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1 Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUC-SP Maria Izabel de Azevedo Marques Birolli Gerações em conflito A juventude contemporânea entre o passado e o presente Doutorado em Ciências Sociais São Paulo 2016

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Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

PUC-SP

Maria Izabel de Azevedo Marques Birolli

Gerações em conflito

A juventude contemporânea entre o passado e o presente

Doutorado em Ciências Sociais

São Paulo

2016

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Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

PUC-SP

Maria Izabel de Azevedo Marques Birolli

Gerações em conflito A juventude contemporânea entre o passado e o presente

Doutorado em Ciências Sociais

Tese apresentada à Banca Examinadora da

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,

como exigência parcial para obtenção do título de

Doutor em Ciências Sociais sob a orientação da

Prof. Silvia Helena Simões Borelli

São Paulo

2016

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Errata

Gerações em Conflito A Juventude Contemporânea Entre o Passado e o Presente

Folha Linha Onde se Lê Leia-se

7 3 Capítulo 1: Junho, o maravilhoso Capítulo 1: Junho, o “maravilhoso”

7 13 – Item 2.3 A nova família que não é a de ontem A família que não é a de ontem

7 21 – Item 3.5 Geração Nacionalista Geração Naturalista

8 11 Essas manifestações que ocorreram... As manifestações atuais que ocorrem...

9 17 “o jovem real”. o jovem mais próximo de sua realidade.

11 11 A ideia de ruptura, ou brecha geracional nessa tem também...

A ideia de ruptura ou brecha geracional, nessa tese, tem também...

11 28 (...) principais transformações no momento de sua entrada no mundo adulto na cena pública...

(...) principais transformações no momento de sua entrada no mundo adulto...

12 4 É quando pela primeira vez, sem a tutela dos pais se experimenta...

É quando pela primeira vez, sem a tutela dos pais os jovens experimentam...

12 6 É esse contato dos jovens com o mundo que até então esteve na esfera do privado que da origem a algumas de suas reflexões...

É esse seu contato com o mundo que da origem a algumas de suas reflexões...

14 25 Procuro extrair do testemunho dos intelectuais a experiência das manifestações que foram vividas e ao mesmo tempo elaboradas como “acontecimento” (NORA, 1979)...

Procuro mostrar que as manifestações foram vividas e ao mesmo tempo elaboradas como “acontecimento” (NORA, 1979)...

19 1 Capítulo 1: Junho, o maravilhoso Capítulo 1: Junho, o “maravilhoso”

22 5 As perguntas que se foram feitas... As perguntas que foram feitas...

23 10 2. Qual a razão da velocidade e da “monstruosidade” dos eventos?

2. Quem são eles?

29 1 recusasse em convocar se recusasse em convocar...

32 13 de visibilizar práticas usuais de construir sua linha editorial...

de visibilizar suas práticas usuais de construir linhas editoriais...

32 20 dos intelectuais: do otimismo e legitimidade que se deram...

dos intelectuais: do otimismo e legitimidade que se deu...

34 Aproximadamente 60% dos manifestantes tinham entre 12 e 35 anos. A pesquisa do IBOPE

Aproximadamente 60% dos manifestantes tinham entre 12 e 35 anos. Na mesma direção, a pesquisa do IBOPE

41 2 2. A velocidade dos acontecimentos 2. Quem são eles?

41 14 descreveu Schwarz: descreveu Schwarz (2013):

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58 16 A noção de estratos de tempo A noção de estratos de tempo, segundo Koselleck

58 23 conforme trato no capítulo 3. Para o autor, em teoria todos os conflitos

Para o autor, em teoria todos os conflitos...

61 21 citado por Cardoso (1988) segundo Morin (1988, apud Cardoso, 1988)

61 26 dizer, de uma a mitificação de um acontecimento...

dizer, de uma mitificação de um acontecimento...

64 4 Mas, se a experiência de “revolta” unia a juventude numa crise geracional – o que

Mas, se a experiência de revolta unia a juventude numa crise geracional, o que...

66 14 Paradoxalmente, o que melhor explicava...

O que melhor explicava...

66 15, 16 era seu caráter diverso, melhor dizendo abrangente – político, cultural e moral – uma crise

com seu caráter diverso, melhor dizendo abrangente – político, cultural e moral - era a crise

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Banca Examinadora

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Agradecimentos

A CAPES-PUC agradeço à oportunidade da bolsa parcial, sem a qual essa pesquisa não

seria possível.

Sou grata a meus amigos Iá Victal, Maria Conceição Golobovante, Rita Alves,

Alexandre Pianelli, Raquel Litter, Marli Moraes, que de alguma forma colaboraram

nessa pesquisa com leituras, sugestões, e o carinho da amizade.

Sou grata ao professor Edgar Assis Carvalho, que me inspirou e fez indicações

importantes que orientaram parte desse trabalho.

Sou mais que grata à minha amiga e parceira Fina Tranquilin, pelo afeto, pelas leituras,

conselhos, indicações, por tudo, inexprimível.

Sou grata aos jovens Camila Mello, Thiago Alexandre Moraes, Marcella Lopes Berte,

Kleiton Bezzera da Silva, Adenevaldo Teles, Livia Aschcar, Rafael “etcetera”, Guaira

Maia, Vanessa Santos, Diogo Damasceno, Diego Jim, André Barbosa, João Damasio,

Adrielle Saldanha, pelas conversas informações, vibrações, trabalho e amizade. Um

convívio que me transformou. Graças a ele concluo essa pesquisa acreditando que a

troca de experiência entre gerações é possível e necessário.

Sou grata à Silvia Helena Simões Borelli pela orientação dessa tese, e pela oportunidade

de realizar uma reflexão sobre o tema da juventude.

Aos meus filhos, Manoela e Daniel, pelas ausências incontáveis, que espero poder repor

nos próximos anos.

Ao meu companheiro e amor de todas as horas, Renato, só posso agradecer devolvendo

o mesmo afeto que nos une há tanto tempo.

Sou grata a Deus que me deu força, e fez aumentar minha fé.

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A Manoela, Daniel e

Renato

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Resumo

Essa tese é um estudo sobre a juventude atual, mais especificamente sobre a brecha

geracional vivida pelos jovens, tendo como objeto de estudo as Jornadas de Junho de

2013, no Brasil. Minha hipótese é que as gerações de jovens que comandam as muitas

manifestações nas ruas e nas redes digitais estão experimentando outro momento de

“revolta”, mas que revela também alguns sinais de permanências das experiências

políticas da geração dos anos 60, as quais retornam para os movimentos juvenis, onde

muitas delas nasceram reatualizadas e reinterpretadas, como é o caso do ambientalismo,

do feminismo, das lutas antirraciais e do problema da representação na política. As

Jornadas de Junho de 2013 e seus desdobramentos foram também compreendidos como

explosão de um ressentimento social, acumulados das frustrações das gerações passadas

que deram origem recentemente a uma bipolarização no senso comum da política no

Brasil. Essa bipolarização afeta também a juventude com sua presença marcante, senão

definidora nos atuais conflitos nas redes, nas ruas e nos debates ideológicos recentes,

apresentados na forma de dois tipos ideais: uma geração “neoconservadora” e outra

“naturalista”.

Palavras-Chave: Geração, Juventude, Manifestações, Movimentos Juvenis,

Ressentimento Social.

Abstract:

The thesis is a study on the current youth, more specifically about the generational gap

experienced by young people, with the object of study the Jornadas de Junho de 2013

(June 2013 Journey) in Brazil. My hypothesis is that the generations of young people

who which command the many street manifestations and in digital networks are

experiencing another moment of "revolt", but also reveals some signs of political

experiences of the '60s generation, which return to the youth movements, where many

of them were born update and reinterpreted, as is the case of environmentalism,

feminism, the struggles against racism and the problem of representation in politics. The

June 2013 Journey and its consequences were also understood as a social explosion of a

social resentment, accumulated frustrations of past generations that gave rise recently

to a polarization in the common sense of politics in Brazil. This polarization also affects

youth with its striking presence, if no defining in today's conflicts in the networks, on

the streets and in recent ideological debates, presented as two ideal types: a generation

"neoconservative" and other "naturalistic"

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Sumário

Introdução 8

Capítulo 1: Junho, O Maravilhoso 19

1.1. O Inatual 24

1.2. O Espanto 34

1.3. As Rupturas 41

1.3.1. Por que agora? 41

1.3.2. O que eles querem, afinal? 45

1.3.3. A velocidade dos acontecimentos 47

Capitulo 2: Nas Rupturas, as permanências e as diferenças 57

2.1. Lembrar (e esquecer) “68” 61

2.2. O Retorno do Herói 67

2.3. A nova família que não é a de ontem 71

2.4. Crise do modelo e crise da família 73

2.5. A Nova Família: Moral de Menos 78

Capítulo 3: A Juventude Entre o Ressentimento e a Empatia 92

3.1. Ressentimento e Democracia 95

3.2. Não é Só Por 20 Centavos 98

3.3. Herança de Ressentimento 107

3.4. Políticas de Reparação 113

3.5. Geração Nacionalista. “a geração que perdeu o medo” 119

3.6. Empatia, O Gesto Revolucionário 121

4. Considerações Finais 130

5. Bibliografia 134

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Introdução

Essa tese é um estudo sobre a juventude atual, mais especificamente sobre a

hipótese de uma ruptura geracional vivida pelos jovens, que foi pensada a partir das

Jornadas de Junho de 2013, um acontecimento histórico no Brasil, mas não exclusivo,

tratando-se antes de um fenômeno global. Uma extensa pesquisa realizada recentemente

em 86 países concluiu que vivemos a época mais conturbada de todas da história: 843

grandes protestos acontecidos entre início de 2006 e julho de 2013! (Ortiz, 2013)

Estamos, portanto, diante de um fenômeno político de proporções gigantescas e que se

assemelham a outros períodos revolucionários como a Primavera dos Povos e o Maio de

68, acontecimentos que desafiaram a compreensão, sobretudo pela combinação de

extensa abrangência geográfica, com grandes diferenças locais de situações econômicas,

sociais, culturais, e políticas. Essas manifestações que ocorreram em diversos países, e

que se ampliaram a partir de 2011 tem em comum a insatisfação com o sistema político,

o uso das novas tecnologias de comunicação, e os jovens como epicentro dos conflitos.

Jesus Martín Barbero observa que é no mal-estar e no desassossego que brota da

juventude hoje onde com mais força se percebe os “estremecimentos de nossa mudança

de época” e fala da urgência de compreender as mudanças culturais que atravessam os

jovens de uma perspectiva ou de uma “envergadura antropológica e não apenas

sociológica” (2002:9-10). Retomando o conhecido ensaio de Margaret Mead, Cultura y

Compromiso. Estudio Sobre la Ruptura Generacional, Barbero considera que

[...] Os jovens constituem hoje um ponto de emergência de uma outra cultura, que

rompe tanto com a cultura baseada no saber e na memória dos anciãos, como aquela

cujos referentes, ainda que movediços, ligavam os padrões de comportamento dos

jovens a dos pais. (2002:9)

Estamos assim, provavelmente, diante de outra ruptura geracional como entende

Barbero, como antes foi pensada por Margareth Mead e Edgar Morin a propósito das

revoluções juvenis nos 60, e por isso a necessidade de uma abordagem que leve em

consideração as relações entre as gerações, sendo que as divisões clássicas da sociologia

- classe, gênero e etnia - não dão conta de pensar essa nova fase da cultura que tem uma

geração de jovens e não um grupo social específico como agente. Para Barbero, uma das

soluções para esse problema é “aceitar a possibilidade” de fenômenos trans-classistas e

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trans-nacionais, como é o caso dos fenômenos geracionais, que por vezes atravessam as

fronteiras de classes, etnias e gêneros. (2002:7). Edgar Morin, da mesma forma,

evidencia a necessidade de pensar as relações entre gerações, um tanto esquecidas na

epistemologia social e afirma que “a identificação por gerações se torna em certos

períodos uma das principais oposições da vida social”. Provocativo, o autor faz

aproximar classes sociais “antagônicas” e propõe nas gerações, o lugar da clivagem

social ao se perguntar se em alguns períodos não haveria

[...] uma diferença maior, na linguagem e na atitude diante da vida, entre o jovem e o

velho operário que entre esse jovem operário e o estudante. Esses dois últimos não

participam dos mesmos valores fundamentais da cultura de massa, das mesmas

aspirações da juventude em relação ao conjunto dos anciãos?” (MORIN, 2000:149)

No campo da juventude a ênfase nas divisões de classe, gênero e etnia1, em

outras palavras, a pluralidade das “juventudes” se tornou lugar comum (Novaes, 2000),

em muitos casos inspirada na citação de Pierre Bourdieu de que “a juventude é apenas

uma palavra” (1978), de cujo pensamento se costuma concluir a necessidade de

abordagens que enfatizem as diferentes condições sociais e as diferenças entre os

indivíduos como solução para encontrar o jovem real. Sem negar que as considerações

sobre as diversidades permitem perceber a experiência dos indivíduos de acordo com

suas especificidades locais, sociais, humanas uma vez que essas diferenças de fato

existem, o pensamento que ressalta a heterogeneidade de condições em que os

indivíduos e grupos se situam no seu contexto não pode se esquecer de considerar

experiências históricas comuns, que dão origem às identificações e aos conflitos

intrageracionais e intergeracionais2.

A resposta de Pierre Bourdieu ao problema por ele colocado de que a juventude

“é apenas uma palavra” foi chamar atenção para o fato de que ser jovem é uma

categoria que nasce da divisão – “jovens” e “velhos”: os privilégios, as

responsabilidade, os significados e o poder que se atribui a cada classe de idade são

arbitrários e os limites entre elas são objeto de manipulações construídas socialmente

1 De acordo com Abramoway e Castro, “a referência, o ponto-base, são as diversas juventudes, imersas em diferentes cenários: as situações das mulheres; dos negros; das pessoas com deficiências; das Lésbicas; dos Gays, dos Bissexuais, dos Travestis, dos Transexuais e dos Transgêneros (LGBTTT); dos que vivem na área rural e dos indígenas” (2003:8).

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nas disputas simbólico-materiais intergeracionais – entre “os recém-chegados” e “os já-

chegados” – e intrageracionais – entre “os herdeiros” e “os jovens sem-futuro”

(1983:114), segundo as oposições criadas pelo autor. Essas “oposições” geracionais se

desdobram em muitas outras, entre elas cabem “figuras intermediárias” a depender da

perspectiva de onde forem investigadas. No entanto, por mais que fracionemos “as

juventudes” há uma posição comum no fato de ser jovem, que é atribuída socialmente,

mas também condicionada historicamente e criada no interior das relações entre o

jovem e o mundo adulto que o rodeia. Bourdieu lembra que “as classificações por idade

(mas, também por sexo ou, evidentemente, por classe) equivalem sempre a impor

limites e a produzir uma ordem à qual cada um se deve ater, na qual cada um deve

manter-se no seu lugar” (BOURDIEU, 1983:114). A cada geração os jovens encontram

limites e horizontes pré-estabelecidos, um mundo de permissões e proibições, de

oportunidades moduladas pelas condições históricas e sociais, construídas pelo mundo

adulto antes dele chegar. Cada sociedade constitui o jovem à sua semelhança e tenta lhe

impor um tipo social de acordo com sua época que não surge dele próprio, mas dos

encontros e desencontros da passagem das gerações.

Esse modo de ver a juventude está relacionado ao lugar simbólico-material

ambíguo que a juventude ocupa, ou pode ocupar, na sociedade, e são estabelecidos nas

disputas que ocorrem na sucessão das gerações em cada época. Pierre Bourdieu, por

exemplo, lembra que os velhos, muitas vezes, concedem aos jovens um lugar para que

possam reservar outros espaços como seus. A ideologia da virilidade, da liberdade, da

beleza, enfim, o “estado de juventude” se faz confundir com a irresponsabilidade, a

insensatez3 e reserva aos mais velhos “a experiência”, a sabedoria: o poder

(BOURDIEU, 1983: 112,133). Daí que irresponsabilidades e até mesmo certos “erros”

são esperados, mas tratados de formas diferentes: para os jovens estudantes de classe

média a juventude é um atenuante contra qualquer transgressão da ordem. Para os

jovens pobres – ou “nas ruas” - a juventude é um risco a ser controlado. O que gostaria

de enfatizar é que o lugar social ocupado pelos jovens seja das classes ricas, médias ou

3 A literatura nos dá bons exemplos das representações dos jovens no imaginário social. Em O Adolescente, de Dostoievski, o “jovem” é representado como a imagem da insensatez, da arrogância, da intempestividade. Mas, em meio a muitos erros e peripécias, a inquietude do “adolescente” é o que, ao remexer o passado, produz drásticas mudanças na história dos personagens.

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pobres são dadas pelo mundo adulto, sendo que a própria categoria juventude e suas

experiências são vividas nessa relação entre gerações.

Bourdieu (1983) entende que em alguns períodos as disputas e os desencontros

entre as gerações se intensificam, momentos em que as trajetórias de velhos e jovens se

sobrepõem e/ou se chocam, quando os jovens aspiram “demasiado cedo a sucessão”,

também quando as crises abalam sua segurança no futuro e os seus “horizontes de

expectativas” (KOSELLECK, 1979). Situações, enfim, que incidem sobre as aspirações

acirrando as disputas, as rupturas, os desencontros entre os “recém-chegados” e os “já

chegados”, modificando as relações e os laços sociais entre as gerações, como acredito

ser o caso de nossa história presente (BOURDIEU, 1983).

A ideia de ruptura, ou brecha geracional nessa tem também o sentido de uma

experiência de “descolamento” entre as gerações, inspirada no modelo geológico de

Koselleck (2014) de estratos ou camadas de temporalidades que convivem e se chocam.

Ela é também uma metáfora que retomo da linguagem utilizada dos anos 60: fosso,

brecha, ruptura e inversão geracional foi assim Margareth Mead (1980), Edgar Morin

(2000), Eric Hobsbawm (1999), se expressaram para explicar as revoltas dos anos 60

para além de uma rebeldia juvenil e um mal-estar, mas algo assim como um

descolamento que alterou a posição dos jovens, desencadeou uma crise de autoridade e

impactou as relações entre as gerações contemporâneas e que chega até os nossos dias.

Geração, Um Tipo-Ideal

Nessa pesquisa encaro o conceito de geração como um “tipo-ideal” weberiano

(WEBER, 2010) e procuro compreender as disputas, os conflitos e as oportunidades que

se criam no “encadeamento oriundo do cruzamento entre a transmissão da bagagem e a

abertura de novas possibilidades” que ocorre com a entrada de novos atores na cena

pública, o que Mannheim chamou de “contato original” (condição que também se

aplicava aos imigrantes) (1982:74). É o que faz da fase da juventude uma fase peculiar

em relação às outras – a infância, a maturidade e a velhice. Os jovens sofrem suas

principais transformações no momento de sua entrada no mundo adulto na cena pública

e, portanto, sua identidade está fortemente vinculada à história do seu tempo, ao mundo

onde ele adentra no momento de sua passagem da infância à juventude.

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É na juventude e não no período da infância que se vive as primeiras

experiências de “estar no mundo”, que se desenvolve uma percepção de se viver em

sociedade e quando os problemas da contemporaneidade começam a ser colocados “no

presente” (MANNHEIM, 1982:180). É quando pela primeira vez, sem a tutela dos pais

se experimenta sair desacompanhado, tomar suas próprias decisões, pequenas liberdades

que constituem uma nova experiência. É esse contato com o mundo que até então esteve

na esfera do privado que da origem a algumas de suas reflexões e questionamentos

sobre a ordem do mundo que os rodeia. As oportunidades e proibições, as crises e

tensões que eles vivem, modulam não apenas sua personalidade, mas a relação que o

jovem estabelece com o mundo político adulto, com o espaço público, as regras, as leis.

A “rebeldia” da juventude, assim, não procede de uma suposta essência, mas desse

“contato original” que ocorre nessa fase da vida, e não na infância, via de regra ainda

protegida pela ordem privada. Desse contato primário é que nasce a tendência à

contestação, aos conflitos com o mundo adulto que não são próprios dos jovens, senão

por essa “coincidência” de ser o momento de sua entrada no mundo. E por isso também

a juventude “esta mais próxima dos problemas atuais”, explica Mannheim, “enquanto

isso a geração mais velha se garra ao que foi o drama de sua juventude”, ou seja,

gerações contemporâneas – que envelhecem juntos – vivem os problemas de formas

diferentes (1982:82).

O comportamento de cada geração diz do seu lugar na história e o ponto de

aproximação, de contato entre elas estaria no tempo em que ocorre “o envelhecer

juntos” e a troca da herança acumulada, mas também quando surgem as perguntas

retroativas, que potencialmente podem dar origem às crises geracionais. É essa dialética

entre os que chegam e os que se vão no processo histórico, no fato de que “os

adversários internos e externos constantemente desaparecem e são substituídos por

outros”, que se imprime a dinâmica histórica, segundo Mannheim (1982:81). A busca

por tipos-ideais, um esforço de encontrar as singularidades de uma geração fracassa

como conceito se for considerado de forma isolada da geração que a antecede, da

herança recebida, ou rejeitada, das oportunidades e limites onde as gerações estão

situadas histórica e socialmente, como é o caso dos perfis elaborados pelas agências de

marketing – geração X, Y, Z. Essas versões, de grande apelo entre o senso-comum,

segundo Motta e Weller, “são desenvolvidos a partir de uma perspectiva que contempla

uma determinada geração de forma isolada, como uma espécie de unidade desconectada

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de outras gerações e de seu tempo histórico”, numa “destituição de seu sentido teórico”

(2010: 175).

Entendo que, de um ponto de vista metodológico, só é possível falar de gerações

sociais concretas4 (MANNHEIM, 1993, RICOEUR, 1994) como um “tipo-ideal”, uma

construção simbólica que exige uma interpretação contextual e apresenta a realidade

exagerando traços, realçando sutilezas, caracterizando até fazer surgir “tipos”, por

inteiro e que se vale de toda espécie de material, de fontes de pesquisa e não unicamente

o testemunho dos jovens. O tipo ideal é uma apresentação possível e parcial que se

constrói enfatizando traços da realidade, produto de uma seleção pessoal, e, portanto,

arbitrária de elementos e características de um fenômeno, que estão isolados ou

próximos, mas presentes na realidade de modo objetivo, embora possam variar no

tempo e no espaço em seu conteúdo significativo (COHN, 2003). “Esses tipos

necessitam ser construídos no pensamento do pesquisador, existem no plano das ideias

sobre os fenômenos e não nos próprios fenômenos” (COHN, 2003:8). Para Weber, era

papel da historiografia [o que correspondia à função da etnografia para Levi-Strauss]

justamente o de “determinar, em cada caso particular, a proximidade ou afastamento

entre a realidade e o quadro ideal” (WEBER, 2003: 106) num esforço de construção e

reconstrução em busca do melhor ângulo, da melhor representação e caracterização,

mas que nunca se confunde com a realidade social, e por isso, não se constitui em

modelo ou referência para a ação, uma vez que não existem empiricamente em sua

pureza conceitual.

Nas palavras de Weber, “a finalidade da formação de conceitos de tipo ideal

consiste sempre em tomar rigorosamente consciência não do que é genérico, mas, muito

pelo contrario, do que é específico a fenômenos culturais” numa dada época. (WEBER,

2003:16, grifos meu). O maior desafio, portanto, ao se falar de juventude em termos de

uma “geração social”, é não anular as singularidades das existências concretas na

abstração da história, das instituições, dos conceitos e, no caso em tela, da própria noção

4 A noção de geração, embora criticada muitas vezes como generalizante, admite internamente

divisões, preservando sempre a relação entre as partes e o todo. Karl Mannheim, autor que melhor estudou “o problema das gerações” dividiu o conceito em “situação geracional”, da qual pertencem todos os indivíduos que nascem num determinado período de tempo; “posição geracional”, que são aqueles que reconhecem e se identificam no tempo; e “unidade de geração” ou “geração concreta”, grupos que se formam, e que melhor incorporam “o espírito de sua época”. Ver mais em Mannheim (1994).

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de geração. O tratamento de uma experiência geracional coletiva como aqui se pretende

tem por tarefa restituir aos jovens o sentido de suas histórias singulares, irredutíveis

umas às outras e as diferenças que as particularizam historicamente (ARIES, 2013:13-

14,19). A compreensão da contemporaneidade dos jovens só pode surgir desse

entrecruzamento entre a História, sua contemporânea, e suas existências cotidianas

singulares e plurais, e por isso cabe ser “sensível tanto ao particular quanto ao geral,

tanto às diferenças quanto às semelhanças” (ARIES, 2013:16). A “diversidade” dos

jovens, que muitas vezes se busca na fragmentação das classes, dos gêneros ou etnias na

intenção de encontrar “o jovem real”, por vezes cria um particular isolado da passagem

do tempo e de sua própria época. A noção de gerações, ao contrário, “é o lugar em que

dois tempos diferentes – o do curso da vida, e o da experiência histórica – são

sincronizados. O tempo biográfico e o tempo histórico fundem-se e transformam-se

criando desse modo uma geração social” (FEIXA e LECCARDI, 2010:191).

A compreensão de geração propõe, assim, o desafio que é o de pensar a relação

dos indivíduos com sua contemporaneidade, no caso os jovens, sujeitos contemporâneos

por definição5 (BENJAMIN, 1914; DI GIORGIO, 2009; MURICY, 1999). Trata-se de

tirar as consequências possíveis da afirmação já corriqueira entre os pesquisadores de

que ser jovem é uma experiência que varia de uma época para outra. Se isso é verdade

creio que seja possível falar de jovens na atualidade em termos de “gerações sociais”

construídas na relação com seu tempo, com a herança legada, as oportunidades e as

crises que enfrentamos nas últimas décadas.

No capítulo 1 início com uma leitura das manifestações de junho de 2013 no

Brasil, a partir de uma coleção de artigos, entrevistas de um grupo de acadêmicos e

jornalistas brasileiros que foram chamados a interpretar os eventos ou que escreveram

sobre eles nas colunas dos jornais, além de sites e blogs de grande circulação. Procuro

extrair do testemunho dos intelectuais a experiência das manifestações que foram

vividas e ao mesmo tempo elaboradas como “acontecimento” (NORA, 1979), ruptura,

emergência do novo pelas gerações mais velhas e em particular pelos intelectuais, sinais

do abalo causado pelas manifestações, um ponto exterior ao “acontecimento” para se

chegar a outras camadas de significados, conforme sugeriu Nora (1979). Minha hipótese

5 Segundo Benjamin, a identificação do jovem com o presente era a forma de autoconsciência mais habitual da juventude. Mas, o autor criticava essa vinculação dizendo que os jovens deveriam “envelhecer”, caso contrário, estariam “negando o tempo e o advento das futuras gerações” (MURICY, 1999:62).

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é que as chamadas Jornadas de Junho expuseram traços, sintomas dos conflitos atuais

entre gerações, projetando-se na superfície daqueles dias como insatisfação,

ressentimentos e também como o “novo” e desconhecido. Nas falas dos acadêmicos e

jornalistas, como veremos, é possível inferir as rupturas sentidas pelos “velhos”, efeito

de temporalidades diferentes, enteléquias6 de gerações que se chocaram no espaço

público naqueles dias: uma representada pelos intelectuais, jornalistas e as autoridades

públicas, e a outra composta pelos jovens, que apesar de toda diversidade se

manifestaram como uma geração7, indignada e ressentida com seus representantes e ao

mesmo tempo “empoderada” pelas novas tecnologias, pelos ganhos de escolaridades

nas últimas décadas8, uma juventude muito mais informada que seus pais (sem entrar no

mérito da qualidade da informação, que melhorou e piorou) e desejosa de participar nos

rumos da história do país. Optei por fazer esse registro da perspectiva dos intelectuais, a

geração mais velha (a qual estou mais próxima em termos de idade), porque me pareceu

ser esse o melhor ângulo para se perceber a informação que Junho “nos desejava trazer

inscrita na surpresa e na incongruência”, como diz Morin (2012), em resumo, procuro

registrar como foi vivenciado subjetivamente, o que entendo que tenha sido o principal

significado das manifestações: uma ruptura entre gerações contemporâneas, lideradas

pelos jovens.

6 A enteléquia de uma geração está relacionada ao "espírito do tempo" (Zeitgeist) de uma determinada época, sem que essa noção se reduza a uma única experiência geracional, uma vez que várias gerações interagem na configuração do "espírito do tempo". Karl Mannheim entende que a ideia de “enteléquia” inclui a de “não contemporaneidade do contemporâneo” chamando a atenção para a vivência de tempos interiores diferentes em um mesmo período cronológico. Reinhart Koselleck (2014) explora essa ideia no seu livro Estratos do Tempo – Estudos Sobre a História”. No Capítulo 2, retorno às reflexões de Koselleck sobre os vários “estratos do tempo” que convivem num tempo histórico. 7 A noção de geração, embora criticada muitas vezes como generalizante, admite internamente divisões, a fim de preservar a relação entre as partes e o todo. Karl Mannheim, autor que melhor estudou “o problema das gerações” dividiu o conceito em “situação geracional”, à qual pertencem todos os indivíduos que nascem num determinado período de tempo; “posição geracional”, na qual estão aqueles que reconhecem e se identificam no tempo; e “unidade de geração” ou “geração concreta”, grupos que se formam e que melhor incorporam “o espírito de sua época”. Em teoria, pensando com as categorias de Karl Mannheim (1994), os jovens que participaram das manifestações tinham uma mesma “posição geracional”. 8 De acordo com dados publicados pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) em outubro de 2013, o aumento de escolaridade foi uma das principais mudanças sociais no Brasil nas últimas duas décadas. Em 1992, a força de trabalho brasileira tinha média de 5,7 anos de estudo; duas décadas depois, a média subiu para 8,8 anos, em um crescimento de 54%. Ver em Duas décadas de desigualdade e pobreza no Brasil medidas pela Pnad/IBGE. Comunicados do IPEA, nº 159, 2013.

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No capítulo 2, retomo o contexto das experiências políticas dos jovens, e as

razões das manifestações para propor que experiência de um tempo singular e de

ruptura registrada na “surpresa” que foi sentida principalmente pelos velhos e vivida

pela juventude em junho de 2013, conforme desenvolvi no capítulo 1 não é pura

novidade. A hipótese é que os jovens que comandam as muitas manifestações que são

vistas nas ruas e nas redes digitais atualmente estão experimentando outro momento de

“revolta”, uma crise de autoridade que revela alguns sinais de permanências e

semelhanças, e diferenças com a ruptura dos anos 60, quando teve origem a maior

revolta juvenil da história, reencenada nos anos recentes. Sem, no entanto, que se

possam compreender essas experiências como uma mera repetição (CARDOSO, 2005),

e sim lastros das experiências políticas das gerações passadas que retornam para os

movimentos juvenis, onde muitas delas nasceram reatualizadas e reinterpretadas. A

maior parte dessas lutas – algumas frustradas, outras que caminharam lentamente –

estão agora sendo retomadas com força: o ambientalismo, o feminismo e as questões de

gênero, as lutas antirraciais, o problema da representação na política. Das continuidades

que se pode notar entre as revoltas da juventude dos anos 60, e a atual, isolei nesse

capítulo um aspecto que diferencia profundamente as duas épocas: a relação dos jovens

com suas famílias. No sentido oposto ao que ocorrera nos anos 60 e 70 quando os

jovens (e as mulheres) se insurgiram contra os valores que sustentavam o modelo de

família nuclear burguesa e ainda patriarcal, atualmente a juventude não tem na família,

propriamente na relação com os pais seus principais pontos de atritos. A ruptura entre as

gerações e o abalo mais uma vez da noção de autoridade tem um componente novo

atualmente que difere da ruptura que se abriu naquele período: sua indignação se volta

para a esfera pública e seu problema fundamental é o trato com os negócios públicos, a

sociabilidade e a moral coletiva. A ideia de família como comunidade de afeto e de

apoio é uma aspiração dos jovens atualmente como pude observar e como tem sido

fartamente diagnosticado por diversos institutos de pesquisa, e nesse sentido estamos

distante dos conflitos familiares que marcou a geração dos anos 60 e cunhou uma

“brecha cultural” entre pais e filhos que, segundo Eric Hobsbawn (1999), e também

Edgar Morin (2000) foi o “elemento desencadeante” do Maio de 68.

No Capítulo 3, proponho pensar as Jornadas de Junho de 2013 e seus

desdobramentos como explosão de um ressentimento social, a partir de algumas

características observadas nos acontecimentos e inspirada por autores que analisaram o

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tema: a indefinição dos seus propósitos, a insatisfação generalizada que atravessou

classes sociais, a violência, o desejo de justiça, as figuras dos chamados “provocadores

de ressentimento”. A seguir considero a relação entre democracia e ressentimento e

como ela pode ser utilizada para pensar as manifestações de junho a partir do papel da

juventude e o estado atual da política brasileira, que manifesta uma tensão na forma de

uma bipolarização. Essa bipolarização afeta também a juventude, com sua presença

marcante, senão definidora nos atuais conflitos nas redes, nas ruas e nos debates

ideológicos recentes na forma de dois tipos ideais: uma geração “neoconservadora” e

outra “naturalista”.

Essa pesquisa, que resultou numa reflexão teórica sobre o tema das gerações e

da ruptura geracional é fruto do meu convívio com um grupo de jovens ativistas das

causas ambientais que conheci em 2011. Foram esses jovens que me falaram pela

primeira vez na ideia de uma ruptura geracional, que é como eles sentiam a

irresponsabilidade das autoridades públicas aliadas das grandes corporações que nada,

ou quase nada, estão fazendo para garantir a sobrevivência das gerações presentes e

futuras. Estive com eles em diversos eventos, reuniões, festas, marchas, trocamos

emails, comentários e notícias no Facebook. Gravei entrevistas, anotações, fotos,

vídeos. Quando os conheci praticamente todos eles pertenciam a uma rede, REJUMA -

Rede de Juventude e Meio Ambiente - auto-gerida e cujo foco de interesse é “incidir” –

uma palavra que eles gostam de usar - nas políticas públicas de meio ambiente. Aos

poucos a rede foi diminuindo suas atividades, muitos jovens que eu havia conhecido se

retiraram dela. Ao mesmo tempo, com o evento das Jornadas de Junho, e na qual eles

participaram ativamente passei a vê-los sob o pano de fundo de sua geração e pude

compreender melhor a indignação e o ressentimento com as autoridades que eu já ouvia

e via em suas falas e atitudes. Por meio deles conheci dezenas de outros jovens, e

muitos outros “anônimos”, seus contemporâneos, jovens que estão nas redes sociais, nas

reportagens da imprensa escrita e eletrônica, nas pesquisas de opinião, nos debates

acadêmicos. Da troca de mensagens, do convívio, das leituras, das notícias, e dos

muitos estranhamentos que vieram ao longo da pesquisa optei por fazer uma abordagem

do ponto de vista das gerações, uma vez que havia uma distância de tempo mais que

cronológica entre eles e eu, como fui percebendo. “Eles vivem outra história” como

bem observou Michel Serres (2013). Desse encontro de gerações contemporâneas, mas

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que vivem temporalidades diferentes, dessa “discronia”, resultou minha leitura sobre os

jovens.

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Capítulo 1: Junho, o Maravilhoso

“Toda explicação que elimina a surpresa e a incongruência do acontecimento é uma interpretação que elimina a informação que ele desejava nos trazer”. Edgar Morin

Neste capítulo proponho uma leitura das manifestações de junho de 2013 no

Brasil, a partir de uma coleção de artigos, entrevistas de um grupo importante de

acadêmicos e jornalistas brasileiros que foram chamados a interpretar os eventos ou que

escreveram sobre eles nas colunas dos jornais, além de sites e blogs de grande

circulação. Procuro demonstrar que as manifestações daquele período foram

experimentadas e ao mesmo tempo elaboradas como “acontecimento” (NORA, 1979),

ruptura, emergência do novo pelas gerações mais velhas e em particular pelos

intelectuais.

Na retomada dos eventos, quase dois anos depois, foi possível perceber que as

“Jornadas de Junho”9 de 2013, iniciadas em São Paulo e que se espalharam por todo o

Brasil, surpreenderam em todos os aspectos. Não que não houvesse motivos, pelo

contrário, mas a perplexidade, a “novidade” e a falência das “categorias já conhecidas”

(SOARES, 2013) que se instalaram e reverberaram por dias nas falas dos intelectuais

nos meios de comunicação são um fio condutor do abalo causado pelas manifestações,

um ponto exterior ao “acontecimento” para se chegar a outras camadas de significados,

conforme sugeriu Nora (1979).

Minha hipótese é que as chamadas Jornadas de Junho expuseram traços,

sintomas dos conflitos atuais entre gerações, projetando-se na superfície daqueles dias

como insatisfação, ressentimentos e também como o “novo” e desconhecido. Da

desorientação, do desassombro, da impressão de falência de antigas categorias, da

confissão de impotência e do anúncio de um tempo “novo” (e indeterminado), e de

9 O nome “Jornadas de Junho” parece ter sido criado por Lincoln Secco, segundo consta no seu artigo “As Jornadas de Junho” publicado na coletânea de artigos MARICATO E. ET. AL (org). “Cidades Rebeldes – Passe Livre e as Manifestações Que Tomaram as Ruas do Brasil”. São Paulo: Boitempo: Editorial/Carta Maior, 2013. Maria Amélia Gonh (2014) observa que essas manifestações deram origem a muitos nomes: atos, onda, protesto de massa, mobilizações revoltas, etc., sendo que a mídia, em particular, utilizou o termo “Manifestações de Junho” que acabar por ser adotada, uma expressão genérica, sem “identidade” que denota a dificuldade de compreender, e nomear o acontecimento naquele momento.

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“novíssimos”10 sujeitos nas falas dos acadêmicos e jornalistas, como veremos, é

possível inferir as rupturas sentidas pelos “velhos”, efeito de temporalidades diferentes,

enteléquias11 de gerações que se chocaram no espaço público naqueles dias: uma

representada pelos intelectuais, jornalistas e as autoridades públicas, e a outra composta

pelos jovens, que apesar de toda diversidade se manifestaram como uma geração12,

indignada e ressentida com seus representantes e ao mesmo tempo “empoderada” pelas

novas tecnologias, pelos ganhos de escolaridades nas últimas décadas13, uma juventude

muito mais informada que seus pais (sem entrar no mérito da qualidade da informação,

que melhorou e piorou) e desejosa de participar nos rumos da história do país.

Cabe esclarecer que ainda que sejam utilizadas fontes da imprensa escrita e

eletrônica, não é a “construção” dos acontecimentos pelos meios de comunicação meu

objetivo - eles mesmos confusos em meio às turbulências, agindo de forma antes

“tática” do que “estratégica”, como explicou Certeau (1990)14. A proposta desse

10 O sentido de “novíssimos” se refere às muitas perguntas que se fizeram em relação aos manifestantes: “quem são eles?”; “o que eles querem?”, indagações que se repetiram como cito neste texto e indicam as dificuldades dos jornalistas e intelectuais em compreender quem eram os participantes das manifestações no momento de sua eclosão. Mas, alguns intelectuais também usaram a denominação “novíssimos” movimentos sociais, como Rolnik (2013). 11 A enteléquia de uma geração está relacionada ao "espírito do tempo" (Zeitgeist) de uma determinada época, sem que essa noção se reduza a uma única experiência geracional, uma vez que várias gerações interagem na configuração do "espírito do tempo". Karl Mannheim entende que a ideia de “enteléquia” inclui a de “não contemporaneidade do contemporâneo” chamando a atenção para a vivência de tempos interiores diferentes em um mesmo período cronológico. Reinhart Koselleck (2014) explora essa ideia no seu livro Estratos do Tempo – Estudos Sobre a História”. No Capítulo 2, retorno às reflexões de Koselleck sobre os vários “estratos do tempo” que convivem num tempo histórico. 12 A noção de geração, embora criticada muitas vezes como generalizante, admite internamente divisões, a fim de preservar a relação entre as partes e o todo. Karl Mannheim, autor que melhor estudou “o problema das gerações” dividiu o conceito em “situação geracional”, à qual pertencem todos os indivíduos que nascem num determinado período de tempo; “posição geracional”, na qual estão aqueles que reconhecem e se identificam no tempo; e “unidade de geração” ou “geração concreta”, grupos que se formam e que melhor incorporam “o espírito de sua época”. Em teoria, pensando com as categorias de Karl Mannheim (1994), os jovens que participaram das manifestações tinham uma mesma “posição geracional”. 13 De acordo com dados publicados pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) em outubro de 2013, o aumento de escolaridade foi uma das principais mudanças sociais no Brasil nas últimas duas décadas. Em 1992, a força de trabalho brasileira tinha média de 5,7 anos de estudo; duas décadas depois, a média subiu para 8,8 anos, em um crescimento de 54%. Ver em Duas décadas de desigualdade e pobreza no Brasil medidas pela Pnad/IBGE. Comunicados do IPEA, nº 159, 2013. 14 Nas palavras do autor, as táticas “desviacionistas”, “são possibilidades oferecidas pelas circunstâncias”, “e não obedecem à lei do lugar”. Ao contrário, das “estratégias”, que são “tecnocráticas” e que “visam criar lugar segundo modelos abstratos. O que distingue estas daqueles são os tipos operações nesses espaços que as estratégias são capazes de produzir,

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capítulo, e por isso me utilizo de uma variedade de falas e fontes de jornalistas da

imprensa corporativa, de artigos de acadêmicos, entrevistas, debates é o registro de uma

“experiência temporal” de uma geração (KOSELLECK, 2014). Procuro, para falar com

a sociologia, o “fato social” em pequenos registros, às vezes fragmentos de falas,

metáforas, expressões que são como sinais ou rastros de uma temporalidade que parecia

ter sofrido um “rasgão”, como afirma Nora, sendo provavelmente essa, como diz Morin,

a “informação que ele desejava nos trazer” (MORIN, 1968, Apud. RIBEIRO, 2014:94)

Minha preocupação nesse capítulo é “o ato do registro como procedimento

primário”, como explica Koselleck (2014). Através da narração ou da redação constitui-

se uma história, sempre sob influência das experiências imediatas dos historiadores, tal

como uma “crônica da atualidade” (2014:40). Optei por fazer esse registro da

perspectiva dos intelectuais, a geração mais velha (a qual estou mais próxima em termos

de idade), porque me pareceu ser esse o melhor ângulo para se perceber a informação

que Junho nos desejava trazer inscrita na surpresa e na incongruência, como diz Morin,

em resumo, procuro registrar como vivenciamos, subjetivamente, o que entendo que

tenha sido o principal significado das manifestações: uma “brecha” entre gerações

contemporâneas, lideradas pelos jovens.

As manifestações de junho foram um “acontecimento em estado puro”, escreveu

Janine Ribeiro (2013), “não se sabia do seu antes nem do seu depois”. Do

“esvaziamento da política”15 que amargamos nas últimas décadas, do individualismo, e

da indiferença em relação aos problemas coletivos, da “despolitização” dos jovens16, da

ausência do espaço público, parecia que havíamos saltado em pouco dias para uma

vontade de fazer política, de ocupar a cidade, de valer os direitos já existentes e de

inventar outros novos. Impactado com os dias turbulentos de junho no Brasil, Pelbart

(2013) escreveu que “a imaginação se destravou e produziu um corte no tempo

mapear e impor, ao passo que as táticas só podem utilizá-los, manipular e alterar”. (grifos do autor) (1990:92) 15 Em 2006, foi organizada pelo escritor e jornalista Adauto Novaes uma série de conferências com o tema "O esquecimento da política, cultura e pensamento em tempos de incerteza". A série de conferências foi publicada com o título "O silêncio dos intelectuais". Ver NOVAES, 2006. 16

O sentido de “despolitização” é o do senso comum, e da imprensa e de parte da academia. Desde os anos 90 diversos autores vêm mostrando o surgimento de movimentos juvenis organizados nas periferias, de novas práticas do fazer político. Ver BORELLI, 2010; BORELLY e FREIRE FILHO, 2008; REGUILLO, 2003.

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político”. “Junho”, em muitos aspectos e para muitos intelectuais foi a “primeira vez”,

como disse Roberto Romano (2013)17.

“O que está acontecendo?”18. O que vemos nas ruas?19 Quem são eles? O que

eles querem? Por que agora? Qual o significado dessas manifestações? Qual é a sua

potência? E o seu devir? As perguntas que se foram feitas, a impressão de anacronismo

que tomou conta da imprensa e dos intelectuais “num raro e único momento de

perplexidade confessa”, como observou Paulo Arantes (2013); as metáforas, as

hipérboles utilizadas são sinais importantes do solavanco que se sentiu naqueles dias.

“Raio” (Oliveiros Ferreira, 2013), “terremoto” (Raquel Rolnik, 2013), “vulcão”

(Gilberto Maringoni, 2013), “pororoca jovem” (Marcel Neri, 2013), “abalo sísmico”

(André Singer, 2013), “primavera brasileira” (Carlos Eduardo Martins, 2013) foram

algumas das dezenas de figuras de linguagem que utilizaram os analistas num esforço

de representar, nomear, dominar o acontecimento das manifestações. Ao não se

reconhecerem, os intelectuais viram nelas um “divisor de águas”, um “recorte no

tempo”, o “fim de uma época”, como se naquele momento a história mesma se

incumbisse de criar seus marcos cronológicos, bastava nomeá-los.

Entusiasmo? Otimismo? Otimismo e até euforia no momento da eclosão, da

“festa”20 (NORA, 1979), e pessimismo com seu desdobramento quando o que era

“velho” também ressurgiu – a violência das ruas, as manobras discursivas da imprensa,

a rejeição aos partidos etc. – abundaram em muitas das análises, a depender da linha

interpretativa, do dia e do lugar de onde se observava. No entanto, o que prevaleceu,

17 Essas falas dos intelectuais foram colhidas no calor dos acontecimentos e interessam no sentido de documentar as manifestações como uma “experiência singular” que se manifesta por meio da “surpresa”, segundo Koselleck (2015). Ver mais acerca da interpretação que Koselleck atribui à “à surpresa” na experiência do tempo na história no Capítulo 2. A citação completa de Roberto Romano é: “o que me chama a atenção é que, pela primeira vez, desde o final da ditadura vejo populares na rua cobrando dos poderes estabelecidos, sobretudo do Executivo e do Legislativo, um maior respeito pelo bem público. É a primeira vez que vejo uma movimentação tão grande de massa sem uma direção direta de partidos políticos ou da igreja” (grifo meu). Citado em “O que dizem as ruas”. Jornal da UNICAMP. http://www.unicamp.br/unicamp/ju/567/o-que-vemos-nas-ruas? 18 Título da Mesa-Redonda realizada no Instituto de Estudos Avançados da USP, em 21/06, com a presença de doze professores da universidade. Acesso em: http://www.iea.usp.br/eventos/eventos-gerais/o-que-esta-acontecendo 19 Título de uma publicação de edição do Jornal da UNICAMP que colheu a opinião de dez intelectuais na Universidade, da USP e da PUC-RJ. Ver em: http://www.unicamp.br/unicamp/ju/567/o-que-vemos-nas-ruas 20

O autor chama de “festa que a sociedade dá a si própria através do grande acontecimento” o momento de sua eclosão. (NORA, 1979, p.184).

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para além das identificações ideológicas e das linhas de pesquisa, foi o sentido de

ruptura e de inauguração de um “tempo novo”, ou de “fim de uma era”, impressão que

tomou conta dos comentaristas da imprensa e dos blogs, com raras exceções21. Estava

em curso a construção de um “acontecimento histórico”, na forma como o definiu Pierre

Nora (1979), feito de estranhamentos, de alteridades e de desorientação.

O que causou espanto e quais noções e categorias faliram, colocando os analistas

“na idade da pedra”, como considerou Werneck Vianna (2013)? Das muitas dúvidas e

indagações que surgiram das manifestações, trato ao final do texto de três, as que

causaram maior estranhamento e pegaram de supetão os intelectuais brasileiros. 1. Por

que agora? 2. Qual a razão da velocidade e da “monstruosidade” dos eventos? 3. O que

eles querem, afinal?

A narrativa da reconstrução das manifestações de junho se apoia em minhas

próprias observações e participação22, na leitura crítica de artigos de jornalistas da

grande imprensa, de blogueiros, e em particular na leitura de alguns acadêmicos

brasileiros, os “intelectuais públicos”, considerando sua importante função mediadora

da opinião de massa e sua participação no debate público. Escrito num espaço temporal

de aproximadamente23 dois anos de distância dos eventos, este texto se baseia nos

arquivos que foram sendo colhidos e sistematizados em diferentes mídias, escritas e

eletrônicas; em coletâneas de artigos e livros publicados nesse período, ainda no calor

21 Uma das raras vozes de pessimismo foi Wanderley Guilherme dos Santos (2013) que chamou as manifestações que ocorriam naquele momento de “anomia niilista”. Santos escreveu pouco mais de um mês após o início das manifestações, quando a violência, na guerra que se instalou entre a polícia e os manifestantes, espantou das ruas os “homens de boa vontade”, segundo o autor. “Rápido, bem-sucedido golpe de mão, juntando acaso e virtude, sequestrou a alma das ruas e infestou a evidente anomia com a inclinação niilista que a marcou desde então. Todas as palavras de ordem têm sido, a partir daí, pretexto para a desmoralização das instituições democráticas, assembleias, organizações sindicais, associações voluntárias específicas, partidos políticos, em nome de um alegado vanguardismo civilizatório. (...) Assustados, os líderes institucionais do Brasil têm tomado a aparência pela verdade e multiplicado a tradução do que lhes parecem comunicar as vozes das ruas. Não existem, contudo, vozes das ruas, apenas alaridos”. Também Maria Conceição Tavares (2013), num texto em que chamou os manifestantes de “jovens de merda”, “A anomia niilista das manifestações”, publicado em O Valor em 27/07/2013. 22 A questão do lugar da subjetividade do pesquisador numa investigação científica já foi exaustivamente considerada. Da perspectiva da história do presente, a subjetividade da narrativa não é vista como problema, mas parte integrante da pesquisa, o que a aproxima do jornalismo pela proximidade dos acontecimentos. O que faz a diferença fundamental entre o historiador do presente e o jornalista é a “diferença dos níveis de escuta”; o jornalista tem a desvantagem de estar por demais próximo à “grande feira dos rumores”, do i-mediato. Ver Lacounture, J., 1995. 23 Esse texto começou a ser escrito em novembro de 2014 e foi finalizado no final de 2015.

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dos acontecimentos; e em pesquisas de opinião realizadas por IBOPE, DataFolha e

alguns grupos independentes de jovens.

A compreensão das Jornadas de Junho como um “acontecimento histórico” se

baseia nas observações de Pierre Nora (1979) em O Retorno do Fato; nas considerações

sobre o tempo de Reinhart Koselleck (1979) em O Futuro do Passado – Contribuição à

Semântica dos Tempos Históricos e Estratos do Tempo – Estudo Sobre a História

(2014); e nas reflexões de Eric Hobsbawm (1995) em O Presente Como História:

Escrever a História do Seu Próprio Tempo.

No próximo item faço uma reconstrução dos eventos, da ótica e do registro das

razões do “susto”24 causado pelas manifestações: seu volume e dimensão, sua

diversidade de pauta, a presença massiva de jovens, a velocidade com que cresceu e se

instalou, as vitórias alcançadas, a “virada discursiva” da imprensa, e por fim o

afastamento dos jovens e a tomada das manifestações pelos grupos institucionalizados,

e as gerações mais velhas o que fez mudar os significados iniciais das manifestações,

dando origem a uma bipolarização social com consequências duradouras25. Tomei como

recorte cronológico o período de uma semana após o início, no dia 17 de junho (2013),

propriamente o momento de sua eclosão, procurando preservar na leitura das fontes o

calor dos acontecimentos.

1.1. O Inatual

“Sejamos francos, companheiros: ninguém

tá entendendo nada”. Antonio Prata 26

Uma piada que circulava pelas ruas ironizava e dava conta do inusitado que

tomou conta dos ânimos paulistanos naqueles dias das Manifestações de Junho de 2013.

24 Marilena Chaui declarou em entrevista à Revista Cult ter levado “um susto com as manifestações”. Revista Cult, nº182, julho de 2013. 25 O problema da “bipolarização” será desenvolvido no Capítulo 3, “A Juventude Entre o Ressentimento e a Utopia”. 26 Frase de Antonio Prata, em sua coluna na Folha de São Paulo, no dia 19/06, que se tornou uma espécie de bordão entre os analistas para demarcar a perplexidade que os acometia. Perguntado sobre o estranhamento que tomou conta de jornalistas e intelectuais, Paulo Arantes relatou em entrevista que naquele dia havia lido nos jornais três analistas relatarem a mesma impressão.

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Num ônibus lotado caminhando lentamente por uma avenida central da cidade,

uma mulher espirrou. Sua companheira de banco lhe desejou: - Saúde! Um

homem, em pé que se debruçava sobre ela, no calor da excitação que parecia

tragar a todos, gritou: Educação! O motorista, já entendendo como o princípio

de uma manifestação ali mesmo, reivindicou: Segurança! E todos, emocionados,

cantaram o Hino Nacional...27

A indignação aparentemente contida e disciplinada nessa hipotética cena do

ônibus contrastava com os ânimos exaltados dos paulistanos ocupando ruas e avenidas,

atitude que simbolicamente sempre esteve associada ao momento quando explode a

indignação e se parte para o enfrentamento com as autoridades. No caso particular das

manifestações na cidade de São Paulo, a tomada do espaço urbano era duplamente um

ato simbólico, já que a questão principal – transitar pelas ruas e avenidas da cidade – foi

o que fez romper o dique da paciência que é preciso ter cotidianamente para se deslocar

de um lugar ao outro. De acordo com dados da pesquisa sobre mobilidade urbana do

IBOPE Inteligência (2015), 48% dos paulistanos gastam 2 horas e 38 minutos diários

adicionais nas idas e vindas ao trabalho.

Os acontecimentos de junho, como se sabe, tiveram origem numa pauta

específica, o aumento de 20 centavos na passagem de ônibus decretado conjuntamente

pela prefeitura e o governo estadual no dia 02, e foram inicialmente organizados por um

grupo específico, o Movimento Passe Livre (MPL), grupo de jovens “autonomistas” que

atuam desde 2004 em muitas capitais do país sob a bandeira da redução de aumentos e

da gratuidade das tarifas (JUDENSNAIDER ET. AL, 2013). A última série de

manifestações organizadas pelo MPL na cidade de São Paulo havia ocorrido em 2011,

na gestão de Gilberto Kassab, com dois meses de mobilizações de ruas, mas sem

sucesso28. Revendo os erros de 2011, o grupo tinha dessa vez como estratégia fazer

mobilizações maiores e em curto espaço de tempo, para “sufocar” o poder público

27 Narrativa de minha autoria, imaginada a partir de uma piada contada por um amigo. 28 De acordo com JUDENSNAIDER ET. AL (2013), quando acontecera o último aumento em 2011, a estratégia adotada pelo MPL “tinha sido a de realizar grandes manifestações semanais para bloquear importantes avenidas da cidade”. A campanha de 2011 havia durado dois meses, sendo eficaz ao recolocar o tema em pauta para a população, inclusive durante as eleições para prefeito em 2012, mas não foi capaz de fazer o poder público revogar o aumento. “A avaliação do movimento foi a de que faltara mobilização, os intervalos entre os atos haviam sido grandes demais e nem sempre as vias mais importantes foram interditadas. Incorporado o aprendizado de 2011, a estratégia em 2013 era de realizar atos grandes e de maior impacto, em vias mais centrais, e com curto intervalo de tempo para asfixiar o poder público (...)”. (2013: 25.26)

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(JUDENSNAIDER ET. AL, 2013). A promessa do grupo era: “se a tarifa não baixar,

São Paulo vai parar”.

As manifestações do MPL começaram relativamente tímidas, dadas como

“revolta de estudantes”, coisa de um “grupelho de jovens predispostos à violência por

uma ideologia pseudorrevolucionária”, e que reclamavam da “suposta brutalidade da

polícia”, segundo o editorial da Folha de São Paulo, “Retomar a Paulista” do dia 13 de

junho, dia do ataque da Polícia Militar contra os manifestantes, considerado o estopim

da grande indignação29. Incentivados pelo clamor da imprensa de que “era a hora de pôr

um ponto final nisso”, exigindo que se usasse “a força da lei”, as autoridades públicas se

recusaram a atender as reivindicações e responderam às ruas com a tropa de choque30.

Nesse mesmo dia 13, no 3º ato que reuniu 20 mil jovens, segundo o Movimento Passe

Livre (MPL), uma brutal repressão policial caiu sobre os manifestantes, atingindo

inclusive jornalistas. Maria da Gloria Gohn observou que essas atitudes “revelavam um

desconhecimento dos atos [e dos ânimos] que estavam se articulando” e que forçaram

tanto as autoridades quanto a imprensa a mudar de direção nos dias seguintes (2014:22).

Aquele erro tático das autoridades e da imprensa serviu como “a faísca que provocou

incêndio na pradaria”, frase de Mao Tse Tung, lembrada pelos intelectuais naqueles

dias. Fabio Malini observou em suas análises gráficas acerca das movimentações nas

redes sociais que a indignação com os atos da Polícia Militar foi o “estopim” das

manifestações31. Por intermédio do Facebook e do Twitter à semelhança do que ocorria

em outros países, espalhou-se um descontentamento que iria muito além de suas causas

iniciais, o problema do transporte.

No 4º ato, em 17 de junho, convocado ainda pelo MPL em São Paulo, centenas

de milhares foram às ruas também em várias capitais. Em São Paulo, a concentração

começou no Largo da Batata, reunindo 65 mil pessoas, e de lá, ganhando adeptos, os

manifestantes se espalharam pela cidade e foram despejar sua indignação no Palácio dos

Bandeirantes, sede do governo estadual; no dia seguinte foi a vez da Prefeitura. O que

29 Ver em: http://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2013/06/1294185-editorial-retomar-a-paulista.shtml 30 No dia 06 de junho Fernando Haddad afirmou que apesar dos protestos não recuaria do aumento das passagens. Ver em: www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/brasil/2013/06/13/interna_brasil,371330/haddad-valor-da-arifas-de-onibus-de-sp-sera-mantido-apesar-dos-protestos.shtml; 31Ver em http://pt.slideshare.net/fabiomalini/dados-da-indignao-protestos-de-2013-redes-sociais-e-copa-do-mundo

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era inicialmente uma manifestação política localizada e com pauta objetiva despertou

uma indignação que aparentemente ninguém foi capaz de prever (algo semelhante, em

termos de imprevisibilidade, ocorreu na Turquia no dia 06 de junho, com a eclosão de

uma revolta “monstruosa” contra o governo a partir da rejeição da população, dos mais

diversos extratos sociais, à construção de um shopping numa praça)32.

A novidade do acontecimento que fazia a “festa”33 dos manifestantes e também

de jornalistas e intelectuais era, ao contrário, um pesadelo enfrentado pelas autoridades

públicas pela dificuldade em “reconhecer” os manifestantes e conter, dialogar, negociar

com um problema para o qual, convenhamos, não havia antecedentes: um movimento

massivo e espontâneo, o que não era propriamente uma novidade, embora nunca

naquela magnitude, sem instituições organizadoras, interclasses, interétnicos,

intergeracionais que se fragmentava, espalhando-se pelo país todo34. “A inexistência de

lideranças é considerada o pior pesadelo para a polícia porque não há alvos [sic] claros”,

explicavam os jornais35. O Prefeito Haddad repetiu a mesma dificuldade: “não vejo

coordenação nesse movimento. Eles próprios dizem: eles não se coordenam, não há

lideranças, não há responsáveis. Ninguém se apresenta como responsável pelo que está

acontecendo”36. Sem ser capaz de identificar “quem estava por trás” e de onde vinha a

organização do movimento, a polícia passou a escolher supostos “lideres” entre a

multidão, ativistas que portavam instrumentos de proteção, como o “vinagre”37. A

defesa dos acusados e agredidos pela Polícia Militar nas redes sociais com publicações

32 http://www.ihu.unisinos.br/noticias/520760-protestos-na-turquia-qa-praca-taksim-e-nossaq 33 O sentido de “festa que a sociedade da a si mesmo”, como escreveu Pierre Nora (1979), o momento em que a multidão se libera do medo e da repressão não exclui o próprio fato da repressão, como ocorreu em São Paulo. 34 Jesús Martín-Barbero, em 2012, considerou que se quisermos compreender o que há de “novo” entre os jovens é necessário buscar outras categorias “sin mixtificar tramposamente la diversidad social de la juventud en clases, razas, etnias, regiones”. A solução, segundo o autor, é “aceptar la posibilidad de fenómenos trans-clasistas y trans-nacionales” (2012:7). 35http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2013/06/1295714-servico-secreto-da-pm-diz-que-psol-recruta-punks-para-protestos.shtml 36 http://www.ebc.com.br/noticias/brasil/2013/06/haddad-diz-que-valor-da-passagem-de-onibus-de-sao-paulo-sera-mantido-apesar 37 No dia 22 os jovens chegaram a convocar, juntamente com as manifestações, a “Marcha do Vinagre”, em protesto à prisão de manifestantes e de um jornalista da Carta Capital que portava vinagre. Segundo reportagem do Estadão no dia 13 de junho, “o jornalista da Carta Capital Piero Locatelli, detido pela PM, vai ser liberado do 78º DP (Jardins). Segundo a secretaria, ele foi preso porque estava com vinagre na bolsa – o produto seria usado para neutralizar o efeito de bombas de gás lacrimogêneo”. http://blogs.estadao.com.br/estadao-urgente/manifestantes-fazem-quarto-protesto-por-reducao-da-tarifa-de-onibus/

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autorais e também nas ruas em apoio aos Black Blocs38, alimentou nos primeiros dias a

identificação da multidão entre si. Nas ruas e nas redes às reivindicações iniciais se

uniram a raiva, a indignação e o enfrentamento à Polícia Militar, que fizeram convergir

a periferia e o centro, o “precariado”39 e os jovens de classe média, jornalistas e

ativistas, igualmente agredidos. O que era para ser uma manifestação com pauta

específica, como estratégia do MPL, trouxe à tona involuntariamente aquilo que estava

represado: “não é só por R$ 0,20”, a dívida era muitíssimo maior.

A rendição inesperada e unida do governador e prefeito de São Paulo com o

recuo do aumento do preço das passagens no dia 19 (naquela semana prefeitos de várias

capitais do país fizeram o mesmo) já era tarde demais. Mesmo com a vitória alcançada,

os manifestantes em São Paulo não saíram das ruas nos dias seguintes e então o país

quase inteiro tinha sido arrastado a uma revolta popular de enormes proporções, que se

espalhou por mais de 353 cidades, mobilizando mais de 1 milhão de pessoas em um só

dia, 20 de junho, segundo o portal UOL40.

A essa altura as palavras de ordem a favor da melhoria dos serviços públicos,

contra a corrupção e as obras da Copa do Mundo – os manifestantes questionavam os

gastos públicos e pediam educação e saúde “padrão FIFA”, referindo-se ao luxo dos

estádios – já encobriam a pauta inicial dos transportes, o que fez com que o MPL

38 Segundo Raquel Solano, os Black Blocs são jovens na faixa etária entre 17 e 25 anos, de classe média baixa, a maioria trabalhadores, alguns formados ou se formando em universidades particulares, mas há também alunos da USP. “Alguns acumulam leituras teóricas sobre anarquismo. A maioria deles consegue formular, refletir e dialogar fluidamente sobre a precariedade do Estado e da situação atual do Brasil. Pensam-se como sujeitos políticos com uma mensagem de melhoria do país. Todavia, eles não formam uma organização homogênea. Já presenciamos discussões, durante as manifestações, entre aqueles que são a favor de uma violência mais focada, estritamente simbólica, e aqueles que defendem uma ação mais pesada. Notamos divergências entre aqueles que são contra agredir policiais porque, na sua reflexão, o inimigo central é o Estado, e aqueles de cujas falas destila-se uma raiva profunda contra a corporação policial. Uma frase que explica isso foi dita uma vez por um jovem para quem "nem todo o mundo pensa igual embora se vista igual" (2013). 39 O conceito de “precariado”, na acepção de Ruy Braga se refere à fração mais mal paga e explorada do proletariado urbano e dos trabalhadores agrícolas. Segundo o autor, o precariado é formado trabalhadores flutuantes, jovens e trabalhadores não industriais à espera de uma oportunidade para estabelecer-se na indústria, e estagnada, composta por trabalhadores que ocupam funções deterioradas e mal pagas, como é o caso dos atendentes de Call Centers. Ver em BRAGA, R. (2012). A política do precariado: do populismo à hegemonia lulista. São Paulo: Boitempo, 2012. 40

Ver em http://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2013/06/20/em-dia-de-maior-mobilizacao-protestos-levam-centenas-de-milhares-as-ruas-no-brasil.htm. Idem para http://www.estadao.com.br/infograficos/manifestacoes-levam-mais-de-1-milhao-de-pessoas-as-ruas-e-abrem-debate,politica,196181

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recuasse em convocar novas manifestações, que cada vez mais fragmentadas e (des)

organizadas pelas redes sociais produziam maior perplexidade a cada dia que passava.

A pauta se estendia e a quantidade de manifestantes também. No dia 20, o jornalista

Luís Nassif registrou em seu blog: “na última manifestação os jovens não estavam mais

sozinhos. Muitos pais, profissionais liberais, funcionários públicos, trabalhadores,

pessoas há décadas enferrujadas das manifestações de rua, aderiram ao movimento”

(2013). O que se sabia e se repetia, no entanto, era, como explicou Rolnik, ainda no

calor dos acontecimentos41:

[...] se partirmos dos “fatos” e do que é mais evidente o que há em comum entre

as manifestações que eclodem nesse momento teremos: trata-se de uma revolta

contra o sistema político; protestos majoritariamente compostos por jovens;

convocados por meio das redes sociais; e sem a presença de partidos, sindicatos

e organizações de massa tradicional (2013:11).

Diferentemente, no entanto, de outras manifestações políticas do passado - as

Diretas Já, o impeachment do Presidente Fernando Collor, a Passeata dos Cem Mil, a

Marcha da Família nos anos 60 – em que havia razões objetivas ou um fato acontecido

(Gohn, 2014), as manifestações de junho no Brasil tinham não um, mas dezenas de

motivos. As pautas que os manifestantes contestavam nas ruas iam do aumento da

passagem à corrupção, das obras da Copa do Mundo à qualidade nos serviços públicos.

Não era uma manifestação como as anteriores, era uma explosão, uma catarse massiva

que misturava classes sociais, ideologias e gerações, o que a tornava bastante diferente

de qualquer manifestação anterior, como descreveu Marcelo Ridenti42:

De modo inesperado, tomaram as ruas os netos da Marcha da Família com Deus

pela Liberdade de 1964 e da Passeata dos Cem Mil de 1968. Os filhos dos que

apoiaram a eleição de Collor em 1989 e dos que se manifestaram por seu

impeachment em 1992. Todos contraditoriamente juntos” [e com] “sinais

ideológicos misturados”.

41 Os “fatos” a que a autora se refere não eram uma novidade em termos de observação e foram registrados por diversos autores no Brasil e nas várias partes do mundo onde manifestações ocorreram. Ver, por exemplo em: AGUILERA, O. (2014); CAVA, B. (2014); FEIXA, C. e NOFRE, J (2013); RICCI, R. E ARLEY, P. (2014). 42 Que juventude é essa? FSP, 23/06/2013. http://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2013/06/1299690-marcelo-ridenti-que-juventude-e-essa.shtml

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Pensando com as velhas categorias conhecidas, porém, não se podiam definir

seus agentes, nem se aquele era um movimento de esquerda ou direita, progressista ou

conservador, de classe média ou da periferia. Escrevendo cinco meses depois, André

Singer lembrou que “em certo momento, os protestos adquiriram tal dimensão e energia

que ficou claro estar ocorrendo algo nas entranhas da sociedade, algo que podia sair do

controle. Mas nunca restou nítido o que estava acontecendo” (2013:25).

A correia de transmissão posta em movimento a partir de São Paulo chegou à

Brasília também no dia 20 e ali teve seu momento épico, de maior significado com a

invasão do Congresso, à noite. As imagens fantasmagóricas dos jovens na “Cúpula”

percorreram o país e moveram a classe política. Foto semelhante à mostrada abaixo

foram destaque em diversos jornais pelo pais43

(Foto: Mídia NINJA) Congresso Nacional ocupado por manifestantes em 17 de junho de 2013

Dezenas de prefeitos em várias capitais recuaram do aumento das passagens

sobre a pressão dos grupos locais; no Congresso leis que tramitavam há anos foram

aprovadas de afogadilho. No dia 24, a presidente Dilma Roussef falou em rede nacional

e anunciou um pacto político em “favor do Brasil”, propondo realizar um plebiscito para

consultar a população acerca da criação de uma constituinte exclusiva para se fazer uma

reforma política44; criar novas leis contra a corrupção; estabelecer pacto em favor de

uma responsabilidade fiscal; acelerar investimentos em saúde e contratar médicos

estrangeiros para hospitais; ampliar a desoneração de impostos no setor de transportes;

43 http://g1.globo.com/distrito-federal/noticia/2013/06/manifestantes-invadem-cobertura-do-congresso-nacional.html 44 Dilma Roussef voltou atrás no dia seguinte quanto à criação de uma constituinte exclusiva, mas manteve a proposta do plebiscito, que não saiu do papel até os dias de hoje.

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definir 100% dos royalties do pré-sal para a educação45. Na mesma noite, a Câmara

derrubou a PEC 37 – uma reivindicação das ruas – que limitava o poder de investigação

do Ministério Público; aprovou a aplicação de recursos dos royalties do petróleo, 75%

para educação – uma preocupação predominante entre jovens como aparecem nas

pesquisas, ao lado do emprego46 – e 25% para a saúde. Em resumo, impactada pela

dimensão dos fatos, em poucos dias a classe política moveu-se, acusando o golpe. “Foi

a mais espetacular vitória alcançada por um movimento de massa”, disse Paulo Arantes

(2013).

Outro acontecimento inesperado: aquela foi também a semana da “virada

discursiva” da imprensa corporativa – quando a Folha de São Paulo47, a Rede Record48,

a Rede Globo49 e a revista Veja50 inverteram a linha editorial adotada até então, que de

críticas passaram a apoiadoras das manifestações. Uma ocorrência que expôs a olhos

vistos (as velhas corporações não estão acostumadas à “transparência” das redes) sua

45 http://www.unicamp.br/unicamp/ju/567/o-que-vemos-nas-ruas# 46 Ver, por exemplo, Juventude Brasileira e Democracia: participação, esferas e políticas públicas. IBASE/POLIS, Nov.2005. De acordo com o relatório da pesquisa, no item “O que mais preocupa você hoje no Brasil?”, os autores observam que “o lugar do trabalho entre as preocupações dos(as) participantes confirma o que vem sendo apontado em diversos estudos, ou seja, que a incerteza e a apreensão com a busca ou perda de postos de trabalho – processos diretamente relacionados com a obtenção do primeiro emprego e a falta de oportunidades no mercado – são uma constante na vida dos(as) jovens, especialmente, daqueles(as) dos setores populares que desde muito cedo sofrem as pressões para a inserção no mundo do trabalho (p.9). 47 No dia 20, uma semana depois do editorial que pedia a ordem e a lei, a Folha de São Paulo comemorava: “a revogação do aumento das tarifas de transportes em São Paulo e no Rio é uma vitória indiscutível do Movimento Passe Livre. Já os prefeitos Fernando Haddad (PT) e Eduardo Paes (PMDB), bem como os governadores Geraldo Alckmin (PSDB) e Sérgio Cabral (PMDB), saem atônitos das manifestações que os encurralaram. Menos mal que tenham demonstrado realismo. O movimento adquiriu tamanha repercussão no tecido social que ceder já se tornava imperativo de bom-senso. Ver o Editorial, “Vitória nas Ruas”. http://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2013/06/1298034-editorial-vitoria-das-ruas.shtml 48 O Caso Datena foi emblemático da dissonância que havia entre os meios de comunicações tradicionais e as intenções dos manifestantes. Veja análise de Silvia Vianna sobre os casos acima citados em Técnicas para a fabricação de um novo engodo, quando o antigo pifa, de 18 de junho. http://www.diplomatique.org.br/acervo.php?id=3027&tipo=acervo 49 Arnaldo Jabor, no dia 13 de junho, chamou os manifestantes de baderneiros e ignorantes e dizia que: “não pode ser por causa de 20 centavos! A grande maioria dos manifestantes são filhos de classe média, isso é visível! Ali não havia pobres que precisassem daqueles vinténs, não!”. Quatro dias depois, no dia 17, mudou sua fala. Essa virada foi ironizada pelos manifestantes, em vídeos que circularam grandemente nas redes sociais. Ver o vídeo “Duas faces de Arnaldo Jabor sobre as Manifestações”. Ver em: https://www.youtube.com/watch?v=4ITE3jC0x5I. 50 Ver a análise da capa da Revista Veja de 27-06, “Os Sete Dias Que Mudaram o Brasil”, por Wilson Roberto Vieira Ferreira. http://cinegnose.blogspot.com.br/2013/06/bombas-semioticas-explodem-na-midia.html

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estratégia de apropriação e instrumentalização das manifestações, como analisou à

época Silvia Viana, alertando que “naquele momento nascia uma nova ideologia”51. Em

outras palavras, nas críticas que cada vez mais atingiam o governo federal, a imprensa

viu uma oportunidade, mudou o tom e o conteúdo de suas reportagens: as manifestações

passaram a ser vistas como legítimas e parte dos conflitos de uma democracia.

Invertendo suas próprias rotulações, passaram a apoiar as manifestações e diferenciar

“manifestantes” de “baderneiros”, fomentando uma polarização política que teria grande

eficácia como instrumento político (VIANNA, 2013).

À “virada discursiva” da imprensa os jovens responderiam com uma cobertura

presencial, utilizando-se dos recursos das redes sociais. Com simples celulares faziam

reportagens do tipo “eu estava lá”, como é o caso do grupo Mídia Ninja52, disputando a

narrativa dos acontecimentos com os grandes grupos de comunicação, cujo efeito foi o

de visibilizar práticas usuais de construir sua linha editorial de acordo com as

conveniências ideológicas. Nas redes sociais reproduziam-se aos milhares vídeos e

artigos ironizando a “cobertura” da imprensa. As manifestações contra a Rede Globo e a

imprensa corporativa sintetizadas no lema “o povo não é bobo” comprometia nas ruas e

nas redes a credibilidade da imprensa corporativa, que atraia para si o ódio dos

manifestantes53.

À virada discursiva das corporações da mídia correspondeu ainda outra virada, a

dos intelectuais: do otimismo e legitimidade que se deram aos jovens indignados dos

primeiros dias por grande parte dos blogueiros e alguns jornalistas de diferentes

matizes, enquanto a grande imprensa só via os vândalos, a direção inverteu-se: a

imprensa passou a apoiar e se apropriar do discurso “indignado” dos manifestantes,

enquanto para muitos intelectuais o ataque aos militantes dos partidos eram sinais

nefastos de velhas práticas e ideias: o “nacionalismo” sentimentalista que abraça a

51http://blogdaboitempo.com.br/2013/06/21/tecnicas-para-a-fabricacao-de-um-novo-engodo-quando-o-antigo-pifa/ 52 Fundado oficialmente no Fórum Mundial de Mídia realizado na Tunísia, em 2013, o grupo é ligado ao Circuito Fora do Eixo, uma rede de produtores culturais. O grupo Mídia Ninja teve importante papel nas manifestações, com sua forma individual de colher e transmitir informações, notícia em estado bruto, sem edição. O Mídia Ninja representa atualmente um jornalismo ativista e militante. 53http://www.pragmatismopolitico.com.br/2013/06/revista-veja-e-rede-globo-viram-alvo-de-manifestantes.html

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bandeira; o entusiasmo com “o gigante acordou”54, a violência contra os militantes dos

partidos, um roteiro nada novo e já conhecido. Essas idas e vindas do ritmo das

manifestações quando o velho e o novo se misturaram só fez confundir ainda mais as

interpretações, dividir as opiniões e ações dos manifestantes.

Desde então as revoltas não param de se multiplicar, incluindo velhas e novas

reivindicações, e mostram outras rupturas, tanto intra quanto intergeracionais55. Além

disso, desde 2013 os jovens têm se afastado das grandes manifestações – mas não do

ativismo político e das manifestações localizadas56 – que serão retomadas, como têm

sido nas últimas décadas pelos grupos institucionalizados, como se viu nas semanas

seguintes com o Dia Nacional de Luta, convocado pelas Centrais Sindicais em 11 de

julho de 2013, com pouco apoio de jovens ou grupos juvenis mesmo dos mais

engajados. Da mesma forma, nas manifestações em São Paulo contra o governo federal

e pelo impeachment da Presidente, de 15 de agosto de 201557, tendo à frente o

Movimento Brasil Livre (MBL)58 quando havia 70% de manifestantes com idade acima

dos 35 anos, sendo o contingente de jovens presentes apenas de 25%, segundo pesquisa

54

Figura imaginária que teve origem nos anos 60, mostrada em cartaz na Marcha da Família Com Deus Pela Liberdade, em Santos. Confira em vídeo mostrado pelo jornalista Wagner Parra: https://www.youtube.com/watch?v=dDUD5DfSWME. Outra referência dessa época é o “gigante adormecido”, na música de Carlos Lyra e Chico de Assis, “Canção do Subdesenvolvido” de 1962, e censurada logo após o golpe militar de 1964. Diferente do “gigante” que no cartaz de 64 tem um sentido "nacionalista", na música de Carlos Lyra e Chico de Assis, o tom é de deboche. 55 Os conflitos intergeracionais estão propostos no capítulo 3 entre uma geração “naturalista” e outra “neoconservadora”, que têm comum o ressentimento com a classe política, valores “liberais” do ponto de vista da moral e boa relação com a família, mas que se dividem à frente, no que se refere às propostas para a solução das questões de ordem pública. 56 Só para citar dois exemplos recentes: a ocupação das escolas públicas por seus alunos contra a proposta de reorganização das escolas pelo governador de São Paulo; e as manifestações do MPL contra o aumento da passagem de ônibus pelo prefeito da cidade de São Paulo, que tiveram início em 06/01/2016, e se repetiram diariamente, afim de “sufocar” o poder público, como é estratégia do MPL. Ver em: JUDENSNAIDER E. et. al. (2013). 57http://www1.folha.uol.com.br/poder/2015/08/1669512-manifestantes-na-paulista-preferem-que-dilma-renuncie-diz-datafolha.shtml 58 O Movimento Brasil Livre (MBL) foi fundado em 2014, e teve destaque quando promoveu sua primeira manifestação, em novembro do mesmo ano reunindo cerca de 5.000 pessoas no MASP pela investigação e punição dos envolvidos no escândalo apurado pela Operação Lava Jato. Segundo declarações de membros à Revista The Economist, o grupo foi "fundado no último ano para promover as respostas do livre mercado para os problemas do país". Em seu manifesto, o MBL cita cinco finalidades: “imprensa livre e independente, liberdade econômica, separação de poderes, eleições livres e idôneas e fim de subsídios diretos e indiretos a ditaduras". Ver em: http://mbl.org.br/

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do DataFolha59. E também de maioria esmagadoramente branca, recebendo mais de

cinco salários mínimos por mês, enquanto que os manifestantes que ganham até três

salários mínimos não passaram de 20%. Como num quadro invertido, na “Contagem da

manifestação no Largo da Batata” realizada pelo DataFolha em 17/06/2013, vê-se que

aproximadamente 60% dos manifestantes tinham entre 12 e 35 anos. A pesquisa do

IBOPE apresentada pela Rede Globo dias depois, em 24/06, mostrou que 63% dos

manifestantes tinham entre 14 e 29 anos60. Se comparados com as manifestações de

junho de 2013, esses números mostram que cresceu a polaridade política entre gerações,

desde Junho quando avós, pais e filhos foram para as ruas, e também a divisão de

classes sociais.

1.2. O Espanto

“Aqueles que são suficientemente velhos para se lembrar não acham normais essas mudanças. Os jovens não podem saber, mas os historiadores mais velhos sabem, sem o menor esforço, que "o passado é outro país. Lá, as coisas são diferentes". Eric Hobsbawm.

O acontecimento histórico dos insólitos dias de junho que teve início em São

Paulo e se espalhou por centenas cidades pelo país foi, no momento de sua eclosão,

segundo Janine Ribeiro, um happening, evento raro “que tem as características de

acontecer só uma vez, não tendo ensaios nem podendo ser repetido” e que reverbera

muito além de suas causas iniciais61. Pierre Nora nomeou esse tipo de acontecimento de

“o maravilhoso” das sociedades democráticas que contam com ampla participação das

massas. Segundo ele “o acontecimento histórico verdadeiro”, quando ocorre, possui

duas características: o de ser uma “ruptura que colocaria em questão o equilíbrio sobre o

qual a sociedade está fundamentada”, algo “sem retorno” e que não se pode ignorar;

acontecimentos desse tipo produzem um recorte no tempo e um rompimento com o

passado (1979:187). O autor lista entre eles o maio de 68, o Watergate, a invasão de

Praga pelas tropas soviéticas, “o desembarque na Lua” (1979:182, 183).

59http://www1.folha.uol.com.br/poder/2015/08/1669512-manifestantes-na-paulista-preferem-que-dilma-renuncie-diz-datafolha.shtml 60Contagem da manifestação no Largo da Batata. PO813689. 17/06/2013. www.datafolha.com.br 61 http://www.ihu.unisinos.br/noticias/521301-o-movimento-que-pareceu-sair-do-nada

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A segunda característica do acontecimento moderno, segundo Nora, é a

avalanche de conhecimento e de significados que ele produz e reproduz à exaustão. Não

basta que tenha acontecido, para ser acontecimento ele necessita, diz o autor, “da

diferença e do barulho que faz” (1979:181; LACOUTURE, 1995). A produção e

circulação de informação são, assim, internas ao próprio acontecimento e parte de sua

realização. Não é o fato de terem acontecido que os torna históricos, para que haja

acontecimento é necessário que haja reconhecimento público (1979:181, 233). Essa

produção da notícia (que incluía desta vez os próprios manifestantes, produzindo relatos

“autorais”, competindo com a narrativa apresentada pela imprensa) não age apenas

“como meios dos quais os acontecimentos seriam relativamente independentes, mas

como a própria condição de sua existência” (1979: 181). As análises, as notícias, as

narrativas pessoais – “eu estava lá” (NORA, 1979) – que brotam juntamente aos

próprios acontecimentos fazem parte deles, os retroalimentam, direcionam e a eles se

fundem, de forma que depois do acontecido é quase impossível separar um e outro.

Na ocasião das manifestações, uma imensa onda de energia movimentou o

debate público. Milhares de artigos, pesquisas, notícias, vídeos, fotos, comentários,

opiniões, análises e debates foram produzidos e se fizeram circular. Fabio Malini

chamou de “Big Data da Indignação” o maior volume de informação jamais elaborado

antes em um acontecimento público. Refazer as “jornadas de junho” a partir dessa

montanha de informações que se produziu seria uma tarefa hercúlea, e em alguma

medida inútil, porque, segundo Nora, “o paradoxo do acontecimento moderno” é que

ele produz uma inflação de fatos e “na incandescência das significações ficamos cegos”

(1979:189). Por isso, “o movimento que importa ‘escutar’ e descrever situa-se com

frequência fora da grande feira dos rumores” (LACOUTURE, 1995:232). Em outras

palavras, a oportunidade que se coloca ao investigador do presente – que raríssimas

vezes consegue ir além dos rumores na praça pública – diante da avalanche dos fatos é

que o acontecimento, vivido coletivamente, é o lugar onde “um conjunto de fenômenos

sociais surge das profundezas” (1995:232). Pierre Nora compara “o acontecimento” a

“um rasgão do tecido social”, um vulcão que expõe suas lavas, suas camadas mais

profundas, seus conflitos latentes, veiculando “todo um material de emoções,

representações herdadas do passado que frequentemente afloram à superfície da

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sociedade”, no presente62. Quando as camadas mais profundas vêm à superfície do

presente, “é ele próprio o acontecimento”, diz, e sem os quais os fenômenos sociais

ficariam “enterrados nas rugas do mental coletivo” (1979:188, 190).

As manifestações pegaram a todos desprevenidos, deixou um rastro de

perplexidade, expondo as fissuras nas falas que foram registradas entre jornalistas e

intelectuais que se arriscaram em interpretações das mais variadas, e sem esconder o

espanto. Cito mais alguns desses “testemunhos” dos intelectuais, entre tantos, para

ressaltar o tom monocórdio que se podia ouvir naqueles dias e a crise que se instalou

entre alguns dos que se puseram, ou foram chamados a interpretar os acontecimentos.

Para Lincoln Secco (2013), “o movimento brasileiro é uma esfinge. Ele pede

para ser decifrado”63. Fernando Henrique Cardoso (2013), ex-presidente e intelectual

desceu da autoridade de pensador e de político poderoso diante das manifestações: “não

sei o que fazer, como fazer, ninguém sabe. (...) É um momento de pensar, ouvir, e não

de dar ordem [sic]”64. Chico de Oliveira (2013) considerava que “nunca houve nada

parecido pela amplitude no país. É uma experiência realmente nova na política de

massas do Brasil, realmente nova. Todo mundo se pergunta no que isso vai dar”65.

Maria Conceição Tavares (2014) observou igualmente a paralisia das análises e afirmou

em artigo que “ninguém na academia está falando nada muito diferente. Por isso, não

gosto de dar entrevista, não quero engrossar o coro de lamentação dos intelectuais. Pode

ser que eu já esteja ultrapassada, que esteja velha”.

62 No Capítulo 3, interpreto que as manifestações de junho fizeram aflorar ondas de ressentimento social, acumulados nas últimas décadas, e na mudança de orientação ideológica das políticas públicas a partir do governo Lula, que tem apoio de parte expressiva da juventude. 63 A citação toda é: “o movimento brasileiro é uma esfinge. Ele pede para ser decifrado. À primeira vista, observamos que há uma revolta positiva contra um sistema político arcaico que não representa a população. Talvez o fato negativo seja que as pessoas estão criticando o governo, mas não sabem o que pôr no lugar. À medida que você tem um movimento de massas espontâneo, perde a direção e abre espaço para que o movimento seja apropriado por forças conservadoras da ordem”. Publicado em 19/06/2013. Ver em: http://www.ihu.unisinos.br/noticias/521176-efeito-dos-protestos-vira-no-longo-prazo. 64Citado na reportagem FHC diz que manifestações mostram vontade por Brasil melhor, publicada em 18/06/2013. http://memoria.ebc.com.br/agenciabrasil/noticia/2013-06-18/fhc-diz-que-manifestacoes-mostram-vontade-por-brasil-melhor. 65 Entrevista publicada em 29/06/2013. Revolução Sem Rumo pode dar em nada, o que seria frustrante. Ver em: http://m.folha.uol.com.br/poder/2013/06/1303763-revolucao-sem-rumo-pode-dar-em-nada-o-que-seria-frustrante-afirma-sociologo.shtml?mobile. Outra entrevista publicada em 09/11/2013, Assustaram os donos do poder, e isso foi ótimo. Ver em: http://www1.folha.uol.com.br/poder/2013/11/1368697-assustarem-os-donos-do-poder-e-isso-foi-otimo-diz-o-sociologo-chico-de-oliveira.shtml

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Outro velho decano entre tantos de sua geração, Oliveiros Ferreira (2013)

traduziu o problema que ia além do abalo político causado pelas manifestações. O

desafio era muito maior: havia um desencaixe entre o que se pensava até então e o que

se viu nas ruas. Na ocasião considerou que o “movimento não apenas abalou − sem

causar danos irreparáveis nela − as estruturas políticas tradicionais, como, o mais

importante, nosso conhecimento das coisas” (grifo meu). Não foram poucos –

praticamente todos – os velhos intelectuais observadores das manifestações que se

renderam à perplexidade, confessaram sua ignorância diante de um movimento que

mexeu com a confiança e instigou a academia a entender e explicar os fatos. Segundo

Werneck Vianna (2013), "há um componente novo nessa movimentação social a

requerer precisa identificação, a que o repertório de interpretação corrente nos últimos

anos não concede acesso”66. Para Luiz Eduardo Soares (2013)67,

[...] aplicar velhos esquemas cognitivos serve apenas para exorcizar o novo,

domesticar a diferença e mascarar a insegurança intelectual, confirmando velhas

crenças e categorias. O momento exige humildade do intérprete e o

reconhecimento de que também as categorias tradicionais com que opera estão

em xeque, desestabilizadas pela potência disruptiva e criadora do movimento

social.

Afinal, o que causou tamanha perplexidade a ponto de levar a uma paralisia das

análises? E qual seus sentidos? Ou antes: por que partir da perplexidade interessa? A

perplexidade com o acontecimento das manifestações de junho e a crise conceitual que

elas desencadearam é importante porque, sem conseguir explicar o que estavam vendo,

os intelectuais brasileiros insistiram naquilo que o acontecimento “não é”, uma vez que

não se encaixava no seu plano de visão e nas suas categorias explicativas. Luiz Eduardo

Soares, remetendo-se aos seus pares acadêmicos, alertou: “projetando-se os modelos

cognitivos convencionais sobre o que é radicalmente diferente, só se vê que o

movimento é não organizado, sem liderança ou centro, desprovido de ideologia e de

objetivos, irracional etc. Entretanto, ele existe”.68

66Vianna vê a emergência de uma “nova cidadania” nascente entre os jovens. http://www.ihu.unisinos.br/noticias/521132--movimento-da-hora-presente 67http://zh.clicrbs.com.br/rs/entretenimento/noticia/2013/06/a-classe-media-descobriu-a-brutalidade-policial-que-os-pobres-e-negros-nunca-ignoraram-4185349.html 68http://zh.clicrbs.com.br/rs/entretenimento/noticia/2013/06/a-classe-media-descobriu-a-brutalidade-policial-que-os-pobres-e-negros-nunca-ignoraram-4185349.html

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Marcelo Coelho sugeriu “freudianamente” que a perplexidade e a ênfase na

novidade era também uma forma de “negação”. Segundo escreveu, “dizer que ‘ninguém

está entendendo nada’ é também uma maneira de recusar-se a entender alguma coisa

(...)” (2013:134)69. Silvia Vianna, jovem professora da USP, viu na ênfase na novidade

uma estratégia da imprensa em desqualificar as manifestações – “as negativas crescem

até que o protesto pareça um movimento por nada” – ao mesmo tempo em que se

apropria do discurso e lhes dá novos significados70. Pierre Nora explica que uma das

maneiras de “conjurar o novo” que surge do acontecimento, e que é sempre

desestabilizador, consiste em fazer dele “até os limites da redundância, o essencial da

mensagem narrativa”. A atuação do mass media reverbera o novo, “fabrica o

acontecimento, degrada a informação como estratégia de negá-lo através de um sistema

de informação sem informação, ou por integrá-lo ao sistema de informação” (Nora,

1979: 187, grifos meu).

Mesmo concordando que tanto tenha havido tentativas de “negação” (quanto

também de entusiasmo) por parte de alguns intelectuais, e de jornalistas no início das

manifestações, quanto tentativas de integrar o movimento no momento da “virada

discursiva”, a anacronia que tomou conta das análises – o que fez com que os

intelectuais enfatizassem a novidade – não se reduz à negação ou “apropriação

ideológica”, ainda que tenha sido em alguns casos utilizada com fins políticos,

ideológicos e/ou partidários71. Essa dificuldade em lidar com o “novo” que surgiu das

manifestações também pode ser interpretada como efeito de uma ruptura que, frente ao

desafio da novidade, obrigou os intelectuais a um “reconhecimento da alteridade do

passado” e do “como chegamos até aqui” (Koselleck, 2014). Como afirmou Maria

Amélia Gohn, a maior parte dos acadêmicos foi procurar suas respostas na “conjuntura

política, social e econômica antes de junho” (2014:10, grifo meu), numa tentativa de

explicar o “por que agora?”, uma das perguntas que mais reverberaram naquelas

semanas, como veremos adiante.

Koselleck explica que essa necessidade de rever o passado, refazer as análises

das estruturas e da conjuntura ocorre “sempre que surgem experiências novas”, quando

69 Publicado em JORNAL de PSICANÁLISE 46 (84), 133-139. 2013. 70http://blogdaboitempo.com.br/2013/06/21/tecnicas-para-a-fabricacao-de-um-novo-engodo-quando-o-antigo-pifa/ 71 Como é o caso das interpretações que se utilizaram das análises sobre a crise econômica e social do governo Dilma Roussef, para vaticinar o “fim do lulismo”.

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o tempo parece se acelerar, e é também nesses momentos quando as experiências

básicas de “retardação” e de “transição” se solidificam72:

Tais acelerações que podem ser comprovadas de maneira inequívoca [em alguns

períodos da história] têm efeitos enormes sobre as estruturas sociais e

econômicas, as quais não experimentaram a mesma aceleração. Assim,

percebem-se retardações que nos permitem inferir a falta de adaptação a

transformações muito rápidas (Koselleck, 2000:274).

E por isso os contemporâneos, em particular os intelectuais, “se veem

confrontados com a tarefa de reconhecer a total alteridade do passado, a fim de

confrontá-la com os processos de mudança do nosso próprio tempo”. (Koselleck,

2000:275).

Ao dizer o que “não é”, os “velhos” testemunharam que foram atropelados pelos

fatos, desafiados pelo acontecimento, expuseram seus estranhamentos, os elementos da

crise, e foram forçados a refletir, ainda que tenha havido apropriação ideológica do

discurso. Segundo Hobsbawm, o início da compreensão histórica segue “a descoberta

de que estávamos enganados, de que talvez não tenhamos entendido algo direito [e]

deve ser o ponto de partida de nossas reflexões sobre a história de nosso tempo”.

(1995:107). Para ele a geração mais velha, se não se deixar levar pelo anacronismo,

possui “uma vantagem natural que compensa nossas inúmeras desvantagens”: um olhar

em perspectiva. O contrário, a proximidade com o presente e a identificação com o

contemporâneo, o ser “atual” (muito próprio dos jovens), produz uma cegueira que só se

cura ao se perceber “que o passado é outro pais”. Assim também para Giorgio

Agambem esse estranhamento ou anacronismo consciente, resultado da experiência

vivida, é o lugar de todo aquele que pretende compreender sua contemporaneidade,

porque, segundo o autor, os que “coincidem de um modo excessivamente absoluto com

a época, que concordam perfeitamente com ela, não são contemporâneos, porque,

justamente por essa razão, não conseguem vê-la, não podem manter seu olhar fixo

nela”. “Contemporâneo”, diz, é aquele que:

Pode dizer "meu tempo", que divide o tempo, inscreve nele uma cesura e uma

descontinuidade e, no entanto, justamente por meio dessa cesura, dessa

72

Retorno à questão da repetição, retardamento e aceleração no Capítulo 2, baseado na noção de Koselleck de “estratos do tempo”.

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interpolação do presente na homogeneidade inerte do tempo linear, o

contemporâneo coloca em ação uma relação especial entre os tempos (2009:70).

As manifestações expuseram uma ruptura geracional provocada pela juventude,

que foi a origem da perplexidade vivida pela quase unanimidade dos intelectuais

brasileiros, fazendo vir à superfície “a não-contemporaneidade do contemporâneo”

(Mannheim, 1984), o “inatual” do presente (KOSELLECK, 1979, AGAMBEN, 2009) e

por isso o sentimento de anacronia, de “retardação”, a dificuldade em reconhecer os

atores, a desatualização que tomou conta da maior parte dos analistas, mas que ao

mesmo tempo forçou os intelectuais à reflexão “em perspectiva”. Roberto Schwarz

(2013)73 considerou na ocasião, numa reunião entre acadêmicos na Universidade de São

Paulo, que do ponto de vista da cultura “muita coisa pode acontecer, inclusive nada, e

neste sentido devemos estar preparados para resultados decepcionantes. Entretanto, seja

como for, para nós artistas e intelectuais é fato que algo de importante ocorreu e que a

nossa situação mudou”.

Essa experiência de “novidade” que se escancarou nas manifestações e que

resultou numa “circulação generalizada de percepção histórica” (NORA, 1979:180) faz

também parte da experiência cotidiana dos contemporâneos no lidar com as instituições

que envelhecem rapidamente, está também nas relações com as novas tecnologias que

ao contrário são hipermodernas para as gerações que nasceram antes dos anos 80.

Portanto, não se trata de uma percepção que é privilégio dos intelectuais, mas que está

também entre as pessoas comuns e suas ideias, sendo vivida como experiência por

jovens e velhos. Uma de minhas entrevistadas, Camila Mello, associou seu sentimento

atual de “desconforto” com uma citação de Frei Beto no livro Sobre a Esperança:

Diálogo (que ela estava lendo naqueles dias), onde o autor dizia que “seu tempo pessoal

não coincide com seu tempo histórico” (2012:15). Essa dissonância, mais do que uma

experiência pessoal é parte da sensibilidade de toda uma geração, são sentimentos que

acometem os velhos, e acomete também a juventude que está em transição – os jovens-

adultos, na faixa etária entre os 18 e 30 anos – os que estão envelhecendo e tomam

consciência do seu presente.

73 http://blogdaboitempo.com.br/2013/07/23/a-situacao-da-cultura-diante-dos-protestos-de-rua/

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1.3. As Rupturas

Das muitas indagações trazidas pelas manifestações, gostaria de destacar três

delas, as que provocaram maior espanto. 1. Por que agora? 2. A velocidade dos

acontecimentos; 3. O que eles querem, afinal? Procuro demonstrar que uma das

dificuldades dos analistas em compreender o que se passava estava em identificar e

“reconhecer” os seus protagonistas74 (sua vanguarda, como se dizia nos anos 60),

desconhecidos até aquele momento por parte da academia. Um “novíssimo” ator social

jovem, como considerou Ermínia Maricato (2013), depois de anos de relativo

desinteresse da juventude pela política75.

1.3.1. Por que agora?

“O movimento que pareceu sair do nada”. Renato Janine Ribeiro

Em Junho de 2013, se tomarmos como base as pesquisas de satisfação da

população bem como os índices sociais, macro e microeconômicos, todos apontavam a

melhoria do país, em alguns casos notáveis, em relação aos períodos anteriores. Como

descreveu Schwarz:

Em duas semanas o Brasil que diziam que havia dado certo, que derrubou a inflação,

que incluiu os excluídos, que está acabando com a pobreza extrema, que é um exemplo

internacional, foi substituído por outro país muito pior, em que o transporte popular, a

educação e a saúde são um desastre, em que a classe política é uma vergonha, sem falar

na corrupção. Qual das duas versões estará certa? É claro que todos estes defeitos já

existiam antes, mas eles não pareciam o principal; e é claro que aqueles méritos do

Brasil novo continuam a existir agora, mas parece que já não dão a tônica.

Gilberto Maringoni fez uma análise das condições “objetivas” das revoltas e

concluiu que elas não se explicavam nem pelo seu timing, nem mesmo pelo cenário de

expectativas naquele momento76. Apesar dos esforços dos que se puseram a

compreender, como afirmou Maringoni, “se formos analisar a situação de forma

empírica, vamos verificar que nenhum indicador objetivo conseguiu captar o

descontentamento que se espalha”. A des-atualização dos analistas pôs abaixo as 74 Sobre protagonismo, incluir nota. 75 Ver nota 16, p. 14. 76 Comentário em sua página no Facebook, em 19 de junho: “Uma Noite Daquelas”.

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“análises de conjuntura”, tão costumeiras, sobretudo entre os intelectuais da esquerda,

afinal o país colhia ainda os frutos da fase recente de crescimento, da ampliação dos

programas sociais e do consumo, do aumento da escolaridade entre os jovens, da

ampliação do emprego, precário, mas emprego... Para alguns “era só comida”, mas para

outros era mais carro, mais TV, mais celular, etc. Afinal, de onde vinha tanta

insatisfação?

Alguns analistas lembraram que o Maio de 68, na França, teve sua origem numa

fase de “abundância”, e que por isso causou surpresa semelhante77. Estimulado pela

ideia, e pelo que informavam as pesquisas e os índices, o ex-presidente Lula disse nos

jornais que “o povo estava satisfeito e queria mais”. De fato, queria mais e melhores

serviços públicos, sendo que a tese da abundância se enfraquecia frente à tamanha

indignação. De outro lado, urbanistas, como Ermínia Maricato (2013) e Raquel Rolnik

(2013), de olho nos conflitos sociais nas grandes cidades, apontavam o clima explosivo,

fruto da má administração e da privatização dos espaços públicos, e o sufocamento da

população no trânsito, ou sobre grades de proteção. Apontavam ainda o crescimento do

interesse, entre os jovens, pelos usos do espaço urbano e a recuperação do convívio; o

problema da mobilidade, etc78.

Parte da imprensa ligada à oposição ao governo federal e/ou ao Partido dos

Trabalhadores ofereceu sua interpretação própria sobre a questão do “por que agora?”:

fim do lulismo, esgotamento do modelo de expansão do crédito, dos gastos públicos, e

da intervenção estatal. O ciclo de expansão do consumo da classe C pela “mão do

Estado” chegava ao fim, diziam. Da esquerda, preocupada com a fúria das massas nas

ruas contra os partidos, também se problematizava a conquista da cidadania baseada

consumo, como fizeram Frei Beto e André Singer79. Para os autores, a inclusão social

pelo consumo não significou a conquista da cidadania e de direitos sociais que deveriam

estar contemplados na melhoria de serviços públicos – educação, saúde e segurança – o

77 Debate realizado por pesquisadores do IEA (Instituto de Estudos Avançados) da USP, cujo título era "O que está acontecendo?". Em minha pesquisa não encontrei muitos acadêmicos que fizeram relação entre as manifestações e as revoltas dos anos 60; me pareceu que muitos preferiram evitar as comparações. Os que lembraram Maio de 68 foram Renato Janine Ribeiro (2014), que considerou ambas numa linha de continuidade (perspectiva que também adoto); Marcelo Ridenti (2013); Voltaire Shilling (2013), Fernando Henrique Cardoso (2013). 78 Citar as discussões do Parque Augusta; do apoio às ciclo faixas, à hortas urbanas, etc. 79 Ver Singer, Andre (2012). Os sentidos do lulismo. Reforma gradual e pacto conservador. São Paulo: Companhia das Letras.

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que também resultava no enfraquecimento da base do Partido dos Trabalhadores, os

movimentos sociais, historicamente vinculados à ampliação de direitos.

Nesse vácuo de indagações e interpretações, a apropriação da insatisfação de

junho de 2013 pela imprensa que se opõe ao governo federal – e ao Partido dos

Trabalhadores - teve de lá para cá um significado dos mais relevantes no jogo da

“grande política” tendo sido um ponto de virada e marcado o começo da crise do “pacto

produtivista”, proposto pelo governo Dilma Roussef, como considerou André Singer

(2013).

Mas, enquanto se procuravam os sentidos das rupturas, as manifestações

mostraram rachaduras que não se contavam. Afinal, para a geração passada, os que

viveram o período das “décadas perdidas” – o tempo da hiperinflação, do desemprego,

do arrocho salarial, da “humilhação nacional” –, os anos 2000 haviam colocado o país

num outro rumo. Se não o ideal, comparativamente falando com os anos 80 e 90 a

democracia brasileira “decolava”80 finalmente, fazendo a alegria da esquerda e dos

menos desfavorecidos da história. Por isso, aquela tamanha insatisfação que emergiu

das manifestações – um re-sentimento que estava guardado – se colocada numa

perspectiva histórica, mesmo recente, simplesmente não fazia sentido para as gerações

mais velhas. A superfície dos fatos não informava as razões que moviam as camadas

mais profundas: havia uma insatisfação que se projetava a partir da juventude.

As análises com velhas categorias não davam conta, primeiro porque não

levavam em consideração o surgimento de um “novíssimo sujeito social”, uma nova

geração de jovens, majoritária do ponto de vista demográfico, que não viveu as décadas

perdidas (mas que é herdeira de sua frustração, como trato adiante) e que, ao contrário,

se beneficiou nas últimas décadas das políticas públicas que fizeram aumentar de forma

expressiva os jovens que alcançaram as universidades públicas e privadas, os cursos

técnicos, o programa “Ciências Sem Fronteiras” (para a juventude classe média dos

colégios particulares). Essa juventude, que se vê por um lado “empoderada” e que

cresceu nos últimos anos, domina as novas tecnologias, foi capaz de criar um tsunami

político no pais, é mais informada e mais consciente, no entanto, foi desprezada até

então como “ator político”.

80 Capa da revista The Economist, Brazil takes off, com o Cristo Redentor decolando como um foguete. Ver em: http://www.economist.com/node/14845197

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Werneck Vianna (2013) considerou que além da “negação” ao estado atual da

política, o que estava de resto evidente, a juventude que saiu às ruas buscava

“reconhecimento”. Segundo escreveu: “a chave somente se fará disponível quando se

compreender que se está diante de uma insurgência democrática em favor do

reconhecimento de novas identidades sociais e de direitos de participação na vida

pública, especialmente das novas gerações”. A evidência dessa falta de

“reconhecimento” da juventude que pesava na conta dos governos passados estava na

pressa com que o governo federal aprovou o Estatuto da Juventude81, recebeu os

“grupos autônomos” de jovens para “um diálogo” e no recuo dos prefeitos que

desistiram do aumento das passagens, em diversas capitais pelo pais. A juventude

reapareceu nesse momento aos olhos dos contemporâneos, depois de décadas de

afastamento, como um “sujeito político”.

O que importa ressaltar é que nenhuma análise poderia dar conta se não se

partisse dos “atores” das manifestações, os jovens, o que impunha um recorte geracional

para a compreensão daquela explosão de ânimos. Um dos problemas, no entanto, é que

esses novíssimos personagens, e novíssimos movimento de juventude, era até junho um

grande desconhecido para grande parte da sociedade, incluindo os intelectuais. A

impressão que os acometeu foi a de ter perdido alguns capítulos da história, afinal os

jovens não estavam alienados da política? A vontade de participação que havia sido

despertada na juventude foi um dos motivos de assombro da geração mais velha,

observada por Marco Aurélio Nogueira, Fernando Henrique Cardoso e muitos outros.

O recorte geracional foi pensando pelos “sociólogos do trabalho”, como Ruy

Braga e Ricardo Antunes que se voltaram a uma tensão de fundo tentando compreender

a insatisfação a partir do problema do “precariado” jovem, ainda que as questões

trabalhistas não esteve entre as palavras da ordem nas ruas, mas que é de fato o assunto

– a questão do emprego – que preocupa a juventude em primeiro lugar, como se repete

nas pesquisas de opinião realizadas por vários institutos na última década82. Os autores,

utilizando um recorte geracional, chamaram a atenção para uma parte expressiva da

81 Lei 12.852, sancionada em 2013, o Estatuto da Juventude é o instrumento legal que determina quais são os direitos dos jovens que devem ser garantidos e promovidos pelo Estado brasileiro. Define como jovens as pessoas com idade entre 15 e 29 anos, incluindo assim cerca de 51 milhões de brasileiros. O Estatuto é relevante porque detalha dentro das garantias já previstas pela Constituição, quais são as especificidades da juventude que precisam ser afirmadas. Ver mais em: http://juventude.gov.br/estatuto#.VqYyV_krLIU 82 IBASE, Pólis, 2005, op. cit..

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juventude da nova classe média, que carrega a expectativa da ascensão social prometida,

é mais escolarizada, mais informada, mas que encontra em grande parte empregos

precários, contratos “flexíveis” e “estágios”. Segundo Ruy Braga, “mais de 60% dos

empregos criados durante os governos de Lula da Silva e Dilma Rousseff foram

ocupados por jovens entre 18 e 24 anos. No entanto, 94% desses empregos pagam até

R$ 1.000,00 por mês”83.

Mas, se preocupado com empregou ou sobrevivência, o “precariado jovem”

atualmente está menos preocupado com as “causas trabalhistas”, luta tradicional da

esquerda, seja porque uma parte desconhece e a outra se desinteressa. A ideia de fazer

“carreira” em uma empresa, uma aspiração das gerações passadas, não está no horizonte

de expectativas da geração atual, nem tampouco é uma política das empresas

atualmente; o problema da “instabilidade” no emprego é um dos dados mais observados

pelos pesquisadores, e a fala dos consultores é que os jovens não “querem entrar no

jogo”84. A nova cultura do trabalho que se constrói a partir das aspirações dos jovens

não tem as leis trabalhistas no centro de suas atenções. Quando apoiam “greves”, como

foi o caso da greve dos “Garis”, no Rio de Janeiro, a causa é a dignidade dos

“oprimidos”, e menos as “leis trabalhistas” o que distancia os movimentos juvenis das

agremiações trabalhistas, partidos e sindicatos das gerações passadas. Como retomo no

capítulo 3, o movimento dos jovens atualmente tem uma preocupação voltada à causa

dos direitos humanos e naturais, ao direito à diferença, como também tem sido

observado por outros autores (NOVAES, 2000).

1.3.2. O que eles querem, afinal?

As manifestações de junho colocaram nas ruas milhares de jovens-adultos e

insatisfeitos, cada qual carregando suas diferenças de classes sociais, gêneros, etnias e

opções ideológicas, uma “unidade na diversidade” que deixou todos perplexos. Como

escreveu Luis Eduardo Soares, “os atores reunidos nas ruas, na maioria jovem são os

mais diversos, têm diferentes origens sociais, falam todas as línguas ideológicas e

83 http://blogdaboitempo.com.br/2013/06/17/entre-a-fadiga-e-a-revolta-uma-nova-conjuntura/ 84 http://www.jcnet.com.br/Economia/2013/10/mercado-de-trabalho-jovens-necessitam-entrar-

no-jogo.html

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vocalizam as mais variadas denúncias e reivindicações”85. As manifestações foram uma

ação política cujos agentes contaminadores não foram a classe operária, as feministas,

os gays, os negros, “as vadias”, os “maconheiros”, os libertários, os ambientalistas. Foi

uma geração de jovens de classe média86, segundo o conceito atual87, com todas as suas

contradições e divergências internas, como se viu dias depois, mas sem deixar de

apresentar um traço comum: a vontade de participação política.

Antes uma ressalva: o fato de que jovens tenham tomado a liderança do evento

não fez dele um ato exclusivo da juventude. Se os meios e os métodos eram juvenis, as

reivindicações e pautas eram bastante adultas – próprios de uma juventude que está na

faixa entre os 20 e 30 anos, ansiosa e apreensiva com sua própria entrada no mundo

adulto – o que atraiu os mais velhos.

A polifonia, a “diversidade unida” de pessoas e pautas que causou

estranhamento entre os “velhos”, embaralhando o jogo das representações –

acostumados que estamos a pensar em termos dos recortes clássicos de classe, gênero e

etnia – pode ser observada atualmente em muitos outros movimentos juvenis e não é

vista como problema ou fraqueza, mas pelo contrário, como um somar de força em

direção a mudanças profundas e, em alguns casos, utópicas. Mais “progressistas”,

apostando na mudança, os movimentos negros, feministas, ambientalistas, gays e os

chamados “povos tradicionais” – indígenas, quilombolas, ribeirinhos – costumam se

associar nas redes sociais e nas ruas. Mais e “menos conservadores”, os grupos de

jovens liberais, os movimentos anticorrupção e parte dos movimentos evangélicos

também aparecem unidos nas redes e também nas manifestações de ruas.

Vainer, em sua análise sobre as manifestações de junho, lembra que desde os

anos 90 os movimentos sociais vêm enfrentando o problema da

Multiplicação no tecido social de diferenciadas, dispersas e fragmentadas manifestações

de protesto, insatisfação e resistência. Quantas reuniões, acadêmicas ou políticas, foram

consagradas a analisar e/ou lamentar essa fragmentação? Há quanto tempo os militantes

se veem às voltas com as dificuldades de fazer convergir reivindicações

85http://zh.clicrbs.com.br/rs/entretenimento/noticia/2013/06/a-classe-media-descobriu-a-brutalidade-policial-que-os-pobres-e-negros-nunca-ignoraram-4185349.html 86 De acordo com pesquisa do DataFolha, no Largo da Batata havia 23% tinha entre 12 e 20 anos; 30% entre 21 e 25 anos; 35% entre 26 e 35 anos; 8% entre 36 e 50 anos; e 4% de 50 anos ou mais. Portanto, apenas 12% dos manifestantes tinham mais de 35 anos! E 77% deles tinham nível superior! E 76% fazem parte do PEA, 40% apenas com trabalho registrado. 87

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microlocalizadas e experiências de luta com diferentes enfoques e bases sociais?

(2013:36).

O autor afirma que a indignação dos jovens “promoveu em poucos dias aquilo

que militantes, organizações populares e setores do movimento social urbano vinham

tentando há algum tempo: unificar descontentamentos, lutas, reivindicações, anseios”.

(VAINER, 2013:36)88. Em outras palavras, a partir de junho surgem uniões e

rachaduras que não estavam previstas nas pautas das “diversidades”, obrigando a

academia a pensar “o geral” e ao mesmo tempo as “bifurcações” que irão emergir a

partir dos conflitos de 201389.

1.3.3. A velocidade dos acontecimentos

O que mais impressionou naqueles dias não foram os números de manifestantes

que cresciam geometricamente dia a dia, por si surpreendentes, mais ainda foi a rapidez

com que a onda se formou em poucos dias, o que provocava a impressão de que o

tempo, além da inversão de causa e efeito – por que agora? –, tinha se acelerado. Essa

rapidez era atribuída pelos especialistas das novas tecnologias, quem melhor

explicavam o que estava acontecendo, como um “empoderamento tecnopolítico” que

proporcionou a rapidez e as dimensões de um enxameamento, uma pandemia, graças às

novas redes sociais. “Este empoderamento seria a possibilidade de que os indivíduos se

organizem (em torno de demandas comuns) de maneira horizontal [sem liderança] e em

um tempo muito mais curto do que conseguiriam sem as mídias sociais”, explicou

Ricuero90. Nas manifestações, de acordo com as pesquisas91, mais de 70% das

convocações vinham do Facebook e do Twitter, um universo pouco conhecido, senão

desconhecido das velhas gerações, com raras exceções, ainda ignorado e que também

atrapalhou as velhas categorias que explicavam até aquele dia os movimentos sociais, as

88 Essa “inédita unidade” também se observa e surpreende os próprios movimentos sociais em muitos outros lugares. A exemplo no Chile: http://www.movilh.cl/inedita-unidad-de-movimientos-sociales-anuncian-marcha-de-todas-las-marchas/ 89 A abordagem da “diversidade” se diferencia da abordagem geracional, como trato na Introdução. 90 Ver em: O que as ciências sociais têm a dizer sobre os protestos de junho. Muito outro estudioso e especialista em redes sociais como Fabio Malini, Sergio Amadeu explicaram o papel das redes sociais no efeito de “enxameamento”, como nomeou Augusto de Franco. 91 http://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Midia/O-que-as-ciencias-sociais-tem-a-dizer-sobre-os-protestos-de-junho/12/30092

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organizações políticas e sua potência. José Dari Krein92 observa que “as formas

tradicionais de manifestação estão sendo substituídas, e a rede adquiriu uma dimensão,

uma velocidade de propagação dos fatos, que funciona para a juventude e que

surpreende”. A apropriação das tecnologias de comunicação para um evento político

nessas proporções, com participação de uma multidão nunca vista, era uma novidade a

ser digerida pelas gerações mais velhas. As articulações se davam então de forma

independente de organizações centralizadas como partidos e sindicatos, que diluídos

como partícipes não eram naquele momento os organizadores das demandas e estavam

ausentes. Não só não havia nenhuma organização tradicional por trás dos eventos, mas

os militantes de partidos e organizações de esquerda foram expulsos das manifestações,

o que causou escândalo e indignação por parte dos seus representantes e militantes,

ascendendo a luz de emergência para os jornalistas e intelectuais. Nessa rejeição aos

partidos entre os manifestantes, dois ânimos se somaram: 1) dos não-partidários, jovens

que militam em “coletivos autônomos”, como o próprio MPL, mas que dialogam e

compartilham ações com os jovens militantes dos partidos e os muitos que atualmente

circulam em vários grupos; e 2) dos anti-apartidários, executores propriamente da

rejeição nas ruas, alguns poucos exaltados, mas que foram notícias dos jornais. Um

sentimento que brotou do centro das manifestações: uma vontade de “não se

representar” e menos ainda a necessidade de fazê-lo.

Enquanto os mais jovens proclamavam nas ruas “eles não me representam”, os

velhos perguntavam: “quem os representa?”93. Negação de uma identidade, o que se via

era um “eu sou ninguém”, sou Anonymus, sou Black Bloc, sem rosto político

(PELBART, 2013)94. Safatle entendeu

Que pela sua recusa e sua raiva bruta elas parecem em processo de se assumir

como radicalmente “sem lugar”, como se sentissem um profundo mal-estar com

92 http://www.unicamp.br/unicamp/ju/567/o-que-vemos-nas-ruas 93 Entre os velhos intelectuais e os jovens, que fizeram suas próprias leituras “participantes”, há um grupo de intelectuais de “meia idade”, mais próximos dos jovens e/ou das redes, como Guiseppe Cocco, Vladimir Safatle, Ivana Bentes, Luiz Eduardo do Soares, os especialistas em rede como Sergio Amadeu e Henrique Auntoun, que deram importantes contribuições ao debate. 94 No capítulo 3, com base na interpretação de que as manifestações foram uma explosão de ressentimentos, entendo o grupo Anonymus e Black Bloc como figuras provocadoras de ressentimento, segundo Ansart, 2001.

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as palavras que até agora nomearam o campo do político, definiram seus

atores.95

A “representação” política que parecia ter desmoronado naqueles dias era mais

que uma crise de representação no sentido clássico (e que até hoje não levou além de

uma alternância das oligarquias políticas no poder). Para muitos dos jovens ativistas,

atualmente organizados em “coletivos” e de forma “autonomista”, a crise dos partidos

só terá solução se tratada como um problema de “organização”, o que implica

diretamente desfazer as hierarquias das organizações, como definiu um de meus

entrevistados em sua fala no encerramento da Cúpula dos Povos na Rio+20:

(...) quero encerrar a minha fala dizendo que talvez exista um conflito dessa

geração, que talvez seja também um conflito no modo de se organizar, talvez

algo que serviu no passado, algo que serviu para outras gerações já não sirva

mais e que seja necessária outra estrutura (...).

A inexistência de lideranças políticas, a rejeição ao modelo centralizado das

velhas organizações hierárquicas, a proposta de “horizontalidade”, de “auto-

organização”, de “interlocução” em lugar de “representação”, em resumo, ao questionar

– e propor – outra forma de “organização política”, os jovens estavam e estão

desmontando um dos pilares da política que preservou na estabilidade das instituições

até agora a garantia da hierarquia do passado sobre o presente, do tradicional sobre o

novo, e o compromisso com a continuidade. Koselleck afirma que “vivenciamos

rupturas experienciais num ritmo que nunca foi registrado dessa forma em séculos

anteriores”, de modo que “os espaços de experiência das gerações que convivem se

transformam tão rapidamente que as lições passadas pelos avós e netos parecem inúteis”

(2000:276). “Militância autoral”, “desengajada”, “inteligência coletiva”,

“autonomistas”, um mundo de novas categorias começou a aparecer nas falas dos

militantes dos coletivos, dos especialistas em redes sociais, surpreendendo os velhos

intelectuais, pois já havia “nomes” para o que estava acontecendo. Nas manifestações de

junho deu-se uma inversão geracional (MEAD, 1980): enquanto os velhos diziam que

não estavam entendendo nada, se surpreenderam, confessaram seu anacronismo e se

voltaram a rever o passado, os jovens explicavam e ainda diziam: “não começou agora”.

95 http://www.cartacapital.com.br/revista/764/os-sem-lugar-na-atualidade-9406.html

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As manifestações e as crises de interpretação que elas causaram expõem os seus

recortes geracionais. O programa “Roda Viva”, com os representantes do MPL no

centro das indagações, explicando os novos movimentos aos jornalistas, e o debate de

Marilena Chauí com Sergio Amadeu foram demonstrações, às vezes constrangedoras,

da falência das categorias e das novas explicações que eram oferecidas agora pelos mais

jovens96. Aos poucos as manifestações expuseram seus recortes geracionais: as novas

gerações dominam uma tecnologia desconhecida em seu potencial político e pegaram

no contrapé os intelectuais brasileiros desadaptados aos novos tempos e aos novos

meios, trazendo à luz outra ruptura que Manuel Castells (2005) chamou de “brecha

digital”.

Brecha digital é o conceito usado por alguns autores para se referir à defasagem

do acesso às tecnologias digitais entre camadas sociais diferentes, países, regiões, etc.

Manuel Castells (2005) referiu-se à brecha digital “entre gerações” chamando atenção

para o efeito do domínio das novas tecnologias pela faixa etária jovem, como ocorre no

momento atual. Pesquisas realizadas em diversos países apontam que, no critério

utilização da internet, segundo a faixa etária, uma mesma tendência se repete em todos

os lugares consultados: o uso das tecnologias de informação/comunicação é

predominante entre os mais jovens97, uma evidência que dispensaria a confirmação por

meio de dados. Mas, a pesquisa mostra também que não basta ser jovem: a utilização da

internet está também vinculada, como mostram as pesquisas no Brasil e em muitos

outros países, ao grau de escolaridade e renda. De qualquer forma, o que se pode

garantir a partir do quadro constante que se vê é que os indivíduos que frequentam as

redes são predominantemente jovens e com alguma escolaridade. Em sociedades em

transição, como o Brasil, segundo o conceito de Gustavo Cardoso, “as divisões entre

quem usa e quem não usa tecnologias, como a Internet são mais forte e tendem a tornar,

ainda mais, o seu uso dependente da geração a que se pertence: quanto mais jovens,

maior a utilização e quanto maior o nível de educação, maior será o uso” (2005:32).

96 Promovido pela Revista Forum e com mediação do jornalista Renato Rovai, em 19/12/2013. Ver em: https://www.youtube.com/watch?v=uQwYlhwvwWQ 97 No Brasil, o Centro de Estudos Sobre Tecnologias da Informação e da Comunicação confirma que “quanto mais elevada a idade menor a proporção de pessoas que já tiveram contato com o computador”, enquanto que entre jovens de 10 a 24 anos aproximadamente 65% deles são usuários97. Pesquisa ainda mais recente, de Abril de 2011, da COMScore, conclui que, “no Brasil, 63% dos internautas tem de 15 a 35 anos, enquanto no resto do mundo a média de usuários na mesma faixa etária está entre 53%”

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Essa brecha digital, como observa Castells (2005), deverá se fechar em mais

uma ou duas gerações. Segundo o autor, “a questão da pouca familiaridade com a

internet se resolve quando a minha geração desaparecer. Quando por lei biológica

desaparecermos de cena ninguém se colocará os problemas que nos colocamos agora

sobre se a internet é de um jeito ou de outro”98. É plausível pensar que a clivagem

geracional que colocou os jovens em posição de liderança em relação ao conhecimento

técnico, se desfaça no futuro e seja visto como um fenômeno do passado, temporário,

como aponta o sociólogo espanhol, uma vez que as camadas adultas de amanhã serão os

jovens de hoje99, mais habilidosos com as tecnologias, embora nada garanta essa

capacidade de adaptação contínua que nos exige as tecnologias em contínuas mudanças.

Mas, precisamente por carregar as características de uma temporalidade transitória é que

esse é um tema privilegiado para o estudo da juventude atual à luz das transformações

que vimos assistindo (NOVAES, 2005). Não se trata de otimismo, ou pessimismo,

tampouco na crença de um “determinismo tecnológico”: o domínio das tecnologias

digitais por parte das gerações mais jovens é um acontecimento do nosso presente a ser

analisado, e uma das perguntas fundamentais é: como a questão tecnológica relacionada

ao domínio pelas faixas mais jovens altera as relações entre as gerações, à medida que

posiciona os mais jovens de modo privilegiado em relação aos adultos?

Minha percepção é que essa defasagem de conhecimento teria acarretado dois

efeitos. Na esfera do privado, da família e na relação interpessoal entre jovens e velhos,

deu origem a uma “inversão geracional” na ordem da transmissão do saber, com baixo

nível de conflito, e em muitos casos com cooperação. E na esfera pública tem

promovido um “choque geracional”, como ocorreram nas manifestações de junho de

2013, com alto potencial de conflito no mercado e na política. A brecha digital acentuou

98 Ver em http://www.ihu.unisinos.br/noticias/noticias-arquivadas/28245-a-internet-muda-os-paradigmas-da-relacao-entre-comunicacao-e-poder-entrevista-com-manuel-castells 99 De fato, no que se relaciona exclusivamente às faixas etárias, os grupos estão aparentemente se movendo. Os dados de 2010 indicam um crescimento - em relação a 2009 - no grupo de pessoas com 45 a 54 anos de idade acessando a internet, e uma diminuição no número de internautas de 15 a 24 anos. (Fonte: http://erikaheidi.com/2011/04/29/os-numeros-da-internet-no-brasil-dados-mais-recentes-da-comscore/ “O IBGE aponta que, entre 2005 e 2011, o número de usuários de internet acima de 50 anos cresceu 222,3%, chegando a um total de 8,1 milhões de pessoas. E, segundo pesquisa da empresa comScore, conduzida em agosto, 84,2% dos internautas brasileiros acima de 55 anos estão no Facebook e gastam em média 19 minutos por dia na rede social” http://www.pagina22.com.br/index.php/2013/11/telefone-sem-fio-2/#sthash.eqAqmmpI.dpuf

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o fosso/inversão e o protagonismo da juventude atual, modificando, em particular, as

mudanças no modo de reprodução do saber.

Foto de origem anônima

“A inversão geracional” tem sido tratada de forma bem humorada nas conversas

entre as pessoas, e nas redes sociais. E sem esconder as cenas de constrangimentos que

a falta de domínio, ou mesmo o jeito para as novas tecnologias, pelas quais passam

diariamente os mais velhos100. Ao contrário dos “nativos digitais”, também chamados

de e-geração, geração-net, os adultos, geração-TV são neófitos num saber que os jovens

dominam sentindo-se inábeis, quando não excluídos ou marginalizados por sua idade da

modernidade digital que já não consegue acompanhar. Enquanto aqueles surgem como

“líderes naturais”, atualizados, em sincronia com seu próprio tempo, os mais velhos,

sente na pele uma anacronia precoce. Sendo que a experiência da temporalidade se

altera, quando não se inverte. Vicente Góes, da Rede TIG, um jovem de 20 anos,

entende que “se eu uso a internet há anos e minha avó compra hoje um computador para

acessá-la, mesmo que ela tenha três vezes a minha idade, está uma geração depois de

mim em relação a essas informações” (Rede TIG – Rede Interdisciplinar Geracional).

“Estaremos, então, perante situações que desconstroem a visão dominante da “ordem de

100 A questão me parece tão auto-evidente que dispensa comprovações. Veja crônica de Alberto Villas, onde o jornalista fala de sua inadequação em relação às novas tecnologias. “Aperta o play!”. http://www.cartacapital.com.br/sociedade/aperta-o-play-7703.html

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gerações”, na medida em que invertem a relação de poder entre ambas, desarrumam o

arranjo de espaços que a sustém?” (Almeida, et alli, Lisboa, 2013).

As novas tecnologias, como se sabe, transformaram as comunicações, alteraram

os fluxos sociais, a feitura de elos entre os indivíduos, as informações, as relações de

trabalho, o capital, e mais recentemente, fez tremer a política. Há um novo plano de

realidade que vai do virtual ao real e vice-versa, cuja participação depende do acesso às

tecnologias e seus saberes. Não basta comprar novos aparelhos – a brecha digital,

portanto, não se restringe a um recorte de renda - aprender a apertar alguns botões como

fora no tempo da TV e do rádio, e passivamente “assistir”. As novas tecnologias exigem

atitude, atividade, disposição de partilhar e o conhecimento de uma nova linguagem.

Não adentrar ao mundo virtual das novas comunicações significa estar à parte, fora do

seu tempo; é alienar-se de parte importante do mundo. A internet não só permite ao

usuário estar na “condição de sujeito” como exige dele disposição de participar, de se

relacionar, de expor seu cotidiano, sua intimidade, trocar experiências, informações,

criar grupos, fazer ações de ajuda mútua, se engajar em causas políticas, se informar. Há

ainda uma evasão da vida privada e em muitos casos do íntimo, que as velhas gerações

não estão acostumadas, tampouco foram preparadas para uma mudança tão rápida

(BAUMAN, 2011).

A “inversão geracional”, no que se refere ao saber tecnológico, não parece ser,

no entanto, a princípio a origem de conflitos entre crianças, jovens e adultos. É

interessante observar que esse fenômeno tipicamente contemporâneo não afetou as

relações inter-familiar ou mesmo interpessoais - os netos ensinam os avós, os alunos a

seus “mestres”, e os “estagiários” a seus chefes. Nas empresas, os consultores dizem

que “o elemento mais fácil de culparmos pelo distanciamento das gerações é o advento

das tecnologias”, mas os consultores de empresas que hoje vivem crises geracionais,

tiram o peso desse fator”101.

Abaixo destaco o desenho criado pelo Rangel Mohedano “Guarani Kaiowá”,

publicado em 22 de dezembro de 2013, “Ajudando minha avó a usar o computador que

dei prá ela”.

101 http://www.pagina22.com.br/?p=28670#sthash.kkpaVUH9.dpuf).

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A inversão geracional produzida pelas novas tecnologias não distanciou, do

ponto de vista das relações pessoais jovens e “velhos”, mas parcialmente inverteu, ainda

que temporariamente e com possíveis efeitos duradouros, a ordem da transmissão do

saberes. O espaço de desarranjo, que existe como já enfatizado, não está nas relações

interpessoais, está na esfera pública, no domínio da política e do capital, onde a brecha

digital, e a inversão geracional se escancaram. Sua força se bate contra a cristalização

do tempo representada nas organizações e instituições – imóveis - e suas relações –

hierarquizadas. Nas relações de trabalho nas empresas, um dos efeitos da brecha digital

é a “juvenilização da mão de obra” que vem alterando o mercado de trabalho, e mais

uma vez a ordem das gerações no que tange à sua autoridade na transmissão de saberes.

Edgar Morin, em 1962, já havia notado esse “rejuvenescimento dos quadros”, uma

“subida universal dos jovens nas hierarquias correspondente à desvalorização universal

da velhice” (2000:148). O domínio do saber e habilidade sobre as novas tecnologias,

essencial para a reprodução do capital cognitivo que é o que move a dianteira do

sistema está, como disse Auntoun, “na ponta dos dedos dos mais jovens” (1993:2)102.

Lideranças cada vez mais jovens e capazes, na faixa entre 20 a 30 anos, ocupam

atualmente cargos antes reservados aos mais experientes. Na reportagem “Um Mercado

102 Esse fato inédito na história, pouco notado pelos cientistas sociais até recentemente, não passou despercebido das agências da ONU que desde os anos 80 vem mudando seu discurso em relação à juventude que de “problema social” passou a ser considerado “fator de desenvolvimento” (CEPAL, 1998)

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de Trabalho Cada Vez Mais Jovem”, o autor diz que “com a chegada dessa tão

comentada Geração Y103 e suas habilidades, muitos não se dão conta das mudanças que

estão acontecendo no mercado de trabalho. Muita tecnologia, uma galera totalmente

conectada e muitos obstáculos a serem superados”. A juvenilização de uma parte da

mão de obra jovem essencial ao Capital, mais capacitada que os adultos vêm sacudindo

algumas empresas com conflitos geracionais que vão além de problemas de habilidades

técnicas, mas também por outras noções de hierarquização, urgências, objetivos de vida,

etc104, como tem sido falado por diversas revistas de negócios. Na reportagem,

“Relacionamento entre gerações é desafio das empresas”, o professor da Fundação Dom

Cabral, Anderson Santana, explica que: “estamos vivendo mais e passando mais tempo

em atividade produtiva, então as empresas, muitas vezes, se deparam com quatro

gerações diferentes para gerir”, referindo-se aos veteranos, baby boomers, geração X e

Y105. O consultor de carreiras, Sidnei Oliveira, “que é expert nas gerações Y e Z e

mentor de jovens, explica que o mercado de trabalho passou a ser encarado de forma

diferente pela juventude ao longo das décadas”. Segundo ele, a juventude precisa

“entrar no jogo, mas tem demonstrado excessivo desânimo nesse quesito”106. Os muitos

consultores apontam que a geração atual de trabalhadores jovens não tem a mesma

expectativa da geração de seus avós, e pais, de terem relações duradouras com as

empresas. Uma das soluções propostas “para auxiliar nesses novos desafios”: jovens

que querem “desafiar a própria estrutura”,

[...] principalmente do jovem universitário ou profissional em fase de formação ou

recém-formado”, é a participação em um programa de mentoring – processo que

consiste na indicação de um profissional menos experiente para ser "discípulo" de outro

mais sênior, (geralmente um gerente ou diretor). O mentoring representa uma

ferramenta importante para a transmissão da cultura organizacional.

103 Ver em http://www.jb.com.br/sociedade-aberta/noticias/2013/08/24/um-mercado-de-trabalho-cada-vez-mais-jovem/ 104 O site http://www.focoemgeracoes.com.br/index.php/nosnamidia/ é especializado na abordagem do tema das gerações relacionado ao marketing e conflito nas empresas. 105 “Conflito de Gerações”, Isto é dinheiro, 25/11/2009. Página 22 – Revista da FGV-SP. Telefone Sem Fio, e O diálogo intergeracional nas empresas, 11/2013 O site http://www.focoemgeracoes.com.br/index.php/nosnamidia/ é especializado na abordagem do tema das gerações relacionado ao marketing e conflito nas empresas. 106 http://www.jcnet.com.br/Economia/2013/10/mercado-de-trabalho-jovens-necessitam-entrar-no-jogo.html

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Esse problema se reflete na alta rotatividade entre jovens no trabalho. “Entre os

jovens de 18 a 24 anos, a taxa de rotatividade no emprego chega a 77%. Já no grupo de

adultos essa taxa cai para 28%. Enquanto os adultos passam cerca de seis anos em cada

emprego, os mais novos ficam em média apenas dois anos no trabalho”107.

As mudanças nas relações de trabalho têm sido analisadas por muitos

pesquisadores. Sennett (1999) explica que com a “flexibilização” o trabalho deixou de

ser um vínculo duradouro, que se não foi alcançado pela maioria no passado, restou

como ideal na geração anterior. Houve uma “corrosão do caráter”, como denomina o

autor, pelo rompimento de compromissos adquiridos no passado entre Capital e

Trabalho. Direitos sociais foram rompidos, unilateralmente, criando uma “classe

trabalhadora” que já não tem vínculo de “fidelidade” com seu “patrão”. Essa quebra de

um contrato social no mundo do trabalho que equacionou conflitos no passado, precisa

ser repensado para além da “ética protestante”, diz ele, se quisermos entender o que

pensam os jovens sobre o trabalho atualmente. Mas, o formato flexível, “líquido” do

trabalho não propriamente incomoda a juventude – em alguns casos é até mesmo razão

de espanto o querer um emprego duradouro - complementa-se bem com os novos

trabalhadores de TI (tecnologias de informação), por exemplo, e profissionais das novas

mídias, os que trabalham em ONGs, etc. Se as empresas não querem relações estáveis,

os jovens menos ainda, não querem permanecer por muito tempo nas empresas, buscam

“outras experiências”.

Mas, o contraste de uma juventude “empoderada” e com novas possibilidades

abertas pelas novas tecnologias, num mundo pouco afeito à expansão do trabalho,

poupador de mão de obra e cada vez mais concentrado, impulsionam ainda mais as

crises onde estão mergulhadas as juventude. Essa geração “empoderada”, com auto-

estima elevada, otimista, e confiante é muitas vezes taxada de arrogante, “a turma do eu

me acho”108, uma geração que não viveu a repressão da ditadura militar, a depressão

econômica e política dos anos 80 e 90, mas que herdou a crise ambiental, a crise

profunda das instituições políticas, e a “corrosão” do capital, a quebra de acordos

adquiridos nas décadas anteriores.

107Para a sempre lembrada alta taxa de desemprego entre os jovens, alguns pesquisadores explicam que ela “não ocorre porque os jovens têm mais dificuldades para encontrar o primeiro emprego, mas porque eles não permanecem muito tempo nos empregos”. Demografia e mercado de trabalho. Valor Econômico, em 15.02.2013. 108Ver em Revista Época. “A Turma do Eu me Acho”. Acesso em: 22/07/2012. http://revistaepoca.globo.com/ideias/noticia/2012/07/turma-do-eu-me-acho.html

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Capítulo 2: Nas Rupturas, as Permanências e as Diferenças

No capítulo anterior registrei a surpresa, o estranhamento, o sentimento de

anacronia e a crise conceitual que acometeram os intelectuais brasileiros no “Levante”

da juventude em junho de 2013, como indícios das “brechas” que se abriram entre as

gerações – e continuam a se abrir – e que foram vividas como uma experiência singular

pelas gerações mais velhas109. Segundo Reinhart Koselleck, “a singularidade de uma

sequência de eventos pode ser vista empiricamente onde se experimentam surpresas”,

indicando que as coisas não aconteceram segundo o esperado (2014:23). Nessas

ocasiões, diz o autor, “nos deparamos com um novum e, portanto, com um minimum

temporal que define o antes e o depois. Rompe-se, e precisa ser reconstituído, o

continuum entre a experiência adquirida e a expectativa daquilo que virá” (2014:23,

33)110. Não por acaso a novidade das manifestações fizeram os intelectuais brasileiros se

perguntarem não só pelo que estava acontecendo, pela singularidade do evento, mas

também a indagar como aquilo pode ocorrer, o que os obrigou ao mesmo tempo a

repensar “onde isso vai dar?”. São indícios de uma temporalidade que se abriu num

“descolamento” entre o que o Koselleck chamou de “espaço da experiência” (o

presente) e o “horizonte de expectativa” (o futuro), e por isso a necessidade de

reconstituir o “continuum”, o que demandou e ainda demanda grande esforço de

compreensão.

Mas as experiências de singularidades que resultam dos “acontecimentos”, como

explica Koselleck, são apenas parte da verdade. A história, seja ela vista da perspectiva

da história do cotidiano, das instituições, mas também dos grandes eventos, repousa sob

109 A ênfase na novidade foi tamanha entre os que analisaram as manifestações, que algumas lideranças do Movimento Passe Livre, em entrevistas e artigos, lembraram que o ativismo juvenil “não começou agora”, uma frase que reverberou entre os jovens nas redes sociais, o que dá uma medida da invisibilidade dos movimentos juvenis por uma boa parte dos intelectuais e jornalistas, o que é também indícios das brechas entre gerações. Ver em: http://www.cfemea.org.br/index.php?option=com_content&view=article&id=4191:mobilizacoes-de-junho-da-invisibilidade-para-o-mundo&catid=400:numero-175-novembro-a-dezembro-de-2013&Itemid=129 ou em http://saopaulo.mpl.org.br/2013/10/11/o-coletivo-tarifa-zero-e-o-mpl-em-salvador/ 110 Reinhart Koselleck (2006), em seu livro “Futuro Passado - Contribuição à Semântica dos Tempos Históricos”, propõe dois conceitos sobre a experiência do tempo, que são o “espaço da experiência” e o “horizonte de expectativa”. Segundo o autor, passado e futuro se modificam à medida que se alteram as experiências do “presente” dos indivíduos. Para o autor, em alguma medida só existe o tempo presente – o passado é o passado-presente, e o futuro é o futuro-presente –, que é o espaço da experiência, onde convivem diversos estratos de tempo.

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“estruturas de repetição”, de “retardamentos” que não se esgotam nas singularidades dos

eventos e sem as quais os próprios acontecimentos singulares não seriam percebidos ou

experimentados (2014:23). “As experiências não são adquiridas só quando ocorrem,

mas também quando se repetem” e resultam de um processo de acumulação que provém

das gerações passadas (2014:34). A ideia de uma “novidade em estado puro”, portanto,

é apenas parte das impressões mais exteriores causadas pelos acontecimentos

(RIBEIRO, 2013). Em outras palavras, para entender a “novidade” do Levante de Junho

e dos conflitos atuais que mobilizam mais uma vez a juventude de classe média no

Brasil, seria preciso somar outras temporalidades, as quais se observam nas experiências

de “singularidades” e “repetições”, e “acelerações” e “retardamentos” que ocorrem na

vida social. Estratos comuns da experiência temporal acumulados por indivíduos e

gerações contemporâneas que partilham condições sociais ou experiências políticas e

que podem ser percebidos nos vários registros que se assemelham, caso contrário a

história seria inenarrável, e “nenhuma experiência poderia ser convertida em ciência”

(KOSELLECK, 2014:23,35).

A noção de “estratos do tempo” permite tratar de diferentes velocidades de

mudanças, “reunir em um mesmo conceito a contemporaneidade do não

contemporâneo, um dos fenômenos históricos mais reveladores; fazer inventários de

experiências que convivem e dão origem às tensões e crises que afetam os

contemporâneos” (2014:9). São esses vários estratos de tempo convivendo juntos, em

particular nos períodos quando o tempo se “acelera”, os que produzem as impressões de

singularidades, anacronismos tão frequentes hoje em dia entre as gerações mais velhas,

conforme trato no capítulo 3. Para o autor, “em teoria, todos os conflitos, compromissos

e formações de consenso podem ser atribuídos a tensões e rupturas contidas em

diferentes estratos de tempo ou podem ser causadas por eles”. (KOSELLECK,

2014:9,10). Em outras palavras, do entrelaçamento dos vários tempos e ritmos

particulares e simultâneos a um tempo histórico, corporificados nos indivíduos e nas

instituições, com seus tempos particulares, resultam os choques, “as brechas”, a

“competição”, as diferenças, mas também os compromissos e a continuidade entre as

gerações.

Nesse capítulo argumento que a experiência de um tempo singular e de ruptura

registrada na “surpresa” que foi sentida principalmente pelos velhos e vivida pela

juventude em junho de 2013, conforme desenvolvi anteriormente, preserva linhas de

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continuidade da experiência de ruptura geracional dos anos 60, quando outra “brecha”

se abriu nas relações entre as idades, conforme assim entendeu Margareth Mead (1980),

Edgar Morin (2000) e Eric Hobsbawm (1999). Essa ideia de que estamos diante de

outra ruptura geracional foi retomada recentemente por Jesus Martin-Barbero (2012),

Jean Claude Forchin (2003), Michel Mafesolli (2013) e Michel Serres (2014). No Brasil

essa interpretação foi sugerida por diversos pensadores durante a manifestação de junho,

como Renato Janine Ribeiro (2013)111, Werneck Vianna (2013), Assis Ribeiro

(2014)112, José Eduardo Faria (2013)113 e Zuenir Ventura (2013)114. Em conformidade

com esses autores, entendo que os jovens que comandam as muitas manifestações que

são vistas nas ruas e nas redes sociais digitais atualmente estão experimentando outro

momento de “revolta”, uma crise de autoridade que revela alguns sinais de

permanências e semelhanças com a ruptura dos anos 60, quando teve origem a maior

revolta juvenil da história, reencenada nos anos recentes. Sem, no entanto, que se

possam compreender essas experiências como uma mera repetição (CARDOSO, 2005),

e sim lastros das experiências das gerações passadas que retornam para os movimentos

juvenis onde muitas delas nasceram, reatualizadas e reinterpretadas. A maior parte

dessas lutas – algumas frustradas, outras que caminharam lentamente – estão agora

sendo retomadas com força: o ambientalismo, o feminismo e as questões de gênero, as

lutas antirraciais, o problema da representação na política. Ideias e práticas que são

abraçadas por grupos juvenis e, assim como nos anos 60, se diversificam em diversos

movimentos, ocorrendo em vários lugares ao mesmo tempo, tendo apenas dois

elementos em comum: o predomínio dos mais jovens e a vontade de produzir

mudanças, sejam na política em sua forma atual, sejam nas condutas que regem a vida

social, o que leva ao enfrentamento às autoridades instituídas em muitas frentes.

111 Segundo o autor, “minha intuição sociológica é de que é menos a passagem de ônibus e mais a manifestação de desconforto dessa nova geração que não está encontrando um lugar muito claro na sociedade. Vejo esses movimentos como Maios de 68 pós-modernos: emoção coletiva, que provoca o contágio e se alastra de forma incontrolável. Poderá secar, mas com um verdadeiro corte, e o depois não poderá ser como o antes”. http://oglobo.globo.com/brasil/michel-maffesolivejo-esses-movimentos-como-maios-de-68-pos-modernos-8786658#ixzz3mxAZoMtB 112http://www.geledes.org.br/um-paralelo-entre-manifestacoes-de-1960-e-os-movimentos-atuais-por-assis-ribeiro/ 113http://opiniao.estadao.com.br/noticias/geral,de-maio-de-1968-a-junho-de-2013-imp-,1051885 114 http://www.brasil247.com/pt/247/brasil/105834/Zuenir-compara-protestos-atuais-com-os-de-68.htm

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A brecha geracional como proponho tem aqui o sentido de outra experiência de

“descolamento” entre as gerações, inspirada no modelo geológico de Koselleck de

estratos ou camadas. Como se o tempo dos jovens, sujeito e objeto das mudanças, se

“acelerasse”, mas carregasse consigo traços das gerações passadas. Ela é também uma

metáfora que retomo da linguagem utilizada dos anos 60: fosso, brecha, ruptura e

inversão geracional, foi assim que os autores se expressaram para explicar as revoltas

dos anos 60 para além de uma rebeldia juvenil e um mal-estar, mas algo assim como um

descolamento que alterou a posição dos jovens, desencadeou uma crise de autoridade e

impactou as relações entre as gerações contemporâneas e que chega até os nossos dias.

Das continuidades que se pode notar entre as revoltas da juventude dos anos 60 e

a atual, isolei nesse capítulo um aspecto que diferencia profundamente as duas épocas: a

relação dos jovens com suas famílias (o que equivaleria, nas palavras de Koselleck, a

uma “não-contemporaneidade do contemporâneo”). No sentido oposto ao que ocorrera

nos anos 60 e 70, quando os jovens (e as mulheres) se insurgiram contra os valores que

sustentavam o modelo de família nuclear burguesa e ainda patriarcal, atualmente a

juventude não tem na família, propriamente na relação com os pais, seus principais

pontos de atritos. A ruptura entre as gerações e o abalo mais uma vez da noção de

autoridade têm um componente novo atualmente, que difere da ruptura que se abriu

naquele período: sua indignação se volta para a esfera pública, e seu problema

fundamental é o trato com os negócios públicos, a sociabilidade e a moral coletiva,

como procuro demonstrar adiante. Essas contradições me levaram a pensar que o

conflito de gerações que vivemos atualmente conforme propus até agora passa longe do

clássico “conflito geracional entre pais e filhos”, perspectiva que foi consagrada no

passado, mas deixada de lado nas últimas décadas de resto, porque a família como

instituição não é atualmente o palco privilegiado dos conflitos como fora nos anos 60. A

ideia de família como comunidade de afeto e de apoio é uma aspiração dos jovens

atualmente, como pude observar e como tem sido fartamente diagnosticado por diversos

institutos de pesquisa115. E nesse sentido estamos distantes dos conflitos familiares que

marcaram a geração dos anos 60 e cunharam uma “brecha cultural” entre pais e filhos

que, segundo Eric Hobsbawn (1999) e também Edgar Morin (2013), foi o “elemento

desencadeante” do Maio de 68.

115 Ver na segunda parte desse capítulo: “A Família de Amanhã”.

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21. Lembrar (e esquecer) 68.

As manifestações atuais da juventude no Brasil e no mundo nos ajudam a

repensar mais uma vez a memória construída das revoltas juvenis nos anos 60, ao

mesmo tempo em que podem esclarecer algumas das características próprias da geração

atual. Se o Maio de 68 foi a “primeira revolução internacional de jovens” – como disse

Hanna Arendt em seu ensaio “Sobre a Violência”, escrito em 1969 –, em 2011 teve

início uma segunda jornada. Ao menos essa foi a segunda vez, desde os anos 60, que

jovens de diferentes partes do mundo se engajam de forma massiva politicamente. Há

elementos em comum entre os “rebeldes” dos anos 60 e os “indignados” de agora, e

também diferenças marcantes – mais diferenças do que semelhanças, como era de se

esperar. Porém, se quisermos encontrar a “especificidade” dos movimentos atuais tendo

como referência sua “primeira edição”, precisamos primeiramente partir de uma

comparação com base nas semelhanças entre os dois períodos, sobretudo em relação a

alguns pontos que gostaria de destacar: a espontaneidade dos movimentos – em ambos

os períodos, não foram organizados por instituições políticas tradicionais como partidos,

sindicatos e associações –; a presença marcadamente de jovens-adultos; e o movimento

contra as autoridades instituídas116.

Da memória construída sobre os anos 60 entre os intelectuais, em particular

sobre o Maio de 68, restou principalmente o “recalque de 68”117, segundo Morin (1988),

citado por Cardoso (1988), memória sufocada em “complexidade e contradições” e

“apenas rompida nos momentos em que sua visibilidade se realiza, pela via da

comemoração ou pelo seu retorno midiático” (CARDOSO, 1988). O problema que a

Academia passou a enfrentar já a partir do segundo aniversário da “revolução de 68”,

preocupação que se repetirá em 1998 e 2008, era a construção de uma memória, a bem

dizer, de uma a mitificação de um acontecimento que retorna pela “via da

comemoração” a cada dez anos (CARDOSO, 2005). Comemoração acadêmica e

116 Essa conclusão é a que predomina entre os observadores da época – foram consultados os escritos de Hanna Arendt, Otávio Paz e Edgar Morin – e também entre aqueles que a analisaram posteriormente, como Eric Hosbawm, Heloisa Buarque de Holanda e Marcos A. Gonçalves, Luiz Carlos Maciel, Zuenir Ventura, Irene Cardoso e Maria Paula Araújo. 117 Retornarei a essa questão no capítulo 3. Meu argumento é que as gerações dos anos 80 e 90 herdaram o mito idealizado de 68, mas o mais importante é que acabaram por viver, na experiência, a derrota da revolução fracassada já nos anos 70, como mostrou Marcelo Ridenti em “O Fantasma da Revolução Brasileira” (2005).

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midiática, pode-se dizer, uma vez que 68 nunca se tornou uma comemoração popular e

menos ainda oficial em nenhum dos países por onde o movimento se espalhara.

De um lado, o mercado editorial e os meios de comunicação se esforçam para

recolher “a cada dez anos” a memória e os testemunhos dos que viveram “o ano que não

terminou”. De outro, a academia tem retomado essa memória e muitas vezes a tem

“desconstruído”; uma parte se preocupa porque elas distorcem o passado e “escondem

as diferenças” demonstrando que 68 teve razões diversas nos vários lugares do mundo

onde as revoluções ocorreram. Para citar um exemplo, Maria Paula Araújo (2008)

considera:

[...] que de uma forma geral quando se fala em “68” fala-se de eventos muito diferentes

entre si, como se eles tivessem um significado único. (...) “68” não se refere a nenhum

evento preciso, a nenhum acontecimento particular, mas ao próprio ano em si, ao

conjunto de eventos e fenômenos, dos mais variados matizes, que nele ocorreram.

Muitas vezes 68 é associado às rebeliões estudantis – mas elas foram várias e muito

diferentes entre si (grifos da autora).

De 68 se rememora, diz a autora referindo-se aos relatos colhidos, “o seu

espírito”, como se essa experiência não valesse. Em seu artigo, onde analisa as relações

entre história e memória em torno das comemorações de “68”, Maria Paula Araújo faz

crítica aos relatos dos que viveram o período como uma memória nostálgica, carregada

de emotividade, que a autora considera ser a substância do “mito” criado em torno da

década de 60, defendendo como saída contra essa mitificação uma abordagem que

enfatize a “diversidade”, as diferenças entre os próprios movimentos que surgiram

naqueles anos. Araújo insiste que os movimentos de revolta ocorreram no mesmo ano

ou década, mas em diferentes partes do mundo e por razões muito diferentes – qualquer

semelhança com as revoltas atuais não é mera coincidência. Segundo a autora havia

uma só “coincidência” entre todos os movimentos pelo mundo que também foi

observada, como cita, por Hanna Arendt e Otavio Paz em suas tentativas de

compreendê-los: a vanguarda juvenil e o enfrentamento aos poderes.

Nesse vai-e-vem entre o “diverso” defendido pela academia e o “todo” que a

memória constrói, a academia claramente se posiciona nas últimas décadas por

abordagens que valorizam as diversidades das manifestações e minimizam o que a

memória de 68 insiste em lembrar: como um evento “total”, cujo sentimento também se

explica pelo “espírito de uma época”, marco de uma experiência de revoltas que

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envolveram uma geração de jovens. O fato que a memória dos relatos comprova, mas

para o que a academia por vezes torce o nariz, é que não apenas 68, mas a década de 60

teve um significado singular para os jovens naquele momento: o fato de que tenha sido

“mitificado” pelo mass media e pela própria academia não anula essa experiência. O

que gostaria de sugerir é que, a despeito da riqueza que surge da abordagem das

“diversidades”, sua congênere – a unidade da experiência de uma geração que se opôs

aos valores e costumes de sua época – também tem muito a dizer, não podendo ser

lançada à vala dos “mitos”, como se faz algumas vezes. Os livros de Luiz Carlos Maciel

(1987), Os Anos 60; de Zuenir Ventura, O Ano Que Não Terminou (1989); de Fernando

Gabeira, O Que É Isso, Companheiro? (1979); de Vera Gertel (2012), Um Gosto

Amargo de Bala e tantos outros são testemunhos pessoais de uma revolução, sobretudo

política e cultural, que mobilizou e marcou a lembrança – mítica, idealizada e também

frustrada, quando não “recalcada” – de uma geração de jovens. Em resumo, a despeito

de seus múltiplos significados e consequências, a ênfase nas diversidades dos

movimentos – e na própria desconstrução dos eventos, como se tem realizado tantas

vezes – acaba por enredar a experiência dos jovens em complexidade e contradições,

que “impedem a busca por um princípio explicativo”, como afirmou Margareth Mead,

da experiência do maio de 68: a ruptura geracional promovida pelos jovens, um

confronto procedente de uma crise de autoridade que opôs pais e filhos, estudantes e

professores, a velha e a nova política.

Margareth Mead (1997) entendeu ser o demarcado protagonismo juvenil nos

anos 60 uma situação inédita na história, sem comparação no passado, cuja evidência

era o fato de que a ruptura geracional abarcava o mundo todo, sendo que as

particularidades dos acontecimentos não bastavam para explicar a inquietude que

movimentava a juventude em muitos países e continentes. Nesse caso, a ênfase nas

particularidades, segundo Mead, servia para impedir a busca de um “princípio

explicativo”, que era a vanguarda juvenil (o que hoje chamamos de protagonismo118) e

118 O enunciado acerca do “protagonismo juvenil” emergiu no cenário político brasileiro no final dos anos 1980, associado à noção de sujeito de direitos, presente nas diretrizes do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Desde então se tornou presença indispensável nos textos dos organismos internacionais, organizações não governamentais, órgãos de governo, na fala dos educadores. Mais recentemente, a ideia foi também incorporada e aparentemente reapropriada pelos movimentos sociais e coletivos jovens, “empoderados” pelas novas tecnologias digitais e a participação em redes sociais. Dada a importância que assumiu e a materialidade que

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uma revolta contra os poderes que se diferenciavam pela localização, motivos e

objetivos, mas que tinha em comum a vontade de desobedecer ao prescrito seja na lei ou

nos costumes (1997:99-100).

Mas, se a experiência de “revolta” unia a juventude numa crise geracional – o

que possibilitou sua ocorrência, segundo a antropóloga – foi uma mudança no lugar

ocupado pelos jovens em suas relações no mundo adulto, desencadeando uma profunda

alteração nas relações entre os “pais” – aqueles que estão em posição de autoridade,

sejam como progenitores, professores, autoridades políticas, intelectuais etc. – e os que

estavam “chegando ao mundo”119. Em resumo, propriamente falando não era apenas a

emergência da “juventude” em si o que estava em questão, mas o seu lugar na

sucessão/transmissão, na relação entre predecessores e sucessores que havia se alterado.

Em um ensaio traduzido e publicado em francês em 1971, sob o título Le Fossé

des Générations120, Mead propõe um modelo ideal-típico de três diferentes culturas:

“pós-figurativas”, “cofigurativas” e “pré-figurativas”, que coexistiram e podem coexistir

sempre, moduladas conforme os países e os modos de vida. As culturas pós-figurativas

seriam as das sociedades primitivas, ou dos “pequenos enclaves religiosos ou

ideológicos”, onde dominam a tradição e a autoridade dos anciãos. Segundo Mead,

“uma cultura pós-figurativa é uma cultura na qual a mudança é tão lenta e tão

imperceptível que os avôs, segurando os seus netos recém-nascidos no colo, não são

capazes de imaginar para eles um futuro diferente do que foi o seu próprio passado”

(1997:102). Nesta cultura, “o passado dos adultos é o futuro de cada nova geração”,

escreve. Numa cultura “cofigurativa”, ao contrário, a influência provém dos “pares”,

dos jovens entre si, os quais “substituem cada vez mais os pais como modelos de

comportamento” (1997:107). Essa “nova cultura”, em que os “velhos” perdiam

influência e autoridade, surgia nos anos 60 e era a razão do conflito que, segundo a

autora, criou um “fosso” entre as gerações (MEAD, 1997, FORCHIN, 2003). produziu, o tema será alvo de consideração nessa tese. Ver mais em CEPAL, 2001; Espíndula, 2009; Turino 2005. 119 Os chegados ao mundo são os “novos”, oi neoi, como chamavam os gregos, segundo Hanna Arendt (1997). A questão do “novo” é categoria central no pensamento de Hanna Arendt, no sentido de que ela atribui a cada indivíduo o poder de uma “ação original”, como ser singular que é, o que dá início a novos processos. Em vários de seus escritos, como A Condição Humana, A Crise da Educação e Sobre a Violência, Arendt sugere que a juventude é portadora do “novo”. Sua maneira de ver e tratar os jovens tem alguns pontos de semelhança com o de Karl Mannheim. 120 Para essa tese utilizei-me de uma versão em espanhol, cujo título é: Cultura y Compromisso – Estudio Sobre La Ruptura geracional, (1997).

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Por último, Mead propôs que os anos 60 já anunciavam no horizonte o

surgimento de outra cultura, “pré-figurativa”, que é quando os jovens tomam vantagens

em relação aos adultos em vários setores da vida social, causando uma “inversão, como

já ocorre atualmente (CANCLINI, 2014)121. A cultura “pré-figurativa” que Mead já via

surgir no seu “horizonte de expectativa” era aquela em que:

(...) os indivíduos se parecem com imigrantes totalmente estranhos, onde as antigas

ferramentas, os antigos pensamentos se tornaram obsoletos e onde é muito melhor ser

um jovem sem bagagem do que um adulto atravancado pela memória de um mundo

irremediavelmente perdido (1997:102).

Tratava-se de uma “reviravolta paradoxal das relações entre gerações no final da

qual mais vale a disponibilidade do que a maturidade, mais vale a indeterminação do

que a experiência” (FORCHIN, 2003:7). Assim, para Margareth Mead, as razões da

crise geracional/de autoridade nos anos 60 iam muito além dos conflitos causados pela

“rapidez atordoante das transformações, ou mesmo ao desmoronamento da família, ao

apodrecimento do capitalismo, ao triunfo de uma tecnologia sem alma, ao declínio das

instituições e dos valores estabelecidos”.

Ainda que todas essas questões estivessem implicadas (1997:103), segundo “o

princípio explicativo” de Mead, as revoltas dos jovens causaram até mais que uma crise

entre gerações, mas uma inversão de papéis, o que de fato desencadeou a crise de

autoridade, que não podia ser compreendida como mera rebeldia. Ela era – e é

atualmente – outra crise geracional, porque deslocava a relação entre jovens e velhos

objetivamente, e materialmente em termos competitivos, e não só no plano do desejo.

Assim como Margareth Mead, Eric Hobsbawn assinalou que o surgimento

naquele período de uma “cultura juvenil específica, extraordinariamente forte, implicou

uma profunda mudança na relação entre as gerações” (1999:317), a qual chamou de

“inversão”. Antes mesmo, segundo Forchin, Edgar Morin, em seu livro O Espírito do

Tempo122 publicado em 1962, foi um dos primeiros a “evidenciar a importância

crescente do fato juvenil e da cultura que a ele estavam associados”, tendo criado a

noção de “brecha” entre as gerações para explicar as revoltas dos anos 60 (2003:13).

121 Videoconferência CLACSO. 122 Esse era o título original do livro. À edição brasileira foi dado o título de Cultura de Massa no Século XX, volume 1: Neurose, e volume 2: Necrose. Citei o título no original porque me parece ter sido essa sua intenção – falar de um “espírito do tempo” – o que numa certa medida é falar de uma geração.

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Em resumo, para os autores citados, esse era o resultado mais importante daquela

revolução cultural que mudou a face do mundo: a juventude, um “grupo com

consciência própria se tornava um agente social independente”, tendo protagonizado

acontecimentos políticos dramáticos, agitado a cena cultural dando enormes lucros à

indústria do entretenimento, à moda e ao consumo cultural (HOBSBAWN, 1999:317).

Afirmar que a juventude se tornou um “agente social independente” significa dizer que

os jovens, como uma classe de idade, passaram a ter maior peso na balança de poder nas

relações com o mundo adulto e maior influência na esfera pública. Em outras palavras, a

novidade a partir dos anos 60 não era apenas a presença desse novo personagem que

apresentava “certa coerência de conjunto” e por isso se podia falar em “gerações”. Mais

importantes são as mudanças que essa nova presença marcante promoverá nas relações

entre adultos e jovens, no processo de transmissão, nas disputas intra e intergeracionais,

nos laços sociais bem como na noção de autoridade.

Paradoxalmente, o que melhor explicava as revoltas da juventude nos anos 60

era seu caráter “diverso”, melhor dizendo, abrangente – político, cultural e moral - uma

crise de autoridade, cuja característica é a de se espalhar em varias direções e lugares.

Crise na educação, conflitos geracionais familiares, crise política que abalou o processo

representativo: em todas essas crises havia um elemento comum, em resumo, o que

estava sendo contestado nos anos 60 era a autoridade do saber dos mais velhos sobre os

mais jovens, ora surgindo como uma inversão, ora como um fosso nas relações entre as

gerações. Segundo Morin, no Maio de 68 “evidentemente” o que unia os jovens era uma

revolta contra a autoridade que tinha características diferentes: “no leste europeu era

contra a ditadura do partido; nos países ocidentais era, ao mesmo tempo contra a

ditadura da família, isto é, a autoridade paternal, dos professores da Universidade e do

Estado” (2008)123. No Brasil, à época, o jovem filósofo Luis Eduardo Faria (1978),

escrevendo apenas dez anos depois, em 1978, considerava que

[...] o difícil ano de 1968 assistiu não somente a um mero conflito de gerações, mas sim

a um dos momentos culminantes da crise de autoridade que vem envolvendo o mundo

contemporâneo desde o início da década de 60. Como o pior inimigo da autoridade é o

desrespeito, foi justamente pela perda de confiança em seus mestres que os estudantes

sentiram-se tentados a substituí-la pelo poder (a capacidade de agir em conjunto),

invertendo as regras do jogo e tentando ditar seus próprios destinos.

123 Entrevista, 2008. http://www.ihu.unisinos.br/noticias/noticias-arquivadas/13828-o-maio-de-68-e-uma-manifestacao-da-crise-de-civilizacao%60-diz-edgar-morin

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2.2. O Retorno do Herói

No dia 26 de agosto de 2015, dez mil jovens se aglomeraram nas arquibancadas

da UERJ para ouvir José “Pepe” Mujica, o velho guerrilheiro tupamaro e ex-presidente

uruguaio que vive uma vida despojada de luxos e afirma que “a riqueza não é o mais

importante, mas o tempo livre”. O grupo Mídia Ninja gravou um vídeo da

conferência124 com uma linguagem grandiloquente e criou um cartaz onde se

conjugavam o símbolo hashtag e a palavra Pop Mujica, sugerindo o encontro de

gerações que “numa noite histórica vibrou com a política como num show de rock”, diz

a frase do cartaz, estampada sobre uma imagem com milhares de jovens tendo Mujica à

frente, transformado em Pop Mujica, como um herói que retorna do passado no

presente, “o último herói”125.

Segundo o jornalista do jornal El Pais, que esteve no evento, Mujica ganhou o

“status de guru e filósofo internacional de toda uma geração”. Mas, por que Mujica atrai

e inspira a juventude atual? O que justificaria essa aproximação e identificação dos

jovens com um ex-guerrilheiro de 80 anos, que viveu uma revolução fracassada? Não

parece ser “culto ao passado” ou a moda da “retromania” o que explica essa empatia,

mesmo porque a iniciativa dela não partiu dos jovens, mas do próprio Mujica, que se

“convidou”, conforme informaram os jornais126. Há razões até bastante objetivas e

124 Ver em: https://www.youtube.com/watch?v=rgIyprZDiX8 125 Título de um documentário que está sendo gravado pelo cineasta Emir Kusturica. 126http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2015/08/visita-de-jose-mujica-deixa-lotado-anfiteatro-da-uerj.html

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evidentes que nos ajudam a entender melhor o interesse do velho Mujica pelos jovens e

dos jovens por Mujica: uma parte significativa da juventude de classe média, na faixa

entre os 20 e 30 anos, universitários e/ou jovens trabalhadores, dos centros às periferias,

estão à frente e retomando lutas e reivindicações que foram continuadas ou abertas pela

geração de Pepe Mujica, e algumas que o próprio ex-presidente fez caminhar em sua

gestão: a aprovação da descriminalização da maconha – que no Brasil tem mobilizado

grupos juvenis nas várias edições da “Marcha da Maconha”, promovendo debates e

avanços legais importantes nessa direção – e também do aborto, sendo esse último uma

reivindicação defendida por grupos feministas, um dos movimentos que mais têm

avançado nos anos recentes, como é visível nas redes sociais e também na imprensa

corporativa127.

Cresceram na última década os movimentos ecológicos/ambientalistas, uma

“consciência” tipicamente contemporânea, que ganha mais adeptos desde os anos 60 até

os dias atuais e, embora ainda com pouca expressividade, tem enorme capilaridade,

sobretudo entre os jovens. A sensibilidade ao problema ambiental, como retomo

adiante, é um caso exemplar do descolamento que ocorre entre os jovens e os poderes

públicos. Em outras palavras, a sensibilidade dos jovens – e de uma parte da sociedade

adulta de classe média – passou “à frente” das iniciativas tomadas pelas autoridades

públicas, ou pelas empresas, em um caso de “retardamento” das instituições, gerador de

temores, desconfianças, desencontros e conflitos, como sugeriu Koselleck (2014).

A crise ambiental está também presente, influenciando muitas das mudanças de

ideias e hábitos entre os jovens. Pesquisas de marketing no Brasil e nos EUA128, por

exemplo, registram com surpresa o desinteresse das gerações de agora por carros, um

“sonho de consumo” que mobilizou as duas gerações anteriores, signo indiscutível de

status bem como de necessidade nas grandes cidades, considerando a falta de transporte

público e a opção pelo modelo “rodoviarista”. Retornam também “utopias” relacionadas

127 De acordo com o levantamento feito pelo coletivo gaúcho Think Olga, “a palavra ‘feminismo’ teve crescimento de 86% nas buscas” na internet recentemente. O tema ganhou ainda mais relevância nas redes sociais após o tema da redação do Enem e o movimento “Primeiro Assédio”, ambos em 2015. http://brasil.elpais.com/brasil/2015/08/30/opinion/1440958019_211256.html 128 A pesquisa O Sonho Brasileiro, produzida pela agência de pesquisa Box1824, especializada em comportamento, mostra que comprar um carro é prioridade para só 3% dos jovens de 18 a 24 anos. Conclusão semelhante foi obtida nos EUA pela agência de pesquisa MTV Scratch, e comentada em artigo no New York Times com grande repercussão no Brasil. http://www.mtvscratch.com/

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ao ambientalismo que têm raízes nos anos 60, como a adoção de práticas de vida

comunitária – como as ecovilas – e a busca por uma vida saudável e coletiva, com

práticas voltadas ao “natural” o retorno aos costumes “dos povos tradicionais”. O

“veganismo”, por exemplo, deixou de ser uma excentricidade para ganhar milhões de

adeptos129.

Ao questionar a validade atual da forma e conteúdo da representação política – a

hierarquia partidária, exigir transparência, consenso e horizontalidade, só para citar

alguns exemplos – os jovens praticamente feriram de morte a política como ela se

organizou até hoje. No entanto, mesmo esses questionamentos não são a mais pura

novidade. A vontade de “reinventar a política”, como surge agora, já estava presente nos

anos 60, na formação de grupos juvenis de estudantes, artistas e jornalistas, unidos em

torno da UNE, do CCP, nos movimentos da chamada contracultura. Eram jovens que

não se identificavam com os partidos e sua estrutura autoritária, hierárquica, e seu

dogmatismo ultrapassado – atualmente fala-se em “horizontalidade” e “coletivo”. Isso

significava naquele momento uma novidade do ponto de vista da representação, do

fazer político e de suas possibilidades de renovação para além das velhas estruturas

partidárias dominadas por antigas oligarquias e velhas mentalidades, problemas que os

jovens enfrentam ainda hoje (BUARQUE, 1982).

As lutas políticas atuais não retornam aos anos 60, evidentemente. De lá para cá

houve importantíssimos avanços do ponto de vista legal e subjetivo em relação aos

problemas relacionados aos direitos das mulheres, dos homossexuais, ao racismo, assim

como a sensibilidade ao problema ambiental. Nos anos 80, como explicou Sader,

surgiram “novos atores” na política e “se integrava a ideia de pluralismo, a introdução

da questão de gênero, de raça, oxigenando-se a luta de classes e, para alguns, até

substituindo a luta de classes pelos embates sociais” (1988). Mas esses avanços que

ocorreram nos anos 80 com a entrada dos “novos atores na política”, como nomeou o

autor, é preciso lembrar, não teve participação massiva dos jovens de classe média, que

ao contrário “saíram de cena” e se mantiveram à margem da política, tanto em sua

localização geográfica – os movimentos que surgiram vieram das periferias, onde estão

129

Veganismo é uma filosofia e um estilo de vida que busca excluir todas as formas de exploração e crueldade contra animais na alimentação, vestuário e qualquer outra finalidade; e por extensão, que promova o desenvolvimento e uso de alternativas livres de origem animal para benefício de humanos, animais e meio ambiente. Na dieta, significa a prática de dispensar todos os produtos derivados em parte ou totalmente de animais. Fonte: http://www.veganismo.org.br/

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as “minorias” – como em suas práticas, alijando partidos e sindicatos do papel de

representantes. Como mostra Sader, a partir dos anos 80 esses movimentos vão se

organizar em torno de “questões materiais”, sendo que o ímpeto revolucionário que

havia alimentado a imaginação dos jovens de classe média havia se apagado (RIDENTI,

2005; MACIEL, 1987). Dos anos 90 em diante, os pesquisadores vão documentar

“novas formas de fazer política” entre os jovens, sobretudo com movimentos nascidos

nas periferias das grandes cidades que uniram músicos, pichadores, grafiteiros,

movimentos negros e feministas.

Atualmente, não há como não reconhecer que vivemos uma “primavera política”

(Martins, 2013) no Brasil, impulsionada pela indignação dos jovens que lideram as

discussões sobre os problemas coletivos e de ordem pública. Essa explosão de

indignação que, como uma bomba de fragmentação, atira em várias direções e é

abraçada pelos jovens é aqui compreendida, portanto, primeiramente partindo de seu

sentido geral: trata-se mais uma vez de uma crise que opõe a juventude às autoridades,

desafiando os poderes, e nesse sentido há semelhanças com os anos 60. Mas também há

diferenças marcantes: as revoltas atuais voltam-se em particular contra as autoridades

políticas, ou seja, é uma luta por “cidadania” com um foco voltado às causas dos

direitos humanos, naturais e das minorias. As revoltas atuais assumem assim um perfil

“estritamente” político, mesmo quando voltadas ao campo da cultura e da família. Seja

negando ou propondo algo, as revoltas atuais têm uma característica menos

“existencialista”, menos “libertária”, menos “individual”, atitudes que marcaram as

experiências mais radicais nos anos 60 – voltadas à luta pela “cidadania” e focadas nos

direitos humanos. A geração atual de jovens não quer “desbundar” ou “negar o

sistema”, como foi o desejo da geração dos anos 70, sobretudo. Também não é a luta de

classes, corporificada nos sindicatos e nos direitos trabalhistas, o que mobiliza os

jovens. Os “ativistas” de agora se ocupam menos com as ideologias no sentido

tradicional, são assim menos “politizados” e mais pragmáticos e se engajam na

conquista de “leis”, questões voltadas à “esfera pública” que vão da educação aos

direitos humanos e “naturais”. Um exemplo: na questão das drogas, os jovens não estão

defendendo experiências “psicodélicas”, e poucos defendem que as drogas “expandem a

consciência”, mas querem sua “descriminalização”, o que também pode ser

compreendido como uma vontade de “normalização”. Na mesma direção da

“normalização” se voltam os casais homoafetivos, que militam pela aprovação de leis

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que reconheçam o casamento e a formação de família. Com a mesma lógica pode-se

pensar o problema da descriminalização do aborto: o espaço de luta é o da cidadania,

dos direitos, e os conflitos se dão na esfera pública – não no interior da família –, em

torno da militância por novos e outros marcos legais.

2.3. A família que não é a de ontem

Uma das maiores surpresas dessa pesquisa foi perceber que, em meio às revoltas

e indignações que explodem no espaço público, os jovens parecem conviver bem com

suas famílias, e mais que isso, a família como instituição é muitíssimo valorizada por

eles, o que tem sido fartamente diagnosticado nas pesquisas, conforme cito a seguir. No

sentido oposto ao que ocorrera nos anos 60 e 70, atualmente a juventude não tem na

família, propriamente na relação com os pais, seus principais pontos de atritos. Nas

redes sociais, fotos carinhosos dos avós, dos irmãozinhos, dos pais, dos filhos e uma

“curtição” com a parentela130 se misturam às notícias de indignação contra o poder

público, “o governo”, as empresas e as distorções da mídia. A brecha entre as gerações e

o abalo mais uma vez da noção de autoridade têm um componente novo que difere da

ruptura que se abriu naquele período: seu palco é a esfera pública e seu problema

fundamental é o trato com os negócios públicos, a sociabilidade e a moral coletiva.

Enquanto a família prossegue se transformando (ainda que os conservadores, que nunca

fazem leituras históricas, anunciem mais uma vez o “fim da família”), mais igualitária e

menos permeada por conflitos morais. A ideia de família como comunidade de afeto e

de apoio é uma aspiração dos jovens atualmente, e nesse sentido estamos distantes dos

conflitos familiares que marcaram a geração dos anos 60 e cunharam uma “brecha

cultural” entre pais e filhos, que, segundo Eric Hobsbawn e Edgar Morin, foi o

“elemento desencadeante” do Maio de 68131. Embora não se esgote numa perspectiva,

Hobsbawn igualmente entendeu que a “melhor abordagem” para se compreender a

revolução cultural dos anos 60 era “através da família e da casa, isto é, através da

estrutura de relações entre os sexos e gerações” (1999:314). Segundo o autor foram as

mulheres e os jovens os principais agentes da “revolta cultural” daqueles dias. Revolta

130 O “grupo de família” no Whatsapp é uma das manias recentes nas redes sociais. Ver em: 131 O autor afirma que teria havido “certa liberalização dos costumes”, fato que chocava a família, “por esta razão o chamamos de brecha, como uma via de água na linha de flutuação do grande navio” (MORIN, 2008). Entrevista, ver em: http://www.ihu.unisinos.br/noticias/noticias-arquivadas/13828-o-maio-de-68-e-uma-manifestacao-da-crise-de-civilizacao%60-diz-edgar-morin

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esta contra a família tradicional patriarcal e todo o sistema de autoridade, que atestavam

as novas relações entre pais e filhos e entre os sexos, “com mudanças bastante

dramáticas nos padrões públicos que governavam a conduta sexual, a parceria e a

procriação” (1999:316). De fato, como enfatiza, nos anos 60 “estava claro que alguma

coisa incomum se passava no casamento ocidental” e nas relações entre gerações (1999:

315).

Se vista de uma perspectiva de longa duração, seja com base na antropologia, na

história ou na psicanálise, a transformação da família havia começado muito antes

(ROUDINESCO, 2002), a novidade nos anos 60 estava no fato de que a crise saía, ou

talvez melhor dizendo, vazava da fortaleza familiar e vinha a público: os novos papéis

“assumidos” pelas mulheres, pelos jovens – que criavam os conflitos internos –

passaram a ser trazidos à luz, valorizados e mesmo publicizados, incorporados que

foram pela propaganda, pelo cinema e a pela TV. Juntamente com a crise entre os sexos

na família, na esteira da liberação feminina, surge a “juventude” como uma “classe de

idade independente”, uma novidade no mundo naquela magnitude. A onda jovem era

um fenômeno que foi grandemente incentivado e moldado pela indústria cultural, mas

cujas raízes se vinculavam a uma conjuntura de mudanças que afetavam diretamente os

jovens: o aumento da escolaridade, do contingente demográfico, do “mal-estar da

modernidade”, da crise política e da própria crise da família. Ao criarem uma cultura

própria e afirmarem-se em seus pares, como propôs Margareth Mead, “os jovens

manifestavam sua vontade de autonomia em relação aos pais e ao mundo adulto”, o que

explodiu primeiramente no interior da família, com consequências sistêmicas, e alterou

o lugar dos jovens na sociedade (1980:103). A cultura de massa, segundo Morin, que

fornece conteúdo e forma às revoltas juvenis e à nova família, vai potencializar ainda

mais a “desagregação dos valores gerontocráticos, acentuar a desvalorização da velhice,

dar forma à promoção dos valores juvenis”. (MORIN, 2000:157). O novo modelo nos

anos 60 que se projetava na cultura de massa, segundo o autor, “é o homem e a mulher

que não quer envelhecer, que querem ficar sempre jovem para sempre se amarem e

sempre desfrutarem do presente” (MORIN, 200:157). Assim, os modelos dominantes

não seriam mais os da família ou da escola, mas os heróis da imprensa, da TV e do

cinema, todos jovens. A identificação não será com os pais, os professores, mas com os

“pares” – mudança cultural, como já citada, que Mead (1997) nomeou de “pré-

figurativa” – uma “brecha cultural” que se abre entre pais e filhos, e será promotora de

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grandes choques familiares. Com essas novas atitudes, os jovens expressavam sua

negação à família e aos valores burgueses, e suas aspirações mais profundas estavam

“em evidente contradição com o processo de integração na sociedade que lhes era

proposta”: constituir uma família e uma “carreira” (MORIN, 2008).

No Brasil, Zuenir Ventura (1989) vai descrever e tornar inesquecível e

idealizado o ano de 1968, “que não terminou” porque marcou uma geração de jovens

com novas atitudes que se opunham à “caretice” da “sagrada família”: as drogas, a

minissaia, os cabelos longos, a pílula anticoncepcional, as ideias socialistas e libertárias

que escandalizavam os mais velhos. Mas não foi “só” a mudança dos “costumes” que

dividiu os jovens e suas famílias. No Brasil, a resistência à ditadura militar teve adesão

de uma pequena, mas expressiva parte da juventude de classe média, estudantes

universitários que não contavam com o apoio da família – ao contrário de o que ocorre

em nossos dias, quando pais e filhos estão lado a lado nas ruas132 –, seja pelos riscos

embutidos na militância à época, mas também porque a crise de autoridade paterna se

misturava às lutas políticas contra os “generais”, aliados das famílias, e o

conservadorismo patriarcal e religioso representado na “Marcha da Família Com Deus

Pela Liberdade”.

A ênfase na aproximação entre pais e filhos e na reconstrução da família mais

igualitária, conforme documento abaixo, ressalta sobretudo a inversão da tendência que

já vinha dos anos 60 de enfraquecimento do núcleo familiar, com a crise do casamento,

das gerações e da própria figura do pai, que na versão dos casais jovens reaparece

transformada na figura do “pai ativo”, mas menos assentados na figura da autoridade. O

que parece interessante ressaltar é que essa valorização dos laços familiares e a redução

dos conflitos no espaço privado se dão em sentido oposto às revoltas contra as

autoridades públicas.

2.4. Crise do Modelo e Crise da Família

Diversas pesquisas demonstram que atualmente a família é um valor

fundamental para os jovens: é a instituição em que eles mais confiam, a que mais dão

valor e mais têm medo de perder. O apego dos jovens às famílias tem grande peso entre

132 Elizabeth Lorenzotti, jornalista, comentou em sua página do Facebook, no dia 04 de abril, a propósito das ocupações das escolas estaduais de São Paulo, movimento contra a proposta de reorganização das escolas que, “em 68 a minha geração estava nas ruas e nossos pais eram contra. Em 2015 a meninada estava ocupando escolas com o apoio dos pais”.

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os religiosos e conservadores, como é esperado, mas cresceu e se mantém há algumas

décadas entre jovens de modo geral. Para esse texto, foram consultadas 7 pesquisas com

jovens, baseadas em métodos quantitativos e qualitativos de cinco fontes diferentes,

realizadas por órgãos do governo e institutos de pesquisas. Inicio citando dados

extraídos das pesquisas consultadas, que tratam de temas variados e trazem resultados

importantes sobre o tema da relação entre os jovens e suas famílias.

A pesquisa Dossiê Universo Jovem versão 3, realizada pela MTV Brasil em

2005, mostrou que as relações entre pais e filhos são consideradas “ótimas ou boas” por

89% da amostra. A versão 4133, realizada em 2008, destaca que da amostra pesquisada

(num universo de 77% de jovens solteiros e 97% morando com a família) 73% afirmam

ter boa relação com os pais e 90% boas relação com as mães. A boa relação com as

mães também é destaque da pesquisa realizada pelo IBOPE/Opinião134, indicando que

“a mãe é a figura central da família para 53% dos jovens adolescentes quando querem

conversar sobre os seus problemas”.

Resultados semelhantes em relação à família se repetem na pesquisa do

DataFolha, “Nativos Digitais”, publicada em 2015135, cujos dados colhidos em relação

ao item família foram matéria de destaque da Folha de São Paulo, embora não fossem

novidade em relação aos dados da pesquisa anterior, realizada em 2008. Segundo a

pesquisa, a família aparece em primeiro lugar quando se trata de avaliar, em uma escala

que vai de nada importante a muito importante, diversos itens da vida: “a família vem

em 1º lugar para 99% dos jovens, ao lado da saúde, também 99%, e do trabalho, 98%,

“e são mais representativos que amigos, dinheiro, internet e sexo”, os outros itens

elencados na pergunta. Segundo o comentário dos jornalistas que assinam a matéria, “o

estereótipo do jovem revoltado, que rompe com a família e a sociedade e deseja viver

em um mundo à parte, não combina com o brasileiro que tem entre 16 e 24 anos”. O

perfil da amostra apontava que os jovens são “ligados à família e que valorizam muito o

trabalho e o estudo”.

133 Os objetivos da pesquisa foram “discutir as questões e percepções dos jovens sobre o futuro e conhecer o entendimento que eles têm sobre o meio ambiente”. O perfil do jovem analisado foi: jovens de 12 a 30 anos, classes ABC, estabelecendo-se a faixa de 15 a 30 anos para análise. A idade média do jovem nesse estudo é de 21 anos. No que se refere à classe social, 5% da amostra pertencem à classe A, 37% à classe B, e 58% à classe C. 134 Financiada pela UNICEF/Instituto Ayrton Senna e pela Fundação Itaú Social. Dados sobre a amostra. 135 Dados sobre a amostra. http://temas.folha.uol.com.br/folha-20-anos-na-internet/

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As pesquisas não esclarecem mais profundamente que tipo de relação os jovens

têm com suas famílias, mas deixam algumas pistas que sugerem a importância dos laços

familiares no item que mais preocupa os jovens, o problema do “emprego”. A pesquisa

“Juventude e Integração Sul-Americana: Diálogos Para a Construção de Uma

Democracia Regional”, realizada em 2008 pela Polis/IBASE, mostrou que no caso da

pergunta “Quem Ajudou a Conseguir Trabalho Remunerado?” a resposta mais frequente

foi “ninguém ajudou”, com 32,8%. A ajuda da família vem em 2º lugar, 28,8% dos

casos, seguindo de “vizinhos e amigos”, 25,7%.

A pesquisa “Adolescentes e Jovens no Brasil: Participação Social e Política”, de

2007, realizada pela Ibope/Opinião, no mesmo quesito “como conseguiu o emprego?”

vê-se que o emprego dos jovens adolescentes é resultado da sua rede de relações

pessoais e da iniciativa própria para 93% dos que trabalham (39% dos jovens

conseguiram emprego por meio de suas famílias, 32% por meio de amigos e

conhecidos, e 22% por iniciativa própria). Apenas 3% conseguiram emprego a partir da

escola, de ONGs ou de programas sociais do governo. Por outro lado:

[...] o destino da remuneração dos entrevistados que conseguiram se inserir no

mercado de trabalho se divide, de uma forma equilibrada, entre os que precisam

e não precisam ajudar a família. Somente 8% dos jovens adolescentes entregam

todo o salário para a família; 47% têm que dividi-lo, pagando parte das despesas

da casa; e 44% ficam com o que ganham.

Na “Pesquisa Nacional Sobre o Perfil e Opinião dos Jovens Brasileiros”,

realizada em 2013 pela Secretaria Nacional de Juventude, quando perguntado aos

jovens sobre a percepção sobre ”fatores mais importantes para a vida hoje”, aparece em

1º lugar a família (75%), à frente de outros itens como apoio de amigos e conhecidos, de

políticas do governo, etc. O segundo item na ordem de importância “para a vida hoje” é

o “esforço pessoal” (69%). O “apoio da família” aparece mais uma vez como

importante para os jovens quando é o caso de “melhorar de vida” (40%), mas vem em

2º lugar. Em primeiro, os jovens escolheram o “esforço pessoal” como o mais

importante. Esses dados sugerem que a valorização da família não ocorre em detrimento

da crença na iniciativa individual, mas talvez o oposto, uma vez que os jovens

atualmente se tornam mais independentes, em muitos casos precocemente, e também

mais solitários, já que é comum que todos os membros da família trabalhem fora de

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casa. Como indicam os resultados das entrevistas da pesquisa realizada pela MTV,

versão 2005, “os jovens externam a percepção de que os pais estão ausentes” e se

ressentem do tempo de convivência cada vez mais restrito. Porém, segundo a avaliação

dos pesquisadores, “isso não significa que o relacionamento ou a convivência sejam

avaliados como difíceis ou ruins. Pelo contrário” (24).

O ambiente doméstico é bom, a abertura para o diálogo é fato. Os horários são

diferentes, os pais trabalham demais, não fazem as refeições juntos ou conversam pouco

quando se encontram, mas isso não chega a ser algo muito insatisfatório, embora seja,

por vezes, ressentido.

Os dados recolhidos pela pesquisa IBOPE/Opinião trazem outros dados

interessantes, sugerindo que o convívio dos jovens com suas famílias, além dos vínculos

materiais e apesar (ou por causa) da distância, se assentam em fortes laços de afeto, e

menos conflitos:

Ao serem indagados porque consideram a relação com sua família muito positiva ou

positiva, os entrevistados apontam: por sermos muito amigos/termos uma relação de

amizade (35%), por sermos muito unidos (29%), por termos uma relação de diálogo

(26%), pela ajuda/apoio que damos uns aos outros (11%). Do outro lado, os 7% que têm

uma relação negativa apontaram as brigas, a falta de diálogo e a desunião como os

motivos principais.

O “filho-cangurú”, que os americanos chamam ironicamente de “filho-

bumerangue”, não quer sair de casa (“não vejo a hora de não sair de casa”, diz um

jovem consultado pela pesquisa MTV Brasil). Segundo a pesquisa:

[...] o índice de jovens que têm pouca ou nenhuma vontade de sair de casa, apesar de já

ter sido maior (82% em 1999), continua ainda muito expressivo: 71%. O bom

relacionamento familiar – por vezes fruto de relações consistentes, por vezes fruto de

pouco contato, muita liberdade e portanto nenhum conflito – aliado ao conforto do lar,

faz com que a independência plena e os compromissos que dela resultam não pareçam

muito mobilizadores (2008:21).

Os realizadores da pesquisa do IBOPE/Opinião fazem uma interpretação ao final

do texto sobre as relações “positivas” dos jovens com suas famílias atualmente, com

base nos dados colhidos que ajudam a compreender porque os resultados são mostrados

muitas vezes carregados de surpresa, quando não se atribui a uma “atitude

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conservadora” a valorização que essa geração conserva às famílias. A interpretação dos

realizadores da pesquisa é que:

Se nas décadas de 1960 e 1970, a família foi alvo de um questionamento

radical, no início do século 21 ela é vista sob uma perspectiva bastante positiva,

particularmente no que diz respeito à relação com a mãe. Em contrapartida, o

mesmo não se pode dizer sobre o pertencimento à comunidade. É possível

inferir que, em um mundo marcado pela instabilidade dos valores, a

desconfiança com as instituições sociais e as incertezas em relação ao futuro, a

família representa um ponto de referência afetiva e estabilidade. Essa instituição

é extremamente valorizada pelos entrevistados: 92% têm uma relação positiva

ou muito positiva com a família (UNICEF, 2007: 61).

Por fim, a pesquisa da IBOPI/Opinião destaca que o valor atribuído pelos

adolescentes e jovens à família contrasta com a “forte preocupação com questões

coletivas, muito mais do que com problemas individuais”, sendo que “a intolerância

com a corrupção, a consciência sobre a discriminação racial e a angústia gerada pela

falta de segurança no país se destacam no estudo” (2013:5).

Os dados de todas essas pesquisas citadas surpreendem por duas razões. Uma

que tem a ver com questões passadas, trata-se de uma comparação com momento

anterior, e outra que diz respeito à nossa contemporaneidade, o fato inusitado de que em

meio ao desmoronamento das instituições e da autoridade que se observa, a instituição

familiar apareça agora, depois de atravessar uma profunda crise, como instituição “mais

confiável”. Uma mudança de direção em relação aos prognósticos pessimistas que

vaticinavam o “fim da família” como instituição nos anos 60, com “os questionamentos

radicais dos jovens” – o sexo livre, a união homossexual, a pílula anticoncepcional. E

que na visão dos conservadores vai se confirmar em alguma medida, em 1977, com a

aprovação da separação legal, o desquite, e mais tarde nos anos 90, com o divórcio. A

causa da estranheza e da dificuldade de aceitar que os jovens se importam com suas

famílias é a proximidade, há poucas décadas – e isto ainda está na lembrança de muitos

– a família passou por uma crise não apenas de “modelo”, mas uma crise “da família”,

que teve origem nas relações entre seus membros e evidentemente impactou as relações

sociais e as revoltas dos anos 60 e 70.

Os estudiosos da família e das relações de gênero ressaltam – inutilmente – há

décadas de que a família não está desaparecendo. Os argumentos mais comuns, neste

caso, giram em torno das mudanças nos padrões de comportamento desde o aumento de

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novos tipos de uniões entre os sexos, o declínio da fecundidade, aumento das mães

solteiras e de separações e divórcios, novos padrões de sociabilidade e relações de

gênero, até a participação de mulheres, crianças e adolescentes no mercado de trabalho

formal e informal (GOLDANI, 1990). Em 1990, em meio às discussões acerca do

divórcio, Goldani escrevia que:

[...] a polêmica ideia de que diminuiu a importância da família e que a

instituição familiar está em dificuldades e ameaçada volta a ser objeto de

especulação tanto nos discursos dos líderes políticos e religiosos, como entre os

acadêmicos e demais cidadãos.

Os pesquisadores têm chamado atenção já há décadas para a diferenciação entre

aquilo que se entende como crise do modelo de família e crise da família – das relações

de afeto, compromisso e autoridade entre seus membros. Como afirma Goldani (1990),

o mito da crise da família tem como corolário formas “fixas” de famílias, que no Brasil

têm como referência a família patriarcal e a família nuclear de classe média. A

dificuldade está em ver os arranjos familiares menos como “modelos” e mais como

“configuração” e processo. Em suma, se confunde a crise do modelo tradicional de

família com a própria crise da família. Embora essa discussão não seja nova na

academia, ela tem pouca aceitação entre religiosos, entre os mais conservadores, está

nos livros escolares, nas referências da publicidade, das novelas, etc. A ideia de que

deve haver um “modelo de família” continua forte, e obscurece o desejo dos jovens

atualmente por laços familiares.

A Nova Família: Moral de Menos

A crise dos anos 60 procede de uma revolta “interna” à família, primeiramente

das mulheres e depois dos jovens, contra o modelo assentado na autoridade do pai, na

reprodução e no consumo (HOBSBAWM, 1999). A família nos anos 60 se modifica

primeiramente a partir de dentro, nas relações entre os sexos e entre as gerações. O

lugar do problema nascia da falência nas relações privadas, a moral da família, o lugar

do pai, a autoridade, o lugar de cada um, a liberdade sobre o próprio corpo etc. Os anos

60 e 70 de fato foram marcantes na crise do casamento tradicional, e a juventude viveu

e promoveu experiências conflitantes com suas famílias, aquelas resumidas em tintas

fortes por André Gide: “família, eu te odeio”! No Brasil, nos anos 70, Raul Seixas não

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via valor em “praia, carro, jornal, tobogã”, achava “tudo isso um saco”, um tédio com a

família, qualquer tipo de família, em particular para a juventude “rebelde” a família

sagrada e burguesa. Não foram muitos os jovens que aderiram ao casamento livre, à

união homossexual, à pílula anticoncepcional, mas foram representativos de uma

batalha contra uma muralha dos ideais patriarcais, burgueses e religiosos.

No sentido oposto ao que se esperava e foi prognosticado, houve uma

aproximação nas últimas décadas entre pais e filhos, tendo como referência a crise

familiar nos anos 60. O que importa ressaltar é a presença de uma reidealização da

família por parte dos jovens como comunidade de afeto, mais democrática, mais

igualitária e mais “autonomista”. Isto é resultado de um longo processo de

transformação da própria família, pressionada pelas circunstâncias históricas – a entrada

da mulher no mercado de trabalho, a redução do número de filhos, as modificações da

sucessão da herança, a aprovação do desquite e do divórcio etc. – a família se

transformou em sua configuração, na posição entre seus membros, na redução de

conflitos ideológicos, mas também no distanciamento – cada qual com seu quarto, e

com seu computador. Atualmente, a valorização da família é um fenômeno de classe

média que está presente tanto na juventude mais conservadora, como se vê por exemplo

na retomada de rituais como do noivado e grandes festas de casamento136. Mas não

menos observáveis são as atitudes da juventude de classe média politizada,

universitários e ativistas que passaram a valorizar a maternidade, a defesa do parto

natural, “humanizado”, no resgate de técnicas naturais e antigas do cuidado com os

bebês. Em nada conservadores, são os mesmos que apoiam o casamento gay, o aborto,

defendem uma família “democrática”, mais horizontal, mais “autonomista” e com

menos conflitos morais.

O poeta e escritor Fabio Carpinejar, hoje com 42 anos, ao se referir à relação

com seus pais, expõe os conflitos ideológicos vividos na passagem de sua juventude e

considera a si e a seus contemporâneos como “órfãos de geração”:

E quando você descobre que seu pai é racista, o que fazer? Quando você percebe que

seu pai acha absolutamente normal chamar alguém de macaco, que seu pai acredita que

negro é preto, que é absolutamente contra cotas, onde colocar seu desespero? (...) Qual

o desencantamento quando você entende que ele é seu pai biológico, mas não é seu pai

ideológico, muito menos seu pai espiritual, que não concorda com nenhuma de suas

136

Citar pesquisas anteriores.

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convicções sociais? (...) Não é somente decepção, é uma humilhação interminável. Pela

distância de geração, não tem como convencê-lo (grifo meu).

Na crônica publicada em seu blog137, o escritor fala do sentimento de uma

geração de classe média, hoje adulta, que viveu a crise da família nos anos 60 e são os

pais da geração atual, muito mais tolerantes em relação às escolhas dos filhos do que

foram os seus, mais conservadores. No que tange à família, mais recentemente, como

observam diversas pesquisas138, as gerações de pais e filhos (e entre os avós, já que o

aumento da longevidade tornou a figura do avô muito mais frequente), ao contrário do

que ocorrera nos anos 60, vive um momento de aproximação, sobretudo entre famílias

de classe média, nas quais os jovens contam com maior tolerância, por exemplo, em

relação à orientação sexual; ao uso de drogas leves como a maconha; à “gravidez

inesperada”, que não é mais “motivo-de-vergonha-para-a-reputação-da-família”, e cujos

bebês são em muitos casos bem recebidos por uma geração de casais maduros que

“curtem” os netos com menos tabus a respeitar, desfeitos pelo anonimato das grandes

cidades, pelo relaxamento das tensões em torno de temas relacionados ao sexo, pela

conquista da privacidade etc. E mais recentemente, jovens e família se unem contra as

autoridades políticas, como se viu nas manifestações (e há poucos meses, em São Paulo,

no movimento de resistência ao fechamento de escolas estaduais).

As questões homoafetivas podem ser tomadas como exemplo da valorização e

da transformação inusitadas no interior da família, já que, como cita Roudinesco, a

orientação homossexual foi reivindicada no passado como uma “ruptura com toda

forma de adequação possível a um polo parental de referência”, e por isso foi vista

como ameaça não só à procriação, como no caso do aborto, mas à “diferença” que

estrutura a ordem da família (2002:7). Pois a evidência mais impressionante de que a

ideia de família sofre uma metamorfose, que a autora chamou de um “fato inédito” que

“nem os antropólogos, nem os psicanalistas, nem os filósofos, nem os sociólogos, nem

os historiadores tinham realmente imaginado” é o desejo dos casais homoafetivos de se

“normalizarem”, reivindicando o direito ao casamento e à adoção. Morin também

observa em livro mais recente, e com certo espanto, que “até mesmo os casais

137http://oglobo.globo.com/blogs/fabricio-carpinejar/posts/2014/09/04/orfaos-de-geracao-548391.asp 138 Ver Forchin, op. cit.

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homossexuais, masculinos ou femininos, interiorizam e assumem plenamente a dupla

qualidade de pai e mãe” (2011: 359), o que sugere uma reprodução de um modelo.

Mudam as gerações, mudam os conteúdos de suas disputas, as formas e os

lugares. Na grande mídia e nas redes sociais são notórias reportagens que tratam do

tema da homossexualidade, agora de um ponto vista dos “pais”, ou seja, da família. O

canal de humor gay no Youtube Põe na Roda, combativo e de grande sucesso nas redes,

criou dois vídeos – Não Basta Ser Pai e Mãe Sempre Sabe – falando de como pais e

mães de filhos homossexuais reagiram à notícia e como convivem bem e têm orgulho

dos filhos139. A revista Crescer da Editora Globo, voltada à classe média, fez entrevista

de grande repercussão nas redes sociais com Marcelo Tas para contar “como sua filha

Luiza se tornou seu filho Luc”.

A luta pelos direitos relacionados aos casais homoafetivos, apesar da reação das

lideranças religiosas conservadoras, ganham cada vez mais adeptos – até do Papa140 – e

são impulsionadas e lideradas pelos próprios jovens, em muitos casos com adesão da

geração mais velha141. Notícias como “reação de alunos faz professores pararem com

piadas homofóbicas de cursinho”142; “denunciar o sexismo é um esporte em

ascensão”143; “alunos do Colégio Pedro II fazem 'saiaço' em apoio a estudante

transgênero proibida de usar saia na escola do Rio”144; “o deputado Jean Willis foi

escolhido pela presidente Dilma como representante da juventude brasileira”145 são

exibições de uma nova atitude da juventude e dos adultos, o que influencia o universo

familiar.

139 Ver em: https://www.youtube.com/watch?v=eNErLUZcUAc 140 Ver em: http://colunas.revistaepoca.globo.com/brunoastuto/2013/03/22/papa-francisco-defende-uniao-civil-gay-diz-jornal-nyt/ 141 Silva Tranquilin (2011), da mesma forma, observa que “hoje vemos que a discussão a respeito da homossexualidade ganha força no cotidiano: a questão sobre as diferentes orientações sexuais vem sendo colocada em larga escala nas mídias; as atitudes homofóbicas ganham críticas severas; (...) o Estado propõe que esse universo chegue de forma mais consciente às salas de aula, enfim, vive-se um momento especial em nossa sociedade para que a homossexualidade seja realmente discutida”. (2011: 6,7) 142 Ver em: http://www1.folha.uol.com.br/educacao/2014/08/1498195-reacao-de-alunos-faz-professores-pararem-com-piadas-homofobicas-de-cursinho.shtml 143 Ver em: http://www.cartacapital.com.br/sociedade/denunciar-o-sexismo-e-um-esporte-em-ascensao-2335.html 144 Ver em: http://www.brasilpost.com.br/2014/09/10/alunos-saia-rio_n_5800304.html 145 Ver em: http://www.diariodocentrodomundo.com.br/essencial/dilma-diz-que-jean-wyllys-sera-representante-da-juventude-brasileira-malafaia-reage-evangelicos-acordem/

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A homossexualidade é uma das questões mais complexas e sensíveis para o

universo familiar, mais do que o aborto, causadora de até mesmos grandes tragédias e

que esteve até hoje encoberto, quando não interditado pela família conservadora, isto é,

o que era anteriormente exclusivo da esfera do privado, quando não do interdito,

aparece nesse momento sendo tratado, comentado, propagado no espaço público. O

próprio reacionarismo de alguns grupos da direita conservadora é talvez uma das

melhores contraprovas de que houve uma “flexibilização” dos costumes, o que na

prática significa uma acomodação de conflitos entre pais e filhos146. O Estatuto da

Família, proposto recentemente na Câmara dos Deputados, de cunho conservador, é um

projeto natimorto, uma vez que contraria normas estabelecidas pelo STF. O tema da

família está mais uma vez em discussão, mas não propriamente em crise, como gostam

de afirmar os conservadores, e sim com grande interesse da parte dos jovens, como

prova a enquete realizada pela Câmara dos Deputados sobre o “conceito de família” que

bateu recorde de participação, tendo sido respondida por mais de 6 milhões de

pessoas147.

Os direitos caminham, embora lentamente, na direção pretendida por essa antiga

minoria perseguida, para espanto dos religiosos e conservadores. De acordo com Nabil

Bonduki, vereador de São Paulo, pela primeira vez no Brasil, “um casal de mulheres

funcionárias de um banco privado conseguiu licença maternidade para ambas, e, em

junho, pela primeira vez no Brasil, um homem em um relacionamento homoafetivo,

servidor público da Prefeitura de Recife, conseguiu 180 dias de licença maternidade”148.

Elizabeth Roudinesco em seu livro “A Desordem da Família”, ao se referir ao

desejo de normalização se pergunta o que teria acontecido:

[...] nos últimos trinta anos na sociedade ocidental para que sujeitos qualificados

alternadamente de sodomitas, invertidos, perversos ou doentes mentais tenham desejado

não apenas serem reconhecidos como cidadãos integrais, mas adotarem a ordem

familiar que tanto contribuiu para seu infortúnio? Por que esse desejo de família,

146 De acordo com a pesquisa Perfil de filhos da nova classe média, 49% dos jovens aprovam o casamento gay, e 52% aceitariam "numa boa" ter um filho homossexual. 147 Para ver resultado, consultar: http://www2.camara.leg.br/enquetes/resultadoEnquete/enquete/101CE64E-8EC3-436C-BB4A-457EBC94DF4E 148 O vereador, que dialoga com as pautas da juventude, apresentou um projeto de ampliação de licença paternidade não só para “casais tradicionais”, mas também para casais homoafetivos, que garante direitos de igualdade a todos. Ampliar a licença paternidade, Carta Capital, novembro de 2014. Ver em http://www.cartacapital.com.br/sociedade/ampliar-a-licenca-paternidade-8563.html

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inclusive considerando que a homossexualidade sempre foi repelida da instituição do

casamento e da filiação, a ponto de se tornar, ao longo dos séculos, o significante maior

de um princípio de exclusão? (2002:7)

Retomando o manifesto publicado em 1973 por um grupo de intelectuais na

revista Recherches149 intitulado Três bilhões de perversos, a autora lembra que o mote

do documento, um démarche, era reivindicar o “direito à diferença”, que os

conservadores o acusavam de ter abolido:

Digamos simplesmente, acrescentavam [os que assinavam o manifesto] que dentre

alguns outros o homossexual pode ser, pode se tornar o lugar de uma ruptura libidinal

importante na sociedade, um dos pontos de emergência da energia revolucionária

desejante cujo militantismo clássico permanece desconectado (...) A singularidade de

um destino, mesmo o da anormalidade, lhes parecia preferível a toda forma de opressão

—familiar, colonial, sexual. A família era então contestada, rejeitada, declarada funesta

ao desabrochar do desejo e da liberdade sexual. Assimilada a uma instância

colonizadora, ela parecia carregar todos os vícios de uma opressão patriarcal, que

proibia às mulheres o gozo de seus corpos, às crianças o gozo de um autoerotismo sem

entraves, aos marginais o direito de desenvolver suas fantasias e suas práticas perversas.

Édipo era então, com Freud, Melanie Klein e Lacan, considerado cúmplice de um

capitalismo burguês do qual era preciso se livrar sob pena de recair no jugo do

conservadorismo. (...) Hoje em dia tais declarações são julgadas obsoletas pelos

interessados, e mesmo hostis à nova moral civilizada em busca de norma e de um

familiarismo redescoberto. Pois tudo indica que o acesso tão esperado a uma justa

igualdade dos direitos em matéria de práticas sexuais — para as mulheres, para as

crianças, para os homossexuais — tenha tido como contrapartida não a proclamação de

uma ruptura com a ordem estabelecida, mas uma forte vontade de integração a uma

norma outrora infame e fonte de perseguição. (...)150

O “beijo gay” e os personagens de casais homoafetivos agora comuns nas

novelas da Rede Globo, por exemplo, levando os problemas para os “sofás das famílias”

são marcos dessa mudança no Brasil. Tranquilin (2011), em sua análise da novela

Insensato Coração, da Rede Globo, afirma que:

149 Março de 1973. Entre os participantes estavam os nomes de Gilles Deleuze, Michel Foucault, Jean Genet, Félix Guattari etc. (Apud, ROUDINESCO 2002). 150 Como consequência, não é mais a contestação do modelo familiar que incomoda os conservadores de todos os lados, mas, ao contrário, a vontade de a ele se submeter. Temem que se trate da decadência definitiva, já esperada, dos valores tradicionais da família “e da autoridade sob todas as formas”. Excluídos da família, os homossexuais de outrora eram ao menos reconhecíveis, identificáveis, marcados, estigmatizados. Integrados, tornam-se simplesmente mais perigosos, uma vez que menos visíveis; esse o risco da abolição da diferença.

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[...] pela primeira vez há um núcleo homossexual no horário nobre da Globo. Abordar

as questões relativas à homossexualidade ou mesmo à homoafetividade não é novidade,

mas as personagens normalmente gravitam em torno de alguns núcleos que compõem a

narrativa. Dessa vez, além de ter vários personagens homossexuais é possível sentir a

forte presença de elementos narrativos que fazem a mediação entre a realidade e a

ficção, formando assim uma estrutura coesa – e não fragmentada – que se constitui em

um núcleo homossexual. (4) Dessa forma, ao mesmo tempo em que a personagem vai

descobrindo particulares do universo gay, os receptores vão acompanhando seu

aprendizado e assim podem vê-la como alguém que ao mesmo tempo em que aprende,

compreende e não julga (4). Interessante notar que a troca de olhares apaixonados, as

tímidas declarações, abraços carinhosos são constantes em cena, mas somente quando

estão a sós, quase nunca em frente às outras pessoas/personagens que fazem parte da

dramatização da telenovela. Parece que a Globo está dizendo: “olha, quando for

possível essa relação será assumida para que todos possam ver”! (6) A novela mais

recente da Globo coloca em cena dois casais homossexuais, sendo um deles um casal de

“terceira idade”, protagonizados por Natália Thimbergh e Fernanda Montenegro.

Os avanços, embora lentos, em relação à criminalização da homofobia e ao

casamento entre indivíduos do mesmo sexo são leis, que se podem dizer tardias em

relação à mudanças que já estão sendo vividas e que serão criadas para reconhecer e

legitimar um sentimento que com o tempo adere a um clima de “relaxamento sexual”,

que em concreto significa uma acomodação dos conflitos entre pais e filhos em questões

“ideológicas” ou em torno de “valores”. Pais e filhos estão atualmente mais próximos

em assuntos que de resto os jovens estão ensinando aos mais velhos, não só em relação

à homofobia, mas à rejeição ao racismo, à necessidade de preservação do meio-

ambiente e também na insatisfação com o sistema político151. No tema da política, por

exemplo, não é incomum que os jovens sejam “líderes” e formadores de opinião na

família, o que significa espaço conquistado e redução das tensões com os pais e mães,

que sem posição de autoridade, como fora no passado, aceitam ser orientados e

ensinados pelos filhos, o que é um forte indício também da “inversão geracional” e que

de resto já havia sido observado por Hobsbawn nos anos 60 – “o que os filhos podiam

aprender com os pais tornou-se menos óbvio do que o que os pais não sabiam e os filhos

sim. Invertem-se os papéis das gerações” (Hobsbawn, 1999:320). No site da BBC, a

reportagem “Jovens ganham força como formadores de opinião na família”, um dos

entrevistados afirma que:

151 A pesquisa da Unicef mostrou a preocupação dos jovens com o preconceito racial que vem em 2º lugar entre os principais problemas do país, após corrupção”; em 3º vem o problema da violência.

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[...] minha família (mãe e irmãos) é bem conservadora e sempre fui a ovelha negra.

Nossos debates de hoje em dia são em voz alta. Mas tenho abertura quando eu falo. Já

consegui derrubar preconceitos contra cotas raciais, contra o uso de maconha ou mesmo

a ideia de que produtor cultural é vagabundo. São pequenos tabus que vão se

quebrando"152.

Esses jovens se inserem em um perfil que, segundo analistas, está se tornando

mais comum, sobretudo na nova classe média. Mais familiarizados com a internet e bem

informados que seus pais, segundo Renato Meirelles, esses jovens estão se tornando, a

seu modo, formadores de opinião com cada vez mais influência em suas famílias e

comunidades. Se a família não é atualmente – importante dizer – fonte de autoridade

como foi no passado, ela é desejada como espaço de conforto, de segurança e de laços

afetivos, resultados de “pouco contato, muita liberdade e nenhum conflito aliado ao

conforto do lar”153.

Em 1962, em plena crise das relações familiares, Edgar Morin, escreveu: “o

‘família, eu te odeio’ perde seu sentido nessa era em que, como diz Vadim, ‘os meninos

e as meninas’ não se debatem contra a moral de seus pais ou da sociedade,

simplesmente a ignoram” (MORIN, 2000:149), se referindo à ruptura que se abriu no

interior das relações familiares. Em 2011, atestando as mudanças contemporâneas,

Morin reescreve (2011:359)

O livro Famílias, Eu Vos Odeio, de André Gide, é formulado a partir do momento em

que a família começa a se enfraquecer. Hoje, porém, após a crise da família e da família

como resposta à crise do individualismo, a necessidade da família faria com que se

aspirasse a um: “Família, eu as tenho!”. Perder o vínculo da família constitui uma perda

irreparável.

Morin concorda em livro recente que, se as famílias se desintegram muito mais

rapidamente – o que sugere que as tensões nas relações entre os sexos são bastante

presentes –, “os indivíduos entregues à solidão, nostálgicos do amor e do lar, encontram

novos parceiros, reconstituem um casal, casam-se de novo, desejam um filho do seu

novo amor”. No Brasil, o último censo mostra que o número de divórcios continua alto

no país, mas recuou em relação ao período anterior, enquanto o número de casamentos

152www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2014/09/140829_eleicoes2014_jovens_politica_salasocial_pai 153 Trata-se de certo exagero, mas que não se pode dizer equivocados, dados os resultados das pesquisas, e se comparados a períodos anteriores. Ver anteriores citadas.

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aumentou!154 Também cresce cada vez mais, em nome dos laços afetivos, a “separação

de casais sem ódio” que formam outras famílias e convivem pacificamente – surge em

grande número a figura do “meio-irmão”. A “família multicomposta”, uma nova figura

jurídica que entra para o Código Civil, já tem até representante no Brasil. O portal

Catraca Livre deu a notícia: “bebê terá duas mães, um pai e seis avós registrados em

certidão”155:

Maria Antônia é a primeira criança a ter na certidão uma família multicomposta. O 1º

Cartório de Registro Civil de Santa Maria (RS) registrou esta semana uma recém-

nascida com duas mães, um pai e seis avós. Maria Antônia é filha do casal homoafetivo

Fernanda Batagli Kropenski, de 26 anos, e Mariani Guedes Santiago, de 27. O seu pai,

Luis Guilherme Barbosa, amigo do casal ajudou na concepção e tem o nome no registro

da criança. O juiz Rafael Cunha salientou que essa criança terá desde o nascimento o

reconhecimento de um "ninho multicomposto". Por ser uma decisão inédita, o cartório

precisou adaptar o sistema de registro para que o documento pudesse contar com nove

nomes. Mostrando assim a diversidade das famílias.

Entre jovens casais a família é grandemente valorizada atualmente e se

recompõe e renasce a partir de outros princípios, outras regras. Minhas pesquisas no

Facebook, na imprensa e nos dados das pesquisas, colhendo relatos, me levaram a crer

que, entre os jovens, a família, a maternidade, e talvez outra novidade – a paternidade –,

se revalorizam enormemente, mas bem longe do modelo burguês da família nuclear,

daquela classe média para quem, diz ironicamente o colunista, “o carro é um lar”156. A

família mais uma vez é palco de transformações, mas de uma perspectiva bastante

diferente do que fora nos anos 60, cuja “brecha cultural” esteve na origem de uma crise

de grandes consequências. Mas seria um erro qualificar a revalorização da família por

parte da juventude como um “movimento conservador”. Há de fato um retorno ao

passado que está presente em outras práticas, como mostrarei a seguir, mas que nesse

caso nada tem de conservador, e muito mais de alternativo e de resistência à destruição

dos laços e dos afetos: o renascimento da “família comunidade”, democrática, e também

a valorização da maternidade e da paternidade para muitos casais jovens, é uma atitude

política e uma forma própria de inserção no mundo adulto da família. O uso de

154 Ver em: http://ultimosegundo.ig.com.br/brasil/2013-12-20/numero-de-casamentos-mantem-alta-mas-divorcios-caem-em-2012-no-pais-diz-ibge.html. 155 Ver em: https://catracalivre.com.br/geral/cidadania/indicacao/bebe-tera-duas-maes-um-pai-e-seis-avos-registrados-em-certidao-de-nascimento/ 156 Pesquisas recentes demonstraram (surpresas!) que a geração atual de jovens tem menos interesse por ter um carro, fetiche das gerações passadas. Citar pesquisas.

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carregadores de pano, partos sem analgesia, a shantala para bebês, amamentação ao

seio, parto na água e “parto humanizado” são práticas adotadas por mães jovens que

revelam a valorização da maternidade e da relação com os filhos. O “renascimento do

parto”157, a negação da cesariana, vista no passado como alívio para as futuras mães,

para muitas jovens é um resgate de um direito sequestrado das mulheres. Larissa

D’Alkimin, jovem liderança do Partido dos Trabalhadores, em sua página do Facebook

escreveu:

Vejam a cara dessa mãe na foto. Todas as mulheres que conheço que tiveram um parto humanizado e respeitoso, dizem que foi o momento mais incrível de suas vidas. Para todas eu pergunto da dor, todas dizem que doeu mas valeu a pena. Todas tem vontade de viver aquilo de novo e sentem saudades do parto. Muitas, por causa da experiência maravilhosa, decidem ser doulas para proporcionar essa experiência a outras mulheres. Muitas dedicam a vida na luta para que todo parto no Brasil seja humanizado. Eu AMEI meu parto (e sim, doeu, mas até a dor fez parte da magnitude dos sentimentos que vivi). Eu tenho saudades do meu parto. Eu passaria tudo de novo, e de novo e de novo. Eu luto pela humanização do parto no SUS, para que isso deixe de ser um privilégio de classe. Eu luto pelo empoderamento das mulheres. Porque muitas lutaram antes de mim, e por causa delas o meu parto foi meu, do meu jeito, tão maravilhoso que não existem palavras pra descrever o que senti. Meu muito obrigada a todas as mulheres que lutam, em todas as lutas. Gratidão.

Não só a valorização da maternidade e das práticas antigas ao cuidado de bebês

e crianças, mas também o “companheiro”, o pai, é figura agora obrigatória na hora do

157 A prática vem se configurando como um movimento político liderado por jovens mães. O filme, “O Renascimento do Parto”, ganhou vários prêmios em festivais internacionais e foram produzidos com recursos provenientes de financiamento coletivo. Ver em: http://www.orenascimentodoparto.com.br/

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parto. As transformações que ocorrem na nova família e no cuidado dos filhos sofrem

outra contorção para incluir o papel que os homens devem ter no contexto familiar e no

cuidado dos filhos, uma “paternidade ativa”158. Segundo Morin, recentemente as

famílias se reestruturam:

O homem vai assumir certo número de tarefas domésticas antes reservadas à

mulher (...). O pai dominador cede lugar ao indulgente. Isso promove uma

relativa democratização da organização familiar (...) que passa gradualmente do

modelo igualitário homem/mulher, e na relação pais e filhos do modelo de

obediência, ao modelo da tolerância. (MORIN, 2011: 358) 159

“Família-Cooperativa”. Publicado na página do Facebook de Camila Mello, em 03/2014.

Em 1962, Edgar Morin anunciava “o começo do fim dos pais”, atualmente se

fala em “pais ativos”, mas não mais aquele pai montado na figura da autoridade: os

atuais são “companheiros afetuosos”, quando não “maternais”, e que de modo geral

vivem uma relação mais harmônica com os seus filhos (do que fora a sua relação com

os seus pais), do que é prova o “filho-canguru” que não quer sair de casa. A família foi

um espaço conquistado pelos jovens (e pelas mulheres) e cedido pela autoridade paterna

(mesmo que exercida pela mãe), em pleno desgaste na contemporaneidade, por jovens

pais “incapazes de impor uma autoridade na qual não acreditam” (Hobsbawn, 1999).

158 Segundo o vereador, professor da USP, “na Suécia, a licença é parental, ou seja, são 480 dias de licença para o casal, sendo que cada um é obrigado a tirar pelo menos 60 dias, e o restante dividir como quiser. Na Alemanha, a mãe tem licença-maternidade de dois meses, e o casal pode requerer mais 12 meses e também dividir como quiser. No Canadá, o governo garante 245 dias de licença, a divisão dos dias fica a critério de cada casal. As famílias de baixa renda recebem um auxílio extra”. 159 A valorização da família convive atualmente com a violência doméstica, o estupro, a violência contra crianças, questões que são agora trazidas à esfera pública por terem se tornado intoleráveis; trata-se de expor feridas e dar as últimas tacadas no modelo patriarcal, que ainda resiste em alguns lugares e encobriu conflitos incompatíveis com a nova família, des-hierarquizada.

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O desmonte da figura da autoridade paterna que se processa no interior da crise

da família resulta na “ausência do pai” e cria como complemento “a mãe sacrificada”, e

por isso mais próxima dos filhos, como mostram as pesquisas, mas que significa para os

jovens um vínculo preso à “culpa” pela mãe sacrificada. Essa sensação de viver entre o

“abandono” e a “culpa” está bem representada no filme “Geração Prozac”, que melhor

tipifica a geração dos anos 80 e 90, mas que pode ter dado origem ao desejo da geração

atual por “pais responsáveis” e “ativos” e “mães libertas”, que preservam sua vida social

e suas individualidades mesmo sendo mães, uma exigência que vem dos próprios filhos.

O enfraquecimento da imagem paterna enquanto entidade ordenadora se dá

concomitante a – e talvez em detrimento de – o reconhecimento da imagem da “mulher-

mãe-trabalhadora” (e “sempre-jovem”), figura forte do lar, como símbolo e realidade,

mas que também não é mais a imagem da “mãe-conforto”. Edgar Morin afirma, em “O

Espírito do Tempo”, que a decadência da imagem do pai (e da mãe envolvente) ocorreu

nos anos 60, “em benefícios de grandes autoridades paternais-maternais, como a Nação,

que é o Estado-pai e Pátria-mãe, a Igreja, até mesmo o partido, e de outro lado os

modelos da cultura de massa”, heróis do cinema, da TV, das revistas (MORIN,

2000:150).

A crise que vivemos atualmente é de tal ordem justamente porque não há

modelo, instituição ou figura de autoridade, muito menos alguém que encarne um

projeto de futuro, uma apreensão que aproxima mais uma vez pais e filhos, que se

encontram na mesma insatisfação, como se viu nas manifestações de junho em relação à

classe política e aos serviços públicos.

Publicado na página do Facebook de Vanessa Santos, em 02/03/2015.

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A boa relação que os jovens têm no interior da família, embora não mais

assentada em uma figura de autoridade, organizadora das diferenças, passa por outras

razões: o reconhecimento do “sacrifício dos pais” – a ascensão educacional dos jovens é

vista como uma “conquista da família”. Ainda que os jovens não manifestem com

clareza, há “um compromisso de retribuição” que envolve o papel conferido ao jovem

nos planos familiares de ascensão, ou de manutenção de posição social. Assim, essa

obrigação implica responsabilidade:

Tanto em relação ao seu próprio destino pessoal como em relação ao destino familiar.

Seu compromisso é o de fazer efetivas as conquistas e de propiciar novos avanços (...)

existe a expectativa de que sua realização profissional possibilite a manutenção ou a

melhora da posição relativa da família em termos de estratificação social (AUGUSTO,

2005:15).

Esse compromisso ético de retribuição com a família, que pesa sobre os jovens,

e sobre todos, contrasta com a irresponsabilidade do poder público, um dos motivos

porque a política é alvo de indignação dos jovens e dos velhos. Numa visão

simplificada, o senso comum entende que enquanto a família de classe média se

“sacrifica”, o poder público age desperdiçando o dinheiro público. E por isso, enquanto

os conflitos entre pais e filhos se enfraquecem, estão sendo aprofundados em relação às

figuras de autoridade que ocupam posições públicas. Se essas conclusões estiverem

corretas, implicaria dizer que a crise da autoridade que se aprofundou mais

recentemente não tem como uma de suas fontes de conflito o núcleo familiar e

doméstico, que se acomoda às aspirações dos jovens e aos novos tempos. O fosso de

agora, portanto, é diferente do que fora nos anos 60, e a família é aliada – à esquerda e à

direita – dos filhos na insatisfação central de conflitos que surgem na esfera pública, na

relação com os interesses coletivos – a política, o trabalho, a escola – contra as

autoridades, os patrões, figuras de autoridades abaladas pelo descrédito das instituições

que regem a vida coletiva. O “fosso”, que atualmente seria mais adequado chamar de

“inversão” entre as gerações, de onde emergiu a lava das manifestações que percorrem o

mundo, resulta de disputas e desentendimentos no espaço publico entre classes de

idades diferentes, forçadas pelas circunstâncias históricas que opõe os jovens às figuras

de autoridades, à geração que comanda “o atual estado do mundo”.

Mas, sendo ainda um conflito de autoridade, não é a autoridade familiar

transformada nas últimas décadas contra a qual se batem os jovens, o que talvez

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explique sua aproximação entre seus pais, avós e seus “bebês”, resgatando laços

familiares igualitários, ao mesmo tempo em que cresce o desgaste de todo e qualquer

sistema de poder hierárquico que sustentou a noção de autoridade. Assim, enquanto as

famílias se acomodam e se repensam como podem aos novos tempos, os conflitos na

esfera pública permanecem e não são vistos, sequer considerados, na educação, nas

relações de trabalho nas empresas e, sobretudo, na política, sendo essa o centro das

tensões, vista como capaz de solucionar os conflitos anteriores. Se a ideia de família e o

mundo privado parecem heroicamente se levantar de sua crise, a esfera pública e a

política, em particular, ferve como um caldeirão. Como procurei argumentar acima, os

conflitos dos jovens, e entre os jovens, atualmente não parecem ter relação com a

instituição familiar, ao contrário, a família é desejada como um laço social a ser

preservado e defendido (a partir de outras configurações, mas ainda como família) nas

lutas por novos marcos legais, nas posições ocupadas por pais e mães, nas práticas de

criação etc. A ruptura está, assim, no espaço público, nas relações com as instituições,

as autoridades e suas representações, e vêm movidas pelo ressentimento, que explodiu

em indignação.

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Capítulo 3: A Juventude Entre o Ressentimento e a Empatia

Nesse capítulo proponho pensar as Jornadas de Junho de 2013 e seus

desdobramentos como explosão de um ressentimento social, a partir de algumas

características observadas nos acontecimentos e inspirada por autores que analisaram o

tema: a indefinição dos seus propósitos, a insatisfação generalizada que atravessou

classes sociais, a violência, o desejo de justiça, as figuras dos chamados “provocadores

de ressentimento”. A seguir considero a relação entre democracia e ressentimento e

como ela pode ser utilizada para pensar as manifestações de junho a partir do papel da

juventude e o estado atual da política brasileira, que manifesta uma tensão na forma de

uma bipolarização. Essa bipolarização afeta também a juventude, com sua presença

marcante, senão definidora nos atuais conflitos nas redes, nas ruas e nos debates

ideológicos recentes, na forma de dois tipos ideais: uma geração “neoconservadora” e

outra “naturalista”.

Zawadzki (2001) recomenda certa “vigilância epistemológica”, que deve ser

observada quando se trata da manifestação de ressentimentos, um conceito que “pode

servir para tudo” (2001:373). Ferro (2009), em seu livro História e Ressentimento, no

qual investigou diversos conflitos da perspectiva dos ressentimentos, suas formas de

expressão e seus efeitos em diferentes lugares e épocas da história, alerta igualmente

que, quando se toca em ressentimentos que se tornam visíveis em épocas de crise, é

possível percebê-los em toda parte. Além disso, o ressentimento, porque permanece

latente, é mais intangível do que a luta de classes ou o racismo, como lembra o autor, e

por isso sua apreensão só pode ser feita pelas suas “aparições” indiretas (2009:13). O

ressentimento, como afirma Kehl, é um afeto que “não ousa dizer o seu nome”

(2011:37), quando não se esconde por trás de máscaras de verdade, como as que

milhares de jovens vestiram nas manifestações de junho.

Junho de 2013, a considerar suas características, foi uma explosão de

ressentimentos de uma sociedade contra as autoridades políticas, encabeçada pela

juventude. Manifestaram-se naqueles dias velhos conflitos que mostraram sinais de uma

ruptura, um basta da juventude, uma crise de autoridade que se voltou contra o sistema

político, apoiada pela sociedade. Mas “Junho” não continha apenas reivindicações,

queixas, ódios, violência, havia também “novos” sentimentos e até entusiasmo pela

participação e expectativas de mudanças. Numa certa medida, “Junho” foi também uma

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“superação” do ressentimento – alguns chamaram de “catarse” (COSTA, 2014)160 –

aquela “re-ação”, como define Kehl, que, até então impedida, quando “posta em ato,

ainda que por meio das palavras, pode aplacar o sentimento de injúria ou agravo” e

libertar uma energia que pode abrir caminho para mudanças (KEHL 2011:15; FERRO,

2009; ZAWADIZK, 2001). Mudanças não necessariamente positivas: os ressentimentos

podem dar origem às polarizações, estão associados a movimentos como nacionalismos,

racismos, fundamentalismos, estão na gênese dos juízos de valores muitas vezes

distorcidos que geram conflitos ainda maiores. Mas paradoxalmente também estão

associados aos períodos de expansão democrática, traduzidos aqui como

reconhecimento de direitos ou de “direito a ter direitos” como entendeu Hanna

Arendt161 (ZAWADZKI, 2001, FERRO, 2009, KEHL, 2011:15). Apenas há algo em

comum da energia que se liberta dos sofrimentos, das humilhações, das reivindicações

que se mantiveram interiorizadas, como notou Ferro (2009): elas são precursoras de

revoltas, ainda que paradoxais, e se encontram no limite das épocas e nas origens de

muitas revoluções. Kehl igualmente entende que o ressentimento pode ser visto como

uma afecção “característica dos impasses ocorridos em muitos conflitos sociais

contemporâneos” (2011:35).

Nas manifestações de junho uma das questões que mais perturbaram os

intelectuais brasileiros foi entender por que aquela grande indignação aconteceu em

2013 e não em períodos onde a carestia, a desigualdade, os serviços públicos e a falta de

perspectiva haviam sido muito piores. Por que as insatisfações acumuladas nas últimas

décadas, ou há séculos no Brasil – “o país dos esquecimentos” – explodiram naquele

160 A ideia de “catarse” circulou também em muitos comentários entre jornalistas. Como exemplo:http://observatoriodaimprensa.com.br/jornal-de-debates/_ed752_mpl_catarse_coletiva_e_o_jogo_midiatico/ De acordo com dicionário Caldas Aulete, as definições de catarse são: 1. na psicologia: sentimento de alívio ao se trazerem à consciência sentimentos, traumas etc. que estavam reprimidos. 2. Liberação desses sentimentos através de encenação etc. 3. na filosofia: na Antiguidade grega significava libertação ou purgação do que é estranho à essência ou à natureza de um ser. 4. Na medicina: evacuação dos intestinos. Do gr. kátharsis. Fonte: http://www.aulete.com.br/catarse#ixzz3xjCcV7Q5 161 Segundo Lafer (1997), a autora reconstruiu a partir dessa ideia a própria noção de direitos humanos, mostrando a necessidade de repensá-lo uma vez que “a lógica do razoável que permeia a reflexão jurídica” não conseguia mais dar conta da “não razoabilidade que caracteriza uma experiência como a totalitária”. A participação atual da juventude na política reclama muitas vezes mais do que o cumprimento de direitos, mas outros direitos e o próprio “direito a ter direitos” a partir de novos problemas, como é caso da família, das novas relações entre os sexos, só para citar um exemplo.

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momento, e o que ele tem a ver com a juventude? Essa é a questão principal que

procuro responder. Minha hipótese é de que a juventude de classe média que está hoje

na faixa entre os 20 e 30 anos espelha ressentimentos que vêm sendo acumulado das

frustrações vividas pela geração de seus pais, a geração dos anos 80 e 90, e que também

se estendem aos seus anos de formação. Mas o que fez com que eles se manifestassem

nesse momento foi, por um lado, a “vitória ideológica dos oprimidos”, com o que

chamei de “políticas de reparação histórica”: o programa de Cotas Raciais, o Bolsa-

Família, a Comissão da Verdade, só para citar os exemplos mais marcantes. Essa

“vitória ideológica” é basicamente hoje legitimada e promovida pelos jovens – “a

juventude do bem”, ou “ungidos”, na definição pejorativa de um jornalista162 – e é o que

ainda une a juventude a alguns políticos que representam uma “nova esquerda” que se

atrela às causas dos direitos humanos e naturais, pelo direito à diferença, por outra

apropriação do espaço público etc. Há um engajamento por parte da juventude

“empoderada” pelas novas tecnologias digitais – que troca informações e milita nas

redes, nas ruas, nas praças – que é transversal. Ainda que cada um fale a partir do seu

lugar social e de sua inserção profissional ou como estudante, todos têm em comum o

desprezo contra o sistema político como um todo – fazendo, com seus novos

posicionamentos, abalar a própria ideia de “representação” política – e a luta contra os

poderes, que se expressa de modo simbólico no seu engajamento a favor dos excluídos,

das minorias, dos diferentes, que está no que denomino de “políticas de reparação

histórica”, de que trato adiante. Do ponto de vista de uma parte da juventude de classe

média, essas políticas de “reparação” contam com sua adesão, o que uniu os

movimentos da periferia aos novos movimentos sociais do “centro”, da juventude

universitária – que milita pelas cotas raciais, mesmo não sendo afrodescendente; que

apoia o bolsa-família e a distribuição de renda, mesmo não sendo das classes pobres –

gerando, no sentido oposto, uma reação dos que se sentem ameaçados pela “perda de

status”, pelas decepções, promessas e perdas acumuladas nas últimas décadas, em

alguns casos inspirados num conflito ideológico que retoma aos tempos da Guerra Fria,

questões que estão na origem da atual onda neoconservadora. Esclarecendo: minha

interpretação é de que a juventude, embora herdeira e partícipe do ressentimento atual,

despertou um ressentimento muito maior que estava na classe média e vinha se

acumulando desde ao menos os anos 70, com a geração que foi derrotada e calada pela

162 Luiz Felipe Pondé (2014:131).

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ditadura e viveu na maturidade as chamadas “décadas perdidas”. Se para os jovens

“Junho” foi uma catarse, foi ainda mais para as gerações classe média e seus herdeiros,

que pareciam se sentir libertados da paralisia das décadas passadas.

As Jornadas de Junho resultaram numa polarização na política brasileira,

incentivada pela estratégia de escandalização da imprensa e dos grupos políticos

derrotados nas últimas eleições contra a corrupção, também com o agravamento da crise

econômica, que teve a adesão da classe média “burguesa”. Mas o que torna esse mais

explosivo ressentimento social que vem sendo acumulado nesse momento é o

protagonismo da juventude, seu “empoderamento” e sua capacidade ampliada de

reverberação das causas sociais, seu sentimento de “injustiça” e de ilegitimidade dos

argumentos que até agora sustentaram a estrutura social desigual no país. A

bipolarização que ocorre nesse momento na política brasileira, que parece resultar dos

“ressentimentos recíprocos” que se espalham (FERRO, 2009), conta com o impulso das

revoltas lideradas pela juventude, seu basta ao sistema político e seu engajamento às

causas dos direitos dos mais aflitos, também ao direito à diferença e à liberdade de ser –

de ser gorda, de ser uma avó que dança, de fazer tudo errado, de ser mulher, de ter

cabelo ruim (sic), de amamentar no espaço público; manifestações de “empatia” e talvez

um antídoto contra os ressentimentos, a intolerância, os ódios que crescem, como trato

ao final do texto.

Junho teve ainda como uma de suas consequências a exibição de outra ruptura –

intergeracional – que não para de se aprofundar desde então. De modo ideal típico, a

polarização que ocorre nesse momento na política brasileira – que está no Congresso,

nas redes e nas ruas – e entre os jovens se configura na pele de uma geração

neoconservadora e uma geração naturalista, como proponho adiante.

3.1. Ressentimento e Democracia

O ressentimento entra para a reflexão filosófica com Nietzsche, em Genealogia

da Moral, publicado em 1872. Essa “explosão de sentimentos”, como denominou o

filósofo – desejo de vingança, raiva, ciúmes, inveja – na interpretação do autor se

inseriria numa história de longa duração, presente entre povos diversos, mas que se

repetia numa configuração semelhante: pela sublevação dos inferiores, dos escravos

contra seus dominadores, e pelo seu corolário, o ressentimento dos “decadentes”, no

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caso a nobreza sem terra. Nietzsche (1999) descreve dois tipos opostos de

ressentimentos: o dos fracos, dos dominados, e o dos nobres decadentes, um ódio

interiorizado que se manifesta “quando se encontram em face da revolta daqueles

considerados inferiores”. Esse ressentimento é “reforçado pelo desejo de reencontrar a

autoridade perdida e vingar a humilhação experimentada”. Esse ódio não é menos

contido e “recalcado” que aquele do escravo (ANSART, 2001:19).

Mas não é a história desse ódio direto e assumido que Nietzsche descreve, e sim

sua interiorização e denegação, o que tem paralelo com a noção de Freud (KEHL,

2011). Segundo Ansart:

[...] O ponto central de sua denúncia designa e analisa o trabalho psicológico

através do qual o ódio foi ao mesmo tempo interiorizado e recalcado pelos

inferiores, denegado por aquilo que representa e metamorfoseado em valor

positivo: a inferioridade transformada em humildade resignada, a fraqueza

disfarçada em amor de justiça, ódio recalcado transformado eventualmente em

ódio de si mesmo. (2001:17)

Tratava-se, para o autor, de um habitus próprio à civilização judaico-cristã, e por

isso Nietzsche nutria profundo desprezo pelos religiosos, “pela moral escrava”, pela

nobreza enfraquecida, vendo-os como a origem da decadência da cultura ocidental

(ANSART, 2001). O sentido de ressentimento que me utilizo nesse capítulo se

diferencia em alguma medida do conceito desenvolvido por Nietzsche e também da

psicanálise de Freud, que olha para os conflitos e configurações imaginárias próprios ao

indivíduo e suas razões subjetivas, da ordem do indivíduo, que resultam num

ressentimento como um “envenenamento psicológico”, fruto da apatia e do ódio

reprimido (KEHL, 2011). Embora seja possível relacionar as razões subjetivas,

sobretudo no Brasil, para a impotência “voluntária” (o velho comodismo?) de “re-agir”

nos casos de ressentimento social163, as razões de que trato aqui dizem respeito aos

impedimentos objetivos164, razões de ordem política, social e econômica que também

“envenenam” a sociedade, impossibilitada de reagir aos agravos, às traições, às

humilhações etc.

163 O filme “Que Horas Era Volta?”, de Anna Muylaert, é um exemplo para pensar porque a personagem Val demorou tanto tempo para querer ver, ou ter consciência das suas humilhações e ressentimentos acumulados, que vieram à luz com o comportamento “politizado” de sua filha. 164 Que não estão, senão com fins analíticos, separadas das “razões subjetivas”, culturais etc.

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Essa noção de ressentimento a que me refiro foi desenvolvida pela primeira vez

por Max Scheler, que retomou a noção de Nietzsche em Genealogia da Moral, mas

abandou sua tese de decadência histórica, ligada à cultura cristã. A partir de Scheller, a

compreensão de ressentimento, segundo Kehl:

[...] é a dos impasses gerados nas democracias liberais modernas, que acenam

para os indivíduos com a promessa de uma igualdade social que não se cumpre,

pelo menos nos termos em que foi simbolicamente antecipada. Os membros de

uma classe ou de um segmento social inferiorizado – ou não reconhecido – só se

ressentem de sua condição se a proposta de igualdade lhes foi antecipada

simbolicamente, de modo que a falta dela seja percebida não como condenação

divina ou predestinação – como nas sociedades pré-modernas – mas como

privação. São os casos em que a igualdade é “oficialmente reconhecida, mas

não obtida na prática” que produzem o ressentimento na política. É preciso que

exista um pressuposto simbólico de igualdade entre opressor e oprimido, entre

rico e pobre, poderoso e despossuído, para que os que se sentem inferiorizados

se ressintam (2011:22).

Scheler voltou-se à análise do fenômeno do ressentimento pensado no plural – e

não um ressentimento atávico ou uma essência universal das culturas, como pensava

Nietzsche –, mas em sua relação com a democracia, também entre grupos de idade,

classes sociais e etnias. Como afirma Ansart, “a experiência nos coloca em presença de

identidades variáveis e graduais de ressentimento” e não apenas os tipos “inteiros”

descritos por Nietzsche (2001:19). E mais: a vivência democrática coloca-nos um

problema circular diante de sua exigência de igualdade em matéria de reconhecimento:

“a generalização democrática do desejo de reconhecimento e sua expressão

reivindicativa, em termos de direito, vem se chocar com o fato de que as honras

democráticas são adquiridas pelo mérito” (ZAWADZKI, 2001: 382,383).

Em outros termos, o que caracteriza o ressentimento social é o sentir-se

“prejudicado”, ou como diz Kehl, “representa o estado de espírito das pessoas que se

sentem ‘passadas para trás’ na luta por um lugar ao sol que caracteriza a vida

profissional e social nas sociedades capitalistas” (2001:35). As condições sociais e

econômicas das sociedades capitalistas, sobretudo nas democracias “em

desenvolvimento”, criam as condições favoráveis para que os trabalhadores, os

estudantes, os idosos se sintam prejudicados com formas reiteradamente injustas de

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distribuição de renda e das devidas responsabilidades públicas165. Mas as razões dos

ressentimentos sociais só vêm à superfície quando as injustiças não se sustentam mais

como “evidência” e perdem seu caráter de legitimidade: os fundamentos das

desigualdades tornam-se eminentemente discutíveis e questionáveis e por isso “são

característicos de todo período de transição”. (ZAWADZKI, 2001:383). O problema

que muitos autores colocam em questão, e alertam, é em “que sentido a afecção do

ressentimento é uma patologia, se não democrática, ao menos em parte ligada à

democratização, sem deixar de constituir uma disposição psíquica e moral que alimenta,

assim, muitas vezes sua negação” (ZAWADZKI: 2001: 373,374, FERRO, 2009; KEHL,

2001).

3.2. “Não é só por 20 centavos”

“Não é só por 20 centavos”. Essa frase que sintetizou o lema dos manifestantes

é talvez a melhor representação dos seus ressentimentos. Ela dá sentido a uma

insatisfação que começou localizada e mesmo depois de ter conseguido seus intentos

não se deu por satisfeita: queria mais, e queria tantas coisas que embaraçou os analistas

e estarreceu a classe política. Na síntese que se criou, o bordão mostrava que havia

faltas, promessas, necessidades que vinham sendo acumuladas e guardadas por muito

tempo. Essa é a primeira característica do ressentimento social quando explode, ele

revela o que se manteve guardado. “Como esses vírus que julgamos extintos, quando

estão adormecidos, o ressentimento subitamente reativado ganha vida, para aqueles que

sequer suspeitavam de sua existência” (FERRO, 2009: 8). A surpresa, o susto, a

perplexidade que se viu diante das manifestações revelou um quadro de insatisfações

desconhecido naquelas proporções e naquele momento166, mas latente, o que comprova

mais uma vez, como diz Ferro, que “a existência do ressentimento mostra o quanto é

165 Além das razões econômicas e sociais, no caso do Brasil, para Kehl o ressentimento na política surge em pelo menos dois aspectos. Pelo efeito de séculos de autoritarismo paternalista, que geraram a expectativa popular de que os líderes resolvam os problemas que nos afligem, o que produz uma passividade e a dificuldade de grande parte da população de engajar-se como agentes de ação política a fim de cobrar as promessas não cumpridas e o que não foi realizado. Nossa pressa “em perdoar”, em passar um pano – um país sem história é um pais sem ressentimento – não resolve, e antes nos ressentimos muitas vezes “de nossa condição de vítimas de nossa própria omissão” (2011: 22, 36,37). 166 Ver Capítulo 1, no subtítulo: “Porque agora?”

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artificial o corte entre passado e presente – um vive no outro, o passado torna-se

presente, mais presente que o presente” (2009: 14).

A agência de pesquisa Talk Inc167 entrevistou pessoas de várias cidades no

Brasil e no exterior entre os dias 15 a 25 de junho, o período mais tenso, quando o

movimento se alastrava, acerca dos sentimentos de estar ali presente. O resultado foi

uma “Cartografia Afetiva das Manifestações”168 que sugere, segundo a interpretação

dada pelos realizadores, uma divisão de “afetos” disposta no gráfico em dois grandes

grupos, subdivididos em “indignação” (desprezo, abuso de poder, gastos do governo,

desrespeito, corrupção, impunidade); “medo” (insegurança, autoritarismo, exagero,

repressão, ódio, manipulação, violência) e “dúvida” (“o que devo fazer?”, “será que

agora vai?”, “qual o objetivo?”, “o que está por vir?”, falta de credibilidade). E

surpreendentemente, uma vez que se tratavam de protestos, e com muita violência por

parte da polícia, havia também os sentimentos de “orgulho” (fazer parte, realização de

um sonho, tomar consciência, democracia, união, representar, ser jovem, ser brasileiro);

“esperança” (justiça, politização, ter voz, diálogo, solidariedade, sociedade mais justa,

reforma do país, sair do comodismo, alívio) e “empoderamento” (representar,

emancipação, sair das redes sociais, mobilização, diálogo, fazer história, ser a mudança,

atenção internacional). Se visto de outra perspectiva, a das “razões”, segundo a pesquisa

publicada pelo O Globo, o resultado se fragmenta numa complexidade semelhante,

como mostra a tabela abaixo, mas praticamente desaparece qualquer aspecto positivo e

subjetivo.

167 Empresa que tem como foco o ambiente digital onde realiza pesquisas quantitativas e qualitativas. Ver em: http://www.talkinc.com.br/ 168 Foram entrevistadas 1285 pessoas nos estados de São Paulo, Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro, Santa Catarina, Minas Gerais, Paraná, Pernambuco, Distrito Federal, Bahia, Maranhão, Amazonas e nas cidades de BERLIM, MADRID, NOVA IORQUE, SAN DIEGO. Idade entre 16 a 80 anos, entre 15/06/13 a 25/06/13. Acesso em http://www.cartografiaafetiva.talkinc.com.br/cartografia.pdf

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RAZÕES DAS MANIFESTAÇÕES169

Temas Pesquisados Razão 1 - (apenas a primeira razão dada): quais são as reivindicações que levaram você a participar das manifestações? Sendo considerada apenas a primeira resposta dada.

Razão 2 - (soma das 3 razões): quais são as reivindicações que levaram você a participar das manifestações? Quando somadas as três razões indicadas pelos manifestantes para estarem nos protestos.

TRANSPORTE PÚBLICO

37% Contra o aumento/ a favor da redução: 27% Precariedade/ a favor da melhoria do sistema: 7,7% Aumento de veículos/ frotas: 1,0% Desconforto na viagem: 0,9% Passe livre para estudantes/ desempregados: 0,3%

53,7% Contra o aumento/ a favor da redução:40,5% Precariedade/ a favor da melhoria do sistema: 14,0% Aumento de veículos/ frotas: 4,3% Desconforto na viagem: 3,6% Mais transparência na área de transporte público: 0,1% Passe livre para estudantes/ desempregados: 0,5%

AMBIENTE POLÍTICO

29,9% Contra a corrupção/ desvios de dinheiro público: 24,2% Necessidade de mudança: 2,1% Insatisfação com governantes em geral: 1,9% Insatisfação com políticos em geral: 1,1% Contra partidos/ sistema partidários/ brigas partidárias: 0,1% Saída de Renan Calheiros: 0,1% Contra o Deputado Marco Feliciano/ Contra o projeto Cura Gay: 0,4% Fim da impunidade dos políticos/ fim do fórum privilegiado/ ficha limpa: 0,1%

65,0% Contra a corrupção/ desvios de dinheiro público: 49,0% Necessidade de mudança: 11,4% Insatisfação com governantes em geral: 9,9% Insatisfação com políticos em geral: 7,8% Contra partidos/ sistema partidários/ brigas partidárias: 0,2% Saída de Renan Calheiros: 0,8% Contra o Deputado Marco Feliciano/ Contra o projeto Cura Gay: 1,8% Fim da impunidade dos políticos/ fim do fórum privilegiado/ ficha limpa: 0,4% Contra o salário dos políticos: 0,4% Mensalão/ Reivindicar prisão dos condenados: 0,5% Voto secreto: 0,0%

GASTOS COM COPA DO MUNDO/DAS CONFEDERAÇÕES

4,5% Desvios de dinheiro: 1,6% Gastos acima do orçamento: 1,2% Dinheiro que poderia ser gasto com outras coisas mais

30,9% Desvios de dinheiro: 13,8% Gastos acima do orçamento: 7,7% Dinheiro que poderia ser gasto com outras coisas mais

169 Pesquisa O Globo, junho de 2013. Fonte: http://g1.globo.com/brasil/noticia/2013/06/veja-integra-da-pesquisa-do-ibope-sobre-os-manifestantes.html

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importantes: 1,8%

importantes: 12,4% Contra a Copa: 0,2%

SAÚDE 12,1% Melhorias/ Assuntos relacionados à Saúde: 12,2% Contra o Ato Médico: 0,0%

36,7% Melhorias/ Assuntos relacionados à Saúde: 36,6% Contra o Ato Médico: 0,2%

REAÇÃO À AÇÃO VIOLENTA DA POLÍCIA

1,3% Contra a ação violenta da polícia: 0,8% Em apoio ao movimento: 0,2% Pelo direito de reivindicação: 0,2%

4,1% Contra à ação violenta da polícia: 3,0% Em apoio ao movimento: 0,3% Pelo direito de reivindicação: 0,8% Contra abuso de autoridades: 0,1%

JUSTIÇA/ SEGURANÇA PÚBLICA

1,3% Por melhorias/ Assuntos relacionados à Segurança Pública: 1,1% Melhorias na justiça/ Mudanças no código penal: 0,1% Contra a violência s/e: 0,1%

10,2% Por melhorias/ Assuntos relacionados à Segurança Pública: 9,5% Melhorias na justiça/ Mudanças no código penal: 0,7% Contra a violência s/e: 0,1% Contra o sistema carcerário: 0,0%

EDUCAÇÃO 5,3% Melhorias/ Assuntos relacionados à Educação

29,8% Melhorias/ Assuntos relacionados à Educação: 29,9%

CONTRA A PEC 37 5,5% 11,9% POR DIREITOS E DEMOCRACIA

0,6% Luta por um país melhor: 0,4% Justiça Social/ Igualdade/ Contra a Desigualdade Social: 0,1% Respeito a cidadania/ Direito a cidade: 0,1%

1,8% Luta por um país melhor: 0,6% Justiça Social/ Igualdade/ Contra a Desigualdade Social: 0,8% Respeito a cidadania/ Direito a cidade:0,5% Luta pela democracia: 0,1%

ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

0,8% Pela redução de impostos/ Reforma tributária: 0,5% Contra o aumento da inflação: 0,2% Por licitações públicas transparentes: 0,1% Falta de investimentos no país/ falta de infraestrutura das cidades: 0,0%

2,9% Pela redução de impostos/ Reforma tributária: 1,6% Contra o aumento da inflação: 0,6% Por licitações públicas transparentes: 0,1% Falta de investimentos no país/ falta de infraestrutura das cidades: 0,4% Contra o descaso no serviço público: 0,1% Contra a máquina estatal: 0,2%

OUTRAS CAUSAS ESPECÍFICAS COM MENOS DE 1%

0,8% Falta de ciclovias: 0,1% Melhorias/ Assuntos relacionados à moradia: 0,1% Luta pelos direitos indígenas: 0,1%

2,7% Falta de ciclovias: 0,1%

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Luta contra o preconceito/ Racismo: 0,1% Aumento de salários/ Salário dos aposentados/ professores: 0,2% Luta contra o capitalismo: 0,1% Pela ideologia de esquerda: 0,1% Contra o Controlar: 0,1%

NENHUM 0,1% NÃO RESPONDEU 0,2%

Se visto a partir das principais “razões”, conforme agrupadas pelo instituto de

pesquisa, os motivos porque as pessoas estavam nas ruas eram: transporte público,

corrupção, gastos com a Copa, saúde, reação violenta da polícia, justiça e segurança

pública, educação, contra a PEC 37 e por direito à democracia. Mas havia também

aqueles que estavam lá, como mostra a pesquisa, pela cura gay, pela saída de Renan

Calheiros, pelo fim dos privilégios, pela prisão dos culpados do Mensalão, contra o

abuso de autoridade, direito à cidade, redução dos impostos, inflação, licitações públicas

transparentes, infraestrutura da cidade, ciclovias. Em relação às expressões utilizadas

juntamente com as “razões”, o que se lê é: contra, precariedade, desconforto,

necessidade, insatisfação, saída, desvios, gastos, luta, respeito, falta, abuso, mudança. O

que gostaria de ressaltar é que havia razões que, embora espalhadas numa dezena de

queixas, todas elas eram bastante “objetivas” e claras, embora nem sempre pautadas por

argumentos técnicos: ninguém pediu o impossível, como em “68”, no máximo os jovens

reclamavam “uma vida sem catraca”. Por isso a “desrazão” e o niilismo, como alguns

interpretaram também, não deram conta de explicar as manifestações. Segundo Costa

(2014):

[...] a alegação de que a realização da Copa no Brasil impede ou dificulta a

realização da plenitude em saúde e educação públicas, em moradia para todos, e

o fim de todas as angústias, vem impregnada no discurso desarrazoado... Aí é

que entram os processos pelos quais a sociedade passa a aceitar a “loucura

cultural” como parte de seu ethos. (...) tudo se faz em nome da razão. Mas é a

emoção que prevalece.

Emoção e razão são pares sinérgicos que compõem as explosões desordenadas

de ressentimentos. O que não falta ao ressentido em suas “explosões de sentimentos”,

como chamava Nietzsche, o que alimenta suas emoções mesmo na pele que veste do

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resignado e “submisso” – sua impotência de agir – são as “razões” da injustiça sofrida,

que crescem à medida que se toma consciência delas: razões dos agravos, das

humilhações, das traições, das promessas não cumpridas, dos medos que corroem sua

confiança: ônibus lotado, assaltos e violência policial, escolas de má qualidade, saúde

precária, corrupção etc. A origem do ressentimento, que é sempre “uma vingança que se

adia” até que se liberte (ou não), surge da memória do passado, que revive suas

humilhações no dia a dia; de laços que podem se atar entre o ressentimento do indivíduo

e da coletividade; das injustiças reiteradas e da traição do “juramento” (a corrupção, as

promessas de campanha, por exemplo), que é a base do pacto político na história do

ocidente, segundo Agamben, (2011:9, FERRO, 2009, KEHL, 2001).

Embora as manifestações tenham se multiplicado como uma explosão de

ressentimentos, não foi o que lhe deu início. Junho como se sabe teve origem na pauta

movida pelo Movimento Passe Livre (MPL), calcada numa proposta que, embora

radical, é defendida por diversos especialistas como viável economicamente e proposta

em 1990 pela prefeita Luiza Erundina, em sua gestão em São Paulo170. Outras

manifestações recentes como a Marcha da Maconha, das Vadias, das Margaridas, dos

Estudantes, dos Professores são manifestações que possuem objetivos claros: alcançar

leis que protejam seus direitos, apresentando ora recorte de classe, ora profissional, de

gênero, de gerações. Mas junho foi diferente de tudo. Juntou classes sociais, gerações e

gêneros. Uma das características das explosões de ressentir de que fala Marc Ferro, em

seus estudos sobre revoltas na história da perspectiva do ressentimento é seu caráter

170 Luiza Erundina foi prefeita de São Paulo entre os anos de 1989 a 1993. A proposta de “tarifa zero” ocorreu em sua gestão e é de autoria de Lúcio Gregori, à época secretário de Transportes. Definido por seu autor como uma proposta política e não técnica, “visava a garantir o direito de ir e vir para toda a população que gastava, em 1986, cerca de 22% do seu salário em transporte. A tarifa zero seria financiada por um Fundo de Transporte, que recolheria fatias de uma cobrança progressiva IPTU”. Em 22 de outubro o projeto começou a ser discutido na Câmara Municipal, mas encontrou resistência dos vereadores, inclusive do próprio Partido dos Trabalhadores. “Com a derrota do Projeto Tarifa Zero na Câmara, o governo municipal abriu nova frente de batalha: a municipalização do transporte coletivo. Trata-se de um modelo da retomada, pelo poder público, da administração do sistema. Desta forma, as decisões sobre a quantidade de ônibus, os horários e as linhas não estariam mais nas mãos das empresas que operavam pela lógica de mercado (colocando menos ônibus em linhas consideradas não-rentáveis, de periferia, por exemplo). A prefeitura pagava um valor determinado para que as empresas, subordinadas às decisões do poder público, pusessem seus ônibus nas ruas. Uma espécie de fretamento. Com o desgaste gerado pela recusa em relação ao Projeto Tarifa Zero, que alcançava mais de 65% de aprovação popular, os vereadores aprovaram a lei de Municipalização em maio de 1991”. Fonte: http://tarifazero.org/2009/07/23/projeto-tarifa-zero/

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difuso, muitas vezes inexplicável. E a característica que a princípio parecia mais

inexplicável nas manifestações, e que só mais tarde se revelou com uma bipolarização,

foi a mistura de classes. Em resumo, não era só “os de baixo”, “os de cima” também

estavam nas ruas.

A união de classes que o ressentimento promoveu esteve na origem das

manifestações de junho, mas esses ressentimentos se dividiram, se diferenciando logo

adiante. No caso de junho, as razões que surgem depois que o tempo decanta, ou seja,

seus desdobramentos, nos ajudam a entender seus significados que não estavam nas

razões iniciais, os “20 centavos”: a revolta que estava nas ruas, os ressentimentos

guardados incluíam não só os usuários de transportes, os que querem “mais saúde”,

“mais educação”, mas também “os de cima”. Como afirmou Ferro, “a cadeia de

ressentimentos liga grupos sociais diversos, por certo não necessariamente estimulados

pela mesma cólera, mas por um desejo de revanche”171 (FERRO, 2009:87), sendo “a

matriz das ideologias contestadoras tanto de esquerda como de direita”:

As frustrações que o engendraram, tanto as promessas não cumpridas quanto as

desilusões ou mágoas infligidas, provocaram uma cólera impotente que lhe deu

consistência. O sofrimento de ser pobre e excluído, assim como o medo de se tornar um,

estimulou diversos movimentos sociais cuja direção não estava previamente

determinada (2009:191).

Naqueles dias de junho, Luiz Eduardo Soares (2013) lembrou que:

[...] não é de hoje mas somente agora, o escárnio das esquinas, a repulsa ao mundo

político que se limitava às conversas cotidianas ganhou corpo e visibilidade, tanto

quanto ganharam visibilidade e reconhecimento milhões de cidadãos antes unidos pelo

ressentimento, sentindo-se diariamente desrespeitados pelas autoridades, pelas

instituições, pelo transporte público, pelas condições da saúde e da educação. (...)

Observe-se que nesta lista de problemas há munição ampla o suficiente para atingir a

todos, à direita e à esquerda.

Como já havia notado Nietzsche, o ressentimento detona uma “reciprocidade”,

ele não vem só de “baixo para cima”, mas vice-versa. Ou seja, o ressentimento é um

tipo de patologia social que independe de classes sociais. Quando o ressentimento

171 Atualmente pode estar representado no ódio, no desejo de eliminação, na vontade de revanche da classe média contra a Presidente Dilma, contra os “petralhas”, contra jovens que cometem crimes e são linchados pela população.

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surge, ele não se subordina a um grupo social específico (FERRO, 2009:11). Max

Scheler, segundo Ansart, entendeu que a dinâmica do ressentimento era “criadora de

valores, ou seja, finalidades sentidas como desejáveis pelos indivíduos e que eles

buscam realizar” (2001:21). Portanto, os ressentimentos quando unidos, compartilhados

por indivíduos em certas condições propícias “são um fator eminente de cumplicidade e

solidariedade no interior de um grupo, e suas expressões” e podem ser até

“gratificantes”, porque um ressentimento “extrapola as rivalidades internas, permite a

reconstituição de uma coesão, de uma forte identificação cada um com seu grupo”.

(ANSART, 2001:21,22).

Atualmente há muitas figuras no Brasil “à direita” e à “esquerda”, que Ansart

denomina os “provocadores de ressentimentos”, que usam os ressentimentos sociais

para suscitar fusões emocionais e assegurar o apoio da população (2001:22). O

ressentido, segundo Kehl, “quando é velado por uma pretensa pureza moral, goza de

adesão e da simpatia da maior parte das pessoas” (2011:37,38). A melhor representação

“da direita ressentida” hoje, e que pode ser tipificada por esses tais provocadores, é a

chamada “esquerda que virou do avesso”, a imagem do ressentido traído: roqueiros dos

anos 80, ex-militantes de organizações radicais, jornalistas da imprensa, os vários

grupos de “revoltados online”, e até mesmo “robôs” que atuam nas redes sociais

espalhando boatos e provocando o ódio da população.

Mas há outras figuras típicas de ressentidos que vêm “da esquerda”. Nas

manifestações de junho de 2013, o grupo Anonymus, por exemplo, inspirado no

personagem do filme V, de Vingança, se tornou uma espécie de personagem-símbolo

dos revoltados ressentidos. Seu lema, "nós somos Anonymous. Somos uma legião. Nós

não esquecemos. Nós não perdoamos. Esperem por nós" é a própria imagem típica ideal

do ressentido que retém o passado, rumina a vingança, mas como escreveu Kehl, “não

ousa dizer o seu nome” (2011:37). Esses grupos que se assinam como Anonymus

tiveram importância relevante nas comunicações no Facebook nos dias manifestações –

suas páginas tornaram-se “hub”, como mostrou Malini172.

172 “Hubs”, na linguagem digital, são aqueles “elos” da rede que “por serem populares, conseguem alcançar uma enorme quantidade de ligações entre os outros nós e ganharem destaque na rede. A esses damos o nome de hub, centros de grande importância em algum evento e que possuem mais conexões”. (MALINI et, ali, 2012). Sobre a importância do grupo Anonymus, seu papel de “hub, ver em: http://www.labic.net/cartografia/poder-ser-mas-nao-e-a-relacao-entre-pt-psdb-anonymous-e-passe-livre-no-facebook/

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Outros tipos que se podem enquadrar na figura dos “provocadores” de

ressentimentos, porque são também sua própria representação viva, são os Black Blocs,

grupos de orientação anarquista que atacaram diversas agência de “corporações”, em

particular os bancos privados, e estavam lá para uma missão autoatribuída: “proteger”

os manifestantes contra a polícia, uma violência com que a maior parte desses jovens

residentes nos bairros da periferia convivem no seu cotidiano.

Nem seriam necessárias estatísticas para provar que o maior de todos os

caldeirões dos ressentimentos está nas periferias, que conhecem a violência policial no

seu dia-a-dia e manifestaram sua própria violência no enfrentamento à polícia, uma vez

que “vândalo é o Estado”, como dizia um cartaz das manifestações. O extermínio de

jovens negros e a brutalidade policial são pouco conhecidos da população residente nos

“jardins”, que saiu ressentida das manifestações por outras razões, encontrou-se com a

periferia num acaso, mas já se afastou logo em seguida173. Entre os jovens com quem

conversei nos dias das manifestações, nenhum se colocou contra a violência nas ruas

praticadas pelos Black Blocs; era, no mínimo, uma violência contra a violência do

Estado e as “corporações”, uma violência simbólica e não contra pessoas, concordando

com a justificativa oferecida pelo próprio grupo. Havia desde o apoio até a

compreensão, mas nunca a condenação; no mínimo, para a maioria dos jovens

presentes, os Black Blocs eram vistos como aliados174.

Marc Ferro, em seu livro História e Ressentimento, observa que uma das

características dos “grupos ressentidos” é sua “ambivalência” – o ressentido facilmente

se transforma em opressor, agindo de forma análoga às acusações que faz aos outros

(2009:193). O autor mostra a gravidade que provém de movimentos políticos na história

que têm origem nos ressentimentos pelas expectativas não cumpridas, pelas traições das

promessas, pelo ódio de classe, ou religioso, e como eles abrem espaço a movimentos

radicais, como são exemplos o fascismo, o fundamentalismo islâmico, a Revolução

Francesa, o Maio de 68 e tantos outros. O fato é que o ressentimento social, a despeito

de sua feiura, da reticência que provoca na sua reiteração passiva e indefinidamente

173 O afastamento da periferia no “ressentimento” que alimenta a classe média está presente nas últimas pesquisas das manifestações de 2014 e 2015. Essas pesquisas mostram também que embora as manifestações recentes da direita ressentida sejam lideradas por jovens neoconservadores, quem mais tem sido atraído por ela não são jovens, antes a faixa etária é bastante elevada, e a renda também. 174 Entrevista gravada no dia 17/06, presente Vanessa Santos, Kleiton Bezerra da Silva, Camila e Fernando Martins.

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saciada, quando se manifesta pode engendrar em alguns momentos um coletivo, e por

isso são “fenômenos que participam da patologia da transição entre duas épocas, sendo

precursores de mudanças” (ZAWADZKI, 2001:373).

3.3. Herança de Ressentimentos

Mas os ressentimentos que brotam hoje do seio da juventude de classe média

não têm apenas origem em suas próprias experiências, foram em parte geradas e

acumuladas na experiência da geração anterior e, por isso, as manifestações de junho

somaram pais e filhos nas ruas numa só indignação. Atualmente, pode-se dizer que a

indignação não tem idade e até mesmo une as três gerações contemporâneas no cansaço

e na vontade de reinventar a política, ou até mesmo de negá-la.

Se procurarmos compreender os posicionamentos políticos dos jovens de classe

média atualmente a partir da herança política que lhes foi legada, isto é, considerando a

experiência de seus pais, a geração anterior, o que se pode perceber é que à juventude

atual foi deixada uma “herança de negação” (1999)175, fruto das derrotas políticas da

geração dos anos 60, também das decepções do período da “redemocratização”, em

suma, das promessas e expectativas não cumpridas que perseguiram toda uma geração,

da juventude à maturidade, entre as décadas de 60 a 90. Parte dessa geração “rebelde”

dos anos 60, especificamente os que se engajaram contra o regime militar, uma minoria

que imprimiu um imaginário de “resistência” e liberdade foi, na realidade concreta,

derrotada e calada pela ditadura militar. Cardoso considera que uma mística em torno da

geração dos anos 60 (apologizada na academia a cada dez anos, como já comentado

aqui) deixou o peso de certa herança, que certamente influiu na paralisia que acometeu a

geração seguinte, a geração dos anos 80 e 90. A onipotência – “queremos prá já”, “é

proibido proibir” –, além do mito de sua “efetividade” e de seu heroísmo, encobriu o

fato de que a geração dos anos 60 – brutalmente devastada em suas ilusões – foi

silenciada pela ditadura poucos anos depois. E foi então “assimilada”, depurada e

congelada numa “unidade imaginária”, quando não uma caricatura, parte do processo “e

175 Ricardo Kotscho, no artigo Geração 68, de vitoriosa a derrotada, entende que sua geração não deixou nenhuma herança. Discordo do autor apenas quando diz que sua geração foi “vitoriosa”, salvo por um breve momento nos últimos anos. Ver em: http://noticias.r7.com/blogs/ricardo-kotscho/2015/03/27/geracao-68-de-vitoriosa-a-derrotada/dizendo que nenhuma herança foi deixada, e de que sua geração foi vitoriosa... ?

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resultado da lenta assimilação, das apropriações e da normalização a que as ideias e as

práticas daqueles movimentos estiveram sujeitas nos anos que se seguiram”

(CARDOSO, 2005)176. Marcelo Ridenti (2005), em O Fantasma da Revolução

Brasileira, procura desfazer o mito intocável dos rebeldes dos anos 60, que já estavam

imobilizados, calados pela ditadura na década seguinte. Para Ridenti, “o fantasma

insuperado não é o de uma grande revolução, mas o de uma revolução frustrada: a não

revolução democrática e a não revolução socialista” (2005:23).

Por isso, se há que se desconstruir o mito de 68 pelo trabalho da crítica, é menos

pela via da diversidade, como se sugere algumas vezes, e mais pela realidade, do que

quase nada se falou: “68”, no Brasil, do ponto de vista da resistência à ditadura, foi uma

revolução vivida como fracasso para as duas gerações seguintes. Mais do que a

construção do mito pela academia e pela indústria cultural, carregado pela geração

seguinte, o que pesou nos anos 80 foi a experiência da derrota, do vazio que ficou da

geração que foi calada pela ditadura. Em resumo, se a geração dos anos 60 e 70

amargou a derrota – “um gosto amargo de bala”, como escreveu Gertel (2013) em suas

lembranças – a geração seguinte, que herdou a imagem da vanguarda e do heroísmo,

viveu de fato a impotência e a paralisia, os anos que se seguiram de uma revolução que

não deu certoEm outras palavras, o mito da efetividade, do heroísmo, da coragem, deu-

se a paralisia que acometeu a geração seguinte (e da qual os jovens tentam hoje se

libertar). Segundo

[...] aquilo que o registro do “impossível” não pôde realizar (e nem poderia) teria ficado

para a geração seguinte como um ideal a ser concretizado, ideal que se impõe como uma

espécie de “resto” do que a geração dos anos de 1960 não pôde realizar porque

imaginado no registro do impossível. Nesse sentido, o fardo da herança que recai sobre

a geração mais jovem parece sobretudo advir da imagem heroica (onipotente) da

geração anterior (2005:).

A geração atual é formada por filhos de pais que viveram os anos da depressão,

das décadas perdidas177, e amargaram o peso da herança de uma revolução política que

176 É o caso da propaganda da Starup, bem contextualizada no filme “Depois da Chuva”, 2014. 177 “[A Década Perdida] pode ser a década de 1980, mas pode ser também uma década ‘expandida’, começando em 1982, com a moratória mexicana, e terminando em 1994 com o Plano Real. Ou começando mesmo antes, em 1979, quando teve início, com o catastrófico episódio da pré-fixação da correção monetária, toda uma série de feitiçarias cuja expressão mais madura seria os choques heterodoxos, dos quais o Cruzado e o Collor seriam os mais

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foi sufocada, mas idealizada, e que pesou como paralisia e fracasso. Na maturidade, a

decepção dessa geração não foi menor com a redemocratização, que colocou no poder

velhas oligarquias nas figuras de José Sarney e Fernando Collor, cujos governos

provocaram arrochos financeiros que recaíram sobre a classe média. Para uns e outros,

os anos 80 e 90, com a queda do muro de Berlim na Alemanha e a “vitória do

capitalismo” nos EUA, ao mesmo tempo em que vivíamos a disparada da inflação e do

desemprego, foram devastadores dos sonhos embalados na juventude: essa foi a geração

que viveu na maturidade a plenitude do “fim das utopias”, capitalistas ou socialistas.

Depois da volta à normalidade democrática – e um breve, mas marcante período

de conquistas sociais, na Constituição de 1988 (em relação aos jovens, no importante

passo dado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente) – mergulhamos numa profunda

crise econômica, que comprometeu nas décadas seguintes as conquistas festejadas

pouco anos antes. Anos de globalização, de abertura econômica, de maior

competitividade, que justificou o desmonte da sociedade do trabalho, dos cortes em

programas sociais mal começados. Os jovens pais dos anos 80 e 90 foram, assim, de

modo duplo, tanto do ponto de vista subjetivo como na realidade concreta, pressionados

negativamente pelas circunstâncias históricas. Subjetivamente, porque viveram a

dualidade da herança da geração anterior, ao mesmo tempo idealizada, mas derrotada e

calada pelos militares. Em outras palavras, entre a geração de Mujica, “heroica” dos

anos 60 e 70, idealizada, mas derrotada, ou heroína porque derrotada e calada pela

ditadura, e a geração atual, formou-se uma geração de jovens, dos anos 80 e 90, os pais

da juventude atual, que viveram os anos da depressão econômica, da “individualização”

e do afastamento da política. Renato Russo denominou ironicamente sua geração de

“filhos da “revolução” e lamentou: “quem tirou nossa coragem?”. A geração de

roqueiros dos anos 80 cantou a decepção: “meus heróis morreram de overdose”, “meus

inimigos estão no poder”. À época, essa música de Cazuza encarnava o sentimento de

decepção política da geração saída da ditadura. O filme Depois da Chuva, de Cláudio

Marques, de 2013, representa o cenário de tensões vivido na redemocratização, após o

fim da ditadura, da perspectiva de um grupo de jovens secundaristas, quando as

acomodações políticas, os acordos entre velhas e novas oligarquias e os relaxamentos à

assustadores. A Década Perdida parece, portanto, uma década longa, até porque foi sofrida no campo econômico e pontilhada de frustrações no plano político.” (FRANCO, Gustavo. A década perdida e a das reformas. Jornal do Brasil, 30/01/2000).

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liberdade criaram novos temores: a volta da repressão. Os constrangimentos políticos

vividos nesse período estão bem caracterizados na figura do jovem protagonista, que

vive entre a militância “anarquista”, às margens da política, e o grêmio da escola, cuja

tendência era a do “enquadramento”, a pacificação política ao preço da acomodação dos

jovens: “o radicalismo de vocês nos levou à ditadura”, diz um inspetor de alunos

temeroso.

Na maturidade, somada às decepções políticas foi também essa geração de pais e

mães, que se “sacrificaram”178 para dar escola e saúde aos seus filhos – os ajustes

econômicos impostos pelas políticas de orientação neoliberal trouxe, mais uma vez, um

enorme aperto financeiro à classe média (e por isso FHC falou da necessidade de

“reconquistá-la”)179, um peso que recaiu sobre o trabalhador e sua família sem a “ajuda”

ou “intervenção” do Estado. Foi do arrocho sobre a família, numa época de elogios ao

“Estado Mínimo”, à iniciativa privada e ao empreendedorismo, aos serviços privados

como a escola, os convênios de saúde, o apelo ao consumo e à ostentação: em resumo,

foi do orçamento doméstico e do esforço individual de onde veio alguma garantia de

vida descendente, quando isso foi possível. Por isso uma parte da classe média que é

“liberal por condição” – para quem o Estado em nada contribuiu nos anos 80 e 90, ao

contrário, criou enormes dificuldades, e a quem os programas sociais do governo Lula

não alcançaram, como os filhos das classes pobres – se aliou aos jovens nas

manifestações “contra a política”180.

Os “antes jovens” de esquerda, derrotados pela repressão política e/ou marcados

pela violência, viu parte de sua luta recompensada na fundação do PT, em 1980, mas

teve que aguardar a chegada ao poder, mais de 20 anos depois, em 2002, quando essa

geração viu-se em parte realizada com os avanços sociais no país181. O envolvimento

nos casos de corrupção, a partir de 2006, no entanto, afastou parte do que hoje se

conhece como “as viúvas do PT”, lideranças “éticas” como as que vieram dos setores da

Igreja Católica e da intelectualidade, que se afastaram e continuam a se afastar, levando

178 Sobretudo as mulheres, numa época de grande crescimento do número de divórcios. A figura da mãe sacrificada, sozinha, ora alienada, ora deprimida também pode ser vista no filme Depois da Chuva (2013) que contextualiza a família “desamparada”, sem “pai” e sem governo (o contexto histórico do filme é a eleição e morte de Tancredo Neves, em 1985, logo após ser eleito). 179 Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/poder/po1204201102.htm 180 Nos anos 60, pais e filhos estavam em lados opostos, e os jovens estavam mais sozinhos do que atualmente, quando a indignação parece percorrer as três gerações. 181

Ricardo Kotscho, “Geração 68, de vitoriosa a derrotada”.

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o partido a um “estado terminal”, como alguns consideram182. Como escreveu um leitor

na FSP183 a propósito de um artigo de Demétrio Magnoli:

Toda uma geração de jovens nos anos 80 e 90 acreditava que o PT seria a redenção do

Brasil, um resgate dos valores essenciais para o desenvolvimento social e econômico

dos brasileiros, depois de séculos de exploração por políticos corruptos. São estas

mesmas gerações que se sentem enganadas pelos discursos e corrupções que ocorreram

nos governos petistas nas últimas décadas. Vai ser difícil refundar e resgatar o partido!!!

A degradação da atividade política e a escandalização diária das mídias em

associar política e corrupção após a redemocratização formaram uma geração, hoje

adulta, que foi marcada pela despolitização, pelo afastamento da política, pela sensação

de impotência, pela falta de imaginação que paralisou a ação (ORTEGA, 200:17).

Geração “muda”, pós-muro, pós-utopia, pós-política, fruto das “promessas não

cumpridas da democracia”, segundo Norberto Bobbio (1986)184. Tamanha frustração

não predispôs à ação (senão recentemente por um breve momento), mas ao contrário, ao

“re-sentimento” e criou, como disse Kehl, um “exército de queixosos passivos, prontos

a se (re)alinharem ao que existe de pior entre os conservadores, como forma de reação

amarga e estéril (...)” (2005:17). Esse é o retrato, ainda que incompleto, de uma grande

parte da geração que hoje se encontra na faixa entre os 40 e 60 anos, que amargou o

esvaziamento político nos anos 80 e 90 e tornou-se refratária à esquerda – e a tudo que

ela representa – como sindicalismo, “estatismo”, programas sociais e até direitos

humanos. Dentre essa geração decepcionada que se levanta agora, tardiamente, vemos

algumas lideranças, como figuras do showbiz, da política e da academia, reunindo –

essa é a sua força – os dois lados, “da direita” à “esquerda” do espectro político.

182 Não são poucos os ex-petistas, e mesmo petistas como Tarso Genro que falam do fim de um ciclo. 183Fonte:http://www1.folha.uol.com.br/colunas/demetriomagnoli/2015/04/1618285-neo-a-estrela-fica.shtml 184 Na síntese que fez Ortega, acerca da longa lista de Bobbio, “as promessas não cumpridas” são: a promessa da soberania popular, desmentida pelo crescimento da burocracia pública; o fato de a sociedade pluralista não ter conduzido à autonomia e ao protagonismo do indivíduo na vida política – seus atores são na verdade, grupos, organizações políticas, sindicatos etc.; a crescente oposição entre a incompetência do cidadão, confrontando com problemas de progressiva complexidade, e a necessidade de soluções técnicas, acessíveis unicamente a especialistas; o contraste entre uma teoria da democracia que aponta para uma co-gestão da vida política por todos os cidadão e uma apatia e um conformismo generalizado, fomentado pela propaganda política e os desenvolvimentos midiáticos, ter conseguido erradicar o poder invisível, pois as instituições democráticas tendem a adotar a estrutura de um panóptico (2000:16).

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Percebida pelos jornalistas, não poucos têm procurado compreender e descrever essa

“esquerda que virou do avesso”, que é a própria imagem do ressentimento. É o caso dos

discursos raivosos de Luiz Fernando Pondé, Reinaldo Azevedo e tantos outros. Entre

roqueiros, o vocalista Roger Moreira, do Ultraje a Rigor, que antes escrevia músicas a

respeito do movimento das Diretas Já e críticas ao regime militar, hoje se converteu ao

conservadorismo, chama Dilma de “terrorista” e dedica grande parte do seu tempo para

alardear na internet os perigos da “ascensão comunista no Brasil”. Em recente discussão

o cantor Roger xingou Marcelo Rubens Paiva, cujo pai fora assassinado durante a

Ditadura, dizendo que quem foi perseguido “fazia merda”.

É longa a lista de homens e mulheres maduros que foram no passado jovens

rebeldes e se tornaram “conservadores”, abraçando um discurso que negavam na

juventude, e a fala é semelhante: as acusações contra os políticos “traidores” de suas

promessas185. Esse neoconservadorismo no Brasil é um fenômeno recente e crescente,

tendo emergido a partir das manifestações de junho de 2013, reforçada pela ascensão

conservadora nas eleições de 2014. Entre os mais jovens o neoconservadorismo está

presente e representado no grupo que se denomina Movimento Brasil Livre (MBL) e

que se congrega no chamado “Partido Novo” 186, cuja proposta é um velho liberalismo

ainda mais radical que aquele dos neoliberais. São eles os que enxergam o “perigo

vermelho” e sua nova versão, o Bolivarianismo, que gritam “vai pra Cuba” e que

lideram atualmente as oposições ao governo federal e ao Partido dos Trabalhadores. O

que importa observar é que, por mais que esses grupos sejam “liberais” ou “liberais não

185 Segundo o jornalista Renato Rovai, “O carioca Carlos Leoni Rodrigues Siqueira Júnior, conhecido somente como Leoni, aos 53 anos, é uma exceção, uma mosca branca, entre a imensa maioria de seus colegas de geração: uma “pessoa de esquerda”, como ele se define. Roger, do Ultraje a Rigor, e Lobão são macartistas. Dinho Ouro Preto, do Capital Inicial, não fala coisa com coisa, especialmente em política. João Barone, baterista dos Paralamas do Sucesso, repete clichês sobre “corrupção” sem parar — sempre contra o PT, naturalmente. Tony Belloto, guitarrista do que restou dos Titãs, é autor de frases originais como “é uma merda pensar como o Brasil há 30 anos ou patina, ou piora”. Segundo Rovai, “os ícones do reacionarismo neocom, por exemplo, foram militantes de grupos de esquerda ou rebeldes nos anos 80. Desde o velho Lobo, passando por Magnoli e Reinaldão. E se poderia ir mais longe, por exemplo, e citar o deputado Roberto Freire (PPS), que em 89, foi candidato pelo PCB e que hoje é contra tudo que signifique algum avanço progressista. Freire, por exemplo, foi uma das vozes mais altas contra a aprovação do Marco Civil da Internet e a favor das teles no Congresso”. Ver em: Ver em: “O que aconteceu com os roqueiros dos anos 80? Leoni, o único que não virou reaça, fala ao DCM”. 186 O Partido Novo tem sua importância porque foi fundado por membros do Movimento Brasil Livre – MBL, e o “Vem Prá Rua”, que lideraram as manifestações da direta recentemente. Recentemente teve seu estatuto aprovado pelo Tribunal Superior Eleitoral.

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conservadores”, parecem movidos por razões que vêm do passado e expõe

ressentimentos, ódios, desejos de revanches etc.

A explosão dos “indignados” no Brasil é fruto de uma conjunção histórica e uma

“constelação afetiva” (KEHL, 2011) de ressentimentos, que uniu por um momento a

“esquerda ética” e a “direita moralista” contra os políticos; uniu também a “nova” classe

média, que vê abortado em pleno voo seu projeto de ascensão social, e a velha classe

média, que acreditou na “privatização” da vida, “paga seus impostos”, defende a

“meritocracia” e não se vê contemplada nos novos projetos de inclusão. Unidas pelo

ressentimento, dividem-se logo à frente, quando uma aposta em “mais política”, embora

desconfie do sistema atual – a geração naturalista, de que falo adiante – e outra aposta

na sua redução, como é o caso da geração neoconservadora do Partido Novo, mas

também dos “anarquistas” e dos saudosos da ditadura.

Minha conclusão é que, do legado deixado à juventude de pais, de cujo espólio

resulta o título de uma dívida social e política, nasceram reações ambivalentes,

dualidade que vemos representada nas ruas e nas redes. Herdeiros do “ressentimento”,

uns e outros parecem tentar lidar com o que lhes foi legado, ao mesmo tempo em que

reclamam de um “pacto político” (AGAMBEN, 2011) que não está sendo cumprido e

resulta num sentimento amargo de injustiça, mas que empurra à ação política.

3.4. Políticas de Reparação Histórica

“Quando o oprimido fala, o opressor cala a

boca”187.

A partir do governo Lula, algumas políticas de “reparações históricas”, de

inclusão dos mais pobres e descendentes de negros e índios, como o Bolsa-Família e as

Cotas Raciais (cito as mais emblemáticas), foram criadas e, embora signifiquem pouco

em termos de gastos governamentais, são as que causam maior indignação, debates e

mesmo ataques contra aos que a elas têm direito desde que foram lançadas. O fato de

que não representem significativas despesas no orçamento público (aproximadamente

0,5% do PIB), mas que chamem tanta atenção é um sinal de que a classe média percebe

e se desagrada com a mudança em curso – a “reparação do passado”, mas não para a 187 Frase dita por uma jovem negra a um jovem branco numa discussão sobre cotas na FEA/USP, conforme descrevo adiante.

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classe média, que amargou os anos da “depressão” – com a chegada do Partido dos

Trabalhadores, “representantes dos mais pobres”, ao poder.

Segundo Luis Fernando Pondé188, um dos mais ácidos críticos atuais da

“esquerda”, quando os “oprimidos” são postos “no centro da sala”, como agora, “é o

veneno do ressentimento que sobe à alma”. (2014:157). Pondé dá outro nome ao que

chamei de políticas de reparação histórica: ele as chama de “políticas de ressentimento”

em livro publicado recentemente que defende a ideia de que vivemos “A Era do

Ressentimento” (2014). O livro de Pondé, lido “à contrapelo” oferece pistas importantes

para entendermos o discurso predominante entre as classes médias conservadores e as

razões das altas temperaturas que tomam os debates atualmente instigados pelos

temores da “vitória” dos oprimidos (ou “dependentes”, “vagabundos” etc.).

Umas das estratégias de “desqualificar” as queixas, as reivindicações e mesmo

os ódios que estão no centro das acusações recíprocas de ressentimento social utilizadas

por Pondé, e em particular pela revista Veja, da Editora Abril, campeã em vendagens e

veículo preferencial da classe média, é compreendê-lo como “inveja” e “vitimização”,

cuja receita do alívio é, atualmente, o discurso tão propagado do “mérito”. Uma

sociedade que perpetua as desigualdades, em particular pela restrição do acesso à

educação – que estimula o consumo do supérfluo, quando não da opulência –, se assenta

sobre o discurso do “mérito” como um direito contra a “inveja” daqueles que não

alcançaram os seus privilégios.

A inveja, pensada do ponto de vista social, é uma das expressões do

ressentimento desde a descrição de Nietzsche, mas reduzir o ressentimento hoje à

inveja, como faz alguns dos “provocadores”, é uma clara estratégia para desqualificá-lo,

porque reduz o ressentimento à métrica da comparabilidade, quando se trata de

desmontar a relação entre a ideia de justiça e a de reconhecimento (ZAAWADIZKI,

2001:383). Em resumo, o que se propõe como resposta ao ressentimento social que

reclama da desigualdade é o falso argumento de que é preciso ter mérito numa

sociedade onde o próprio alcance do “mérito” depende da condição social. Os debates

em torno da meritocracia no Brasil são uma discussão puxada pela classe média

188 Filósofo professor da PUC-SP colunista da Folha de São Paulo, comentarista da TV Cultura é um dos intelectuais que inspiram a recém levantada juventude da direita liberal no Brasil. O professor deu uma palestra para os membros do Partido Novo, em 2015, de aproximadamente duas horas. “Luiz Felipe Pondé e Partido NOVO - Questões Políticas - Palestra completa”. Ver em: https://www.youtube.com/watch?v=Hy-kHGIKeAI

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conservadora, uma reação ao crescimento da lógica do que se entende como “a vitória

da moral escrava”, dos “fracos”.

Embora concorde no diagnóstico do “ressentimento” entre os jovens que ele

chama de “esquerda”, discordo de sua explicação – que se limita à “inveja” (ver p. 45),

ao narcisismo, ao “politicamente correto”. Pondé, um liberal da direita não

conservadora, como ele mesmo se define, de tão próximo que está dela, não enxerga o

ressentimento que também vem dos jovens de “direita” – o que no mínimo tornaria o

problema mais complexo – sobretudo daquela parcela de neoconservadores, liberais,

mais meritocrática do que democrática. Pois, senão, como interpretar o lamento, a

irritação, as histerias, os panelaços, a violência que vão dos jornalistas aos militantes

contra a ascensão dos mais pobres, a quem chamam de “dependentes”, “vagabundos”

etc., definidos a partir das políticas sociais da esquerda e/ou do Partido dos

Trabalhadores? Não incluo aqui, obviamente, as análises e posições de intelectuais e

economistas que defendem, com argumentos liberais relevantes, as críticas à

intervenção do Estado, ou seus excessos, mas sim as reações da classe média instigada

sobretudo pela mídia corporativa e seus “provocadores de ressentimentos”.

O pensamento de Pondé, embebido em ressentimentos189, é importante porque

acusa o golpe de uma mudança em curso que está presente nas políticas que ele chama

de “políticas de ressentimentos”, que denominei de “políticas de reparação histórica”.

Estas são, segundo o autor, toda forma de política que se baseia na ideia de que “se não

sou feliz, não sou capaz de reduzir minha pobreza e sofrimento, a culpa é de alguém que

não sou eu” (2014: 129,130). Em um de seus capítulos, “Os Coitados”, o autor

considera que “é comum nos referirmos às pessoas como coitadas porque têm que

enfrentar a vida. Algo que, antes, era considerado óbvio – a vida não tem garantias –

hoje se tornou um erro cósmico” (2014:118). Segundo o autor, “se Nietzsche havia, um

dia, identificado o ressentimento por trás das religiões, seguramente, hoje, ele o

identificaria por trás da política como forma de redenção da vida”. (2014:129,130).

Bresser-Pereira (2014), no artigo “O Mal-Estar Entre Nós” fala dos efeitos

causados pela ascensão de “uma classe C vencedora [sic]”. Reproduzo parte do texto

que reforçam os argumentos de algo que poderíamos chamar de ressentimento

“reverso”:

189 No livro o próprio autor se declara um “ressentido”.

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[...] Mas, não é apenas a quase estagnação econômica e a falta de qualquer projeto para

superá-la que explica o mal-estar das elites brasileiras. É também a ascensão da classe C

ao consumo de massas, enquanto essa elite – não os muito ricos, mas sua grande classe

média tradicional – não via sua renda aumentar. Produziu -se, assim, primeiro, o “efeito

túnel”, definido por Albert O. Hirschman (1973). Enquanto, em um túnel, todos os

automóveis andam lentamente, seus motoristas se aborrecem, mas não se sentem

injustiçados. Se, entretanto, uma das vias do túnel passar a se mover, enquanto sua via

fica parada, o motorista se torna indignado. É o que aconteceu no Brasil na relação entre

a classe média tradicional e a classe C, com a ressalva que a outra via que avançava não

era uma via “igual”, mas vista como inferior. De repente, a classe média tradicional viu

seus espaços invadidos pela classe C: os shopping centers, os aeroportos e mesmo os

aviões internacionais. Ora, ainda que essa classe se acredite democrática e tolerante,

está longe de sê-lo. O vício do desrespeito às classes inferiores está profundamente

arraigado na sociedade brasileira. Conforme observou Claudio Gonçalves Couto (2014)

de forma aguda, a ascensão social pelo consumo da classe C teve “efeito desorganizador

na ordem tradicional da sociedade brasileira, tão calcada sobre a desigualdade”. Antes,

as classes abastadas – a “gente bonita” – tinham acesso a determinados lugares. A

chegada a eles de “gente diferenciada” gerou desordem e ressentimento; “os de cima

(sobretudo dos não tão de cima) perderam a sua distinção baseada no consumo”190.

Marc Ferro relata, para sua surpresa, ter encontrado um ressentimento que vem

de cima pra baixo, do “opressor” que teme perder o seu lugar para o “oprimido”191.

Segundo o autor:

O ressentimento não é apanágio dos que originalmente identificáramos como

vítimas: escravos, classes oprimidas, povos vencidos, etc. A pesquisa revela

que, simultaneamente ou alternadamente, o ressentimento pode golpear, inibir,

não apenas uma das partes em questão, mas ambas (2009:193).

A origem desse ressentimento que vem da classe média conservadora nesse

momento talvez seja uma “re-ação” à voz que ecoa em muitos lugares, em particular

190 Na continuidade do artigo o autor pergunta se “não estariam os de baixo, a nova classe C, também vivendo seu próprio mal-estar?”. O autor entende que sim. Ou seja, a patologia do ressentimento se espalha “vem de cima prá baixo e de baixo prá cima” – momento em que se encontraram nas manifestações - transita e se realimenta entre os vários discursos dos ressentimentos recíprocos, como pode se vê na mídia imprensa, eletrônica, e nas redes digitais. 191Esses e muitos outros artigos tratam do tema que explode agora no governo Dilma: Dilma vive uma vingança neoliberal http://www1.folha.uol.com.br/mercado/2015/05/1623474-intelectual-brasileiro-tem-mentalidade-de-terceiro-mundo-diz-sociologo.shtml. http://jornalggn.com.br/fora-pauta/amor-em-tempos-de-colera http://jornalggn.com.br/noticia/entre-a-luta-de-classes-e-o-ressentimento-por-joao-bernardo http://jornalggn.com.br/noticia/os-caminhos-do-pt-e-o-fortalecimento-da-direita-politica-por-claudio-couto http://www.brasilpost.com.br/pedro-abramovay/democracia-e-internet-10-_b_7224536.html

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entre os jovens de classe média que chamo de “naturalistas”, aliados na “vitória da

moral escrava”, que anuncia: “quando o oprimido fala, o opressor cala a boca”192. Essa

frase foi dita recentemente por uma jovem negra a um jovem branco, no contexto de

uma discussão sobre cotas na USP/FEA, proposta pelo grupo Ocupação Preta193. O

grupo fez uma “intervenção” em uma aula de microeconomia da FEA/USP, propondo

trinta minutos de discussão sobre a não adesão da universidade às cotas raciais, e sofreu

a oposição de um aluno, estudante do Colégio Vértice, líder no ENEM no Brasil, e a

mudez dos restantes. O aluno que se opôs à intervenção pedindo “aula!” repercutiu o

discurso que atravessa a classe média conservadora, o da “meritocracia”. Depois de uma

longa batalha, a fala calma do único aluno negro da sala onde se deu “o debate” virou o

jogo em favor dos oprimidos194. Seu testemunho pessoal repôs a experiência amarga e

seu próprio ressentimento de ser negro numa sociedade de “brancos”:

Agora eu vou precisar falar! Eu também sempre estudei em escola particular.

Estudei num cursinho onde 170 alunos eram brancos e só eu era negro. É uma

questão que pra vocês realmente não faz nenhuma diferença, mas prá mim

sempre doeu, sempre machucou. Então, é muito fácil você falar de uma coisa

que você não viveu, eu vivi isso, a minha vida inteira, sempre vivi isso! Vocês

estão reclamando da aula... porra! A semana passada a professora liberou duas

horas mais cedo! Os caras tão pedindo meia hora! Pra vocês isso não faz

diferença, na minha vida isso faz diferença! (Palmas). Se você não vive isso, pra

você é indiferente. Eu vivi isso, então eu sei o que eu passei. Você, branco, não

sabe!

Ferro explica que o ressentido sofre por sua impotência, sem poder reagir,

ruminando suas mágoas, afrontas, violências sofridas, até explodir, ou não, a depender

das circunstâncias que podem produzir:

Uma desqualificação dos valores do opressor e uma revalorização dos seus próprios e

dos de sua comunidade, que até então não os defendera conscientemente. Isso dá nova

192 A discussão sobre o mérito tem sido bastante discutida da ótica dos jovens e é bastante “compartilhado” nas redes sociais, como é o caso dessa história em quadrinhos: http://awebic.com/cultura/se-voce-acha-que-todos-tem-as-mesmas-oportunidades-da-uma-lida-nessa-historia-em-quadrinhos/ 193 O vídeo foi acessado por mais 2,5 milhões de pessoas. Também em 03/06/2015 um grupo de jovens negros fez uma manifestação dentro de um famoso restaurante em São Paulo, “O Senzala”. Ver em http://www.revistaforum.com.br/2015/06/03/senzala-nunca-mais-intervencao-artistica-contesta-nome-de-restaurante-em-sp/ 194

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força aos oprimidos e produz uma revolta, uma revolução ou ainda uma regeneração – é

quando uma nova relação se estabelece no contexto do que inspirou esses levantes ou

essa renovação. (FERRO: 2009:14).

O fato de essa elevação moral dos “inferiores” na escala social ser percebida

como ameaça pelos de cima, que acusam o golpe, ainda que esteja longe da realidade, é

prova das inúmeras manifestações contra os nordestinos, os gays e lésbicas, os negros,

também contra os defensores das bikes, os plantadores de horta, os que defendem

parques ecológicos contra a especulação imobiliária195.

Citando o livro de Pondé (ainda uma vez) o autor, embora de forma

estereotipada e pejorativa lido “à contrapelo” (BENJAMIN, 1994) como já sugerido,

oferece elementos para uma cartografia do “jovem ressentido de esquerda”, que se

identifica pela defesa de todas as minorias e os injustiçados – os índios, os quilombolas,

as mulheres, os LGBTs, etc. Pondé acerta ao afirmar que são essas ideias que embalam

atualmente parte da militância adulta e jovem de “esquerda”: a juventude que ele chama

de “os ungidos” e se apoia na noção de “direitos” que, na definição do autor, é “uma das

maiores formas de burocracia para os ressentimentos já inventados” (2014:59). O autor

alerta que essas pessoas “com causas”, os “santos ecológicos”, “andam como se, com

seu suor, abençoassem o mundo (...) como se isso os tornasse membros de um novo

clero de puros” (2014:89, 99), acusando a vigência de uma ordem de valores

“naturalista”, retomada e reinventada pela juventude, mas que produz de fato riscos e

sombras em meio a essa reinvenção. Afinal, uma das principais características do

ressentido é sua “elevação moral” (KEHL, 2011:36). Uma juventude pouco tolerante

com a não diferença, com a convicção da superioridade daquilo que defende, é uma

porta aberta ao autoritarismo, como há tantos exemplos no passado.

Que as utopias e suas revoluções morais ajam de forma autoritária não é novo.

No entanto, como considerava Hanna Arendt (2011), referindo-se a uma frase do Maio

de 68, “a revolução será moral, ou não existirá”. O fato de que a pauta “moral” (que não

se confunde com moralismo) e a preocupação com os direitos das minorias, dos

excluídos e da própria natureza seja o que mais mobiliza a juventude hoje e levante

debates e polarizações só é prova da crise de autoridade política que vivemos e da

vontade de reinventá-la a partir de outros princípios.

195 Csos como o do movimento “Parque Augusta”, e do “Cais Estelita”, em Recife.

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3.5. Geração Naturalista: “a geração que perdeu o medo”196

Facebook Isabel Kojin Peres, 21/07/2015

As manifestações dos conservadores, ou dos “conservadores liberais do ponto de

vista dos valores”, que estão nas ruas, com suas falas e seus cartazes – ainda que sejam

uma minoria – soam para muitos da geração dos anos 60 como um verdadeiro

flashback, ou mais um pesadelo. Os anos 60 parecem ter voltado nas grandes

manifestações de rua; no protagonismo juvenil; nos pedidos de intervenção militar e na

retórica da Guerra Fria; na defesa da “família” e da “nova família”; na identificação

com a América Latina, e também na rejeição (antes Cuba, agora Venezuela e o

Bolivarianismo); no ambientalismo; no feminismo, nas lutas “anticapitalistas” e contra a

sociedade de consumo. Parada Gay, Marcha das Vadias, Marcha das Margaridas,

Marcha da Maconha, Marcha Pelo Impeachment/Golpe, Marcha dos Evangélicos,

Marcha do MST/MTST, Marcha dos Estudantes. Mudaram os nomes das manifestações

– antes passeatas, agora marchas –, a estética da militância e os meios, potencializados

pelas redes sociais; a rigor mudamos muito, mas muitos dos problemas colocados nos

anos 60 retornam ora como “recalcados” ora como recolocados em outro tempo. O que

une todas essas experiências atuais de revoltas é uma crise de autoridade que questiona

mais uma vez limites estabelecidos e põe em questão os poderes como eles estão

instituídos, e o faz contestando suas práticas e, sobretudo, os “valores” e as “lógicas”

que sustentam os poderes e suas alianças.

Em Benjamin, a nostalgia é o “sentimento mais fundamental para a criação, sem

o lamento por uma grandeza perdida não será possível nenhuma renovação da vida” (DI

196 Frase dita por Camila Valejo, uma das lideranças mais importantes nos protestos no Chile, em 2011, e atual deputada federal.

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GIORGIO, 2014). Mas, nem toda nostalgia, sabia o filósofo, faz rodar a roda da

história, renova o seu curso: o retorno proposto ao passado por Benjamin não é mera

rememoração ou, como se vê hoje em dia nos memes da internet197, na “retromania”,

fetiche para consumo da juventude classe média. Ou como entre os “neoconservadores”

cuja historia é magistra vitae e buscam nela a explicação pronta dos males do presente.

Há outras formas de lidar com a história e as experiências acumuladas por uma

juventude que parece querer fazer “justiça com o passado”, como sugeriu Walter

Benjamin, recuperando seus projetos malogrados: é o caso do retorno do “parto

humanizado”, do culto aos “povos tradicionais e seus saberes”, no retorno à América

Latina (do passado), nas viagens ao interior do Brasil às Chapadas198. Nessa busca, os

jovens também resgatam figuras do passado – no lós hay no presente –, que são

transformados em modelos de inspiração, mas não de ação: Eduardo Galeano, Mujica,

“Mafalda”, Saramago, Leonardo Boff, Frei Beto, referências da geração dos anos 60

que falam com os jovens hoje, ainda que nenhum deles possa propor modelos políticos,

como fora o caso de “intelectuais orgânicos” de antes.

O ressentimento, assim como a nostalgia, é um traço bastante presente entre os

jovens atualmente. No entanto, esse retorno ao passado por uma parte da juventude

parece movido por uma vontade de resgatar aquilo que poderia ter ganhado vida e se

perdeu na escuridão da história, que Benjamin entende como uma atitude de “salvar o

passado”, mas que se olha para o futuro. E “o futuro, aqui, não é a projeção grandiosa

do tempo na linha evolutiva da história”, segundo a nostalgia conservadora, “mas o seu

desvio em direção ao passado, para que um ato de justiça possa libertá-lo”. É o que faz

com que os jovens “naturalistas” tenham empatia não pelos “vencedores” que

imprimiram uma derrota ao mundo, mas pelos “vencidos” – abraçando “a moral dos

escravos” – e também pelo que se perdeu: os povos tradicionais e seus saberes, o

modelo extrativista, a vida natural e, sobretudo, a vida coletiva e os laços sociais, que

cada hora mais se desfazem com a modernidade. Tarefa nunca concluída, que toda

geração precisa assumir, segundo Benjamin, é libertar o passado, retomar possibilidades

197 Alguns exemplos, entre dezenas que circulam compartilhados aos milhares: “60 brinquedos dos anos 80 e 90 que farão você querer inventar uma máquina do tempo”; “44 pequenas tragédias que só quem viveu nos anos 80 vai entender”. 198 O lançamento da “Marca Peru: Campanha de Lançamento Internacional 2012” criou um vídeo onde um homem maduro, na faixa entre os 40 e 50 anos vê uma gravação feito por ele mesmo e para ele mesmo há vinte anos. Dentre as aventuras do seu passado estava uma viagem ao Perú, moda entre a juventude nos anos 60.

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malogradas daquilo que poderia ter ganhado vida, mas foi soterrado nas ruínas da

história. De acordo com a jovem blogueira Mamatraca199 se referindo ao “parto

humanizado”, uma prática defendida e um hábito que está sendo incorporado às novas

gerações de mães:

[...] é fato que vivemos um tempo no qual muitos hábitos do passado vêm sendo

revisitados, como uma tentativa de encontrarmos alguns elos perdidos. (...) Quem sabe o

retorno do olhar para essas práticas seja uma forma de buscar equilíbrio entre o que a

tecnologia e os avanços do conhecimento podem nos oferecer e os indiscutíveis

benefícios da disponibilidade do amor, dos abraços e do esforço? (...) Em tempos de

tecnocratização da vida, é preciso que a gente recorra às essências. Pensar no

fundamental.

O passado está fortemente presente entre os jovens movidos por um

ressentimento generalizado, que escapou das brechas abertas pelas crises. Mas as

utopias também retornaram, e elas não são “futuristas”, tecnológicas, cientificistas,

como mergulhou parte do imaginário da classe média dos anos 60 (enquanto a

contracultura se voltava para o passado), atualmente ela é ora pré, ora pós-capitalista,

humanista e naturalista. As ameaças e problemas contemporâneos nos obrigam a pensar

coletivamente atrelados que estamos todos a um destino comum. Há um sentimento

novo e utópico, essencialmente contemporâneo, e presente na juventude: a empatia.

3.6. Empatia, o Gesto Revolucionário

Em O Contrato Natural, Michel Serres (1990) abre o livro com uma narrativa

inspirada na obra de Francisco Goya, O Duelo dos Varapaus, para chamar atenção a um

problema até então não dimensionado nos cálculos dos economistas e dos cientistas

sociais: a importância do meio natural nas relações sociais. Vale a leitura das linhas.

199 http://mulher.uol.com.br/gravidez-e-filhos/mamatraca/anne-rammi/2013/09/23/maternidade-alternativa-nao-e-moda.htm. Publicado no Facebook de Ligia Nascimento.

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Dois inimigos brandem os seus varapaus, em luta sobre as areias movediças. Atento às

tácticas mútuas, cada qual responde golpe a golpe e replica com uma esquiva. Fora do

cenário do quadro, observamos como espectadores a simetria dos gestos ao longo do

tempo: que espetáculo magnífico e banal! Ora, o pintor – Goya – fez mergulhar os dois

contendores na lama até aos joelhos. A cada movimento, um buraco viscoso engole-os e

ambos se enterram na lama gradualmente. A que ritmo? Isso depende da sua

agressividade: na luta mais encarnada, os movimentos mais vivos e secos aceleram o

atolamento. Os beligerantes não adivinham o abismo em que se precipitam, mas do

exterior, nós, pelo contrário, vemo-lo bem. Quem vai morrer? – perguntamo-nos?

Quem vai ganhar? – pensam eles e dizemos nós muitas vezes. Apostemos. Apostem no

da direita, nós apostamos no da esquerda. Que o desfecho seja duvidoso decorre da

dupla natureza dos dois inimigos: há apenas dois contendores, que a vitória sem dúvida

dividirá. Mas, numa terceira posição, exterior a essa luta, reparamos num terceiro lugar,

o pântano, onde a luta se afunda. Porque aqui, assaltados pela mesma dúvida, os

apostadores correm todos o risco de perder, tal como os lutadores, por ser muito

provável que a terra absorva estes últimos antes que eles e os jogadores possam ter

arrumado as suas contas. Cada um por si, eis a questão pertinente. Em segundo lugar,

está a relação do combate, tão entusiástica que apaixona a plateia e esta, fascinada,

participa nela com os seus gritos e moedas200. Entretanto, não esquecemos o mundo das

próprias coisas, a areia movediça, a água, a lama, os caniços do pântano? Em que areias

movediças nos atolamos em conjunto, adversários activos e espectadores perigosos? E

eu mesmo que o escrevo, na paz solitária da aurora?

A sensibilidade ao problema ambiental entre os jovens contemporâneos é, assim

como em Michel Serres, trágica e pode ser bem representada na imagem de um pântano

em que nos afundamos todos enquanto nos distraímos na luta, ou nas apostas, uns

contra os outros e contra a Natureza. “Estamos a nos tornar uma sociedade

absolutamente desprovida de solidariedade”, diz Francis De Wall, e o fazemos em nome

da sobrevivência, da “luta pela vida”, que estranhamente, segundo o biólogo, se baseia

na natureza. (2009:17). Segundo o autor, o struggle for life, que Herbert Spencer fez

ancorar nas ideias de Darwin, o Darwinismo Social – tão difundido entre nós que quase

200 Serres, Michel. “O Contrato Natural”. Lisboa: Instituto Piaget, 1990, p. 11-12.

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nem é percebido – promoveu a competição, a disputa, o reconhecimento do butim ao

mais forte, ao mais esperto, ou mais “adaptado” como uma lógica “natural” necessária à

sobrevivência, e mais: condutora do progresso, mola mestre do capitalismo. “A

violência, com seu mórbido reflexo, glorifica os vencedores por fazerem avançar o

motor da história”, escreveu Serres (1990:13). A luta pela vida – “matamos um leão por

dia” – baliza com naturalidade nossas atitudes e nossa noção de normalidade cotidiana.

Como explica De Wall, todos os debates sobre sociedades e governos “recorrem

à biologia para justificar uma sociedade baseada em princípios egoístas”, uma

“violência consentida” que está presente na própria natureza, e na natureza humana, e

portanto só resta vivermos da mesma maneira. Ignoram que “a nossa biologia produz

também a liga que mantém as comunidades unidas” (DE WALL, 2009:10). Como

observa, “a nossa espécie tem um lado social e um lado egoísta”, mas “o lado egoísta é

o pressuposto dominante”. Esse “espírito evolucionário”, expressão citada pelo

personagem interpretado no Michel Douglas no filme Wall Street, tem como princípio

que “a ganância funciona”, como também teria dito Margareth Tatcher, e antes dela

Ayn Rand, escritora ultraliberal bastante citada recentemente nas redes sociais pela

direita neoconservadora. Firmado em uma imagem equivocada de natureza, o

pressuposto do egoísmo como princípio natural despolitizou, quando não ridicularizou a

solidariedade, que ficou restrita à religião e à benemerência privada. A ascensão do

privado, a defesa intransigente e cega da liberdade individual postulou os interesses

coletivos como ideia romântica (DE WALL 2009: 17) e desprovida de sentido prático,

mas está sendo modificada a partir do seu significante.

Vivemos a “era da empatia”, “a ganância está ultrapassada”, escreveu o autor.

Apesar do extremo otimismo é, de fato, possível notar que uma parte da juventude atual

nega o valor da competição e as justificativas à exploração, e parece mesmo

“desinteressar-se por essa cultura repugnante” (SERRES, 2013:13), glorificada no

passado. A essa visão de um mundo em luta contra si mesmo, uma parte propõe a

“empatia”, retomando a “gentileza”, a solidariedade com base na própria natureza – não

aquela da competição pela vida. A nova noção de natureza e de “ordem natural” que se

projeta é solidária, benigna, justa, distributiva, sustentável, gentil, uma noção que

mistura dados e evidências científicas e uma dose de idealização para mostrar a natureza

como “modelo de ação”.

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Para além de ser um princípio de pensamento apenas entre os jovens engajados

às causas ambientais, as novas formas de ver a natureza estão também no senso comum

do que chamei de “geração naturalista” e parece ser uma nova ordem de sensibilidade

que vai se construindo e sendo “compartilhada” no dia-a-dia da rotina das redes e na

mídia, conforme observei. No Facebook, por exemplo, são campeões de acesso os

vídeos que mostram biólogos, antropólogos, psicólogos, tratadores de animais, pessoas

comuns que convivem em harmonia em meio a feras, como leões, tigres, ursos, e não

“domadores” da natureza. Muitos abraços, afagos, trocas e camaradagens. Entre os

animais, não menos, a solidariedade está em destaque – e ela é muitas vezes

interespécies!201 A imagem da Natureza ameaçadora, incontrolável e desafiadora é

substituída por um mundo natural que é uma ordem perfeita, a Terra é a grande Gaia,

um organismo vivo, não uma rocha fria. Um naturalismo redescoberto202.

Keith Thomas afirma que o que as pessoas pensam sobre animais e plantas é

impossível de se separar daquilo que elas pensam sobre si mesmas (1988:19).

Atualmente a imagem do homem modificou-se frente à grandeza da natureza, em

particular em relação aos animais. Os exemplos que partem da natureza são

confrontados às atitudes dos homo sapiens, apresentados como os destruidores de todas

as outras espécies e como que castigados pela destruição provocada, o lugar do

homem/mulher se desloca do centro do universo, onde esteve há séculos203. O

antropocentrismo da teologia que forneceu os alicerces morais para o predomínio do

homem sobre todos os outros seres vivos (1988:27), amplamente reconhecido e aceito

como natural. Mas também o antropocentrismo da Ciência e do Capital, que justificou a

exploração da natureza baseada na ideologia do Darwinismo Social, se veem

confrontados com um questionamento em relação à primazia das necessidades humanas,

posta em cheque pelas ameaças que surgem no horizonte para a sobrevivência das

próximas gerações. E, por muito menos, pela possibilidade de infligir dor aos animais 201Nesse vídeo Leopardo Se Arrepende por Matar Beduíno. https://www.youtube.com/watch?v=iPm-9B0GUCk. Nesse “Leão Abraça Seu Cuidador Desesperadamente”. https://www.youtube.com/watch?v=dYHrmg1UU0U 202 Pondé, que também notou a mesma mudança ironiza os jovens por essa crença numa natureza “equilibrada”. Segundo o autor, a Natureza não é assim. 203 Um dos vídeos que mais circula entre jovens de diferentes grupos. Publicado por Yam, da REJUMA, em junho de 2014. https://www.google.com.br/search?q=%C4%B0nsano%C4%9Flunun+d%C3%BCnyaya+zulm%C3%BC&oq=%C4%B0nsano%C4%9Flunun+d%C3%BCnyaya+zulm%C3%BC&aqs=chrome..69i57j0j69i61.659j0j8&sourceid=chrome&es_sm=122&ie=UTF-8

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para satisfazer a vaidade humana, não poucas vezes com o preço da extinção de

espécies, um problema que carrega de indignação os ressentimentos da juventude. No

Facebook, a página Igualdad Animal/Animal Equality, que defende a “causa

animalista”, existe desde 2009 e tinha 1.454.037 curtidas em junho de 2014.

A ideia de “preservação”, por exemplo, hoje não pode ser mais a mesma

decretada pela ONU em 1969, como: “o uso racional do meio ambiente a fim de

alcançar a mais elevada qualidade de vida para a humanidade”. Ao contrário, o que se

defende atualmente é que a própria natureza tem valor espiritual intrínseco e o mundo

vivo tem direito à vida (De Wall, 2009:357).

Enquanto escrevo esse texto, leio: “Em decisão histórica, França altera Código

Civil e reconhece animais como seres sencientes”204. De acordo com a Agência de

Notícias de Direitos Animais, a modificação do código civil foi idealizada pela

ONG Fondation 30 Million Amis, que alterou o status jurídico dos animais no país, não

mais considerados como “propriedade pessoal como o antigo artigo”.

Desta forma, os animais não são mais definidos por valor de mercado ou de patrimônio,

mas sim pelo seu valor intrínseco como sujeito de direito. Segundo a ONG idealizadora

do projeto, esta virada histórica coloca um fim a mais de 200 anos de uma visão arcaica

do Código Civil francês em relação aos animais. Finalmente os parlamentares levaram

em conta o estado da ciência e ética de uma sociedade do século 21. (...) O parlamento

francês finalmente percebeu algo que muitas pessoas já sabiam: os animais são capazes

de vivenciar seus próprios sentimentos: Dor, amor, felicidade, raiva, alegria, amizade e

tantos outros. A diferença agora é que este direito é reconhecido de forma legal no

código civil do país. Um pouco antes, o Supremo Tribunal de Justiça da Argentina

também declarou parecer favorável aos direitos animais, concedendo a uma

orangotango chamada Sandra, o status de “pessoa não-humana. (...) Foi a primeira vez

que se tem registro, entre os diversos ordenamentos jurídicos do mundo, que uma corte

tenha estendido a noção de direitos humanos para animais [que passa a ser] “detentora

de direitos básicos, como a liberdade”.

A reportagem explica que a Fédération Nationale des Syndicats d'Exploitants

Agricoles (FNSEA), poderoso lobby agrícola francês, “pressionou o parlamento

expressando preocupação de que a mudança na legislação poderia prejudicar os

interesses dos agricultores e criadores de gado particulares”. Uma sensibilidade em tudo

contrastante à das gerações anteriores que uniram o antropocentrismo da ética

204http://www.anda.jor.br/03/02/2015/decisao-historica-franca-altera-codigo-civil-reconhece-animais-seres-sencientes.

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protestante ao do “espírito animal” do capitalismo e da ciência, que resultou no Brasil

no elogio do “pioneiro”, como foram os imigrantes que colonizaram a Amazônia, os

que “desbravaram matas” – hoje dizemos desmataram – com incentivo dos governos e

de toda a sociedade. A natureza nessa época tinha raros defensores, e não tinha

sentimentos. Há até algumas décadas, “terra não cultivada significava homens incultos”

(DE WALL, 2009: 17). Na Ditadura Militar, derrubar árvores era prova de

desenvolvimento, segundo o índice Valor da Terra Nua (VTN), criado pelo Instituto

Nacional de Reforma Agrária - INCRA, para avaliar a concessão de títulos de posses.

Comer animais era tão natural como tomar banho. A ideia de restringir o agronegócio,

ou mesmo a tecnologia dos agrotóxicos capazes de aumentar a produção, como

defendem muitos jovens, teria parecido um argumento absurdo há vinte ou trinta anos

atrás, o tempo da minha geração. Mas, também atualmente, o argumento de que é

preciso aumentar a produção agrícola para acabar com “a fome” – que só cresce ano a

ano – já não convence os ativistas, que não ignoram a especulação que se faz com

alimentos, convertidos em commodities.

“A grande influência civilizadora”, sinônimo no passado de conquista da

natureza, não encanta a juventude. Aos poucos, espetáculos envolvendo animais,

domadores com chicotes, ou mesmo os de animais “amestrados” perdem o brilho. Em

“15 Razões Para Não Levar Seu Filho ao Sea World”, lemos que “os animais são

escravos do entretenimento”205.

A juventude faz revisão do passado

Publicado no Facebook de Thiago Moraes

205 http://mamatraca.com.br/?id=640&15-razoes-para-nao-levar-seu-filho-ao-seaworld

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A licença para “matar” ou ter “domínio” sobre a natureza é vista como fora de

propósito. Os jovens querem retomar não o “domínio”, mas os “saberes” da natureza,

assim como os conhecem os “povos tradicionais”, que respeitam um convívio

harmônico com todos os seres naturais e se sentem parte deles, enquanto nós,

“modernos”, nos separamos da vida natural e estamos em desequilíbrio com a ordem do

Universo. Há poderes curativos nas plantas, nas águas, nas rochas, nas cores, entre

xamãs, curandeiros, os que vivem em harmonia com as forças da natureza.

Nesse “novo contrato sócio-natural” proposto pela juventude, a empatia também

se estende “ao outro”, que parece ter ficado mais “próximo”. Seja pela cura do câncer

de um desconhecido, pela adoção de um cão abandonado, por uma “vaquinha” para um

projeto de uma “comunidade”: a utopia atualmente é o “co”, o coletivo, a colaboração, o

compartilhamento. Uma ação política desagregada dos partidos e esvaziada de

ideologias, que a visa refazer laços e coletividades, mas preenchida por práticas

cotidianas que fazem escolhas com base no interesse comum: não comprar roupas de

marcas que usam trabalho escravo, tampouco alimentos transgênicos ou suspeitos de os

serem, não consumir alimentos orgânicos, ou com agrotóxicos, apoiar causas a favor

das minorias etc.

Por todo lado que se olha, os jovens parecem estar buscando uma questão

coletiva para se engajarem, como observou o jornalista Luiz Carlos Azenha206.

Diferentemente de seus pais, que viveram um período onde a ascensão do privado, do

individualismo, da realização pessoal foi um valor buscado com ânsia pela classe média

– os efeitos da onda neoliberal que varrem o mundo ainda precisam ser mais bem

analisados do ponto de vista da cultura –, para uma parte da juventude atual os

interesses coletivos têm maior peso e invadem a vida cotidiana, e nas redes sociais

aproximam o público e o privado: publicações da vida pessoal se confundem com os

posicionamentos frente “aos casos de consciência da moral pública”207 e de

engajamento em defesa de todos os “oprimidos”.

Filipe Pondé ironiza que esses jovens querem “melhorar ou mudar o mundo”208.

Mas talvez o que esse sentimento de empatia revele, mais do que uma mera vontade de

206 207 “Jovem modelo cria rede social para 'pessoas ajudarem as outras sem cobrar nada”. http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2015/01/150102_impossible_rede_lab?ocid=wspor_bra_smc_facebook_mkt_fe_model_ 208 "Por uma direita festiva", FSP, 21/4.

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melhorar o mundo, é uma experiência do presente, na qual o indivíduo percebe sua

existência pessoal como identificada, unida ao dever coletivo (ARIÈS, 2013: 18), uma

comunidade de destino – trágica – potencializada pela experiência diária de viver numa

“sociedade de riscos”, como sintetizou Ulrich Beck (2013)209.

Essas adesões ao “coletivo”, ao contrário de parecerem ilusões da juventude,

como diriam os “filisteus”210 de Benjamin (2002), têm um potencial revolucionário e

implicam uma profunda mudança de paradigma porque provém de uma contestação ao

princípio fundamental do sistema capitalista – a competição por recursos naturais e

humanos que foram ancorados numa suposta “ordem natural”, que promove a luta em

nome da vida. A ideia de natureza que está sendo reconstruída, ao contrário, é fonte de

saber, e não exemplo de violência. A revisão da “ordem da natureza” e o foco nos

direitos humanos – os direitos dos “perdedores” – questionam antigos pressupostos que

destruíram a coesão social. Serres observa que:

Quando a política degenera para o crime... os promotores de espetáculos apenas nos

oferecem cadáveres para apreciar (...). Mas a modernidade começa como tenho

verificado, a desinteressar-se por essa cultura repugnante. O fato de, nos tempos

modernos, se admirar menos os assassinos triunfadores e os aplausos perderem

entusiasmo depois da abertura dos ossuários exibidos, todavia com deleite, é, julgo eu,

uma boa notícia (SERRES, 1990:14).

A juventude que foi às ruas em junho de 2013 – e ainda está lá com novas

manifestações, como nos casos recentes dos estudantes secundaristas contra a

“reorganização das escolas”, proposta pelo governo estadual de São Paulo – está

transbordando seus sentimentos de “injustiças” e se abate contra o poder instituído, daí

suas opções pelos trabalhadores de baixa renda, pelos pobres, pela periferia, pelas

minorias, pelas crianças, pelos velhos, pelos animais, pela natureza saqueada, enfim, por

todos aqueles “oprimidos”, o que demonstra sua profunda insatisfação com a ordem

(pré)estabelecida.

209 A História está ligada primeiro à consciência do presente, segundo Aries. (2013:43) 210 Retorno ao “espírito filisteu” de Benjamin nas Considerações Finais.

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Recentemente, em São Paulo, um grupo de ciclistas lançou a campanha #RECICLOVIA, cujo mote é “Prefeito, autorize o uso das ciclovias pelas carroças!”211

Enquanto certa racionalidade técnica-gerencial se esforça para esvaziar os

“sentimentos” da política – que segundo Ortega (2000) é uma herança de Marx - os

jovens os recolocam no centro do debate ao retomar compromissos éticos como a

solidariedade, o respeito ao outro, a amizade, a colaboração como reposta para não

sucumbir ao “re-sentimento”, “mal-estar característico das democracias liberais

modernas”, fundadas no pressuposto da igualdade, que não se cumpriu (BOBBIO 1986;

KEHL, 2005:5, ORTEGA, 2000). Se a decepção e o ressentimento paralisante são o

avesso da política, sua superação só virá pela “retomada do sentido radical da ação

política, que implica sempre um risco de desestabilizar a ordem” (KEHL, 2005:18). Por

isso, ao contrário da passividade, da revolta submissa gerada pelo “re-sentir”, que por

fim explode, como temos visto em desejos de vingança, uma parte da juventude propõe

nada menos que um novo pacto com o passado e a empatia como superação do

ressentimento.

211 http://paneladepressao.nossascidades.org/campaigns/612

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Considerações Finais

Na série de conferências que deu origem ao livro O Problema da Consciência

Histórica, (2003), Hans George Gadamer explicou que toda prática de interpretação é

um confronto entre o pré-conceito, a tradição do intérprete e o seu texto, as suas fontes.

O problema que a Hermenêutica procura responder é exatamente como ocorre a

interpretação, ou seja, o que significa o “esforço hermenêutico” de todo aquele que se

coloca numa posição de intérprete. Ao refletir sobre a interpretação, a Hermenêutica não

nos oferece um método, nem impõe uma formalidade, mas considera “as condições sob

as quais surge uma compreensão” que antecedem e influenciam os procedimentos

metodológicos (GADAMER, 2003:442)212. Em particular, no caso dessa pesquisa onde

a questão geracional se colocou como problema a distância etária/temporal entre o

pesquisador e seu objeto, são condições que não podem ser ignoradas em relação aos

problemas da interpretação. Há um campo de experiência comum e outro próprio a cada

um que resulta um “estranhamento” e exige o esforço de interpretação, que seria

impossível se as expressões de vida fossem inteiramente estranhas, bem como seria

desnecessária se não houvesse nada estranho nessas expressões de vida (ALBERTI,

1996). Dessa relação tensa entre o intérprete e seu objeto, nascem os imperativos da

interpretação, mas que cobra da parte do intérprete não o “domínio”, mas um

enfraquecimento diante de suas fontes, segundo Gadamer (2003). Para o autor “é

necessário que eu esteja disposto a reconhecer que o outro tem razão e a consentir que

ele prevaleça sobre mim”. O sentido de prevalecer é reconhecer a existência do outro e

aprender a ouvi-lo “suspendendo” os juízos a priori para estar com ele no terreno dele.

“E isso não quer dizer outra coisa, senão que procuramos fazer valer o direito objetivo

do que o outro diz. Quando procuramos entender, fazemos inclusive o possível para

reforçar os seus próprios argumentos” (GADAMER 2003:437). Tal atitude torna-se

obrigatória quando se trata de uma pesquisa sobre juventude, onde pré-conceitos e

estranhamentos se interpõem fortemente entre o pesquisador e seu objeto, e foi com essa

posição hermenêutica que encarei essa pesquisa.

212 Considerando acerca do problema da subjetividade da interpretação, o autor afirma que “a compreensão apropriada de um texto, introduz algo da posição do intérprete no tempo, lugar e visão de mundo”, mas sem que essa interpretação se torne uma criação autônoma, independente do original, ou seja, inteiramente subjetiva. (GADAMER, 2003:11).

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Os estranhamentos que muitas vezes ocorreram no meu convívio com os jovens

foram tomados como indícios relevantes para a reflexão, na linha do que afirma

Philippe Ariés: “Você se depara com algo estranho... Por que essa diferença? O

problema está posto”, diz o autor acerca da melhor atitude do historiador, ou do

antropólogo (2013:308). E se o estranhamento - ao contrário do que é comum entre

historiadores que lidam com o passado - se encontram em seu próprio tempo, e em

relação aos seus contemporâneos, algo como sentir-se “não contemporâneo de sua

própria contemporaneidade” (MANNHEIM, 1982), tanto maior é o espanto e maior

atenção se deve dar a eles: se há um sentimento comum à minha geração, adulta, é o

sentir-se anacrônico, como se o mundo tivesse passado à nossa frente.

Mas, esse anacronismo não é de todo ruim, pelo contrário, segundo Agamben é

o inatual, o que “não coincide perfeitamente com seu tempo, nem está adequado às suas

pretensões”, ou seja, por meio do deslocamento e do anacronismo “é que podemos ser

capazes, mais do que outros, de perceber e apreender o nosso tempo” (2009:59). A

“atualidade” dos jovens, sua maior proximidade, coincidência e tendência à adesão às

mudanças, aos projetos, modas e pretensões de sua época, pode dificultar perceber ver o

“escuro” do tempo em meio ao brilho da modernidade (AGAMBEN, 2009). Para

Agamben o indivíduo, de fato, “contemporâneo” é aquele que vê “a obscuridade porque

não se deixa cegar pelas luzes do século, são os que recebem em pleno rosto o facho das

trevas que provém do seu tempo, e que não cessa de interpelá-lo” (AGAMBEN,

2009:62-63).

Evidentemente, que esse ser “não-contemporâneo de sua contemporaneidade”

em definitivo não é um privilégio dos mais velhos e, ao contrário, para Walter Benjamin

é uma posição que deveria ser ocupada pela juventude, a bem dizer os “solitários”213,

“os que sentem estranhos ao estado de coisa atual” e que resistem aos ventos do

“progresso”, da indústria cultural, da opinião pública, das modas, em uma palavra, da

“sociabilidade massificante” (MURICY, 1999:56, 57). Essa atitude de deslocamento e

de estranhamento, essencial à compreensão dos tempos, não se recorta strictu sensu em

termos de idade, ainda que posicionalmente as gerações mais velhas por viverem o

ocaso de sua época poderiam, potencialmente, compreender melhor a passagem do seu

213 A “solidão” de Benjamin não é um elogio ao individualismo. Muricy afirma que para o autor “só pela adesão a ideia (e não importa qual), e em uma comunidade organizada em torno dessa ideia, poderiam existir os solitários (...)”. (Muricy, 1999:58).

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tempo. E ainda se não negassem sua experiência juvenil como quimérica, ou não a

deslegitimassem como ilusão, como pensava Benjamin, poderiam, resgatando a

memória de sua própria juventude, abrir espaço de diálogo com a geração sucessora.

Mas, teria de ser uma disposição de olhar os jovens “sem juízo” – e não aquele olhar do

adulto filisteu a que se referiu o autor, intimidante, e que nega “o conteúdo singular e

único à experiência juvenil, sua dimensão utópica, messiânica que a caracteriza”.

(MURICY, 1999:45).

O que incomodava o jovem Benjamin era o efeito paralisante da atitude do

“filisteu” – representado nos pais, na geração adulta, na escola, na moral e na cultura

burguesa - que provoca uma “resignação apática”, paralisada pelos erros do passado,

mas que o filisteu teimava em não querer olhar, como quem tem medo “da verdade”

(MURICY, 1999:46, 49). A falsa “experiência” dos adultos, que é sempre igual, e a

repetição do passado não pode acolher o novo, e por isso nega a própria oportunidade da

juventude de fazê-lo. O que está em jogo “é a mesma subestima da juventude e o medo

da novidade do presente e dos questionamentos trazidos pelos “novos” problemas tão

atuais, mas que se repetem com mais, ou menos, intensidade a cada geração (1999:45).

Na compreensão de Arendt, se referindo a atitude dos professores autoritários, e sem

autoridade, que nos EUA dos anos 60 em lugar de se abrir ao diálogo com os mais

jovens “assumindo o esforço de os persuadirem e correndo o risco de falhar, optaram

por uma intervenção ditatorial, baseada na superioridade do adulto, procurando produzir

o novo como um fait accompli, quer dizer, como se o novo já existisse”. (ARENDT,

2005).

Esse olhar filisteu que nega os sonhos dos jovens, ou tenta dominá-los, seja pela

força ou pela educação, (AREDNT, 1997, BENJAMIN, 1914; DI GIORGIO, 2014)

condiciona, não poucas vezes, nossas leituras acadêmicas quando se trata de ações

juvenis na esfera da política, como se viu nas análises sobre as manifestações de Junho e

está presente no cotidiano do jovem que convive com o olhar filisteu que vê com

desprezo, quando não criminaliza seu inconformismo, sua indignação e seu desejo de

mudar o mundo.

A dimensão utópica da juventude foi levada a sério nessa tese porque é parte da

experiência juvenil. Esforcei-me para não vê-las como nem como ilusão, nem como

arroubos próprios à juventude. Procurei deixar de lado minhas certezas, minhas

“experiências” que, para Benjamin é a máscara do adulto-que-tudo-já-viveu. Essa

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“experiência” alegada pelos mais velhos, segundo o autor, é o argumento imobilizante

do passado, o “como nossos pais”, que não pode ou não consegue acolher o novo,

aquilo que interrompe a continuidade estéril, vazia e homogênea do tempo. Concluo

com um trecho do jovem Benjamin, escrito aos 22 anos, em 1914, que surpreende pela

atualidade e mostra que o espírito do filisteu intolerante continua fortemente presente

entre nós, quando não somos nós mesmos a representá-lo.

“A máscara dos adultos chama-se “experiência”. Ela é inexpressível,

impenetrável, sempre a mesma. Esse adulto já vivenciou tudo: juventude, ideais,

esperanças, mulheres. Foi tudo ilusão. – Ficamos, com frequência, intimidados

ou amargurados. Talvez ele tenha razão. O que podemos objetar-lhe? Nós ainda

não experimentamos nada. Mas, vamos levantar agora essa máscara. O que esse

adulto experimentou? O que ele quer nos provar? Antes de tudo, um fato:

também ele foi jovem um dia, também ele quis outrora o que agora queremos,

também ele não acreditou em seus pais; mas a vida também lhe ensinou que eles

tinham razão. E então ele sorri com ares de superioridade, pois o mesmo

acontecerá conosco – de antemão ele desvaloriza os anos que estamos vivendo,

convertendo-os na época das doces asneiras que se cometem na juventude (...).

Sim, isso experimentam eles, a falta de sentido da vida, sempre isso, jamais

experimentam outra coisa. A brutalidade. Por acaso eles nos encorajam alguma

vez a realizar algo grandioso, algo novo e futuro? (...) Oh não, pois isso não se

pode experimentar. (...) ele só é capaz de manter relação íntima com o vulgar,

com aquilo que é o “eternamente ontem”. (...) O filisteu é intolerante”. (1914;

DI GIORGIO, 2009).

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