enquanto o patrão

fica com rios de dinheiro através do suor destes trabalhadores.” (R.M.A.).

Durante o seminário, percebemos que a ansiedade do senso comum leva a

responder as questões de maneira rápida e simplista. Contudo, depois de terminado

todo o processo da maiêutica, temos nítida a elaboração do pensamento. Mesmos com

respostas curtas, aparecem aqui elementos teóricos e sistematizados, demonstrando,

de forma positiva ou negativa, o entendimento e a clareza sobre uma realidade social

em que as causas do ser não estão reveladas nas formas de sua aparência.

“Mudou que: as pessoas de nível social mais alto têm preferência aos menos

favorecidos. Tudo que foi conversado aqui serviu para abrir mais minha mente sobre a

desigualdade social: enriquecem e muitos ficam ainda mais pobres, usando dos

salários mínimos cada vez mais mínimos. Onde a exploração do trabalho fala mais alto

e nós não temos valor e muitas vezes não nos damos valor por falta de opção. O que

teríamos que fazer para mudar tudo isto?” (S.A.C.S.).

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“mudou que antes eu pensava que as pessoas tinham que estudar, ter uma boa

profissão para ser alguém na vida, mas depois que assisti a palestra, me mostrou que

se as pessoas tivessem um bom salário, todos seus direitos reivindicados, a

desigualdade social seria praticamente igual, não totalmente igual, mas mudaria muito o

desemprego, a violência. As pessoas mudariam seu modo de viver e as pessoas não

sofreriam, não morreriam no serviço. Isso é a minha opinião.” (S.A.C.S.).

Seja qual for o aspecto que serve como motivo inspirador para levantar,

rearticular e fazer avançar o senso comum e o bom senso, o importante é fazer com

que as relações sociais expressas pelos fatos deixem de ser percebidas como algo

natural, como obra do acaso. Interpretar e criticar o cotidiano a partir dos interesses das

classes trabalhadoras significa, em primeiro lugar, percorrer o caminho inverso da

naturalização das relações históricas que alimentam a situação de subalternidade à

ordem burguesa. Percebem-se nas falas as mudanças ocorridas em suas concepções e

agora não havia mais a resistência nem a desconfiança que, de início, ainda eram

evidentes perante as considerações teóricas. Pois o senso comum, atacado

diretamente, tende a se fechar em suas opiniões, o que leva a uma estagnação no

processo educativo. Seja qual for o assunto, a forma com será abordado, a insistência

com a qual serão repetidos os conceitos em ocasiões e contexto diferentes, o

importante é que proporcionem a superação de uma visão mágica e fatalista da vida e a

percepção das relações sociais como fruto de um determinado desenvolvimento

histórico. Trata-se de realizar, como fala Gramsci nos seus escritos: a cada instante

devemos solapar o senso comum construindo a dúvida na cabeça do homem-massa.

“Bem, no meu entender, eu percebi que através deste curso que o quão é

importante as pessoas poderem obter esclarecimentos através de relatos que possam

nos mostrar o quanto nosso País é de uma desigualdade total. Que nos mostra que nós

vivemos numa sociedade que muitos tem muito e outros não tem nada. Que nosso país

muitas vezes não nos favorece, pois a pessoa que passam anos estudando, pode

conseguir um trabalho bom com um salário remunerado, mas chega numa certa idade a

própria pessoa se torna desqualificada. Pois a lei não nos permite que a pessoa possa

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trabalhar depois dos 45 anos. Agradeço a você, pela orientação nos deixada, e que é

uma pena que nós brasileiros ainda vivemos esta dura realidade.” (E.C.).

Conhecendo suas resistências e a força de suas crenças é ilusório pensar que o

senso comum, veiculado e alimentado pelas classes dominantes, pode ser derrubado

após as primeiras atividades críticas. Contudo, um trabalho educativo numa perspectiva

revolucionária dá seu primeiro golpe de maneira radical e crítica. Trata-se, portanto, de

estabelecer com o homem-massa um canal de comunicação que, trabalhando sua

realidade, seu senso comum e bom senso, o leve a identificar as contradições que

estão presentes na vida em sociedade e na sua própria concepção de mundo. As

contradições assim evidenciadas servirão de alicerce sobre o qual deverão ser

construídas as dúvidas a as perguntas que questionarão as crenças, as práticas, os

valores e os rituais presentes no senso comum e no bom senso.

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SÍNTESE CONCLUSIVA

De alguma forma, as práticas que buscamos construir de formação podem

possibilitar às pessoas o enfrentamento da obliteração de certas dimensões de suas

vidas. Esses aspectos comumente são desconsiderados em grande parte dos espaços

formativos e das intervenções profissionais, as quais são incapazes de elevar o senso

comum para uma racionalidade objetiva da realidade; comumente também

desconsideram o enfrentamento das dificuldades reais de compreensão e

conhecimento de causa e a paixão por um novo projeto de organização social, que

exige de imediato uma posição anticapitalista, contribuindo para a implantação de algo

efetivamente novo, para um outro tipo de humanidade e, portanto, de sujeito.

Entendo que nossa forma educativa pode articular o acesso à teoria social, às

esferas de subjetividade, aos instrumentos de descortinamento do mundo, assim como

de desconstrução de um presente no qual a ideológica construção do ordenamento

capitalista tenta eternizar. Esse é um desafio posto para nós assistentes sociais

(formadores). O que implica, a meu ver, transcende o fundamentar do nosso projeto

político societário, para um investimento em nossas esferas subjetivas, de forma que

queiramos e possamos ter um olhar sobre o outro, como um sujeito, que, para além do

militante construtor de uma nova sociedade, seja partícipe conosco da construção,

ainda hoje, sob o capitalismo, de outras relações sociais.

Acreditamos que está se abrindo um período importante para a reflexão e o

debate entre aqueles que persistem no caminho da transformação social. Na área da

educação popular se desarmam velhos preconceitos e se produzem patamares onde a

polêmica pode se estabelecer e levar às trocas e a contribuições mútuas que só

beneficiam nossos propósitos libertadores.

Esperamos ter iniciado uma contribuição para o debate, que não deve se

encerrar aqui, porque temos a convicção de que é no debate franco das idéias e na

avaliação crítica de nossas práticas que aperfeiçoaremos nossa caminhada.

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ANEXOS