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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
Vanessa Rahal Canado
Legalidade tributária e decisão judicial:
desmistificando o modelo civil law e recolocando o papel da jurisprudência
para regulação de condutas no direito tributário brasileiro
DOUTORADO EM DIREITO
SÃO PAULO
2013
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
Vanessa Rahal Canado
Legalidade tributária e decisão judicial:
desmistificando o modelo civil law e recolocando o papel da
jurisprudência para regulação de condutas no direito tributário
brasileiro
DOUTORADO EM DIREITO
Tese apresentada à banca examinadora da
Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo, como exigência parcial para
obtenção do título de Doutor em Direito,
sob orientação do Professor Doutor Estevão
Horvath.
SÃO PAULO
2013
BANCA EXAMINADORA
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Sempre e para sempre, à minha atenciosa, linda e dedicada
mãe, e ao meu generoso, divertido e vencedor irmão
Ao professor Eurico de Santi, que faz com o
direito tributário aquilo que ninguém faz
Ao meu marido, Flavio, por me tornar uma pessoa melhor a cada dia.
AGRADECIMENTOS
Diz-se que fazer uma dissertação de mestrado ou uma tese de doutorado
é uma tarefa extremamente solitária. É exatamente por isso que ela só é
possível em razão daqueles que compreendem as suas constantes ausências.
Assim, preciso agradecer em primeiro lugar à minha família, ao meu
marido e aos meus amigos, que em nenhum momento relutaram em
compreender a minha necessária solidão.
À minha mãe, Soraya Rahal, sempre dando força, especialmente e sem
saber, sendo um exemplo de vida. Ao meu irmão, Rodrigo Rahal Canado, que
superou tantos obstáculos, venceu, e hoje é digno de tanta admiração: Rô, por
você, e só por você, eu seria capaz de qualquer coisa nessa vida!
Ao meu marido, Flavio Henrique Castro, pelo amor de todos os dias,
pelos olhares companheiros, pela serenidade nos momentos mais intensos de
crise com tanta coisa que eu resolvi fazer além desta tese.
Aos meus amados tios, tias, primos e priminhos: é muito bom fazer
parte dessa família linda (de novo).
Àqueles por onde tudo começou, Christine Mendonça e Eurico de
Santi: eu não consigo imaginar o que teria sido da minha vida sem vocês...
Com certeza eu não integraria o time de um só, formado pelo(s) advogado(s)
feliz(es), que meu ex-terapeuta dizia conhecer.
Ao professor Celso Campilongo, que com seu admirável espírito
acadêmico colaborou pacientemente com o esforço de delimitação do objeto e
com a pesquisa bibliográfica empreendida para a construção desta tese.
6
À Letícia Avelar (Lelê) e à Thais Fortes (Thatá), amigas de coração,
irmãs de jornada, que sempre estiveram dispostas a me ouvir para o que quer
que fosse.
Às minhas amigas (para sempre): Carolina Massad (Carol), Nicole
Najjar (Nick), Amanda Romão (Aman, nossa advogada predileta), Raquel
Camargo (Raq), Daniela Dornel (Dani) e Raphaela Vasconcellos (Rapha), que
aceitaram marcar tantos encontros no La Tartine porque era perto da minha
casa.
Aos meus quatro sócios, Luís Fernando Carvalho, André Sica, André
Muszkat e Octavio Vidigal, pela amizade incondicional desde o início, pela
generosidade demonstrada em pequenos gestos e pelas risadas que tornam o
dia-a-dia tão mais leve.
Às companheiras do desespero da tese, Tatiana Aguiar e Simone Costa:
um brinde à nossa nova conquista (e agora chega, né?).
Aos destacados professores de direito tributário da PUC/SP, na pessoa
de meu gentil orientador, Professor Estevão Horvath, que sempre me atendeu
com prontidão e me propiciou um pensar livre e desimpedido para a
construção desta tese, incentivando um novo olhar para o direito tributário.
Obrigada, obrigada e obrigada.
Eu prefiro ser essa metamorfose ambulante
Do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo
Raul Seixas
A Constituição diz que quem diz o que ela diz sou eu
Ministro Gilmar Mendes, referindo-se ao julgamento da Contribuição dos Inativos
[...] a Constituição diz o que nós, juízes desta Corte, dizemos que ela diz.
Nós transformamos em normas o texto escrito da Constituição [...].
Nós, aqui neste Tribunal, nós produzimos as normas que compõem a Constituição do
Brasil hoje, agora.
Nós é que, em derradeira instância, damos vida à Constituição [...]
Ex-Ministro Eros Grau, no voto proferido na Reclamação n. 4.219
RESUMO
O objetivo desta tese é demonstrar o papel da jurisprudência para
regulação de condutas no direito tributário, a partir do diagnóstico de
falibilidade do direito positivo. A impossibilidade de as normas gerais e
abstratas, características do civil law, informarem de forma suficiente a
conduta a ser seguida, desloca para as decisões judiciais (como tipicamente
ocorre no sistema common law) o papel de delimitar a existência das
obrigações tributárias. A análise crítica das principais características do civil
law permite desmistificar algumas percepções que impedem essa valorização
da decisão judicial, especialmente a de que a lei seria fonte primária, tendo a
jurisprudência um papel secundário. A partir da constatação do papel
fundamental das decisões judiciais para garantia da legalidade tributária,
mesmo nos países de civil law, propomos uma nova concepção de Regra-
Matriz de Incidência Tributária, que leva em consideração não só os
enunciados prescritivos das normas gerais e abstratas, mas também aqueles
presentes na jurisprudência. Essa perspectiva tem o objetivo de propor uma
norma de conduta mais precisa e, com isso, uma ideia de legalidade tributária
mais efetiva. É necessário alertar que não é qualquer decisão judicial que está
apta a integrar-se aos enunciados de normas gerais e abstratas. Para que a
jurisprudência seja capaz de colaborar na delimitação de normas gerais de
conduta tem de ser ela colhida de tribunais superiores e deve haver
comprometimento de vinculação de entendimentos anteriores ao julgamento
de casos posteriores, assim como ocorre nos países de common law.
Palavras-Chave: jurisprudência – lei – legalidade – direito tributário – civil
law
ABSTRACT
The objective of this thesis is to demonstrate the role of the judicial
decisions for regulating paying taxes’ behavior, from the diagnosis of the
fallibility of the positive law (statutes). The impossibility of the general and
abstract rules, the distinctive characteristic of civil law, to instruct adequately
the paying taxes’ behavior, conduct to judicial decisions the role of defining
the existence of tax obligations (as typically occurs in common law systems).
A critical analysis of the main characteristics of civil law allows demystify
some perceptions that prevent this appreciation of the judicial decisions,
especially that the statutes would be the primary source and the judicial
decision has a secondary role. From the observation of the role of judicial
decisions to ensure the Rule of Law for tax purposes, even in civil law
countries, we propose a new concept of “Regra-Matriz de Incidência
Tributária” – the essential rule designed for paying taxes – which takes into
account not only the general and abstract rules from statutes but also those
statements from judicial decisions. This perspective aims to propose a more
precise standard for paying taxes’ behavior and, therefore, a more effective
idea of Rule of Law for tax purposes. It is necessary to warn that it is not any
judicial decision that is able to integrate the set of statements of the tax
incidence rule (Regra-Matriz de Incidência Tributária). For the judicial
decision to be able to collaborate to establish general standards of paying
taxes’ behavior they must be final and the Courts must be committed to
binding prior understandings, as it occurs in common law countries .
Keywords: court decisions – statutes – Rule of Law – tax law – civil law
ABREVIATURAS
Art.: Artigo
CPC: Código de Processo Civil, aprovado pela Lei nº 5.689, de 1973.
CF/88: Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada em
outubro de 1988
CSLL: Contribuição Social sobre o Lucro Líquido
CTN: Lei nº 5.172, de 25 de outubro de 1966, denominada de Código
Tributário Nacional pelo art. 7º do Ato Complementar nº 36, de 1967
EC: Emenda Constitucional
IRPJ: Imposto sobre a Renda das Pessoas Jurídicas
MP: Medida Provisória
RE: Recurso Extraordinário
STF: Supremo Tribunal Federal
STJ: Superior Tribunal de Justiça
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ................................................................................................................. 14
1 PREMISSAS METODOLÓGICAS .............................................................................. 18
1.1 Delimitação do Objeto ............................................................................................... 20
1.2 Metodologia de Análise ............................................................................................. 22
1.2.1 Método como “Caminho”: evolução histórica do modelo civil law, traço
distintivo em relação ao modelo common law e a utilidade do direito comparado .... 25
1.2.2 Método como Forma de Análise: filosofia da linguagem, semiótica e análise
crítica do modelo civil law .......................................................................................... 31
2 O MODELO CIVIL LAW (DIREITO ROMANO-GERMÂNICO) E A
VALORIZAÇÃO DA NORMA GERAL E ABSTRATA .............................................. 37
2.1 Breve Histórico das Origens do Modelo Civil Law ................................................... 40
2.1.1 Período da República em Roma e a Lei das XII Tábuas .................................... 42
2.1.2 Período do Império Romano e as Compilações de Justiniano (Corpus Iuris
Civilis) ......................................................................................................................... 45
2.1.3 Declínio do Direito Romano na Alta Idade Média ............................................. 49
2.1.4 Renascimento do Direito Romano na Baixa Idade Média e Expansão pela
Europa Continental ...................................................................................................... 50
2.1.5 Nacionalização e Codificação do Direito nos Países da Europa e sua Expansão
às Colônias ................................................................................................................... 56
2.2 Análise do Modelo Civil Law como Direito Posto (Positivo): evolução do Direito
Romano, formação das normas gerais e abstratas, codificação e relação entre regra e ato
de aplicação ..................................................................................................................... 63
2.3 Análise do Modelo Civil Law como Ciência do Direito: a ideia da lei como fonte
primária e da jurisprudência como fonte secundária do direito ....................................... 66
3 NORMAS GERAIS E ABSTRATAS E FALIBILIDADE INERENTE AO
DIREITO POSITIVO: CONTEXTUALIZANDO A AFIRMAÇÃO DA CIÊNCIA
DO DIREITO NO SENTIDO DE QUE A LEI É FONTE PRIMÁRIA PARA
REGULAÇÃO DE CONDUTAS NOS PAÍSES DE CIVIL LAW ................................. 75
3.1 Enunciado Prescritivo, Norma Jurídica, Norma Geral e Abstrata, Regra Jurídica,
Regra de Direito, Lei, Direito Positivo, Sistema Jurídico, Ordenamento Jurídico e
Ciência do Direito ............................................................................................................ 78
3.2 Direito Positivo, Regulação de Condutas e Autonomia da Linguagem .................... 85
3.3 Limitações à Atividade Legislativa na Regulação de Condutas Futuras................... 89
3.4 Problemas do Direito Positivo Identificados a Partir de sua Aplicação: lacunas de
reconhecimento, lacunas normativas e lacunas axiológicas ............................................ 94
12
3.4.1 Lacunas de Reconhecimento e o Retorno dos Problemas da Linguagem no Ato
de Aplicação do Direito Positivo ................................................................................. 95
3.4.2 Dificuldades da Atividade Legislativa, uma Nova Concepção de Sistema
Jurídico e a Identificação de Lacunas Normativas ...................................................... 98
3.4.2 Imprevisibilidade na Atividade Legislativa e Lacunas Axiológicas ................ 101
3.5 Falibilidade do Direito Positivo e a Problemática Hierarquização proposta pela
Ciência do Direito .......................................................................................................... 106
3.5.1 Teoria Tradicional das Fontes do Direito e Elucidação do Termo para Efeitos de
Análise Crítica da Posição Hierárquica da Lei .......................................................... 107
3.5.2 Razões e Perigos da Tradicional Concepção de Lei como Fonte Primária ...... 110
3.6 Primariedade da Lei como Fonte de Direito, Utilidade da Norma Geral e Abstrata e
Manutenção do Traço Distintivo dos Países de Civil law ............................................. 116
4 NECESSÁRIA VALORIZAÇÃO DA JURISPRUDÊNCIA NO MODELO CIVIL
LAW, PAPEL CENTRAL DAS DECISÕES JUDICIAIS PARA A REGULAÇÃO DE
CONDUTAS NO DIREITO TRIBUTÁRIO E A IDEIA DE UMA REGRA-MATRIZ
DE INCIDÊNCIA TRIBUTÁRIA DINÂMICA ........................................................... 121
4.1 Jurisprudência, Diferença Específica entre Lei (Normas Gerais e Abstratas) e
Decisão Judicial (Normas Individuais Concretas) e Mecanismos de Correção da
Falibilidade do Direito Positivo ..................................................................................... 124
4.2 Valorização da Decisão Judicial e Desmistificação da Diferença Específica entre os
Modernos Sistemas de Civil law e Common law .......................................................... 128
4.2.1 Origens e Características da Common Law, o Papel da Lei e a Valorização da
Decisão Judicial ......................................................................................................... 130
4.2.2. Teoria das Fontes do Direito e Diferença Específica da Valorização da Decisão
Judicial nos Modelos de Civil Law e Common Law................................................. 135
4.2.3 Revisão da Teoria das Fontes do Direito no Civil Law diante da Necessária
Valorização da Decisão Judicial ................................................................................ 137
4.3 Falibilidade do Direito Positivo, Discricionariedade Delegada e Função do Poder
Judiciário ....................................................................................................................... 145
4.4 Primariedade da Lei, Função dos Juízes do Modelo Civil law e Inocuidade do Velho
Debate entre Positivistas e Não-Positivistas .................................................................. 149
4.5 Norma Geral e Abstrata, Decisão Judicial e uma Nova Concepção de Regra-Matriz
de Incidência Tributária ................................................................................................. 153
5 REGRA-MATRIZ DE INCIDÊNCIA TRIBUTÁRIA DINÂMICA E UMA NOVA
LEGALIDADE TRIBUTÁRIA: INTEGRAÇÃO DO DIREITO POSITIVO ÀS
DECISÕES JUDICIAIS, A NOÇÃO DE PRECEDENTE E OS MECANISMOS DE
REPERCUSSÃO GERAL E RECURSO REPETITIVO ............................................ 162
5.1 Modelo Civil Law e Equivocada Outorga de Desvinculação das Decisões Judiciais
Posteriores ..................................................................................................................... 164
13
5.2 Uma Noção Específica e Conclusiva de Precedente ............................................... 169
5.3 Mecanismos de Repercussão Geral e Recurso Repetitivo, Norma Geral e Concreta e
Regra-Matriz de Incidência Tributária Dinâmica .......................................................... 172
5.4 Breve Análise das Críticas à Aplicação de Precedentes no Brasil .......................... 178
5.5 Estabilização da Jurisprudência por meio de Súmulas ............................................ 181
5.6 Mudança do Precedente e Efeitos Jurídicos Prospectivos ....................................... 182
CONCLUSÃO .................................................................................................................. 186
BIBLIOGRAFIA ............................................................................................................. 192
INTRODUÇÃO
A relevância da jurisprudência no direito tributário não é fenômeno
recente. As decisões judiciais sempre estiveram presentes como parâmetro
para investigações científicas e para a prática dos juristas (advogados,
procuradores etc.). É natural, quase que automática, a pesquisa de decisões
judiciais quando surgem dúvidas sobre a aplicação das regras tributárias1.
Embora recorrentemente utilizadas, foi só mais atualmente que se
passou a perceber o papel central que as decisões judiciais têm exercido na
formação da legalidade tributária2. Não obstante a jurisprudência sempre
estivesse presente no dia-a-dia daqueles que lidam com o direito tributário, é
mais atual a preocupação acerca da grande influência dessas normas
individuais e concretas na delimitação da obrigação de pagar ou não tributos,
e esse é um dos principais objetivos deste trabalho3: demonstrar como e
porque a jurisprudência exerce um papel tão fundamental para a regulação de
condutas no direito tributário.
A colocação das decisões judiciais no núcleo da legalidade tributária
remonta ao funcionamento dos sistemas jurídicos chamados de “common
law”. É comum a noção de que, nos países de common law, a jurisprudência
ocupa o centro da legalidade, diferentemente dos países em que se opera com
o chamado modelo civil law.
1 Utilizarei neste trabalho o termo “regras tributárias” como as normas jurídicas construídas a partir de
enunciados prescritivos gerais e abstratos, relacionados à instituição e cobrança de tributos. 2 A expressão “legalidade tributária” denota, para os fins deste trabalho, o conjunto de enunciados
prescritivos (sejam eles oriundos de regras gerais e abstratas ou de regras individuais e concretas) apto a
determinar a obrigação de pagar ou não determinado tributo. 3 É muito explicativa a forma com que Robson Maia Lins descreve esse impulso inicial de investigação
científica sobre determinado fenômeno: “Já no processo de busca do conhecimento há um quantum de
conhecimento. Ainda que em nível de intuição, o sujeito que se predispõe ao exame de determinado objeto
carrega, de modo precário, certo nível de questionamento, ainda não sistematizado, ou mesmo sequer postos
em termos intersubjetivos”. A mora no direito tributário. Tese de Dourado. PUC/SP, 2008. p. 21.
15
Conquanto se afirme que a existência de leis é garantia do Estado de
Direito nesse modelo civil law, o que obviamente inclui a instituição e
cobrança de tributos, por detrás desse raciocínio está subentendida uma
clareza e precisão não necessariamente alcançadas pelas normas gerais e
abstratas. Por ser a linguagem inerente ao direito positivo4, cria-se
naturalmente um espaço de vagueza e ambiguidade na regulação de condutas,
incluindo a de pagar tributos. Além disso, por ostentarem o caráter de
“abstração”, as regras tributárias pretendem regular situações futuras, ou seja,
a sua produção decorre de um exercício de “futurologia” naturalmente falível.
É esse “espaço” deixado inevitavelmente pelas regras tributárias que a
jurisprudência ocupa. Ficam as decisões judiciais, neste sentido, praticamente
ao lado das normas gerais e abstratas, colocando em xeque o raciocínio de
pensar a lei como fonte primária e primordial do sistema jurídico dos países
de civil law5. A partir do diagnóstico de insuficiência das normas gerais e
abstratas para regular a conduta de pagar tributos (dentre outras), as decisões
judiciais assumem papel fundamental, subvertendo, assim, a premissa que
deveria pertencer ao modelo common law.
4 A expressão “direito positivo” está sendo utilizada, neste trecho, como o conjunto de enunciados
prescritivos de caráter geral e abstrato, como tipicamente se denomina segundo as origens do sistema
romano-germânico. Somente por essa razão convencional é que estamos excluindo, neste momento, as
normas individuais e concretas desse conjunto. 5 John Henry Merryman e Rogelio Pérez-Perdomo afirmam que a colocação da lei como fonte primária do
direito, deixando, consequentemente, a jurisprudência num segundo plano, é uma tradição arraigada ao
modelo civil law e que, embora percebida por muitos estudantes, ainda não foi seriamente enfrentada por
eles, dada a amplitude dogmática dessa concepção: “[...] since the function of judges within that tradition is
to interpret and to apply “the law” as it is technically defined in their jurisdictions. Both state positivism and
the dogma of separation of powers require that judges resort only to “the law” in deciding cases. It is
assumed that whatever the problem that may come before them, they will be able to find some form of law to
apply [...]. They cannot turn to books and articles by legal scholars or to prior judicial decisions for the law.
This dogmatic conception of what law is, like many other implications of the dogmas of revolutionary period,
has been eroded by time and events. [...] In Chapter VI, on judges, we will describe the various ways in
which this theory of sources of law has been subverted by the conduct of civil law judges. These and other
modern tendencies have been noted by scholars, who often recognize their implications for the orthodox
theory of sources of law, but they do not seriously impair the more generally prevailing view of what law is.
To the average judge, lawyer, or law student in France or Argentina, the traditional theory of sources of law
represents the basic truth”. The Civil Law Tradition: an introduction to the legal systems of Europe and Latin
America. 3ª ed. California: Stanford University Press, 2006. p. 24-25.
16
De qualquer forma, o ato de pensar as decisões judiciais como
integrativas às como normas gerais e abstratas, trazendo mais proximamente a
ideia de legalidade para o direito tributário, implica delimitar que tipo de
decisão judicial ostentaria esse caráter. Em outros termos, que tipo de
características deveriam ter aquelas normas individuais e concretas para
servirem de parâmetro tanto quanto as regras tributárias? É neste contexto de
complementaridade às normas gerais e abstratas que será tratado o tema dos
precedentes.
A noção de precedente como elemento que integra a legalidade
tributária está ligada, segundo as premissas firmadas neste trabalho, à ideia de
(i) definitividade e (ii) vinculação das decisões judiciais. Em outros termos, as
normas individuais e concretas produzidas pelo Poder Judiciário só podem ser
levadas em consideração, para os fins defendidos neste trabalho, se forem
tomadas por órgãos que decidem em último grau e cujos entendimentos sejam
mantidos para casos julgados posteriormente.
A precariedade característica às decisões de primeiro e segundo graus
de jurisdição6 impede a estabilização de sentido do enunciado produzido.
Considerando que no sistema jurídico brasileiro cabe ao Superior Tribunal de
Justiça e / ou ao Supremo Tribunal Federal (conforme delimitação de suas
competências) determinar a legalidade aplicável ao caso concreto em última
instância, esse parece ser um primeiro critério relevante para delimitação do
termo “precedente” no contexto aqui trabalhado.
Por fim, de nada adianta que as decisões dos tribunais superiores sejam
definitivas, se não houver comprometimento de aplicação de decisão anterior
a casos posteriores. Nos termos defendidos neste trabalho, a jurisprudência só
6 Considerando que a delimitação da obrigação tributária sempre se relaciona com a legalidade e / ou
inconstitucionalidade de determinada regra (excluídas, obviamente, questões meramente probatórias), serão
definitivamente respondidas pelo STJ e / ou o STF.
17
pode ser considerada no conjunto de enunciados prescritivos aptos a garantir a
legalidade tributária, ou seja, só contribui efetivamente para delimitar a
conduta de pagar ou não tributos em nível de norma geral, se for garantida
minimamente a sua estabilidade. Se as situações concretas decorrentes da
aplicação de entendimentos jurisprudenciais puderem ser levadas ao Poder
Judiciário ou, ainda, se levadas ao STF e ao STJ puderem ter soluções
diferentes daquelas que orientaram a conduta do contribuinte, perde sentido a
função dessas normas para garantia da legalidade.
Embora diversos objetivos possam ser atribuídos aos recentes
instrumentos processuais criados pelas Leis nº 11.418, de 2006, e nº 11.672,
de 2008, um deles é, sem dúvida, a estabilização de sentido dado às normas
gerais e abstratas por meio dos julgamentos submetidos aos ritos de
repercussão geral e recurso repetitivo. Através dos procedimentos inseridos
pelos artigos 543-B e 543-C ao Código de Processo Civil brasileiro, procura-
se garantir que decisões judiciais tomadas em casos concretos posteriores
acompanhem entendimentos anteriores firmados em julgamentos realizados
sob aqueles ritos. Isso faz com que esse tipo de decisão judicial possa ser mais
fortemente qualificado como precedente e, assim, utilizada como parâmetro
para delimitação da legalidade a ser seguida em matéria tributária.
1 PREMISSAS METODOLÓGICAS
Certa vez li a seguinte afirmação num famoso período, a qual resume a
contribuição de Galileu Galilei para a ciência: um experimento é considerado
científico quando puder ser repetido por outras pessoas, em outros lugares e,
dadas as mesmas condições, produzir os mesmos resultados7. A ideia de
cientificidade de um trabalho estaria, portanto, relacionada à sua forma de
produção e, por outro lado, à ausência de influência da variável “sujeito”
nesse processo8. Se as condições forem as mesmas e for seguido o mesmo
método, independentemente de quem realiza o trabalho, o resultado deve ser
mesmo9.
7 “O que Galileu fez para atrair a fúria da Inquisição católica e por que Kepler e outras grandes cabeças
escaparam ilesos? Galileu investiu diretamente contra as Escrituras e, ao contrário de Kepler, não esperava
que suas descobertas fossem apenas confirmações, com ligeiras e aceitáveis variações, da verdade revelada
dos livros sagrados e das bulas papais. Não. Galileu pôs de pé um conjunto de premissas que, de tão
revolucionárias, são as mesmas a presidir todas as experiências científicas até hoje – o Método Científico.
Para que um experimento fosse científico, ensinou Galileu, entre outras coisas, ele deveria poder ser repetido
por outras pessoas, em outros lugares e, dadas as mesmas condições, produzir os mesmos resultados.
Simples? Sem dúvida, simples. Mas revolucionário. Um alquimista jamais se colocaria esses entraves – os
ingredientes, os processos e os saberes da alquimia eram segredos pessoais e intransferíveis como os de um
mágico”. Cf. http://veja.abril.com.br/110209/p_088.shtml. Acesso em: 27 jul. 2013. 8 No mesmo sentido é a afirmação de Karl Popper, quanto às ciências que ele chama de “empíricas”: “Um
cientista, seja teórico ou experimental, formula enunciados ou sistemas de enunciados e verifica-o um a um.
No campo das ciências empíricas, para particularizar, ele formula hipóteses ou sistemas de teorias, e
submete-os a teste, confrontando-os com a experiência, através de recursos de observação e experimentação.
A tarefa da lógica da pesquisa científica, ou da lógica do conhecimento, é, segundo penso, proporcionar uma
análise lógica desse procedimento, ou seja, analisar o método das ciências empíricas”. A Lógica da Pesquisa
Científica. Trad. Leonidas Hegenberg e Octanny Silveira da Mota. São Paulo: Cultrix, 2007. p. 27. 9 Afirma-se que a principal contribuição de Galileu foi para o método científico, pois a ciência, antes disso,
assentava numa metodologia aristotélica, ou seja, não-indutiva. Cf.
http://pt.wikipedia.org/wiki/Galileu_Galilei. Acesso em: 20 fev. 2013.
“Paralelamente ao desenvolvimento do conhecimento, esta sistematização das atividades, entendida como
método, também passou a evoluir e se transformar. Galileu (1564-1642) foi um precursor teórico do
método experimental, quando contradizendo os ensinamentos de Aristóteles, preconizou que o
conhecimento íntimo das coisas deveria ser substituído pelo conhecimento de leis gerais que
condicionam as ocorrências. O método proposto por Galileu Galilei pode ser rotulado de indução
experimental pois é a partir da observação de casos particulares que se propõe a chegar a uma lei
geral. As etapas propostas foram: observar os fenômenos, analisar seus elementos constitutivos
visando estabelecer relações quantitativas entre os mesmos, induzir hipóteses com base na análise
preliminar, verificar as hipóteses utilizando um procedimento experimental, generalizar o resultado
alcançado para situações similares, confirmar estas generalizações para se chegar a uma lei geral”. Cf.
http://www.unisc.br/portal/upload/com_arquivo/o_metodo_cientifico_04.pdf. Acesso em: 27 jul. 2013.
Destaques não são do original.
19
Afirmações desse tipo nos deixam em dúvida quanto à sua
aplicabilidade aos trabalhos científicos na área do direito. Grande parte dos
escritos relacionados à metodologia do trabalho científico parecem “cair
como uma luva” para as ciências exatas e biológicas e sempre deixam a
impressão de terem sido adaptados quando pretendem falar do tema
relacionado às ciências humanas / sociais10
.
A ideia de objetividade se aproxima muito do adjetivo “científico” nos
termos atribuídos por Galileu Galilei: se as condições de produção forem as
mesmas, o mesmo resultado tem de ser alcançado ou, caso contrário, há
subjetividade na construção teórica e, aí, sua cientificidade cairia por terra.
Para as ciências sociais, como o direito, é difícil imaginar como
construir uma tese, uma teoria científica a tal ponto, ou seja, de modo que
outra pessoa, seguindo os mesmos passos já perseguidos, chegue ao mesmo
resultado. Por outro lado, não se pode admitir como científico um trabalho
cuja conclusão varie de acordo com o autor11
. Parece ser esse o desafio que
10
Há diversas perspectivas para a classificação das ciências em sociais, humanas, sociais aplicadas, empíricas
etc. O Grupo de História, Teoria e Ensino da USP (http://www.ghtc.usp.br/) propõe a classificação do direito
como “ciência social aplicada”, já que seu objetivo seria intervir no comportamento humano: “A primeira
classificação sistemática das ciências de que temos notícia foi a de Aristóteles [...]. Com pequenas variações,
essa classificação foi mantida até o século XVII quando, então, os conhecimentos se separaram em
filosóficos, científicos e técnicos. A partir dessa época, a Filosofia tende a desaparecer nas classificações
científicas (é um saber diferente do científico), assim como delas desaparecem as técnicas. Das inúmeras
classificações propostas, as mais conhecidas e utilizadas foram feitas por filósofos franceses e alemães do
século XIX, baseando-se em três critérios: tipo de objeto estudado, tipo de método empregado, tipo de
resultado obtido. Desses critérios e da simplificação feita sobre as várias classificações anteriores, resultou
aquela que se costuma usar até hoje: (i) ciências matemáticas ou lógico-matemáticas (aritmética, geometria,
álgebra, trigonometria, lógica, física pura, astronomia pura, etc.); (ii) ciências naturais (física, química,
biologia, geologia, astronomia, geografia física, paleontologia, etc.); (iii) ciências humanas ou sociais
(psicologia, sociologia, antropologia, geografia humana, economia, lingüística, psicanálise, arqueologia,
história, etc.); (iv) ciências aplicadas (todas as ciências que conduzem à invenção de tecnologias para intervir
na Natureza, na vida humana e nas sociedades, como por exemplo, direito, engenharia, medicina, arquitetura,
informática, etc.)”. Cf. http://www.ghtc.usp.br/server/Sites-HF/Egont-Schenkel/11_imp.htm. Acesso em: 5
nov. 2013. 11
É neste sentido a colocação de Rafael Mafei e Thiago Acca, quando assumem que “um trabalho científico
pode muito bem se ocupar de dar uma resposta bem fundamentada” a um “problema jurídico difícil”. “Do
ponto de vista da metodologia, o problema central está em como fazer isso cientificamente, ou seja, de forma
regrada, transparente e (na medida do possível) impessoal, evitando assim que o trabalho se torne um libelo
apaixonado ou uma petição de princípios que defenda, a todo custo, uma ou outra posição”. QUEIROZ,
Rafael Mafei Rabelo; ACCA, Thiago dos Santos. Como Respondo Cientificamente a uma Questão Juridica
20
enfrentam os cientistas do direito nos famosos capítulos introdutórios das
monografias jurídicas: situar-se entre a objetividade das ciências exatas e
biológicas e a subjetividade de trabalhos não-científicos, como a presente
tentativa, mediante a delimitação do objeto de análise e os métodos utilizados
para tanto.
1.1 Delimitação do Objeto
A delimitação do objeto é um ato necessário ao trabalho científico e se
volta a restringir o campo de análise do sujeito cognoscente diante de seu
objetivo12
.
O objetivo deste trabalho é demonstrar a imprescindível13
função da
jurisprudência14
para regulação de condutas no direito tributário brasileiro, a
Controversa. In: QUEIROZ, Rafael Mafei Rabelo; FEFERBAUM, Marina. Metodologia Jurídica: um roteiro
prático para trabalhos de conclusão de curso. 1ª ed., 2ª tiragem. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 85. 12
É provocativa a teoria proposta por Max Weber para explicar a delimitação do objeto, no livro A
“objetividade” do Conhecimento nas Ciências Sociais. Trad. Gabriel Cohn. São Paulo: Ática, 2006. Nas
didáticas palavras do tradutor da obra, Gabriel Cohn: “O conhecimento científico sempre incide sobre
aspectos limitados da realidade, até porque o número de ocorrências é infinito, no espaço e no tempo e jamais
pode ser captado no todo. Isso, para Weber, é básico – não como algo a ser anotado e deixado de lado, mas
como fundamento do modo que com a questão será tratada. Ele tira todas as consequências da questão que se
pode formular de imediato nesse contexto – por que a atenção do cientista se volta para isto e não para
aquilo? – para chegar a outra formulação, adequada às ciências e da cultura. Agora a questão passa a ser: por
que determinados traços da realidade, de preferência a inúmeros outros, têm significação para o cientista
[...]? Observe-se que há uma inflexão fundamental entre a resposta de Weber e a possível resposta que se
limitasse a afirmar que, não podendo conhecer tudo, o cientista concentra a atenção sobre o que lhe foi
solicitado ou é mais viável. Para este, o que importa, no sentido mais forte do termo, é aquilo que o
conhecimento procurado representa para quem o busca, aquilo que lhe confere significação no mundo
cultural de que participa. [...] Nesse percurso, Weber recorre a uma ideia decisiva. É que, para ele, o mundo
da cultura não é aquela dimensão da realidade social que confere sentido ao que os homens fazem, mas, ao
contrário, é aquela arena significativa em que os próprios homens atribuem valor ao que fazem. [...] O
conhecimento científico é objetivo nos resultados (que valem igualmente para todos os que o procuram), mas
não na gênese, pois a força motriz da pesquisa é dada por valores (que valem somente para os que aderem a
eles). Isso equivale a dizer que sem referências a valores não se pratica ciência (pois então ela carece de
interesse) [...]. Não há, pois, ciência social para Weber sem referência a valores que conduzam o interesse do
cientista àquilo que se revelará importante para ele [...]”. Apresentação – o sentido da ciência. In: WEBER,
Max, op. cit., p. 9-12. 13
O termo “imprescindível” não está sendo utilizado de forma retórica, mas de forma literal, ou seja, “sem o
qual não há”. 14
Em princípio, estamos utilizando o termo “jurisprudência” no sentido de decisão judicial (não
necessariamente um conjunto de decisões judiciais ou um corpo de decisões judiciais no mesmo sentido). No
último Capítulo precisaremos o sentido da expressão “decisão judicial” para efeitos de integração às normas
gerais e abstratas, com capacidade para regulação de condutas futuras.
21
partir da constatação da inerente falibilidade das normas gerais e abstratas.
Para alcançar esse objetivo algumas premissas construídas envolvem a análise
dos chamados modelos de “civil law” e “common law” e, também, a função
das decisões judiciais. Diante disso, dois esclarecimentos se mostram
necessários à delimitação do objeto de análise: (i) a investigação dos
chamamos modelos de civil law e common law serve para precisar o sentido
dessas expressões – afinal, o que significa ser um país integrante da família de
civil law ou common law?; e (ii) a decisão judicial é considerada válida
quando atender aos requisitos postos pelo próprio sistema jurídico, que dizem
respeito à forma de produção e autoridade competente, ainda que seu
conteúdo possa ser criticado.
Quanto ao primeiro ponto, é interessante anotar que, embora possamos
utilizar elementos característicos de outros sistemas jurídicos (como o norte-
americano e o inglês) e proposições descritivas que se voltam, genericamente,
a diversos sistemas jurídicos integrantes de uma mesma família de direito
(países de civil law), tudo isso tem o objetivo de analisar criticamente o
sistema jurídico brasileiro e a Ciência que fala sobre ele. Isto quer dizer que
não é objetivo deste trabalho analisar criticar outros sistemas jurídicos que
não o brasileiro, ainda que, por vezes, algumas de suas conclusões possam ser
a eles aplicáveis. Também é importante ressaltar que a análise dos modelos de
civil law e common law não se encerra em si mesma, ou seja, não é o objetivo
deste trabalho investigar profundamente todas as diferenças entre eles. O
estudo desses modelos jurídicos serve de base teórica para analisar a relação
entre normas gerais e abstratas (leis) e decisão judicial (jurisprudência).
Quanto ao segundo ponto, o que queremos deixar claro é que o objetivo
deste trabalho é analisar a jurisprudência sob uma perspectiva relacional e
funcional, ou seja, que papel ela exerce em relação às leis e, diante disso, que
22
função ela assume para garantia da legalidade no direito tributário. Isto quer
dizer que não será objeto de investigação científica o seu conteúdo, como
pretendem as infinitas e interessantíssimas discussões sobre a racionalidade
das decisões judiciais: assumimos a premissa da decisão judicial
presumidamente válida, sem entrar no mérito sobre a qualidade de sua
motivação.
1.2 Metodologia de Análise
Falar sobre metodologia de análise requer, em primeiro lugar,
esclarecer uma ambuiguidade que o termo “método” denota. Pelo sentido
literal e mais largamente utilizado, a metodologia se aproxima à ideia de
“caminho”. Por outro lado, também pode ser entendida como “forma de
investigação”, ou seja, em que contexto teórico a análise se apoia15
.
A palavra “método” advém do grego “methodos”, que significa,
literalmente, “caminho para chegar a um fim”16
. A propósito dessa didática
comparação entre método e caminho é a célebre conversa entre os
personagens “Alice” e o “Gato” na fábula “Alice no País das Maravilhas”17-18
:
15
Tácio Lacerda Gama, citando Karl Larenz, coloca de forma muito interessante o trato da metodologia num
trabalho científico: “empreender uma investigação é como trilhar um caminho, no qual os problemas são o
ponto de partida, as respostas o ponto de chegada e o percurso é determinado pelo método de investigação”.
Em outra passagem: “a escolha de um método fixa uma orientação para o desenvolvimento do trabalho,
permitindo tomar posição sobre alguns conceitos fundamentais […]”. Contribuição de Intervenção no
Domínio Econômico. São Paulo: Quartier Latin, 2003. p. 29. 16
Cf. http://pt.wikipedia.org/wiki/M%C3%A9todo. Acesso em: 25 ago. 2013. 17
“Cheshire Puss”, she began (...). / “Would you tell me, please, which way I ought to go from here?” / “That
depends a good deal on where you want to get to”, said the Cat. / “I don’t much care where –” said Alice. /
“Then it doesn’t matter which way you go”, said the Cat. In: CARROL, Lewis. Alice’s Adventures in
Wonderland. Collector’s Library, 2004. p. 64. Trecho traduzido retirado no livro em português, disponível no
link http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/alicep.html. Acesso em: 11 ago. 2013. 18
“Alice’s Adventures in Wonderland, frequentemente abreviado para Alice in Wonderland (Alice no País
das Maravilhas) é a obra mais conhecida de Charles Lutwidge Dodgson, publicada a (sic) 4 de julho de 1865
sob o pseudônimo de Lewis Carroll. É uma das obras mais célebres do gênero literário nonsense. O livro
conta a história de uma menina chamada Alice que cai numa toca de coelho que a transporta para um lugar
fantástico povoado por criaturas peculiares e antropomórficas, revelando uma lógica do absurdo
característica dos sonhos. Este está repleto de alusões satíricas dirigidas tanto aos amigos como aos inimigos
23
“Gatinho de Cheshire”, [...]
“O senhor poderia me dizer, por favor, qual o caminho que devo
tomar para sair daqui?”
“Isso depende muito de para onde você quer ir”, respondeu o Gato.
“Não me importo muito para onde...”, retrucou Alice.
“Então não importa o caminho que você escolha”, disse o Gato.
A partir desse trecho simples e divertido pode-se concluir que nesta
primeira acepção (caminho), o método se interpõe entre um diagnóstico
contextual e um objetivo. Sem contexto (problema) e sem objetivo (aonde se
quer chegar) não existe método. Como responde o Gato no diálogo acima, se
não se quer chegar a um lugar específico, tanto faz o caminho escolhido. Por
outro lado, traçado um objetivo, a metodologia é que denota o caminho para
se chegar até ele.
Se todo ato decisório tem por detrás um contexto, a decisão de
produzir-se um trabalho científico não foge à regra. Assim, a ideia deste
trabalho surge a partir do incômodo de que as normas gerais e abstratas,
típicas e supostamente predominantes nos países cujo modelo jurídico é o
civil law, pode ser insuficiente para orientar a conduta dos indivíduos quanto
à obrigatoriedade ou não de pagar tributos. Em outros termos, os objetivos
deste trabalho estão guiados pela ideia de que as regras tributárias19
não se
prestariam, sozinhas, a regular a principal conduta do direito tributário, qual
de Carrol, de paródias a poemas populares infantis ingleses ensinados no século XIX e também de
referências linguísticas e matemáticas frequentemente através de enigmas que contribuíram para a sua
popularidade. É assim uma obra de difícil interpretação pois contém dois livros num só texto: um para
crianças e outro para adultos”. Cf. http://pt.wikipedia.org/wiki/Alice_no_Pa%C3%ADs_das_Maravilhas.
Acesso em: 26 fev. 2013. 19
Reitere-se que será utilizado, neste trabalho, o termo “regras tributárias” no sentido de “conjunto de
normas jurídicas construídas a partir de enunciados prescritivos gerais e abstratos, relacionados à instituição e
cobrança de tributos”, considerando que os enunciados prescritivos, antes de integram a estrutura condicional
da norma jurídica, não têm aptidão para regular condutas.
24
seja, a de pagar tributos20
, causando, assim, um enorme déficit na ideia de
Estado de Direito21
.
Para além de evidenciar as razões desse contexto, o objetivo desta tese é
demonstrar que a jurisprudência, ostentando a qualidade de norma individual
e concreta, é o mecanismo que pode cumprir esse déficit de legalidade em
matéria tributária, observados alguns pressupostos.
Dito isto, voltemos ao método, ou seja, ao “caminho” percorrido para
se alcançar o objetivo pretendido. Para a construção das premissas e
conclusões deste trabalho, passaremos por, basicamente, duas fases.
Num primeiro momento, faremos uma análise do modelo civil law do
pontos de vista do direito comparado22
e da própria história do direito,
considerando a evolução desse modelo jurídico de forma contextual.
20
Embora se pretenda descobrir em que medida as regras tributárias estão aptas a orientar o comportamento
dos indivíduos, essa análise não será feita do ponto de vista empírico ou sociológico. Não é objetivo deste
trabalho verificar, factualmente, a eficácia das regras tributárias (se os indivíduos cumprem ou não
determinada norma geral e abstrata) ou se há outros fatores, não jurídicos, que podem influenciar na conduta
de pagar ou não o tributo. O que se pretende é demonstrar que, potencial e infalivelmente, as regras
tributárias podem ser insuficientes para regular a conduta de pagar ou não tributos, e que a jurisprudência
termina por ocupar esse espaço deixado pelas normas gerais e abstratas, integrando-se à legalidade tributária.
A análise é puramente jurídico-filosófica: considerando que o conteúdo das normas gerais e abstratas,
inclusive e especialmente das regras tributárias (dado que essas integram o direito público-administrativo), é
meio inapto para orientar a conduta obrigatória de pagar ou não determinado tributo, que papel exerce a
jurisprudência nesse contexto? Em outros termos, parte-se do pressuposto de que, independentemente de
haver outras razões (o que implicaria uma análise de cunho sociológico), considerando que os indivíduos
admitem as regras tributárias como determinantes às suas ações, ainda assim ela pode ser considerada
insuficiente para orientar a conduta de pagar ou não tributos. O objeto deste trabalho está, portanto, voltado
àquele que admite as regras tributárias como fator determinante para sua conduta (de pagar ou não tributos),
mas pode não segui-la por inaptidão das próprias regras (falta de clareza e precisão). 21
Há um intenso debate sobre o conceito de “Estado de Direito”: se seria um conceito jurídico, puramente
formal, ou mais conteudístico e valorativo, ligando-se aos próprios pressupostos para utilização do termo.
Não pretendemos, neste trabalho, entrar nessa discussão, e adotaremos, para os fins pretendidos, o conceito
jurídico-formal de Estado de Direito, geralmente aceito e que remonta às suas origens, conforme exposto por
Dimitri Dimoulis: “A definição geralmente aceita entende como “Estado de Direito”, Rechtsstaat, segundo o
termo cunhado na Alemanha desde finais do século XVIII, o Estado cuja atuação se submete a regras
jurídicas, no intuito de garantir aos indivíduos certos direitos fundamentais”. DIMOULIS, Dimitri. Incertezas
do “Estado de Direito” na Perspectiva Juspositivista. Raz e os Problemas do Conceito Formal. In: VIEIRA,
Oscar Vilhena; DIMOULIS, Dimitri (org.). Estado de Direito e o Desafio do Desenvolvimento. São Paulo:
Saraiva, 2011 (Coleção direito, desenvolvimento e justiça. Série produção científica). p. 96. 22
Embora o estudo do direito comparado possa ser entendido autonomamente como método, neste trabalho
ele é um meio para as análises centrais, que dizem respeito à identificação da falibilidade das leis e,
25
Num segundo momento, após discorrermos sobre a evolução e as
principais características da modelo ao qual nosso sistema jurídico pertence
(civil law), adentraremos na análise crítica especialmente voltada à Ciência do
Direito que descreve o civil law e suas “fontes”23
.
Essas últimas investigações – análise crítica da classificação das fontes
do direito pela Ciência jurídica dos países de civil law – e a demonstração do
papel exercido pela jurisprudência para a regulação de condutas,
especialmente no que se refere ao direito tributário, estão mais relacionadas à
segunda ideia de método, ou seja, à forma de análise. Utilizando o referencial
teórico da filosofia da linguagem é que construiremos as premissas relativas à
problemática percepção da lei como fonte primária (falibilidade das normas
gerais e abstratas) e da jurisprudência como fonte secundária na regulação da
conduta de pagar tributos.
1.2.1 Método como “Caminho”: evolução histórica do modelo civil law,
traço distintivo em relação ao modelo common law e a utilidade do direito
comparado
Neste estudo, a comparação pontual entre o sistema de civil law e o
sistema de common law serve de mote para os dois objetivos maiores: (i)
desmistificar e recolocar a grande diferença que se atribui a esses dois
modelos e (ii) mostrar como os mecanismos de cada qual podem ser úteis à
efetiva implantação do Estado de Direito, garantindo segurança e
consequentemente, da desmistificação de que a jurisprudência teria um papel secundário nos sistemas de civil
law. 23
O termo está colocado entre aspas em razão de sua multiplicidade de significados (ambuiguidade). Até o
Capítulo em que trataremos da falibilidade do direito positivo e os perigos da concepção de se entender a lei
como “fonte primária”, utilizaremos esse termo tal qual colocado historicamente pela Ciência do Direito nos
países de civil law: denotando tanto processo de produção como produto e sem delimitação do sentido de
“direito”.
26
previsibilidade às relações sociais24
. Mas isso é resultado, sem dúvida, de uma
grande comparação, ou melhor, de uma primordial diferença entre dois
modelos jurídicos e que só existe relativamente (comparando-se um em
relação ao outro): a ideia de que os países do modelo civil law têm as leis
como fonte primária do Estado de Direito, diferentemente do modelo
commom law, em que a jurisprudência representa um papel central25
.
Essas duas características que parecem “dividir” os dois grandes
modelos legais contemporâneos (civil law e common law) só aparecem em
estado comparativo, ou seja, mediante análise comparativa de um modelo e
outro, o que nos impulsionou ao estudo do direito comparado26
.
24
Não pretendo me alongar no tema do direito comparado, pois meu objetivo não é (i) discutir seu caráter
científico ou de ciência autônoma; (ii) limitar este trabalho à comparação entre dois sistemas jurídicos; nem
(iii) observar especificidades dos direitos estrangeiros, visando propor reformas legislativas. A utilização do
direito comparado, aqui, é simplesmente metodológica, conforme expõe René David: “Sem dúvida que, para
a maior parte, o direito comparado apenas será um método, o método comparativo, podendo servir para os
variados fins que ele se propõe. Pelo contrário, para outros, pode se conceber que o direito comparado seja
uma verdadeira ciência, um ramo autônomo do conhecimento do direito, se a preocupação for concentrada
sobre os próprios direitos estrangeiros e sobre a comparação que importa, em diferentes aspectos, facilitar
com o direito nacional”. Os Grandes Sistemas do Direito Contemporâneo, 3ª ed. São Paulo: Martins Fontes.
p. 10-11. 25
É claro que a tarefa de comparar direitos é difícil e arriscada. A própria classificação que se tem como
dada, entre civil law e common law, pode, dependendo do sujeito cognoscente, fazer sentido ou não, embora
possa ser válida. A classificação de tantos sistemas jurídicos nacionais nessas duas categorias exige, por
óbvio, a desconsideração de peculiaridades consideradas irrelevantes e a abstração de tantas outras. Nesse
processo de abstração e ignorância, as propriedades relevantes para incluir determinado país em um ou outro
sistema dizem respeito, em suma, à estrutura e às fontes do direito. 26
Assumirei, aqui, o caráter científico do método direito comparado, pelas razões e conclusões apresentadas
por René David: “Os primórdios do direito comparado foram marcados por discussões tendentes à definição
do seu objeto e natureza, a fixar o seu lugar entre as diferentes ciências, a caracterizar os seus métodos, e a
determinar as suas possíveis aplicações e interesses. Foi discutido se o direito comparado devia ser
considerado como um ramo autônomo da ciência do direito ou se, pelo contrário, ele não passava de um
simples método, o método comparativo, aplicado à ciência jurídica; procurou-se atribuir ao direito
comparado um domínio próprio, distinguindo-o da história comparativa do direito, da teoria geral do direito e
da sociologia jurídica; procurou-se também determinar em que ramos do direito se podia obter proveito da
comparação; colocou-se a questão de saber que direito era útil, oportuno ou mesmo permitido comparar entre
si; chamou-se a atenção para os perigos que os juristas deviam evitar, quando se empenhassem nos estudos
do direito comparado. Estas discussões constituem o fulcro das primeiras obras que apareceram nos
diferentes países sobre o direito comparado, e foram estes problemas que estiveram na ordem do dia do
primeiro Congresso Internacional do Direito Comparado, realizado em 1990; um eco tardio dessas discussões
encontra-se ainda em certas obras de publicação recente. É natural que estes problemas tenham sido
colocados em primeiro plano logo que se impôs aos juristas o direito comparado; era inevitável que se
interrogassem então sobre quem era este recém-chegado, como deveriam ser orientados os novos
ensinamentos que iam ser dados, em que direções deveriam ser encaminhadas as investigações que iriam ser
feitas ao abrigo desta expressão. Estas discussões perderam grandemente a sua validade e já não é
27
Ao dissertar sobre a utilização do método do direito comparado, JOSÉ
ARTUR LIMA GONÇALVES, apoiado nas lições dos professores GERALDO
ATALIBA e CLÉBER GIARDINO, coloca a perspectiva reveladora que o estudo
do direito comparado pode dar ao direito interno27
:
É oportuno recordar a lição de Geraldo Ataliba e Cléber Giardino
[estudo inédito sobre o ICM na Constituição], prestando especial
atenção à advertência por eles feita: “[...]. Importa, à vista destas
considerações, portanto, ter rigorosa consciência de que se está
fazendo aplicação do direito comparado, como técnica elaborativa
ou discursiva. [...]”. E exemplificam: “Para efeitos didáticos,
recorremos a uma imagem de alcance propedêutico singular. Se se
perguntar a um jovem aldeão japonês quais são as características de
seu povo, quais são suas notas típicas, os traços que o singularizam,
ele certamente designará traços universais de modo a revelar sua
incapacidade de perceber – nesse objeto de consideração que lhe é
tão familiar (seu povo) – o que tem de comum com outros povos e
o que tem de peculiar [...] Se levarmos esse jovem a percorrer
rapidamente a Europa, a África, a América e então renovarmos a
pergunta, a resposta virá fluente, fácil, imediata: ‘as peculiaridades
do homem japonês são: olhos rasgados, pele amarela, cabelos
negros e lisos, etc.’. Só após estabelecer comparações, lhe foi
possível destacar com precisão, concisão e presteza o que é
peculiar ao seu povo. [...]” (g.n.)
O recurso ao direito comprado é, portanto, extremamente útil,
desde que a sua utilização seja acompanhada das exigências que
essa técnica impõe.
Esse recurso não consiste na tradução de proposições prescritivas
de outros sistemas, ou suas respectivas proposições descritivas,
para posterior e singela aplicação a hipóteses de conflitos locais,
que reclamam solução a partir das exigências sistemáticas e locais
típicas.
O direito comparado serve à tarefa de enfatizar as peculiaridades do
sistema nacional [...].
“Comparar” significa identificar semelhanças e diferenças e, por isso,
decorre de um estado de curiosidade natural: como funciona o sistema
ocasião própria para nos demorarmos demasiado com isso, agora que o direito comparado ganhou
sólidas raízes. (destaques não são do original). Op. cit., p. 2-3. 27
Imposto sobre a Renda: pressupostos constitucionais. 1ª ed., 2ª tiragem. São Paulo: Malheiros Editores,
2002. p. 19-22.
28
jurídico norte-americano? Será ele semelhante ou completamente diferente do
nosso sistema brasileiro? E o sistema inglês? Estes são tipos de perguntas que
na maioria das vezes leva ao estudo comparativo de sistemas jurídicos28
. O
estudo de outro conjunto de sistemas jurídicos, como o common law,
entretanto, não cumpre o simples papel de satisfazer os curiosos29
.
Na Introdução da famosa obra sobre o assunto, “Os Grandes Sistemas
do Direito Comparado”, o autor francês RENÉ DAVID elenca três grandes
utilidades desse método de estudo30
:
As vantagens que o direito comparado oferece podem,
suscintamente, ser colocadas em três planos. O direito comparado é
útil nas investigações históricas ou filosóficas referentes ao direito;
é útil para conhecer melhor e aperfeiçoar o nosso direito nacional;
é, finalmente, útil para compreender os povos estrangeiros e
estabelecer um melhor regime para as relações da vida
internacional.
[...]
O direito comparado pode ser utilizado nas investigações relativas
à história, à filosofia ou à teoria geral do direito.
(destaques não são do original)
A primeira utilidade, voltada ao estudo do direito em nível de teoria
geral, é reconhecidamente a principal razão pela qual utilizamos tal método,
considerando que neste trabalho pretendemos repensar as categorias que
28
O prof. Guido Soares ressalta esse estado emocional de estudo do direito comparado: “o Direito
Comparado é um dos mais interessantes campos da Ciência Jurídica. Na ótica de um estudioso do Direito
Internacional, nosso caso, o comparativismo jurídico mostra que há uma série de diferenças de tratamento a
um determinado fenômeno da vida do homem em sociedade, que outros sistemas nacionais propiciam, os
quais, por coexistirem, no tempo e no espaço, com o brasileiro (onde se situa o analista,), dão causa à criação
de institutos assemelhados. Seja por emulação (...), seja por criação autônoma, as semelhanças e diferenças
entre um mesmo instituto, em sistemas jurídicos nacionais diversos, despertam a curiosidade do cientista do
Direito. Uma primeira questão que se coloca é a de determinar se a existência de tais institutos seria um
fenômeno internacional!”. Common Law: introdução ao direito dos EUA. São Paulo: Revista dos Tribunais,
1999 (RT Didáticos). p. 12-13. 29
A comparação de sistemas jurídicos, embora remonte a períodos muito antigos, somente foi levada ao
status de ciência no século XIX e resultou do intenso processo de nacionalização dos ordenamentos (Cf.
DAVID, René, op. cit., p. 1-2), como exporemos no Capítulo relativo ao modelo civil law. 30
Ibidem, p. 3.
29
parecem até ontológicas quando se atenta ao discurso jurídico tradicional, de
tão arraigadas ao modelo civil law. As ideias de que a lei é a fonte primária na
regulação jurídica e para garantia do Estado de Direito e de que a
jurisprudência tem papel e alcance inter partes, são postas em xeque quando
se estudam outros sistemas jurídicos31
e / ou as Ciências que falam sobre eles.
Um dos principais objetivos deste trabalho é demonstrar como algumas
categorias enraizadas ao modelo civil law devem ser repensadas do ponto de
vista científico. É possível, por exemplo, determinar, com a clareza que as
conceituações do direito administrativo nos induzem, os limites dos atos
infralegais? Como lidar com a afirmação de que as leis ou a CF/88 se
sobrepõem aos regulamentos da perspectiva da filosofia da linguagem, ou
seja, considerando que as palavras não se conectam real e
imprescindivelmente com os objetos? Como permanecer afirmando que a
jurisprudência tem papel secundário no modelo civil law, se os tribunais é que
têm competência para dizer o que a lei significa?
As respostas às indagações acima, de cunho filosófico, serão mais bem
respondidas, a meu ver, se considerada a perspectiva do direito comparado,
nos termos colocados por RENÉ DAVID32
:
O mesmo se poderá dizer, ainda, das fontes do direito e dos
métodos. A teoria geral, exposta pelos civilistas franceses, exalta a
codificação e a lei; ela apresenta-as como a forma mais apta e
conveniente de exprimir as regras do direito num Estado
31
René David coloca sutilmente essa questão: “Também a teoria geral do direito se beneficia
consideravelmente do estudo do direito comparado. A origem histórica das nossas classificações, o caráter
relativo dos nossos conceitos, o condicionamento político ou social das nossas instituições, apenas nos são
revelados com clareza, se para os estudarmos, nos colocamos fora do nosso próprio sistema de direito. De
que valem as nossas distinções de direito público e direito privado, de civil e de comercial, de direito
imperativo e supletivo, de lei e regulamento, de direitos reais e de direitos de crédito, de móveis e imóveis?
Aquele que apenas estudar (sic) o direito francês considera estas oposições naturais e é tentado a atribuir-lhes
um caráter necessário. O direito comparado faz-nos ver que não são aceitas em toda a parte, que podem estar
em declínio ou mesmo ter sido abandonadas em certos países; mais que a sua origem, o direito comparado
nos leva a nos interrogarmos sobre a sua justificação e o seu alcance reais no sistema do nosso direito
nacional atual”. Op. cit., p. 4. 32
Ibidem, p. 5.
30
democrático, limitando-se apenas a ver na jurisprudência e na
doutrina órgãos que se destinam a aplicar ou comentar a lei.
O direito comparado desvenda todo o exagero de preconceitos e de
ficção que esta análise comporta; mostra-nos que outras nações,
julgadas democráticas, aderiram a fórmulas muito diferentes,
rejeitaram a codificação e opuseram-se a um alargamento, segundo
elas perigoso para a democracia, da função da lei; revela-nos, por
outro lado, que em outros Estados se consideram como falsamente
democráticas as fórmulas cujos méritos afirmamos.
(destaques não são do original)
O resultado desse tipo de análise induz, juntamente com a observação
da Ciência que descreve os direitos estrangeiros, ao aperfeiçoamento da
Ciência jurídica brasileira e do próprio direito positivo brasileiro, que seria a
segunda utilidade do método do direito comparado33
. Pela observação dos
direitos estrangeiros e pela análise comparativa, uma nova perspectiva do
nosso direito brasileiro pode ser construída, portanto, a partir da utilização do
método do direito comparado34
.
A análise crítica sobre o atual modelo civil law exige não só uma
comparação pontual com o modelo da common law, mas também uma
investigação sobre suas origens. A origem do atual modelo civil law remonta
33
“O direito comparado é útil para um melhor conhecimento do nosso direito nacional e para seu
aperfeiçoamento. O legislador sempre utilizou, ele próprio, o direito comparado para realizar e aperfeiçoar a
sua obra. Não foi por acaso que se falou, no século passado, de legislação comparada. A preocupação
daqueles, que criaram na França, em 1869, a Sociedade de Legislação Comparada, (...) foi estudar os novos
códigos que vinham sendo publicados nos diversos países, com vista a verificar as variantes que
comportavam em relação aos códigos franceses e sugerir ao legislador, em tais circunstâncias, certos retoques
nestes últimos”. Ibidem. 34
Embora, neste trabalho, esteja muito mais inclinada à primeira utilidade que à segunda. A primeira
utilidade, aquela relacionada às categorias filosóficas, é observada nos trabalhos em que o direito comparado
serve mais de método que de ciência autônoma. Essa afirmação decorre do próprio René David, que afirma,
sem discussões, o caráter científico do direito comparado, quer sob a primeira perspectiva, quer sob a
segunda: “Sem dúvida que, para a maior parte, o direito comparado apenas será um método, o método
comparativo, podendo servir para os variados fins que ele se propõe. Pelo contrário, para outros, pode se
conceber que o direito comparado seja uma verdadeira ciência, um ramo autônomo do conhecimento do
direito, se a preocupação for concentrada sobre os próprios direitos estrangeiros e sobre a comparação que
importa, em diferentes aspectos, facilitar com o direito nacional”. Ibidem, p. 10-11.
31
ao direito romano e a evolução desse modelo jurídico se confunde com a
própria evolução histórica da sociedade35
.
As necessidades sociais e os papéis que determinadas instituições
exerceram ao longo da história europeia – desde a República Romana,
passando pela Igreja na Idade Média e pela concepção renascentista do
Humanismo – explicam muito acerca do atual direito brasileiro, herança do
direito romano exportado por Portugal.
A própria percepção da lei como fonte primária e da jurisprudência
como fonte secundária do direito, central para os objetivos deste trabalho, é
herança do direito que se originou em Roma, sob determinadas condições
históricas.
Todo fato é contextual. As regras gerais e abstratas que hoje
preponderam no modelo romano-germânico não surgiram do nada; ao
contrário, derivam de um modelo sistema jurídico nascido sob determinadas
condições políticas, econômicas e sociais. Por essa razão é que, ao demonstrar
as características do modelo civil law, não deixaremos de considerar
elementos históricos que colaboram, em determinados momentos, para
explicar os sistemas jurídicos contemporâneos.
1.2.2 Método como Forma de Análise: filosofia da linguagem, semiótica e
análise crítica do modelo civil law
Os paradigmas36
propostos pela Filosofia da Linguagem são a base do
método utilizado analisar criticamente o papel das normas gerais e abstratas
35
José Carlos Moreira Alves adverte que, diferentemente de outras Ciências (como a química), o estudo do
direito está sempre relacionado, ainda que de forma contextual, à história. Direito Romano. 11ª ed. Rio de
Janeiro: Forense, 1998. p. 2.
32
(leis em sentido amplo) e da jurisprudência nos sistemas de civil law,
especialmente no que diz respeito ao objetivo primordial desses mecanismos,
que é garantir o Estado de Direito37
.
Em Viena, por volta de 1923, um grupo de filósofos, matemáticos,
físicos, sociólogos, psicólogos, lógicos entre outros cientistas, reunia-se com a
finalidade de discutir os problemas relativos à natureza do conhecimento
científico para, assim, construir o que se poderia chamar de “teoria geral do
conhecimento científico” ou “filosofia da ciência”38
.
Neste processo, o “Círculo de Viena”, como passou a ser chamado
aquele grupo, reduziu sua Filosofia da Ciência à Epistemologia (estudo dos
36
“Um paradigma é aquilo que os membros de uma comunidade partilham e, inversamente, uma comunidade
científica consiste em homens que partilham um paradigma”. KHUN, Thomas. A Estrutura das Revoluções
Científicas. Trad. Beatriz Vianna Boeira e Nelson Boeira. 5ª ed. São Paulo: Perspectiva, 1998. p. 219. 37
O termo “Estado de Direito” está sendo utilizado aqui em sua acepção mais “formal” e, diria, consensual,
conforme descreve Rafael Mafei, referindo-se a Joseph Raz: “Formalmente, diz Raz, o Estado de Direito
(Rule of Law) é, apenas, aquilo que ele literalmente sugere: o governo pelas regras de direito. Isso implica,
ainda segundo ele, duas coisas distintas porém relacionadas: (i) a existência de regras formalmente criadas de
acordo com as fórmulas prescritas pelo ordenamento jurídico, que (ii) garantam condições de que um corpo
social se guie por elas (Raz, 1997, p. 212). [...] A ideia de que as normas jurídicas guiam comportamentos e
de que a principal característica de um Estado de Direito é a sua capacidade de fazer justamente isso – guiar,
servir de padrão normativo para as ações – perpassa todo seu texto. Por isso, diz Raz, poderá ostentar o rótulo
de Estado de direito – independentemente dos princípios políticos que promova, como o amor ou o ódio
racial, a igualdade ou a desigualdade entre pessoas de diferentes gêneros etc. – todo e qualquer sistema
jurídico que tiver regras que sejam capazes de ser obedecidas pelas pessoas (públicas ou particulares, naturais
ou jurídicas) a que se destinarem”. QUEIROZ, Rafael Mafei Rabelo. Formalismo e Normatividade no
Conceito de Estado de Direito. In: VIEIRA, Oscar Vilhena; DIMOULIS, Dimitri (org.), op. cit., p. 82 e 90. 38
Segundo Dunia Pepei, “os temas do aprisionamento do eu e dos limites da comunicação humana tornaram-
se […] os problemas centrais de uma época que já encarava com desespero o próprio futuro, e encontraram,
no estudo da linguagem e das suas formas, o modelo explicativo mais adequado. Estes problemas foram
enfrentados em Viena nos diversos âmbitos da cultura: da sátira de Karl Kraus à música de Schöenberg, da
arquitetura de Adolf Loos à poesia de Holmannsthal, da pintura de Klimt à filosofia de Wittgenstein; suas
análises traduziram-se concretamente na análise da estrutura lógica das diversas formas de expressão, e as
soluções, que de vez em quando foram dadas, pareciam girar em torno de duas figuras centrais: Karl Kraus e
Ernest Mach […] A profunda rachadura produzida entre o espírito clássico e a ciência moderna faz emergir
um problema essencial: recuperar, apesar de tudo, um critério diferente de racionalidade científica, redefinir
uma lógica da ciência que torne a dar a ela legitimidade e valor. […] Em resumo, tratou-se do problema da
legitimação do conhecimento científico, da ligação de uma nova concepção da natureza aos valores
preexistentes de uma época e de uma cultura. A mesma organização que o círculo machiano assumiu desde o
início […] era representativa dessa sua posição teórica de base: a reafirmação do valor e da credibilidade do
saber científico, nas suas múltiplas expressões disciplinares, não poderia ser fruto das intuições de cientistas
em particular, devendo se originar dos estudos organizativos de mais pesquisadores empenhados em campos
disciplinares diferentes […]”. Um grupo de discussão aberta sobre a linguagem e a ciência: o círculo
filosófico de Viena. In: MASI, Domenico de (org.). A Emoção e a Regra: os grupos criativos na Europa de
1850 a 1950. Brasília: Editora UnB/Jose Olympio, 1997. p. 208.
33
princípios, hipóteses e resultados das ciências, com o objetivo de se
determinar os fundamentos lógicos, o valor e o alcance delas) e esta à
Semiótica39
.
A Semiótica, como “Teoria Geral dos Signos” ou “Ciência dos
Signos”40
, abrange o estudo de todos os sistemas de comunicação, incluídos
os linguísticos idiomáticos naturais (linguagem comum) e científicos
(linguagem da ciência)41
. Por este motivo é que a linguagem assumiu, neste
movimento, extrema importância, sendo qualificada como o instrumento, por
excelência, do saber científico. Neste sentido, discurso científico, para o
Círculo, seria aquele composto por linguagem rigorosa e precisa na descrição
dos dados do mundo, objeto de análise.
E assim surgiu, no século XX, o denominado movimento
“Neopositivismo Lógico”, baseado na essencial premissa de que, para a
construção de um discurso científico, imperiosa seria a análise lógica da
39
Cf. CARVALHO, Paulo de Barros. O Neopositivismo Lógico e o Círculo de Viena. In: CARVALHO,
Paulo de Barros. Apostila de Filosofia do Direito I (Lógica Jurídica). São Paulo: PUC, 2004. (fotocópia)
Dunia Pepei afirmou: “sob a influência direta de Wittgenstein e indireta daquela corrente de pensamento
florescente em Viena […], os neopositivistas acabaram por reduzir o estudo das teorias científicas à análise
de sua linguagem; melhor dizendo, acabaram por centralizar a atenção sobre os fundamentos e sobre as
implicações lógicas de todo sistema de sinais que se quisesse colocar-se como um sistema cognitivo da
realidade”. Um grupo de discussão aberta sobre a linguagem e a ciência: o círculo filosófico de Viena. In:
MASI, Domenico de (org.), op. cit., p. 212. 40
Signo é a relação triádica que se estabelece entre um suporte físico (palavras escritas ou faladas), um
significado (referencia do suporte físico com algo do mundo interior ou exterior) e uma significação (ideia
formada em nossa mente sobre o significado). A palavra casa, por exemplo, funciona como suporte físico do
objeto casa (significado) e que, ao ser lida, produz em nossa mente uma significação, isto é, uma ideia acerca
do significado. 41
Cf. Lucia Santaella: “O nome Semiótica vem da raiz grega semeion, que quer dizer signo. Semiótica é a
ciência dos signos. […] A Semiótica é a ciência geral de todas as linguagens […], é a ciência que tem por
objeto de investigação todas as linguagens possíveis, ou seja, que tem por objetivo o exame dos modos de
constituição de todos e qualquer fenômeno como fenômeno de produção de significação e sentido”. O que é
semiótica? 1ª ed., 23ª reimpressão. São Paulo: Brasiliense, 2006. p. 7 e 13.
De acordo com Diana Luz Pessoa de Barros, existem várias teorias semióticas. Segundo a utilizada por ela
(A. J. Greimas, idealizada pelo Grupo de Investigações Sêmio-Lingüísticas da Escola de Altos Estudos em
Ciências Sociais), “a semiótica tem por objeto o texto, ou melhor, procura descrever e explicar o que o texto
diz e como ele faz para dizer o que diz”. In: Teoria Semiótica do Texto. São Paulo: Ática, 1990. p. 3-5.
34
linguagem, com a eliminação dos vícios de vagueza e ambiguidade,
característicos da linguagem natural e ausentes na linguagem formal42
.
Para a “depuração” da linguagem natural, os neopositivistas utilizaram
as três dimensões de análise integrantes da Semiótica: sintática, semântica e
pragmática. A sintaxe, como plano lógico, opera na construção dos
enunciados, na conexão entre as palavras e as frases (disposição entre as
palavras na frase e das frases no discurso)43
, possibilitando que se
compreenda a mensagem. De outro lado, a semântica opera na atribuição de
sentido aos enunciados da mensagem, na busca da relação destes com as
realidades que pretendem denotar44
. A pragmática, por sua vez, atua como
indicativa dos possíveis sentidos dos enunciados, auxiliando na solução dos
42
O termo “positivismo” pode denotar distintas realidades: “é um conceito que possui distintos significados,
englobando tanto perspectivas filosóficas e científicas do século XIX quanto outras do século XX. Desde o
seu início, com Augusto Comte (1798-1857) na primeira metade do século XIX, até o presente século XXI, o
sentido da palavra mudou radicalmente, incorporando diferentes sentidos, muitos deles opostos ou
contraditórios entre si. Nesse sentido, há correntes de outras disciplinas que se consideram “positivistas” sem
guardar nenhuma relação com a obra de Comte. Exemplos paradigmáticos disso são o Positivismo Jurídico,
do austríaco Hans Kelsen, e o Positivismo Lógico (ou Círculo de Viena), de Rudolph Carnap, Otto Neurath e
seus associados. Para Comte, o Positivismo é uma doutrina filosófica, sociológica e política. Surgiu como
desenvolvimento sociológico do Iluminismo, das crises social e moral do fim da Idade Média e do
nascimento da sociedade industrial - processos que tiveram como grande marco a Revolução Francesa (1789-
1799). Em linhas gerais, ele propõe à existência humana valores completamente humanos, afastando
radicalmente a teologia e a metafísica (embora incorporando-as (sic) em uma filosofia da história). Assim, o
Positivismo associa uma interpretação das ciências e uma classificação do conhecimento a uma ética humana
radical, desenvolvida na segunda fase da carreira de Comte.”. Cf. http://pt.wikipedia.org/wiki/Positivismo.
Acesso em: 31 ago. 2013. Para lições mais profundas sobre o tema do positivismo e do positivismo jurídico
(origens históricas e evolução da perspectiva sob a teoria geral do direito), ver: BOBBIO, Norberto. O
Positivismo Jurídico: lições de filosofia do direito. Compiladas por Nello Morra. Trad. e notas Márcio
Pugliesi, Edson Bini e Carlos. E. Rodrigues. São Paulo: Ícone, 1995. A parte I trata das origens históricas
(introdução, pressupostos históricos, as origens do positivismo jurídico na Alemanha, na França e na
Inglaterra). 43
Cf. FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Dicionário Aurélio Básico da Língua Portuguesa. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1994. p. 602. Segundo Rudolf Carnap, citado por Luís Alberto Warat, a sintaxe seria
“a parte da semiótica que, prescindindo dos usuários e das designações, estuda as relações dos signos entre
si”. Cf. O Direito e sua Linguagem. Porto Alegre: Fabris, 1984. p. 40. 44
A semântica é um dos componentes, com a sintaxe, da gramática semiótica, que tem por tarefa estudar os
conteúdos investidos nas relações sintáticas, nos diferentes níveis de descrição lingüística ou semiótica. Cf.
BARROS, Diana Luz Pessoa de, op. cit., p. 89.
35
problemas suscitados pelas análises sintática e semântica, mediante a
investigação da forma com que são utilizados pela sociedade45
.
A utilização das dimensões semióticas de análise da linguagem insere-
se no que se denomina contextualmente de “filosofia da linguagem” e que,
segundo o Círculo de Viena, seria a metodologia primordial para a construção
de qualquer discurso científico, já que todas as ciências são nada mais que
camadas de linguagem construídas a partir da análise do objeto de
investigação46
.
Diante disso, é fácil perceber-se a utilidade que esta filosofia pode ter
na análise do direito e na construção da Ciência que fala sobre ele, em nível
de metalinguagem: é camada de linguagem (Ciência do Direito) que fala
sobre outra camada de linguagem (direito positivo).
Conforme preleciona PAULO DE BARROS CARVALHO47
, “ali onde houver
direito, haverá sempre normas jurídicas, e onde houver normas jurídicas
haverá, certamente, uma linguagem que lhe sirva de veículo de expressão”.
Abrem-se, assim, novas formas de análise à disposição da dogmática jurídica.
GREGÓRIO ROBLES48
completa afirmando:
45
Luís Alberto Warat, novamente citando Carnap, define que a pragmática “é a parte da semiótica que estuda
a relação dos signos com os usuários”. Op. cit., p. 45. 46
A Ciência do Direito foi além dessas categorias semióticas ao propor uma nova ideia de análise semântica
da linguagem. Conforme afirma Fabiana Del Padre Tomé, a partir da premissa de autorreferencialidade da
linguagem preconizada por Lourival Vilanova (Analítica do Dever-Ser. In: Escritos Jurídicos e Filosóficos.
São Paulo: Axis Mundi, 2003, v. 2, p. 45) e provocada por Paulo de Barros Carvalho, “o significado, como
durante muito tempo se pensou, não consiste na relação entre suporte físico e objeto representado, mas na
relação entre significações”. A Prova no Direito Tributário. São Paulo: Noeses, 2005. p. 18. Neste sentido a
semântica não seria a dimensão da análise semiótica que investiga a relação entre palavras (suporte físico) e
objetos (significados), mas aquela que investiga a relação entre palavras que ocupam o lugar de suporte físico
e palavras que ocupam o lugar de significado. Isso será mais bem explorado no Capítulo sobre a Falibilidade
do Direito Positivo. 47
Cf. CARVALHO, Paulo de Barros. Direito Tributário: fundamentos jurídicos da incidência. 4ª ed. rev. e
ampl. São Paulo: Saraiva, 2006. p. 10. 48
Ibidem, p. 3-4.
36
Como texto, o direito é suscetível das análises típicas de qualquer
outro texto. Por essa razão, a teoria do direito pode ser
caracterizada como uma teoria hermenêutico-analítica […].
Pragmática, semântica e sintática são as três operações possíveis do
texto jurídico.
Essa constatação aparentemente simples é, em verdade, uma das
premissas fundamentais para a nossa conclusão acerca da falibilidade das leis,
e induz à consequente constatação dos perversos efeitos da afirmação de que a
lei seria a fonte primária do direito nos países de civil law.
A partir desse tipo de análise (da linguagem) é possível demonstrar que
a imprecisão inerente às leis (aqui entendidas como normas gerais e
abstratas), agravada pela sua pretensão de atingir situações futuras, implica
um inerente déficit de legalidade no direito tributário49
, o que torna
problemática a ideia de supremacia (fonte primária) da lei.
49
Quando falamos em déficit de legalidade em razão da forma de expressão e funcionamento das leis
(linguagem e formulação no presente para regulação de situações futuras) não estamos querendo dizer que
elas não chegam a cumprir seu papel de efetivamente orientar as condutas, ou seja, de fazer com as pessoas
realmente cumpram suas disposições. Esse seria um tipo de análise sociológica do direito que não é o
objetivo deste trabalho. Nosso método continua sendo puramente normativo: a conclusão de insuficiência das
leis para regulação de condutas não parte de uma análise empírica, mas das características próprias e
inerentes às normas gerais e abstratas. Não nos interessa saber, neste trabalho, se as normas jurídicas têm o
“condão de motivar o comportamento, em termos de fazê-lo cumprir ou não a direção normativa”, nas
palavras de Paulo de Barros Carvalho [No Prefácio do livro de Fabiana Del Padre Tomé, A Prova no Direito
Tributário, cit.], mas se são capazes de, em potencial, orientar a conduta do indivíduo submetido a elas.
2 O MODELO CIVIL LAW (DIREITO ROMANO-GERMÂNICO) E A
VALORIZAÇÃO DA NORMA GERAL E ABSTRATA
O que chamamos aqui de “modelo” é denominado pelo grande autor de
direito comparado, RENÉ DAVID, de “família”50
-51
. Trata-se, na verdade, do
bom e velho “ato de classificar”, conforme explica cientificamente a teoria
das classes (ou dos conjuntos): de acordo com determinadas propriedades,
montam-se os conjuntos e, após, classificam-se os objetos dentro de um ou
outro, dadas as características encontradas52
. A “família” ou o “modelo”
denominado de civil law ou de “direito romano-germânico” nada mais denota,
portanto, que um conjunto. O “modelo” da common law, outro conjunto.
Conforme as propriedades de cada qual, se classifica o direito de determinado
Estado em um ou outro.
É claro que os sistemas jurídicos de cada país diferenciam-se muito
entre si, ainda que estejam agrupados em um mesmo modelo ou em uma
mesma família (civil law ou common law). No entanto, para agrupá-los não se 50
“A diversidade dos direitos é apreciável, se se considerar o teor e o conteúdo das suas regras; porem, ela é
bem menor quando se consideram os elementos, mais fundamentais e mais estáveis, com a ajuda dos quais se
podem descobrir as regras, interpretá-las e determinar o seu valor. As regras podem ser infinitamente
variadas; as técnicas que servem para as enunciar (sic), a maneira de as classificar, os modos de raciocínio
usados para as interpretar, resumem-se, pelo contrário, a certos tipos, que são em número limitado. É
possível, por isto, agrupar os diferentes direitos em “famílias”, da mesma maneira que nas outras ciências,
deixando de parte as diferenças secundárias, se reconhece a existência de famílias em matéria de religião
(cristianismo, islamismo, hinduísmo, etc.), de linguística (línguas romanas, eslavas, semitas, nilóticas, etc.)
ou de ciências naturais (mamíferos, répteis, pássaros, batráquios, etc.)”. Op. cit., p. 16-17. 51
John Henry Merryman e Rogelio Pérez-Perdomo chamam de “tradição”, advertindo para a ambuiguidade
da utilização do termo “sistema jurídico” de civil law ou common law: “The reader will observe that the term
used is ‘legal tradition’, not ‘legal system’. The purpose is to distinguish between two quite different ideas. A
legal system, as that term is here used, is an operating set of legal institutions, procedures, and rules. […] In a
world organized into sovereign states and organizations of states, there are as many legal systems as there are
such states and organizations. Nation legal systems are frequently classified into groups or families. Thus the
legal systems of England, New Zealand, California, and New York are called “common law” systems, and
there are good reasons to group them together in this way. But it is inaccurate to suggest that they have
identical legal institutions, processes, and rules. On the contrary, there is great diversity among them, not
only in their substantive rules of law, but also in their institutions and processes. Similarly, France, Germany,
Italy, and Switzerland have their own legal systems, as do Argentina, Brazil, and Chile. It is true that they are
all frequently spoken of as “civil law” nations, and we will try in this book to explain why it makes sense to
group them together in this way”. Op. cit., p. 1. 52
Mais informações sobre a Teoria das Classes / Conjuntos: TARSKI, Alfred. Sobre La Teoria de Classes.
In: Introducción a la Lógica y a las Ciencias Deductivas. Madrid: Espasa-Calpe, 1985.
38
leva em conta as diferenças e, sim, as semelhanças, conforme advertem JOHN
HENRY MERRYMAN e ROGELIO PÉREZ-PERDOMO53
:
O fato de diferentes sistemas jurídicos serem agrupados sob a
rubrica de “civil law”, por exemplo, indica que eles têm algo em
comum, algo que os distingue dos sistemas jurídicos classificados
como “common law”.
[...]
Uma tradição jurídica, como o termo sugere, não é um conjunto
de regras de direito sobre contratos, empresas e crimes, embora
essas regras sejam quase sempre, em algum sentido, um reflexo
dessa tradição. Pelo contrário, é um conjunto de atitudes
profundamente enraizadas, historicamente condicionadas,
sobre a natureza do direito, sobre o papel do direito na
sociedade e na política, sobre uma adequada organização e
operação de um sistema legal, e sobre a forma como a lei é ou
deveria ser feita, aplicada, estudada, aperfeiçoada, e ensinada.
A tradição legal se relaciona com a cultura, da qual é uma
expressão parcial. Ela coloca o sistema jurídico numa perspectiva
cultural / contextual.
(destaques não são do original)
Outra ressalva importante antes de adentrarmos as características do
modelo romano-germânico, é de que termo civil law não se identifica com o
que denominamos ou que se denominou no passado de direito civil. Trata-se,
na verdade, de uma tradição de organização de regras e da Ciência do Direito
cuja origem pode ser atribuída ao chamado “direito romano”54
. Como afirma
53
Tradução livre do seguinte trecho: “But the fact that different legal systems are grouped together under
such a rubric as “civil law”, for example, indicates that they have something in common, something that
distinguishes them from legal systems classified as “common law”. [...] A legal tradition, as the term implies,
is not a set of rules of law about contracts, corporations, and crimes, although such rules will almost always
be in some sense a reflection of that tradition. Rather, it is a set of deeply rooted, historically conditioned
attitudes about the nature of law, about the role of law in the society and the polity, about the proper
organization and operation of a legal system, and about the way law is or should be made, applied, studied,
perfected, and taught. The legal tradition relates the legal system to the culture of which it is a partial
expression. It puts the legal system into cultural perspective”. Op. cit., p. 2. 54
Andréia Costa Vieira explica: “O termo “direito civil”, proveniente do Direito Romano, era designado aos
ramos do direito cuja aplicabilidade era restrita aos cidadãos romanos. (...) Já na Idade Média, o termo
“direito civil” era usado para distinguir o direito romano do que era conhecido como “direito canônico”, da
Igreja. No âmbito internacional, porém, o termo Civil law refere-se ao sistema legal adotado pelos países da
Europa Continental (com exceção dos países escandinavos) e por, praticamente, todos os outros países que
sofreram um processo de colonização, ou alguma outra grande influência deles – como os países da América
Latina. O que todos esses países têm em comum é a influência do Direito Romano, na elaboração de seus
39
ALAN WATSON, “o termo ‘civil law’ tem um significado muito específico para
os juristas de direito comparado; é utilizado para designar os sistemas da
Europa Ocidental continental (excluindo a Escandinávia) e os sistemas (como
os da América Latina) grandemente influenciado por eles”55
.
O termo civil law foi, na verdade, cunhado pelos países de língua
inglesa em razão da origem “civil” do direito romano, isto é, da
predominância da regulação das relações privadas pelo direito romano56
.
Adotado na maioria dos países da Europa e pelos países que foram por
eles colonizados ou influenciados57
, revela-se, por essa razão, a importância
do estudo do direito romano para entendermos melhor a formação do sistema
jurídico brasileiro, conforme ressalta THOMAS MARKY58
:
A importância do estudo do direito romano não precisa ser
explicada, pois é de conhecimento mesmo do leigo que o nosso
direito e o de todos os povos do Ocidente derivam do direito
romano. Portanto, ao estudá-lo, vamos às origens do nosso próprio
direito vigente.
[...]
O direito, como regulamentação do comportamento humano dentro
da sociedade, é também um fenômeno histórico. Suas regras não
são fruto de pura especulação, nem consequência de inexoráveis
forças da natureza. Essas regras são produtos, sim, da longa
códigos, constituições e leis esparsas.”. Civil Law e Common Law: os dois grandes sistemas legais
comparados. São Paulo: Sergio Antonio Fabris Editor, 2007. p. 21. 55
Tradução livre do trecho “the term ‘civil law’ has a quite specific meaning for comparative lawyers; it is
used to denote the systems of Western continental Europe (excluding Scandinavia) and the systems (such as
those of Latin America) greatly influenced by them”. The Making of the Civil Law. Cambridge; London:
Harvard University Press, 1981. p. 2. 56
Sobre a predominância do direito privado no Direito Romano, ver DAVID, René, op. cit., p. 37-38. 57
Conforme destaca René David: “Os direitos da família romano-germânica são os continuadores do direito
romano, cuja evolução concluíram; não são de modo algum cópia deles, tanto mais que muitos dos seus
elementos derivam de fontes diversas do direito romano. A família de direito romano está atualmente
dispersa pelo mundo inteiro. Ultrapassando largamente as fronteiras do antigo Império Romano, ela
conquistou, particularmente, toda a América Latina, uma grande parte da África, os países do Oriente
Próximo, o Japão e a Indonésia. Esta expansão deveu-se em parte à colonização, em parte às facilidades que,
para uma recepção, foram dadas pela técnica jurídica da codificação, geralmente adotada pelos direitos
românicos no século XIX”. Ibidem, p. 25. 58
Curso Elementar de Direito Romano. 8ª ed. São Paulo: Saraiva, 1995. p. 3.
40
experiência humana e, por isso, para compreendê-las, é muito útil,
senão imprescindível, conhecer sua evolução histórica.
No mesmo sentido é a afirmação de TERCIO SAMPAIO FERRAZ JUNIOR59
:
Tendo em vista o quadro cultural em que se desenvolveu o direito
em nosso país, mister se faz que principiemos pelas origens do
pensamento jurídico (continental) europeu, à exclusão, pois, do
pensamento anglo-saxão, o que nos conduz, de início, à Roma
Antiga.
Sobre ser importante a investigação evolutiva do modelo civil law, o
objetivo deste Capítulo é identificar as principais características atuais dessa
tradição jurídica a partir de suas origens, evidenciando seu modus operandi60
,
qual seja, a regulação de condutas por meio de normas gerais e abstratas
(codificações) e a consequente hierarquização das fontes do direito61
, ambos
objeto de análise crítica nesta tese.
2.1 Breve Histórico das Origens do Modelo Civil Law
O termo “civil law” tem o mesmo significado de “direito romano
germânico” – é tão-somente o termo utilizado na língua inglesa. A
denominação “romano-germânico” já indicia que a origem desse modelo
direito é o direito romano.
59
Introdução ao Estudo do Direito: técnica, decisão, dominação. 4ª ed. São Paulo: Atlas, 2003. p. 55. 60
Neste Capítulo só nos interessa a história do direito romano e não suas instituições (especialmente voltadas
ao direito privado – conceitos de posse, obrigação, direito subjetivo etc.). À história do direito romano José
Carlos Moreira Alves refere-se como história externa; às instituições, como história interna. Mas adverte
que os italianos e alemães preferem referir-se à história externa tão-somente como história do direito romano
e à história interna como instituições de direito romano (italianos) ou sistema de direito privado romano
(alemães). Cf. Direito Romano. 11ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1998. p. 1. 61
Até o Capítulo em que trataremos da falibilidade do direito positivo e os perigos da concepção de se
entender a lei como “fonte primária”, utilizaremos esse termo tal qual colocado historicamente pela Ciência
do Direito nos países de civil law: denotando tanto processo de produção como produto e sem delimitação do
sentido de “direito”.
41
A existência de um direito romano62
propriamente dito, sistematizado e
escrito, só pode ser observada a partir do século XIII63
. Antes disso, alguns
elementos originários podem ser encontrados, ainda prematuros à ideia de
sistema jurídico, como a Lei das XII Tábuas64
, as Institutas de Gaius e as
compilações de Justiniano.
Por essa evolução do direito romano estar intrinsecamente ligada à
própria evolução econômica, política e social de Roma, pode-se dividi-la nos
cinco seguintes períodos65
: (i) período republicano e a primeira grande
tentativa de codificação de regras, a Lei das XII Tábuas; (ii) períodos do alto
e baixo Império Romano, em que foram produzidas as compilações do
Imperador Justiniano; (iii) período da alta Idade Média e o declínio da ideia
de direito; (iv) período da baixa Idade Média e o renascimento do direito
romano pelas universidades europeias; e (v) a utilização do direito romano
moldado pelas universidades como base para a legislação nacional de cada
país da Europa.
62
Thomas Marky atribui ao signo “direito romano” o significado de “complexo de normas vigentes em
Roma, desde a sua fundação (lendária, no século VIII a.C.) até a codificação de Justiniano (século VI d.C.)”.
Op. cit., p. 5. 63
DAVID, René, op. cit., p. 29. 64
Conforme explica Andréia Costa Vieira, a partir da obra de J. Cretella Jr. (Curso de Direito Romano, 20ª
ed. Rio de Janeiro: Forense, 1997, p. 43, nota 10), “A Lei das XII Tábuas foi bastante divulgada dentre os
autores latinos, tornando-se, então, a [...] fonte de todo direito público e privado. Tinha conteúdo bastante
diversificado, incluindo o direito público e privado, o direito processual civil e até mesmo o direito divino”.
Op. cit., p. 29. John Henry Merryman e Rogelio Pérez-Perdomo atribuem à Lei das XII Tábuas,
supostamente publicada em 450 d.C., a origem mais remota do modelo civil law. Op. cit., p. 2. 65
José Carlos Moreira Alves adverte no item “Explicação Prévia” de sua obra Direito Romano (cit.), que a
cronologia histórica é a melhor forma de se estudar o direito romano: “Para conhecer os princípios básicos do
direito romano, é preciso apenas ter em mente que ele é um direito histórico e que, portanto, o exame de seus
institutos deve ser feito através das suas diferentes etapas de evolução [...]”.
42
2.1.1 Período da República em Roma e a Lei das XII Tábuas
A Lei das XII Tábuas denota, na verdade, a reunião de diversas regras66
cuja origem pode ser atribuída aos costumes67
, representando um primeiro ato
de “codificação”, característico do atual modelo civil law. Diz-se ter sido a
primeira lei escrita68
, finalizada no período da República romana (510 a 27 a.
C.), época em que havia cinco fontes69
de direito em Roma: os costumes, a
lex, o plebiscito, as interpretações dos prudentes e os editos dos magistrados70
.
Os costumes decorriam da prática reiterada de determinados tipos de
comportamento. Conforme descreve Thomas Marky71
:
O costume [...] é a observância constante e espontânea de
determinadas normas de comportamento humano na sociedade.
Cícero o definiu como sendo aprovado, sem lei, pelo decurso de
longuíssimo tempo e pela vontade de todos.
66
Como explica Andréia Costa Vieira, a partir da obra de Thomas Glyn Watkin (An Historical Introduction
to Modern Civil Law, 1ª ed. Aldershot: Ashgate Publishing, 1999, p. 20), “Por volta de 450 A.C., dez homens
da classe dos patrícios foram apontados para criar um Código de Leis escritas do povo romano. Watkin
observa que a necessidade de se codificar as leis escritas do Império Romano pode ter surgido do
descontentamento dos plebeus em relação ao acesso às leis do império – que, por razões educacionais, era
restrito aos patrícios”. Op. cit., p. 29. 67
Cf. MARKY, Thomas, op. cit., p. 6: “As XII Tábuas (...) nada mais foram que uma codificação de regras
provavelmente costumeiras, primitivas, e, às vezes, até cruéis. Aplicavam-se exclusivamente aos cidadãos
romanos”. 68
Embora tenha sido a primeira “lei” escrita, sua relevância à época foi limitada, já que os costumes é que
eram a principal fonte de direito. Cf. VIEIRA, Andréia Costa, op. cit., p. 24. 69
A acepção de “fontes” em todo o período que descreve a história do direito romano (origem do civil law) é
ambígua e indica, genericamente, os processos e os produtos que eram utilizados como parâmetro para
ordenação da vida social (para a regulação das condutas). 70
Antes do período da República, quando Roma era governada por Reis (entre 753 a. C. e 509 a. C.), havia
duas formas de regulação das relações: os costumes e as leis, sendo que essas não eram propriamente as
regras gerais e abstratas dos tempos atuais, como explica Andréia Costa Vieira: “No período de 753 a 509
A.C., quando Roma foi governada por reis, as fontes do Direito Romano eram duas: os costumes e as leis.
(...) À essa época, as leis nasciam de uma proposta do rei às Comitiae. Se aceita, a proposta real tornava-se
lex, com força obrigatória. Contudo, não se pode ver, nessa época, a lex como a lei é vista hoje em dia. À
época da realeza, a lex não era geral (ou seja, dirigida a todos), mas destinava-se a resolver casos específicos
(dirigida a apenas alguns) e representava muito mais ‘editos’ do que ‘leis’ propriamente ditas”. Op. cit., p.
24. 71
Op. cit., p. 17.
43
As leis (lex) não tinham a característica atual, especialmente no que se
refere à forma de produção pelo Poder Legislativo. Eram resultado de
propostas feitas pelos magistrados e aprovadas por comícios com participação
exclusiva de cidadãos romanos72
-73
.
Os plebiscitos eram também resultado de deliberação popular, mas,
inicialmente, sem a participação dos patrícios (somente com a participação
dos plebeus)74
. Segundo JOSÉ CRETELLA JÚNIOR, “em princípio [...] os
plebiscitos aplicavam-se tão-somente à plebe, mas a partir da Lei Hortênsia
(286 a.C.) adquirem o valor de lei, passando a ser designado pelo nome de
lex” 75
.
As interpretações dos prudentes (jurisprudentes) eram destinadas a
“preencher as lacunas da lei”76
, embora, formalmente, sem força vinculante77
.
Consistiam, na realidade, em pareceres elaborados por uma aristocracia
intelectual de juristas, sobre questões práticas que lhe eram apresentadas78
.
72
Ibidem, p. 17-18. 73
Thomas Marky ensaia, com esse exemplo da produção legislativa em Roma, a diferença entre fonte do
direito como ato de produção das leis e fonte do direito como produto desse ato: “A produção de regras
jurídicas se faz pelas fontes do direito. Elas são órgãos que têm a função ou poder de criar a norma jurídica e,
por isso mesmo, se chamam “fontes de produção”. Exemplo: os comícios (comitia), que votavam as leis em
Roma. Por outro lado, podemos denominar “fontes de revelação” o produto da atividade dos órgãos que têm
aquele poder ou função de legislar. Assim, a própria regra jurídica, na forma como ela aparece ou se revela.
Exemplo, a lei (lex rogata) resultante de uma proposta feita pelos magistrados e votada pelos Comícios em
Roma. Ibidem, p. 17. 74
Ibidem, p. 18. 75
Curso de Direito Romano: o direito romano e o direito civil brasileiro. Rio de Janeiro: Forense, 2002. p.
34. 76
Segundo Andréia Costa Vieira: “Os jurisprudentes tinham a função de interpretar as leis e preencher-lhes
as lacunas. A interpretatio – obra de seu trabalho – consistia também em uma fonte de direito na Roma
republicana. Surgiu daí o termo jurisprudência – as interpretações feitas pelos jurisprudentes que, àquela
época, aproximavam-se muito mais do que conhecemos hoje por “doutrina” do que do moderno sentido dado
à palavra “jurisprudência”. Não possuía, em si, força obrigatória, mas tinha enorme força de persuasão,
principalmente depois do jus publice repondendi – oficialização que Augustus deu a algumas dessas
jurisprudências. Op. cit., p. 24-25 77
Para Thomas Marky, a interpretação dos prudentes (que ele chama de jurisprudência) não podia sequer ser
chamada de fonte de direito nessa época, exatamente em razão de sua falta de oficialidade. Op. cit., p. 20. 78
Além da elaboração de pareceres, atividade chamada de respondere, os jurisconsultos ou prudentes
também eram procurados para “instruir as partes sobre como agirem em juízo (agere) e orientar os leigos na
realização de negócios jurídicos (cavere)”. Ibidem, p. 8.
44
Embora se atribua a essa fonte do direito a origem do atual termo
“jurisprudência”, ela estava mais próxima do que hoje conhecemos por
doutrina79
.
É interessante notar que, embora essas interpretações não possuíssem
força vinculante, dada sua função de preencher as lacunas da lei, elas
acabavam criando novas regras mediante o expediente da “adaptação” das
antigas normas à realidade em que se encontravam80
-81
. Por ter esse papel de
“atualização” das regras vigentes, essas interpretações foram colocadas, na
prática, ao lado das regras gerais interpretadas, tendo papel fundamental no
desenvolvimento do direito romano82
.
Por fim, os editos dos magistrados (também chamados de pretores), não
eram exatamente soluções de casos concretos dadas por eles. A função deles
era de “organizar e conduzir os processos”83
. Segundo THOMAS MARKY, cabia
a eles cuidar “da primeira fase do processo entre particulares, verificando as
alegações das partes e fixando os limites da contenda, para remeter o caso
posteriormente a um juiz particular”84
. Ao fixar esses limites, continua o
autor, o pretor terminava por “dar instruções ao juiz particular sobre como ele
deveria apreciar as questões de direito”85
.
79
VIEIRA, Andréia Costa, op. cit., p. 24-25. 80
MARKY, Thomas, op. cit., p. 8. 81
Thomas Marky explica: “Os pareceres dos jurisconsultos exerceram papel importante na evolução do
direito romano, desde os tempos antigos. As regras consuetudinárias do direito primitivo, bem como as das
XII Tábuas e outras, todas bastante simples e rígidas, tinham que ser interpretadas para que pudessem servir
às exigências de uma vida social e econômica cada vez mais evoluída. Essa interpretação, nas origens
remotas do direito romano, estava afeta aos pontífices, que eram chefes religiosos. Mais tarde, porem, passou
a ser obra de juristas leigos (prudentes), conhecedores do direito. Eles inovavam, criavam novas normas,
partindo das existentes: isso por meio da interpretação extensiva destas”. Ibidem, p. 20. 82
Ibidem, p. 8. 83
VIEIRA, Andréia Costa, op. cit., p. 25. 84
MARKY, Thomas, op. cit., p. 7. 85
Ibidem.
45
Os editos eram, na verdade, programas de governo anualmente
publicados pelos magistrados investidos desse poder, e indicava como
pretendiam agir86
. Era comum que os pretores sucessores se valessem dos
editos anteriores e inovassem aqui e ali, dando ensejo, anos depois, a “um
corpo estratificado de regras” que foram, por volta de 130 d. C., “codificadas
pelo jurista Sálvio Juliano, por ordem do Imperador Adriano”87
.
O mais interessante é que esse “direito pretoriano” não podia ser
equiparado às demais regras consideradas como ius civile88
, sob o “mantra”
de que os pretores não podiam criar normas. Assim, embora na prática se
pudesse verificar esse direito “judicial” substituindo o ius civile, isso nunca
poderia ser dito expressamente, já que, em tese, não cabia aos pretores a
criação de leis89
.
2.1.2 Período do Império Romano e as Compilações de Justiniano (Corpus
Iuris Civilis)
Seguiu-se a esse período republicano o famoso período do Império
Romano, que pode ser dividido em Alto Império (27 a.C. a 284 d.C.) e Baixo
Império (284 d.C. a 565 d.C.).
No Alto Império, as fontes90
que existiam no período anterior
permanecem, sendo adicionados os senatusconsulta e as constituições
86
Ibidem, p. 19. 87
Ibidem, p. 7. 88
Considera-se como ius civile o direito aplicável exclusivamente aos cidadãos romanos (excluídos os
estrangeiros), e formados por costumes, leis e plebiscitos, acompanhados da interpretação dos prudentes.
Ibidem, p. 21. 89
Ibidem, p. 7-8. 90
Como adiantamos, a acepção de “fonte” na descrição da evolução do direito romano (origem do civil law)
denota aquilo que era utilizado como parâmetro para ordenação da vida social (para a regulação das
condutas), já que não existia nem centralização da produção de regras (órgão competente), tampouco a ideia
de procedimento uniforme.
46
imperiais91
. Aqueles eram deliberações do senado acerca de propostas dos
imperadores. As constituições imperiais, como o próprio nome já diz, eram
regras derivadas do Imperador, denominadas de edicta, decreta, rescripta ou
mandata, conforme seu conteúdo ou natureza (de caráter geral, proferidas
num processo, respostas a questões jurídicas propostas ao Imperador ou
instruções aos subalternos, respectivamente)92
.
No período do Baixo Império, os senatusconsulta (ou senatosconsultos)
passam a ser uma forma indireta de legislação imperial, já que o senado passa
a simplesmente aprovar, por aclamação, a proposta do imperador93
. Na
prática, portanto, a “produção legislativa” passa a centralizar-se na figura do
Imperador94
, “decaindo a importância dos comícios legislativos e
estratificando-se o edito pretoriano”95
nesse período.
Durante o período do Baixo Império, portanto, somente as constituições
imperiais (ou constitutiones principis) na modalidade edicta permanecem
como fonte do direito96
, até que a partir de 528 d.C. surge o Corpus Iuris
Civilis97
.
Afirma THOMAS MARKY que esse período do Baixo Império foi
marcado pela ausência de um “gênio criativo”, o que teria impulsionado a
“codificação” corporificada pelo Corpus Iuris Civilis, o qual representava
uma “fixação definitiva das regras vigentes”, somente verificada antes com a
91
CRETELLA JÚNIOR, José, op. cit., p. 38. 92
MARKY, Thomas, op. cit., p. 18-19. 93
Ibidem, p. 18. 94
Conforme afirma José Cretella Júnior, “O imperador, que no período anterior reparte o poder com o
senado, agora firma definitivamente sua posição, torna-se absoluto, invocando a vontade divina como fonte
de inspiração de sua autoridade: o que agradou ao príncipe tem de força de lei (“quod principi placuit, legis
habet vigorem”). Op. cit., p. 46. 95
MARKY, Thomas, op. cit., p. 21. 96
CRETELLA JÚNIOR, José, op. cit., p. 46. 97
Ibidem, p. 6.
47
Lei das XII Tábuas. Para ele, essa lacuna temporal entre a Lei das XII Tábuas
e o Corpus Iuris Civilis demonstra que, na realidade, os romanos eram
avessos à ideia da codificação98
, possivelmente em razão do demérito que
essa rigidez trazia consigo (a fixidez da regra em detrimento da realização da
justiça no caso concreto).
O Corpus Iuris Civilis consistia na reunião de várias categorias de
documentos, dentre eles as Institutas, de Gaius, e foi criado pelo Imperador
Justiniano99
.
Primeiro veio o Codex, completado em 529100
, destinado a reunir, em
forma de Código (ou seja, organizadas em livros e títulos, e em ordem
cronológica)101
, todas as leis do Império (desde o século II)102
. À comissão
encarregada de elaborar o Codex foram dados poderes para além da
compilação. Como observa ALAN WATSON103
:
Aos compiladores foram dados amplos poderes para coletar as
constituições, omitir, no todo ou em parte, as partes que eram
obsoletas ou desnecessárias, remover contradições e repetições,
e até mesmo para fazer alterações substanciais. As constituições
foram, então, organizadas por assunto em títulos, ou seções
98
“Nesse período, pela ausência de gênio criativo, sentiu-se a necessidade de fixação definitiva das regras
vigentes, por meio de uma codificação que os romanos em princípio desprezavam. Não é por acaso que,
exceto aquela codificação das XII Tábuas do século V a. C., nenhuma outra foi empreendida pelos romanos
até o período decadente da era pós-clássica. Após tentativas parciais de codificação de partes restritas do
direito vigente (Codex Gregorianus, Codex Hermogenianus, Codex Theodosianus), foi Justiniano (527 a 565
d. C.) quem empreendeu a grandiosa obra legislativa, mandando colecionar oficialmente as regras de direito
em vigor na época”. Op. cit., p. 9. 99
DAVID, René, op. cit., p. 29. 100
CRETELLA JÚNIOR, José, op. cit., p. 6. Ao mesmo ano atribuem Thomas Marky (Op. cit., p. 9) e Alan
Watson (Op. cit., p. 10). 101
Houve, na verdade, dois Codex: o primeiro, publicado em 529 d. C. e outro, revisado e ampliado, em 534
d. C. Cf. VIEIRA, Andréia Costa, op. cit., p. 30; WATSON, Alan, op. cit., p. 10. 102
VIEIRA, Andréia Costa, op. cit., p. 30. 103
Tradução livre do trecho “The compilers were given extensive powers to collect the constitutions, to omit
any, in whole or in part, that were obsolete or unnecessary, to remove contradictions and repetitions, and
even to make alterations in substance. The constitutions were then to be arranged by subject in titles, or
named sections, and within each title the constitutions were to be given in chronological order”. Op. cit., p.
10.
48
nomeadas, e dentro de cada título deveriam ser colocadas em
ordem cronológica.
(destaques não são do original)
Seguiu-se a compilação de textos dos séculos I a III, chamada Digesto,
também organizada em livros e títulos, e iniciada em 530104
. No mesmo estilo
do Codex, o Digesto também estava organizado e subdividido em títulos e
seus textos incluíam “declarações principiológicas, discussão sobre
interpretação e aplicação de regras, comentários sobre o escopo ou a
interpretação dos editos e das leis e opiniões de juristas sobre o tratamento de
problemas reais ou fictícios”105
-106
. Embora os compiladores do Digesto
também tivessem poderes para excluir o que lhes parecesse supérfluo ou
imperfeito e eliminar contradições e repetições (inclusive em relação ao
Codex), diz-se que a eles não foi atribuída a prerrogativa de alterar a
substância dos textos ou atualizá-los107
.
As Institutas ou Institutiones, por sua vez, foram publicadas logo
depois, em 533 d. C., e podem ser definidas como um “guia elementar para
estudantes de direito, baseado nas Institutas de Gaius – um trabalho escrito,
mais ou menos, em 160 [...]. Eram divididas em quatro livros, também
104
José Cretella Júnior atribui ao ano de 533 a criação do Digesto. Op. cit., p. 6. 105
Tradução livre do trecho “The texts of the jurists include statements of principles, discussions of rules,
commentary on the scope or interpretation of edicts and statutes, qualifications of other juristic opinion, and
the treatment of problem cases, real or hypothetical”. WATSON, Alan, op. cit., p. 11. Na tradução de
Andréia Costa Vieira, “esses textos [...] contêm matérias de princípios de direito, discussões de
procedimentos jurídicos, comentários sobre a interpretação de editos e estatutos, opiniões de juristas sobre
assuntos diversos e discussões de soluções e tratamentos dados a casos reais ou fictícios”. Op. cit., p. 30. 106
Segundo Thomas Marky, o Digesto era formado por 50 livros, que reuniram trechos selecionados de 2.000
livros (3 milhões de linhas), resultado das obras dos jurisconsultos (prudentes) clássicos. Segundo ele, foi
Triboniano o coordenador dessa tarefa, tendo-lhe sido autorizada a alteração dos trechos escolhidos para
harmonizá-los com os novos princípios vigentes à época: “Essas alterações tiveram o nome de emblemata
Triboniani e hoje são chamadas interpolações. A descoberta de tais interpolações e a restituição do texto
original clássico é uma das preocupações da ciência romanística dos últimos tempos”. Op. cit., p. 9. 107
WATSON, Alan, op. cit., p. 11.
49
subdivididos em títulos. Os tópicos foram organizados em Fontes do Direito,
Pessoas, Propriedade, Sucessão, Obrigações e Hasta Pública”108
.
Por fim, após todas essas compilações, considerando que nenhuma
outra regra podia ser invocada além das ali constantes109
, foram criadas leis
por Justiniano, as quais foram reunidas nas Novelas, e que tratavam das
relações jurídico-eclesiásticas, de direitos sucessórios e do direito matrimonial
herdado do Direito Canônico110
.
A esse conjunto de Códigos (Codex, Digesto, Institutas e Novelas) é
atribuída a preservação do direito romano para a posteridade111
.
2.1.3 Declínio do Direito Romano na Alta Idade Média
A partir do Século VI (durante o período da alta Idade Média, que vai
de 400 a 900) começam a surgir as leis bárbaras e esse processo perdura até o
século XII112
. Durante esse período, podiam-se distinguir dois direitos: o “dos
povos bárbaros (principalmente das tribos germânicas), mais primitivo, e o
Direito Romano, mais complexo e refinado”113
.
Durante esse período, o direito romano passou por um longo processo
de esquecimento, decorrente da dominação da Igreja sobre todos os setores da
realidade social. Como bem descreve RENÉ DAVID:
Para que serve conhecer e precisar as regras do direito, quando
o sucesso de uma das partes depende de meios tais como o juízo
de Deus, o juramento das partes ou a prova dos ordálios? Para
que serve obter um julgamento, se nenhuma autoridade, dispondo
108
VIEIRA, Andréia Costa, op. cit., p. 30. 109
MARKY, Thomas, op. cit., p. 10. 110
WATSON, Alan, op. cit., p. 12-13; VIEIRA, Andréia Costa, op. cit., p. 30. 111
MARKY, Thomas, op. cit., p. 10. 112
DAVID, René, op. cit., p. 30. 113
VIEIRA, Andréia Costa, op. cit., p. 33.
50
de força, está obrigada, ou preparada, para pôr esta força à
disposição do vencedor. Nas trevas da Alta Idade Média a
sociedade voltou a um estado mais primitivo. Pode existir ainda um
direito: [...]. Mas o reinado do direito cessou. Entre particulares
como entre grupos sociais os litígios são resolvidos pela lei do mais
forte, ou pela autoridade arbitrária de um chefe. [...]
[...]
O próprio ideal de uma sociedade que garanta “os direitos” de
cada um é abandonado: uma sociedade cristã não deverá antes
procurar fundar-se sobre ideias da fraternidade e de caridade?
(destaques não são do original)
Do século VIII em diante, foi atribuído caráter divino aos imperadores
do Império Romano, o que lhes permitia usurpar a função de ditar regras114
:
Quando o Cristianismo se tornou a religião oficial do império, os
imperadores tornaram-se os representantes de Deus na terra e eram
considerados eleitos pelo próprio Deus. Dessa forma, os
imperadores viram-se no direito de usurpar o poder do
legislativo romano, reservando, para si próprios, o direito de
interpretar as leis, assim como o fez o imperador Justiniano, no
seu Edito, no ano de 533 A.D., com a promulgação dos Digestos.
A identificação da figura divina com o Imperador outorgava a esses
poderes ilimitados, tornando desnecessárias as limitações legais ao exercício
de seus poderes e, assim, dispensáveis todas as regras de direito romano até
então existentes.
2.1.4 Renascimento do Direito Romano na Baixa Idade Média e Expansão
pela Europa Continental
É no período da Baixa Idade Média, nos séculos XII e XIII, que renasce
o direito romano115
propriamente originário do atual modelo civil law116
. Com
o incremento das relações sociais e comerciais, nasce a percepção de que117
114
Ibidem, p. 32.
51
[...] só o direito pode assegurar a ordem e a segurança
necessárias ao progresso. O ideal de uma sociedade cristã
fundada sobre a caridade é abandonado. [...]. A própria Igreja
distingue mais nitidamente a sociedade religiosa dos fieis da
sociedade laica, o foro externo do foro interno, e elabora, nesta
época, um direito privado canônico.
(destaques não são do original)
A segregação entre regulação social da vida privada e valores religiosos
já era algo que existia na época do Império Romano e foi perdido com a
dominação da Igreja na Idade Média. A volta dessa segregação, que
caracteriza o modo de organização da civilização ocidental, e pretende limitar
o exercício do poder estatal, vem também arraigada à noção de um novo
direito, “que a razão permite conhecer”118
.
Curiosamente, o retorno do direito romano nessa época não é atribuído
à “afirmação de um poder político, ou à centralização operada por uma
autoridade soberana”119
. Em outras palavras, a efetiva origem do modelo civil
law, que deriva do retorno ao direito romano, não decorre da existência de um
Estado organizado em poderes, ao contrário da common law120
:
115
É interessante como Rodolfo Sacco coloca essa questão da herança do direito romano de forma crítica e
provocativa: “O poder legislativo como tal nunca existiu em Roma. Para os romanos parece uma grande
coisa terem feito as Doze Tábuas, que resolveram certos detalhes procedimentais, enquanto pressupunham
inconteste todo um sistema de normas fundamentais, que não eram esculpidas na pedra e nem eram escritas,
porque por demais conhecidas e aceitas (e muito pouco verbalizadas) para que valesse a pena (e para que
fosse possível) memoriza-las. Os romanos eventualmente faziam uma lei. Dentro daqueles limites a
atividades legislativa existe em qualquer parte, e é fisiológica. Isto não quer dizer que os romanos tivessem a
idéia de um poder legislativo geral, como poder, atribuído a algum órgão, de produzir qualquer norma que
considere conveniente e que fosse válida simplesmente porque dele emanada. Os romanos transmitiram à
Idade Média a lei de Justiniano, legaram aquilo que eles próprios nunca possuíram. Na verdade, Justiniano
não foi um legislador no sentido jacobino, nunca fez um albo nigrum. Deu autoridade às obras dos doutores e
dos sábios [...], compilou, eliminou ambiguidades e as contradições. Cf. Introdução ao Direito Comparado.
Trad. Véra Jacob de Fradera. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001. p. 246. 116
DAVID, René, op. cit., p. 31. 117
Ibidem. 118
Ibidem. 119
Ibidem. 120
Ibidem.
52
O sistema romano-germânico diferencia-se por isto do direito
inglês, onde o desenvolvimento da common law está ligado ao
progresso do poder real à existência de tribunais fortemente
centralizados. No continente europeu não se observa nada disto. O
sistema de direito romano-germânico vai, pelo contrário, afirmar-
se, nos séculos XII e XIII, numa época em que não só a Europa não
constitui uma unidade politica, mas em que a própria ideia de que
ela poderia ser diferente acaba por parecer quimérica: [...].
(destaques não são do original)
Em verdade, a retomada do direito romano para regulação da vida
social deve-se a “focos de cultura criados no Ocidente”, tendo as
universidades europeias um papel central nesse processo121
. Foram os
professores das escolas de direito que, buscando um direito a estudar diante
das dispersas fontes presentes na Idade Média, resgataram o direito romano de
Justiniano, conforme afirma RENÉ DAVID122
-123
:
[...] face à diversidade e à barbárie dos costumes locais, um direito
se oferecia ao estudo e à admiração de todos, tanto professores
como estudantes. Este direito era o direito romano. Direito fácil de
conhecer: as compilações de Justiniano expunham o seu conteúdo,
na língua que a igreja tinha conservado e vulgarizado e que era a de
todas as chancelarias e de todos os sábios: o latim. O direito
romano fora o de uma civilização brilhante, que se estendera do
Mediterrâneo até o Mar do Norte, de Bizâncio à Bretanha, e que
evocava no espírito dos contemporâneos, com nostalgia, a unidade
perdida da Cristandade.
Havia um grande obstáculo ao retorno do direito romano nessa altura da
história, com a dominação da religião cristã: a ideia de que, oriundo de uma
sociedade que não conheceu Cristo, estaria ele afastado da lei divina e da
121
Ibidem, p. 32. 122
Ibidem, p. 33. 123
No mesmo sentido, Andréia Costa Vieira afirma: “O Direito, enquanto ciência, também já era estudado,
mas lhe faltava um texto central, que pudesse trazer uma uniformidade e consistência em todas as escolas de
direito, como já acontecia com a teologia e a filosofia. [...] Assim como a teologia e a filosofia eram
estudadas a partir de interpretações dos seus principais escritos, o mesmo aconteceu com o estudo do direito.
Tudo girava em torno da explicação do Digesto e das outras compilações de Justiniano”. Op. cit., p. 35.
53
busca da caridade. Contudo, São Tomás de Aquino cuidou de “exorcizar” o
direito romano “pagão”, construindo o raciocínio de que “a filosofia pré-
cristã, assente na razão, era um grande medida conforme à lei divina”124
.
Com a utilização das compilações de Justiniano como base de todo o
ensino jurídico europeu, o direito romano atravessou fronteiras e ganhou a
maioria dos países da Europa125
.
É muito comum ouvir-se falar sobre a Escola dos Glosadores, surgida
no século XIII e cujo objetivo era atualizar o direito romano de Justiniano,
abandonando aquilo que parecia aplicável tão-somente na Antiguidade, como
a regulação da escravatura, o casamento e o testamento (esses dois últimos, na
Idade Média, restaram regulados pelo direito canônico). Mas o que realmente
revolucionou o direito romano foi a Escola dos Pós-Glosadores, no século
XIV126
. Segundo RENÉ DAVID127
:
[...] o direito romano é devidamente expurgado, submetido a
distorções; presta-se a desenvolvimentos inteiramente novos
(direito comercial, direito internacional privado), ao mesmo tempo
que é sistematizado na sua apresentação, de uma forma que
contrasta vivamente com o caos do Digesto e o espírito casuístico e
empírico dos jurisconsultos de Roma. Os juristas já não
procuram encontrar soluções romanas, mas preocupam-se
sobretudo em utilizar os textos do direito romano, para
introduzir e justificar regras adaptadas à sociedade do seu
tempo. Nos séculos XIV e XV, ensina-se, sob o nome de usus
modernus Pandectarum, um direito romano profundamente
deformado, especialmente sob a influência das concepções do
direito canônico; [...]
(destaques não são do original)
124
DAVID, René, op. cit., p. 34. 125
Ibidem, p. 31. 126
Ibidem. 127
Ibidem, p. 35.
54
É nessa época que surge a escola de “direito natural”128
, fundada na
razão, sob as luzes da filosofia Iluminista. A “deformação” do direito romano
operada desde os pós-glosadores, e que rouba a cena nos séculos XVII e
XVIII, consistia na sistematização das regras a partir de elementos racionais,
deixando-se de lado grande parte das antigas normas. Conforme afirma RENÉ
DAVID129
, “a escola do direito natural, [...] abandonando o método escolástico,
eleva a um alto grau a sistematização do direito, que ela concebe de modo
axiomático, eminentemente lógico, à imitação das ciências”.
É essa busca da racionalidade extrema, aproximada à lógica, que abrirá
o caminho para as codificações nos países do modelo civil law, dando origem
a uma infinidade de regras, especialmente voltadas ao direito privado130
,
diferentemente do modelo common law, cujo ponto forte é a regulação
voltada ao direito público (“as necessidades da administração e da polícia e as
liberdades dos indivíduos”)131
.
Embora esse “novo direito romano”, re-sistematizado pela escola do
direito natural, estivesse espalhado por toda a Europa, ele não tinha, ainda,
aptidão para ser imposto aos indivíduos. Estava o direito romano adstrito às
universidades, tendo, portanto, tão-somente um papel orientador aos
aplicadores do direito (juízes). De fato, havia uma grande “lacuna” a ser
preenchida por um conjunto ordenado de regras nessa época de renascimento,
em que se percebe o direito é o melhor meio para regulação da vida em
sociedade.
128
Essa é uma má denominação ao movimento, como aponta René David: “Recusando a concepção clássica
de uma ordem alicerçada na vontade divina e na própria natureza das coisas, relacionando todas as regras do
homem considerado como única realidade existente, a escola do direito natural, mal denominada, não vê mais
no direito um dado natural, mas uma obra da razão”. Op. cit., p. 36-37. 129
Ibidem, p. 36. 130
Ibidem, p. 37. 131
Ibidem, p. 38.
55
Diante disso, dois caminhos distintos foram tomados pelos países
europeus, diante das possibilidades que se apresentavam: (i) a “importação”
do direito romano das universidades; ou (ii) o desenvolvimento de um novo
direito, originário dos costumes existentes e das decisões proferidas em casos
concretos (jurisprudência). Qualquer semelhança não é mera coincidência, e é
claro que os países que optaram pela primeira via são que atualmente operam
no modelo civil law, ao contrário daqueles que seguiram pela segunda
alternativa e edificaram um novo modelo jurídico, hoje denominado de
common law. Na verdade, houve um contexto importante que induziu essas
decisões.
No caso da Inglaterra, originária do modelo jurídico da common law,
havia restrições à aplicação de um direito formado por normas gerais e
abstratas. Como explica RENÉ DAVID132
:
[...] as condições próprias da Inglaterra impediram que os tribunais
considerassem o direito como as universidades os convidavam a
considerá-lo; isto era impossível porque as jurisdições reais
(tribunais da common law) tinham apenas uma competência
restrita, ligada a processos que não lhes permitiam considerar o
direito, com toda a liberdade, sob o ângulo da moral e da política.
O direito romano era, talvez, em si mesmo, o melhor direito, aquele
que deveria ser aplicado, mas na Inglaterra era um direito que não
se podia aplicar.
Os países da Europa continental, por outro lado, aderiram à proposta de
sistematização do direito romano oferecida pelas universidades, grande parte
em razão do restabelecimento da ideia de segurança que isso transmitira. Com
a queda do Império Romano, o sentido de “ordem e progresso” havia se
132
Ibidem, p. 39.
56
perdido na Europa e o retorno da ideia de regulação das relações sociais
trazida pelo direito romano se encaixara perfeitamente nesse contexto133
.
Concretamente falando, a dominação do direito romano como direito
vigente se deu em razão de a administração da justiça, até o século XVI, ser
atribuída a juristas formados nas universidades onde se ensinava o direito
romano134
. É especificamente a partir daqui que o modelo romano-germânico
emerge nos países da Europa continental, influenciando, posteriormente, suas
colônias135
.
2.1.5 Nacionalização e Codificação do Direito nos Países da Europa e sua
Expansão às Colônias
O que se chama de “nacionalização” do Direito Romano decorre do
processo de “adaptação”, promovido pela Escola de Direito Natural, das
Compilações de Justiniano, mas sob os pilares do Humanismo e da filosofia
iluminista, que impulsionou a organização independente dos países da
Europa. Nas palavras de ANDRÉIA COSTA VIEIRA136
:
Dentro dessa filosofia, depositava-se grande confiança no poder
da razão humana para identificar, dentre as leis naturais, as
leis humanas a serem obedecidas por todos. [...]
Consequentemente, a organização do continente europeu em
países-nações fez com que as tradições legais de cada um desses
Estados passasse por um período de nacionalismo e tomasse o
lugar primordial que ocupava o Direito Civil Romano.
O movimento intelectual que se seguiu, conhecido como
Iluminismo, pregava que a lei natural era a lei da razão, e esta, nada
mais era que a lei que se originava de uma compreensão ampla das
133
Ibidem, p. 40-41. 134
Ibidem, p. 40. 135
Conforme explica René David: “A família romano-germânica tira daí a sua existência: ela é composta de
países que, numa medida variável, mas sempre importante, sofreram na sua maneira de conceber o direito, na
apresentação, nos métodos de investigação e, por vezes, nas próprias regras do seu direito, a influência do
ensino ministrado nas faculdades de direito destas universidades”. Op. cit., p. 39-40. 136
Op. cit., p. 42-43.
57
necessidades do ser humano dentro do seu habitat, como um ser
social. Grandes nomes [...] desenvolveram valiosos trabalhos
acadêmicos em defesa da Lei Natural e da Lei da Razão. Seus
trabalhos não objetivavam revolucionar o Direito Civil
Romano, mas, simples e grandiosamente, justificar e apoiar a
consolidação das leis nacionais através de seu maior suporte
jurídico: a lei natural.
(destaques não são do original)
JOHN HENRY MERRYMAN e ROGELIO PÉREZ-PERDOMO atribuem ao
surgimento da ideia de soberania o aparecimento do direito positivo (leis)
nacional137
:
A policêntrica, altamente descentralizada e ineficiente estrutura
política do mundo medieval fez sentir a necessidade de um sistema
de governo mais eficiente e centralizado – o Estado-nação
moderno. Tanto para trazer esse tipo de transformação como para
consolidar as conquistas da revolução, foi preciso encontrar uma
ideologia, e o nacionalismo - a ideologia do Estado – preencheu
esse espaço. E se o nacionalismo era a ideologia dominante, a
soberania era a premissa básica de sua expressão legal.
[...]
A lei de um Estado só poderia ser executada dentro de outro estado,
se este último permitisse sua aplicação [...]: nada fora do Estado
poderia tornar uma lei eficaz dentro dele, a não ser ele próprio.
Diante desse novo paradigma histórico os países passam a sentir falta
de um “texto-padrão nacional”. Isso os induziu ao movimento de codificação,
conforme descreve ANDRÉIA COSTA VIEIRA138
:
Via-se que a proliferação da necessidade de se ter um código que
reunisse todas as leis do país era rápida. Contudo, a noção de
137
Tradução livre do trecho: “The polycentric, highly decentralized, inefficient structure of the medieval
political world feel before the need for a more efficient, centralized governmental system - the modern
nation-state. Both to bring about this kind of transformation and to consolidate the accomplishments of the
revolution, an ideology was needed, and nationalism - the ideology of state - met this need. And if
nationalism was prevailing ideology, sovereignty was the basic premise of its legal expression. [...] The law
of one state could only be enforced within another state if the latter chose to permit their enforcement [...]:
nothing outside the state could make law effective or within the state without the state’s consent.” Op. cit., p.
20 e 23. 138
Op. cit., p. 44.
58
“código” era bastante diferente da noção que existia até então.
Nascia uma nova concepção do “código nacional”. Mas, o que
vinha a ser esse novo conceito de código? Watson define o termo
“código” como um trabalho escrito que reúne todas as principais
regras e leis que têm a intenção de se tornar autoridade em, pelo
menos, uma área inteira de direito, como, por exemplo, direito
penal, civil, processual civil etc. É exatamente nesse sentido que as
modernas codificações foram escritas [...].
Para chegar à produção de seus próprios Códigos, tinham os países dois
caminhos: simplesmente organizar as leis costumeiras ou, com o auxílio dos
princípios e métodos do direito romano, elaborar codificações mais completas
e aptas a regular situações futuras, conforme expõe RENÉ DAVID139
:
As compilações privadas ou oficiais apareceram em diversos países
a partir do século XIII até o século XVIII, com o fim de fixar o
conteúdo dos costumes regionais. Poder-se-á pensar, a priori, que
estas obras puderam, sob certos aspectos, limitar o progresso do
direito romano. Seu efeito, contudo, deste ponto de vista, foi
limitado. Existiam duas possibilidades. A primeira possibilidade
era que os redatores dos costumes se limitassem a fixar o conteúdo
dos costumes: nesta situação a sua obra deixaria transparecer tudo o
que o costume apresenta de lacunas, de arcaísmos e de
insuficiências. Nenhum costume constitui um sistema completo
necessário para regular as novas relações. O costume funciona, por
isto, como uma “lei particular”, como um corretivo a um sistema,
em que se torna necessário descobrir os princípios. [...] A segunda
possibilidade era que os redatores dos costumes se esforçassem por
os apresentarem como um sistema suficientemente completo,
podendo bastar em qualquer ocasião: eles apenas podiam consegui-
lo se levassem a cabo uma ampla obra de criação; esta, no entanto,
implicava, a maior parte das vezes, uma importação dos princípios
do direito romano. [...]
[...] A influência do direito romano aumenta à medida que se
consideram compilações mais recentes. A reforma dos costumes ou
dos direitos municipais na França, como na Alemanha, revelam-no
claramente.
139
Op. cit., p. 44-45.
59
Além da França e da Alemanha140
, o direito romano também se tornou
o direito aplicável, nacionalizado, na Itália141
, na Espanha e em Portugal142
e,
posteriormente, nas colônias espanholas, portuguesas e francesas143
-144
. O
modelo romano-germânico de direito foi incorporado naturalmente ao Brasil,
assim como às demais colônias portuguesas, espanholas, francesas e
holandesas da América145
“estabelecidas em países praticamente
desabitados”146
.
Foi na Alemanha que se passou a “dividir o direito nas classificações
modernas que temos hoje: direito público e direito privado, civil e criminal,
substantivo e objetivo etc.”147
, o que deve justificar o adjetivo “germânico” à
140
Afirma-se que “O imperador alemão considerava o Direito Civil Romano como seu. Isso se dava porque,
à época em que se fundou o Reichskammergericht, o antigo Império Romano já estava em declínio pela
invasão dos turcos otomanos, e ele – o imperador alemão – era, por direito, o único sucessor do “Santo
Imperador Romano”. Por isso, o Direito Civil Romano foi pacificamente incorporado na Alemanha [...]”.
VIEIRA, Andréa Costa, op. cit., p. 40. 141
Andréia Costa Vieira afirma que a Itália teria sido o primeiro país a colocar em prática do Direito
Romano, no século XV: “[...] os governantes das cidades italianas desenvolveram o hábito de enviar para os
jurisconsultos das universidades questões jurídicas que não tinham solução dentro dos seus direitos locais. Os
jurisconsultos das universidades respondiam às questões jurídicas com base em seus estudos do Corpus Iuris
Civilis”. Ibidem, p. 39. 142
DAVID, René, op. cit., p. 47. 143
Ibidem, p. 61. 144
É interessante notar que o estudo do direito comparado é uma reação ao processo de nacionalização dos
direitos, e que decorre do intenso relacionamento econômico, político e social entre os países a partir do
século XX (Ibidem, p. 2). É claro que a internacionalização pressupõe a nacionalização, ou seja, para que os
direitos passassem a se relacionar era necessário que, primeiro, se tornassem direito, o que decorreu
efetivamente do processo de codificação em nível nacional. 145
Ressalta René David que “um problema se levanta quanto a certos territórios da América, que outrora
estiveram sob o domínio espanhol ou francês, mas que hoje pertencem a conjuntos políticos em que a
common law é preponderante, ou estão submetidos à soberania ou influência dominante de um país da
common law. Poderá ser conservada, em tais circunstâncias, a tradição da ligação à família romano-
germânica? Deve-se responder negativamente quanto à Louisiana francesa [...]. As antigas possessões
espanholas, atualmente Estados dos Estados Unidos (Flórida, Califórnia, Novo-México, Arizona, Texas,
etc.), conservaram certas instituições do direito colonial anterior, mas seguem, atualmente, o regime de
direito da common law”. Ibidem, p. 62. 146
Ibidem, p. 61. 147
VIEIRA, Andréia Costa, op. cit., p. 44.
60
expressão moderna que se utiliza para nominar os países de civil law (direito
romano-germânico)148
.
A ideia de um legislador propriamente dito, capaz de tornar a aplicação
das regras do direito romano obrigatória, veio no século XVIII, quando se
rompe com a noção de soberania da vontade do Imperador149
:
A escola do direito natural, no século XVIII, rompe com esta
concepção tradicional. Ela recusa-se a reconhecer a onipotência do
soberano e a atribuir a qualidade de leis aos comandos emanados
da sua vontade arbitrária. Mas já transige ao ver na pessoa do
soberano um legislador; atribuiu-lhe a função de reformar o direito
de modo a rejeitar os erros do passado e a proclamar a autoridade
de regras plenamente conformes à razão. Sob o império destas
ideias, os países do continente europeu vão se orientar para
uma nova fórmula de codificação, muito diferente da fórmula
das compilações anteriores. A nova fórmula de codificação
conduz-nos ao período moderno da história dos direitos da
família romano-germânica: aquela em que a descoberta e o
desenvolvimento do direito vão ser entregues, principalmente,
ao legislador.
(destaques não são do original)
Esse reconhecimento de um órgão capaz de editar regras conforme a
razão, advinda da Escola de Direito Natural e das ideias do Iluminismo
renascentista, desembocou, ao final, na redução da ideia de direito ao direito
positivo (leis postas) e no surgimento da Escola dos Positivistas Jurídicos150
-
151.
148
A aderência do termo “germânico” à expressão “direito romano” também pode ser atribuída ao fato de que
a Escola Pandectista de juristas alemães, segundo René David, continuou “o trabalho secular que as
universidades tinham empreendido sobre os textos do direito romano”, elevando “os princípios românicos a
um grau de sistematização ainda não atingido”. Op. cit., p. 57. 149
Ibidem, p. 49-50. 150
“O positivismo jurídico ou juspositivismo é uma corrente da teoria do direito que procura explicar o
fenômeno jurídico a partir do estudo das normas positivas, ou seja, daquelas normas postas pela autoridade
soberana de determinada sociedade. Ao definir o direito, o positivismo identifica, portanto, o conceito de
direito com o direito efetivamente posto pelas autoridades que possuem o poder político de impor as normas
jurídicas. Segundo esta corrente de pensamento, os requisitos para verificar se uma norma pertence ou não a
um dado ordenamento jurídico têm natureza formal, vale dizer, independem de critérios de mérito externos
61
O professor TERCIO SAMPAIO FERRAZ JUNIOR, citando Helmut Coing
(Grundzüge der Rechtsphilosophie. Berlim: Walter de Gruyter, 1969, p. 25),
bem resume esse fim inglório da perspectiva jusnaturalista152
:
O século XIX, diz Coing (1969: 25), “representa ao mesmo
tempo a destruição e o triunfo do pensamento sistemático
legado pelo jusnaturalismo, o qual baseava toda sua força na
crença ilimitada na razão humana”. Os teóricos do direito
racional não estavam presos a nenhuma fonte positiva do direito,
embora a temporalidade da ação humana que criava e modificava o
direito não ficasse olvidada.
(destaques não são do original)
JOHN HENRY MERRYMAN e ROGELIO PÉREZ-PERDOMO descrevem na
seguinte forma essa evolução que resultou num embate científico entre as
duas escolas153
:
ao direito, decorrentes de outros sistemas normativos, como a moral, a ética ou a política. O direito é definido
com base em elementos empíricos e mutáveis com o tempo - é a tese do fato social, ou das fontes sociais ou
convencionalista. Nega-se, com isso, as teorias dualistas que admitem a existência de um direito natural ao
lado do direito positivo”. Cf. http://pt.wikipedia.org/wiki/Positivismo_Jur%C3%ADdico. Acesso em: 31 ago.
2013. Para uma abordagem mais profunda sobre a postura normativo-formalista do positivismo jurídico, ver:
BOBBIO, Norberto, op. cit., p. 131-146 [a parte II do livro trata do positivismo jurídico como forma de teoria
geral do direito (norma e valor, a coação, o ordenamento jurídico, a interpretação das normas e a
jurisprudência)]. Uma abordagem moderna pode ser encontrada em RODRIGUEZ, José Rodrigo. A
persistência do formalismo: uma crítica para além da separação de poderes. In: RODRIGUEZ, José Rodrigo;
COSTA, Carlos Eduardo Batalha da Silva e; BARBOSA, Samuel Rodrigues (org.). Nas Fronteiras do
Formalismo. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 157-192. 151
René David também reconhece, sutilmente, que o direito natural foi o impulso do direito positivo: “... a
escola de direito natural, mal denominada, não vê mais no direito um dado natural, mas uma obra da razão. A
razão humana, desde então, será, por consequência, o único guia; na época da filosofia das luzes, os juristas,
inspirando-se num ideal de universalismo, procurarão proclamar as regras de justiça de um direito universal,
imutável, comum a todos os tempos e a todos os povos. Estas concepções reforçarão a tendência para uma
amálgama dos costumes locais e regionais; a exaltação da razão, a nova função reconhecida à lei pelas
doutrinas voluntaristas, preparará a via da codificação”. Op. cit., p. 37. No mesmo sentido, Andréia Costa
Vieira: “No século XVIII, a filosofia iluminista e o direito natural abrem passagem à primeira onde de
codificações. [...]. Uma das filosofias jurídicas em expansão nessa época foi o positivismo jurídico. [...].
Assim, passa-se à fase das grandes codificações que coroa a racionalidade do positivismo jurídico. O Code
Civil francês, publicado em 1804, torna-se o símbolo do triunfo da Escola Positivista”. Op. cit., p. 58-59. 152
Op. cit., p. 72. 153
Tradução livre do trecho: “… natural law had lost its power to control the prince. Secular natural law,
while providing many of the ideas that were the intellectual fuel of the revolution, was ineffectual as a
control on the activity of state. [...] The perennial controversy between natural lawyers and legal positivists
(familiar to all students of legal philosophy) thus was decisively resolved, for operational purposes at least, in
favor of the positivists. Consequently, although this debate still goes on, it has a distinctly academic flavor
since the emergence of the modern state. [...]. The state tended to become the unique source of law, claiming
62
[...] [o] direito natural tinha perdido o seu poder de controlar o
príncipe. Embora o secular Direito Natural oferecesse muitas das
ideias que eram o combustível intelectual da revolução, ele era
ineficaz como um controle sobre a atividade do Estado. [...] A
controvérsia perene entre jusnaturalistas e positivistas
(familiar a todos os estudantes de Filosofia do Direito),
portanto, foi decisivamente resolvida, para fins operacionais,
pelo menos, em favor dos positivistas. Consequentemente,
embora esse debate ainda continue, tem somente um distinto sabor
acadêmico desde o surgimento do Estado moderno.
[...]
O Estado tendeu a tornar-se a única fonte de direito,
outorgando soberania a si mesmo, tanto interna como
internacionalmente. Assim, os sistemas jurídicos nacionais
começaram a substituir o jus commune154
.
[...].
Desta forma, a idade da soberania absoluta começou. A lei de
outras fontes, tais como o jus commune ou o costume, só era
aplicada se o príncipe assim o quisesse.
(destaques não são do original)
Além da redução da ideia de direito ao direito positivo para efeitos de
regulação das ações humanas, explica RENÉ DAVID que os países pertencentes
à família do civil law são, mais que isso, aqueles onde se passou a utilizar o
vocabulário, as categorias, conceitos e classificações do direito romano, na
época de seu renascimento, embora se possa verificar que o material de base
originava-se de fontes locais155
.
sovereignty for itself both internally and internationally. Thus national legal systems began to replace the jus
commune, [...]. So the age of absolute sovereignty began. Law from other sources, such as the jus commune
or established custom, was applied because the prince so willed it”. Op. cit., p. 20-21. 154
O termo “jus commune” refere-se, neste trecho, ao seu sentido histórico, ou seja, ao direito romano que,
com toda a sua evolução, serviu de base para a nacionalização dos direitos dos Estados ocidentais. Conforme
explica a biblioteca mundial “Wikipedia”, “the ius commune, in its historical meaning, is commonly thought
of as a combination of canon law and Roman law which formed the basis of a common system of legal
thought in Western Europe from the rediscovery and reception of Justinian’s Digest in the 12th and 13th
centuries”. http://en.wikipedia.org/wiki/Jus_commune. Acesso em: 31 ago. 2013. 155
“O renascimento dos estudos de direito romano tem um segundo significado: que o vocabulário do direito,
as categorias em que as regras serão ordenadas, os conceitos que se utilizarão, serão (sic) o vocabulário, as
categorias, os conceitos da ciência dos romanistas. Divisão do direito público e do direito privado,
classificação dos direitos em reais e pessoais, noções de usufruto, de servidão, de dolo, de prescrição, de
mandato, de contrato de trabalho, tornam-se divisões e noções sobre as quais os juristas raciocinam, visto que
são formados pela escola de direito romano. O renascimento dos estudos de direito romano é o principal
63
Atualmente, incluem-se os seguintes sistemas jurídicos como
descendentes desse fenômeno histórico descrito até aqui156
: França,
Alemanha, Bélgica, Holanda, Itália, Espanha, Portugal, Suíça, Áustria,
Turquia, países do norte da África, América Latina, Estado da Louisiana,
província do Quebec, Japão, Indonésia e Filipinas157
.
2.2 Análise do Modelo Civil Law como Direito Posto (Positivo): evolução
do Direito Romano, formação das normas gerais e abstratas, codificação
e relação entre regra e ato de aplicação
É importante dissolver a ambiguidade que a utilização dos termos civil
law e common law pode ensejar quando adjetivam determinado sistema
jurídico. A afirmação de que determinado país ou sistema jurídico enquadra-
se no conjunto de civil law ou common law pode querer se referir ao direito
positivo158
(organizado sob a forma de normas gerais e abstratas,
preferencialmente codificadas) ou à Ciência do Direito, neste último caso
especialmente pela utilização das mesmas formas de classificação daquele
direito positivo (direito público e direito privado) e da identificação e
hierarquização das fontes do direito (lei, costumes, jurisprudência, doutrina e
princípios gerais do direito, classificáveis como primárias ou secundárias)159
.
fenômeno que marca o nascimento da família de direito romano-germânica. Os países que pertencem a esta
família são, na história, aqueles onde os juristas e práticos do direito, quer tenham ou não adquirido a sua
formação nas universidades, utilizam classificações, conceitos e modos de argumentação dos romanistas”.
Op. cit., p. 41. 156
Ibidem, p. 25; VIEIRA, Andréia Costa, op. cit., p. 53. 157
Após a queda da União Soviética, muitos países da Europa Oriental estão se espelhando nos Códigos da
Europa Ocidental para a construção de seus sistemas jurídicos. Cf. VIEIRA, Andréia Costa, op. cit., p. 53. 158
A expressão “direito positivo” está sendo utilizada, neste trecho, em sua noção mais ordinária, ou seja,
como o conjunto de enunciados prescritivos de caráter geral e abstrato, excluídas as normas individuais e
concretas. É claro que partindo do pressuposto de que integram o sistema jurídico todas as normas jurídicas
válidas, independentemente de serem gerais, abstratas, individuais ou concretas, o direito positivo está
referido neste trecho como a parte pelo todo (metonímia). 159
É possível notar essa ambiguidade em todas as obras que descrevem esses modelos de direito e que foram
analisadas durante este trabalho. Como exemplo, notem-se os seguintes trechos extraídos da grandiosa obra
de René David:
64
Neste item trataremos das características do modelo civil law voltadas
ao direito posto. No próximo item, trataremos daquelas relacionadas à Ciência
do Direito, especialmente no que se refere à hierarquização das fontes do
direito.
A característica de leis escritas e codificadas está ligada à ideia de
certeza do direito, mas não no sentido de “segurança jurídica” que utilizamos
modernamente, e, sim, no sentido de se poder encontrar, literalmente, as
regras que regiam direitos e deveres. É neste sentido a afirmação de ANDRÉ
TUNC, descrita por ANDRÉIA COSTA VIEIRA160
:
Perquirindo a razão de, na França do final do século XVIII,
proceder-se à codificação das leis, André Tunc chega à conclusão
de que o motivo era simples: as leis deveriam ser claras e escritas
para que todo e qualquer cidadão pudesse tomar conhecimento dos
seus direitos e deveres.
No processo histórico de implementação dos direitos nacionais, a partir
da codificação de regras locais e oriundas do direito romano, já se podia
perceber pretensão de criar um corpo normativo capaz de dar conta de todas
as soluções futuras, conforme expõe RENÉ DAVID161
:
Existiam duas possibilidades. A primeira possibilidade era que os
redatores dos costumes se limitassem a fixar o conteúdo dos
costumes: nesta situação a sua obra deixaria transparecer tudo o
“A primeira família de direitos que merece nossa atenção é a família de direito romano-germânica. Esta
família agrupa os países nos quais a ciência do direito se formou sobre a base do direito romano. As regras de
direito são concebidas nestes países como sendo regras de conduta, estreitamente ligadas a preocupações de
justiça e de moral. Determinar quais devem ser estas regras é a tarefa essencial da ciência do direito; [...]”.
Op. cit., p. 17-18.
“Uma segunda família de direito é a de common law, comportando o direito da Inglaterra e os direitos que se
modelaram sobre o direito inglês. As características tradicionais da common law são muito diferentes das da
família de direito romano-germânica. A common law foi formada por juízes, que tinham de resolver litígios
particulares, e hoje ainda é portadora, de forma inequívoca, da marca desta origem. A regra de direito da
common law, menos abstrata que a regra de direito da família romano-germânica, é uma regra que visa dar
solução a um processo, e não formular uma regra geral de conduta para o futuro”. Ibidem, p. 19. 160
Op. cit., p. 19. 161
Ibidem, p. 44-45.
65
que o costume apresenta de lacunas, de arcaísmos e de
insuficiências. Nenhum costume constitui um sistema completo
necessário para regular as novas relações. O costume funciona, por
isto, como uma “lei particular”, como um corretivo a um sistema,
em que se torna necessário descobrir os princípios. [...] A segunda
possibilidade era que os redatores dos costumes se esforçassem
por os apresentarem como um sistema suficientemente
completo, podendo bastar em qualquer ocasião: eles apenas
podiam consegui-lo se levassem a cabo uma ampla obra de criação;
esta, no entanto, implicava, a maior parte das vezes, uma
importação dos princípios do direito romano. [...]
(destaques não são do original)
É conveniente notar como a ideia de suficiência das normas gerais e
abstratas para regulação de condutas futuras vem arraigada desde a
nacionalização dos direitos a partir da utilização direito romano.
Um fator interessante que pode ser destacado depois dessa longa
descrição sobre a evolução do modelo romano-germânico, é que,
parcialmente, a origem da codificação são os casos concretos: num processo
de abstração / generalização, escreveram-se os textos dos Códigos a partir da
observação de diversas ocorrências passadas (costumes, interpretação dos
prudentes). Os Códigos surgiram parcialmente da sistematização, pela
aplicação do método indutivo, das normas individuais e concretas emanadas
pelos jurisconsultos romanos162
-163
. Num primeiro momento, portanto,
transformam-se decisões casuísticas em preceitos gerais e abstratos (pela
utilização do método indutivo) para, tempos depois, mediante a contingência 162
Conforme afirmam John Henry Merryman e Rogelio Pérez-Perdomo: “Justinian was concerned about the
great number, length, and variety of commentaries and treatises written by legal scholars (called
jurisconsults) He sought both to abolish the authority of all but the greatest of the jurisconsults of the
classical period ad to make it unnecessary for any more commentaries or treatises to be written”. Op. cit., p.
7. 163
Jean Cruet coloca expressamente esse papel criativo da jurisprudência no direito romano como forma de
complementar as leis, o que torna ainda mais instigante a crítica da ideia de primazia da lei que se
desenvolveu mitologicamente desde então na Ciência do Direito nos países de civil law: “A obscuridade da
lei das XII Táboas (sic), indecifrável hieróglifo aos olhos do vulgo, a concisa simplicidade das leis votadas
pelo povo sobre certos pontos que haviam sublevado o interesse direto da multidão, tornava particularmente
fácil essa interpretação criadora, o texto, em suma, dava simplesmente uma orientação à jurisprudência”. Cf.
A Vida do Direito e a Inutilidade das Leis. 3ª ed. Leme: Edijur, 2008. p. 33.
66
do processo de aplicação das regras, voltar-se ao método dedutivo, do geral ao
específico, levando questões controversas a um julgador.
De fato, é possível perceber os constantes, embora sutis, embates entre
a rigidez normativa, característica das regras generalizadas e escritas, e a
adequação dessas normas aos casos concretos no processo de aplicação. Essa
adequação ora se justifica pelo caráter ultrapassado das regras codificadas
(Lei das XII Tábuas ou as Compilações de Justiniano), ora pela busca
(implícita ou explícita) da justiça. Por uma ou outra razão, o fato é que desde
que aquela época, e como não poderia ser diferente, o direito positivado já
deixava à mostra os sinais de sua limitação diante da contingência do
processo de aplicação.
2.3 Análise do Modelo Civil Law como Ciência do Direito: a ideia da lei
como fonte primária e da jurisprudência como fonte secundária do
direito
É claro que os direitos nacionais modernos dos países europeus e suas
antigas colônias têm, cada qual, suas peculiaridades. Contudo, há grande
semelhança tanto quanto à estrutura do direito positivo164
como em relação à
Ciência que fala sobre ele, especialmente em razão de toda a influência do
direito romano sobre tais países165
, e que justifica seu agrupamento na
chamada família de “direito romano-germânico” ou civil law.
164
A expressão “direito positivo” está sendo utilizada, neste trecho, em sua noção mais ordinária, ou seja,
como o conjunto de enunciados prescritivos de caráter geral e abstrato, excluídas as normas individuais e
concretas. É claro que partindo do pressuposto de que integram o sistema jurídico todas as normas jurídicas
válidas, independentemente de serem gerais, abstratas, individuais ou concretas, o direito positivo está
referido neste trecho como a parte pelo todo (metonímia). 165
René David afirma: “Em todos os países da família romano-germânica a ciência agrupa as regras do
direito nas mesmas grandes categorias. Por toda a parte se encontra a mesma grande divisão básica de direito
público e de direito privado. [...]. No direito público como no direito privado encontram-se, em todos os
países da família romano-germânica, os mesmos ramos fundamentais: direito constitucional, direito
administrativo, direito internacional público, direito criminal, direito processual, direito civil e direito
67
A principal semelhança que destacaremos neste item está arrigada na
noção construída pela Ciência do Direito que descreve essa família (civil law),
de que existem basicamente cinco fontes do direito166
(costumes, leis,
jurisprudência, doutrina e os princípios gerais), sendo a lei a fonte primária e
as demais, incluindo a jurisprudência, fontes secundárias.
Se atentarmos ao item anterior, sobre as origens do modelo civil law, ou
seja, sobre a evolução do direito romano, notaremos que grande parte da
descrição é voltada à identificação das fontes do direito. A acepção utilizada
naquela descrição evolutiva não guarda qualquer precisão, servindo tão-
somente para denotar o que, em determinada época, era utilizado para
ordenação da sociedade.
A ideia do “costume” como fonte do direito vem desde o período
anterior à era Cristã e, por ter sido uma das primeiras formas de ordenação da
vida social, ganhou uma importância valorativa que parece ser a razão para a
sua manutenção, modernamente, entre o rol das fontes do direito167
, de forma
relativamente inquestionável168
.
Contudo, não é nosso objetivo, nem neste item e nem neste trabalho,
trabalhar a noção das fontes do direito (quantas são, em que acepção o termo
comercial, direito do trabalho, etc. A mesma correspondência nas categorias recebidas encontra-se, a um
nível inferior, nas instituições e nos conceitos, manifestando-se em particular no fato de, regra geral,
nenhuma dificuldade maior se sentir na tradução do francês para o alemão, espanhol, italiano, holandês,
grego ou português, das palavras do vocabulário jurídico. Esta semelhança dos direitos oferece, àquele que
conhece um deles, grande facilidade para a compreensão dos outros direitos. As regras fundamentais
consagradas nesses países podem diferir; em todo caso, nós sabemos imediatamente do que se trata; [...]. A
explicação desta semelhança já foi dada. Deve-se ao fato da ciência do direito, em toda a Europa continental,
ter sido fundada durante séculos sobre os mesmos ensinamentos, com base no direito romano [...]. Op. cit., p.
70. 166
Além das fontes, as semelhanças das Ciências do Direito nos países de civil law podem ser encontradas na
divisão entre direito público e direito privado, direitos reais e pessoais, dentre outras. Ibidem, p. 41. 167
Washington de Barros Monteiro coloca o costume ao lado da lei, como fonte imediata do direito. Curso de
Direito Civil (parte geral). São Paulo: Saraiva, 1997. p. 12. 168
Sobre a falta de avaliação crítica para designar as fontes do direito no Brasil, ver MOUSSALLEM, Tárek
Moysés. Fontes do Direito Tributário. 2ª ed. São Paulo: Noeses, 2006. p. 106-107.
68
é utilizado nos diversos manuais e livros de teoria geral do direito, ou qual a
origem de até hoje manter-se determinada categoria no rol das fontes do
direito). O nosso grande objetivo é trabalhar a relação entre a lei e a
jurisprudência, colocadas de forma hierárquica pela Ciência do Direito que
descreve o modelo civil law.
RENÉ DAVID, em sua grande obra sobre direito comparado, dedica um
dos três títulos da Primeira Parte (“A Família Romano-Germânica”) só ao
estudo das fontes do direito (os outros dois tratam da “Formação Histórica do
Sistema” e da “Estrutura dos Direitos”). Nesse Título, que é o que encerra a
descrição do modelo civil law, o referido autor expõe logo no início169
:
A lei, considerada lato sensu, é aparentemente, nos nossos dias, a
fonte primordial, quase exclusiva, do direito nos países da família
romano-germânica. Todos estes países surgem como sendo países
de direito escrito; os juristas procuram, antes de tudo, descobrir
regras e soluções do direito, estribando-se nos textos legislativos ou
regulamentares emanados do parlamento ou das autoridades
governamentais ou administrativas. A função dos juristas parece
ser fundamentalmente a de descobrir, com auxílio de vários
processos de interpretação, a solução que em cada caso
corresponde à vontade do legislador.
As outras fontes aparecem, nesta análise, ocupando uma posição
subordinada e de importância muito reduzida em confronto com a
fonte por excelência do direito, constituída pela lei.
(destaques não são do original)
Nos trechos seguintes, RENÉ DAVID desmistifica a ideia de que a lei
seria fonte primária do direito, mas não o faz para atribuir valor à
jurisprudência e, sim, para valorizar a corrente teórica que concebe o direito
como algo muito maior que a lei170
:
169
Op. cit., p. 87. Embora o autor reconheça a lei em sentido amplo como fonte primária, mais à frente (nas
páginas 98 a 100) expressa a ideia de que os atos infralegais têm que ter a função de somente complementar a
lei em sentido estrito e não podem ir além dessa. 170
Ibidem, p. 87-88.
69
76. Teoria e Realidade. [...]
Esta análise, por mais coerente que seja, está de fato muito distante
da realidade. A doutrina na qual se resume esta descrição bem pode
ter sido o ideal de uma certa escola de pensamento, dominante no
século XIX, na França. Contudo, ela nunca foi plenamente aceita
na prática e hoje reconhece-se na própria teoria, cada vez mais
claramente, que a soberania absoluta da lei é, nos países da família
romano-germânica, uma ficção; há lugar, ao lado da lei, para outras
fontes muito importantes do direito.
Confundir o direito e a lei, ver na lei a fonte exclusiva do direito é
contrário a toda a tradição romano-germânica. [...] A escola do
direito natural, a partir do século XVII, apelou para que o
legislador sancionasse, com a sua autoridade, as regras justas
elaboradas a partir dos postulados da natureza e da razão; mas,
preconizando uma nova técnica, a da codificação, ela jamais
pretendeu afirmar que direito e lei devam ser confundidos, e que o
simples estudo das leis possa dar-nos a conhecer o que é o direito.
Ao final da introdução do tema das fontes do direito nos países de civil
law, RENÉ DAVID atém-se ao “plano classicamente seguido” e passa a
examinar “o papel da lei, do costume, da jurisprudência, da doutrina e de
certos princípios gerais”171
.
ANDRÉIA COSTA VIEIRA segue praticamente o mesmo raciocínio. Após
a descrição da evolução histórica do modelo romano-germânico, dedica um
capítulo ao estudo das fontes do direito, subdividido em exatos cinco itens:
lei, costume, jurisprudência, doutrina e princípios gerais172
.
Independente da quantidade de fontes elencadas e da multiplicidade de
sentidos em que essa expressão é utilizada, o que nos interessa primariamente
neste trabalho é a concepção hierárquica e específica entre a lei (superior e,
por isso, primária) e a jurisprudência (inferior e, por isso, secundária)
utilizada para descrição do modelo civil law.
171
Ibidem, p. 91. 172
Op. cit., p. 62-71.
70
Dogmaticamente, como um mito incontrastável, a lei aparece em
posição superior relativamente à jurisprudência. Ao desenvolver a ideia de
regra de direito nos países de civil law, RENÉ DAVID expõe como descabida a
forma de se pensar a decisão judicial como tal e classifica as normas gerais e
abstratas como intermediárias entre o princípios e a decisão específica de um
caso concreto173
:
70. A elaboração da regra de direito. [...]
A concepção de regra de direito admitida na família romano-
germânica é a base fundamental da codificação, tal como se
concebe na Europa continental. Não se pode elaborar um
verdadeiro código, segundo os juristas destes países, se virmos
uma regra de direito em cada decisão proferida pelo juiz se nos
colocarmos ao nível das decisões judiciárias. Um código, na
concepção romano-germânica, não deve procurar a solução de
todas as questões concretas que se apresentarão na prática; a sua
função é formular regras, suficientemente gerais, ordenadas em
sistema, que se tornem acessíveis à descoberta e ao conhecimento,
para que destas regras, por um trabalho tão simples quanto
possível, juízes e cidadãos deduzam facilmente o modo como tal ou
tal dificuldade concreta deve ser resolvida.
71. Generalidade ótima da regra. A regra de direito romano-
germânico situa-se a meio caminho entre a decisão do litígio,
considerada como uma aplicação concreta da regra, e os princípios
dotados de uma elevada generalidade, de que pode, ela própria, ser
considerada como uma aplicação.
(destaques não são do original)
Esse último trecho denota a ideia predominante de que a lei, nos países
de civil law, é (ou deveria ser) suficiente para orientar todos seus
destinatários, sejam eles juízes ou cidadãos. Em outros termos, diante de uma
situação concreta de dúvida, a lei seria (ou deveria ser) apta a resolvê-la,
direcionando a conduta do indivíduo174
.
173
Op. cit., p. 80-81. 174
Essa concepção está, em última análise, fincada na noção mais ampla e valorativa da forma de se alcançar
a justiça, quando lemos as obras de direito comparado. No modelo civil law, “a justiça é alcançada pela
observação da lei escrita. Para os que perfilham a família da Common Law, a justiça é alcançada,
71
Esse também passou a ser o traço distintivo entre os países de civil law
e os países de common law. Afirmam os comparatistas que a lei e a
jurisprudência teriam funções muito diferentes, até díspares, nos países
herdeiros dos modelos civil e common law175
:
Dirijamos agora a nossa atenção sobre as fontes formais do direito.
Uma função muito diferente é atribuída à lei, ao costume, à
jurisprudência, a doutrina, à equidade nos diferentes sistemas.
Quando se estuda um direito estrangeiro, é necessário saber que as
ideias no nosso país, referentes às relações que existem entre estas
diferentes fontes possíveis das regras jurídicas, não são as mesmas
em todos os países e que os métodos de raciocínio, aplicados pelos
juristas para a descoberta das regras de direito e o desenvolvimento
do corpo do direito, podem ser, por consequência, variados.
Determinado direito pode ter um caráter religioso ou sagrado, e
nenhum legislador pode modificar as suas regras. Num outro, a lei
apenas constitui o modelo, entendendo-se como natural a sua
derrogação pelo costume. Em outros, ainda, os acórdãos da
jurisprudência têm reconhecida uma autoridade que
ultrapassa o círculo daqueles que tomaram parte no processo”
[...]. No âmbito da família romano-germânica, se procurarem
descobrir as soluções de justiça do direito pelo recurso a uma
técnica que tem como ponto de partida a lei, enquanto que na
família de common law se pretende o mesmo resultado, utilizando
uma técnica que toma prioritariamente em consideração as
decisões judiciárias.
(destaques não são do original).
A ideia da lei como fonte primária do direito pode ser atribuída, da
perspectiva histórico-evolutiva deste Capítulo, à ideia de soberania nacional e
tripartição dos poderes, predominante na Europa renascentista pós-
prioritariamente, pelos recursos dados ao judiciário no julgamento de casos concretos”. Cf. VIEIRA, Andréia
Costa, op. cit., p. 16. 175
DAVID, René, op. cit., p. 12 e 91. No mesmo sentido, Andréia Costa Vieira afirma que “Na família do
sistema Romano-Germânico, a jurisprudência tem o papel de fonte secundária do direito. Se a lei não for
expressa, ou se for omissa, pode a interpretação judiciária suprir-lhe a lacuna ou obscuridade. [...] A
jurisprudência não é fonte que vincula. [...] Qualquer juiz, de qualquer instância, pode julgar de forma diversa
do que já foi decidido. Nada o impede de fazê-lo. É exatamente essa liberdade de decisão, essa
desvinculação, que caracteriza o sistema jurisprudencial dos países do sistema Romano-Germânico. [...] Essa
posição secundária, não vinculante, da jurisprudência é traço distintivo da família do sistema Romano-
Germânico. (destaques não são do original). Op. cit., p. 67-68.
72
medieval176
, conforme descrevem JOHN HENRY MERRYMAN e ROGELIO
PEREZ-PERDOMO177
:
Assim, o positivismo estatal, expressado no dogma da soberania
absoluta, interna e externa, do Estado, levou a um monopólio
estatal do processo legislativo. A revolucionária ênfase na estrita
separação de poderes exigiu que só órgãos específicos e no âmbito
do Estado tivessem o direito de fazer a lei. [...] Considerando que
o Poder Legislativo é o único eleito diretamente e que
representa a vontade popular, ele seria o órgão habilitado a
exclusivamente produzir leis.
(destaques não são do original)
A partir dessa concepção de que o único órgão a quem deveria ser
atribuída a prerrogativa exclusiva de legislar era o Poder Legislativo (dada
sua capacidade de expressar a vontade popular por meio da
representatividade), é que ficou arraigada ao modelo civil law a noção da lei
como fonte primária do direito.
Seria totalmente inconsistente com a teoria da separação dos poderes e
com a ideia de soberania popular admitir-se que os juízes criam regras.
Portanto, “a reposta básica, e que é a essência do positivismo jurídico, é que
somente as regras produzidas pelo Poder Legislativo podem ser consideradas
leis”178
, ou seja, somente elas deveriam ser capazes de regular a conduta dos
indivíduos e, consequentemente, de servir como fundamento para tomada de
decisões judiciais.
176
Diante da perspectiva humanista do Renascimento e do Iluminismo, “o jurista torna-se servo da lei porque
é antes de mais nada um servo da razão, e esta está plasmada na lei”. Ibidem, p. 60. 177
Tradução livre do trecho: “Thus, state positivism, as expressed in the dogma of the absolute external and
internal sovereignty of the state, led to a state monopoly on lawmaking. Revolutionary emphasis on the strict
separation of powers demanded that only specifically designated organs of state be entitled to make law. [..]
As the only representative, directly elected branch of the government, the legislature alone could respond to
the popular will”. Op. cit., p. 23. 178
Cf. John Henry Merryman e Rogelio Pérez-Perdomo: “[…] is obviously inconsistent with the separation
of powers as formulated in civil law countries, and is therefore rejected by the civil law tradition. Judicial
decisions are not law. What, then, was law? The basic answer, which is the essence of legislative positivism,
is that only statutes enacted by the legislation power could be law”. Op. cit., p. 23.
73
Ainda que considerada a noção mais moderna de exercício de função
legislativa atípica pelo Poder Executivo, ela só era admitida, como ainda se
diz, nos limites da lei179
:
No século XIX o direito e a lei tornaram-se sinônimos de
legislação. O legislativo pode delegar parte desse poder ao
executivo, e dar aos órgãos administrativos o poder de emitir
regulamentos com força de lei, mas tal “lei delegada” somente seria
eficaz se dentro dos limites previstos na legislação delegada. O
poder legislativo era supremo.
O resultado disso, conforme continuam os últimos referidos autores, é
que somente as regras gerais e abstratas (leis em sentido estrito e em sentido
amplo) produzidas pelo Poder Legislativo e pelo Poder Executivo (neste
último caso, desde que dentro dos limites da lei em sentido estrito) seriam
aceitas como fontes do direito180
, no sentido de fonte primária (como
determinante para regulação de condutas). É para manter esse dogma que
ingenuamente se afirma181
:
[...] no sistema legal Romano-Germânico, ao juiz cabe a função de
interpretar e aplicar a lei, sendo esta existente; nunca a de modifica-
la ou reinventá-la. Se assim o fizesse, estaria usurpando a função
do legislativo, e nem mesmo o princípio da equidade o autorizaria a
tanto.
(destaques não são do original)
Dizer que a jurisprudência é fonte secundária significa afirmar que ela
não tem aptidão de regular primariamente as condutas gerais e futuras, já que
esta prerrogativa precisa estar reservada à lei (ainda que em sentido amplo).
179
Tradução livre do trecho “[…] in the nineteenth century law became synonymous with legislature. The
legislature could delegate some of that power to the executive, and it could give administrative agencies the
power to issue regulations having the force of law, but such “delegated legislation” was in theory effective
only within the limits provided in the delegating legislation. The legislative power was supreme”. Ibidem, p.
24. 180
Ibidem. 181
Cf. VIEIRA, Andréia Costa, op. cit., p. 32.
74
A concepção de regra de direito como unicamente aquela emanada do
Poder Legislativo (ou do Poder Executivo, nos limites de sua competência
formal e material) fez coerentemente surgir a noção de que aos juízes não é
dado o poder de ir além da lei. Segundo essa concepção, o juiz somente
interpreta e aplica a lei e, assim, seria contraditório atribuir função legislativa
a ele.
A partir desse contexto e por essas razões é que até os livros mais
modernos de teoria do direito – ou mesmo os dogmáticos, elencam as fontes
do direito de forma hierarquizada, colocando a lei como a primária, ou, no
dizer de WASHINGTON DE BARROS MONTEIRO, como “fonte direta e imediata”,
i.é, “que, por si só, pela sua própria força”, é “suficiente para gerar a regra
jurídica” 182
.
182
Op. cit., p. 12.
3 NORMAS GERAIS E ABSTRATAS E FALIBILIDADE INERENTE
AO DIREITO POSITIVO: CONTEXTUALIZANDO A AFIRMAÇÃO
DA CIÊNCIA DO DIREITO NO SENTIDO DE QUE A LEI É FONTE
PRIMÁRIA PARA REGULAÇÃO DE CONDUTAS NOS PAÍSES DE
CIVIL LAW
A descrição feita no Capítulo 2, especialmente nos itens 2.2 e 2.3,
denota que duas são as principais características do civil law: (i) organização
de normas gerais e abstratas em forma de Códigos; (ii) prevalência das
normas gerais e abstratas sobre as decisões judiciais para regulação geral de
condutas, de acordo com a hierarquização das fontes do direito183
.
Embora a primeira característica se refira ao que chamamos de direito
positivo184
e a segunda ao que chamamos de Ciência do Direito, essa distinção
é metodológica e, portanto, há uma estreita relação entre ambas. A preferência
pelas normas gerais e abstratas, escritas e codificadas, como forma de
regulação social originária da sociedade romana, fez com que a lei (em
sentido amplo185
) assumisse, para a Ciência do Direito – inclusive
modernamente – um papel primário.
183
Ao final deste Capítulo trataremos das acepções de “fontes do direito”. Até lá, permaneceremos utilizando
esse termo tal qual colocado historicamente pela Ciência do Direito nos países de civil law: denotando tanto
processo de produção como produto e sem delimitação do sentido de “direito”. 184
A expressão “direito positivo” está sendo utilizada tanto no título deste Capítulo quanto neste trecho em
sua noção mais ordinária, ou seja, como o conjunto de enunciados prescritivos de caráter geral e abstrato,
excluídas as normas individuais e concretas. É claro que partindo do pressuposto de que integram o sistema
jurídico todas as normas jurídicas válidas, independentemente de serem gerais, abstratas, individuais ou
concretas, o direito positivo está referido neste trecho como a parte pelo todo (metonímia). 185
Refiro-me aqui à lei em sentido amplo para excluir a ideia de que a lei é fonte primária tão-só por conta do
princípio da separação dos poderes. Embora essa seja uma constatação relevantíssima da causa da
primariedade da lei nos países de civil law, a teoria da separação dos poderes e a ideia do órgão legislativo
como representante do povo são fenômenos recentes se comparados à tradição da utilização de normas gerais
e abstratas para regulação de condutas na sociedade.
76
Neste Capítulo pretendemos fazer uma análise mais crítica e menos
descritiva dessas características, sob o ponto de vista do que chamamos de
falibilidade inerente ao direito positivo.
Os teóricos do modelo civil law reconhecem os problemas e a
dificuldade de regular condutas a partir da produção de leis (normas gerais e
abstratas), embora não avancem para um diagnóstico mais preciso dessa
dificuldade, tampouco para uma possível solução do problema. É neste
sentido a afirmação de RENÉ DAVID186
:
A censura dirigida às novas leis, nos diversos países, de
procederem de uma má técnica legislativa, advém em grande parte
do fato do legislador, nas novas matérias em que intervém, não
saber fixar exatamente a regra de direito ao nível em que desejamos
vê-la. Com frequência, ele entrega-se a uma casuística exagerada,
frequentemente agravada pela regulamentação administrativa;
outras vezes, pelo contrário, ele exprime-se em fórmulas muito
gerais, e, então, não se saberá como deve ser a lei compreendida no
momento em que ela terá de ser “interpretada”. As críticas dirigidas
à má técnica legislativa têm certamente um fundamento. Convém,
contudo, considerar que a tarefa de legislar é tecnicamente muito
difícil e que foram necessários séculos de esforços doutrinais para
chegar às fórmulas dos códigos que hoje, sem dúvida, nos parecem
muito simples.
(destaque não são do original)
Contudo, diferentemente do que conclui o referido autor, a má
qualidade da legislação não advém só das dificuldades relacionadas à
inovação da matéria legislada ou ao grau de generalização das regras;
tampouco serão tais problemas resolvidos ao longo do desenvolvimento da
civilização, como sugere ao final. É neste sentido que afirmamos ser o direito
positivo “falível”: pois os problemas que apontaremos são, para além
186
Grandes Sistemas do Direito Contemporâneo, cit., p. 82.
77
daqueles usualmente identificados, inerentes (e, portanto, eternos)187
, o que
sugere uma análise crítica e a recolocação da afirmação de que a lei seria
fonte primária nos países de civil law.
A afirmação de que o direito positivo é falível e, consequentemente,
que é problemática a ideia de um modelo de direito baseado unicamente nas
normas gerais e abstratas como fonte primária (civil law), decorre de duas
premissas, mas leva a uma conclusão importante: a de que a sua falibilidade
tem impacto direito na regulação jurídica de condutas e, portanto, na garantia
da legalidade tributária188
e do Estado de Direito189
.
As duas premissas (ou causas) desse fenômeno são edificadas (i) a
partir da ideia de que o direito positivo é construído em camada de linguagem
e, portanto, padece de problemas semânticos incontornáveis; e, além disso,
(ii) considerando que as normas gerais e abstratas são produzidas de acordo
com as necessidades e o contexto presente, mas para regular condutas futuras.
Esses são os dois pontos que se pretende trabalhar neste Capítulo.
Para desenvolver essas duas premissas, utilizaremos o paradigma da
filosofia da linguagem e as teorias propostas por duas obras específicas que
tratam dos problemas das limitações do direito positivo: Playing by the Rules
187
A noção presente de “falibilidade” se aproxima muito do que a doutrina estrangeira chama de
defeasibility, traduzido para o português como derrotabilidade. Neste sentido ver: VASCONCELLOS,
Fernando Andreoni. Hermenêutica Jurídica e Derrotabilidade. Curitiba: Juruá, 2010. p. 53-66. 188
A expressão “legalidade tributária” denota, para os fins deste trabalho, o conjunto de enunciados
prescritivos (sejam eles oriundos de regras gerais e abstratas ou de regras individuais e concretas) apto a
determinar a obrigação de pagar ou não determinado tributo. 189
Relembremos aqui que, embora haja um intenso debate sobre o conceito de “Estado de Direito”, adotamos
neste trabalho o conceito jurídico-formal do termo, ou seja, como a atuação do poder público pautada em
regras jurídicas validamente postas no sistema (assim entendidas como aquelas produzidas por autoridade
competente e segundo o procedimento previsto normativamente), com o objetivo maior de garantir as
liberdades individuais (se ajo de acordo com as regras postas, então, não posso ser punido pelo Estado). Para
aprofundar o debate sobre o conceito de Estado de Direito, ver: QUEIROZ, Rafael Mafei Rabelo.
Formalismo e Normatividade no Conceito de Estado de Direito. In: VIEIRA, Oscar Vilhena; DIMOULIS,
Dimitri (org.), op. cit., p. 79-93; DIMOULIS, Dimitri. Incertezas do “Estado de Direito” na Perspectiva
Juspositivista. Raz e os Problemas do Conceito Formal. In: VIEIRA, Oscar Vilhena; DIMOULIS, Dimitri
(org.), op. cit., p. 95-118; VIEIRA, Oscar Vilhena. A Desigualdade e a Subversão do Estado de Direito. In:
VIEIRA, Oscar Vilhena; DIMOULIS, Dimitri (org.), op. cit., p. 207-232.
78
(ou Las Reglas en Juego), de FREDERICK SCHAUER190
, e Introducción a la
Metodología de las Ciencias Jurídicas y Sociales, de ALCHOURRÓN e
BULYGIN191
. Essas teorias representam, da perspectiva normativa, um avanço
da famosa teoria da “moldura interpretativa” de KELSEN que reconhece as
limitações inerentes ao direito positivo.
3.1 Enunciado Prescritivo, Norma Jurídica, Norma Geral e Abstrata,
Regra Jurídica, Regra de Direito, Lei, Direito Positivo, Sistema Jurídico,
Ordenamento Jurídico e Ciência do Direito
É possível perceber pela narrativa da história evolutiva do modelo civil
law que fizemos no Capítulo 2, que o termo “lei” é usado de forma geral e
irrestrita, assim como outros tantos, tais como “regra jurídica”, “regra de
direito” ou “direito positivo”.
Para eliminar ambiguidades e elucidar a forma de utilização de alguns
termos, faremos uma brevíssima descrição introdutória antes de adentrar
propriamente no tema deste Capítulo.
A acepção de “lei” utilizada para descrever a evolução do direito
romano e identificar a característica distintiva do modelo civil law pode ser
identificada com as modernas expressões, mais precisas, “enunciado
prescritivo” com características de generalidade e abstração ou “norma geral e
abstrata”.
Enunciado é texto. A expressão enunciado prescritivo, cunhada pelo
Professor PAULO DE BARROS CARVALHO, denota uma específica forma de
190
SCHAUER, Frederick. Las Reglas en Juego. Trad. Claudina Orunesu e Jorge L. Rodríguez. Madrid e
Barcelona: Marcial Pons, 2004. 191
ALCHOURRÓN, Carlos E.; BULYGIN, Eugenio. Introducción a la Metodología de las Ciencias
Jurídicas y Sociales. Buenos Aires: Editorial Astrea, 2006.
79
texto: a linguagem do “direito positivo”, ou seja, a linguagem utilizada com
função predominantemente prescritiva192
e dotada de coercitividade193
.
Contudo, quando nos deparamos com os textos não conseguimos
extrair dele nenhum comando. A linguagem, suporte físico do direito, não nos
fornece imediatamente o que buscamos [conduta a ser perseguida (obrigatória
ou permitida) ou evitada (proibida)]194
. É preciso que, num ato de percepção
visual, entremos em contato com esses textos, atribuindo significações às
palavras que o compõem195
. Em ato contínuo, essas significações são
agrupadas em nosso intelecto, onde as organizamos para formarem-se as
proposições196
. Como todo juízo significativo, as proposições que advêm dos
192
Direito Tributário: linguagem e método. São Paulo: Noeses, 2008. p. 129. 193
Por “coercitividade” leia-se o poder de exigir observância por parte dos indivíduos, o que decorre da
qualidade de validade presumida atribuída a todas as regras jurídicas impostas pelos órgãos autorizados e
segundo o procedimento previsto normativamente. 194
Conforme ensina Lourival Vilanova, “o direito positivo não aparece de forma padronizada, quer em razão
da diversidade de sua estrutura gramatical, quer em razão do idioma em que se manifesta. Em geral, utiliza-se
o verbo no modo indicativo-presente ou indicativo-futuro, os quais ocultam o verbo deôntico do dever-ser.
Assim, esse se encontra implícito nas formas do verbo ser, acompanhado de adjetivo no particípio: “estar
obrigado”, “estar permitido” ou “estar proibido”. Para transformar as múltiplas variedades verbais na
estrutura lógico-formal, é preciso reduzi-las à seguinte fórmula: “se se dá um fato F qualquer, então o sujeito
S’ deve fazer ou deve omitir a conduta C ante outro sujeito S’ ”. Esta fórmula é o primeiro membro da
proposição jurídica completa e se compõe de hipótese e tese, em forma de implicação”. As Estruturas
Lógicas e o Sistema do Direito Positivo. São Paulo: Max Limonad, 1997. p. 95. 195
O enunciado refere-se a algo de existência concreta ou imaginária no mundo, que é o seu significado. A
palavra ‘casa’ encontra seu significado no objeto ‘casa’. Essa associação entre a palavra o objeto de que
temos conhecimento produz em nossa mente uma noção, idéia ou conceito. Separando essa fase de
construção associativa a partir do suporte físico e seu significado, passamos a denominar o produto dela
como ‘significação’. A significação é, portanto, o produto da associação mental que fazemos entre o suporte
físico e o que eles significam. Para detalhes dessa relação triádica entre suporte físico, significado e
significação, denominada ‘signo’, ver: SANTI, Eurico Marcos Diniz de. Norma, Evento, Fato, Relação
Jurídica, Fontes e Validade no Direito. In: SANTI, Eurico Marcos Diniz de (org.). Curso de Especialização
em Direito Tributário: estudos analíticos em homenagem a Paulo de Barros Carvalho. Rio de Janeiro:
Forense, 2005. p. 8. 196
Delia Teresa Echave, Maria Eugenia Urquijo e Ricardo Guibourg expressam de forma muito clara a
distinção entre enunciados e proposições: “No uso corrente da linguagem comum, é comum tomarmos como
sinônimas as expressões “enunciado” e “proposição”. Ao falar, nos expressamos mediante enunciados, isto é
orações como “este é um livro de lógica” […]. Estes conjuntos de palavras são orações porque cumprem com
o requisito de serem significativas, de expressar cabalmente uma idéia. Não ocorre o mesmo, por outro lado,
com expressões como “verde o é campo” […] Apesar de estarem compostas por palavras conhecidas, sua
desordem interna […] as priva de significados e com isso as impedem de se constituírem em enunciados ou
orações. […] “Faz Frio” e “It is cold” […] estão compostos por palavras distintas, além de corresponderem a
idiomas distintos. Mas também advertimos que […] têm algo em comum: querem dizer o mesmo […], isto é,
têm o mesmo significado. Quando vários enunciados têm o mesmo significado, dizemos que eles expressam
a mesma proposição. Uma proposição é, pois, o significado de um enunciado declarativo ou descritivo. Não é
o significado mesmo, que está composto por palavras de algum idioma determinado, ordenadas segundo
80
textos do direito positivo (proposições normativas) também possuem uma
estrutura lógica: a estrutura lógica hipotético-condicional, isto é, relação de
implicação formal197
entre um antecedente (hipótese) e um consequente,
forma típica de regulação de condutas (“se…, então”), que associa
determinado dado fático a uma consequência.
Diante destas afirmações, é possível distinguir os textos das
proposições normativas hipotético-condicionais construídas a partir dele,
conforme lições de PAULO DE BARROS CARVALHO198
: aqueles, enunciados
prescritivos, estas, normas jurídicas199
-.
As normas jurídicas são, portanto, uma forma de organização
específica dos enunciados prescritivos, produto do ato de interpretação da
linguagem do direito positivo. Os antecedentes e consequentes das normas
jurídicas podem ser preenchidos de duas formas possíveis (cada qual),
dependendo do tipo de enunciado prescritivo considerado. Se o enunciado
certas regras gramaticais: é o conteúdo do enunciado, que é comum às diversas maneiras de dizer-se a mesma
coisa”. ECHAVE, Delia Teresa; URQUIJO, María Eugenia; GUIBOURG, Ricardo A. Lógica, proposición y
norma. 1ª ed. 6. reimpr. Buenos Aires: Editorial Astrea, 2002. p. 35-37. 197
Chamamos de vínculo de implicação formal, o conector lógico denominado “condicional”, cuja função é
de ligar, artificialmente, por ato de autoridade competente, um pressuposto a uma consequência. Embora
aparentemente haja uma relação de causalidade entre antecedente e consequente, note-se que essa relação,
por ser artificial, difere-se, neste aspecto, do que se denomina, especificamente, de causalidade natural. Nas
palavras de Hans Kelsen, “Tal-qualmente uma lei natural, também uma proposição jurídica liga entre si dois
elementos. Porém, a ligação que se exprime na proposição jurídica tem um significado completamente
diferente daquela que a lei natural descreve, ou seja, da causalidade. Sem dúvida alguma que o crime não é
ligado à pena, o delito civil à execução forçada, […] como uma causa é ligada ao seu efeito.”. KELSEN,
Hans. Teoria Pura do Direito. 6ª ed. Tradução de João Baptista Machado. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
p. 86-87. 198
Segundo as palavras do autor, “Um dos alicerces que suportam esta construção [decomposição dos textos
do direito positivo em quatro subsistemas] reside no discernir entre enunciados e normas jurídicas. […] Os
primeiros […] se apresentam como frases, digamos assim soltas, como estruturas atômicas, plenas de sentido
[…]. Entretanto, sem encerrar uma unidade completa de significação deôntica, na medida que permanecem
na expectativa de juntar-se a outras unidades da mesma índole. Com efeito, terão de conjugar-se a outros
enunciados, consoante específica estrutura lógico-molecular, para formar normas jurídicas, estas, sim,
expressões completas de significação deôntico-jurídica”. Direito Tributário: fundamentos jurídicos da
incidência, cit., p. 62-63. 199
Kelsen já distinguia entre texto e norma, esta entendida como “esquema de interpretação”, ou seja, como
“juízo em que se enuncia que um ato de conduta humana que constitui um ato jurídico (ou antijurídico) é
resultado de uma interpretação específica, a saber, de uma interpretação normativa”. KELSEN, Hans, op. cit.,
p. 4.
81
prescritivo referir-se a uma situação concreta e sujeitos determinados, a
norma será individual e concreta. Por outro lado, se os textos referirem-se a
situações hipotéticas e dirigirem-se a sujeitos indeterminados, então o
intérprete organizará os tais enunciados prescritivos sob a forma de uma
norma geral e abstrata.
As normas jurídicas construídas a partir da interpretação das leis são
denominadas de normas gerais e abstratas, pois seus antecedentes descrevem
fatos de possível ocorrência (hipotéticos / abstratos), e relações jurídicas
genéricas, ou seja, entre sujeitos indeterminados (gerais).
Vale, aqui, a transcrição das palavras esclarecedoras de PAULO DE
BARROS CARVALHO200
, precisando os adjetivos “geral” e “abstrata” das
normas jurídicas:
A proposição antecedente funcionará como descritora de um evento
de possível ocorrência no campo da experiência social, sem que
isso importe submetê-la ao critério de verificação empírica [...].
Se a proposição-hipótese é a descritora de um fato de possível
ocorrência no contexto social, a proposição-tese funcionará como
prescritora de condutas intersubjetivas.
[...]
Na verdade, o prescritor da norma é, invariavelmente, uma
proposição relacional, enlaçando dois ou mais sujeitos de direito
em torno de uma conduta regulada como proibida, permitida ou
obrigatória. [...]
Costuma-se referir a generalidade e a individualidade da norma ao
quadro de seus destinatários: geral, aquela que se dirige a um
conjunto de sujeitos indeterminados quanto ao número; individual,
a que se volta a certo indivíduo ou a grupo identificado de pessoas.
Já a abstração e a concretude dizem respeito ao modo como se
toma o fato descrito no antecedente. A tipificação de um conjunto
de fatos realiza uma previsão abstrata, ao passo que a conduta
especificada no espaço e no tempo dá caráter concreto ao comando
normativo.
(destaques não são do original)
200
Direito Tributário: fundamentos jurídicos da incidência, cit., p. 26-27, 30-31 e 35-36.
82
Considerando que não existe texto apto à regulação de condutas, ou
seja, que é preciso ato de interpretação e aplicação para que os enunciados
prescritivos atinjam o objetivo de regular condutas, trataremos os termos
“lei”, “regra jurídica” e “regra de direito” como sinônimos de normas gerais e
abstratas, eliminamos a ambiguidade entre texto (enunciado prescritivo) e
norma jurídica.
Contudo, resta ainda uma ambiguidade a ser eliminada para os termos
“lei” e “regra jurídica” / “regra de direito”: trata-se de normas gerais e
abstratas construídas a partir de enunciados prescritivos postos tão-somente
pelo Poder Legislativo (sentido restrito) ou devem-se incluir também aqueles
que, ainda que ostentem as características de generalidade e abstração, são
postos pelo Poder Executivo (sentido amplo)?
A Ciência do Direito que descreve o modelo civil law, especialmente
quando sistematiza o tema da hierarquização das fontes do direito, ora se
refere ao termo “lei” em seu sentido amplo, ora em seu sentido restrito. RENÉ
DAVID ao descrever sobre as Fontes de Direito (Título III, p. 87-139) inclui no
capítulo I, “A Lei”, tanto proposições relativas à lei em sentido estrito (p. 93-
98) como em relação à lei em sentido amplo (Regulamentos, Decretos e
Circulares Administrativas – p. 98-100)201
.
É sempre comum, entretanto, afirmar que as leis em sentido amplo não
podem extrapolar a lei em sentido estrito. Em outras palavras, ainda que se
utilize o termo lei em sentido amplo para denotar a fonte primária do direito,
sempre existe a ressalva de que ela não poderia ultrapassar o que dizer a lei
em sentido restrito, mantendo-se a rigidez da separação de poderes202
.
201
Os Grandes Sistemas do Direito Contemporâneo, cit., p. 99-100. 202
Ibidem, p. 98-100.
83
A afirmação que fazemos neste trabalho – de falibilidade da lei –
independe de uma ou outra acepção. Ainda que consideremos as leis em
sentido amplo, a ideia de falibilidade continua a ser aplicável, pois ela toma
em consideração especialmente a característica de abstração – relativa a
situações hipotéticas e futuras – das normas jurídicas.
Tão-somente para efeitos de precisão semântica, os termos “lei” e
“regra” serão considerados em seu sentido amplo, ou seja, referindo-se a
qualquer norma geral e abstrata (não só as que têm como base os enunciados
prescritivos postos pelo Poder Legislativo, mas considerando também aqueles
postos pelo Poder Executivo, desde que ostentem a qualidade de
generalidade e abstração).
Em outros termos, consideraremos que as palavras “lei” e “regra de
direito” / “regra jurídica” denotam não só as normas gerais e abstratas
construídas a partir da CF/88, das Leis Complementares e das Leis Ordinárias
(textos produzidos pelo exercício da função típica do Poder Legislativo), mas
também aquelas construídas a partir dos Decretos, das Instruções Normativas
e todos os demais enunciados prescritivos que se refiram a situações
hipotéticas e sujeitos indeterminados.
Por fim, a última distinção importante para elucidação dos termos
utilizados na construção desta tese refere-se a direito positivo e Ciência do
Direito. Ambos são camadas de linguagem e se distinguem,
fundamentalmente, pela presença ou ausência do caráter
coercitivo/prescritivo.
84
O direito positivo se manifesta em linguagem com função
predominantemente203
prescritiva204
, ou seja, tem o objetivo de interferir na
realidade social, prescrevendo condutas obrigatórias, permitidas ou proibidas.
Embora as decisões judiciais também integrem, neste sentido, o conceito de
direito positivo, para efeitos da análise crítica pretendida neste trabalho
utilizamos o termo direito positivo no seu sentido mais ordinário, ou seja,
denotando propriamente um conjunto de normas gerais e abstratas.
A Ciência do Direito se manifesta em linguagem com função
predominantemente descritiva205
, isto é, toma o direito positivo como
linguagem-objeto para descrevê-lo, sistematizando suas normas de acordo
com os objetivos científicos que pretende, em nível de metalinguagem206
.
Os termos “ordenamento jurídico” e “sistema jurídico” serão utilizados
como sinônimo de “direito positivo”, mas observada a ressalva feita acima, ou
seja, de que estamos considerando, para efeitos desta tese, o termo “direito
positivo” em seu sentido mais usual (conjunto de normas gerais e abstratas).
203
Cf. Paulo de Barros Carvalho: “discorrermos, todavia, sobre as funções da linguagem, obriga a fixarmos a
premissa sem a qual as conclusões ficariam incompletas ou prejudicadas: toda e qualquer manifestação
lingüística, desde as mais simples às mais complicadas, raramente encerram uma única função, aparecendo
como espécimes quimicamente puras, no dizer de COPI. Ainda que haja uma função dominante, outras a ela
se agregam no enredo comunicacional, tornando difícil a tarefa de classificá-las. Para contornar o empeço,
sugere Alf Ross (Lógica das normas. Madrid: Editorial Tecnos, 1971, p. 28) que tomemos o efeito imediato
como critério classificatório. […] Cientes de que toda comunicação efetiva exige certa combinação de
funções e recolhendo o critério do efeito imediato ou da função dominante […] passemos a formular a
classificação das linguagens, de acordo com as funções que cumprem no processo comunicacional.” Cf. O
Neopositivismo Lógico e o Círculo de Viena. In: CARVALHO, Paulo de Barros. Apostila de Filosofia do
Direito I (Lógica Jurídica), cit., p. 16-17. 204
“A linguagem prescritiva presta-se à expedição de ordens, de comandos, de prescrições dirigidas ao
comportamento das pessoas”. Ibidem, p. 18.
“A função pragmática que convém à linguagem do direito é a prescritiva de condutas, pois seu objetivo é
justamente alterar os comportamentos nas relações intersubjetivas, orientando-os em direção aos valores que
a sociedade pretende implantar”. In: CARVALHO, Paulo de Barros. Direito Tributário: fundamentos
jurídicos da incidência, cit., p. 9. 205
A linguagem descritiva é “a linguagem própria à transmissão de conhecimentos (vulgares ou científicos) e
de informações das mais diferentes índoles […]”. Cf. CARVALHO, Paulo de Barros. O Neopositivismo
Lógico e o Círculo de Viena. In: CARVALHO, Paulo de Barros. Apostila de Filosofia do Direito I (Lógica
Jurídica), cit., p. 17. 206
Cf. GUIBOURG, Ricardo A.; GHIGLIANI, Alejandro M.; GUARINONI, Ricardo V. Introducción al
Conocimiento Científico. 3ª ed. Buenos Aires: Eudeba, 2003. p. 26-28.
85
3.2 Direito Positivo, Regulação de Condutas e Autonomia da Linguagem
O direito positivo, aqui entendido como conjunto de leis em sentido
amplo (normas gerais e abstratas), se manifesta por meio de linguagem com o
objetivo de interferir na realidade social, prescrevendo condutas obrigatórias,
permitidas ou proibidas. Ainda que com função prescritiva, não existe outra
forma de exteriorização de regras jurídicas além da linguagem.
Uma das formas de expressão da linguagem207
é a utilização de
símbolos. Um símbolo representa uma coisa diferente dele mesmo por um
critério arbitrário. Neste sentido, pode-se afirmar que as palavras são, sem
dúvida, espécie de símbolo. A palavra “árvore” pretende representar o objeto
“árvore”, sem com ele ter qualquer relação de semelhança física e
simplesmente por uma convenção havida muito antes de a conhecermos.
Embora a linguagem possa ser entendida como completamente
autônoma em relação à “realidade”208
ou o “dado bruto”, para utilizar os
207
O termo linguagem significa a capacidade do ser humano para comunicar-se por intermédio de signos,
conforme CARVALHO, Paulo de Barros. Apostila de Filosofia do Direito I (Lógica Jurídica), cit., capítulo
II. Os signos, como fenômenos representativos de coisas diferentes deles mesmos, podem ser divididos,
segundo a classificação de Charles S. Pierce, em ícones (procuram reproduzir os objetos a que se referem,
oferecendo traços de semelhança ou refletindo atributos do objeto, como as fotografias, os bustos etc.),
índices (mantêm conexão física com os objetos, por exemplo, a fumaça, que funciona como índice de fogo) e
símbolos (signos arbitrariamente construídos, produtos de convenção, já que não guardam relação visual com
o objeto que representam). 208
Fabiana Del Padre Tomé propõe essa autonomia da linguagem de forma contundente: “Temos para nós
que o sentido de um significante não se confunde com o referente, considerada a coisa em si mesma: seu
significado nada mais é que outro significante. Pensamos não existir correspondência entre as palavras e os
objetos. A linguagem não reflete as coisas tais como são (filosofia do ser) ou tais como desinteressadamente
percebe uma consciência, sem qualquer influência cultural. A significação de um vocábulo não depende da
relação com a coisa, mas do vínculo que estabelece com outras palavras. Nessa concepção, a palavra precede
os objetos, criando-os, constituindo-os para o ser cognoscente”. Op. cit., p. 3-4.
Já Tárek Moysés Moussallem prefere manter a segregação, ainda que admita a ideia de que o mundo só
integra o processo de conhecimento por meio da linguagem: “Hoje, após alguma reflexão, reputa-se a
distinção entre fatos brutos e fatos institucionais de extrema importância. Nem tudo no mundo é linguagem.
Se por um lado a linguagem instaura um [sic] realidade dentro do sujeito cognoscente, por outro ela não cria
o mundo”. Op. cit., p. VII.
86
termos de VILÉM FLUSSER209
, persiste a ideia de que ela pretende representar
algo. É neste sentido que o referido autor afirma:
As palavras são apreendidas e compreendidas como símbolos, isto
é, como tendo significado. Substituem algo, apontam para algo, são
procuradores de algo. O que substituem, o que apontam, o que
procuram? A resposta ingênua seria: “em última análise, a
realidade”. A resposta mais sofisticada dos existencialistas e dos
logicistas seria provavelmente “nada”. A resposta deste trabalho
será: “já que apontam para algo, substituem algo e procuram algo
além da língua, não é possível falar-se deste algo”. Não obstante, o
fato persiste: as palavras são apreendidas e compreendidas como
símbolos, e, em conseqüência, o cosmos da língua é símbolo e tem
significado. Símbolos são resultados de acordo entre vários
contratantes. [...] Qual foi o acordo ou os acordos que antecederam
e resultaram no sistema de símbolos que é a língua? Esta pergunta
ainda é mais ingênua que a opinião dos setecentistas quanto ao
contrato social como base da sociedade humana. As origens da
língua e de seu caráter simbólico perdem-se nas brumas de um
passado impenetrável210
.
Essa independência da linguagem em relação ao que ela pretende
representar explica os ruídos da comunicação por meio de símbolos
(palavras), forma da qual se utiliza o direito positivo para regular condutas.
Não é à toa, portanto, que o professor ESTEVÃO HORVATH dedica em
seu livro O Princípio do Não-Confisco no Direito Tributário, todo um
capítulo para elucidar o termo “efeito de confisco”, trazendo inúmeros autores
que corroboram o entendimento de que, no direito, estamos rodeados de
conceitos jurídicos indeterminados (ou conceitos jurídicos cujos termos são
indeterminados, para utilizar a referência de EROS GRAU)211
.
209
“A posição ontológica que este trabalho se propõe a investigar é a de que a realidade dos dados brutos é
apreendida e compreendida por nós em forma de língua”. Língua e Realidade. 2ª ed., 1ª reimpressão. São
Paulo: Annablumes, 2004. p. 81-82. 210
Ibidem, p. 41-42. 211
“De todo modo, “efeito de confisco”, assim como dezenas de outras expressões que se nos deparam pela
frente ao lidarmos com o Direito, enquadra-se naquilo que se convencionou denominar “conceito vago”,
“conceito indeterminado” ou assemelhados. “Indeterminado” pode significar: impreciso, fluido, elástico,
87
Quando eu ordeno ao indivíduo que ele pague Imposto de Renda sobre
o produto do trabalho ou do capital eu comunico com clareza a conduta
regulada? Possivelmente não, porque todas as palavras, por possuírem
vínculos arbitrários com os objetos ou situações que pretendem representar,
são potencialmente vagas e ambíguas.
TÁREK MOYSÉS MOUSSALLEM analiticamente esmiúça ainda mais essa
questão, demonstrando que, diferentemente dos objetos naturais (sol, lua,
árvore etc.), que existem independentemente da linguagem, há aqueles que só
existem nela (dependem dela): “o romance, a pintura, o direito”212
. Nessa
segunda categoria se enquadram a maioria dos “objetos” do direito. Isso
maximiza ainda mais a dificuldade de estabelecer a relação entre as palavras
que compõem o direito positivo (suporte físico) e seus significados. Não
existe “renda” na natureza. Não existe “capital” no mundo físico. Não é
possível criar, sem a linguagem, a noção de “trabalho”.
As linguagens podem ser distinguidas entre naturais e artificiais.
Aquelas são formadas por palavras utilizadas pelos seres humanos em sua
comunicação ordinária e cujos sentidos vieram sendo determinados,
historicamente, mediante os usos de determinado grupo social213
. É o exemplo
vago, poroso, flexível, zona de penumbra. Para Eros Grau “não há conceitos jurídicos indeterminados, mas
tão-somente conceitos jurídicos cujos termos são indeterminados” [Direito, Conceitos e Normas Jurídicas,
RT, São Paulo, 1988, p. 76]. Assim, o correto seria falar-se em termos indeterminados e não conceitos
indeterminados. Celso Antônio, porém, entende que a imprecisão e a fluidez se inserem no próprio conceito,
que, nem sempre, é determinado. As palavras, contrario sensu, designam com precisão o objeto s que se
reportam e cujos limites podem ser imprecisos. Caso houvesse imprecisão nos vocábulos, a solução seria
substituí-los por outros, eliminando a vaguidade [Discricionariedade e Controle Judicial, 2ª ed., Malheiros,
São Paulo, 1996, p. 21]. Engish, por sua vez, diz: “por conceito indeterminado, entendemos um conceito cujo
âmbito e cujo conteúdo são muito incertos” [ENGISH, Karl. Introduzione al Pensiero Giuridico, Giuffrè,
Milano, 1970, p. 170]. “Que numa noite sem luar, à meia-noite, num lugar não iluminado, ao ar livre ... reine
a escuridão é claro: dúvidas podem ser levantadas, por exemplo, à hora do crepúsculo” [Ibidem, p. 171]. Os
conceitos de “homem”, “morte”, “escuridão”, têm, enquanto conceitos jurídicos, um significado próprio que
pode divergir notavelmente dos respectivos conceitos biológicos, teológicos ou físicos” [Ibidem, p. 173]”. O
Princípio do Não-Confisco no Direito Tributário. São Paulo: Dialética, 2002. p. 34. 212
“Há fatos que existem independentemente da linguagem, v. .g. a árvore, o sol, a lua, os astros, etc. Nada
obstante, há fatos dependentes da linguagem: o romance, a pintura”. Op. cit., p. VII. 213
GUIBOURG, Ricardo A.; GHIGLIANI, Alejandro M.; GUARINONI, Ricardo V., op. cit., p. 20.
88
das palavras “árvore”, “sapato”, “computador” etc. Isso não significa que não
sejam vagas ou ambíguas: um chinelo pode ser considerado um sapato? E o
iPad, pode ser considerado um computador?
Por outro lado, a linguagem artificial, formada por palavras de cunho
técnico, isto é, pela “linguagem natural com termos técnicos”, tem a pretensão
de atribuir a determinados vocábulos definições mais precisas214
, ou seja, com
maior grau de conotação que a linguagem natural. É o caso da linguagem do
direito, que, no campo da tributação, define renda como produto do trabalho
ou do capital.
Ainda que com maior grau de conotação que aquela contida na
linguagem natural, a linguagem técnica, como a do direito, pode não ser
suficiente para comunicar a mensagem. Ao contrário, por serem compostas de
mais símbolos, sempre advindos da linguagem ordinária, as linguagens
técnicas podem conter maior grau de vagueza e ambiguidade: que significam
os termos “trabalho” e “capital” para chegar-se à definição de “renda”?
A esse respeito, são esclarecedoras as palavras de ESTEVÃO
HORVATH215
:
As relações na sociedade são instáveis e, em geral, conflituosas. O
Direito, ao pretender regulá-las, não conseguirá jamais atribuir aos
seus ditames uma certeza e uma definitividade absolutas, como se
pode dizer que ocorre com as denominadas Ciências Exatas.
Esse diagnóstico nos permite identificar a primeira inevitável causa do
que chamamos de “falibilidade” do direito positivo: a potencial insuficiência
214
Ibidem, p. 21-22. 215
Op. cit., p. 35.
89
da linguagem, seu suporte físico, para comunicar, com clareza, a conduta
regulada.
A vagueza e ambiguidade inerente à linguagem, embora seja o primeiro
passo para avançarmos no diagnóstico de insuficiência do direito positivo
para regulação de condutas, não pode ser considerada como uma causa em si
mesma, ou seja, isoladamente. Isso porque, as normas individuais e concretas
das decisões judicias também só existem como camada linguagem e, neste
sentido, igualmente deveriam padecer desse mesmo problema do direito
positivo.
Por que, então, não vemos usualmente as pessoas se debaterem tanto
sobre os significados das palavras quando analisam decisões judiciais? Porque
os problemas de vagueza e ambiguidade do direito positivo são
potencializados pelos enunciados prescritivos com qualidade de abstração e
generalidade, ou seja, pelo fato de ser produzido num presente com vistas a
regular situações futuras. Isso quer dizer que essa primeira causa (vagueza e
ambiguidade da linguagem) só se justifica diante dos dois outros pontos que
desenvolveremos adiante e que decorrem, basicamente, da característica de
abstração dos enunciados do direito positivo.
3.3 Limitações à Atividade Legislativa na Regulação de Condutas
Futuras
Sabemos ser ontologicamente impossível prever, no exercício presente
da atividade legislativa, hipotéticas situações futuras que devem ser reguladas.
Neste sentido, a característica de “abstração” é, ao mesmo tempo, pressuposto
de existência e de falibilidade dos enunciados prescritivos do direito positivo
(leis em sentido amplo).
90
A atividade legislativa, ou seja, a produção de enunciados prescritivos
que preveem situações hipotéticas destinadas a sujeitos indeterminados,
decorre de um processo de generalização216
das situações que se quer ver
reguladas.
O esforço de generalização é sempre imperfeito e o exemplo de
GUSTAV RADBRUCH, que ficou famoso pela obra de LUIS RECASENS SICHES é
perfeito para ilustrar essa afirmação217
:
Sem considerar nem remotamente as consequências que me
parecem pertinentes, Radbruch – tomando, creio eu, de Petrasyski –
relata um caso que, ainda que muito simples, pode servir para
exemplificar com grande alívio a ideia que propugno, e que acabo
de esboçar. Na plataforma de uma estação ferroviária havia um
letreiro que transcrevia um artigo do Regulamento de
Ferrovias da Polônia, cujo texto rezava: “É proibido andar na
plataforma com cães”. Um dia apareceu um homem que
pretendia andar na plataforma acompanhado de um urso. O
funcionário que vigiava a porta o impediu de entrar. O homem
protestou dizendo que o letreiro somente proibia andar com
cães na plataforma, mas não com outra classe de animais. Deste
216
O professor Tercio Sampaio Ferraz Junior, embora em contexto completamente distinto do aqui analisado,
traz reflexões interessantíssimas sobre o processo de generalização ligado à ideia de código comunicacional
na relação entre direito e poder: “Para entender as funções do código, vamos começar analisando a noção
básica de generalização de símbolos, à qual todo código comunicacional está ligado (Luhman). Por
generalização entenda-se o processo de tornar comuns certas orientações significativas para diferentes
parceiros em diferentes situações, de tal modo que a todos se permita um sentido idêntico e a dedução de, ao
menos, consequências semelhantes. Por meio da generalização, obtém-se uma relativa liberdade situacional
que reduz a necessidade de se discutir, de caso para caso, a orientação comum. [...] Ao mesmo tempo,
porem, a generalização cria o risco de que as possibilidades oferecidas pela situação concreta não sejam
aproveitadas: o preço da generalidade é a inflexibilidade relativa dos códigos. Isso vale especialmente para as
generalizações normativas, que manifestam expectativa contrafáticas. Estudos de Filosofia do Direito:
reflexões sobre o Poder, a Liberdade, a Justiça e o Direito. 3ª ed. São Paulo: Atlas, 2009. p. 50-51. 217
SICHES, Luis Recasens. Filosofía del Derecho. México: Editorial Porruá, 2008. p. 645. Tradução livre do
seguinte trecho: “Aunque sin sacar de él ni remotamente las consecuencias que me parecen pertinentes,
Radbruch - tomándolo, creo que, de Petrasyski - relata un caso, el cual, aunque muy sencillo, puede servir
para ejemplificar con gran relieve la idea que propugno, y que acabo de bosquejar. En el andén de una
estación ferroviaria de Polonia había un letrero que transcribía un artículo del reglamento de ferrocarriles,
cuyo texto rezaba: “Se prohíbe el paso al andén con perros.” Sucedió una vez que alguien iba a penetrar en el
andén acompañado de un oso. El empleado que vigilaba la puerta le impidió el acceso. Protestó la persona
que iba acompañada del oso, diciendo que aquel artículo del reglamento prohibía solamente pasar al andén
con perros, pero no con otra clase de animales; y de ese modo surgió un conflicto jurídico, que se centró en
torno de la interpretación de aquel artículo del reglamento. No cabe la menor duda de que, si aplicamos
estrictamente los instrumentos de la lógica tradicional, tendremos que reconocer que la persona que iba
acompañada del oso tenía indiscutible derecho a entrar ella junto con el oso al andén. No hay modo de incluir
a los osos dentro del concepto de “perros”.”
91
modo, surgiu um conflito em torno da interpretação do artigo do
Regulamento.
Não há a menor dúvida de que se aplicarmos estritamente os
instrumentos da lógica tradicional, teremos que reconhecer que a
pessoa que vai acompanhado de um urso tem o direito indiscutível
de andar na plataforma. Não há uma forma de incluir os ursos
dentro do conceito de “cães”.
(destaques não são do original)
A situação retratada pelo exemplo pode ser analisada ou explorada sob
dois prismas distintos: o primeiro – e que é o pretendido por SICHES – está
voltado ao instigante tema dos limites e das funções da interpretação. O outro,
que propomos aqui, relaciona-se com a incompletude inerente ao direito
positivo: é tão-somente assumir posição de humildade perante a falibilidade
das normas gerais e abstratas e reconhecer, assim, o inevitável papel da
decisão judicial na formação da legalidade.
Por que os ursos – ou outros animais – não estavam contemplados na
regra: “É proibido andar na plataforma com cães”? Da perspectiva proposta
neste trabalho, a explicação nos parecer ser: porque o legislador não previu
que um homem acompanhado de um urso pudesse chegar à estação
ferroviária e querer andar pela plataforma.
A obra de FREDERICK SCHAUER (Las Reglas en Juego)218
explora esse
esforço de generalização característico da produção de regras gerais e
abstratas e, por isso, contribui para demonstrar, teoricamente, os limites da
atividade legislativa em relação às condutas futuras.
Para explicar o processo de generalização (que define como a transição
do particular para o geral)219
, o autor utiliza o exemplo de um pequeno
218
Op. cit. 219
“Las reglas […] se dirigen […] a tipos y no a casos particulares. […] Generalizar es involucrarse en un
proceso que es parte de la vida misma. […] Algunas de las categorías con las cuales (o dentro de las cuales)
92
cachorro (um terrier escocês preto chamado Angus) que, acompanhado de
seu dono, adentra um restaurante e começa a pular no colo das pessoas, subir
nas mesas, lamber a comida etc. Essa situação causa um imenso
constrangimento ao dono do restaurante, o que o induz a produzir uma regra
geral destinada a evitar esse tipo de situações no futuro220
.
O primeiro passo dessa generalização é identificar quais os dados de
fato relevantes221
: (i) ser animal mamífero? (ii) ser da cor preta? (iii) ser
pequeno? A eleição desses critérios deve levar em consideração, por óbvio, as
razões pelas quais o proprietário resolveu elaborar essa regra: (i) em razão
cheiro do cachorro? (ii) em razão da cor do cachorro? (iii) pelo incômodo
causado aos clientes ao pular em seus colos?
Ao eleger as propriedades, o dono do restaurante elabora a seguinte
regra: “é proibido entrar com animais no restaurante”. As razões que o
agrupamos nuestras percepciones particulares son clases naturales, como los leopardos y la plata. Otras son
artificiales, como los autos […]. Y a veces nuestras categorías son más institucionales que físicas, como los
contratos y los partidos políticos. […] Más específicamente, quiero centrar mi atención en la simultaneidad
de las categorías, es decir, en el modo en el que un individuo es miembro simultáneamente de numerosas
categorías que se intersectan. Las categorías que empleamos no son ni mutuamente excluyentes ni
rígidamente distintas, sino que, por el contrario, se superponen y se anidan una dentro de otra, tal que un
objeto o evento particular comúnmente es miembro de muchas de ellas. […] Al pensar y hablar elegimos
tomar distancia de lo particular, y hacemos una nueva elección al escoger la categoría dentro de la cual ubicar
a ese caso particular. Me referiré a la elección de transitar de lo particular a lo general como generalizar, y al
producto de ese proceso como una generalización. Ibidem, p. 77. 220
“Ir desde un echo particular a una prescripción general requiere, por lo tanto, tomar decisiones del mismo
tipo que las que se toman cuando se efectúa una generalización descriptiva. Establecer reglas en respuesta a
un hecho particular, y, casi siempre, establecer reglas de cualquier tipo, supone el uso de generalizaciones
elegidas de entre numerosos candidatos lógicamente equivalentes. Supóngase que entro en un restaurante con
Angus, quien entonces comienza a ladrar, a corretear, a saltar sobre los clientes y a comer restos de comida
del piso. El propietario del restaurante, a fin de evitar que se repitan estos hechos, propone excluir no sólo a
Angus ahora, sino a todos los hechos futuros del mismo tipo. Por consiguiente, el propietario debe generalizar
a partir del hecho particular”. Ibidem, p. 83. 221
“Angus es negro, de modo que el propietario podría establecer una regla que excluyera del restaurante a
todo lo que fuese negro, excluyendo […] los gatos negros, a los zapatos negros, a las corbatas negras, a los
vestidos negros y al cabello negro. Una generalización semejante a partir del hecho desencadenante sería
lógicamente impecable, puesto que dicho hecho puede describirse correctamente como un problema causado
por un agente negro, ya la exclusión de los agentes negros aseguraría que ningún hecho exactamente igual
volviese a ocurrir jamás. Sin embargo, esta generalización lógicamente legítima es absurda, y esto se debe a
que el color negro de Angus es causalmente irrelevante respecto de la ocurrencia de los hechos que
inspiraron inicialmente la decisión de excluirlo. […] Nuestro conocimiento empírico justifica la conclusión
de que estos actos, incluso cuando los comete Angus, no son consecuencia causal de su color”. Ibidem, p. 83-
84.
93
levaram a produzir essa regra (eleger esse critério – “animais”, sem
especificar cor, raça, espécie etc.) são chamadas por SCHAUER de
“justificações”222
. O autor afirma que por detrás de toda generalização há uma
justificação, ou seja, um propósito que é subjacente à regra223
.
O fato é que, independentemente de serem produzidas sob
determinadas razões, as regras como produto do processo de generalização se
descolam do seu contexto de produção, e é exatamente isso que dificulta sua
aplicação em casos futuros.
Supondo que a justificação para a produção da regra “É proibido entrar
com animais” fosse evitar o incômodo aos clientes, que dizer das situações
concretas futuras em que uma mulher chega acompanhada de um cão-guia ou
um homem bêbado e fumando um charuto pretendam almoçar no restaurante?
É diante desse tipo de situações que SCHAUER qualifica as regras gerais
e abstratas como sobreincludentes ou subincludentes224
. Uma regra
sobreincludente é aquela que inclui situações fora de sua justificação (como
no exemplo da mulher que chega acompanhado do cão-guia). Uma regra
subincludente é aquela que exclui situações dentro de sua justificação (como
o exemplo do homem bêbado e fumando charuto).
Esse tipo de diagnóstico proposto por SCHAUER é um dos temas que
mais intrigaram – e que continua a intrigar – grande parte da teoria do direito:
222
“De aquí en adelante me referiré a la categoría más general como la justificación, esto es, el mal que se
pretende erradicar o la meta que se pretende lograr. De este modo, el deseo de eliminar posibles molestias a
los clientes del restaurante constituye la justificación que lleva al propietario a generalizar a partir del hecho
particular. […] La justificación determina así cual de entre las muchas generalizaciones lógicamente
equivalentes de algún hecho desencadenante en particular será elegida como el predicado fáctico de la regla
resultante. […] El predicado fáctico de la regla propuesta que prohíbe el ingreso de perros es, en
consecuencia, una generalización a partir del hecho desencadenante particular que causó el problema en esta
ocasión hacia la propiedad (o propiedades) del individuo que parece ser, en tanto tipo, causalmente relevante
para la incidencia del problema, en tanto tipo”. Ibidem, p. 84-85. 223
Ibidem, p. 113. 224
Ibidem, p. 89-92.
94
no conflito entre regras e justificações, qual deve prevalecer? Os positivistas
afirmariam que a mulher estaria proibida de entrar e o homem não. Os não-
positivistas, buscando a “plena realização do direito” – justiça e valorização
do concreto – fundamentariam decisão oposta com base em um princípio
adequado.
Esse debate é infinito e, a partir do que se tem até agora, insolúvel. É
por isso que preferimos dele desviar sutilmente neste trabalho, avançando
para a valorização da norma individual e concreta da decisão judicial, já que,
em última instância, é o Poder Judiciário que dirá se pessoas acompanhadas
de cães-guia podem ou não adentrar restaurantes que impedem a entrada de
animais.
3.4 Problemas do Direito Positivo Identificados a Partir de sua
Aplicação: lacunas de reconhecimento, lacunas normativas e lacunas
axiológicas
O tema das “lacunas”, tratado neste item sob a específica perspectiva e
definição de ALCHOURRÓN e BULYGIN na obra “Introducción a la
Metodología de las Ciencias Jurídicas y Sociales”225
, é, na verdade, um
desdobramento dos dois fenômenos que descrevemos genericamente nos itens
anteriores: (i) expressão do direito positivo em linguagem e (ii)
impossibilidade de o legislador regular, no presente, casos futuros.
Conforme exporemos mais detalhadamente adiante, as lacunas de
reconhecimento estão mais relacionadas ao item (i); as lacunas axiológicas,
ao item (ii). As lacunas normativas, na perspectiva dos referidos autores, não
estão necessariamente ligadas à (i) ou (ii), mas nos parecem estar mais
relacionadas à percepção exposta por RENÉ DAVID no trecho citado na 225
Op. cit.
95
introdução deste Capítulo, ou seja, a uma dificuldade imaginada do ponto de
vista do sujeito (legislador) e não do objeto (direito positivo)226
.
3.4.1 Lacunas de Reconhecimento e o Retorno dos Problemas da Linguagem
no Ato de Aplicação do Direito Positivo
ALCHOURRÓN e BULYGIN, tratando do fenômeno que descrevemos no
item 3.2 – problemas que decorrem do próprio suporte físico do direito
positivo (linguagem) – relativamente aos casos concretos, nomeiam tais
problemas semânticos de lacunas de reconhecimento227
.
O paradigma teórico do giro linguístico analisa os ruídos da linguagem
de uma perspectiva mais estática – todas as palavras são potencialmente vagas
e ambíguas e assim o é, também, de forma imprescindivelmente conclusiva, o
direito positivo. ALCHOURRÓN e BULYGIN avançam a partir desse preciso
diagnóstico da filosofia da linguagem para identificar problemas de aplicação
do direito228
-229
, denominando a dificuldade de subsunção da norma geral e
226
“A censura dirigida às novas leis, nos diversos países, de procederem de uma má técnica legislativa,
advém em grande parte do fato do legislador, nas novas matérias em que intervém, não saber fixar
exatamente a regra de direito ao nível em que desejamos vê-la. Com frequência, ele entrega-se a uma
casuística exagerada, frequentemente agravada pela regulamentação administrativa; outras vezes, pelo
contrário, ele exprime-se em fórmulas muito gerais, e, então, não se saberá como deve ser a lei compreendida
no momento em que ela terá de ser “interpretada”. As críticas dirigidas à má técnica legislativa têm
certamente um fundamento. Convém, contudo, considerar que a tarefa de legislar é tecnicamente muito
difícil e que foram necessários séculos de esforços doutrinais para chegar às fórmulas dos códigos que hoje,
sem dúvida, nos parecem muito simples.”. Grandes Sistemas do Direito Contemporâneo, cit., p. 82. 227
Op. cit., p. 63. Nesta obra, os autores têm como propósito imediato identificar o conceito de sistema
normativo / jurídico para, a partir dele, analisar três propriedades formais de tais sistemas: completude,
coerência e independência (Ibidem, p. 29). Tanto a construção da definição de sistema normativo como a
análise de suas propriedades formais reflete a expressa tentativa dos autores de utilizar, na Ciência do Direito,
os avanços metodológicos de outras ciências (Ibidem, p. 21), especialmente da lógica deôntica (Ibidem, p.
22). Neste sentido, Alchourrón e Bulygin definem sistema normativo como um conjunto de enunciados
(situações de fato previstas normativamente) acompanhados de consequências normativas (Ibidem, p. 23).
Este delimitadíssimo conceito de sistema normativo resulta da premissa assentada pelos autores de que os
juristas nunca analisam os problemas de completude, coerência e contradição em relação a toda ordem
jurídica. Assim, segundo eles, de nada serve o conceito amplo de ordem jurídica (sistema normativo), como o
conjunto de todas as normas válidas derivadas de uma fonte comum (Austin), da norma fundamental
(Kelsen) ou da regra de reconhecimento (Hart), para analisar propriedades formais dos sistemas de normas
(Ibidem, p. 23). 228
Segundo Alchourrón e Bulygin, podem existir até quatro tipos de “lacuna” no sistema jurídico:
normativas (ausência de solução – se é obrigatório, permitido ou proibido – para determinado caso concreto),
96
abstrata ao caso concreto em decorrência dos problemas de vagueza e
ambiguidade230
, de lacunas de reconhecimento231
.
Os autores utilizam durante, em toda sua obra, um exemplo
extremamente didático, que ilustra essa abordagem denotativa da falibilidade
das normas gerais e abstratas.
A partir de uma situação fática relativamente comum – direito de
reivindicação de bens imóveis contra terceiros possuidores – ALCHOURRÓN e
BULYGIN partem na busca das regras vigentes que disciplinam essa questão
para, ato contínuo, “sistematizarem” os critérios e soluções normativas
presentes no direito positivo argentino, o que permite, por fim, visualizar
lacunas como as de reconhecimento232
.
Uma das soluções previstas normativamente era de que seria
obrigatória a restituição do imóvel, pelo terceiro, ao legítimo proprietário, no
de conhecimento (dificuldades quanto à prova do fato, o que impede a subsunção da norma ao caso
concreto), de reconhecimento, explicada neste Capítulo, e axiológicas (identificação de uma solução
inapropriada ao caso concreto em razão da falta da previsão legal de um critério eleito como relevante).
Ibidem, p. 23, 41, 61 e 157-161. 229
A preocupação com lacunas de reconhecimento desloca a análise da linguagem do aspecto semântico para
o aspecto pragmático. É a função pragmática da linguagem que lida com os problemas de aplicação da norma
geral e abstrata. As análises semântica e sintática da linguagem restringem-se, em geral, aos planos da norma
geral e abstrata. 230
Estevão Horvath também aborda essas duas perspectivas – estática e dinâmica – ao tratar da ideia de
confisco: “As relações na sociedade são instáveis e, em geral, conflituosas. O Direito, ao pretender regulá-las,
não conseguirá jamais atribuir aos seus ditames uma certeza e uma definitividade absolutas, como se pode
dizer que ocorre com as denominadas Ciências Exatas. Haverá sempre como dizer-se que quando uma
situação retrata claramente um confisco, bem como não será difícil aferir quando não se trata de
confisco. O problema está, como é evidente, na chamada “zona cinzenta” ou “zona de penumbra”. (destaques
não são do original). Op. cit., p. 35. 231
“Las dificultades de la clasificación o subsunción de un caso individual pueden originarse de fuentes
distintas. [...] La dificultad de saber si Ticio enajenó la casa a título oneroso o gratuito puede tener origen en
otra fuente: la indeterminación semántica o vaguedad de los conceptos generales. [...] Llamaremos lagunas
de reconocimiento a los casos individuales en los cuales, por falta de determinación semántica de los
conceptos que caracterizan a un caso genérico, no se sabe si el caso individual pertenece o no al caso
genérico en cuestión. Mientras que el problema de las algunas normativas es de índole conceptual (lógico),
tanto das lagunas de conocimiento como las de reconocimiento aparecen en el nivel de la aplicación de las
normas a los casos individuales y tienen su origen en problemas empíricos o empírico-conceptuales
(semánticos)”. ALCHOURRÓN, Carlos E.; BULYGIN, Eugenio. Op. cit., p. 63. 232
Para visualizar esse percurso consultar o capítulo 1, páginas 32-49.
97
caso de a transferência ter sido feita, pelo possuidor, a título gratuito233
. Neste
exemplo a potencial vagueza e ambiguidade do termo “gratuito” se
maximizam considerando o caso concreto234
. Que seria uma transferência a
título gratuito para efeitos de obrigatoriedade da restituição do imóvel:
ausência de pagamento? Transação por valor abaixo do valor negociado no
mercado?
Note-se que lacunas de reconhecimento, diferentemente do que pode
parecer se considerarmos a perspectiva estática da filosofia da linguagem, não
são resolvidas por meio da produção de outras normas gerais e abstratas,
ainda que com maior grau de conotação ou denotação de sua linguagem.
Novas normas gerais e abstratas também verão frustrada sua tentativa
de esclarecer a priori os significados dos termos legais, já que lacunas de
reconhecimento só aparecem no processo de aplicação, ou seja, diante de um
caso concreto.
Se a característica essencial da regra jurídica do direito positivo é ser
abstrata (regular situações futuras), esse tipo de norma jamais eliminará
lacunas de reconhecimento (problemas que surgem a posteriori em relação à
lei posta), pois isso seria um contrassenso. Se a norma geral e abstrata fosse
capaz de resolver lacunas de reconhecimento, as lacunas de reconhecimento
simplesmente deixariam de existir. E isso não acontece, pois a complexidade
dos fatos e da realidade é infinita e naturalmente mutável, expondo, a todo
tempo, as limitações da linguagem produzida pelo legislador para lidar com
isso.
233
Ibidem, p. 41. 234
Ibidem, p. 64.
98
3.4.2 Dificuldades da Atividade Legislativa, uma Nova Concepção de Sistema
Jurídico e a Identificação de Lacunas Normativas
A noção ordinária de lacuna normativa remete à “falta de algo” e, neste
sentido, pode-se afirmar tratar-se de um conceito relacional: só se identifica a
ausência como produto da comparação.
Na obra de ALCHOURRÓN e BULYGIN, define-se lacuna normativa como
a ausência de solução jurídica para um determinado caso concreto235
.
Utilizando-se do mesmo exemplo da reivindicação do bem adquirido por
terceiro, identificam os autores que, para determinado conjunto de variáveis
fáticas, é possível que o sistema jurídico não tenha oferecido uma solução
normativa, ou seja, se seria obrigatória ou não a restituição do bem
reivindicado236
.
ALCHOURRÓN e BULYGIN não adotam o conceito tradicional de sistema
jurídico (conjunto de normas válidas derivadas do axioma definido por cada
autor – norma fundamental para Kelsen; regra de reconhecimento para Hart,
por exemplo), por considerá-lo pouco útil no estudo das lacunas. De fato, é
impossível identificar uma lacuna normativa em potencial, isto é, sem
delimitar os enunciados prescritivos analisados em relação a um caso
concreto237
.
Como adiantamos, o problema concreto trabalhado pelos autores é: se
uma pessoa possui um imóvel, cuja propriedade não lhe pertence, e o
235
Ibidem, p. 41. 236
Ibidem, p. 41 e 46 237
Afirmam os autores: “la noción de sistema u orden jurídico como conjunto de todas las normas válidas,
cuya validez puede derivarse de alguna fuente común, con el soberano (Austin), la norma básica (Kelsen) o
la regla de reconocimiento (Hart), es de relativamente poca utilidad para la ciencia jurídica. Los juristas
nunca analizan los problemas de completitud (lagunas) o coherencia (contradicciones) en relación a todo el
orden jurídico. Se preguntan a menudo si tal o cual ley o código, o algún conjunto definido de normas, es
completo em relación a algún problema específico, [...]”. Ibidem, p. 23.
99
transfere a um terceiro, em que circunstâncias, segundo o direito positivo, o
legítimo proprietário pode reivindicar o imóvel do terceiro? O Código Civil
argentino regula essa situação, segundo os autores, nos artigos 2777 e 2778238
:
Passemos agora à reconstrução do sistema do Código Civil. Este
contém somente dois artigos referente ao problema que nos ocupa:
Art. 2777: “Compete também [a reivindicação] contra o atual
possuidor de boa fé que por título oneroso houver adquirido de um
alienante de má fé...”
Art. 2778: “Seja a coisa móvel ou imóvel, a reivindicação
compete...contra o atual possuidor, ainda que de boa fé, se a tiver
adquirido a título gratuito...”
Diante dessa regulação normativa delimitada em face do problema
concreto, é possível construir o seguinte sistema normativo, considerando que
as variáveis relevantes são (i) boa fé do adquirente (BFA); (ii) boa fé do
alienante (BFE) e (iii) título oneroso (TO):
Caso Ausência ou Presença da Propriedade Relevante
1 BFA BFE TO
2 -BFA BFE TO
3 BFA -BFE TO
4 -BFA -BFE TO
5 BFA BFE -TO
6 -BFA BFE -TO
7 BFA -BFE -TO
8 -BFA -BFE -TO
As possíveis soluções normativas para esses casos só podem ser (i) é
obrigatório restituir a coisa (OR); ou (ii) é permitido (facultado) restituir a
coisa (FR). A contemplação dessas oito possibilidades (casos) com as
238
Ibidem, p. 45.
100
soluções normativas propostas pelos artigos 2777 e 2778 revela o seguinte
quadro:
Caso Ausência ou Presença da Propriedade Relevante Solução Normativa
1 BFA BFE TO
2 -BFA BFE TO
3 BFA -BFE TO OR
4 -BFA -BFE TO
5 BFA BFE -TO OR
6 -BFA BFE -TO OR
7 BFA -BFE -TO OR
8 -BFA -BFE -TO OR
Analisando os artigos 2777 e 2778 do Código Civil argentino diante de
oito possibilidades de casos concretos, os autores identificaram três lacunas
normativas, já que só há previsão legal para os casos de título gratuito (-TO) e
má fé do alienante (-BFE), sendo que em ambos os casos é sempre obrigatória
a restituição da coisa, pelo terceiro, ao legítimo proprietário239
.
O sistema jurídico construído nessa perspectiva demonstra que não há
solução normativa (ou seja, há lacuna normativa) para os casos 1 (em que há
boa fé do adquirente, boa fé do alienante e título oneroso), 2 (em que há má-fé
do adquirente, boa fé do alienante e título oneroso) e 4 (em que há má fé do
adquirente, má fé do alienante e título oneroso).
Supondo que exista um caso concreto como aquele retratado pela
situação 1 (boa fé do adquirente, boa fé do alienante e título oneroso),
teríamos tão somente uma “permissão fraca”, construída com base no
princípio da legalidade (aquilo que não é obrigatório nem proibido é
239
Ibidem, p. 46.
101
permitido) e não existe dúvidas de que será o Poder Judiciário o órgão
competente para preencher essa lacuna.
Em princípio, esse tipo de lacuna normativa decorre mais da má técnica
legislativa que do problema de imprevisibilidade. Contudo, não nos podemos
deixar levar pela ingenuidade proposital desse didático exemplo de
ALCHOURRÓN e BULYGIN. Considerando a complexidade da regulação da vida
social, as lacunas normativas podem, neste sentido, também serem encaradas
como resultado da impossibilidade ontológica de previsão das espécies de
situações futuras a serem reguladas pela legislação elaborada no presente.
3.4.2 Imprevisibilidade na Atividade Legislativa e Lacunas Axiológicas
Segundo a teoria construída por SCHAUER, exposta no item 3.3, regras
sobreincludentes seriam aquelas que incluem situações as quais, embora se
enquadrem na literalidade da regra, não se adequam à justificação dessa regra.
Por outro lado, as regras subincludentes deixam de incluir em seu enunciado
situações que se adequariam à sua justificação. Em ambos os casos, portanto,
as regras podem incluem situações além ou aquém daquelas que deveria
incluir (considerando as razões que levaram à produção da regra – situação
que se queria regular).
No mesmo sentido vem o conceito de lacuna axiológica trabalhado por
ALCHOURRÓN e BULYGIN. Essa denominação, que nos remete à utilização de
princípios e valores no processo de positivação do direito, decorre de certo
juízo subjetivo feito pelo intérprete.
A definição de lacunas axiológicas, na teoria de ALCHOURRÓN e
BULYGIN, supõe a existência de uma propriedade relevante verificada em
102
determinado caso concreto e que não foi expressamente prevista pelo sistema
jurídico240
.
Para dar um exemplo desse tipo de lacuna, tomemos a prescrição do
artigo 17 da Lei nº 9.430, de 1996241
- que permite a dedutibilidade de perdas
em operações de hedge realizadas fora do País, mas desde que realizadas
diretamente em bolsas no exterior – diante da situação de uma empresa
brasileira (multinacional) que, realizando operações de hedge na Bolsa de
Valores de Chicago (“CBOT”), necessita criar uma espécie de “Central de
Compensação” antes de chegar efetivamente à bolsa.
A empresa brasileira, por integrar um grande grupo econômico
multinacional e negociar commodities, necessita fazer operações de hedge ao
redor das bolsas de todo o mundo. Uma das bolsas mais acessadas para esse
tipo de operação é a CBOT. Contudo, a CBOT, preocupada com a
transparência das operações e a confiança dos agentes, proibiu a realização de
operações denominadas wash sales242
. Wash Sales são transações realizadas
no mercado de capitais que não envolvem a mudança de titularidade e, por
isso, aparentam falsamente a existência de um negócio jurídico-econômico. A
título ilustrativo considere-se a seguinte situação:
240
Ibidem, p. 152-158. 241
“Art. 17. Serão computados na determinação do lucro real os resultados líquidos, positivos ou negativos,
obtidos em operações de cobertura (hedge) realizadas em mercados de liquidação futura, diretamente pela
empresa brasileira, em bolsas no exterior.” 242
“Rule 534: No person shall place for the same beneficial owner buy and sell orders for the same product
and expiration month, and, for a put or call option, the same strike price, at or about the same time with the
intent to avoid a bona fide market position exposed to market risk (transactions commonly known or referred
to as wash sales). Buy and sell orders placed for the same beneficial owner in the same product and
expiration month, and, for a put or call option, the same strike price, must be entered in good faith for the
purpose of executing bona fide transactions that result in a change of ownership. Additionally, no person
shall accept the execution of orders which are prohibited by this rule with knowledge of their character. […]”
“Rule 539: No person shall prearrange or pre-negotiate any purchase or sale or noncompetitively execute any
transaction, [with certain very limited exceptions]”.
103
A empresa “A”, integrante do grupo “XPTO”, realiza um contrato “Z”,
de compra e venda, com a empresa “B”. “A” está obrigada à entrega do milho
e “B” está obrigada ao pagamento.Algum tempo depois, a mesma empresa
“A” (ou outra empresa integrante do grupo “XPTO”) realiza um contrato “Y”,
também de compra e venda, com a empresa “B”. Pelos termos do contrato
“Y”, “A” está obrigada a pagar pelo milho, que deve ser entregue por
“B”.Nesta situação, a empresa “A”, por meio de dois contratos (Z e Y),
aparenta estar realizando duas operações distintas quando, na verdade, está
celebrando duas operações simultâneas e, economicamente, não está
realizando negócio nenhum.
Se tal situação hipotética, denominada de wash sale, se verificar com a
celebração de contratos futuros no mercado de capitais, entre outros efeitos,
ela cria um danoso ambiente de preços falsos decorrentes de ilusórios
volumes de contratação.
É por essa razão que a CBOT determinou que as empresas com grande
volume de negociação, antes de se dirigirem à Bolsa para fazer suas
operações de hedge, passassem uma espécie de “Central de Compensação”,
eliminando, no âmbito dessa Central, aquele tipo de operação simultânea.
Diante dessa obrigatoriedade de a empresa brasileira multinacional passar
pela Central de Compensação antes de efetivamente contratar a operação de
hedge na CBOT, ela estaria descumprindo o art. 17 da Lei nº 9.430, de 1996?
O atendimento das regras regulatórias americanas, impostas às operações
realizadas no mercado de capitais, para que se evitasse, ao final, colocação de
operações com posições contrárias, induzindo artificialmente a cotação das
commodities, desnatura a expressão “realizadas [...] diretamente pela empresa
brasileira, em bolsas no exterior”?
104
Esse é um típico caso de lacuna axiológica. Caso o legislador tivesse
previsto a existência desse tipo de regulação das bolsas americanas quando
elaborou a regra, teria incluído essa propriedade relevante e, se fosse caso,
teria dado uma solução diferente ao caso concreto243
.
Esse tipo de “falha” do sistema jurídico sempre existiu e sempre vai
existir porque só o ato de aplicação é capaz de identificar e “corrigir”.
O exemplo que utilizamos tem baixa carga valorativa, mas o tema das
lacunas axiológicas traz consigo a possibilidade de entrarmos em um grande
debate sobre a discricionariedade do juiz no momento da aplicação das regras,
buscando a “justiça” do caso concreto. Esse embate entre rigidez /
flexibilidade normativa diante de possíveis inconformismos de aplicação da
regra a determinados casos concretos acompanha o modelo civil law desde
suas raízes.
Os romanos, na época do Império, criaram o método da “aequitas”:
uma forma de “flexibilização” do direito escrito para a busca da justiça244
:
Com a composição de leis escritas que governavam o Império
Romano, o direito parecia tornar-se bastante rígido. Numa tentativa
de adequar o direito aos casos concretos e dar-lhe maior
flexibilidade, foi desenvolvido o método da aequitas, cuja tradução
melhor se faz com o vocábulo “equidade”.
[...]
Já ponderava Ruggiero que não é raro suceder que o caso concreto
apresente circunstâncias diversas das previstas ou que não foram
previstas, de onde se segue que, se o juiz aplicasse rigidamente a
fórmula, do preceito da aplicação resultaria uma injustiça e o
resultado repugnava ao sentimento jurídico, pela desigualdade que
originava. Intervém, então, o critério da aequitas, que força o juiz a
levar em consideração as diversas circunstâncias e a adaptar-se a
elas na aplicação do preceito, de modo que se restaura aquele
243
Adverte-se que a noção de relevância, ou seja, a atribuição do caráter relevante para determinada
propriedade é descritiva, ou seja, é feita da perspectiva do intérprete e não da prescritividade inerente ao
direito positivo, conforme advertem Alchourrón e Bulygin, op. cit., p. 152-157. 244
VIEIRA, Andréia Costa, op. cit., p. 31.
105
princípio supremo de igualdade no qual a própria norma se inspira.
A equidade tem, pois, em vista impedir qualquer possível
dissonância entre a norma de direito e a sua aplicação concreta,
mercê daquele poder de ampla e livre apreciação que se confere ao
juiz.
(destaques não são do original)
Como sói acontecer depois desse tipo de afirmação que sutilmente
valoriza o papel da decisão judicial, surge a ingênua ressalva de que, mesmo
assim, mantem-se o papel prioritário da lei em relação à jurisprudência245
:
É claro que o princípio da equidade, modernamente aplicado, não
desobriga o juiz de aplicar as normas do direito positivo. Afinal, no
sistema legal Romano-Germânico, ao juiz cabe a função de
interpretar e aplicar a lei, sendo esta existente; nunca a de modificá-
la ou reinventá-la. Se assim o fizesse, estaria usurpando a função
do legislativo, e nem mesmo o princípio da equidade o autorizaria a
tanto. Pelo contrário, o objetivo da equidade é exatamente valorizar
a norma legislativa, dando-lhe amplitude à realidade.
LENIO LUIZ STRECK, ao criticar ferrenhamente a ideia das “súmulas
vinculantes”, faz a seguinte afirmação246
:
Continuamos a achar que – e essa discussão vai além das súmulas
(vinculantes formalmente ou não) – é possível construir conceitos
jurídicos (enunciados jurisprudenciais) aptos a prever todas as
futuras hipóteses de aplicação. Super-normas, pois. É como se
fosse possível “colocar” no interior de um texto jurídico todas as
suas hipóteses de aplicação.
(destaques nossos)
Embora o autor não estenda expressamente essa crítica ao direito
positivo, ela lhe cabe perfeitamente. Padecem as súmulas (vinculantes ou não)
do mesmo “mal” de que padecem as normas gerais e abstratas: se descolam
245
Ibidem, p. 32. 246
À guisa de prefácio. In: RAMIRES, Maurício. Crítica à Aplicação de Precedentes no Direito Brasileiro.
Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2010. p. 11.
106
de seu contexto de produção para serem aplicadas, de acordo com as variáveis
possíveis de serem previstas no presente, a situações futuras.
Esse tipo de lacuna, ao lado das lacunas normativas e de
reconhecimento, demonstra como a atividade legislativa e a linguagem do
direito positivo o tornam falível e, portanto, potencialmente inapto para
delimitar uma norma jurídica que regule a obrigação de pagar tributos.
3.5 Falibilidade do Direito Positivo e a Problemática Hierarquização
proposta pela Ciência do Direito
Conforme expusemos no item 2.3, é tradicional a concepção, tanto da
dogmática jurídica brasileira como dos cientistas do direito comparado
(talvez, nesse último caso, em razão do nível de metaobservação – descrição
do modelo civil law a partir da observação de como os cientistas desse
modelo jurídico o descrevem247
) de ver a lei como fonte primária do direito e
a jurisprudência como fonte secundária.
Diante do que descrevemos anteriormente (itens 3.2 a 3.4), nos parece
problemática e potencialmente danosa essa concepção secular arraigada ao
nosso modelo de sistema jurídico-político (civil law). Isso porque, se a lei é
inerentemente falha, a produção legislativa é, consequentemente, uma forma
falível para regulação de condutas, criando um déficit preocupante para a
ideia de Estado de Direito.
247
Conforme se percebe pelo seguinte trecho da obra de Andréia Costa Vieira “Em geral, todo livro de
direito, de qualquer disciplina (penal, civil, constitucional, trabalhista etc.) traz um capítulo, ou parte de um
capítulo, destinado às fontes do direito. A lei é sempre a primeira a ser mencionada em todos eles. Em
seqüência, aparecem o costume, a jurisprudência, a doutrina e os princípios gerais do direito, como fontes
secundárias que são. A seguir, obedecendo a essa seqüência, no mínimo por razões didáticas, serão expostas
algumas das particularidades de cada uma dessas fontes”. Op. cit., p. 63.
No mesmo sentido é a postura de René David: “[...] Para o fazer, ater-me-ei ao plano classicamente seguido e
examinarei sucessivamente o papel da lei, do costume, da jurisprudência, da doutrina e de certos princípios
gerais”. Os Grandes Sistemas de Direito Contemporâneo, cit., p. 91.
107
Transportando esse raciocínio ao direito tributário, essa concepção nos
parece ainda mais perigosa: se a lei, não só pela perspectiva da Ciência do
Direito, mas também pelo direito positivo (art. 5º da CF/88 e art. 3º do CTN)
– e, neste caso, ainda considerada em sentido estrito – deve ser a fonte
primária (no sentido de suficiência), como lidar com a falta de clareza no
desenho das incidências tributárias, prejudicando a liberdade de decisão do
indivíduo (pagar ou não pagar tributos)?
Tomando como base as premissas adotadas neste Capítulo,
pretendemos, neste último item, contextualizar e propor uma delimitação de
sentido mais precisa e adequada à afirmação de que a lei é (ou deveria ser) a
fonte primária para regulação de condutas, inclusive e especialmente para o
direito tributário.
3.5.1 Teoria Tradicional das Fontes do Direito e Elucidação do Termo para
Efeitos de Análise Crítica da Posição Hierárquica da Lei
A expressão “fontes de direito” é claramente utilizada de forma
ambígua no discurso da Ciência do Direito que descreve o modelo civil law,
quer pela utilização de uma noção indefinida de “direito”, quer pela
ambiguidade do termo “fonte”, que ora denota o processo de produção, ora o
produto que desse decorre248
.
TÁREK MOYSÉS MOUSSALLEM se debruçou brilhantemente sobre o tema
das fontes do direito em sua dissertação de mestrado249
, identificando as
diversas ambuiguidades que o uso metafórico da palavra “fontes” pode 248
Vê-se claramente essa ambiguidade quando Andréia Costa Vieira descreve as fontes do direito no sistema
romano-germânico: “Dizer das fontes de um determinado direito é dizer das suas origens, do seu nascimento,
da sua geração. Em relação a um sistema legal, é, ainda, mais especificamente, dizer onde nasceu, onde pode
ser encontrado e pesquisado, dizer que meios têm autoridade suficiente para expressá-lo primária ou
secundariamente”. Op. cit., p. 62-63. 249
A tese de mestrado do autor deu origem ao livro Fontes do Direito Tributário, primeiramente publicado
pela Max Limonad e, atualmente, pela Noeses (2ª edição, 2006, São Paulo).
108
denotar250
. Seu grande feito foi segregar o processo de produção da norma
(concretizado pelo veículo introdutor dos enunciados prescritivos) de seu
produto (concretizado pelos enunciados prescritivos introduzidos pelo veículo
introdutor), nomeando aquele como “enunciação-enunciada” e esse como
“enunciado-enunciado”251
.
Os cientistas do direito comparado (que descrevem o sistema de civil
law), ao proporem a hierarquização das fontes e a primariedade da lei,
parecem se referir ao produto (e não o processo)252
. Por essa razão, essa será a
acepção de “fonte” que entendemos estar sob objeto de análise crítica neste
item (produto).
Por outro lado, resta esclarecer o termo “direito” que, para TÁREK
MOYSÉS MOUSSALLEM, significa objetivamente o sistema do direito positivo
(conjunto de normas jurídicas gerais, abstratas, individuais e concretas –
inclusive combinadas – válidas253
). Obviamente que não é esse o sentido de
direito adotado na descrição do sistema de civil law, dada a inclusão do
costume, dos princípios gerais e da doutrina como fontes, além da expressa
menção a um conceito mais amplo de “direito” 254
.
Diferentemente da perspectiva do citado autor255
, também a teoria
tradicional das fontes do direito não exige que os costumes, a doutrina ou os
250
De fato, o autor se debruça muito mais à elucidação do termo “fontes” que ao termo “direito” para
trabalhar o tema, assumindo a concepção de direito como direito positivo. Op. cit., p. 102-120. Sem a
preocupação da precisão semântica, Giorgio Del Vecchio divide o tema das fontes do direito entre a noção
intuitiva (percepção social e sensorial do que seriam fontes do direito) e a noção técnica (fontes do direito
positivo, embora nessa última concepção inclua elementos como o costume). O Estado e suas Fontes do
Direito. Trad. Henrique de Carvalho. Belo Horizonte: Líder, 2005. 251
Op. cit., capítulos VI e VII, especialmente itens 6.3, 7.3 e 7.4. 252
Ver item 2.3 para as referências sobre essa conclusão. 253
Ibidem, p. 101. 254
DAVID, René, Os Grandes Sistemas do Direito Contemporâneo, cit., p. 88 e 91; VIEIRA, Andréia Costa,
op. cit., p. 63. 255
MOUSSALLEM, Tárek Moysés, op. cit., p. 159-161 e 164-166.
109
princípios gerais sejam incluídos no sistema do direito positivo para se
tornarem fontes do direito. A conotação de “direito” na expressão “fontes do
direito” é, de fato, bem mais subjetiva na teoria tradicional das fontes,
conforme se depreende das obras de GIORGIO DEL VECCHIO256
e MIGUEL
REALE257
.
De qualquer forma, considerando que não pretendemos analisar a
inclusão ou não de outras fontes que não a lei (direito positivo) e a
jurisprudência no rol das fontes de direito, essa discussão se torna
desnecessária. Em outros termos, considerando que analisaremos, neste item,
a posição da hierárquica da lei em relação à jurisprudência, a ideia de direito
como algo maior que ou coincidente ao sistema de direito positivo é
irrelevante (ambos seriam fontes do direito, numa acepção ou noutra).
Resta esclarecer, por fim, em que acepção se utiliza o termo “primária”
para qualificar a lei na hierarquia das fontes do direito.
Conforme expusemos no item 2.3, a primariedade nos parece estar
ligada, no discurso da Ciência do Direito comparado (cientistas que
descrevem o modelo civil law) e na dogmática brasileira, à suficiência na
regulação de condutas. Em outros termos, a expressão “lei como fonte
primária do direito” para qualificar determinantemente o traço distintivo dos
países de civil law é utilizada, valorativamente, no sentido de determinante
para a ordenação social, i. é, para orientar a ação dos indivíduos e,
consequentemente, as decisões judiciais.
Feitos esses esclarecimentos, concluímos que a análise crítica que
pretendemos fazer da afirmação da lei como fonte primária do direito está
256
Op. cit., p. 8-13 e 50-53. 257
Fontes e Modelos do Direito. 1ª ed., 3ª tiragem. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 14.
110
relacionada ao produto legislado (e não ao processo) e à ideia de suficiência
desse tipo de regra jurídica para regulação da conduta dos indivíduos.
3.5.2 Razões e Perigos da Tradicional Concepção de Lei como Fonte
Primária
Conforme explicado no item 2.3, a ideia de leis escritas (normas gerais
e abstratas) que predominam sobre a jurisprudência é um traço distintivo dos
países de civil law. Podemos rapidamente retomar essa ideia a partir das
palavras de ANDRÉIA COSTA VIEIRA258
:
Os países que compõem a família do sistema Romano-Germânico
são também conhecidos como “países de direito escrito”. Essa
denominação refere-se, particularmente, à lei escrita que é, em
todos os países, a fonte primária de direito, autoridade máxima
para expressá-lo, primeiro objeto a ser pesquisado na busca do
seu conhecimento. Não significa, entretanto, que a lei é a única
fonte de direito do sistema Romano-Germânico. Outras fontes há
que também expressam o conhecimento desse sistema legal.
Todas as outras, no entanto, têm papel secundário.
[...]
Em geral, todo livro de direito, de qualquer disciplina (penal, civil,
constitucional, trabalhista etc.) traz um capítulo, ou parte de um
capítulo, destinado às fontes do direito. A lei é sempre a primeira
a ser mencionada em todos eles. Em sequência, aparecem o
costume, a jurisprudência, a doutrina e os princípios gerais do
direito, como fontes secundárias que são.
(destaques não são do original)
A origem dessa primariedade da lei em relação aos atos do poder
executivo (atos infralegais) e ao Poder Judiciário pode ser atribuída à ideia da
separação dos poderes, também conforme já expusemos no item 2.3. Essa
percepção não ficou adstrita à Ciência do Direito descritiva do modelo civil
law e foi acuradamente trabalhada por JOSÉ RODRIGO RODRIGUES, em artigo
258
Op. cit., p. 63.
111
no qual ele pretendeu trabalhar a crítica à escola chamada pejorativamente de
formalista259
:
[...] minha preocupação é a com a separação dos poderes como
pressuposto institucional do formalismo [...].
[...]
Visões formalistas do Direito têm pressupostos institucionais
evidentes que normalmente ficam fora da discussão entre os
teóricos do Direito. [...] O Direito tem sido identificado à
subsunção não apenas em razão da miopia ou da teimosia de alguns
analistas e operadores do Direito, mas porque subsumir é a função
do Poder Judiciário no contexto da separação dos poderes em sua
visão clássica e esta forma de organizar a sociedade é a
consolidação de certa maneira de distribuir o poder entre os grupos
sociais.
[...]
Em suma, ao subsumir, evita-se que a vontade da sociedade,
expressa nas leis, seja desrespeitada. Além disso, trata-se de evitar
que o Estado sujeito os cidadãos a normas em cujo processo de
criação eles não tomaram parte, ainda que por intermédio de seus
representantes. [...]
[...] a despeito de críticas acerbas da separação de poderes, que têm
se multiplicado ao longo dos anos, ainda hoje permanecemos reféns
do conceito, das instituições e dos elementos de imaginação
institucional ligados a ele [...].
O professor TERCIO SAMPAIO FERRAZ JUNIOR, analisando a ideia do
direito como objeto de conhecimento, faz uma retrospectiva histórica sobre o
objeto da ciência jurídica e, ao final, descrevendo sobre a positivação do
direito e a ideia do direito como norma posta, assim se manifesta quanto às
fontes e sua hierarquização260
:
O fato de o direito tornar-se escrito contribuiu muito para
importantes transformações na concepção de direito e de seu
conhecimento. A fixação do direito na forma escrita, ao mesmo
tempo em que aumenta a segurança e a precisão de seu
entendimento, aguça também a consciência dos limites. A
possibilidade do confronto dos diversos conjuntos normativos
259
“A persistência do formalismo: uma crítica para além da separação de poderes”, op. cit., p. 161 e 165-167. 260
Introdução ao Estudo do Direito: técnica, decisão, dominação, cit., p. 72-73.
112
cresce e, com isso, aumenta a disponibilidade das fontes, na
qual está a essência do aparecimento das hierarquias. Estas, no
início, ainda afirmam a relevância do costume, do direito não-
escrito sobre o escrito. Pouco a pouco, no entanto, a situação
inverte-se. Para tanto contribuiu o aparecimento do Estado
absolutista e o desenvolvimento progressivo da concentração do
poder de legislar. Nesse período, a percepção da necessidade de
regras interpretativas cresce, o que pode ser observado por sua
multiplicação com vistas na organização e articulação das diversas
fontes existentes. Essas transformações iriam culminarem duas
novas condicionantes, uma de natureza politica, outra de natureza
técnico-jurídica. Quanto às primeiras, assinale-se a noção de
soberania nacional e o princípio da separação dos poderes;
quanto às segundas, o caráter privilegiado que a lei assume como
fonte do direito e a concepção do direito como sistema de normas
postas.
(destaques não são do original)
Neste trecho, o admirado professor acima citado nos oferece uma
explicação muito coerente para a ideia de hierarquização das fontes: a
inflexibilidade e a insuficiência do direito positivo. Embora muito se escreva
para explicar as razões da lei como fonte primária, nos parece exclusiva essa
concepção didático-descritiva das razões pelas quais, possivelmente, partiu-se
para o reconhecimento de outras fontes para regulação das condutas ao longo
da evolução do sistema romano-germânico.
De qualquer forma, o que queremos propor aqui é uma análise crítica
dessa concepção que se formou em torno das fontes, ou seja, de se reconhecer
outros mecanismos para regulação de condutas, mas, mesmo assim, manter-
se, a hegemonia da lei.
Quer do ponto de vista teórico261
, quer do ponto de vista normativo262
, a
ideia de Estado de Direito263
está ligada à previsão legal de condutas que, por
261
Exemplificativamente, ver: KELSEN, Hans. O Estado como Integração: um confronto de princípios.
Trad. Plínio Fernandes Toledo. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 93-104. 262
CF/88, Art. 5º, inciso II: “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude
de lei”.
113
sua vez, está intrinsecamente relacionada à noção de garantia de liberdades
individuais.
O professor GERALDO ATALIBA, descrevendo sobre a moderna
concepção de Estado de Direito, afirma264
:
[...] poucos são os estados contemporâneos que podem receber a
qualificação de Estado de Direito. Tal concepção corresponde ao
princípio rule of law – governo da lei e não dos homens [...].
A lei a que se refere o referido professor, e toda a teoria do direito
amparada pela ideia de separação dos poderes, é aquela vinda do Poder
Legislativo, como ele mesmo afirma265
:
Uma notável garantia que aos administrados oferece nosso sistema
constitucional está na objetividade com que se trata da questão das
fontes do Direito.
Resulta claro da leitura de nossos sucessivos Textos
Constitucionais – em benefício da segurança do cidadão e terceiros
submetidos à ordenação estatal – que só o Legislativo pode
emanar normas genéricas e abstratas contendo preceitos
inovadores vinculantes.
(destaques não são do original)
TERCIO SAMPAIO FERRAZ JUNIOR, trabalhando predominantemente a
evolução da relação entre liberdade, direito e norma jurídica assim coloca a
relação entre a noção moderna de liberdade e lei266
:
263
Sobre a evolução da ideia de Estado e Direito e sua atual indissociabilidade (no sentido de que o Estado é
uma figura política que se concretiza através do jurídico e pelas limitações que lhe impõem as leis), ver:
KELSEN, Hans. Teoria Geral do Direito e do Estado. Trad. Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes,
2005; DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado. 20ª ed. São Paulo: Saraiva, 1998.
capítulo III (Estado e Direito). 264
República e Constituição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1985. p. 94. 265
Ibidem, p. XVI. 266
Estudos de Filosofia do Direito: reflexões sobre o Poder, a Liberdade, a Justiça e o Direito, cit., p. 116-
123.
114
Instaura-se, destarte, uma perspectiva voluntarista e decisionista,
fundamento de um subjetivismo ético: o homem como consciência
livre e a liberdade de convivência como centro articulador da vida
em sociedade. A Era Moderna anuncia, assim, o advento de uma
sociedade complexa e altamente desagregada, funcionalmente
diferenciada e exigindo um fator externo que lhe compense a perda
da homogeneidade comunitária: o Estado burocrático.
Essa nova sociedade propiciará, afinal, o que Luhmann chamará de
“dupla separação”, cujo relevo para a noção de liberdade deve ser
sublinhado. De um lado, como a idéia de bem se torna relativa à
perspectiva dos indivíduos, o subjetivismo da vontade se separa e
se contrapõe ao objetivismo da razão e da ciência: é a separação
entre consciência ética e verdade. De outro lado, a vinculabilidade
das normas da moral e da religião restringe-se à esfera das decisões
privadas da consciência, separando-se da vinculabilidade objetiva
das normas jurídicas: é a separação entre consciência moral e
direito.
[...]
A dupla separação e o consequente abismo entre liberdade e
natureza trazem, por fim, um sério problema de legitimação.
Afinal, com base em perspectivas religiosas e mitológicas de cunho
objetivo, as tradições sociais constituíam um fundamento de poder
e uma orientação da ação humana, que agora se perdem no âmbito
da liberdade subjetiva da consciência. Surge assim a questão de
como articular a necessidade de se evitar distúrbios graves na
estrutura da identidade pessoal de agentes sociais subjetivamente
livres com a necessidade de constituir e estabilizar as expectativas
desses agentes livres, mediante a constitucionalização de sistemas
normativos objetivos. [...] Dito de uma simplista: como
institucionalizar a conhecida fórmula: a liberdade de um começa
onde termina a liberdade do outro?
[...]
Essa noção de liberdade (de consciência, individual), trazida pela
Era Moderna, produzirá significativas repercussões no direito.
Essas repercussões, que remontam a Donellus, apontam para um
claro delineamento de direitos individuais em relação ao Estado.
A concepção do Estado, na Era Moderna, traz traços originais. O
desenvolvimento de relações juridicamente ordenadas para uma
sociedade do tipo contratual e para o próprio direito como liberdade
contratual e, em especial, para configurações jurídicas da idéia de
autonomia autorizada por regulamentos resulta assim do
enfraquecimento da noção de vinculação de força de um estatuto
difuso, sagrado, e do crescimento da liberdade individual. [...].
Todos esses traços têm por base a liberdade no sentido moderno.
Essa liberdade, que se manifestará, juridicamente, pela autonomia
da vontade, confere a qualquer um a possibilidade de se vincular de
acordo com seus próprios interesses, portanto, de obedecer à norma
que resulta do seu livre engajamento. [...] A mesma liberdade que
115
engaja limita a liberdade. Por isso, na base do contrato moderno, a
lei que garante autonomia garante também a liberdade como não-
impedimento, ao equalizar, para todos, a mesma liberdade.
(destaques não são do original)
Pois bem. Todo esse cenário, que explica a teoria das fontes do direito e
a assunção da lei como fonte primária, toma como premissa que a lei oferece
aos indivíduos os parâmetros para regulação de suas condutas. Diante do que
exploramos nos itens 3.2 a 3.4: será?
JOHN RAWLS aprofunda essa relação entre lei, limites e Estado e
apregoa que essa fórmula só funciona, ou seja, só garante as liberdades
individuais, se os cidadãos compreenderem as normas que regulam as suas
condutas267
:
O princípio de que não há ofensa sem lei (Nullum crimen sine
lege), e as exigências nele implícitas, também deriva da idéia de
um sistema jurídico. Esse preceito exige que as leis sejam
conhecidas e expressamente promulgadas, que seu significado seja
claramente definido [...]. Essas exigências estão implícitas na noção
de regulamentação do comportamento por normas públicas. Pois
se, por exemplo, as leis não forem claros (sic) em suas injunções e
proibições, o cidadão não sabe como se comportar.
(destaques não são do original)
É exatamente esse ponto que queremos levantar aqui: considerando a
incapacidade permanente de as leis (seja em sentido estrito, ou até mesmo em
sentido amplo) transmitirem aos indivíduos a mensagem de como orientarem
a sua conduta, como fica a ideia de Estado de Direito para proteger as
liberdades individuais? É esse efeito potencialmente danoso a que nos
referimos no início deste item. Como permanecer afirmando a ideia de Estado
de Direito fundada nas leis como garantia das liberdades individuais se em
267
RAWLS, John. Uma Teoria da Justiça. Trad. Almiro Pisetta e Lenita Maria Rímoli Esteves. 2ª ed. São
Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 260-261.
116
incontáveis situações, especialmente em um ramo de alta complexidade como
o direito tributário, ela não é capaz de oferecer a delimitação das permissões,
obrigações e proibições?
Diante desse diagnóstico, proporemos uma nova concepção para a ideia
de primariedade da lei especialmente em relação à jurisprudência, começando
pelo próximo item 3.6 e finalizando no Capítulo 4 (valorização da decisão
judicial).
3.6 Primariedade da Lei como Fonte de Direito, Utilidade da Norma
Geral e Abstrata e Manutenção do Traço Distintivo dos Países de Civil
law
O grande problema de se entender a lei como fonte primária para
regulação de condutas está na sua incapacidade natural de transmitir
claramente a mensagem aos seus destinatários. Entretanto, não é preciso
abandonar completamente essa classificação secular, tampouco desprezar o
papel do direito positivo no nosso sistema jurídico. Para isso, propomos
diferençar “cronologia” de “hierarquia”.
Quando se colocam as fontes do direito em posição hierárquica, estando
a lei em primeiro lugar e a jurisprudência em segundo lugar, quer-se afirmar,
por um lado, a hegemonia da lei para regulação da vida em sociedade,
obedecendo-se à tradicional separação dos poderes. Neste sentido, atribui-se à
jurisprudência uma função meramente burocrática de aplicação da lei, já que é
a lei o instrumento por excelência para regulação das condutas (proibir,
permitir ou obrigar).
Contudo, não raro essa noção de hierarquia quer denotar muito mais um
sentido cronológico, embora isso não seja feito de forma expressa (aparece
117
muito mais por falta de precisão do discurso que por consciência dogmática
da limitação das leis). Ao reconhecer a existência de outras fontes do direito
que não a lei, os autores estão, na verdade, admitindo que existem outros
mecanismos para regulação de conduta na falta da lei. Ora, se eu admito que
os princípios gerais do direito, o costume e a jurisprudência atuam na falta da
lei, isso quebra a hegemonia da lei como reguladora de condutas e relativiza a
noção restrita de hierarquia.
É por essa falta de precisão discursiva que podemos manter a ideia de
primariedade da lei: desde que admitamos que ela é o ponto de partida
(primeiro olhamos para a lei para desenhar uma norma de incidência
tributária, por exemplo), mas não necessariamente o local de chegada (após a
análise das leis, é possível que precisemos também olhar para a jurisprudência
para verificar como ela aclarou ou completou o sentido das normas gerais e
abstratas). Em outros termos, ao reconhecer que existem outras fontes que
colaboram para regulação de condutas não faz mais sentido manter a lei no
“topo do patamar hierárquico da ordem jurídica no sistema legal Romano-
Germânico”268
, a menos que isso represente um ponto de partida.
Essa concepção de hierarquia no sentido cronológico, ou seja, entender
a lei como ponto de partida mantém intacto o traço distintivo dos países de
civil law e deriva de construções teóricas refinadíssimas.
Quando KELSEN idealiza a famosa ideia da “moldura” legal sobre o
qual se exerce o ato de interpretação269
vê na lei um ponto de partida e, ao
268
VIEIRA, Andréia Costa, op. cit., p. 63. 269
“A relação entre um escalão superior e um escalão inferior da ordem jurídica, como a relação entre
Constituição e lei, ou lei e sentença judicial, é uma relação de determinação ou vinculação: a norma do
escalão superior regula – como já se mostrou – o ato através do qual é produzida a norma do escalão inferior,
ou o ato de execução, quando já deste se trata; ela determina não só o processo em que a norma inferior ou o
ato de execução são postos, mas também, eventualmente, o conteúdo da norma a estabelecer ou do ato de
execução a realizar. Esta determinação nunca é, porém, completa. A norma do escalão superior não pode
vincular em todas as direções (sob todos os aspectos) o ato através do qual é aplicada. Tem sempre de ficar
118
mesmo tempo, reconhece suas limitações (sem, contudo, avançar na
problemática que isso poderia causar: falta de clareza quanto às regras que os
indivíduos devem obedecer e déficit na ideia de Estado de Direito).
Reconhece também, ainda que sem medir as consequências quanto à ideia de
hegemonia da lei e Estado de Direito, que no preenchimento dessa moldura há
um processo de criação de novas normas pelo Poder Judiciário270
.
Ora, se quem preenche o conteúdo da moldura é, em última análise, o
Poder Judiciário, só é possível admitir a primariedade da lei no sentido
cronológico (ponto de partida para delimitação da norma jurídica que obriga
ao pagamento de tributos), nunca no sentido estrito hierárquico (como se dele
tudo derivasse sem transbordar).
Essa ideia de complementaridade, que coloca a lei em primeiro lugar
tão-só no sentido cronológico (para desenho de uma moldura), pode de fato
ser deduzida do discurso sobre as fontes do direito no sistema de civil law.
Destaque-se, neste sentido, o trecho abaixo271
:
73. Previsibilidade do direito. [...]. Desejosa de reforçar a
segurança das relações jurídicas, a jurisprudência, logo que em
presença das regras formuladas com caráter muito geral, esforça-se
por deixa-las mais claras; os supremos tribunais, em particular,
exercem o seu controle sobre o modo como estas regras são
interpretadas pelos juízes de instâncias. A regra de direito não é
mais, nestas condições, que o cerne, um centro à volta do qual
gravitam regras de direito secundárias.
Em que medida as regras secundárias de direito vêm, assim,
completar a regra principal é difícil de precisar.
uma margem, ora maior ora menor, de livre apreciação, de tal forma que a norma do escalão superior tem
sempre, em relação ao ato de produção normativa ou de execução que a aplica, o caráter de um quadro ou
moldura a preencher por este ato.”. Op. cit., p. 388. 270
“Através de uma interpretação autêntica deste tipo pode criar-se Direito, não só no caso em que a
interpretação tem caráter geral, em que, portanto, existe interpretação autêntica no sentido usual da palavra,
mas também no caso em que é produzida uma norma jurídica individual através de um órgão aplicador do
Direito, desde que o ato deste órgão já não possa ser anulado, desde que ele tenha transitado em julgado. É
fato bem conhecido que, pela via da interpretação autêntica deste tipo, é muitas vezes criado Direito novo –
especialmente pelos tribunais de última instância.” Ibidem, p. 394-395. 271
DAVID, René. Os Grandes Sistemas do Direito Comparado, cit., p. 83.
119
[...]
74. Importância das regras secundárias. O direito encontra-se,
assim, nos países de família romano-germânica, não só nas regras
de direito, tal como são formuladas pelo legislador, mas também na
interpretação que os juízes fazem destas fórmulas. É permitido
perguntar-se se esta observação, precedentemente feita, não destrói
o alcance da asserção, segundo a qual a regra de direito é concebida
de uma maneira relativamente abstrata e geral. Não se regressará,
pela via indireta das “regras de direito secundárias” destacadas
pela jurisprudência, a uma concepção muito próxima daquela
que coloca a regra de direito ao nível das espécies submetidas à
jurisprudência?
A oposição entre as duas concepções [...] permanece aos nossos
olhos fundamental.
Qualquer que seja a sua importância, é certo que as regras de
direito secundárias elaboradas pela jurisprudência conservam uma
maior generalidade que a regra de direito à qual chega o juiz
quando não é guiado pelo legislador. Nós temos, por consequência,
nos países da família romano-germânica, muito “menos direito”
que nos países em que a regra de direito resulta diretamente de
formação judiciária. Os direitos da família romano-germânica
permanecem direitos fundados sobre princípios, como exige o
sistema; não são direitos casuísticos e conservam por este fato, ao
que parece, certas vantagens de simplicidade e clareza.
Não restam dúvidas que as regras de direito, tal como os
legisladores e os juristas destes países as pensam com o fim de as
formular, não se bastam a si mesmas; apelam para as regras
secundárias que acabam por as precisar e completar. Elas nem por
isso deixam de fornecer ao direito destes países, quadros sólidos,
não colocados em discussão, o que não deixa de ser vantajoso.
(os destaques são do original)
Contudo, embora essa concepção precise o sentido de fontes primárias
e secundárias no sistema de civil law, ela não elimina o problema inicial
colocado e que é, na verdade, a premissa por detrás dela: como lidar com a
ideia de Estado de Direito – sujeição de todos à lei e tão-só a ela – se a lei não
é mais hegemônica em relação à jurisprudência?
É para solucionar essa questão que proporemos, adiante, a valorização
da decisão judicial como elemento indispensável, ao lado da lei, para uma
120
efetiva garantia do Estado de Direito o que, inevitavelmente, também coloca
em xeque a ideia de separação dos poderes.
4 NECESSÁRIA VALORIZAÇÃO DA JURISPRUDÊNCIA NO
MODELO CIVIL LAW, PAPEL CENTRAL DAS DECISÕES
JUDICIAIS PARA A REGULAÇÃO DE CONDUTAS NO DIREITO
TRIBUTÁRIO E A IDEIA DE UMA REGRA-MATRIZ DE
INCIDÊNCIA TRIBUTÁRIA DINÂMICA
No Capítulo anterior, expusemos as falhas inerentes ao direito positivo
e, diante disso, a problemática concepção do modelo civil law, de enxergar a
lei como fonte primária, depositando nela toda a expectativa de um Estado de
Direito fundado no princípio da legalidade e na separação de poderes.
Neste Capítulo, pretendemos demonstrar a importância da
jurisprudência como instrumento capaz de cumprir o déficit de legalidade
inerente ao direito positivo (às normas gerais e abstratas)272
, o que reforça a
incoerência da teoria que propõe a hierarquização das fontes do direito, sem
nos transformar num país de common law.
A maior quantidade de leis e atos infralegais (processo de positivação
do direito) é a ferramenta que a tradicional concepção do sistema de civil law
usa para lidar com os problemas de clareza da legislação. Entretanto, a ideia
de que a maior quantidade de regras seria a solução para precisar-se o sentido
da legislação e, com isso, trazer clareza do tipo de comportamento a ser
seguido pelos indivíduos, pode ser uma armadilha.
272
Essa discussão sobre a valorização da jurisprudência só faz sentido nos sistemas de civil law, como coloca
Teresa Arruda Alvim Wambier na Apresentação do livro por ela coordenado, Direito Jurisprudencial:
“Trata-se da influência da jurisprudência no direito. Esse título já indica que o ponto de vista do observador é
a perspectiva do civil law, já que o sistema da common law se caracteriza exatamente pelo fato de que o
direito nasce e é moldado nos tribunais. Portanto, falar-se da influência da jurisprudência na formação do
direito é algo que só se justifica da perspectiva do civil law, já que nesse sistema se entende que o direito
brota predominantemente de atos do Poder Legislativo”. Direito Jurisprudencial. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2012. p. 5.
122
A produção escalonada de normas gerais e abstratas (da Constituição às
Leis Complementar e Ordinária, dos Decretos às Instruções Normativas), sob
o pretexto de garantir maior precisão da legislação, pode denotar um
paradoxo, uma vez que a maior quantidade de normas pode, ao oposto do
pretendido, tornar o sistema jurídico mais complexo e, consequentemente,
menos compreensível.
Se o objetivo do direito é orientar a conduta das pessoas, é premissa
inescapável que suas regras sejam inteligíveis. Quanto a esse assunto, é
interessante observar o movimento internacional iniciado nos anos 90 que,
buscando tornar o sistema tributário mais simples, propôs a diminuição da
quantidade de regras tributárias mediante a criação de legislações mais
genéricas273
.
É verdade que, no imaginário da população (inclusive de juristas que
militam fora da área tributária), o sistema tributário é provavelmente uma das
coisas mais incompreensíveis, nas palavras de GRAEME COOPER, professor de
direito tributário da Universidade de Sidnei (Austrália):
Existe um apelo natural de que a tributação é um lamaçal e isso
deve decorrer do fato de que a legislação se mostra
incompreensível. De fato, no imaginário popular, a legislação
tributária é provavelmente considerada a “apoteose da
incompreensibilidade”. Pode haver muitas razões para a
incompreensibilidade famosa das leis tributárias, incluindo a
linguagem e estilo.
Considerando os destinatários finais das regras tributárias – via de regra
os contribuintes, e os objetivos dessas regras – impor o pagamento de tributos, 273
Tradução livre do trecho: “There is some innate appeal to the intuition that if tax is a quagmire, it could
well be because the statute is incomprehensible. Indeed, in the popular imagination, tax law is probably
considered the apotheosis of incomprehensibility. There may be many reasons for the famed
incomprehensibility of tax laws, including language and style”. COOPER, Graeme. Legislating Principles as
a Remedy for Tax Complexity. British Tax Review, n. 4, p. 334-360, Dec/2010, p. 334-335. Disponível em:
http://ssrn.com/abstract=1724998. Acesso em: 23 nov. 2013.
123
seria imperioso que o sistema tributário de um país fosse compreensível: se o
contribuinte é o destinatário final da regra, o sistema tributário tem que ser
claro o suficiente para que as pessoas saibam que conduta devem seguir
(pagar ou não pagar o tributo). Assim, é inaceitável que um sistema tributário
seja complexo a ponto de o contribuinte não o entender e, assim, não saber se
ele está ou não obrigado ao pagamento de determinado tributo.
A hipótese tomada pelos países que iniciaram esse movimento era de
que as chamadas “regras-princípio” (enunciados cujo texto revelaria o
objetivo da política fiscal ao invés de traduzir o tipo de comportamento a ser
seguido) tornariam o sistema tributário mais compreensível a seus
destinatários, medida absolutamente indispensável a qualquer boa
democracia, nas palavras do já citado professor da Universidade de Sidnei274
:
Qualquer medida que tornasse a lei mais acessível para a
comunidade certamente seria imperiosa em uma democracia. Na
verdade, quem poderia ser contra uma legislação mais bem
elaborada? Se uma diferente elaboração fosse facilitar a
compreensão por parte dos cidadãos dos seus direitos e deveres,
então ela deve ser perseguida.
A forma que pode ou deve ser perseguida pelos elaboradores de
políticas públicas não vem ao caso neste trabalho. Contudo, fica claro que a
edição de mais e mais regras não seria, necessariamente, um caminho
adequado para a melhor regulação de condutas.
É claro que as normas individuais e concretas também são constituídas
por palavras, mas as palavras da norma geral e abstrata, pela qualidade desse
veículo introdutor (é preciso lhes dar um sentido mínimo a priori), têm maior
grau de vagueza e ambiguidade. As normas individuais e concretas, por 274
Tradução livre do trecho: “Any measure that would make law more accessible to the community must
surely in a democracy. Indeed, who could be against a better drafted statute? If different drafting would
facilitate better understanding by citizens of their rights and duties, then it must be pursued”. Ibidem, p. 336.
124
estarem na ponta final do processo de positivação, tendem a ter a exata função
de precisar o sentido das normas gerais e abstratas (eliminando problemas de
significação) diante de sua situação específica (eliminando lacunas de
reconhecimento, axiológicas e normativas). É neste sentido que proporemos a
utilização da jurisprudência como forma de preenchimento das lacunas do
direito positivo, oferecendo uma nova concepção para a aparente
característica que divide os sistemas de civil law e common law, mediante a
construção de uma Regra-Matriz de Incidência Tributária que chamaremos
“Dinâmica”275
.
4.1 Jurisprudência, Diferença Específica entre Lei (Normas Gerais e
Abstratas) e Decisão Judicial (Normas Individuais Concretas) e
Mecanismos de Correção da Falibilidade do Direito Positivo
Conforme explicamos no item 3.1, as leis em sentido amplo (ou o
direito positivo no sentido restrito que utilizamos aqui) são qualificadas como
normas gerais e abstratas. Isso quer dizer que seus enunciados prescritivos são
destinados a sujeitos indeterminados e preveem situações de possível
ocorrência (hipotéticas e futuras). Também explicamos que a “abstração” é
uma das características definitórias e, ao mesmo tempo, a principal causa de
falibilidade do direito positivo.
Dessa perspectiva da norma geral e abstrata fica ainda mais intrigante e
interessante definir a norma individual e concreta (ou seja, analisar a norma
individual e concreta de uma perspectiva relacional), especialmente aquela
veiculada pela decisão judicial, que é a que nos interessa mais proximamente.
275
Esse termo foi sugerido pelo Professor Eurico de Santi durante uma conversa sobre esta tese, realizada em
26 de outubro de 2013.
125
Genericamente falando, a norma individual e concreta é construída a
partir de enunciados prescritivos que se referem a situações específicas
(passadas) e sujeitos determinados. Mas não é só isso. Esses enunciados
prescritivos só são assim qualificados (ou seja, só formam uma norma
jurídica) porque entraram para o mundo do direito por meio da subsunção de
um dado fático a uma norma geral e abstrata.
A norma individual e concreta não revela uma situação específica
qualquer em seu antecedente: é produto de um ato de interpretação de fatos e
regras jurídicas. Sua construção, portanto, pressupõe atos de interpretação e
aplicação que são originalmente contingentes: o sujeito “A” pode interpretar
os enunciados prescritivos da legislação tributária de uma maneira “X”,
construindo a Regra-Matriz de Incidência Tributária X (“RMIT X”), que
somente será subsumível a fatos “x”. O sujeito “B” pode interpretar os
enunciados prescritivos da mesma legislação tributária de uma maneira “Y”,
construindo a Regra-Matriz de Incidência Tributária “Y” (“RMIT Y”), que
não será subsumível aos fatos “x”. Resolver essa contingência – se “B”
deveria ter pagado tributo na situação “x” ou se “A” tem direito à repetição do
indébito por ter pagado tributo na situação “x” – é competência do Poder
Judiciário. É ao Poder Judiciário que cabe a chamada “interpretação
autêntica” de KELSEN276
.
No direito tributário, a norma individual e concreta pode ser construída
tanto pelos particulares, como pelos Poderes Executivo e Judiciário.
Exemplo típico de norma individual e concreta construída pelo
particular é aquela que deriva da modalidade de lançamento por
homologação, prevista no art. 150 do CTN. Segundo essa previsão, a
legislação tributária pode atribuir ao sujeito passivo o dever de pagar o tributo 276
KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito, cit., p. 394.
126
antecipadamente a qualquer atividade da Administração Pública. Utilizando-
se desse dispositivo legal, todas as Administrações Tributárias (Federal,
Estadual e Municipal) utilizam largamente essa modalidade de lançamento de
tributos, reservando para si tão-só a prerrogativa de verificar se o
recolhimento foi feito corretamente.
Ao instituir tributo sujeito ao lançamento por homologação,
consequentemente atribui-se ao particular a obrigatoriedade de interpretar
tantas regras tributárias quanto forem necessárias para, aplicando-as,
constituir uma norma individual e concreta. (Note-se, aqui, como pode ser
prejudicial à ideia de Estado de Direito e de garantia da legalidade tributária –
segurança jurídica – a imprecisão do direito positivo).
À Administração Pública também é atribuída a obrigatoriedade de
constituir norma individual e concreta que documenta originariamente a
incidência (interpretação e aplicação) da legislação tributária, como no
exemplo do Imposto sobre a Propriedade Predial e Territorial Urbana (IPTU)
ou do Imposto sobre Serviços (ISS) devido pelas chamadas “sociedades
uniprofissionais”. Em outros casos, essa obrigatoriedade de constituir a norma
individual e concreta que documenta a incidência da legislação tributária não
é originária, ou seja, decorre do exercício de revisão do lançamento por
homologação previsto no art. 150 do CTN (é um lançamento de ofício
“substitutivo” ao lançamento por homologação).
A possibilidade de um lançamento de ofício que revisa o lançamento
por homologação feito pelo contribuinte decorre, especialmente, da
divergência entre a interpretação da Administração Tributária (que pode
construir uma RMIT X) e a interpretação do particular (que pode construir
uma RMIT Y).
127
Embora tanto a norma individual e concreta do particular como aquela
constituída pela Administração Tributária carreguem consigo a precisão de
sentido que as caracteriza, é ao Poder Judiciário que caberá, em última
análise, dizer qual a RMIT “contida” na legislação tributária: a RMIT X ou a
Y (ou ainda, a RMIT “Z”).
Tanto a norma individual e concreta do particular como aquela
construída pela Administração Tributária são atos derradeiros no sentido do
processo de positivação: denotam a interpretação de cada qual sobre o direito
positivo. Em outros termos, ambos os processos de interpretação e aplicação
enfrentaram parte daquelas dificuldades que acompanham as normas gerais e
abstratas (conforme Capítulo 3). Contudo, é a norma individual e concreta
construída pelo Poder Judiciário e veiculada por uma decisão judicial que nos
interessa, justamente por servir de termo à controvérsia sobre o sentido e a
aplicação da norma geral e abstrata277
.
A precisão da norma individual e concreta é de um tipo específico que
nunca poderá ser alcançado por uma norma geral e abstrata, já que uma das
principais características que as opõem é o cerne de sua definição. Uma
norma só é qualificada de abstrata porque se projeta para o futuro. Isso faz
com que ela seja inerentemente falha, isto é, sujeita à imprecisão de uma
definição a priori de seus termos e às lacunas idealizadas por ALCHOURRÓN e
BULYGIN. Por outro lado, uma norma só é qualificada de concreta porque faz
referência a uma situação específica e é exatamente em razão disso (estar
diante da aplicação a um caso concreto) que a torna mais precisa e capaz de
corrigir as falhas das normas gerais e abstratas.
277
É interessante anotar que a decisão judicial veiculada por meio do exercício do controle concentrado de
constitucionalidade não possui as mesmas características que a decisão judicial de um controle difuso de
constitucionalidade (ou de um controle de legalidade). A decisão judicial proferida em Ação Direta de
Constitucionalidade ou de Inconstitucionalidade analisa a lei em tese e não diante de um caso concreto, o que
elimina uma boa parte dos problemas de falibilidade do direito positivo, que diz respeito à subsunção.
128
Transformar uma norma individual e concreta veiculada por decisão
judicial278
em uma norma geral e abstrata, como pretendem as súmulas
vinculantes, é retornar ao status de falibilidade do direito positivo. A norma
individual e concreta é útil porque não passa pelo processo de generalização e
só nessa condição pode ser vista como complementar à norma geral e
abstrata, tornando mais próxima a ideia de legalidade tributária e Estado de
Direito.
A norma individual e concreta da decisão judicial é, portanto, resultado
de um processo de “correção” da falibilidade do direito positivo. Assumindo
essa premissa, a jurisprudência passa a ocupar um papel tão central quanto o
da lei, mesmo nos países de civil law, o que confirma a necessidade de revisão
da hierarquia proposta pela teoria das fontes do direito (neste Capítulo sob a
perspectiva da valorização da decisão judicial e não sob a constatação de
falibilidade da lei, como o fizemos no Capítulo anterior).
4.2 Valorização da Decisão Judicial e Desmistificação da Diferença
Específica entre os Modernos Sistemas de Civil law e Common law
Neste Capítulo pretendemos demonstrar que é simplista a percepção de
que a valorização da decisão judicial faz com que os sistema jurídico-políticos
278
A decisão judicial é sempre uma norma concreta, a não ser nos casos de controle concentrado de
constitucionalidade e das “sentenças normativas” da Justiça do Trabalho, conforme adverte Tárek Moysés
Moussallem: “As normas jurídicas inseridas pelos juízes, através dos veículos competentes estabelecidos
pelo ordenamento, hão de ser sempre normas concretas, pouco importando se gerais ou individuais [Nota de
Rodapé 240: Exceção feita à Justiça do Trabalho, no caso das chamadas “sentenças normativas”,
expressamente permitidas pela Constituição Federal]. O Poder Judiciário jamais cria norma abstrata, pois é
condição para a sua atuação, além da provocação (princípio da inércia), a ocorrência do descumprimento do
disposto no conseqüente da norma primária. Neste sentido, os juízes e a atividade por eles exercida, em
virtude da norma secundária, criam, quando provocados, sempre normas concretas” (destaques são do
original). Op. cit., p. 152.
129
dos países de civil law simplesmente se transmutem ao sistema de common
law279
.
De fato, a noção mais comum que predomina na diferenciação entre os
sistemas jurídicos enquadráveis no modelo civil law ou de common law está
ligada à dicotomia legislação / jurisprudência ou legislador / juiz. GUIDO
SOARES resume didaticamente essa percepção ordinária280
-281
:
Qualquer estudioso de um sistema nacional daqueles direitos que se
encontram dentro da família romano-germânica, ou seja, da Civil
Law, tendo uma metodologia elaborada nessa família e que
pretenda analisar outro sistema nacional, da mesma família, saberá
como conduzir-se: se for um estudo em extensão, bastará
consultar as principais leis escritas, os doutrinadores mais
conhecidos, e, se for um estudo em profundidade, então um
conhecimento da jurisprudência será necessário. Para conhecer
algum sistema da Common Law, inda que de maneira
superficial, tal metodologia seria exatamente a mais
desastrada! Além de as normas escritas serem verdadeiros
desafios para um leitor de mediana complacência [...], são elas
incompletas para descrever um universo em que age um outro
legislador, o juiz, em matéria contenciosa, portanto casuística, mas
com efeitos normativos gerais.
(destaques não são do original)
Para além de explicitar mais nitidamente essa noção comum que se tem
sobre o papel da decisão judicial num modelo e noutro, pretendemos
desmistificar, utilizando várias das premissas colocadas no Capítulo 3, essa
279
Georges Abboud adverte: “Parece haver uma verdadeira feitichização por parcela de nossa doutrina em
relação ao common law, de modo que diversas reformas legislativas ou teorias são justificadas sob o
argumento de que elas seriam oriundas do common law”. Precedente Judicial versus Jurisprudência Dotada
de Efeito Vinculante: a ineficácia e os equívocos das reformas legislativas na busca de uma cultura de
precedentes. In: WAMBIER, Teresa Arruda Alvim (coord.). Direito Jurisprudencial, cit., p. 493. 280
Op. cit., p. 15-16. 281
Mais resumida e pragmaticamente tem a mesma postura o professor Rodolfo de Camargo Mancuso.
Divergência Jurisprudencial e Súmula Vinculante. 4ª ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2010. p. 57.
130
concepção dogmática que insiste em manter um status quo que não se sustenta
após a evolução de ambos os tipos de sistemas jurídicos282
.
4.2.1 Origens e Características da Common Law, o Papel da Lei e a
Valorização da Decisão Judicial
A tradicional concepção da ausência de leis e da presença da
jurisprudência para regulação de condutas nos países de common law pode ser
atribuída às origens desse sistema283
.
A predileção do povo inglês para um direito construído a partir da
realidade, do julgamento dos casos concretos (sem a necessidade de
generalização dessas situações em leis escritas), fez como que o modelo
common law, originado na Inglaterra, utilizasse o processo indutivo (de
generalização de cada decisão judicial tão-somente pelo intérprete284
) em
282
O professor de Direito e Filosofia da Georgetown University, David Luban, também coloca esse
dicotomia em termos de uma simplificação exagerada e perigosa: “Há não mais que duas décadas os
conhecimento do direito de outras nações consistiam basicamente em slogans e clichês. [...] Supostamente, a
common law seria feita por juízes, enquanto o direito codificado seria feito pelos legisladores. E, enquanto o
juiz no direito codificado seria supostamente olharia somente para os códigos e a doutrina, o juiz do sistema
da common law teria sua atenção voltada apenas a precedentes vinculantes proferidos pelos tribunais. Como
muitos estereótipos, essas confortáveis dicotomias contêm um grão de verdade; mas como a maior parte dos
estereótipos, essas confortáveis dicotomias contêm um grão de verdade; mas como a maior parte dos
estereótipos, o grão da verdade é excedido em peso por um armazém de grandes simplificações e claras
inverdades. [...] Em lugar algum os juízes deixam de criar direito. E em lugar algum os juízes ignoram a
legislação ou as decisões proferidas nos tribunais”. Prefácio. Trad. Júlio César Bueno. In: LIMA, Augusto
César Moreira. Precedentes no Direito. São Paulo: LTr, 2001. p. 5. 283
A história da common law origina-se na Inglaterra e pode ser dividida basicamente em quatro fases: (i)
antes da conquista normanda; (ii) a partir da conquista normanda e até a Dinastia Tudor (1485); (iii)
nascimento da equity e (iv) a Lei de Organização do Judiciário (Judicature Act), que entrou em vigor em
1875. É basicamente no final do século XIII e no século SIV que o civil law se diferenciou do common law,
mediante o fortalecimento do tribunal inglês de Londres e do Parlamento Francês. Cf. STRECK, Lenio Luiz;
ABBOUD. O que é isto – o precedente judicial e as súmulas vinculantes? Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2013 (coleção O Que é Isto?). p. 20-23 e 25. 284
Faz-se essa ressalva porque parte das compilações de Justiniano (Corpus Iuris Civilis) também teve
origem nas decisões de casos concretos (pretores e jurisconsultos). A diferença é que no modelo civil law as
decisões tomadas para solução de um caso concreto tendem a se transformar (assim como ocorreu no direito
romano) em generalizações por meio de um ato do legislador e não somente por um ato de conhecimento do
intérprete do precedente.
131
detrimento da produção de normas gerais e abstratas sistematizadas
esteticamente em códigos (como ocorre no civil law) 285
.
RENÉ DAVID resume muito didaticamente a origem evolutiva da
common law em comparação ao civil law286
:
Do início do século XIII ao fim do século XVIII, o ensino do
direito foi realizado nas Universidades, na França, com base no
direito romano; os ‘costumes’ não eram ensinados, ou só o eram
tardiamente e de maneira muito acessória. Todos os juízes das
jurisdições superiores, bem como os advogados, tinham de ser,
desde a época de São Luís, ‘juristas’, isto é, licenciados em direito
com formação universitária. Na França, os tribunais
continuaram a aplicar em princípio os costumes, mas sua
maneira de considerá-los, de interpretá-los, de adaptá-los, de
completá-los, foi influenciada, de forma mais ou menos
consciente, pelo direito erudito, que nas Universidades haviam
aprendido a encarar como um modelo e que era, para eles, uma
verdadeira razão escrita. A influência do direito romano foi
considerável no Sul e na Alsácia (regiões de direito escrito),
mais limitada no norte (região de costumes); tanto aqui como ali,
ela foi, no fim das contas, importantíssima.
No início do século XIX, o legislador interveio com a finalidade
de completar a obra da jurisprudência. Pela promulgação de
códigos, ele unificou e reformou os costumes e tornou aplicável
na França o sistema racional que as Universidades haviam
elaborado, partindo da base do direito romano.
[...]
As Universidades inglesas também ensinaram, é verdade,
apenas o direito romano, mas sua influência foi desprezível,
pois nunca se exigiu, na Inglaterra, que juízes ou advogados
tivessem título universitário. [...] As Cortes Reais [...]
elaboraram um novo direito, a common law, para cuja
formação o direito romano desempenhou um papel muito
limitado.
(destaques não são do original)
À época da consolidação do direito romano na Europa continental, na
Inglaterra existiam dois tipos de soluções de conflitos: aqueles entre
285
DAVID, René. O Direito Inglês. Trad. Eduardo Brandão (revisão técnica e da tradução Isabella Soares
Micali). 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006. p. 3. 286
Ibidem, p. 1.
132
particulares eram resolvidos predominantemente pelos costumes locais;
aqueles que se relacionassem com assuntos da coroa (direito público) eram
solucionados pelas Cortes Reais. Essas últimas soluções, dadas pelas Cortes
Reais, valiam para todos e, por isso, era chamado de comune ley ou common
law (essa a origem do termo atual)287
.
Com o tempo, contudo, os particulares começaram a preferir discutir
seus conflitos nas Cortes Reais, dadas suas regras processuais mais modernas
e a maior garantia de efetividade de suas soluções. Como as Cortes Reais
aparentavam intenção de ampliar suas competências, de alguma forma
encontravam um modo de acolher as pretensões dos particulares, afetando
indiretamente a demanda aos interesses da coroa. Assim, a common law “se
tornou um sistema geral comportando regras para todas as situações, tanto de
direito público como de direito privado” 288
.
O acesso às Cortes Reais era, de qualquer forma, dificultado pela
necessidade de enquadramento do caso aos mecanismos processuais
existentes, o que também impedia a aplicação do direito romano na Inglaterra,
conforme expressa RENÉ DAVID289
:
Essas dificuldades de ordem processual, expressas pelo brocardo
Remedies precede Rights, marcaram profundamente o
desenvolvimento da common law. [...] Nessas condições, nem se
podia cogitar propor-lhe conceitos e soluções romanos, por mais
razoáveis e perfeitos que pudessem ser. O direito romano podia
seduzir jurisdições com uma competência geral; nas jurisdições de
exceção, como eram as Cortes Reais, não se tinha a mesma
liberdade de manobra: era-se obrigado a situar-se no âmbito das
normas processuais formalistas existentes.
[...]
Os juristas ingleses foram levados, assim, a concentrar sua atenção
no direito processual, que era sempre cheio de ciladas, em vez de
287
Ibidem, p. 4. 288
Ibidem, p. 5-6. 289
Ibidem, p. 3.
133
concentrar-se no direito material. A preocupação essencial
sempre foi, na Inglaterra, levar o processo a seu fim,
frustrando todas as manobras do adversário; e, conseguindo-o,
era necessário, além disso, remeter-se ao veredicto,
frequentemente imprevisível, de um júri. [...] O direito inglês
não continha verdadeiramente regras materiais, mas apenas
uma série de técnicas processuais graças às quais resolviam-se
os litígios. O direito romano, em tais circunstâncias, não pôde
ser utilizado como modelo da mesma maneira que o era o
continente.
(destaques não são do original)
Aqueles que não conseguissem o acesso às Cortes Reais acabavam
recorrendo ao rei, que aceitava reanalisar os casos para evitar injustiças em
seu reino. Com o incremento exponencial das demandas, o rei passou a
delegar essa função a um Chanceler (Cortes de Chancelaria). A jurisprudência
criada por essa instância de julgamento passou a ser chamada de Equity e
servia para complementar a common law (jurisprudência das Cortes Reais)290
.
No final do século XIX as Cortes Reais fundiram-se às Cortes de
Chancelaria291
, mas a tradicional distinção em termos de competência acabou
sendo mantida mesmo dentro de um tribunal único. É por isso que diz,
atualmente, existirem common lawyers e equity lawyers292
.
290
“As partes numa disputa que não tivessem acesso às Cortes Reais, ou que não pudessem obter justiça
dessas Cortes, tinham, porém, uma possibilidade: dirigir-se, por uma petição, ao rei, fonte de justiça, pois
este não podia tolerar um mau funcionamento desta em seu reino. [...] Essas petições tornaram-se, no século
XVI, numerosíssimas e passaram a ser julgadas, fora do Conselho, por um alto funcionário da Coroa, o
Chanceler. Com a multiplicação dos recursos, o Chanceler, por outro lado, em vez de procurar em cada caso
o que a equidade exigia, acabou definindo “regras de equidade” (rules of equity) de acordo com as quais
examinaria as petições que lhe eram dirigidas e julgaria os diferentes casos-tipos a ele submetidos.”. Ibidem,
p. 8-9. 291
O Judicature Act, editado em 1873 e que entrou em vigor em 1875, foi o responsável pela “fusão” do
common law com a equity. CANNATA, Carlos Augusto. Historia de La Ciencia Juridica Europea. Madrid:
Tecnos, 1996. p. 228. 292
“Todas as ‘divisões’ da Supreme Court of Judicature, criada em 1875, podem, sem dúvida, aplicar hoje
tanto as regras da common law quanto as regras ou remédios da equity. Mas, de fato, subsistem no seio da
Corte, dois tipos de ritos processuais: certos casos, levados a certos juízes, são tratados de acordo om um rito
herdado das antigas Cortes de common law, enquanto outros examinados de acordo com um rito herdado da
antiga Corte da Chancelaria. Os juristas familiarizados com um desses ritos não o são com o outro; assim, a
134
Em virtude dessa evolução histórica é que a valorização da decisão
judicial vem arraigada culturalmente aos países de common law293
. Isso não
significa, contudo, que atualmente não existam normas gerais e abstratas, quer
na Inglaterra294
-295
, quer nos demais países que herdaram o modelo inglês para
construção de seus sistemas jurídicos nacionais296
-297
.
A estrutura codificada e sistematizada de normas gerais e abstratas,
embora não presente na Inglaterra298
, pode ser encontrada nos países
distinção fundamental entre os juristas ingleses continua sendo uma distinção entre common lawyers e equity
lawyers, fundada numa consideração processual". Cf. DAVID, René. O Direito Inglês, cit., p. 10.11. 293
“O direito inglês é, essencialmente, obra das Cortes Reais – Cortes de common law e Cortes de equity –
que o criaram de precedente em precedente, buscando em cada caso a solução que era ‘razoável’ consagrar.
Esse modo de formação e de desenvolvimento do direito inglês acarreta várias conseqüências. Em primeiro
lugar, implica o reconhecimento de um certo valor dos ‘precedentes’. [...] O direito inglês só pôde
desenvolver-se e tornar-se um sistema porque, desde uma época bastante antiga – desde o século XIII -,
existiram coletâneas de jurisprudência e porque os juízes levaram muito em consideração os precedentes. A
autoridade reconhecida aos precedentes é, por via de consequência, considerável, pois pode revelar-se como
sendo a própria condição de existência de um direito inglês”. Ibidem, p. 12-13. 294
“Convém assinalar, enfim, como um fenômeno típico do século XX, o novo papel representado no direito
inglês pela legislação (statute law). [...] Na época atual, o ‘Welfare State’ (‘Estado Social’ ou ‘Estado do
bem-estar social’) se esforça, na Inglaterra, como na França, em criar uma nova sociedade, com mais
igualdade e mais justiça. Neste contexto, a legislação e a regulamentação administrativa deverão
desempenhar um papel primordial. O direito inglês, que até século XX era um direito essencialmente
jurisprudencial, atribui hoje uma importância cada vez maior à lei”. Ibidem, p. 11. 295
Até em uma Constituição escrita pensam os ingleses, embora a ausência dela seja um dos motivos de
maior orgulho para o povo inglês, conforme afirma a doutrina: “Para um inglês o aspecto mais provocador
destas palestras talvez seja a sugestão de que deveríamos adotar na Inglaterra uma constituição escrita e uma
Carta de Direitos. Sempre foi do orgulho do homem comum inglês o fato de não possuir uma constituição
escrita, mas de ter suas liberdades garantidas pelo Parlamento e pelas Cortes. Pode ser que o Parlamento e as
Cortes necessitem agora de um fortalecimento do Direito escrito, de modo que possam desincumbir-se em
conjunto de seu antiqüíssimo encargo de proteger o castelo do homem inglês contra intrusos, mesmo quando
tal instituto é o Estado”. SCARMAN, Lorde Leslie. O Direito Inglês: a nova dimensão. Trad. Inez Tóffoli
Baptista. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1978. p. 9. 296
O direito inglês está para os países de common law como o direito romano está para os países de civil law.
Como afirma René David: “o direito inglês está na origem da maioria dos direitos dos países de língua
inglesa, tendo exercido uma influência considerável sobre o direito de vários países que sofreram, numa
época de sua história, a dominação britânica. [...] É por seu estudo que convém começar todo e qualquer
estudo dos direitos pertencentes à “família de common law””. O Direito Inglês, cit., p. VII e VIII. 297
“Convém ressaltar que não é correto apresentar o common law tão somente como um direito não
codificado de base tipicamente jurisprudencial. Em verdade, boa parte das regras de direito que se aplicam
todos os dias na Inglaterra e nos Estados Unidos são regras sancionadas pelo Poder Legislativo ou pelo poder
administrativo. Inclusive, nos Estados Unidos, chega-se a falar de um fenômeno designado pelo neologismo
staturification do direito, em alusão ao termo statute, que em inglês significa lei em sentido formal”. Cf.
STRECK, Lenio Luiz; ABBOUD, op. cit., p. 25. 298
“Não há, na Inglaterra, códigos como encontramos na França, e apenas em matérias especiais foi feito um
esforço para apresentar o direito de forma sistemática. Não é isso um acaso. A concepção do direito que os
ingleses sustentam é, de fato, ao contrário da que prevalece no continente europeu, essencialmente
jurisprudencial, ligada ao contencioso” DAVID, René. O Direito Inglês, cit., p. 3.
135
descendentes da cultura de common law299
. Conforme afirma ALAN WATSON,
“algumas indubitáveis jurisdições de common law, notadamente a Califórnia,
são codificadas”300
.
4.2.2. Teoria das Fontes do Direito e Diferença Específica da Valorização da
Decisão Judicial nos Modelos de Civil Law e Common Law
Considerando que atualmente o sistema de common law possui leis
(statutes), qual a diferença do modelo common law em relação ao modelo
civil law? A resposta é: a ausência de hierarquia entre as normas gerais e
abstratas (statutes) e as decisões judiciais.
No sistema de common law, dada a sua origem cultural de considerar a
decisão judicial como meio apto à regulação de condutas, já está arraigada a
tradição de valorização da jurisprudência. Isso, contudo, não afasta a
regulação por meio de normas gerais e abstratas301
. Há, efetivamente, uma
integração entre ambas as fontes do direito, conforme ressaltam JOHN HENRY
MERRYMAN e ROGELIO PÉREZ-PERDOMO302
:
299
Guido Soares chega a classificar o sistema americano como um sistema misto entre a common law e a
civil law. Op. cit., capítulo 4. 300
Tradução livre do trecho “[...] some undoubted common law jurisdictions, notably California, are
codified”. Op. cit., p. 3. 301
Afirma-se que os magistrados ingleses dão uma interpretação literal e restritiva às leis promulgadas pelo
Parlamento, pois enxergam essas regras (enacted law) como complementares: verdadeiras exceções ao tácito
sistema costumeiro (costumary law) vigente e abrangente. O Parlamento serviria para preencher as lacunas
deixadas pelo Judiciário e pelos costumes (e não o contrário, como comumente se afirma no civil law). Cf.
SCARMAN, Lorde Leslie, op. cit., p. 16-17. 302
Tradução livre do trecho “In the common law world, on the other hand, a world less compelled by the
peculiar history and the rationalist dogmas of the French Revolution, quite different attitudes prevail. The
common law of England, an unsystematic accretion of statutes, judicial decisions, and customary practices, is
thought of as the major source of law. It has deep historic dimensions and is not the product of a conscious
revolutionary attempt to make or to restate the applicable law at a moment in the history. There is no
systematic, hierarchical theory of sources of law: legislation, of course, is law, but so are other things,
including judicial decisions. In formal terms the relative authority of statutes, regulations, and judicial
decisions might run in roughly that order, but in practice such formulations tend to lose their neatness and
their importance. Common lawyers tend to be much less rigorous about such matters than civil lawyers. The
attitudes that led France to adopt the metric system, decimal currency, legal codes, and a rigid theory of
136
Na common law, por outro lado, um mundo menos compelido pela
história peculiar e os dogmas racionalistas da Revolução Francesa,
atitudes bem diferentes prevalecem. Na common law da Inglaterra,
um crescimento assistemático de leis, decisões judiciais e práticas
costumeiras é considerado a principal fonte de direito. Essa
concepção tem profundas dimensões históricas e não é produto de
uma tentativa revolucionária consciente para fazer ou para
reafirmar a lei aplicável a um momento na história. Não existe
uma teoria sistemática e hierárquica das fontes do direito: a
legislação, claro, é considerada como lei, mas assim também o
são as decisões judiciais. Em termos formais, a autoridade relativa
de estatutos, regulamentos e decisões judiciais pode ser executada
aproximadamente nessa ordem, mas na prática essa cronologia
tende a perder sua nitidez e sua importância. Juristas de common
law tendem a ser muito menos rigorosos nesse assunto que os
juristas de civil law. As atitudes que levaram a França a adotar o
sistema métrico, a moeda decimal, os códigos legais, e uma teoria
rígida das fontes do direito, tudo no espaço de poucos anos, ainda
são, basicamente, o que o diferencia da tradição de common law.
(destaques não são do original)
No prefácio de seu livro “Civil Law e Common Law: os dois grandes
sistemas legais comparados”, ANDRÉIA COSTA VIEIRA descreve que recebeu a
seguinte resposta de um professor britânico ao indagar o que ele queria dizer
sobre “consultar a common law”: “The statutes are not enough, young lady –
that’s what I mean”303
.
A ausência de hierarquia para as fontes do direito (especialmente a lei e
jurisprudência) pode propiciar uma integração positiva de enunciados
prescritivos que colaboram mais precisamente para a construção de uma
norma de conduta, tal como uma Regra-Matriz de Incidência Tributária. Neste
sentido é que proporemos, sem abandonar a moldura proposta pela lei nos
sistema de civil law, uma valorização da jurisprudência, abandonando o
sources of law, all in the space of a few years, are still basically alien to the common law tradition”. Op. cit.,
p. 25-26. 303
VIEIRA, Andréia Costa, op. cit., p. 12. Em tradução livre, a frase significa “As leis não são suficientes,
jovem senhora – é isso que eu quero dizer”.
137
preconceito inicial de que culturalmente esse modelo se opõe ao da comum
law exatamente por desvalorizar a decisão judicial de efeitos prospectivos.
4.2.3 Revisão da Teoria das Fontes do Direito no Civil Law diante da
Necessária Valorização da Decisão Judicial
Uma proposta de valorização da decisão judicial nos sistemas de civil
law, especialmente no direito brasileiro (e no direito tributário a que estamos
nos dedicando nesta tese), não necessariamente implica numa
“commonlawnização”. Aliás, esse é um preconceito que pode impedir o
importante passo inicial de valorização da jurisprudência e garantia mais
efetiva da legalidade tributária.
Essa afirmação tem sido colocada para alertar que a doutrina de
precedentes do modelo common law não foi formada de forma artificial, ao
contrário, decorreu de um longo processo histórico e foi implementada de
forma consequencial e natural e que, por isso, não se pode achar possível
implementa-las de forma artificial (por meio de leis) no modelo civil law304
.
O fato de nossa origem histórica ter privilegiado a codificação, o geral,
as normas escritas, contudo, não pode impedir uma avaliação crítica do
modelo civil law, tampouco deveria servir de bloqueio à valorização da
jurisprudência.
Neste sentido é a postura de RENÉ DAVID, que coloca interessantes
indagações para repensarmos as premissas de nosso modelo civil law305
:
A origem histórica das nossas classificações, o caráter relativo dos
nossos conceitos, o condicionamento político ou social das nossas
instituições, apenas nos são revelados com clareza, se para os
304
Neste sentido ver STRECK, Lenio Luiz; ABBOUD, Georges, op. cit., p. 9 e 25. 305
Os Grandes Sistemas do Direito Comparado, cit., p. 4.
138
estudarmos, nos colocamos fora do nosso próprio sistema de
direito. De que valem as nossas distinções de direito público e
direito privado, de civil e de comercial, de direito imperativo e
supletivo, de lei e regulamento, de direitos reais e de direitos de
crédito, de móveis e imóveis? Aquele que apenas estudar (sic) o
direito francês considera estas oposições naturais e é tentado a
atribuir-lhes um caráter necessário. O direito comparado faz-nos
ver que não são aceitas em toda a parte, que podem estar em
declínio ou mesmo ter sido abandonadas em certos países; mais que
a sua origem, o direito comparado nos leva a nos interrogarmos
sobre a sua justificação e o seu alcance reais no sistema do nosso
direito nacional atual.
O mesmo sucede aos conceitos utilizados no nosso direito: também
neste caso o direito comparado contribuiu para modificar a atitude
que tende a atribuir a estes conceitos um caráter de necessidade, e
que, em certas épocas ou em certos países esteve pronta a sacrificar
à sua coerência lógica os interesses que o direito, em última
análise, está destinado a servir.
O mesmo se poderá dizer, ainda, das fontes do direito e dos
métodos. A teoria geral, exposta pelos civilistas franceses,
exalta a codificação e a lei; ela apresenta-as como a forma mais
apta e conveniente de exprimir as regras do direito num Estado
democrático, limitando-se apenas a ver na jurisprudência e na
doutrina órgãos que se destinam a aplicar ou a comentar a lei.
O direito comparado desvenda todo o exagero de preconceitos e de
ficção que esta análise comporta; mostra-nos que outras nações,
julgadas democráticas, aderiram a fórmulas muito diferentes,
rejeitaram a codificação e opuseram-se a um alargamento, segundo
elas perigoso para democracia, da função da lei; revela-nos, por
outro lado, que em outros Estados se consideram como falsamente
democráticas as fórmulas cujos métodos afirmamos.
(destaques não são do original)
O que se percebe é que houve uma mudança no status quo da lei e da
jurisprudência no sistema de civil law, mas a Ciência do Direito nesses países
tem se recusado a admitir, evitando uma análise crítica e aprofundada nas
cláusulas pétreas da estrita legalidade e da separação de poderes. Contudo, o
que já tentamos e permaneceremos tentando demonstrar é que não é
necessário abandonar esses conceitos tradicionais a sistemas como nosso, e
139
que valorizar a jurisprudência não seria uma mudança artificial no nosso
modo de pensar culturalmente arraigado306
.
JOHN HENRY MERRYMAN, no prefácio da 3ª edição da obra “The Civil
Law Tradition: an introduction to the legal systems of Europe and Latin
America” (2006), afirma que muita coisa aconteceu com o civil law desde a 2ª
edição de seu livro, publicada em 1984. Além da queda do império soviético e
do fim do socialismo, elenca três grandes modificações observadas nesse
período (entre 1984 e 2006): (i) a “judicialização” e a “descodificação” do
civil law, (ii) o aumento do poder e do status dos juízes (tendo essas duas
modificações resultado no declínio relativo da importância da legislação), e
(iii) a difusão do poder de legislar graças à criação de mecanismos
internacionais / supranacionais307
.
Mais à frente, no Capítulo IV, sobre “As Fontes do Direito”, avança
nessa percepção, afirmando, juntamente com ROGELIO PEREZ-PERDOMO, que
a noção de que os juízes teriam, na tradição do civil law, somente a função de
interpretar e aplicar a lei, encontrando nela todas as soluções para o caso a ser
decidido, está ultrapassada308
:
306
Em última análise é o modo de pensar da Ciência do Direito que forma e constrange e, assim, controla a
atividade jurisdicional. Neste sentido ver STRECK, Lenio Luiz; ABBOUD, Georges, op. cit., p. 13. 307
“Much has happened in the civil law world since the second edition of this book appeared in 1984. With
the eclipse of the Soviet empire and socialist law, most of the former Soviet republics have returned to the
civil law. The “judicialization” and “constitutionalization” of the civil law proceed, as do “decodification”
and the decline in relative importance of legislation. The power and status of judges grow. The number of
global and regional organizations and institutions exercising powerful legal functions increases. Such
fundamental changes in the civil law world far outstrip the more sedate evolution in the common law
tradition during the same period”. Cf. MERRYMAN, John Henry; PÉREZ-PERDOMO, Rogelio, op. cit., p.
vii. O autor original da obra era só John H. Merryman, tendo o Rogelio Pérez-Perdomo se juntado somente
na 3ª edição. O prefácio que aqui citamos está assinado só pelo autor original. 308
“[...] since the function of judges within that tradition is to interpret and to apply ‘the law’ as it is
technically defined in their jurisdictions. Both state positivism and the dogma of separation of powers require
that judges resort only to “the law” in deciding cases. It is assumed that whatever the problem that may come
before them, they will be able to find some form of law to apply [...]. They cannot turn to books and articles
by legal scholars or to prior judicial decisions for the law. This dogmatic conception of what law is, like
many other implications of the dogmas of revolutionary period, has been eroded by time and events. [...] In
Chapter VI, on judges, we will describe the various ways in which this theory of sources of law has been
140
[...] No capítulo VI, sobre os juízes, vamos descrever as várias
maneiras em que esta teoria das fontes do direito tem sido
subvertida pela conduta de juízes do sistema de civil law.
Estas e outras tendências modernas têm sido observadas por
estudiosos, que muitas vezes reconhecem as suas implicações para
a teoria ortodoxa das fontes do direito, mas não o suficiente para
enfrentar, de forma séria, a visão mais geral prevalecente da lei
como fonte primária. Para a média dos juízes, advogados ou
estudantes de Direito na França ou na Argentina, a teoria
tradicional das fontes do direito representa a verdade básica.
(destaques não são do original)
O papel central da jurisprudência nos países de civil law pode ser
atribuído em grande parte aos problemas de falibilidade do direito positivo.
Não escapa, contudo, a identificação de outra causa, relacionada à
incapacidade de o Poder Legislativo se coordenar e acompanhar as
modificações e a evolução da sociedade.
O professor FERNANDO ABRUCIO, cientista político especialista em
relações intergovernamentais e gestão pública309
, bem sintetizou essa questão
quanto à omissão do Poder Legislativo:
A agenda mais importante do país vem sendo discutida pelo
Supremo Tribunal Federal. Temas como liberdades individuais,
organização do sistema político e regras definidoras das políticas
públicas agora são centrais na pauta do STF. Nada de errado, a
princípio, pois a Corte Constitucional de um país democrático é um
lugar privilegiado do jogo político, como nos EUA e na Alemanha.
O problema é que a maior repercussão política do Supremo ocorre
sob o silêncio dos partidos em relação às questões estruturais do
país.
[...]
subverted by the conduct of civil law judges. These and other modern tendencies have been noted by
scholars, who often recognize their implications for the orthodox theory of sources of law, but they do not
seriously impair the more generally prevailing view of what law is. To the average judge, lawyer, or law
student in France or Argentina, the traditional theory of sources of law represents the basic truth”. Op. cit., p.
24-25. 309
É professor e pesquisador da Fundação Getulio Vargas (SP) desde 1995, ocupando atualmente o cargo de
Coordenador do Mestrado e Doutorado em Administração Pública e Governo.
141
O Supremo está discutindo o que deveria ser debatido pelos
partidos – da marcha da maconha às cotas.
[...]
O STF está discutindo aquilo que deveria ser debatido pelos
partidos políticos e estes, infelizmente, não conseguem se
posicionar sobre o que mais importa à sociedade brasileira.
Afinal, para além dos discursos genéricos e vazios, qual é a visão
do PT e PSDB sobre a reforma tributária?
(destaques não são do original)
Isso faz com que a própria ideia da codificação esteja sendo
abandonada, como colocaram JOHN HENRY MERRYMAN e ROGELIO PÉREZ-
PERDOMO, e como constata RENÉ DAVID310
:
O envelhecimento dos códigos atenuou, se é que não eliminou, a
atitude do positivismo legislativo dominante no século XIX.
Reconhecemos cada vez mais abertamente a função essencial que
pertence à doutrina e à jurisprudência na formação e na evolução
do direito, e nenhum jurista pensa mais que apenas os textos
legislativos sejam importantes para conhecer o direito.
(destaques não são do original)
Nosso Código Tributário Nacional, de 1966, que passou por alterações
pontuais alterações311
, deixa muito a desejar na regulação de matérias
310
Os Grandes Sistemas do Direito Comparado, cit., p. 55. 311
Em quase 50 anos, somente duas leis complementares alteraram pontos relevantes do CTN: a Lei
Complementar nº 104, de 2001, e a Lei Complementar nº 118, de 2005. Essas duas leis complementares
alteraram, basicamente, o seguinte: (i) adequação dos textos dos artigos 9º e 14 – limitações ao poder de
tributar – à CF/88; (ii) alteração do art. 43 para legitimar a tributação sobre o lucro presumido (parcela da
receita e não renda) e a disponibilização automática de lucros no exterior; (iii) inclusão da tutela antecipada e
do parcelamento como formas de suspensão da exigibilidade do crédito tributário; (iv) inclusão da dação em
pagamento como forma de extinção do crédito tributário; (v) vedação da compensação antes do trânsito em
julgado de decisões que reconhecem o indébito tributário; (vi) alterações no art. 198, sobre sigilo fiscal, para
restringir sua aplicabilidade e possibilitar troca de informações entre as esferas da Administração Pública e
com outros países; (vii) alterações para adequação à nova lei de recuperação de empresas (hipóteses de
responsabilidade, privilégios e garantias do crédito tributário); e (viii) alteração de disposições sobre
prescrição do Fisco (dies ad quem) e do contribuinte, eliminando a tese dos 10 anos para repetição do
indébito. As outras duas leis complementares que alteraram o CTN – nº 24, de 1975, e nº 143, de 2013 – o
fizeram em pontos muito específicos: (i) alteração da disjunção “ou” pela conjunção “e” no art. 178 (que fala
sobre isenções) e (ii) revogação de dispositivos sobre fundos de participação, por vezes já inaplicáveis por
falta de recepção pela CF/88. Capítulos importantes, relativos à regulamentação do ISS e do ICMS, estão
completamente revogados.
142
essenciais a um bom exercício da atividade impositiva, como a delimitação
dos critérios para instituição das contribuições do art. 149 da CF/88. Diante
disso, fica com o Judiciário a atribuição de decidir se tal ou qual contribuição
possui os critérios abstratos de referibilidade e destinação, o que favorece a
arbitrariedade e prejudica a limitação do poder de tributar do Estado.
A grande diferença do modelo civil law para o common law não está,
portanto, no funcionamento dos sistemas jurídicos (não mais)312
: está na
Ciência do Direito. Ao permanecer resistindo à valorização da decisão
judicial, fundado nos pressupostos de estrita legalidade e separação de
poderes (que são importantes, mas não precisam ser inquestionáveis), a
Ciência do Direito deixa que o Judiciário exerça livremente sua função atípica
de legislar (sem atribuir qualquer efeito jurídico relevante a isso).
Não se pode atribuir a valorização da decisão judicial como algo
peculiar aos sistemas de common law. Uma coisa é a origem do sistema de
common law, que rejeitou a produção de normas gerais e abstratas e, com
isso, impôs a tradição de regular condutas por meio da generalização do
raciocínio de precedentes313
. A percepção equivocada e atemporal desse
fenômeno faz com que mantenhamos um senso comum de que, nesses países
as leis não importam e, por isso, os juízes podem criar o direito. Como vimos
no item 4.2.1, não é exatamente assim que as coisas funcionam atualmente
(existem normas gerais e abstratas, mas reconhece-se o poder do Juiz na
312
De fato, “nunca existiu uma barreira indevassável e intransponível entre as duas tradições jurídicas, bem
como permite esclarecer que possível relação entre os dois sistemas existiu desde sempre, não se tratando de
fenômeno recente apto a justificar modismos como uma espécie de commonlawnização de nosso direito ou a
instituição do sistema de precedentes em nosso ordenamento”. Cf. STRECK, Lenio Luiz; ABBOUD,
Georges, op. cit., p. 24-25. 313
A noção básica de precedente, conforme afirma Frederick Schauer, está centralmente ligada à obrigação
do decisor em tomar a mesma decisão tomada numa ocasião anterior, numa situação igual ou similar que lhe
for apresentada no presente. Precedent, May 9, 2011, p. 2. Disponível em:
http://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=1836384. Acesso em: 6 nov. 2013.
143
criação de regras, o que favorece a integração dessas fontes do direito,
melhorando a qualidade da regulação das condutas futuras).
É preciso, portanto, desfazer esse preconceito da Ciência do Direito no
sentido de que a grande diferença entre os modelos de common law e civil law
está na “prevalência” da jurisprudência ou da lei como “fonte primária” das
regras de conduta, quer em razão disso não se coadunar com as realidades de
ambos os sistemas, quer em razão do que fartamente expusemos no Capítulo
3.
Conforme descrevemos no Capítulo anterior, as normas gerais e
abstratas podem não ser suficientes para determinar a norma de incidência
tributária e a jurisprudência cumpre, assim, um papel fundamental
“substitutivo” que não pode ser encarado como “acessório”. Diante das
lacunas deixadas pelas normas gerais e abstratas nos termos descritos
anteriormente é, no mínimo, ingênuo afirmar que o juiz teria tão-somente um
papel revelador e, portanto, secundário, no modelo civil law. O que se pode
admitir, como adiantamos, é tão-somente uma cronologia metodológica na
busca da norma destinada a solucionar o caso concreto (podemos olhar para a
moldura da lei, sem ignorar o papel complementar da jurisprudência).
A atribuição ou rejeição do poder criador à decisão judicial314
é muito
difundida pela Ciência do Direito mediante a utilização da teoria das fontes:
considerando que não existe hierarquia entre lei e decisão judicial nos países
de common law (e que nesses países a origem de seus sistemas jurídicos
remonta até mesmo a uma inversão desses mecanismos para regulação de
condutas), a teoria das fontes perde importância (como expusemos nos itens
314
Não estamos falando do papel criador de normas individuais e concretas atribuído à decisão judicial, base
da pirâmide Kelseniana e final do processo de positivação das normas gerais e abstratas. Ao nos referirmos
sobre o papel criador da decisão judicial nesse trecho estamos falando da função atípica de legislar
prospectivamente (com aptidão para regular condutas futuras).
144
4.2.1 e 4.2.2); (ii) a tradição originária da preferência estética pelas normas
gerais e abstratas, fortalecida pela rígida separação de poderes nos sistemas de
civil law, favorece a hierarquização das fontes e, consequentemente, a
visualização da jurisprudência como secundária315
(ainda que isso seja
incoerente, como expusemos no item 4.2).
Essa teoria, contudo, prejudica o reconhecimento de que a
jurisprudência ocupa um papel central na determinação dos enunciados
prescritivos aptos a formar a norma de incidência tributária, dada a
falibilidade do direito positivo316
e, com isso, perde-se, também, os efeitos
jurídicos importantes do reconhecimento de um papel criativo da decisão
judicial: aptidão para regulação de condutas futuras e irretroatividade de
entendimentos (conforme exporemos no Capítulo 5).
Enfim, ao passo que os países de common law, em razão de suas
origens, já possuem culturalmente a noção de importância fundamental da
jurisprudência, nos países de civil ainda ingenuamente continua-se a afirmar
que ela teria papel secundário. Em outros termos, podemos dizer que ambos
os modelos valorizam a jurisprudência, mas os países de civil ainda estão
aprendendo, grande parte em razão de sua herança do direito romano e da
forma como a Ciência do Direito expõe o tema das fontes do direito, a formar
bons precedentes e oferecer melhores mecanismos de controle da volatilidade
das decisões judiciais.
315
Mesmo numa teoria diferenciada e afastada do senso comum, como a de Tárek Moysés Moussallem,
mantém-se a concepção da jurisprudência como fonte secundária: “Por derradeiro, cabe esclarecer com a
devida cautela: a jurisprudência é hierarquicamente inferior à lei (em sentido amplo). Mas, nos casos de
declaração abstrata de inconstitucionalidade, as decisões judiciais poderão ter o condão de revogar a lei”. Op.
cit., p. 153. 316
Reconhecemos que a revisão da teoria das fontes do direito traz consigo uma reflexão muito mais
importante e que é a base desse raciocínio: a ideia da rígida separação de poderes. O objetivo final desta tese,
contudo, é utilizar mecanismos normativos para integrar a decisão judicial nas normas gerais e abstratas e
não questionar os pressupostos do sistema de civil law, especialmente a hierarquia das fontes por si mesma.
Para uma análise que pretende provocar esse tipo de reflexão (teoria da separação dos poderes e o raciocínio
formalista da mera subsunção de fatos às leis previamente existentes), ver: RODRIGUEZ, José Rodrigo, op.
cit., p. 157-192.
145
4.3 Falibilidade do Direito Positivo, Discricionariedade Delegada e
Função do Poder Judiciário
É possível enxergar duas formas de preenchimento das lacunas
normativas, de reconhecimento e axiológicas (que aqui chamaremos de
lacunas legislativas) pela decisão judicial. A primeira diz respeito aos
aspectos inerentes que descrevemos no Capítulo anterior. A outra está mais
relacionada ao que chamamos de “discricionariedade delegada”, isto é, a
utilização, pelo legislador, de cláusulas gerais para regular determinado
assunto, deixando transparecer seu intuito de aumentar a margem de
interpretação do aplicador317
-318
.
Essa segunda fórmula, embora reconhecida pelos cientistas que
descrevem o modelo civil law, não faz com que seja modificada a noção do
papel secundário da jurisprudência. Ao contrário, tendo sempre presente a
prevalência do raciocínio do direito privado enraizado no direito romano,
RENÉ DAVID afirma ser até mesmo desejável a abertura semântica na
produção legislativa319
:
317
O professor Oscar Vilhena Vieira coloca ainda uma terceira forma de enxergar as decisões judiciais: como
substitutiva da função que deveria estar sendo exercida pelo nosso Poder Legislativo: “O STF está hoje no
centro de nosso sistema político, fato que demonstra a fragilidade de nosso sistema representativo. Tal
tribunal vem exercendo, ainda que subsidiariamente, o papel de criador de regras, acumulando a autoridade
de intérprete da constituição com o exercício de poder legislativo, tradicionalmente exercido por poderes
representativos. Este texto mostra como o Supremo, de fato, tem exercido tais funções pela análise de alguns
de seus julgados mais recentes”. Supremocracia. Revista DIREITO GV, n. 8, p. 441-463, jul-dez/2008, p.
441. 318
A professora Misabel Derzi aponta, sob outra perspectiva, a crescente e necessária função dos juízes e das
decisões judiciais, de forma complementar ao direito positivo, diante do mundo contemporâneo: “Em uma
sociedade dinâmica e complexa, as fontes de produção das normas gerais, das expectativas normativas
tradicionais – como as leis – são cada vez mais solicitadas (pois conflitos novos e de natureza variada
provocam novas soluções), e, com isso, alimentam o sistema de novas informações e orientações que servirão
de subsídio para a decisão de conflitos. O sistema jurídico, cada vez mais, é um conjunto altamente complexo
(porém, mais reduzido do que a realidade social), de solução de conflitos. No centro do sistema está, como
quer Niklas Luhmann, o Poder Judiciário”. DERZI, Misabel Abreu Machado. Modificações da
Jurisprudência no Direito Tributário. São Paulo: Noeses, 2009. p. 13. 319
Os Grandes Sistemas do Direito Contemporâneo, cit., p. 82.
146
A generalidade reconhecida à regra de direito explica que a tarefa
dos juristas seja essencialmente concebida nestes países como uma
tarefa de interpretação de fórmulas legislativas, ao inverso dos
países de common law [...]. A “boa regra do direito” não é
concebida aqui e lá do mesmo modo: [...] nos países da família
romano-germânica considera-se, pelo contrário, como desejável,
que a regra de direito deixe uma certa margem de liberdade ao juiz,
sendo a sua função unicamente estabelecer quadros para o direito e
fornecer ao juiz diretivas. O autor da regra de direito [...] não deve
ir muito longe e esforçar-se por regular pormenorizadamente,
porquanto ele é incapaz de prever, na sua variedade, todos os casos
concretos que se apresentarão na prática.
Mais à frente o mesmo autor afirma que é enganosa a percepção de que
encontrar a regra de direito aplicável é tarefa mais fácil num país de civil law
que num país de common law, considerando a ordenação sistemática das
normas gerais abstratas naquele modelo. Ao contrário, aponta claramente para
o papel que exercem os juízes diante da discricionariedade delegada pelo
legislador, ressaltando a insegurança dos destinatários do direito diante de
regras legais imprecisas320
:
[...] A vantagem que existe, por isto, em favor dos direitos da
família romano-germânico, não deve, contudo, iludir-nos. Ela é
largamente ilusória.
A concepção de regra de direito admitida nos países da família
romano-germânica não traz como consequência autorizar uma
previsão mais fácil da solução que comporta um determinado
litígio. Tudo o que restringe a especialização da regra de direito
aumenta automaticamente o papel de interpretação do juiz.
Formular a regra de direito em termos de uma excessiva
generalidade é fazer dela alguma coisa de menos preciso, e conferir
aos juízes uma maior liberdade na aplicação da regra de direito. Por
consequência, a segurança das relações jurídicas não aumenta pelo
fato de se tornar mais fácil descobrir a regra de direito aplicável;
antes se verificaria o contrário.
320
Os Grandes Sistemas do Direito Contemporâneo, cit., p. 83.
147
A recomendação de legislar-se por meio de cláusulas gerais é algo
admissível para regulação das relações privadas, mas problemática quando
projetada para a regulação das relações de direito público321
. TERESA ARRUDA
ALVIM WAMBIER coloca essa problema na Apresentação do livro Direito
Jurisprudencial, sob sua coordenação, e que reúne textos voltados a discutir
exatamente a influência que a jurisprudência tem exercido nos países de civil
law322
:
Não se pretende, é evidente, que o trabalho dos tribunais tenha a
função de engessar o direito, já que, sabe-se, a evolução do direito,
no sentido de sua adaptação às necessidades sociais, acontece,
justamente, por obra dos tribunais. Mas como saber quando e em
que áreas? Esse é um problema raramente versado pela doutrina
brasileira, apesar de muitíssimo relevante. Talvez esta lacuna
doutrinária, que se pretende comece a ser preenchida por esta
obra coletiva – que, na verdade, nesse particular, é uma
provocação – seja responsável pela oscilação atordoante dos
nossos tribunais superiores, na área do direito tributário que é
justamente uma daquelas áreas em que a evolução do direito
não ocorre e não pode ocorrer por obra do trabalho dos juízes.
Basta pensar-se nos princípios da anterioridade e da estrita
legalidade.
Característica marcante dos Códigos e das leis escritas desses
complexos tempos em que vivemos é a inclusão cada vez mais
frequente de conceitos vagos e cláusulas gerais nos dispositivos
legais.
(destaques não são do original)
De qualquer forma, queremos chegar num outro ponto: ainda que
assumamos que a discricionariedade delegada é algo que pode existir na
regulação das relações privadas e que é inadmissível para a regulação das
relações entre Estado e particulares (como ocorre com a instituição e cobrança
de tributos), esse papel “criativo” da jurisprudência nunca deixará de existir.
321
A ideia de decidibilidade com base em princípios gerais, costume e analogia caso a lei seja omissa, foi
prevista, originalmente, na chamada Lei de Introdução ao Código Civil (Decreto nº 4.657, de 1942). 322
Direito Jurisprudencial, cit., p. 6.
148
Conforme expusemos no Capítulo 3 e na introdução deste Capítulo 4, a
falibilidade é inerente ao direito positivo e a produção de normas gerais e
abstratas, por mais específicas que sejam, não têm o poder de eliminar
vaguezas e ambiguidades, lacunas normativas e axiológicas que aparecem no
contingente processo de interpretação e aplicação das regras.
Assim, ainda que de forma não intencional, atendendo ao princípio da
legalidade em sentido estrito para atuação da Administração Pública (presente
na regulação das relações de direito público), esse mesmo papel
complementar que assume a jurisprudência quando se identificam cláusulas
gerais nas fórmulas legislativas será exercido pela decisão judicial diante da
falibilidade do direito positivo.
Tanto da perspectiva da discrionariedade delegada como do ponto de
vista da falibilidade do direito positivo é imperioso reconhecer a atuação da
jurisprudência na falta da lei e esse reconhecimento demonstra que a
hierarquização proposta pela teoria das fontes do direito é uma forma frágil de
equacionar esse problema diante do dogma da separação dos poderes.
A noção de Estado de Direito, fundada no princípio da legalidade e na
teoria da separação dos Poderes, não permite assumir a decisão judicial como
fonte imediata do direito. Por outro lado, é imperioso reconhecer que a lei não
é suficiente para equacionar todos os problemas concretos. Assim, surge a
ideia de hierarquia que pretende, ao colocar a lei acima da jurisprudência –
aquela fonte primária, essa fonte secundária – manter o dogma da separação
dos poderes e a noção de Estado de Direito baseado no princípio da
legalidade, sem deixar de dar conta de sua perceptível realidade limitadora.
Uma análise acurada dessa classificação hierárquica demonstra,
entretanto, que é incoerente manter a ideia de fonte primária simplesmente
149
porque isso não permitiria reconhecer outras fontes (colocadas como
secundárias). Se existem outras fontes que colaboram na regulação de
condutas, atuando onde a lei não alcança, como a jurisprudência
classicamente o faz, esse mecanismo complementar não pode ser visto como
secundário e é a partir dessa constatação que proporemos a integração da
decisão judicial (norma individual e concreta) ao direito positivo (normas
gerais e abstratas) mediante a construção de uma Regra-Matriz de Incidência
Tributária “Dinâmica” (item 4.5).
4.4 Primariedade da Lei, Função dos Juízes do Modelo Civil law e
Inocuidade do Velho Debate entre Positivistas e Não-Positivistas
A ideia da lei como fonte primária para regulação de condutas nos
países de civil law faz com que o papel dos juízes, do ponto de vista teórico,
seja reduzido a um nível eminente burocrático.
Considerando que cabe ao Poder Legislativo, representante da
soberania e da vontade popular, a tarefa de elaborar as regras jurídicas, ao
Judiciário resta tão-só uma função residual de garantir que as leis sejam
cumpridas. Essa perspectiva do Poder Judiciário como a esfera estatal
legitimada à resolução de conflitos e aplicação das coações dentro dos limites
da lei, decorre imediatamente da teoria da separação dos poderes idealizada
por MONTESQUIEU323
-324
:
323
Montesquieu. De l’espirit des lois. Trad. Lólio Lourenço de Oliveira. Paris: Éditions Garnier Frères, 1973,
t. 1, p. 9-19. Apud WEFFORT, Francisco (org.). Os Clássicos da Política. 10ª ed. São Paulo: Ática, 1998, 1º
volume. p. 174-175 e 180. 324
Interpretando Montesquieu, afirma Jean Cruet: “A missão do juiz consiste essencialmente em fazer nos
litígios particulares a aplicação exata das regras do direito consagrado; segundo a definição mui justa e mui
pitoresca de Montesquieu, o juiz é simplesmente a boa que pronuncia as palavras da lei, sem tentar moderar-
lhes a força nem o rigor”. A Vida do Direito e a Inutilidade das Leis, cit., p. 29.
150
Há, em cada Estado, três espécies de poderes: o poder legislativo, o
poder executivo das coisas que dependem dos direitos das gentes, e
o poder executivo das que dependem do direito civil.
Pelo primeiro, o príncipe, ou o magistrado, elabora leis para um
certo tempo ou para sempre, e corrige ou revoga as existentes. Pelo
segundo, faz a paz ou a guerra, envia ou recebe embaixadas,
instaura a segurança, impede as invasões. Pelo terceiro, pune os
crimes, ou julga as pendências entre os particulares.
Chamaremos a este último o poder de julgar e ao outro
simplesmente o poder executivo do Estado.
A liberdade política num cidadão é aquela tranquilidade de espírito
que provém da opinião que cada um tem de sua segurança; e para
que se tenha essa liberdade, é preciso que o governo seja tal que um
cidadão não possa temer outro cidadão.
Quando se reúne na mesma pessoa, ou no mesmo corpo de
magistratura, o poder legislativo e o poder executivo, não existe
liberdade; porque pode-se temer que o próprio monarca, ou o
próprio senado, faça leis tirânicas para executá-las tiranicamente.
Também não existe liberdade, se o poder de julgar não estiver
separado do poder legislativo e do poder executivo. Se estivesse
ligado ao poder legislativo, o poder sobre a vida e a liberdade dos
cidadãos seria arbitrário: pois o juiz seria legislador. Se estivesse
unida ao poder executivo, o juiz poderia ter a força de um opressor.
Tudo estaria perdido se o mesmo homem, ou o mesmo corpo de
principais, ou de nobres, ou do povo, exercesse esses três poderes:
o de fazer leis, o de executar as resoluções públicas, e o de julgar os
crimes ou as pendências entre particulares.
Na maior parte dos reinos da Europa, o governo é moderado,
porque o príncipe, que detém os dois primeiros poderes, deixa a
seus súditos o exercício do último.
[...]
O poder de julgar não deve ser atribuído a um senado permanente,
mas sim exercido por pessoas extraídas do corpo do povo em certos
períodos do ano, da maneira prescrita pela lei, para formar um
tribunal que dure apenas o tempo necessário.
[...]
Se o poder legislativo deixa ao executivo o direito de prender
cidadãos que podem dar garantias de sua conduta, não há mais
liberdade, a menos que eles sejam detidos para responder, sem
demora, a uma acusação que a lei tenha tornado capital; caso em
que são realmente livres, uma vez que não estão sujeitos senão ao
poder da lei.
[...]
Mas os juízes da nação, como já dissemos, não são mais do que a
boca que pronuncia as palavras da lei; seres inanimados que não
podem moderar-lhe nem a força nem o rigor.
151
(destaques não são do original)
JOHN HENRY MERRYMAN e ROGELIO PÉREZ-PERDOMO descrevem esse
fenômeno e demonstram, ainda que não intencionalmente, a ingenuidade
dessa percepção325
:
[...] A função dos juízes dentro dessa tradição é a de interpretar e
aplicar a “lei”, como é tecnicamente definido em suas jurisdições.
Tanto o positivismo estatal como o dogma da separação de
poderes exigem que os juízes recorram apenas à “lei” para
decidir os casos. Supõe-se que qualquer seja qual for o
problema trazido a eles, eles serão capazes de encontrar
alguma lei para aplicar [...]. Eles não podem recorrer a livros e
artigos de juristas ou de decisões judiciais anteriores como lei.
(destaques não são do original)
De um lado, o positivismo jurídico326
assume as limitações do direito
positivo, reconhecendo a inevitável subjetividade no processo interpretativo,
mas não oferece nenhuma solução para o problema da imprecisão e das
lacunas legislativas. De outro lado, os jusnaturalistas se aproveitam daquelas
limitações, inserindo o direito natural como forma de solução alternativa
325
“[...] since the function of judges within that tradition is to interpret and to apply "the law" as it is
technically defined in their jurisdictions. Both state positivism and the dogma of separation of powers require
that judges resort only to "the law" in deciding cases. It is assumed that whatever the problem that may come
before them, they will be able to find some form of law to apply [...]. They cannot turn to books and articles
by legal scholars or to prior judicial decisions for the law”. Op. cit., p. 24-25. 326
Nas palavras de Norberto Bobbio: “A expressão ‘positivismo jurídico’ não deriva daquela de
‘positivismo’ em sentido filosófico, embora no século passado tenha havido uma certa ligação entre os dois
termos, posto que alguns positivistas jurídicos eram também positivistas em sentido filosófico: mas em suas
origens (que se encontram no início do século XIX) nada tem a ver com o positivismo filosófico – tanto é
verdade que, enquanto o primeiro surge na Alemanha, o segundo surge na França. A expressão ‘positivismo
jurídico’ deriva da locução direito positivo contraposta àquela do direito natural. [...] Toda a tradição do
pensamento jurídico ocidental é dominada pela distinção entre ‘direito positivo’ e ‘direito natural’ [...]”. O
Positivismo Jurídico: lições de filosofia do direito (compiladas por Nello Morra). Trad. e notas Márcio
Pugliesi, Edson Bini e Carlos E. Rodrigues. São Paulo: Ícone, 1995, p. 15.
Para esclarecimentos precisos das distinções entre direito natural e direito positivo ver BOBBIO, Norberto. O
Positivismo Jurídico: lições de filosofia do direito. Compiladas por Nello Morra. Trad. e notas Márcio
Pugliesi, Edson Bini e Carlos E. Rodrigues. São Paulo: Ícone, 1995, p. 22-23.
No Capítulo 2 desta tese fizemos uma breve distinção entre direito natural e direito positivo, entre
jusnaturalistas e positivistas (itens 2.1.4 e 2.1.5).
152
quando faltar ao juiz o direito positivo (ainda que essa não seja a única
hipótese de utilização do direito natural – razão, valores e princípios – que
admitem os jusnaturalistas)327
.
Há um debate infindável entre as duas correntes teórica, admitidas
ainda variações entre elas desde o século XVII até os dias atuais (há
positivistas em sentido estrito e em sentido amplo, bem como não-positivistas
que não se apresentam como jusnaturalistas)328
.
Nossa intenção aqui não é tomar partido de uma ou outra corrente, mas
mostrar como esse debate pode ser prejudicial a alguns avanços teóricos
importantes. Em outros termos, ao integrar a decisão judicial ao direito
positivo, pretendemos simplesmente desviar desse debate que não nos parece
contribuir para a ideia de segurança jurídica (e para um avanço institucional
do direito, idealizado a partir de um efetivo Estado de Direito)329
.
Podemos admitir que os juízes, como pregam os positivistas, são
simples máquinas que fazem valer aquilo que está posto pelo Poder
Legislativo. Pois bem. Que sentido tem essa afirmação diante da falibilidade
do direito positivo? Como ainda podemos sustentar esse tipo de proposição
sabendo que a lei só ganha sentido no processo de positivação?
327
Essa oposição ainda é extremamente presente na teoria moderna do direito, resumida no debate entre
Robert Alexy e Eugenio Bulygin. In: ALEXY, Robert; BULYGIN, Eugenio. La pretensión de corrección del
derecho: la polémica sobre la relación entre derecho e moral. Trad. Paula Gaido. Colombia: Universidad
Externado de Colombia, 2001. (Serie de Teoria Juridica y Filosofia del Derecho)
Pablo Navarro aborda essa oposição sob o ponto de vista da teoria da decisão em Interpretación del Derecho
y Modelos de Justificación. Revista Escuela de Derecho, ano 6, n. 6, 2005. Disponível em:
http://repositoriodigital.uct.cl:8080/xmlui/bitstream/handle/123456789/216/RDD_0718-
1167_03_2005_6_art1.pdf?sequence=1. Acesso em: 26 out. 2013. 328
Para essas variações ver DIMOULIS, Dimitri. Positivismo Jurídico: introdução a uma teoria do direito e
defesa do pragmatismo jurídico-político. São Paulo: Método, 2006. (coleção Professor Gilmar Mendes). Em
termos específicos, ver: COMANDUCCI, Paolo; AHUMADA, Maria Ángeles; LAGIER, Daniel González.
Positivismo Jurídico y Neoconstitucionalismo. Madrid: Fundación Coloquio Jurídico Europeo, 2009. 329
Grande parte da teoria do direito, especialmente nos países de civil law, parece estar voltada a esse tema
da interpretação do direito.
153
A teoria da moldura Kelseniana (assim como a Regra-Matriz de
Incidência Tributária) consegue dar conta dos problemas de imprecisão
semântica da linguagem e de lacunas de reconhecimento. De acordo com a
premissa de KELSEN, afirmam os positivistas que a lei oferece tão-somente
uma moldura e há inevitável liberdade do juiz, no processo de interpretação,
para preenchê-la. O único limite do juiz seria, portanto, a “moldura”. Agora,
que fazer com as lacunas normativas e as lacunas axiológicas? E diante das
lacunas de reconhecimento, será que essa moldura seria sustentável?
Isto quer dizer que, ainda que admitíssemos tão-somente juízes “boca
da lei”, a falibilidade do direito positivo não nos permitiria excluir o poder
criativo da decisão judicial. Diante disso, como conviver com a ideia de
Estado de direito fundado no pressuposto do princípio da estrita legalidade?
Em outros termos: como lidar com uma moldura constituída por normas
gerais e abstratas e um quadro desenhado por normas individuais e concretas
(ou até mesmo uma moldura construída a partir de normas gerais e abstratas
manipulada por normas individuais e concretas a partir do problema das
lacunas de reconhecimento)?
4.5 Norma Geral e Abstrata, Decisão Judicial e uma Nova Concepção de
Regra-Matriz de Incidência Tributária
Adiantamos no item 4.1 que existe uma diferença entre a Regra-Matriz
de Incidência Tributária construída unicamente a partir do direito positivo e a
Regra-Matriz de Incidência Tributária construída diante da perspectiva de um
caso concreto.
Uma situação específica induz o intérprete a dissolver vaguezas e
ambiguidades, a precisar o sentido de determinadas palavras e, com isso,
154
construir uma Regra-Matriz de Incidência Tributária diferente daquela que se
pode deduzir da CF/88 e do CTN, por exemplo.
PAULO DE BARROS CARVALHO define a Regra-Matriz de Incidência
Tributária (doravante abreviada na sigla RMIT) como o mínimo irredutível do
deôntico, isto é, aquela estrutura de norma jurídica que reúna todos os
elementos imprescindíveis para regulação da conduta de pagar tributos330
.
Hipoteticamente, analisando o art. 153, III, da CF/88, o art. 43 do CTN,
e a Lei 7.713, de 1988, chegamos à conclusão de que as pessoas físicas
residentes no Brasil são obrigadas a pagar o Imposto de Renda sobre os
rendimentos do trabalho, mensalmente. Chamaremos essa RMIT de
“Estática”331
.
Diante dessa RMIT hipoteticamente construída, que chamaremos de é
possível saber se devemos pagar Imposto de Renda sobre o adicional de 1/3
devido em razão do período de gozo das férias? Diante dessa situação
específica, não encontramos a resposta naquela RMIT hipoteticamente
construída (Estática) porque os termos legais precisam de maior precisão
semântica: o valor recebido em razão do gozo das férias representa acréscimo
patrimonial?
Diante desse exemplo simplório, o que queremos pensar sobre é: aquela
RMIT Estática, delimitada pelas normas gerais e abstratas em vigor no direito
positivo brasileiro, é suficiente para regular a conduta do indivíduo diante da
situação concreta apresentada?
330
Direito Tributário: linguagem e método, cit., p. 146-150. 331
Esse termo foi sugerido pelo Professor Eurico de Santi durante discussão sobre esta tese em 26 de outubro
de 2013.
155
A resposta é negativa, mas o problema não está no desenho da RMIT
Estática, que traz para dentro de si os limites do direito positivo332
: está na
falta de clareza da legislação. Não existe, na lei tributária, critério normativo
para resolver esse impasse (incide ou não incide)333
. Essa falha legislativa,
que pode ser identificada como uma lacuna de reconhecimento, não decorre,
igualmente, de incapacidade técnica do legislador, senão de sua inerente
condição humana de lidar tão-somente com os dados de fato que lhe são
apresentados no momento da atividade legislativa.
As lacunas de reconhecimento (item 3.4.1) são vaguezas e
ambiguidades identificadas no momento de aplicação da lei ao caso concreto.
Ou seja, pela sua própria definição, é impossível que sejam sanadas de
antemão pelo legislador. Isso faz com que a RMIT capaz de regular uma
conduta neste caso concreto dependa de uma definição do Poder Judiciário:
afinal, o 1/3 do salário recebido em razão do período de gozo de férias
representa acréscimo patrimonial tributável pelo Imposto de Renda? Com
essa definição teríamos o que chamamos de RMIT Dinâmica, ou seja, uma
RMIT que traz para dentro de si os atos de interpretação da RMIT Estática.
É neste sentido que propomos a integração das decisões judiciais,
enquanto normas individuais e concretas, ao direito positivo, enquanto
normas gerais e abstratas: para construção de uma RMIT Dinâmica334
. A
partir do momento que houver um posicionamento do Poder Judiciário sobre
332
Essa frase foi utilizada pelo professor Eurico de Santi em conversa realizada no dia 13 de outubro de
2013. 333
Como bem afirma o professor José Souto Maior Borges, “é impossível esgotar o significado de qualquer
norma de conduta” (Normas Gerais de Direito Tributário: velho tema sob perspectiva nova. Revista Dialética
de Direito Tributário, n. 213, p. p. 48-65, jun/2013, p. 61) e, neste sentido, toda regra geral e abstrata posta
estará sujeita às contingências interpretativas naturalmente incertas. Em outros termos, é ingênuo pensar em
critérios legais (normativos) para resolver contingências de interpretação. 334
Poderia ser essa uma forma de inverter a perspectiva da “norma de conduta” para a “conduta normada”,
proposta por Souto Maior Borges. Cf. BORGES, José Souto Maior. Um Ensaio Interdisciplinar em Direito
Tributário: superação da dogmática. Revista Dialética de Direito Tributário, n. 211, p. 106-121, abr/2013, p.
109.
156
essa questão, essa decisão judicial passa a corrigir uma falha do direito
positivo e, desta forma, garantir que uma RMIT aplicável ao caso concreto
possa ser construída.
Assim que o Poder Judiciário decidir que o valor pago pelo empregador
como adicional pelo período de férias ele deixa claro aos indivíduos qual a
RMIT Dinâmica, isto é, a norma que regula sua conduta. A partir daí, mas
somente a partir desse ponto, é que é dada ao indivíduo a liberdade de se
comportar como desejar, estando afeito ao direito esse plano eficacial. Antes
disso, tão-somente levando em conta uma RMIT construída a partir de normas
gerais e abstratas (Estática), desconsiderando a decisão judicial enquanto
norma individual e concreta, eu não tenho norma jurídica clara o suficiente
para regular a conduta e garantir a liberdade de decisão do indivíduo, além de
limitar o poder do Estado.
O exemplo que utilizamos é clássico por denotar um problema de
lacuna de reconhecimento. Exemplos como tributação de coligadas e
controladas no exterior, em que o STF identificou e preencher lacunas
axiológicas, deixam ainda mais patentes a existência de uma RMIT Dinâmica,
ou seja, que integre enunciados prescritivos de normas gerais e abstratas e de
decisões judiciais para representar o mínimo irredutível do deôntico.
Em 10 de abril de 2013, o STF concluiu o julgamento de dois Recursos
Extraordinários (RE nº 611.586 e RE nº 541.090) e uma Ação Direta de
Inconstitucionalidade (ADI nº 2.588) sobre o se chama de tributação de
lucros no exterior ou tributação de coligadas e controladas no exterior.
Em todos os casos, se questionava a constitucionalidade do art. 74 da
Medida Provisória nº 2.158-35, de 2001:
157
Art. 74. Para fim de determinação da base de cálculo do imposto de
renda e da CSLL, nos termos do art. 25 da Lei no 9.249, de 26 de
dezembro de 1995, e do art. 21 desta Medida Provisória, os lucros
auferidos por controlada ou coligada no exterior serão considerados
disponibilizados para a controladora ou coligada no Brasil na data
do balanço no qual tiverem sido apurados, na forma do
regulamento.
Parágrafo único. Os lucros apurados por controlada ou coligada no
exterior até 31 de dezembro de 2001 serão considerados
disponibilizados em 31 de dezembro de 2002, salvo se ocorrida,
antes desta data, qualquer das hipóteses de disponibilização
previstas na legislação em vigor.
Não existem, neste artigo, outros critérios para determinação da
disponibilização que se chama “automática” de lucros auferidos no exterior
por empresas brasileiras que não (i) ser controlada ou (ii) ser coligada. Salvo
se a empresa brasileira não for controladora ou coligada da empresa
estrangeira, ela deve adicionar os lucros dessas companhias bases de cálculo
do IRPJ e da CSLL ao final de cada ano, independentemente de distribuição.
Considerando esses critérios legais, a Ministra Ellen Gracie proferiu
seu primeiro voto na ADI nº 2.588, julgando constitucional o art. 74 da MP nº
2.158 para as controladas e inconstitucional para as coligadas com base na
interpretação da ideia de disponibilidade econômica e jurídica da renda. Em
seguida, o Ministro Nelson Jobim, por sua vez, julgou constitucional para
ambos os casos, com base na ideia de acréscimo patrimonial propiciado pela
avaliação de investimentos em coligadas e controladas pelo método de
equivalência patrimonial. Os Ministros Marco Aurélio, Sepúlveda Pertence,
Ricardo Lewandowski e Celso de Mello julgaram inconstitucional o
dispositivo por ter afrontado o conceito constitucional de renda, dada a
ausência de disponibilidade econômica e jurídica antes da efetiva distribuição
dos lucros pelas coligadas e controladas. Os Ministros Carlos Ayres Britto,
Eros Grau e Cezar Peluso julgaram constitucional o art. 74 da MP nº 2.158,
158
por entenderem que pode haver tributação em bases universais sob o regime
de competência, que denota acréscimo patrimonial e disponibilidade dos
lucros auferidos no exterior por coligadas e controladas. Faltava o voto do
Ministro Joaquim Barbosa335
.
O Ministro Joaquim Barbosa houve por bem julgar, juntamente com a
ADI, outros dois Recursos Extraordinários (RE nº 611.586 e RE nº 541.090),
sendo que um deles estava sendo processado sob o rito da Repercussão Geral
previsto no art. 543-B do Código de Processo Civil336
. Na sessão de
julgamento de 3 de abril iniciou-se o debate sobre a questão com o voto do
Ministro Joaquim Barbosa que incluía o critério de estar ou não a controlada
ou coligada localizada em chamado “paraíso fiscal”.
Este é um típico caso de lacuna axiológica identificada no ato de
aplicação (ver item 3.4.2): ausência de critério relevante previsto na lei e cuja
existência, se tivesse sido identificada pelo legislador, poderia ensejar uma
solução normativa diferente.
A inclusão de um critério relevante não previsto no art. 74 da MP nº
2.158-35 pelo Ministro Joaquim Barbosa foi tão patente que criou um
verdadeiro imbróglio na divulgação do resultado da ADI nº 2.588,
considerando que os demais votos identificaram tão-somente lacunas de
reconhecimento (conceito de renda diante da tributação automática de lucros
335
Á época o STF estava com 10 ministros (e não 11), pois o Ministro Barroso ainda não havia sido indicado. 336
“Art. 543-B. Quando houver multiplicidade de recursos com fundamento em idêntica controvérsia, a
análise da repercussão geral será processada nos termos do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal,
observado o disposto neste artigo.
§1º Caberá ao Tribunal de origem selecionar um ou mais recursos representativos da controvérsia e
encaminhá-los ao Supremo Tribunal Federal, sobrestando os demais até o pronunciamento definitivo da
Corte. [...]
§3º Julgado o mérito do recurso extraordinário, os recursos sobrestados serão apreciados pelos Tribunais,
Turmas de Uniformização ou Turmas Recursais, que poderão declará-los prejudicados ou retratar-se.
§4º Mantida a decisão e admitido o recurso, poderá o Supremo Tribunal Federal, nos termos do Regimento
Interno, cassar ou reformar, liminarmente, o acórdão contrário à orientação firmada.”
159
auferidos no exterior). Havia 4 votos pela inconstitucional total, 4 votos pela
inconstitucionalidade total e o voto da Ministra Ellen Gracie, que julgava
parcialmente constitucional. Contudo, nenhum desses votos considerava o
critério “estar a coligada ou controlada sediada em paraíso fiscal”. Como,
então, somar o voto do Ministro Joaquim Barbosa aos demais e chagar ao
resultado mínimo de 6 votos para declaração de constitucionalidade ou
inconstitucionalidade337
do art. 74 da MP nº 2.158-35?
O resultado pragmático foi o seguinte:
Decisão: Prosseguindo no julgamento, o Tribunal, por maioria,
julgou parcialmente procedente a ação para, com eficácia erga
omnes e efeito vinculante, conferir interpretação conforme, no
sentido de que o artigo 74 da MP nº 2.158-35/2001 não se aplica às
empresas “coligadas” localizadas em países sem tributação
favorecida (não “paraísos fiscais”), e que o referido dispositivo se
aplica às empresas “controladas” localizadas em países de
tributação favorecida ou desprovidos de controles societários e
fiscais adequados (“paraísos fiscais”, assim definidos em lei),
vencidos os Ministros Marco Aurélio, Sepúlveda Pertence, Ricardo
Lewandowski e Celso de Mello. [...] Não participaram da votação
os Ministros Teori Zavascki, Rosa Weber, Luiz Fux, Dias Toffoli e
Cármen Lúcia, por sucederem a ministros que votaram em
assentadas anteriores.
Para além da análise de compatibilidade do art. 74 da MP 2.158-35 à
CF/88, o Poder Judiciário introduziu um critério relevante que não estava
presente na lei. Por se tratar de Ação Direita de Inconstitucionalidade, esse
julgamento do STF é vinculante e tem efeito erga omnes, ou seja, equipara-se
a uma norma geral e abstrata338
. Neste sentido, seus enunciados prescritivos
337
Cf. Lei nº 9.868, de 1999, que regula a propositura e o julgamento das ADI:
“Art. 23. Efetuado o julgamento, proclamar-se-á a constitucionalidade ou a inconstitucionalidade da
disposição ou da norma impugnada se num ou noutro sentido se tiverem manifestado pelo menos seis
Ministros, quer se trate de ação direta de inconstitucionalidade ou de ação declaratória de
constitucionalidade.” 338
Para aprofundar o estudo do tipo de norma jurídica caracterizada pela decisão em ADI e seus efeitos sobre
o direito positivo e as normas individuais e concretas, ver: MAIA, Robson. Controle de Constitucionalidade
da Norma Tributária: decadência e prescrição. São Paulo: Quartier Latin, 2005. capítulo IV.
160
“misturam-se” aos enunciados prescritivos da norma geral e abstrata
originária sem grandes discussões.
Contudo, e se essa decisão tivesse sido tomada em um Recurso
Extraordinário, portanto, fosse simplesmente uma norma individual e
concreta, não teriam tais enunciados o poder de integrar a RMIT Estática? Se
continuarmos a história do julgamento acima, veremos que esse problema já
se coloca na prática.
O RE 611.586 tratava de um caso de controlada em paraíso fiscal e,
assim o STF simplesmente “transportou” o resultado da ADI ao julgamento
do recurso interposto pelo contribuinte (Coamo Agroindustrial
Cooperativa)339
:
O Tribunal, por maioria e nos termos do voto do Relator, Ministro
Joaquim Barbosa (Presidente), negou provimento ao recurso
extraordinário, vencido o Ministro Marco Aurélio
O RE 541.090 tratava de um caso de controlada fora de paraíso fiscal
(segundo o STF avaliou neste caso, pelo menos) e o mesmo sucedeu:
transportou-se o resultado da ADI nº 2.588 para julgar-se inconstitucional o
art. 74 da MP nº 2.158.
O RE 611.586 fora julgado pelo rito da Repercussão Geral, conforme
adiantamos. O RE 541.090 não. Entretanto, o RE 611.586 em nada inovou
quando ao resultado já proclamado na ADI (com efeitos de norma geral e
abstrata): o art. 74 da MP nº 2.158-35 é constitucional para controladas fora
339
Cf. http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?incidente=3860092. Acesso em: 27
out. 2013.
161
de paraísos fiscais340
. Já o resultado da RE 541.090 seria diferente, não fosse
o fato de o STF ter ordenado o retorno dos autos à origem para examinar a
compatibilidade do art. 74 da MP nº 2.158 com os tratados internacionais para
evitar a dupla tributação. Não fosse isso, o resultado que indicava a
deliberação era: o art. 74 da MP nº 2.518-35 é inconstitucional para as
controladas localizadas fora de paraísos fiscais.
Se esse tivesse sido o resultado do RE 541.090, poderiam tais
enunciados prescritivos ser utilizados na construção da RMIT? Em princípio,
alegar-se-ia que não, dada a qualidade de norma individual e concreta e,
portanto, sem efeitos prospectivos da decisão judicial. Contudo, se pensamos
que tais enunciados prescritivos complementam o sentido do direito positivo,
colaborando na delimitação da legalidade tributária (neste caso, criando
efetivamente um novo critério legal – estar a controladas ou coligada em
paraíso fiscal), não faz sentido ignorá-los para composição de uma regra de
conduta341
.
É neste sentido que propomos a construção de uma RMIT Dinâmica, ou
seja, que leva em consideração não somente enunciados prescritivos presentes
do direito positivo, mas também aqueles postos pelas decisões judiciais,
considerando o caráter complementar e imprescindível da jurisprudência para
a delimitação de normas de conduta.
340
Falaremos sobre o tipo normativo de uma decisão tomada em Recursos Extraordinários julgados sob o rito
da Repercussão Geral (geral e abstrata x individual e concreta x geral e concreta x individual e abstrata) no
Capítulo 5. 341
Lenio Luiz Streck e Georges Abboud, ao falarem sobre o sistema da common law, traduzem bem o que
estamos querendo dizer aqui: “os precedentes são “feitos” para decidir casos passados; sua aplicação em
casos futuros é acidental. [...] Na tradição jurídica do common law, a jurisprudência é tipicamente uma das
fontes do direito no sentido formal, ao lado do direito legislativo, constitucional e as regras do Executivo. Ou
seja, significa que, em determinados casos, as regras gerais e abstratas que os juízes utilizam para decidir as
controvérsias, admite, a um só tempo, uma dupla função institucional. 1) Em relação ao caso concreto, são as
rationes decidendi que justificam a decisão. 2) No que se refere a futuras controvérsias, podem vir a
constituir precedentes dotados de eficácia normativa”. Op. cit., p. 30 e 35.
5 REGRA-MATRIZ DE INCIDÊNCIA TRIBUTÁRIA DINÂMICA E
UMA NOVA LEGALIDADE TRIBUTÁRIA: INTEGRAÇÃO DO
DIREITO POSITIVO ÀS DECISÕES JUDICIAIS, A NOÇÃO DE
PRECEDENTE E OS MECANISMOS DE REPERCUSSÃO GERAL E
RECURSO REPETITIVO
Para que os enunciados prescritivos das decisões judiciais
(jurisprudência) possam integrar a RMIT Dinâmica, ou seja, possam ser
utilizados para regulação de condutas futuras, é imprescindível que (i) a
decisão judicial tenha sido tomada em último grau de jurisdição e (ii) haja
uma autovinculação342
do Poder Judiciário às suas decisões passadas343
.
Isso não deveria ser uma exigência normativa344
, pois decorre de todo o
raciocínio que expusemos até aqui: se a jurisprudência assume um status de
342
O termo autovinculação refere-se à ideia de vinculação do Poder Judiciário pelo próprio Poder Judiciário,
ou seja, de vincularem-se decisões judiciais posteriores a anteriores. O termo vinculação é utilizado aqui em
sentido mais amplo que autovinculação, isto é, para denotar a vinculação do Poder Executivo (atos
administrativos) e do Poder Judiciário (decisões judiciais) à jurisprudência. De qualquer forma, nos parece
que a vinculação pressupõe a autovinculação: se os próprios juízes não estiverem vinculados às decisões
anteriores, podendo mudar de entendimento a qualquer momento, fica prejudicada a observância da
jurisprudência como parâmetro para a produção de atos administrativos. 343
Esses dois requisitos que impomos para que os enunciados prescritivos da decisão judicial sejam aptos a
integrar-se aos enunciados prescritivos das regras tributárias são mais formais que materiais. Não
pretendemos adentrar nesta tese sobre o conteúdo das decisões judiciais que seria vinculante. Para este
assunto, ver BUSTAMANTE, Thomas da Rosa de. Teoria do Precedente Judicial: a justificação e a
aplicação de regras jurisprudenciais. São Paulo: Noeses, 2012. Nas considerações introdutórias, afirma o
autor: “[...] o que se pretende com esse estudo é fornecer parâmetros metodológicos para estabelecer, com
certo grau de objetividade, “como fazer coisas com precedentes judiciais”, e em especial como extrair
normas jurídicas desse tipo de fonte do Direito e aplicar essas normas jurídicas na justificação de decisões
posteriores. A teoria dos precedentes que se inicia nesta introdução busca institucionalizar [...] alguns
parâmetros, regras e procedimentos de argumentação que se destinam a tornar o mais racional possível a
prática de se seguir precedentes judiciais e utilizá-los como argumentos de justificação de decisões
concretas”. Ibidem, p. XXI. 344
De fato, a questão cultural que envolve a valorização das decisões judiciais, isto é, o reconhecimento de
que a jurisprudência é importante para garantir a orientação da conduta de indivíduos para além do processo
e, por isso, devem-se manter estabilizados os entendimentos proferidos, não viria somente com mudanças
legislativas. Neste sentido ver ABBOUD, Georges, op. cit., p. 493: “Ocorre que, após uma breve análise do
common law, e, respectivamente, da doutrina dos precedentes e do sistema do stare decisis, torna-se fácil
constatar a impossibilidade de pretender instituir esses mecanismos no Brasil, mediante alterações
legislativas. Isso porque o sistema de precedentes e o stare decisis não surgiram e se consolidaram no
common law repentinamente. Muito diversamente, são frutos do desenvolvimento histórico daquelas
comunidades, de modo tão evidente que, na Inglaterra ou Estados Unidos, o respeito ao precedente é possível
163
complementaridade à lei, não se pode admitir sua pluralidade ou alternância
sob os argumentos de que (i) a lei é a mesma e o juiz está tão-só modificando
sua intepretação / aplicação ou (ii) porque os juízes são livres para decidir no
modelo civil law, inexistindo obrigação de autovinculação a entendimentos
anteriores.
Para que haja um ganho na implementação do Estado de Direito no
modelo civil law, aumentando o nível do que chamamos de legalidade
tributária, é imperativo que uma decisão judicial tomada em último grau de
jurisdição (irrecorrível) seja levada em consideração para a regulação de
condutas futuras, dado o seu caráter complementar ao direito positivo. Essa
perspectiva impõe a imediata revisão da noção corrente de que os juízes do
modelo civil law não precisam se ater às suas decisões passadas – e nem às
decisões de instâncias superiores – e podem, a qualquer momento, mudar suas
posições.
De certa forma, intencionalmente ou não, a reforma processual
brasileira que implementou os mecanismos de julgamento sob os ritos de
Recurso Repetitivo (STJ) e Repercussão Geral (STF) trouxe amarras
legislativas que acabam por garantir a vinculação das decisões judiciais
futuras às decisões judiciais passadas. Assim, embora essa vinculação possa
ser defendida diante da ausência de previsão normativa345
, é fato que a
existência de regra jurídica que criou mecanismos para sua garantia elimina
essa contingência, delimitando o exercício da competência jurisdicional.
mesmo inexistindo qualquer regra legal ou constitucional que explicite a obrigatoriedade de se seguir o
precedente, ou que lhe atribua efeito vinculante”. 345
A obrigatoriedade de seguirem-se os precedentes nos Estados Unidos da América, por exemplo, não
advém de nenhuma lei, mas da famosa doutrina do stare decisis. Cf. BARBOSA MOREIRA, José Carlos. A
Emenda Constitucional 45/2004 e o Processo. Revista Dialética de Direito Processual, n. 33, p. 52-63,
dez/2005, p. 62.
164
Esses novos mecanismos de estabilização da jurisprudência brasileira
favorecem a construção de uma noção de precedente mais específica e menos
intuitiva. Isto quer dizer que os julgamentos sob os ritos de Recurso
Repetitivo e Repercussão Geral podem ser ótimos critérios para qualificar
uma decisão judicial de precedente, fortalecendo essa noção nos países de
civil law.
5.1 Modelo Civil Law e Equivocada Outorga de Desvinculação das
Decisões Judiciais Posteriores
A afirmação de que a jurisprudência não é vinculante, ou seja, de que
os juízes de instâncias inferiores não estão obrigados a seguir decisões de
instância superiores, tampouco qualquer deles estaria obrigado a seguir suas
próprias decisões passadas, está presente tanto na dogmática brasileira como
na Ciência do Direito comparado (que descreve o modelo civil law)346
.
TÁREK MOYSÉS MOUSSALLEM afirma que a decisão judicial anterior
funciona no sistema jurídico-político brasileiro tão-somente como um
mecanismo de convencimento relativamente às decisões judiciais
posteriores347
:
[...] poderíamos entender a jurisprudência como uma fonte
psicológica do direito e não como uma fonte dogmática conforme
estamos tentando empreender.
346
É interessante como isso é uma postura mais teórica que prática. Como afirma José Carlos Barbosa
Moreira: “Na verdade, a jurisprudência nunca perdeu por completo o valor de guia para os julgamentos.
Ainda onde se repeliu, em teoria, a vinculação dos juízes aos precedentes, estes continuaram na prática a
funcionar como pontos de referência, sobretudo quando emanados dos mais altos órgãos da Justiça. Em
nosso país (sic), quem examinar os acórdãos proferidos, inclusive pelos tribunais superiores, verificará que,
na grande maioria, a fundamentação dá singular realce à existência de decisões anteriores que hajam
resolvido as questões de direito atinentes à espécie sub iudice. Não raro, a motivação reduz-se à enumeração
de precedentes: o tribunal dispensa-se de analisar as regras legais e os princípios jurídicos pertinentes –
operação a que estaria obrigado, a bem da verdade [...] – e substitui o seu próprio raciocínio pela mera
invocação de julgados anteriores”. Súmula, Jurisprudência, Precedente: uma escalada e seus riscos. Revista
Dialética de Direito Processual, n. 27, p. 49-58, jun/2005, p. 49-50. 347
Op. cit., p. 148-149.
165
Denominamos fonte psicológica, porque apenas almeja
influenciar a mente do magistrado no julgamento de um outro
caso semelhante. A decisão judicial em um caso “x” não cria a
obrigatoriedade de decisão judicial idêntica em um caso “y”, igual
ou semelhante a “x”.
Quando, por exemplo, um advogado cita uma determinada
jurisprudência em sua petição inicial ou contestação, o faz por
razões de convencimento do magistrado (violência simbólica). Este
não fica obrigado a decidir o caso de acordo com o julgado.
Além do mais, não há qualquer norma no direito brasileiro que
obrigue um juiz a seguir as decisões de seus pares ou dos
tribunais, exceto no caso de controle abstrato de
constitucionalidade.
(destaques não são do original)
ANDRÉIA COSTA VIEIRA afirma categoricamente a ausência de
vinculação e autovinculação obrigatória da jurisprudência, sendo que a
manutenção de entendimentos jurisprudenciais em decisões judiciais
posteriores é tão-somente uma boa prática – não-obrigatória – nos países de
civil law348
-349
.
No mesmo sentido é o raciocínio de RENÉ DAVID, para quem a
oscilação de jurisprudência também é algo característico do sistema de civil
law, fazendo com que a decisão judicial em determinado sentido só tenha
valor enquanto cada juiz (independente) achá-la boa350
.
348
“A jurisprudência não é fonte que vincula, mas é praxe nos tribunais manter-se uma decisão, reafirmando
a certeza do direito. Entretanto, qualquer juiz, de qualquer instância, pode julgar de forma diversa do que já
foi decidido. Nada o impede de fazê-lo. É exatamente essa liberdade de decisão, essa desvinculação, que
caracteriza o sistema jurisprudencial dos países do sistema Romano-Germânico”. Op. cit., p. 67. 349
No mesmo sentido, RODRÍGUES, Javier Solís. La Jurisprudencia en las tradiciones jurídicas. In:
SALGADO, David Cienfuegos; OLVERA, Miguel Alejandro López (orgs.). Estudios en homenaje a Don
Jorge Fernandéz Ruiz. México: Universidad Nacional Autónoma de México, 2005, p. 326-327. Apud
STRECK, Lenio Luiz; ABBOUD, Georges, op. cit., p. 31-32: “Convém ressaltar que a jurisprudência se
apresenta com força normativa inferior em relação à legislação, uma vez que as regras advindas dela seriam
mais frágeis, porque suscetíveis de serem abandonadas ou modificadas a qualquer momento”. 350
“As ‘regras de direito’ estabelecidas pela jurisprudência, em segundo lugar, não têm a mesma autoridade
que as formuladas pelo legislador. São regras frágeis, suscetíveis de serem rejeitadas ou modificadas a todo o
tempo, no momento do exame duma nova espécie. [...] É sempre possível uma mudança da jurisprudência,
sem que os juízes estejam obrigados a justificá-la. Ela não ameaça os quadros, nem os próprios princípios do
direito. A regra jurisprudencial apenas subsiste e é aplicada enquanto os juízes – cada juiz – a considerarem
como boa.”. Os Grandes Sistemas do Direito Contemporâneo, cit., p. 120.
166
Essa noção parece completamente autodestruidora: o princípio da
legalidade e o dogma da separação dos poderes fortalecem a ideia de que a lei
limita os Poderes Executivo e Judiciário. Contudo, assumindo a premissa de
falibilidade do direito positivo (Capítulo 3), a lei não só não serve para limitar
a atuação judicial, como a ação judicial é que assume a função de delimitar a
lei351
. Neste cenário, a inexigência de autovinculação, ao mesmo tempo em
que pretende firmar, destrói a separação dos poderes e a posição
hierarquicamente superior da lei. Se a lei não limita a atuação judicial, mas,
ao contrário, a decisão judicial é que delimita a lei, permitir a oscilação da
jurisprudência é eliminar o único mecanismo de controle do Poder
Judiciário352
e, em última análise, de efetiva implementação do Estado de
Direito.
Considerando o papel da decisão judicial diante da falibilidade do
direito positivo, é imperioso admitir a estabilização do sentido da lei por ela
criado353
. A manutenção de entendimentos anteriores a julgados posteriores
351
Vale aqui a transcrição de um trecho muito interessante de “Uma Teoria da Justiça”: “Em qualquer caso
particular, se as regras forem algo complicadas e pedirem interpretação, pode ficar fácil justificar uma
decisão arbitrária. Mas, à medida que o número de casos aumenta, torna-se mais difícil construir justificações
plausíveis para julgamentos tendenciosos”. RAWLS, John, op. cit., p. 260. 352
Teresa Arruda Alvim Wambier também ensaia essa percepção na Apresentação da obra por ela
coordenada, Direito Jurisprudencial: “A apreensão e o domínio da complexa técnica de apreender a essência
das situações normatizadas é o único caminho para que viabilizemos a aplicação de técnicas de
uniformização de decisões para casos disciplinados por normas jurídicas em que haja esses parâmetros
flexíveis, para que, assim, cada juiz não exerça à sua maneira, a liberdade que a aplicação desses dispositivos
enseja. Com isso, queremos dizer que a uniformização, em certa medida, é sempre desejável, mesmo em
situações que não sejam absolutamente idênticas [...]. Mas para que se fazer a uniformização da
jurisprudência, com o objetivo de preservar o princípio da igualdade, gerando, portanto, previsibilidade, em
torno, por exemplo, do conceito de “cláusula abusiva”, é necessário que se aceite e se compreenda que cada
juiz não pode ser sua opinião pessoal a respeito do que seja uma cláusula abusiva: uma vez pacificada a
jurisprudência em torno de um caso de abusividade, a qualificação aí definida passa a fazer parte do direito.”
In: WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Direito Jurisprudencial, cit., p. 6. 353
Além de garantir previsibilidade, a manutenção de entendimentos jurisprudenciais garante o princípio da
igualdade, evitando que casos similares sejam decididos de forma distinta. Para aprofundar essa ideia entre
igualdade e respeito aos precedentes, ver CAMARGO, Luiz Henrique Volpe. A Força dos Precedentes no
Moderno Processo Civil Brasileiro. In: WAMBIER, Teresa Arruda Alvim (coord.). Direito Jurisprudencial,
cit., p. 553-673. Schauer também chama a atenção para esse aspecto da igualdade, mas coloca-o como
pressuposto intuitivo para a manutenção de entendimentos anteriores: “It is worth noting at the outset that
precedent, although arguably concentrated in and more important in law than in other decision-making
domains, and more important in common law legal systems than in their civil law counterparts, is by no
means unique to legal decision-making. Younger children who demand to be treated just as their older
167
serviria tanto como mecanismo de autovinculação (controlando o próprio
Poder Judiciário) como de vinculação (controlando, mais precisamente,
também o Poder Executivo).
Diante disso, é preciso rever a falsa a percepção de que somente nos
países de common law os juízes criam o direito354
-355
e, por isso, estariam
vinculados, em suas decisões posteriores, às decisões tomadas em casos iguais
ou semelhantes anteriores. Essa premissa de que as decisões posteriores não
precisariam guardar coerência com as decisões anteriores no modelo civil law
não pode ser aceita diante de tudo o que expusemos nos Capítulos 3 e 4. A
estabilização de sentido pela manutenção de entendimentos anteriores no
julgamento de casos concretos futuros já é, assim como deveria ser,
preocupação também nos países de civil law356
.
É interessante notar como os modelos de civil law e common law vêm
se aproximando, exatamente mediante a integração desses mecanismos de
regulação de condutas (lei e decisão judicial), conforme observa RENÉ
DAVID357
:
Países de direito romano-germânico e países de common law
tiveram uns com os outros, no decorrer dos séculos, numerosos
contatos. Em ambos os casos, o direito sofreu a influência da moral
cristã e as doutrinas filosóficas em voga puseram em primeiro
plano, desde a época da Renascença, o individualismo, o
liberalismo e a noção de direitos subjetivos. A common law
conserva hoje a sua estrutura, muito diferente da dos direitos
siblings were treated at the same age are relying on arguments from precedent, as are the consumers who
insist on being given the same prices and terms as those offered to prior customers […]”. Precedent, cit., p. 1. 354
SOARES, Guido Fernando Silva, op. cit., p. 39. 355
É claro que os juízes, nos países de civil law, também criam direito, já que produzem normas individuais e
concretas, mas a acepção de “criar” utilizada na frase anterior está vinculada à produção de regras em nível
geral e abstrato. Nas palavras de Tárek Moysés Moussallem, “Como toda aplicação do direito é criação do
direito e vice-versa, não resta outra saída senão afirmarmos que os juízes criam direito”. Op. cit., p. 151. 356
Para explorar essas preocupações com a influência da jurisprudência nos países de civil law, Teresa
Arruda Alvim Wambier coordenou a produção da obra Direito Jurisprudencial, editado pela Revista dos
Tribunais em 2012. 357
Os Grandes Sistemas de Direito Contemporâneo, cit., p. 20.
168
romano-germânicos, mas o papel desempenhado pela lei foi aí
aumentando e os métodos usados nos dois sistemas tendem a
aproximar-se; sobretudo a regra de direito tende, cada vez mais, a
ser concebida nos países de common law como o é nos países da
família romano-germânica. [...].
(destaques não são do original)
A única percepção que ainda falta aos cientistas do modelo civil (e não
aos sistemas jurídicos em si) é de que a jurisprudência não mais ocupa um
papel secundário no sentido hierárquico, mas complementar às normas gerais
e abstratas. De fato, ainda que se admita a importância da jurisprudência, o
que já é indiscutível, as consequências desse reconhecimento ainda têm que
ser revistas: de nada adianta admitir a função primordial das decisões judiciais
se, por outro lado, se continuar afirmando, por exemplo, sua livre
mutabilidade, mantendo-se o mito da hierarquia das fontes, como faz o autor
acima referido358
:
As modificações podem mais facilmente incidir, em especial, sobre
as “regras secundárias” do direito: as viragens da jurisprudência
não atingem os fundamentos do sistema, não apresentam o mesmo
perigo e não criam as mesmas incertezas que nos países que
desconhecem a regra de direito do tipo admitido no seio da família
romano-germânico.
(destaques não são do original)
A inerente falibilidade do direito positivo impõe o reconhecimento do
papel complementar da jurisprudência para o desenho das regras jurídicas de
forma efetiva e não mais mascarada, com o objetivo de manter a aparente
noção de legalidade e Estado de Direito fundados na norma geral e abstrata.
358
DAVID, René. Os Grandes Sistemas de Direito Contemporâneo, cit., p. 85.
169
5.2 Uma Noção Específica e Conclusiva de Precedente
A noção de precedente utilizada pelos juízes e por alguns cientistas do
direito no Brasil359
equivale à noção de decisão – ou decisões – que
precede(m) àquela que está sendo tomada. Dito de outro modo, a referência a
um precedente relaciona-se com uma ou mais decisões judiciais passadas,
cujo objeto litigioso seria similar àquele enfrentado no presente360
. Desta
perspectiva, uma decisão judicial é qualificada de precedente a posteriori, ou
seja, a partir do momento em que uma decisão judicial posterior lhe faz
referência.
A utilização do precedente nestes termos tem uma única função muito
clara: outorgar força argumentativa ao pedido do autor ou réu, recorrente ou
recorrido, ou servir como justificativa para a decisão de um caso concreto
posterior. Em ambos os casos direciona implicitamente o raciocínio para a
ideia de autovinculação do Poder Judiciário361
.
Ao analisar alguns julgados do STF e do STJ percebe-se claramente a
utilização do termo “precedente”362
naquele sentido: decisão tomada num
359
Neste sentido ver: RAMIRES, Maurício, op. cit., p. 27-33; PEROBA, Luiz Roberto; MARTONE,
Rodrigo. A Importância dos Precedentes dos Tribunais e a Insegurança Jurídica do Sistema Tributário
Nacional. Revista Dialética de Direito Tributário, n. 217, p. 69 e seguintes, out/2013. 360
Teresa Arruda Alvim Wambier coloca que, “nos sistemas de civil law, normalmente precedentes têm seu
valor num conjunto de outras decisões no mesmo sentido, que demonstram haver certo consenso a respeito
da matéria decidida” (Cf. Precedentes e Evolução no Direito. In: WAMBIER, Teresa Arruda Alvim (coord.),
Direito Jurisprudencial, cit., p. 16), entretanto, a falta de sistematização empírica de todas as decisões dos
tribunais pode fazer com que determinado conjunto de decisões em um sentido, coletadas pelo jurista para
valorizar seu argumento ou pelo juiz para fundamentar sua decisão, não seja, necessariamente representativa
de uma pacificação de sentido. A autora continua afirmando que, “excepcionalmente, no civil law, faz-se
menção a uma decisão judicial, qualificando-a como um precedente. Cf. Precedentes e Evolução no Direito.
In: WAMBIER, Teresa Arruda Alvim (coord.), Direito Jurisprudencial, cit., p. 16. 361
Teresa Arruda Alvim Wambier vê ainda no conceito de precedente a perspectiva temporal, que muito se
parece com essa perspectiva implícita de vinculação que enxergamos: “Claro que a noção de precedente só
tem razão de ser se se projeta no futuro a ideia de que este deve servir de parâmetro ou se isso efetivamente
ocorre. Ou seja, só a perspectiva temporal, tanto no civil law quanto no common law é que explica ver-se, na
decisão, um precedente”. Cf. Precedentes e Evolução no Direito. In: WAMBIER, Teresa Arruda Alvim
(coord.). Direito Jurisprudencial, cit., p. 16. 362
A título de exemplo ver:
170
caso anterior, que por razões não necessariamente expostas, e pela (presumida
ou não) similaridade fática, deve ser seguida no caso presente363
.
A investigação sobre a noção de “precedente” sempre vem
acompanhada de análise comparativa de nosso modelo civil law ao modelo
common law, e os critérios para sua definição também não escapam daqueles
utilizados no modelo common law364
. O objetivo central desta tese não é
construir um conceito de precedente, tampouco fazer uma análise crítico-
comparativa dessa noção nos modelos de civil law e common law365
. A noção
de precedente que utilizarei aqui, tão-somente de forma conclusiva, está
STF: Agravos Regimentais nos Agravos de Instrumento nº 853.189 – julgado em 08/10/13 – e nº 859.494 –
julgado em 01/10/13; Agravo Regimental no Recurso Extraordinário com Agravo nº 744.994, julgado em
24/05/13; Agravo Regimental na Reclamação nº 12.501, julgado em 15/09/13. Em pesquisa realizada no site
do STF por acórdãos contendo os termos “tributário” e “precedente”, foram encontradas 2.558 decisões.
STJ: Agravos Regimentais nos Recurso Especiais nº 1.323.280 – julgado em 15/10/13, nº 1.385.360 –
julgado em 17/10/13, e nº 364.380 – julgado em 01/10/13; Recurso Especial nº 1.385.172, julgado em
17/10/13. Em pesquisa realizada no site do STJ por acórdãos contendo os termos “tributário” e “precedente”,
foram encontradas 20.651 decisões. 363
Teresa Arruda Alvim Wambier pontua um importante efeito dessa ausência de critério específico para
determinar-se o conceito de precedente e, com isso, valorizar-se a manutenção de entendimentos: “O fato é
que no Brasil e em tantos outros países, como se verá, [...], a dispersão excessiva da jurisprudência num
mesmo momento histórico e a mudança brusca de entendimentos jurisprudenciais que já estavam
absolutamente pacificados chocam e comprometem profunda e irremediavelmente a segurança jurídica
(uniformidade, estabilidade, previsibilidade e isonomia)”. Apresentação. In: WAMBIER, Teresa Arruda
Alvim. Direito Jurisprudencial, cit., 2012, p. 5. 364
Neste sentido ver: BUSTAMENTE, Thomas da Rosa de, op. cit.; TARANTO, Caio Márcio Gutterres.
Precedente Judicial: autoridade e aplicação na jurisdição constitucional. Rio de Janeiro: Forense, 2010;
SOUZA, Marcelo Alves Dias de. Do Precedente Judicial à Súmula Vinculante. Curitiba: Juruá, 2006;
ABBOUD, Georges, op. cit., p. 491-552; CAMARGO, Luiz Henrique Volpe, op. cit., p. 553-673;
MARINONI, Luiz Guilherme. Aproximação Crítica entre as Jurisdições de Civil Law e de Common Law e a
Necessidade de Respeito aos Precedentes no Brasil. Revista de Processo, ano 34, n. 172, p. 175-232,
jun/2009. 365
No sistema de common law, embora o termo “precedente” seja por vezes utilizado na mesma acepção da
doutrina do stare decisis, ambos se referindo à aplicação de entendimentos anteriores a casos julgados
posteriormente, é possível diferenciá-los. A doutrina do precedente foi o encaminhamento natural dos
sistemas jurídicos que seguiram o modelo inglês, além da própria Inglaterra. Considerando que decisão
judicial era o instrumento regulador de condutas, a necessidade de previsibilidade fez surgir a doutrina dos
precedentes (utilização de parâmetros de decisões anteriores para julgamento de casos posteriores). A
doutrina do stare decisis propriamente dita surge mais tarde, “mediante uma sistematização das decisões, que
distinguia a elaboração/construção (holding) do caso que consistiria no precedente e seria vinculante para
casos futuros, e o dictum, que consistia na argumentação utilizada pela corte, dispensáveis à decisão e, desse
modo, não eram vinculantes”. Na doutrina dos precedentes era necessário haver um corpo de decisões no
mesmo sentido para se outorgar a obrigação (não legal, mas cultural) de segui-lo. Na atual doutrina do stare
decisis, basta uma decisão. Cf. STRECK, Lenio Luiz; ABBOUD, op. cit., p. 36-42. Informações ainda mais
profundas sobre a doutrina dos precedentes e o stare decisis podem ser encontradas em: LIMA, Augusto
César Moreira, op. cit., p. 19-68.
171
voltada eminentemente ao sistema jurídico-político brasileiro e leva em
consideração as premissas assentadas até o momento.
O termo “precedente”, neste trabalho, significa a decisão judicial cujos
enunciados prescritivos estão aptos se integrar aos enunciados prescritos do
direito positivo, formando aquilo que chamamos de RMIT Dinâmica. Em
outros termos, um precedente, neste sentido, há de ser capaz de regular
condutas futuras.
Dois são os critérios para a formação de um precedente neste sentido:
irrecorribilidade e autovinculação da decisão judicial366
.
Uma decisão judicial não submetida ao último grau de jurisdição não
tem aptidão para delimitar o sentido das normas gerais e abstratas, pois ainda
existe um órgão competente que, colocando termo ao conflito, pode decidir de
forma diferente.
De outro lado, só faz sentido utilizar-se uma decisão judicial como
critério de interpretação, delimitando mais precisamente o direito positivo, se
ela for seguida em casos posteriores submetidos à apreciação do Poder
Judiciário. Não existe qualquer ganho para a legalidade tributária e o Estado
de Direito a utilização de decisões judiciais que não possuam estabilidade ao
longo do tempo.
366
Neste sentido, a atribuição da qualificação de “precedente” a uma decisão judicial pode ser feita de plano
e não posteriormente, como o faz Michelle Taruffo, que concebe a característica de “precedente” a uma
decisão judicial somente a partir da decisão judicial posterior que a aplica: “O precedente fornece uma regra
[...] que pode ser aplicada como critério de decisão no caso sucessivo em função da identidade ou, como
acontece de regra, da analogia entre os fatos do primeiro caso e os fatos do segundo caso. Naturalmente, a
analogia das duas fattispecie não é determinada in re ipsa, mas é afirmada ou excluída pelo juiz do caso
sucessivo conforme este considere prevalentes os elementos de identidade ou os elementos de diferença entre
os fatos dos dois casos. É, portanto, o juiz do caso sucessivo que estabelece se existe ou não existe o
precedente e desta forma – por assim dizer – ‘cria’ o precedente.”. Precedente e giurisprudenza. Napoli:
Editoriale Scientifica SRL, 2007, p. 13-14, apud WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Precedentes e Evolução
no Direito. In: WAMBIER, Teresa Arruda Alvim (coord.). Direito Jurisprudencial, cit., p. 16.
172
O mecanismo de vinculação elimina a natural subjetividade de um novo
juízo proposicional acerca do que as leis significam, conforme explicita
FREDERICK SCHAUER, com a clareza que lhe é peculiar367
:
É a própria característica de “ser do passado” das decisões
anteriores, e não necessariamente a visão atual do decisor sobre a
correção dessas decisões anteriores, que dá àquelas decisões
anteriores a sua autoridade.
É exatamente essa impossibilidade de uma nova interpretação sobre
determinada regra tributária que o mecanismo de vinculação procura garantir,
objetivando-se a estabilização das relações constituídas sob a vigência
daquele precedente368
.
5.3 Mecanismos de Repercussão Geral e Recurso Repetitivo, Norma
Geral e Concreta e Regra-Matriz de Incidência Tributária Dinâmica
Em 8 de dezembro de 2004 foi promulgada a Emenda Constitucional nº
45 alterou o art. 102 da CF/88, para incluir o §3º que dispõe:
§3º No recurso extraordinário o recorrente deverá demonstrar a
repercussão geral das questões constitucionais discutidas no caso,
nos termos da lei, a fim de que o Tribunal examine a admissão do
recurso, somente podendo recusá-lo pela manifestação de dois
terços de seus membros.
Segundo afirma JOSÉ CARLOS BARBOSA MOREIRA, essa e outras
medidas que vieram com a EC 45 decorrem da “generalizada insatisfação
367
Tradução livre do seguinte trecho: “It is the very ‘pastness’ of previous decisions, and not necessarily the
current decision maker's view of the correctness of those previous decisions, that gives the previous decisions
their authority”. Precedent, cit., p. 1. 368
Sobre a dificuldade de elaborar um precedente tendo-se em mente que ele será aplicado a situações
futuras, ver: FULLER, Lon L. O Caso dos Exploradores de Cavernas. Trad. Plauto Faraco de Azevedo.
Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1976. p. 37-38.
173
com o desempenho da máquina judiciária”369
. Especificamente quanto à
referida alteração, afirma o professor da Faculdade de Direito da
Universidade Estadual do Rio de Janeiro e Desembargador aposentado do
Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, que ela tem o objetivo de obrigar o STF
a analisar questões de cunho mais restrito370
:
A norma, de clara inspiração norte-americana, encontra um
antecedente no próprio Direito brasileiro: tempo houve, sob outro
regime constitucional, em que a admissibilidade do recurso
extraordinário se subordinava, em certas hipóteses, à demonstração
da então denominada “relevância da questão federal”. A idéia é a
mesma, se bem que consagrada agora sob forma algo diversa. O
que se pretende é evitar que o Supremo Tribunal Federal tenha
de ocupar-se de questões de interesse visto como restrito à
esfera jurídica das partes do processo, em ordem a poder
reservar sua atenção e seu tempo para matérias de mais vasta
dimensão, para grandes problemas cuja solução deva influir
com maior intensidade na vida econômica, social, política do
País.
(destaques não são do original)
369
BARBOSA MOREIRA, José Carlos. “A Emenda Constitucional 45/2004 e o Processo”, cit., p. 53. Na
conclusão do artigo, continua ainda afirmando que “[...] a atenção do legislador se concentrou, acima de tudo,
no aspecto da duração dos processos, vista como excessiva. [...]. A lentidão da máquina judiciária
inegavelmente constitui problema sério, que aliás nada tem de peculiar ao Brasil, senão que aflige até países
do chamado primeiro mundo, alguns dos quais talvez não desfrutem, no particular, situação melhor que a
nossa. [...]. Seja como for, assente que a aceleração do ritmo processual representou a prioridade da Emenda,
impende verificar as estratégias de que ela se valeu para perseguir tal resultado”. Ibidem, p. 59-60. 370
Ibidem, p. 56. Em sua conclusão, o autor afirma que essa medida específica só aparentemente desafoga o
STF: “Decerto se conta, como fator de alívio para o Supremo Tribunal Federal, com a exigência da
“repercussão geral das questões discutidas” no recurso extraordinário (art. 102, §3º). Raciocinemos, contudo,
em perspectiva prática e com os pés firmes no chão. O recurso terá de submeter-se à apreciação do Plenário
do Tribunal, visto que, para negar-lhe conhecimento, serão necessários os votos de, no mínimo, dois terços
dos Ministros. Com isso já se introduz uma complicação no processamento, em confronto com o regime
atual, em que a competência para julgar o recurso extraordinário cabe, em princípio, a qualquer das Turmas
(Regimento Interno, art. 9º, nº III), e só por exceção sobe ela ao Tribunal Pleno. Adite-se que, à luz do art.
93, nº IX, da Carta da República, não alterado pela Emenda, será, por força, pública e motivada a decisão
sobre o cumprimento ou descumprimento do requisito da “repercussão geral”. Fica pois afastada a vantagem
– se na verdade é lícito (ponto mais que duvidoso) chamar-lhe assim – de que goza, no particular, a Supreme
Court norte-americana, onde é secreta e em regra sem motivação divulgada a deliberação sobre se a petition
for certiorari será examinada no mérito”. Ibidem, p. 60-61. Esse problema foi resolvido pela regulamentação
prescrita atualmente no art. 543-A do CPC.
174
Foi a Lei nº 11.418, de 2006, que regulamentou a admissibilidade de
recursos extraordinários por meio da demonstração da existência de
repercussão geral, incluindo o art. 543-A ao Código de Processo Civil371
:
Art. 543-A. O Supremo Tribunal Federal, em decisão irrecorrível,
não conhecerá do recurso extraordinário, quando a questão
constitucional nele versada não oferecer repercussão geral, nos
termos deste artigo.
§1º Para efeito da repercussão geral, será considerada a existência,
ou não, de questões relevantes do ponto de vista econômico,
político, social ou jurídico, que ultrapassem os interesses subjetivos
da causa.
§2º O recorrente deverá demonstrar, em preliminar do recurso, para
apreciação exclusiva do Supremo Tribunal Federal, a existência da
repercussão geral.
§3º Haverá repercussão geral sempre que o recurso impugnar
decisão contrária a súmula ou jurisprudência dominante do
Tribunal.
§4º Se a Turma decidir pela existência da repercussão geral por, no
mínimo, 4 (quatro) votos, ficará dispensada a remessa do recurso
ao Plenário.
§5º Negada a existência da repercussão geral, a decisão valerá para
todos os recursos sobre matéria idêntica, que serão indeferidos
liminarmente, salvo revisão da tese, tudo nos termos do Regimento
Interno do Supremo Tribunal Federal.
§6º O Relator poderá admitir, na análise da repercussão geral, a
manifestação de terceiros, subscrita por procurador habilitado, nos
termos do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal.
§7º A Súmula da decisão sobre a repercussão geral constará de ata,
que será publicada no Diário Oficial e valerá como acórdão.
Essa mesma Lei, além de regulamentar a admissão dos recursos
extraordinários, também implementou mecanismo de vinculação das decisões
judiciais do STF, por meio da prescrição do art. 543-B do CPC:
Art. 543-B. Quando houver multiplicidade de recursos com
fundamento em idêntica controvérsia, a análise da repercussão
371
Informações detalhadíssimas sobre o projeto dessa Lei 11.418 e de outras que regulamentaram as medidas
trazidas pela EC 45 podem ser encontradas no Relatório da Comissão Mista Especial para a Reforma do
Judiciário criada no âmbito do Congresso Nacional. Disponível em:
http://www.senado.gov.br/atividade/Materia/getPDF.asp?t=40131&tp=1. Acesso em: 3 nov. 2013.
175
geral será processada nos termos do Regimento Interno do
Supremo Tribunal Federal, observado o disposto neste artigo.
§1º Caberá ao Tribunal de origem selecionar um ou mais recursos
representativos da controvérsia e encaminhá-los ao Supremo
Tribunal Federal, sobrestando os demais até o pronunciamento
definitivo da Corte.
§2º Negada a existência de repercussão geral, os recursos
sobrestados considerar-se-ão automaticamente não admitidos.
§3º Julgado o mérito do recurso extraordinário, os recursos
sobrestados serão apreciados pelos Tribunais, Turmas de
Uniformização ou Turmas Recursais, que poderão declará-los
prejudicados ou retratar-se.
§4º Mantida a decisão e admitido o recurso, poderá o Supremo
Tribunal Federal, nos termos do Regimento Interno, cassar ou
reformar, liminarmente, o acórdão contrário à orientação firmada.
§5º O Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal disporá
sobre as atribuições dos Ministros, das Turmas e de outros órgãos,
na análise da repercussão geral.
(destaques não são do original)
Posteriormente, a Lei nº 11.672, de 2008, introduziu mecanismo similar
aos julgamentos do STJ, por meio da redação do art. 543-C do CPC, chamado
de “Recurso Repetitivo”:
Art. 543-C. Quando houver multiplicidade de recursos com
fundamento em idêntica questão de direito, o recurso especial será
processado nos termos deste artigo.
§1º Caberá ao presidente do tribunal de origem admitir um ou mais
recursos representativos da controvérsia, os quais serão
encaminhados ao Superior Tribunal de Justiça, ficando suspensos
os demais recursos especiais até o pronunciamento definitivo do
Superior Tribunal de Justiça.
§2º Não adotada a providência descrita no §1º deste artigo, o relator
no Superior Tribunal de Justiça, ao identificar que sobre a
controvérsia já existe jurisprudência dominante ou que a matéria já
está afeta ao colegiado, poderá determinar a suspensão, nos
tribunais de segunda instância, dos recursos nos quais a
controvérsia esteja estabelecida.
§3º O relator poderá solicitar informações, a serem prestadas no
prazo de quinze dias, aos tribunais federais ou estaduais a respeito
da controvérsia.
§4º O relator, conforme dispuser o regimento interno do Superior
Tribunal de Justiça e considerando a relevância da matéria, poderá
176
admitir manifestação de pessoas, órgãos ou entidades com interesse
na controvérsia.
§5º Recebidas as informações e, se for o caso, após cumprido o
disposto no §4º deste artigo, terá vista o Ministério Público pelo
prazo de quinze dias.
§6º Transcorrido o prazo para o Ministério Público e remetida
cópia do relatório aos demais Ministros, o processo será incluído
em pauta na seção ou na Corte Especial, devendo ser julgado com
preferência sobre os demais feitos, ressalvados os que envolvam
réu preso e os pedidos de habeas corpus.
§7º Publicado o acórdão do Superior Tribunal de Justiça, os
recursos especiais sobrestados na origem:
I - terão seguimento denegado na hipótese de o acórdão recorrido
coincidir com a orientação do Superior Tribunal de Justiça; ou
II - serão novamente examinados pelo tribunal de origem na
hipótese de o acórdão recorrido divergir da orientação do Superior
Tribunal de Justiça.
§8º Na hipótese prevista no inciso II do §7º deste artigo, mantida a
decisão divergente pelo tribunal de origem, far-se-á o exame de
admissibilidade do recurso especial.
§9º O Superior Tribunal de Justiça e os tribunais de segunda
instância regulamentarão, no âmbito de suas competências, os
procedimentos relativos ao processamento e julgamento do recurso
especial nos casos previstos neste artigo.
Os julgamentos realizados sob os ritos de Repercussão Geral e Recurso
Repetitivo, além de atenderem aos anseios de celeridade e economia
processual372
, introduzem formas pragmáticas de autovinculação do Poder
Judiciário.
O art. 543-B, §3º, do CPC, prescreve claramente uma vinculação das
instâncias inferiores às decisões tomadas pelo STF. Para manter o princípio
do livre-convencimento, admite uma relativização daquela vinculação
obrigatória, mas garante a manutenção de seu entendimento aos casos
posteriores por meio do §4º: no caso dos precedentes firmados pelo rito de
372
Para aprofundar o estudo da questão da celeridade processual na tutela jurisdicional ver MARCATO,
Antonio Carlos. Crise da Justiça e Influência dos Precedentes Judiciais no Direito Processual Brasileiro.
Tese de Concurso ao Cargo de Professor Titular de Direito Processual Civil do Departamento de Direito
Processual da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. São Paulo, 2008. p. 9-36.
177
Repercussão Geral, ainda que os tribunais de segunda instância possam
manter suas decisões divergentes daquelas proferidas pelo STF, chegando ao
STF terá esse caso a mesma decisão que fora tomada sob aquele rito.
No caso do STJ, embora haja a mesma vinculação, observada a
possibilidade de o juiz de 2ª instância manter seu posicionamento divergente,
não existe, diretamente na lei processual, mecanismo que garante a
manutenção da decisão anterior por julgamento monocrático. Na hipótese de
o juiz de 2º grau manter sua decisão divergente do precedente firmado pelo
STJ, prescreve o §8º do art. 543-C tão-somente que o tribunal deverá fazer o
exame de admissibilidade do recurso. É omisso o CPC, contudo, quanto ao
procedimento que será seguido pelo STJ quando tal recurso for para lá
remetido.
É a atual Resolução nº 17, de 2013373
, publicada pelo STJ com
fundamento de validade em seu Regimento Interno, que estabelece
indiretamente que esse tribunal deverá seguir seu entendimento anterior:
Art. 1º Compete ao presidente do Tribunal, antes da distribuição
dos feitos aos ministros:
I – negar seguimento ou provimento a agravos em recurso especial,
a recursos especiais e a outros feitos que sejam:
b) contrários a matéria sumulada, julgada em recurso representativo
de controvérsia ou consolidada por jurisprudência pacificada pelo
Tribunal;
II – dar provimento a recursos interpostos contra decisões
contrárias a matéria julgada em recurso representativo de
controvérsia ou consolidada por jurisprudência já pacificada pelo
Tribunal;
[...]
373
Essa resolução “dispõe sobre a competência do Presidente do Superior Tribunal de Justiça para, nas
hipóteses que especifica, julgar os feitos antes da distribuição aos ministros e dá outras providências”.
178
Por ostentar, pragmaticamente, o caráter de generalidade (ter alcance
não só às partes do processo, mas a sujeitos indeterminados submetidos
àquela situação concreta de dúvida no futuro), os enunciados prescritivos de
uma decisão judicial tomada pelos ritos de Repercussão Geral e Recurso
Repetitivo passam a ter aptidão para integrar uma norma jurídica abstrata
(regular condutas futuras) não só em decorrência da teoria aqui proposta, mas
por imposição normativa do próprio direito positivo.
Considerando que os mecanismos processuais acima expostos tendem a
vincular decisões futuras às decisões passadas, faz todo o sentido a utilização
dos enunciados prescritivos nessas normas gerais e concretas para precisar o
sentido da RMIT Estática (construída tão-somente a partir de normas gerais e
abstratas), construindo-se uma RMIT Dinâmica, mais precisa e,
consequentemente, com maior capacidade de orientar a conduta dos
indivíduos (Fisco e Contribuintes)374
.
5.4 Breve Análise das Críticas à Aplicação de Precedentes no Brasil
ALEXANDRE MORAIS DA ROSA, ao apresentar o livro “Crítica à
Aplicação de Precedentes no Direito Brasileiro”, do juiz MAURÍCIO RAMIRES,
pontuou que375
:
Esta fusão de tradições (civil e common law) não pode ser aceita
como um simples encontro, muito menos como um mero diálogo
de fontes, pois representa a mudança da própria maneira de
compreensão do Direito, transformado em um acessório
econômico, e consumível. O risco de tal proceder e que se pode
374
Outros ganhos desse novo status da jurisprudência seria a tendência de uniformização da jurisprudência,
evitando decisões contraditórias, o que garante efetivamente a isonomia. Além disso, ao “padronizar-se”
“entendimentos a respeito de teses [...] e adiantar ao utente, já no primeiro grau, ou quanto antes, a solução
que ele haveria de receber anos depois. Com isso se privilegia o princípio (sic) da duração razoável do
processo, consagrado no coração do sistema via Emenda Constitucional”. Cf. STRECK, Lenio Luiz;
ABBOUD, Georges, op. cit., p. 12. 375
Apresentação. In: RAMIRES, Maurício, op. cit., p. 24.
179
decidir fora da história, sem enunciação, na mais lídima autonomia
dos enunciados, em que a responsabilidade do julgador é extinta!”.
No mesmo sentido são as severas críticas de LENIO LUIZ STRECK à
aplicação de julgados anteriores a casos presentes e à atividade dos juristas de
se pautarem na jurisprudência para orientar a conduta daqueles que lhe
questionam376
:
[...] O “operador do direito” (sic) vai trabalhar no seu cotidiano
com soluções e conceitos lexicográficos, recheando, desse modo,
suas petições, pareceres e sentenças com ementas jurisprudenciais,
citadas, quase sempre, de forma descontextualizada, afora sua
atemporalidade e a-historicidade.
[...]
Essa cultura alicerça-se em casuísmos didáticos. [...]
O jurista acaba sendo, a um só tempo, “cronofóbico” e
“factumfóbico” (o tempo e a facticidade acabam sendo seus
maiores inimigos). Com um pouco de atenção e acuidade, pode-se
perceber que grande parte de sentenças, pareceres, petições e
acórdãos é resolvida a partir de citações do tipo Nessa linha, a
jurisprudência é pacífica (e seguem-se várias citações
padronizadas de número de ementários), ou Já decidiu o Tribunal
tal que legítima defesa não se mede milimetricamente (RT
604/327) (sic), ou ainda que abraço configura o crime de atentado
violento ao pudor, cuja pena, ressalte-se, varia de seis a dez anos de
reclusão, além de ser crime hediondo (RT 567/293; RJTJSP
81/351) (sic). São citados, geralmente, apenas os ementários,
produtos, em expressivo número, de outros ementários (ou da fusão
destes). Raramente a ementa citada vem acompanhada do contexto
histórico-temporal que cercou o processo originário. Isso tudo para
dizer o mínimo...!
A grande preocupação por detrás das críticas à aplicação de precedentes
é o trato frio do caso concreto. É, em última análise, com as injustiças que a
“padronização” da jurisprudência pode causar: deixam-se de lado as
376
À Guisa de Prefácio. In: RAMIRES, Maurício, op. cit., p. 11-20.
180
importantes particularidades do caso concreto em nome da uniformização
“estética” de entendimentos jurisprudenciais377
.
Outro tipo de crítica que se faz à utilização de decisões judiciais
passadas – tão-somente elas – como fundamento de uma decisão judicial378
.
A questão de fundo, de qualquer forma, é se se aplica “mal” ou “bem”
um precedente, o que se mostra uma análise subjetiva, tanto quanto as teorias
argumentativas dos limites à interpretação do direito positivo. Em ambos os
casos a tentativa de controle nos parece inútil, quer por meio de normas de
competência379
, quer por meio da dogmática.
Contudo, não nos parece que a solução seja, por isso, simplesmente
abolir a utilização de decisões judiciais. Não é porque existem maus
motoristas que não se devem vender mais carros! O risco de estandardização
do direito e a suposta má utilização dos precedentes podem ser críticas muito
bem trabalhadas, mas não rebatem os ganhos de se valorizar a decisão
judicial, como aquele demostrado aqui.
Neste sentido, não vemos sentido em afastar a ideia de autovinculação
das decisões judiciais pelo receio da má utilização dos precedentes e das
injustiças nos casos concretos. “Injustiças” podem existir com ou sem a
aplicação de precedentes. De outro lado, vemos um efetivo ganho na ideia de
377
Neste sentido ver STRECK, Lenio Luiz e ABBOUD, Georges, op. cit., p. 11. 378
Neste sentido ver RAMIRES, Maurício, op. cit.. 379
É interessante notar como Lenio Luiz Streck e Georges Abboud acreditam ferrenhamente que é possível
controlar o exercício da competência judicial unicamente por meio de normas: “Cada verbete esconde o caso.
A tese esconde o caso concreto. E o projeto do novo Código de Processo Civil parece estar encantado com os
“precedentes” do direito do common law. E, pior: insiste nos embargos declaratórios, esse instrumento de
quinta categoria que só serve para “esquentar” decisões mal fundamentadas. Os embargos declaratórios são o
sintoma de que o furo é mais embaixo. [...] Vou insistir de novo: é possível um sistema jurídico “dar certo”,
se os Códigos Processuais admit(ir)em (ou continuarem a admitir) que um juiz possa exarar sentenças
omissas, contraditórias ou obscuras? [...] Se começássemos por aí, obrigando o juiz a não exarar sentenças
omissas, contraditórias ou obscuras, já estaríamos avançando sobremodo”. Op. cit., p. 12.
181
Estado de Direito mediante valorização da jurisprudência, considerando a
falibilidade do direito positivo.
5.5 Estabilização da Jurisprudência por meio de Súmulas
É antiga a utilização de súmulas para uniformização de entendimentos
dos tribunais380
. Embora a priori possa parecer mais forte que a ideia de
precedente, não concordamos que as súmulas sejam um bom mecanismo de
complemento à falível legalidade do direito positivo.
Isso porque as Súmulas se descolam de seu contexto de produção,
ganhando status de norma geral e abstrata. As súmulas, vinculantes ou não,
transformam o individual e concreto da decisão judicial, que é exatamente o
ganho de legalidade diferenciador desse tipo de veículo introdutor, em geral e
abstrato, por indução381
.
LENIO LUIZ STRECK, crítico ferrenho das súmulas vinculantes, faz a
seguinte afirmação que, embora seja expressamente extensível às normas
gerais e abstratas, faz todo o sentido para essas também382
:
Ou seja, continuamos a achar que – e essa discussão vai além das
súmulas (vinculantes formalmente ou não) – é possível construir
conceitos jurídicos (enunciados jurisprudenciais) aptos a prever
380
A utilização de Súmulas como forma de uniformização de entendimentos tem origem nos “assentos” do
direito português. Tal instituto foi incorporado ao direito brasileiro ainda na época do Império, embora não
tenha permanecido na República. Seu retorno, sob a forma de “súmulas”, foi em 1963, com o objetivo
(aparentemente novo) de desafogar o Supremo Tribunal Federal, por meio de regras regimentais. A
legislação propriamente dita só disciplina a forma de utilização das súmulas, isto é, como ela poderia servir
para “barrar” a subida ou o exame de recursos aos tribunais superiores (art. 555, §1º, da Lei nº 10.352, de
2001; Lei nº 8.038, de 1990; Lei nº 9.139, de 1995, que alterou o art. 557 do Código de Processo Civil; Lei nº
9.756, de 1998, que alterou os artigos 544 e 557 do Código de Processo Civil). A formação de súmulas ainda
é assunto tratado regimentalmente pelos tribunais superiores. Para aprofundar o estudo da evolução das
súmulas ver BARBOSA MOREIRA, José Carlos. “Súmula, Jurisprudência, Precedente: uma escalada e seus
riscos”, cit., p. 49-58; MANCUSO, Rodolfo de Camargo, op. cit., p. 157-276 e 341-400. 381
Defendemos que precedentes e súmulas ocupam papeis diferentes no sistema jurídico, diferentemente de
Lenio Luiz Streck e Georges Abboud no livro O que é isto – o precedente judicial e as súmulas vinculantes?,
cit., p. 9. 382
“À Guisa de Prefácio”, cit., p. 11.
182
todas as futuras hipóteses de aplicação. Super-normas, pois. É
como se fosse possível “colocar” no interior de um texto jurídico
todas as suas hipóteses de aplicação.
É exatamente por transformarem normas individuais e concretas em
gerais e abstratas que as súmulas passam a sofrer em seu processo de
aplicação das mesmas mazelas que as leis: dissociadas das variáveis de casos
concretos, pretendem regular condutas futuras e, com isso, terão de lidar com
a mesma falibilidade inerente ao direito positivo.
De forma diferente, os precedentes, como normas gerais e concretas,
mantêm o seu ganho em relação às fórmulas gerais do direito positivo e das
Súmulas, pois, ao manterem vinculação ao contexto de produção, eliminam
vaguezas, ambuiguidades e todas as formas de lacunas que expusemos no
Capítulo 3.
5.6 Mudança do Precedente e Efeitos Jurídicos Prospectivos
Uma das questões mais recorrentes quando se discute o tema dos
precedentes, ou seja, da manutenção de decisões judiciais a casos posteriores,
é a mudança desse parâmetro jurisprudencial: quando é possível / admissível /
recomendada a mudança de um precedente383
?
Obviamente essa é uma preocupação mais recente em sistemas
jurídicos como o nosso e já possui vasta literatura nos sistemas de common
law384
.
383
Nos sistemas de common law a mudança de precedente é chamada de overruling. 384
Para o aprofundamento do estudo da modificação de precedentes nos países de common law ver:
BRENNER, Saul; SPAETH, Harold J. Stare Indecisis: the alteration of precedent on the Supreme Court,
1946-1992. Cambridge: Cambridge University Press, 1995. KORNHAUSER, Lewis A. An Economic
Perspective on Stare Decisis. Chicago Kent Law Review, vol. 65, issue 1, article 5. Disponível em:
http://scholarship.kentlaw.iit.edu/cklawreview/vol65/iss1/5. Acesso em: 03 nov. 2013; DUXBURY, Neil.
The Nature and Authority of Precedent. Cambridge: Cambridge University Press, 2008; STONE, Julius. The
183
Podem ser alegadas diversas razões para modificar-se um precedente.
TERESA ARRUDA ALVIM WAMBIER aborda o problema sob a dualidade
previsibilidade / evolução do direito385
:
Não parece que possa existir país algum no mundo em que esta
tensão não esteja presente: o direito deve preservar o status quo,
mas não pode ser imóvel.
[...]
O fato de o homem poder viver segundo regras preestabelecidas e
por ele conhecidas pode ser considerado uma conquista da
civilização. A simples circunstância de os padrões de avaliação de
sua conduta serem conhecidos, independentemente do juízo de
valor que a respeito desses padrões de avaliação se possa fazer,
satisfaz e tranquiliza. Pode-se dizer que uma das mais relevantes
funções do direito é a de, justamente, gerar previsibilidade.
Mas como o direito serve à sociedade e esta se modifica, é também
necessário que, em alguma medida, o direito exerça a delicada
função de adaptar-se.
As dificuldades para construção de critérios – legais ou dogmáticos –
aptos a controlar a mudança de precedentes nos parecem muito próximas
daquelas para controle da interpretação dos juízes sobre as leis. A primeira
grande dificuldade pode ser encontrada no fato de que são os próprios juízes
os detentores do poder de interpretação de uma lei, inclusive daquela que
prevê os critérios de limitação de seu próprio poder. Do mesmo modo, são
eles que interpretação as decisões passadas tomadas por eles próprios ou por
outros juízes, fixando precedentes. Em outros termos, mediante a
interpretação sabemos o quanto é possível manipular o sentido da lei e da
decisão judicial anterior e, assim, dar a elas determinados significados que
fragilizem o controle pretendido.
Ratio of the Ratio Decidendi. The Modern Law Review, vol. 22, n. 6, 1959. Disponível em:
http://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1111/j.1468-2230.1959.tb00561.x/pdf. Acesso em: 3 nov. 2013;
EVANS, Jim. Change in the Doctrine of Precedent during the 19th
Century. In: GOLDSTEIN, Laurence
(coord.). Precedent in Law, Oxford: Clarendon, 1987. 385
WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Precedentes e Evolução do Direito. In: WAMBIER, Teresa Arruda
Alvim (coord.). Direito Jurisprudencial, cit., p. 13-15.
184
Por outro lado, a dogmática tem um papel mediato e imensurável diante
desse problema, considerando que atua tão-somente na formação e no
convencimento dos juízes, sem uma vinculação obrigatória específica diante
do exercício da competência jurisdicional386
.
Diante disso e coerentemente com o status que propusemos dar aos
precedentes, nos parece que a forma jurídica mais efetiva para permanecer
ganhando previsibilidade através da jurisprudência é atribuir à mudança de
entendimentos o efeito prospectivo387
.
Propusemos nos itens anteriores que os enunciados prescritivos dos
precedentes deveriam integrar-se aos enunciados prescritivos das normas
gerais e abstratas, construindo-se uma RMIT Dinâmica, que garante mais
precisão e, com isso, aumenta o grau de legalidade tributária e fortifica a ideia
de Estado de Direito. Considerando que os enunciados prescritivos dos
precedentes passam, desta forma, à condição de norma geral e abstrata388
,
complementando o sentido do falível direito positivo, nos parece
absolutamente coerente defender que a sua mudança não tenha efeitos
retroativos389
.
386
A ideia de manter-se um precedente por tempo razoável, de modo que não seja imutável, mas garanta
uniformidade, é corriqueira, mas de difícil objetivação, levando a análise para o caso concreto em detrimento
de uma generalização desejada. 387
A professora Misabel Abreu Machado Derzi aborda brilhantemente esse tema sob a perspectiva dos
princípios da proteção da confiança e da boa-fé objetiva como limitações constitucionais do “poder judicial
de tributar”, apoiada nas teorias de Niklas Luhmann e Claus-Wilhelm Canaris, na obra Modificações da
Jurisprudência no Direito Tributário, cit., capítulos IV e V. 388
Teresa Arruda Alvim Wambier reconhece esse papel integrativo da jurisprudência para regulação de
condutas futuras na Apresentação do livro Direito Jurisprudencial, por ela coordenado: “Mas para que se
fazer a uniformização da jurisprudência, com o objetivo de preservar o princípio da igualdade, gerando,
portanto, previsibilidade, em torno, por exemplo, do conceito de “cláusula abusiva”, é necessário que se
aceite e se compreenda que cada juiz não pode ser sua opinião pessoal a respeito do que seja uma cláusula
abusiva: uma vez pacificada a jurisprudência em torno de um caso de abusividade, a qualificação aí definida
passa a fazer parte do direito. E a jurisprudência, em casos assim, cria direito”. Direito Jurisprudencial, cit.,
p. 6. 389
Embora partindo de uma premissa construída de forma diversa, Teresa Arruda Alvim Wambier também
propõe essa solução, e especificamente para o direito tributário, considerando ser ramo do direito público:
“Algumas distinções devem ser feitas a partir do conceito de ambiente de decisão. Este conceito deve
185
Ao admitir efeitos prospectivos para a mudança de um precedente (para
a nova decisão judicial que substitui a anterior, por trazer um novo
entendimento do STF ou do STJ sobre o assunto), deixa-se de perder
previsibilidade, abandona-se a difícil tarefa de controlar esse tipo de atuação
do Poder Judiciário e, ainda, mantem-se coerente a ideia de utilização de uma
decisão judicial para regular condutas futuras.
Se a jurisprudência complementa a lei, se a decisão judicial atua de
maneira efetivamente lateral (e não inferior) às normas gerais e abstratas, não
faz nenhum sentido atribuir tão-só à alteração do direito positivo as proteções
constitucionais de irretroatividade e direito adquirido.
orientar nossas considerações sobre a função da lei e a função da jurisprudência, sobre a evolução do direito,
sobre a conveniência da adoção de precedentes vinculantes ou que inspirem elevado grau de respeito. Não há
uma resposta universal a todas as perguntas que se podem formular acerca destes tópicos. Justamente a
distinção entre ambientes de decisão pode, a nosso ver, servir de útil ponto de partida para reflexões. Os
ambientes de decisão – situações de direito material que serão objeto de decisões jurisdicionais – é que
determinam o sentido das respostas. A decisão do juiz deve, como regra, respeitar as características do ramo
do direito material que disciplina o caso posto sob sua apreciação. Se se tratar, por exemplo, de um caso a ser
resolvido por normas de direito tributário, princípios de direito tributário hão de ser respeitados: o da estrita
legalidade tributária, o da anterioridade, o da capacidade contributiva e tantos outros. Portanto, nestes
ambientes decisionais rígidos o sistema de precedentes vinculantes produz bons resultados. Inovações neste
ramo do direito não devem fazer-se pela via da “criatividade” judicial. A evolução do direito deve ter lugar
por obra da lei. A possibilidade de que a alteração da jurisprudência tenha efeitos “moduláveis” suaviza o
rigor desta regra de divisão de funções.”. “Precedentes e Evolução do Direito”, cit., p. 17-18.
CONCLUSÃO
Embora haja uma percepção generalizada sobre a importância da
jurisprudência para o direito tributário, esse fenômeno não vinha sendo
tratado e sistematizado cientificamente. Só mais recentemente, em
decorrência de profundas reformas processuais que modificaram a atuação do
Poder Judiciário, especialmente dos tribunais superiores, é que a Ciência do
Direito passou a direcionar seu olhar para jurisprudência.
Em razão de pertencermos à chamada família de civil law, o papel da
jurisprudência sempre foi definido como secundário. Nessa concepção
secular, as leis é que assumiriam papel fundamental para regulação de
condutas no Estado de Direito, inclusive e obviamente no que se refere à
instituição e cobrança de tributos. Entretanto, a notável e intensa atuação dos
tribunais em matéria tributária nos últimos anos, fez com que voltássemos a
atenção para o funcionamento do modelo common law, considerando que,
nesse modelo, a jurisprudência é encarada como apta à regulação de condutas
futuras, assim como as normas gerais e abstratas. Muitos passaram a se
perguntar: ao valorizar a jurisprudência estaríamos, no Brasil, adotando o
chamado modelo common law?
O que pretendemos neste trabalho, em primeiro lugar, foi desmistificar
essa concepção de que a jurisprudência teria um papel secundário nos
sistemas jurídicos do modelo civil law, especialmente no Brasil e em matéria
tributária. A análise crítica do funcionamento das leis mostra que não faz
muito sentido acreditar que a regulação de condutas seria executada
primordialmente só por meio de normas gerais e abstratas.
O direito positivo tem duas caraterísticas essenciais, ou seja, sem as
quais ele não existe, e que são justamente a causa de sua limitação para
187
regular condutas, inclusive a de pagar tributos: (i) se constitui a partir da
linguagem e (ii) é elaborado no presente com a pretensão de atingir fatos
futuros.
O fato de o direito positivo ser constituído a partir da linguagem – e não
haveria outra forma – faz com que ele sofra de todos os “males” que as
palavras trazem consigo, especialmente do ponto de vista semântico:
ambiguidade e vagueza. Embora toda palavra traga consigo um mínimo de
significado existe também uma zona de penumbra que gera dúvidas no
intérprete. Além disso, as palavras não precisam e efetivamente não guardam
relação com os objetos que elas pretendem nomear: existe, tão-somente, uma
relação arbitrária, estabelecida entre o utente da linguagem e a “realidade”,
entre o termo e o “objeto”. É aqui que entra o papel dos tribunais, para suprir
lacuna de “reconhecimento”, na terminologia de Alchourrón e Bulygin:
coube, como ainda cabe ao STF dizer o que significam os termos “renda”,
“circulação”, “mercadoria” e tantos outros presentes no capítulo da CF/88 que
regula o Sistema Tributário Nacional.
De outro lado, a “abstração” se mostra como outra característica que,
embora inerente ao direito positivo, também o torna falível, delegando-se aos
tribunais a tarefa de “corrigi-lo”. Cabe àquele que elabora as regras gerais e
abstratas, seja ele o legislador típico (Poder Legislativo) ou atípico (Poder
Executivo), “prever o futuro”. Sim, isso mesmo: prever o futuro. As leis e os
atos infralegais são elaborados num contexto presente, mas com a pretensão
de serem aplicados para fatos vindouros. Não é preciso uma longa digressão
para perceber que, estando ausente no ser humano essa capacidade de ver
além do atual, essa atividade de futurologia está fadada a um grau de
insucesso. O famoso exemplo do motorista de uma ambulância que chega ao
parque e é proibido de entrar em razão da existência da regra que anuncia “é
188
proibido entrar com veículos no parque”, denota bem a falibilidade dessa
atividade exercida pelos fazedores de regras. Novamente, é a jurisprudência
que ocupará esse espaço, mas, agora, para suprir as lacunas que Alchourrón e
Bulygin chamam de “axiológicas” e “normativas” (não para fazer justiça ou
exercer o famoso “ativismo judicial”).
Essa atuação dos tribunais não deveria ficar restrita ao plano das
normas individuais e concretas. Isso porque o déficit de legalidade deixado
pelas normas gerais e abstratas pode levar a situações nas quais o indivíduo
simplesmente não saberia se comportar: devo ou não devo pagar tributo sobre
os lucros auferidos por controladas e coligadas no exterior, sediadas em países
que não são considerados “paraísos fiscais”? A manutenção da secular
percepção de que a lei (ou até mesmo os atos infralegais, desde que gerais e
abstratos) tem a capacidade de regular a norma de incidência tributária,
deixando-se a jurisprudência com uma função acessória, pode levar a um
falso Estado de Direito. Como diz John Rawls, “se não sei me comportar
perante a lei, então, não sou livre”.
Esse papel fundamental que a jurisprudência exerce na delimitação da
legalidade tributária não é – não deveria e não poderia ser – característico tão-
só dos países de common law. É enganosa, portanto, a distinção de que a
jurisprudência só poderia ser fonte primária do direito nos países que adotam
o modelo common law. Quer os países de civil assumam, quer não, a
jurisprudência atua complementarmente na regulação de condutas, assumindo
função essencial na delimitação da legalidade. Por essa razão, essa distinção
entre ser a jurisprudência fonte primária ou secundária parece mais valorativa
que científica. Os países de common law nasceram da percepção de que as
decisões judiciais servem para regular condutas futuras, mas nem por isso
deixaram de produzir, ao longo do tempo, regras gerais e abstratas que
189
complementam esse modelo, fortalecendo a noção de legalidade. Falta,
portanto, a países como Brasil, que adotaram o direito positivo como forma de
regulação de condutas, a percepção inversa: valorizar seriamente a atividade
jurisdicional, aumentando consideravelmente o efetivo alcance de um Estado
de Direito.
Considerando que, cientificamente, essa concomitância dos
mecanismos utilizados pelos modelos de civil law e common law aumenta a
legalidade tributária, um segundo passo seria analisar que tipo de decisão
judicial, na qualidade de norma individual e concreta, pode ser capaz de
cumprir o déficit inerente às leis (normas gerais e abstratas). A primeira noção
investigada é a de “precedente”.
O termo “precedente” não encontra critérios de uso muito bem
definidos no Brasil. É utilizado, doutrinária e judicialmente, em geral para
fazer referência a entendimentos anteriores, bem proximamente ao sentido
literal (aquilo que precede). Diferente é o uso do termo nos países de common
law e que parece fazer mais sentido segundo o que se defende neste trabalho.
Aqui, portanto, o conceito de “precedente” vincula-se à ideia de estabilidade
interpretativa – manutenção de um entendimento jurisprudencial por
determinado tempo.
A noção de estabilidade interpretativa aproxima a norma individual e
concreta exteriorizada pela decisão judicial das características de abstração e
generalidade das regras tributárias. Assim como as normas gerais e abstratas
podem ser revogadas, também o que estamos chamando de precedente pode
ser substituído, dando origem a entendimento diverso. Mas entre a produção e
a retirada dessas normas do sistema, existe um tempo de vigência que garante
aos destinatários a noção de estabilidade. A estabilidade que chamamos
interpretativa, por estar ligada à decisão judicial e não às regras tributárias,
190
pode ser alcançada por meio da existência de dois mecanismos: definitividade
e vinculação.
A definitividade não está relacionada, neste trabalho, essencialmente
com o “trânsito em julgado” da decisão judicial. O fato de uma decisão ter
transitado em julgado não representa, necessariamente, a impossibilidade de
rediscutir-se o assunto em instância superior (STF ou STJ) – outras razões
podem levar à coisa julgada, como administração de prazos e a necessidade
de análise de questões fáctico-probatórias. A definitividade para efeitos de
caracterização de um precedente relaciona-se, aqui, mais com o tribunal
competente para dar a palavra final sobre o assunto que com a
impossibilidade de interposição de recursos. Segundo o que dispõe a CF/88, o
STJ seria o órgão competente para dar a palavra final quanto à legalidade e o
STF quanto à constitucionalidade.
Por outro lado, de nada adiantaria a definitividade de uma decisão
judicial se ela servisse apenas para resolver um caso concreto, podendo o
entendimento ali adotado ser desprezado na apreciação de casos futuros. Se a
produção de novas normas individuais e concretas pelo STJ ou pelo STF
puder ser feita de forma desvinculada a entendimentos anteriores, a
jurisprudência deixa de ser um mecanismo útil para a regulação de condutas
futuras. Portanto, aliada à definitividade está a ideia de vinculação de
entendimentos anteriores a julgamentos posteriores, ambos garantindo o que
chamamos de estabilidade interpretativa. Mas como garantir, efetivamente,
essa vinculação? Ainda que de forma limitada390
, a “vinculabilidade” da
390
Diz-se de forma limitada, por duas razões: primeiro porque, considerando que o mecanismo garantidor
dessa vinculação é a “lei”, ela estará sujeita à interpretação de seus aplicadores e com o agravante que os
aplicadores serão os ministros do STJ e do STF, o que impede o mecanismo recursal para exercício do
contraditório. Em segundo lugar porque o processo de interpretação pelos juízes, ou seja, o exercício de
subsunção do caso a ser julgado no presente com os casos julgados anteriormente, é incontrolável. Parecem
inexistir, assim, mecanismos possíveis de controle dessas “falhas” do sistema de vinculação de julgamentos
posteriores a entendimentos anteriores, considerando a necessária limitação de instâncias e a natural
liberdade de interpretação dos juízes na aplicação de regras.
191
produção de novas normas individuais e concretas pelos juízes pode ser
garantida por lei, como buscam os atuais mecanismos de julgamento de casos
em sede de Repercussão Geral (STF) e Recurso Repetitivo (STJ).
A atribuição da característica de precedente a determinada decisão
judicial está atrelada, no Brasil, em suma, às decisões vinculativas produzidas
pelo STF e pelo STJ. Decisões com esse tipo de característica cumprem
plenamente o papel de “integrar” a jurisprudência às normas gerais e
abstratas, precisando o sentido das regras tributárias e diminuindo o déficit de
legalidade prejudicial às liberdades individuais.
Essa “mistura” entre civil law e common law, entre norma geral e
abstrata e decisão judicial parece ser o mecanismo jurídico em último grau
para garantir a efetiva legalidade tributária391
. Outras medidas, extrajurídicas,
podem trazer diferentes luzes ao assunto – a melhora da formação jurídica dos
juízes, melhores formadores de políticas públicas, processos de capacitação
de legisladores – e, quem sabe, até maior efetividade para o dito Estado de
Direito, mas esse seria outro tipo de análise, perfeitamente possível de ser
feito, mas que não era o escopo deste trabalho.
391
Conforme afirma o magistrado inglês Lorde Leslie Scarman, “[...] há no mundo contemporâneo desafios
sociais, políticos e econômicos que destruirão o sistema caso este não possa enfrentá-los. Esses desafios não
são criados pelos juristas; eles certamente não podem ser eliminados pelos juristas; temos de enfrentá-los
desfazendo-nos do sistema jurídico ou adaptando-o. Qual das atitudes tomaremos?”. Op. cit., p. 13.
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