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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Ângela Patrício Müller Romiti TERRENOS DE MARINHA COSTEIROS Mestrado em Direito São Paulo 2012

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

Ângela Patrício Müller Romiti

TERRENOS DE MARINHA COSTEIROS

Mestrado em Direito

São Paulo

2012

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

Ângela Patrício Müller Romiti

TERRENOS DE MARINHA COSTEIROS

Mestrado em Direito

Dissertação apresentada à banca examinadora do

Programa de Pós Graduação em Direito da Pontifícia

Universidade Católica de São Paulo, como exigência

parcial para obtenção do título de MESTRE em

Direito (Direito das Relações Sociais), sob

orientação do professor doutor Eduardo Alvim.

São Paulo

2012

Ficha Catalográfica

DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO (CIP)

ROMITI, Ângela Patrício Müller

Terrenos de Marinha Costeiros. Ângela Patrício Müller Romiti; orientador: Eduardo

Alvim. – 2012.

125 f.

Dissertação de Mestrado – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP.

2012. São Paulo, BR-SP

Área de Concentração: Direito Civil

Palavras chave: Terrenos de Marinha Costeiros. Contrato Enfitêutico. Evolução

histórica dos Institutos. Demarcação.

BANCA EXAMINADORA

___________________________________

___________________________________

___________________________________

Dedico este trabalho ai miei cari genitori: Ao meu

pai Mário, de quem herdei o amor pelo Direito e,

máxime pelo tema.

À minha mãe Isa, pelo incondicional apoio e

confiança.

À minha cidade, Santos, cuja realidade, foi fonte de

inspiração para esta dissertação.

AGRADECIMENTOS

Agradeço à família Alvim, pelo carinho e presença constante - desde o princípio.

Em especial, ao meu orientador Prof. Eduardo Alvim, quem muito admiro e sempre

me concedeu incontestável apoio, quando dele necessitei.

Ao Prof. Donnini, por sua amizade.

Ao Prof. Bruschi, que me conduziu ao magistério.

Por fim, e não menos importante, ao Conselho Nacional de Desenvolvimento

Científico e Tecnológico (CNPQ), pela bolsa integral de estudo com que fui contemplada.

Santos

“Nasci junto do porto, ouvindo o barulho dos embarques.

Os pesados carretões de café

sacudiam as ruas, faziam trepidar o meu berço.

Cresci junto do porto, vendo a azáfama dos embarques.

O apito triste dos cargueiros que partiam

deixava longas ressonâncias na minha rua.

Brinquei de pegador entre os vagões das docas.

Os grãos de café, perdidos no lajedo,

eram pedrinhas que eu atirava noutros meninos.

As grades de ferro dos armazéns, fechados à noite,

faziam sonhar (tantas mercadorias!)

e me ensinavam a poesia do comércio.

Sou bem teu filho, ó cidade marítima,

tenho no sangue o instinto da partida,

o amor dos estrangeiros e das nações.

Ah, não me esqueças nunca, ó cidade marítima,

que eu te trago comigo por todos os climas

e o cheiro do café me dá tua presença.”

(Ribeiro Couto, Santos)

RESUMO

“... e o relato nos conta de quantos e tantos as tem ambicionado, embora

não tivesse faltado quem, como a raposa das fábulas, as tivesse batizado de

ridícula faixa de 33 metros, que ninguém sabe onde começa, nem onde

acaba.”1

A Constituição Federal incluiu os terrenos de marinha entre os bens pertencentes à União (art.

20, VII). Contudo, sua definição é extraída do art. 2º do Decreto lei n. 9760/46. Orientada

pelos critérios temporal (preamar média do ano de 1831) e espacial (33 metros), sua

delimitação está relacionada ao próprio conteúdo do conceito das marinhas. É, pois senão o

mais tormentoso tema correlato, o principal cerne da problemática. Sem embargo,

característica comum às diversas espécies de terrenos de marinha são as águas salgadas, -

sempre – à mercê da influência do regime luni-solar.

São bens dominicais que constituem o patrimônio disponível da União, cujo título remonta

aos tempos imemoriais, pelo direito de conquista. Também conhecidos como terras de

marinha, salgados ou terras salgadas, a primeira menção que se tem notícia - sob a alcunha

de salgados - foi feita na Carta Régia de 04 de dezembro de 1678, embora as mais famosas

datem de 21 de outubro de 1710 e 10 de janeiro de 1732.2 Praxe administrativa do Brasil-

Colônia, sua primeira figuração em corpo legislativo, ocorreu somente com a edição da Lei

Orçamentária de 15 de novembro de 1831. Seus principais contornos são encontrados nas

lezírias portuguesas – também, poeticamente intituladas filhas do Tejo - cuja figura

tipicamente reinol, guarda os traços do aforamento, com resguardo da propriedade pública

marginal. Da necessidade de existência de faixas livres à beira-mar para embarque e

desembarque de mercadorias, importou-se o modelo implantado nas áreas destinadas às

marinhas do sal ou salinas portuguesas. Assim, da associação das lezírias com as marinhas do

sal, criou-se o instituto por nós conhecido como terrenos de marinha. Contrariamente ao

sustentado pela doutrina, similar instituto é encontrado em terras lusitanas – são bens que

compõem o domínio público hídrico do Estado, com resguardo de faixa de 50m (Decreto-lei

468/71, art. 3º), cedido por intermédio de licenças ou concessões, mediante pagamento de

1 SANTOS, Rosita de Sousa. Terras de Marinha. Rio de Janeiro: Forense, 1985, p. 77

2 CALVANCANTI, Themistocles Brandão. op. cit., p. 407

taxa. Com vistas mais econômicas, do que de salvaguarda, percorridos séculos, a finalidade

das marinhas brasileiras permanece inalterada: trata-se de importante fonte arrecadatória

estatal. À míngua de critérios seguros para determinação da linha de preamar de 1831, cede-se

espaço ao sistema de presunções, tomando-se por público o que é alodial, e vice-versa, ao

arrepio da lei. Transcorridos mais de 180 anos da primeira referência legal - e mais de 500

anos do descobrimento do Brasil - não há completa demarcação.3 Tal quadro permanece

inalterado.4Apenas isto, já por si, justifica a necessidade do presente estudo: carente de idônea

sistematização, a segurança jurídica cede espaço às interpretações arbitrárias e subjetivas,

quer dos órgãos públicos, quer dos aplicadores do Direito. Bastante aquém de sua extrema

relevância, as poucas passagens encontradas nos manuais e artigos destinados ao tema, não

condizem com seus reflexos sociais diretos. Constatou-se, enfim, a premente necessidade do

estudo. Assim, ante a extensão do tema e na tentativa de trazer singela contribuição,

restringiu-se, a presente dissertação, à análise dos terrenos de marinha costeiros. Para tanto,

foram pesquisados os diversos aspectos jurídicos que envolvem o tema, não se olvidando do

viés prático-procedimental. Ilustrativamente, foram inseridas – pontualmente - algumas

reproduções de quadros do pintor santista Benedito Calixto, trazendo-se cores e contornos à

teoria. Buscou-se, enfim, demonstrar quão precário é nosso sistema de demarcação,

abandonado ao alvedrio fiscal, com repulsa à legalidade. Tal é nosso desiderato: um estudo

histórico e útil acerca dos terrenos de marinha costeiros.

Palavras chave: Terrenos de marinha Costeiros. Contrato Enfitêutico. Evolução Histórica.

Demarcação. Procedimento administrativo.

3 SANTOS. Rosita de Sousa. Terras de Marinha, Rio de Janeiro: Forense, 1985, p. 122

4 KIOITSI CHICUTA e outros, Terrenos de Marinha – Instituto Jurídico Tipicamente Brasileiro, IRIB, 2001,

pg. 80.

ABSTRACT

“...and the report tells us of how many and of the lot that has ambitioned

them, although there was not missing those whom, such as the fox on the

tales, had christened the ridiculous extension of 3 meters, which no one

knows neither where it begins nor where it ends.”5

The Federal Constitution has included the naval coastal lands as property belonging to the

Union (art.20, VII).Nevertheless, its definition is extracted from the article Decree-law

9760/46. Oriented by the temporal criteria (average high tide of the year 1831) and spatial (33

meters), its delimitation is related to its own content of the concept of marine. It is because if

not the most stormy theme correlate, the main core of the problematic. Nevertheless, common

characteristic to the many species of marine lands are the salty waters, - always – subject to

the natural influences of the lunar-solar scheme. They are governmental property which

constitute available goods of the Union, which title goes back to immemorial times, by the

right of the conquest. Also known as marine lands, salty or salty lands, the first mention of

which there is notice of – under the denomination of salty – was made at the Royal Letter of

the 4th

of December of 1678, although the most famous date back from the 21st of October of

1710 and the 10th

of January of 1732.6Administrative practice in the Brazil-Colony, its first

appearance in the legislative body, occurred only with the first edition of the Budget Law of

the 15th

of November of 1831. Although without counterparts in the foreign legislation –

found in the Portuguese lezirias – also, poetically referred to as the daughters of the Tejo –

which figure is typically kingly, bears the traces of tenure, with respect to the marginal public

property. With regards to the existence of free coastal areas for loading and unloading of

merchandise, the implemented model was imported from the areas designed for the salty

marines or Portuguese salty marines. Therefore, from the association of the LEZIRIAS with

the salty marines, it was created the institute by us known as marine lands. Contrary to the

supported by the doctrine, similar institution is found in Portuguese lands - they are goods that

comprise the hydric public domain of the State, with guard band of 50 meters (Law Decree

467/81, article 3rd), yielded by means of licenses and concessions, by means of tax payments.

5 SANTOS, Rosita de Sousa. Terras de Marinha. Rio de Janeiro: Forense, 1985, p. 77

6 CALVANCANTI, Themistocles Brandão. op. cit., p. 407

With further economic vision, rather than of safeguard, throughout centuries, the purpose of

the marines remain unaltered: it refers to important source of state tax collecting. Lacking safe

criteria for the determination of the high tide line of 1831, it is given space to the system of

presumptions, becoming public what is allodial, and vice-versa, in defiance of the law.

Elapsed more than 180 years of its first legal reference – and more than 500 years of the

discovery of Brazil – there is no complete demarcation.7Such situation remains unaltered, as

reiterated in recent study.8 Just this, by itself, justifies the need of the present study: in need of

suitable systematization, the legal security gives margin to arbitrary and subjective

interpretations, being from the public organs, being from the law enforcers. Furthermore and

far beyond its extreme relevance, the few and sparse passages found in the manuals and

articles destined to the subject, do not suit its direct social relexes. It was thus found, the

primordial need of such study. Being so, given the extension of the subject and in the attempts

of making a candid contribution, it was restricted to the present dissertation, to the analysis of

the marines. Moreover, it was researched the various legal aspects which entail the subject,

not forgetting the practical procedural aspects. By way of illustration, it was inserted paintings

from the painter, Benedito Calixto, from Santos, giving colours and contours to the theory. It

was thus aimed, to demonstrate how precarious is our system of demarcation, abandoned to

the tax discretion, with repulse to legality. Such is our aim: a historical and useful study

regarding the marines.

Keywords: Historical evolution/ background. Demarcation. Administrative procedures.

Marines. Emphyteusis agreement.

7 SANTOS. Rosita de Sousa. Terras de Marinha, Rio de Janeiro: Forense, 1985, p. 122

8 KIOITSI CHICUTA e outros, Terrenos de Marinha – Instituto Jurídico Tipicamente Brasileiro, IRIB, 2001,

pg. 80.

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO................................................................................................................

Capítulo I - Terrenos de Marinha..................................................................................

1.1. Definição ...............................................................................................................

1.2.Origem e Direito Português ...................................................................................

1.3 Finalidade................................................................................................................

1.3. Natureza Jurídica....................................................................................................

1.4. Classificação..........................................................................................................

1.5. Sesmarias...............................................................................................................

1.6. Terras Devolutas....................................................................................................

Capítulo II – Breve histórico...........................................................................................

2.1. Colônia...................................................................................................................

2.2 Império....................................................................................................................

2.3 República................................................................................................................

2.4 Decreto n. 9760/46 .................................................................................................

2.5 A Constituição Federal de 1988 .............................................................................

Capítulo III – Demarcação..............................................................................................

3.1. Linha do preamar médio de 1831...........................................................................

3.1.1. A linha de jundu e outros vestígios deixados pelas águas do mar.................

3.1.2. Critérios utilizados pela Secretaria do Patrimônio da União.........................

3.1.3. Critérios propostos por Obéde Lima..............................................................

3.2 Processo administrativo de demarcação..................................................................

Capítulo IV – Enfiteuse...................................................................................................

4.1. Evolução do instituto ............................................................................................

4.2. Características .......................................................................................................

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4.3. Enfiteuse nos terrenos de marinha.........................................................................

4.4. Ocupação................................................................................................................

4.5. Laudêmio, foro e taxa de ocupação........................................................................

4.6. Extinção do aforamento.........................................................................................

CONCLUSÃO..................................................................................................................

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICAS.............................................................................

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Introdução

“Reina o maior cahos na insuficiente legislação sobre terrenos de marinha.

Contam-se por centenas os avisos ministeriais, explicando, ampliando e

alterando as disposições legaes, concorrendo tudo para mais perturbar a

matéria.”1

São mais de 8.500 km de zona costeira neste país, onde se concentram ¼ (um quarto)

da população brasileira, ou seja, cerca de 42 milhões de pessoas.

Nesta vasta faixa litorânea, aproximadamente 700.000 (setecentos mil) imóveis são

considerados como bens da União, com patrimônio estimado em R$192.000.000.000,00

(cento e noventa e dois bilhões de reais).2

Assim, são milhares de cidadãos que possuem seus imóveis localizados nos

denominados terrenos de marinha.

Exemplo desta realidade, é a cidade do Recife com cerca de 60% (sessenta por cento)

de sua área, sob alegação de domínio público. Na Baixada Santista seriam cerca de 40.000

(quarenta mil) imóveis tidos como pertencentes à União. Já no Estado de Santa Catarina,

estima-se que 150.000 (cento e cinquenta mil) imóveis pertencem ao domínio público, sendo

apenas 26.000 (vinte e seis mil) regularmente inscritos.3

Esta ausência de demarcação, bem como de critérios seguros para delimitação –

confiados exclusivamente à Secretaria do Patrimônio da União - levou alto funcionário

público, a escrever já em 1913, que hoje decorridos 81 (oitenta e um) anos da execução dessa

1 J. X. Carvalho de Mendonça, “Os Terrenos de Marinha e os Interesses da União, dos Estados e das

Municipalidades”, Revista O Direito, vol. 85, p. 87 2 RODRIGUES, Rodrigo Marcos Antônio. Curso de terrenos de marinha e seus acrescidos. São Paulo: Nelpa, p.

93 3 CASTRO, Juliana Maria Cerutti. PASTORE, Rodrigo Reis. Terrenos de Marinha: Abordagem Catarinense de

um problema nacional. Disponível no endereço eletrônico:

<http://www.egov.ufsc.br/portal/sites/default/files/anexos/19224-19225-1-PB.htm>

15

lei, não se encontram elementos que permitam marcar ou afirmar qual era a linha do preamar

médio desta época.4

Com efeito, passados mais de dois séculos, ainda não houve completa demarcação.

Submetidos a um regime híbrido de direito público e privado, às regras do direito

público submetem-se os atos demarcatórios.

De natureza meramente declaratória, são atos decisórios protegidos pela presunção

de legalidade.

Esta tardia decisão administrativa acarreta – muita vez - importante consequência aos

particulares, passando de titulares plenos do domínio, a meros detentores do domínio útil.

Vale dizer: passam de proprietários à condição de meros ocupantes ou foreiros, com

pagamento de encargos à União.

Consequentemente, para além dos efeitos individuais gerados, a ordem jurídica toda

se ressente da ausência de demarcação/ escrituração: desmerece-se, assim, a segurança

jurídica advinda da secular estrutura registrária - cujo responsável é o próprio Estado - em

detrimento de suposto direito de propriedade estatal.

Assim, o reconhecimento do direito de propriedade - como direito fundamental que é

- nascido como garantia do indivíduo frente ao próprio Estado, cede espaço aos atos

subjetivos e arbitrários, desnaturando, por conseguinte, sua própria finalidade.

Mas, não é só: estes tardios atos demarcatórios são eivados de graves vícios, posto

que lastreados em critérios acientíficos que, para além de utilização de critérios ilegais – com

desprezo à linha do preamar médio do ano de 1831 - estão a desconsiderar o crescente

aumento do nível do mar.Em suma: toma-se por público o que é alodial – e vice-versa - em

repulsa da lei.

4 RODRIGUES, Jorge Martins. A lei e a realidade na questão dos terrenos de marinha. Publicado no jornal

Atribuna, em 28-09-1976

16

À despeito, multiplicam-se os projetos de lei sobre o tema, ora com vistas à

substituição do parâmetro legal, outrora defendendo-se a extinção.

O tema é tormentoso e a escassez doutrinária contribui de sobremodo a dificultá-lo.

Observa-se, assim, desde logo, a necessidade premente de estudo.

Buscou-se, por conseguinte, analisar de modo precípuo os terrenos de marinha

costeiros.

Desta sorte, no primeiro capítulo, esclareceremos pontos como definição, origem,

presença no direito português, finalidade, natureza jurídica, classificação, sesmarias e terras

devolutas.

Já com conceitos delineados, no segundo capítulo, apresentamos um breve histórico

das marinhas e sua disciplina legal.

Desta forma, no terceiro capítulo, abordamos, enfim, o cerne da problemática: a

demarcação dos terrenos de marinha, para ao final, no quarto capítulo, encerrarmos com o

exame do contrato enfitêutico.

O propósito deste trabalho é contribuir, ainda que de modo singelo, ao

esclarecimento de tema tão obscuro, quanto desconhecido, quer seja pelo público em geral,

como pelos operadores do Direito.

17

Capítulo I – Terrenos de Marinha

1.Definição

“São terrenos de marinha em uma profundidade de 33 (trinta e três) metros,

medidos horizontalmente, para parte da terra, da posição da linha do

preamar-médio de 1831: a) os situados no continente, na costa marítima e

nas margens dos rios e lagoas até onde se faça sentir a influência das

marés; b) os que contornam as ilhas situadas em zona onde se faça sentir a

influência das marés.”5

“Constituem terrenos de marinha todos os que, banhados pelas águas do

mar ou rio navegáveis, vão até 33 metros para a parte da terra, contados

desde o ponto a que chega o preamar médio.”6

Não é rara a confusão acerca do real significado do termo terrenos de marinha.

Muitos acreditam que são áreas de propriedade da Marinha, ou seja, relacionado ao Ministério

da Marinha. Contudo o adjetivo marinha tem origem em mar, sem qualquer relação com as

Forças Armadas, conforme esclarece Pugliese:

“Terreno de marinha não se confunde com da marinha, pois enquanto o

primeiro é aquele definido no referido decreto, os últimos são terrenos de

uso pelo Ministério da Marinha. Um prédio urbano situado em Brasília, em

uso por qualquer repartição do Ministério da marinha, é um terreno de

propriedade da União, porém da Marinha, assim como uma fortaleza à

beira-mar, independentemente de quem usá-los, sempre será terreno de

marinha, de propriedade da União.”7

5 Decreto lei 9760/46, art. 2º.

6 Código de águas, art. 13; O ponto a que se refere considera-se ao estado e ao tempo da execução do art. 51,§14,

da lei de 15/11/81 7 MELO, Lia dos Reis. PUGLIESE, Roberto J. Dos terrenos de marinha e seus acrescidos. São Paulo: Letras

Jurídicas, 2009, p.62, em citação à PUGLIESE, Roberto J. Terrenos de Marinha. Jornal de Iguape, 1979, Iguape,

São Paulo.

18

Themístocles Cavalcanti, na esteira de Pugliese, descreve as marinhas como aquelas

definidas em lei como tal, o que permanece sendo nada esclarecedor. 8

Em complementação, elucida Celso Antonio Bandeira de Mello:

“(...) faixas de terra fronteiras ao mar numa largura de 33 metros contados

da linha do preamar médio de 1831 para o interior do continente, bem como

as que se encontram à margem dos rios e lagoas que sofram a influência das

marés, até onde esta se faça sentir, e mais as que contornam as ilhas

situadas em zonas sujeitas a esta mesma influência. Considera-se influência

das marés as oscilações periódicas do nível médio das águas igual ou

superior a 5cm (art. 2º, e parágrafo único do Decreto lei 9760, de 5.9.46).”9

Assim, são porções de terra situada na zona costeira ou às margens insulares,

lacustres e fluviais, contadas horizontal e ininterruptamente a partir da água do mar ou da

influência exercida pelas marés, até a distância de 33 metros contados da linha da preamar

média do ano de 1831.

A fixação está, pois, relacionada com a influência direta ou indireta das marés nas

zonas litorâneas - costeiras ou insulares - ou nas lagoas e fozes dos rios.

Vale dizer: em áreas banhadas por águas salgadas, sob influência do regime luni-

solar.

Afora a influência das marés às margens dos rios e lagoas, são terrenos reservados e

não marinhas, cuja condição sine qua non é a influência da maré.

Outrossim e embora a definição trazida pelo art. 2º, do Decreto 9.760/46 esteja

vigente, há quem entenda que os 33 metros foram revogados pelo §3º, do artigo 49 dos Atos

das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição Federal de 1988. Verbis:

8 CAVALCANTI. Themistocles Brandão. Tratado de Direito Administrativo. vol. III, 3ª ed., Livraria Freitas

Bastos S.A., São Paulo, 1976, p. 406 9 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo.21ª ed.,São Paulo: Malheiros,

2006, p. 874/875

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“Art. 49: A lei disporá sobre o instituto da enfiteuse em imóveis urbanos,

sendo facultado aos foreiros, no caso de sua extinção, a remição dos

aforamentos mediante aquisição do domínio direto, na conformidade do que

dispuserem os respectivos contratos.

§3º: A enfiteuse continuará sendo aplicada aos terrenos de marinha e seus

acrescidos, situados na faixa de segurança a partir da orla marítima.”

Desta sorte, para doutrina minoritária, houve supressão do conceito estabelecido no

decreto, restando, portanto, ainda, à lei definir o conceito de faixa de segurança, inadmitindo,

contudo, a recepção do art. 2º, do decreto 9760/46, pelo ordenamento pátrio.10

Sem embargo, não nos parece que tenham razão. A aludida faixa de segurança

constante na ADCT, nada mais é que uma referência ao conceito legal estatuído pelo decreto

9760/46. Aliás, admitindo a correção desta corrente, terrenos de marinha, somente existiriam

na orla marítima, o que, embora seja objeto exclusivo deste trabalho, não corresponde à

realidade, como visto em sua conceituação.

São, pois bens imóveis terrestres de titularidade da União Federal.

Nada obstante, sua primitiva caracterização foi esboçada pela Ordem Régia de 10 de

janeiro de 1732, in verbis:

“ (...) da linha d’agua para dentro sempre são reservadas 15 braças pela

borda do mar para serviço publico, nem entrão em propriedade alguma dos

confinante com a marinha e tudo o quanto allegarem para apropriar do

terreno é abuso inattendivel.”

A esta seguiram-se os Avisos de 29 de abril de 1826, 13 de julho de 1827, 20 de

outubro de 1832, Lei Orçamentária de 15 de novembro de 1831 e, finalmente a importante

instrução normativa n. 348, de 14 de novembro de 1832, que regulamentou o tema. Verbis:

10

MELO, Lia dos Reis. PUGLIESE, Roberto J. Dos terrenos de marinha e seus acrescidos. São Paulo: Letras

Jurídicas, 2009, p.62, em citação à CAZETTA, Luís Carlos. Legislação imobiliária da união: anotações e

comentários à lei básica, p. 27

20

“Hão de considerar-se terrenos de marinha, todos os que, banhados pelas águas

do mar ou dos rios navegáveis, vão até a distância de 15 braças craveiras para

parte da terra, contadas estas desde os pontos a que chega o preamar médio.”

Neste contexto, craveiro era instrumento apto a mensurar a altura, braça era medida

utilizada, à época, correspondente aos atuais metros ( 2,20 m) e preamar, a maré alta.

Em suma: 15 (quinze) braças craveiras da preamar média do ano de 1831 significam

33 (trinta e três) metros da média da maré alta do ano de 1831.11

Nada obstante, foi, ainda, a partir desta lei orçamentária - de 15 de novembro de

1831, regulamentada pela instrução normativa n. 348 - que os terrenos de marinha passaram a

figurar na legislação pátria, atualmente como fonte importante de renda estatal.

Com o decreto lei n. 4.105, de 22 de fevereiro de 1868, definiu-se em metros (33), o

que antes era explicitado através das braças (15).

Outrossim, em que pesem as sucessivas modificações normativas, as balizas, do

instituto, desde 1831, permaneceram incólumes.12

Sua expansão deu-se com o Decreto lei 2.490, de 16 de agosto de 1940, que acresceu

ao clássico conceito das marinhas as faixas de terras marginais situadas em rios e lagoas, até

onde fosse sentida a influência das marés.

Com efeito, não se desnaturou: isto porque a influência das marés acabam por tornar

salgadas as áreas sob sua ação.13

Logo, à existência das marinhas remete-se sempre a idéia de água salgada (influência

das marés).

Nada obstante, distinguem-se as terras de marinha das praias, pois estas, desde os

tempos imemorais, são consideradas de uso comum do povo.

11

RODRIGUES, Jorge Martins, op. cit. 12

Pelo decreto 4120/42 buscou-se alterar a linha do preamar para máxima atual, em substituição ao ano de 1831.

Contudo, revogado em pouco tempo pelo decreto 9760/46, cuja opção foi pela tradição – ou seja, preamar do ano

de 1831. 13

Revista de Direito Administrativo, vol. 2, p. 282

21

Já no Direito Romano a res humani juris, dividia-se em res publicae, que eram os

bens tidos como propriamente de uso comum do povo, como rios, estradas, portos, e res

communes, pertencentes à todos os homens ( romanos ou estrangeiros), como o ar, água

corrente, mar e seu litoral, como visto no Digesto de Justiniano: “Algumas coisas são por

direito natural comum de todos e outras da coletividade.”14

Esta ideia presente no Direito Romano e vista até os dias atuais foi reproduzida na

Ordem Régia de 10 de janeiro de 1732:

“Me parece odernar-vos não consintaes se aproprie pessoa alguma das praias do

mar por ser commum para todos os moradores e assim o mandareis declarar por

edital e quem violentamente obrar o contrario procedereis contra elle.”15

Sabe-se que o domínio público sobre o mar compreende as águas territoriais e a

porção de terra necessária ao desenvolvimento das marés e, é isto que está disciplinado no

artigo 10 da Lei nº 7.661, de 16 de maio de 1988. Verbis:

“Art. 10. As praias são bens públicos de uso comum do povo, sendo

assegurado, sempre, livre e franco acesso a elas e ao mar, em qualquer

direção e sentido, ressalvados os trechos considerados de interesse de

segurança nacional ou incluídos em áreas protegidas por legislação

específica.

§ 1º. Não será permitida a urbanização ou qualquer forma de utilização do

solo na Zona Costeira que impeça ou dificulte o acesso assegurado no caput

deste artigo.

§2º. A regulamentação desta lei determinará as características e as

modalidades de acesso que garantam o uso público das praias e do mar.

§3º. Entende-se por praia a área coberta e descoberta periodicamente pelas

águas, acrescida da faixa subseqüente de material detrítico, tal como areias,

14

RODRIGUES, Curso de Terreno de Marinha e seus acrescidos, op. cit., p. 123 15

OTÁVIO. Rodrigo. Do domínio da União e dos Estados segundo a Constituição Federal. 2ª ed., 1942, Livraria

Acadêmica, Saraiva & Editores, Largo do Ouvidor, SB, São Paulo, nota de rodapé n. 79, p. 72

22

cascalhos, seixos e pedregulhos, até o limite onde se inicie a vegetação

natural, ou, em sua ausência, onde comece um outro ecossistema.”

Assim, o lido, ou leito do mar, caracteriza-se como a porção de território submerso e

à mercê das marés, que se prolonga, sem solução de continuidade, na praia até o limite da

maré alta.16

Desta forma, é praia – spiaggia - a porção de terra coberta pelo mar nas maiores

enchentes ordinárias (art. 10, §3º, L. 7.661/88).

Nesta senda, importa acrescer que a zona costeira é patrimônio nacional “e sua

utilização far-se-á na forma da lei, dentro de condições que assegurem a preservação do

meio ambiente, inclusive quanto ao uso dos recursos naturais.”17

Reiterando, são terrenos de marinha, aqueles medidos em 33 (trinta e três) metros

contados horizontalmente para a parte da terra, a partir da preamar média do ano de 1831.

As praias são bens de uso comum do povo, inalienáveis e de livre acesso à todas as

pessoas, já os terrenos de marinha, bens dominicais.

Nesta linha de raciocínio, importa salientar que a modificação do nível das águas e a

utilização da linha do preamar do ano de 1831, pode gerar curiosa situação: a confusão das

faixas de marinha com as praias. Assim, em que pesem os institutos serem diferentes algumas

vezes podem misturar-se a tal ponto em que as marinhas, serão de uso comum do povo.

Isto porque, mister se faz a proteção do livre acesso às praias e ao mar, razão pela

qual, embora inicialmente as faixas de marinha sejam bens dominicais – como veremos – a

tendência será considerá-la como de uso comum do povo, ante a confusão fática com o

ambiente praial.

16

TÁCITO, Caio. Temas de Direito Público (Estudos e Pareceres). 2º vol, Rio de Janeiro: Renovar, 1997, p.

1739 17

Art. 225,§4º, CF: A Floresta Amazônica, a Mata Atlântica, a Serra do Mar, o Pantanal Matogrossense e a Zona

Costeira, são patrimônio nacional, e sua utilização far-se-á, na forma da lei, dentro das condições que assegurem

à preservação do meio ambiente, inclusive quanto ao uso dos recursos naturais.”

23

Diferem-se os terrenos de marinha dos acrescidos de marinha, por serem estes uma

acessão natural ou artificial, para o lado do mar ou dos rios e lagos, além dos limites e em

seguimento às marinhas (art. 3º, Dec. Lei n. 9760/46).

São formações, sem extensão definida, fruto da ação da natureza, por força do

deslocamento feito pelos ventos ou águas de materiais detríticos, ou, ainda, pela ação humano,

via aterros artificiais.

Com efeito, estão os acréscimos em relação de prolongamento das marinhas.

Os terrenos de marinha distinguem-se dos mangues, pois enquanto estes são

alagadiços e de medidas incertas, os terrenos de marinha têm profundidade ou largura certa.

1.2. Origem e Direito Português

Conhecidos também como marinhas, terras de marinha, salgados ou terra salgadas,

os terrenos de marinha são tidos pela doutrina como figura tipicamente brasileira.

Para esta, seus contornos – faixa marginal de titularidade pública com extensão pré-

definida - não encontram pares no direito alienígena, como leciona Rosita de Sousa Santos:

“Não existe este conceito, nem mesmo sua figuração, por mais tênue que seja, mas fontes

romanas, visigóticas, ou germânicas, e nunca fez ele presença nas Ordenações

portuguesas.”18

Não destoam os ensinamentos de Rodrigo Octávio:“No antigo direito portuguez,

onde aliás, não se conheciam os terrenos de marinha, as praias eram públicas.”19

18

SANTOS, Rosita de Sousa. Terras de Marinha. Rio de Janeiro: Forense. 1985, p. 4 19

OCTÁVIO. Rodrigo. Op. cit., p. 72, nota de rodapé n. 79

24

Tampouco, os povos do velho continente, conheceriam este peculiar instituto pátrio,

como ensina Manoel Madruga:“Pelo antigo direito portuguez, segundo o qual as praias eram

públicas, não se conheciam os terrenos de marinha.”20

Esta suposta ausência de figura análoga, levou Rosita Santos a afirmar que tornar-se-

ia sem significação a criação de expressões como marine land ou rivage de la mer, ou outra

semelhante. Verbis:

“Muito embora todos os países possuidores de costa marítima se preocupem

com os elementos físicos constituídos das praias e terras adjacentes, e que,

comumente, caracterizem estes elementos como pertencentes ao domínio

público, nenhum deles chegou a criação daquilo que entre nós, se denomina

terra de marinha, ou terreno de marinha.”21

Logo, para pouca doutrina existente sobre o assunto, mesmo ao buscarmos suas

raízes no direito luso – cuja criação, nos restou como legado - não encontraríamos figura

análoga, muito embora no Direito Romano, fosse permitida a edificação por particulares nas

praias, já consideradas como bens de uso público.22

À míngua de comparação, sustentam ser possível observar os primeiros contornos

dos institutos nas chamadas marinhas do sal ou salinas, terras estas que em Portugal, eram

reservadas ao patrimônio público, para preparo do sal, (Ordenações Filipinas, L. II, Tít.

XXVI, §15 e Alvará de 10 de maio de 1672).23

20

MADRUGA, Manoel. Terrenos de Marinha. Vol. 1. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1928, p; 65 21

SANTOS, Rosita de Sousa. Op. cit., p. 9. 22

OCTAVIO. Rodrigo. Op. cit., p. 73 23

SANTOS, p. cit., p. 4.

25

Assim, defendem que bastante provável que delas – as marinhas do sal - tenha-se

importado a idéia do resguardo de faixas livres, a permitir o embarque e desembarque de

mercadorias. 24

Contudo, a afirmação – há muito repetida - senão falsa, é parcialmente verdadeira.

Isto porque, embora sem a denominação cá utilizada, em Portugal, encontramos

instituto semelhante, com o resguardo de faixas marginais, sob titularidade pública.

Em terras lusitanas, os nossos terrenos de marinha compõem os bens do domínio

público hídrico do Estado.

Pelo decreto n. 8, de 1 de dezembro de 1892, disciplinou-se que as praias extendem-

se até onde alcançar o colo da máxima praiamar das marés vivas, estabelecendo-se, ainda,

uma faixa de 50 m a contar da praia para fiscalização das autoridades marítimas (art. 14,§3º).

Embora este decreto buscasse a regulamentação dos bens de domínio público, sua

disciplina era de sobremaneira tormentosa. Desta sorte, sobreveio o decreto-lei 468/71, a reger

particularmente o regime jurídico dos terrenos de domínio público hídrico. No tocante as

faixas cá denominadas como terrenos de marinha, estabelece-se:

“ARTIGO 1.º

(Âmbito de aplicação)

Os leitos das águas do mar, correntes de água, lagos e lagoas, bem como as

respectivas margens e zonas adjacentes, ficam sujeitos ao preceituado no

presente diploma em tudo quanto não seja regulado por leis especiais ou

convenções internacionais.

ARTIGO 2.º

(Noção de leito; seus limites)

24

Eram zonas protegidas no litoral português. Remontando à época pré-romana, na Etrúria as áreas de onde era

extraído sal não podiam ser objeto de apropriação privada. De outra parte, há indícios de enclaves ou zonas de

exclusão no litoral das ex-colônias portuguesas, como Angola, Moçambique e etc., as quais podem ter origem

nos antigos decretos reinóis.

26

1. Entende-se por leito o terreno coberto pelas águas, quando não

influenciadas por cheias extraordinárias, inundações ou tempestades. No

leito compreendem-se os mouchões, lodeiros e areais nele formados por

deposição aluvial.

2. O leito das águas do mar, bem como das demais águas sujeitas à

influência das marés, é limitado pela linha da máxima preia-mar de águas

vivas equinociais. Essa linha é definida, para cada local, em função do

espraiamento das vagas em condições médias de agitação do mar, no

primeiro caso, e em condições de cheias médias, no segundo.

3. O leito das restantes águas é limitado pela linha que corresponder à

estrema dos terrenos que as águas cobrem em condições de cheias médias,

sem transbordar para o solo natural, habitualmente enxuto. Essa linha é

definida, conforme os casos, pela aresta ou crista superior do taludo

marginal ou pelo alinhamento da aresta ou crista do taludo molhado das

motas, cômoros, valados, tapadas ou muros marginais.

ARTIGO 3.º

(Noção de margem; sua largura)

1. Entende-se por margem uma faixa de terreno contígua ou sobranceira à

linha que limita o leito das águas.

2. A margem das águas do mar, bem como a das águas navegáveis ou

flutuáveis sujeitas à jurisdição das autoridades marítimas ou portuárias, tem

a largura de 50 m.

3. A margem das restantes águas navegáveis ou flutuáveis tem a largura de

30 m.

4. A margem das águas não navegáveis nem flutuáveis, nomeadamente

torrentes, barrancos e córregos de caudal descontínuo, tem a largura de 10

m.

5. Quando tiver natureza de praia em extensão superior à estabelecida nos

números anteriores, a margem estende-se até onde o terreno apresentar tal

natureza.

6. A largura da margem conta-se a partir da linha limite do leito. Se, porém,

esta linha atingir arribas alcantiladas, a largura da margem será contada a

partir da crista do alcantil.”

27

Particularmente, o quanto cá nos interessa – acerca dos terrenos de marinha costeiros

– esta linha é contada a partir da linha da máxima preia-mar das águas vivas equinociais até

50 m, aplicando-lhes diversas regras.

Tratam-se, pois de faixas públicas, conquanto, haja reconhecimento da propriedade

privada aos que comprovadamente demonstrem posse ou propriedade anterior ao ano de 1864

ou 1868, conforme o caso, como se observa da leitura do art. 8º, deste mesmo decreto. Verbis:

“ARTIGO 8.º

(Reconhecimento da propriedade privada sobre parcelas de leitos ou

margens públicos)

1. As pessoas que pretendam obter o reconhecimento da sua propriedade

sobre parcelas de leitos ou margens das águas do mar ou de quaisquer

águas navegáveis ou flutuáveis devem provar documentalmente que tais

terrenos eram, por título legítimo, objecto de propriedade particular ou

comum antes de 31 de Dezembro de 1864 ou, se se tratar de arribas

alcantiladas, antes de 22 de Março de 1868.

2. Na falta de documentos susceptíveis de comprovar a propriedade dos

terrenos nos termos do n.º 1 deste artigo, presumir-se-ão particulares, sem

prejuízo dos direitos de terceiros, os terrenos em relação aos quais se prove

que, naquelas datas, estavam na posse em nome próprio de particulares ou

na fruição conjunta de indivíduos compreendidos em certa circunscrição

administrativa.

3. Quando se mostre que os documentos anteriores a 1864 ou a 1868,

conforme os casos, se tornaram ilegíveis ou foram destruídos por incêndio

ou facto semelhante ocorrido na conservatória ou registo competente,

presumir-se-ão particulares, sem prejuízo dos direitos de terceiros, os

terrenos em relação aos quais se prove que, antes de 1 de Dezembro de

1892, eram objecto de propriedade ou posse privadas.

4. Não ficam sujeitos ao regime de prova estabelecido nos números

anteriores os terrenos que, nos termos da lei, hajam sido objecto de um acto

de desafectação.”

28

A delimitação da área pública é feita por uma Comissão, mediante determinado

formalismo (art. 10).

Seu uso, igualmente como sucede na legislação pátria, é admitido através de licenças

ou concessões do poder público (art. 18), sob pagamento de taxa (art. 24). É prevista, também,

a forma de ocupação.25

A lei n. 54/2005, que estabelece a titularidade dos recursos hídricos portugueses,

dispõe em seu art. 15, que os particulares que pretendam reconhecimento de sua propriedade

privada, o façam mediante ação judicial até 01 de janeiro de 2014, comprovando que tais

terrenos eram por título legítimo, propriedade particular ou comum antes de 31 de dezembro

de 1864, ou se se tratar de arribas alcantilhadas até 22 de março de 1868, sob pena de

tornarem-se públicas terras porventura privadas.

Assim, como sucede no Brasil, a ausência de sistematização da matéria, a tecer

enorme colcha de retalhos, para além do excesso de burocratização, é objeto de severas

críticas como anota Menezes de Cordeiro:

“Tudo isto funciona em termos pesados e burocratizados, desviando

energias do Estado que deveriam estar concentradas na efectiva defesa do

litoral. Cada vez mais se sabe que esta zona é sensível, sendo os 50m.,

muitas vezes, insuficientes. Noutros casos, porém – designadamente quando

exista, como em muitas povoações, uma marginal pública apetrechada -,

nenhum sentido faz considerar a linha das habitações licenciadamente

edificadas no lado continental da via, estando no domínio público,

obrigando-se a fazer prova de sua pré-existência lícita, em 1864 ou enredar-

se num interminável processo de autorização. Haveria, pois, que à luz

destas reflexões, flexibilizar o regime e ampliar os poderes da Comissão.”26

25

Diversos diplomas posteriores buscam esclarecimentos da matéria, conquanto as diretrizes permaneçam sob à

égide do Dec.468/71. Ver Decreto-lei 70/90 26

CORDEIRO, Antonio Menezes. Tratado de Direito Civil Português, I, Parte Geral, Tomo II, Coisas, 2ª ed.,

Coimbra: Almedina, 2009, p. 65.

29

Contrariamente ao defendido pela doutrina nacional, há sim instituto análogo em

terras lusitana, embora não tenham sido encontrados em outros países.

Em suma: assim como sucede com relação às nossas marinhas, em Portugal, há o

resguardo de uma faixa de terras marginais, sob titularidade do domínio público, em harmonia

a legislação brasileira.

Outrossim, o reconhecimento da propriedade privada aos que comprovarem título

legítimo até o ano de 1864 ou 1868, conforme o caso, demonstra que antes disto a

propriedade destas faixas marginais era reconhecidamente privada, contrariamente ao que

sucedia no Brasil-Colônia, conduzindo a conclusão de que o instituto foi importado da colônia

aos colonizadores.

Todavia não se pode dizer que, embora, transplantado o regime jurídico das marinhas

brasileiras para o solo português, tratava-se de inovação lusitana para o solo nacional.

Cremos que – guardadas as devidas particularidades - as linhas fulcrais do instituto

apontam para as lezírias ou lizírias, cuja figura é tipicamente reinol, com elementos do

aforamento e resguardo público de terras marginais fluviais, inicialmente com vistas à defesa

e povoamento.

Sua etimologia do árabe (al-jazira – ilha), tem significação de ilhas de terra que o rio

arrasta e se depositam nas margens.27

São, pois, porções de sedimentos fluviais que emergem ligeiramente acima do nível

médio das águas, às margens do rio Tejo – por isso, poeticamente intituladas filhas do Tejo.

A lezírias do Ribatejo, explica MADALENO, foram objeto de interesse Real desde

os primórdios. Verbis:

27

BEIRANTE, Maria Ângela. O Tejo na construção do poder na idade média portuguesa – de D. Afonso I à D.

João I. Disponível em: http://ler.letras.up.pt/uploads/ficheiros/4034.pdf

30

“As lezírias do Ribatejo iniciam-se no município de Salvaterra de Magos e

prolongam-se por Vila Franca de Xira até ao Mar da Palha, ou seja, até à

parte mais larga do estuário do rio Tejo. Os terrenos são fecundados pelos

aluviões trazidos pelo rio e levados pelas marés oceânicas, sendo muitas as

ilhas fluviais e os solos localizados entre rios com altitudes inferiores a 5

metros abrangidos pela designação de lezíria. Não surpreende ninguém que

a elevada fertilidade reconhecida a estes terrenos planos cedo tivesse

atraído as atenções dos que tinham por mor mister governar o pequeno país,

sendo claro que desde os primórdios da nacionalidade “quando D. Afonso

Henriques tomara Santarém aos Mouros, partira as terras como tivera por

bem, reservando para si a lezíria de Alcoelha, bem como todas as outras”.

Exceptuava-se a lezíria da Valada que, segundo o cronista Gama Barros,

pertencia ao concelho de Lisboa, “sendo anualmente distribuída entre os

pobres que dela arrancavam o seu sustento”. (Castro, 1971, p. 726).”28

Já à época da invasão moura, os árabes comparavam o rio Tejo ao Nilo, em vista de

sua importância e fertilidade de suas terras marginais.29

Enfim, por ser rio navegável e de grande extensão, o Tejo teve importância no

deslocamento mouro pela península ibérica, daí a preocupação da defesa e povoamento das

áreas marginais, tidas como pertencentes à Coroa, pelo direito de conquista.30

Neste sentido:

“Os textos que documentam o contencioso das lezírias provam que, por

necessidades de defesa e povoamento os primeiros reis portugueses

concederam algumas destas terras aos concelhos e ordens militares.”31

A partir do século XII, D. Dinis, conhecido como rei lavrador, cedeu grande parte

das lezírias à Ordem do Templo e outras menores, despendendo grande fortuna na proteção e

28

MADALENO, Isabel Maria. Companhia das Lezírias: passado e futuro. Hispania nova, revista de historia

contemporânea. Disponível em: http://hispanianova.rediris.es/6/articulos/6a001.pdf 29

BEIRANTE, Maria Ângela. O Tejo na construção do Poder Real na idade média portuguesa – de D. Afonso I

à D. João I, Revista da Faculdade de Letras, p.774 30

A importância do rio Tejo, está também relacionada à fundação da cidade de Lisboa. Conta a lenda que

Ulysses após o fim da guerra de Tróia, chegou às terras hoje em que se localizam a cidade, pelas águas do Rio

Tejo. 31

BEIRANTE, Maria Ângela. Op. cit., p. 775

31

concessão de benefícios, com dispensa dos serviços militares e isenção de impostos, aos

cultivadores das terras.

A estrutura de concessão assemelhava-se ao aforamento, com elementos de

perpetuidade32

( nem sempre presente, vezes optando-se pelo arrendamento), transferência do

domínio útil operada pelas cartas de doação e cobrança de rendas, tudo em nome do Poder

Real e à cargo da Provedoria das Lezírias.33

O chefe desta repartição era o provedor, a quem incumbia a concessão das terras,

com delegação de funções de cobrança e jurisdição contenciosa aos almoxarifes, como visto

no alvará n. 97, de 14 de junho de 1582. Verbis:

“Toda a pessoa que lavrar terras das lizirias (de Villa Franca), seja por

arrendamento ou sub-arrendamento, matação ou doação, seja lavrador ou

parceiro do lavrador, ou seareiro, ou qualquer outro título, não levante o

pão da eira sem primeiro o partir, e pagar os direitos da R. fazenda dos

Almoxarifes, sob as penas do Regimm. as quaes os mesmos Almoxarifes logo

executem. Rgm.II,322.”34

Outrossim, as regras gerais, então vigentes, eram disciplinadas pelo Regimento das

Lezírias datada de 1576.

Pelo regimento do juízo do Tombo, n. 115, do ano de 1586, acerca dos usos dos bens

da coroa, vê-se a preocupação reinante com a sonegação dos foros. Verbis:

“Sendo informado que na comarca e contadoria de Santarem, e nos campos

e nas mais Lizirias e Paus andão sonegados e descaminhados muitos

prédios foro direitos pertencentes à Coroa e Fazenda, manda ao Des.

32

BEIRANTE, Maria Ângela. Op. cit., p. 77. Assinala a autora que a doação feita a D. João Peres de Aboim, era

jure hereditario. 33

Arquivo nacional da Torre do Tombo. Disponível em: http://digitarq.dgarq.gov.pt/details?id=4310504 34

CARNEIRO, Manoel Borges. Resumo Chronologico das leis mais uteis no foro e uso da vida civil. Tomo I,

1818, p.280

32

Cosme Rangel que vá fazer o tombo dos bens e cousas na dita Comarca,

regulando-se pelo presente regimento.”35

Assim, quando o assunto eram lezírias, diversos eram os contratos que disciplinavam

as questões, sendo ora regulados pelos arrendamentos, e outrora por aforamento. Em regra,

aos pequenos cultivadores os contratos eram de arrendamento, aos grandes a concessão dava-

se por aforamento.

A inobservância dos regulamentos e a má administração das rendas, geraram crise,

agravada pelas invasões francesas, fuga da família Real ao Brasil, e abandono das terras.

Em 1815, D. João, na época já no Brasil, buscou o incremento, com isenções aos

cultivadores das terras incultas.

Contudo, as lezírias foram alienadas pela Coroa Portuguesa, para satisfação das

despesas correntes do tesouro, em hasta pública, tendo sido arrematadas em 1836, pela, ainda,

hoje, existente Companhia das Lezírias.

Nada obstante, e embora não tenhamos encontrado na pouca doutrina existente sobre

terrenos de marinha, a alusão à figura das lezírias como origem do instituto, da análise

pormenorizada da legislação reinol sobre o tema, cronologicamente coincidente com a época

de nosso descobrimento e implantação do sistema de capitanias hereditárias, concluímos, que

o modelo de resguardo da propriedade pública às margens do rio Tejo, com características de

aforamento, e com vistas no povoamento e defesa do território das invasões mouras,

assemelha-se de sobremaneira ao sistema implantado no Brasil, cujas marinhas, inicialmente,

eram dadas em sesmarias, conforme veremos adiante.

Esta estrutura jurídica, política e fiscal para concessão de terras e cobrança de suas

rendas é vista claramente nos poderes outorgados aos donatários das capitanias hereditárias no

Brasil.

35

CARNEIRO, op. cit, p. 286

33

De todo modo, acredita-se que a origem dos terrenos de marinha, seja proveniente do

regime jurídico e de defesa implantado nas lezírias do Ribatejo, tendo sido posteriormente, em

virtude da proibição da concessão das marinhas por sesmarias, associado às faixas livres

marginais existentes nas marinhas do sal portuguesas, cujo elemento de resguardo da

propriedade pública também estivera presente.

Desta sorte, tudo está a indicar que a ideia das marinhas brasileiras, cuja origem

provável remonta às lezírias do Ribatejo, foi no século XIX transplantada para Portugal,

coexistindo, atualmente, em ambos os países institutos análogos.

Esta ilação reforça-se pelo reconhecimento da propriedade privada no Direito

Português, aos particulares que comprovem por título legítimo, que os terrenos eram

pertencentes ao domínio particular antes de 1864 ou 1868, conforme a hipótese legal.

1.3 Finalidade

Aliada a sempre mencionada finalidade militar ( defesa ), também presente nas

primeiras concessões das lezírias portuguesas, as marinhas tomaram importância paulatina no

território nacional, na exata medida da percepção de frutos à Coroa.

Inicialmente, esta faixa de terras, eram dadas em sesmarias, com vistas no

povoamento e defesa das recém-descobertas terras, por intermédio das cartas de doação e

foral, conferidas aos donatários das capitanias hereditárias.

Contudo, a provável dificuldade encontrada no escoamento da produção nacional

pela ocupação destas faixas de terras, culminou com a proibição real das concessões, como

visto na Carta Régia de 12 de novembro de 169836

:

36

Deste tópico, trataremos com mais vagar no item destinado às sesmarias.

34

“E daqui por diante ordeno se não dê mais em sesmarias de terras sitas

junto às marinhas, porque essas se devem requerer a mim, e dando-se

algumas se haverão por nullas a todo o tempo que constar forão dadas sem

ordem e graça especial minha.”37

Enfim, no viabilizar de local para trânsito e armazenamento, preparo, embarque e

desembarque, e livre passagem das rendas,38

assim como ocorria com relação ao sal nas

marinhas portuguesas, fez-se necessária a preservação de faixas livres marginais – marinhas.

Logo, o sal, a pesca, o pau Brasil, o ouro e os lucros trazidos por estes produtos à

Coroa sobrepunham-se ao interesse sobre a própria terra.39

Sua importância encontrava fundamento no interesse dos colonizadores sobre nossas

riquezas naturais – é, pois fruto da relação extrativista de colonizador e colonizados.

Até mesmo a defesa do território tida como função primária do instituto, era

importante, enquanto – e na proporção - da preservação dos lucros da Coroa, como ensina

Ruy Cirne Lima: “Do começo, nada éramos mais, na verdade, do que uma grande

feitoria...”40

Em supedâneo à tese, a Ordem Régia de 4 de dezembro de 1678:

“estes mangues eram de minha regalia, por nascerem no salgado onde só

chega o mar e com a enchente serem muito necessários para conservação

desse povo, engenhos e navios.”41

Tal retrato foi bem representado por Benedito Calixto, neste quadro denominado

trapiche:

37

SANTOS, op. cit., p. 117 38

Este motivo consta na Ordem Régia de 7 de maio de 1725 39

SANTOS, op. cit, p. 5 40

LIMA, Ruy Cirne. Sesmarias e Terras Devolutas (Parecer). Porto Alegre: Oficinas Graficas Thrumann, 1931,

p. 24 41

CALVANCANTI, op. cit., p. 407

35

Disponível em: <http://www.novomilenio.inf.br/santos>

Nota-se da pintura que a área destinada às marinhas, restavam livres para o

embarque/desembarque e armazenamento das mercadorias, em consonância com sua função

econômica no Brasil-Colônia.

Assim, resta evidente que o interesse econômico sempre pautou o regime.

Se outrora as faixas de terras destinadas às marinhas serviam à defesa e ao

escoamento da produção nacional à Coroa, ora cingiram-se a importante fonte de receita

federal a propiciar receita anual ao Serviço do Patrimônio da União de R$3.331.106.585,00.42

Difere-se, assim, da concepção primitiva, como destaca Mario Müller Romiti:

“A razão principal para a instituição foi militar, secundariamente, servir

como fonte de renda. Buscou-se a manutenção da faixa livre na borda do

mar, sem construções outras que bélicas, pronta para o livre deslocamento

de tropas na hipótese de defesa urgente contra desembarques, seja de

piratas, seja de forças regulares do país inimigo.

O terreno enxuto, para além da influência das marés regulares e sem

vegetação densa, seria sempre admitido como livre de obstáculos

prejudiciais ao movimento das fileiras.

O objetivo principal foi sendo paulatinamente esquecido pela falta de

guerras ou invasões, substituindo-se pelo interesse econômico da

coletividade.

42

LIMA. Obéde Pereira de. Terrenos de Marinha e seus acrescidos: localização, demarcação destes bens pela

União pelo método científico versus critérios adotados pela União. p.7 (Disponível no site

www.sosterrenosdemarinha.org.br, acesso em 01-05-2012)

36

Foi, enfim, sobreposto o secundário ao principal, até privilegiar a produção

de renda, como matéria patrimonial afeta à União.” 43

Releva ainda, atualmente, a visão ambiental, como lembra Machado:

“(...) a preocupação com a defesa do litoral e das zonas adjacentes foi uma das

preocupações que levou a Coroa Portuguesa a reservar as marinhas. Essa era a

idéia mater nos diversos países que instituíram esta limitação ao direito de

propriedade. Essa diretriz permanece, mas acrescida da idéia de livre acesso ao

mar e de proteção ao meio ambiente litorâneo.”44

É nesta linha de raciocínio que o art. 225, §4º da Constituição Federal, prevê a

utilização legal e segura da zona costeira brasileira.

Contemporaneamente, portanto, as marinhas permanecem com função econômica,

eminentemente arrecadatória, embora seja possível acrescer secundariamente uma função

protetivo-ambiental, como enfoque existente no Direito Português.

1.3. Natureza Jurídica

Anota Manoel Madruga, citando Francisco D’Áurea, então contador geral da

República, que o patrimônio público, quanto à sua origem e estrutura, pode-se dividir em duas

espécies: aquele pré-existente oriundo da natureza e outro erigido com tributos pagos pelos

cidadãos. Verbis:

“Uma parte do patrimônio do Brasil teve sua origem com a formação da

nossa nacionalidade. Os bens que a compõem herdamo-los em grande parte

43

ROMITI, Mário Müller. Terrenos de Marinha, Revista do Advogado, São Paulo: Associação dos Advogados

de São Paulo, n. 62, p. 10, mar.2001. 44

MACHADO, Direito Ambiental Brasileiro, p. 132/133

37

da natureza que tão generosa foi conosco. E aí esta para atestá-lo o numero

infinito de praias, de rios navegáveis, de florestas vastíssimas e

impenetráveis. Os numerosos portos e as estradas produto dos nossos

antepassados.

(...)

Esta parte do patrimônio é por assim dizer um legado que o Estado recebeu.

Outra parte do patrimônio teve origem nos tributos do povo.”45

Quanto à titularidade, com vistas na origem pública de nossas terras conquistadas

pelo reino português e posteriormente transferidas ao Estado, temos que as terras brasileiras

são em sua origem fruto do desmembramento da propriedade pública, transferida

paulatinamente aos particulares.

Vale dizer: convivem harmonicamente em solo brasileiro a propriedade pública e a

propriedade privada.

Sob esta ótica, aos bens que restaram sob o domínio público, quanto à sua

destinação, podemos classificá-los, em: a) uso comum do povo; b) uso especial; c)

dominicais. É isto que dispõe o artigo 99, do Código Civil.

Os bens de uso comum do povo são destinados por lei ou por sua natureza ao uso

coletivo. Já os de uso especial, prestam-se a consecução dos objetivos da Administração

Pública. Estas duas espécies de bens são classificadas, sob o aspecto jurídico, de bens do

domínio público do Estado, ao passo que ambas as espécies são destinadas aos fins públicos.

Por outro lado, os bens dominicais são considerados como bens do domínio privado

do Estado, posto que sua destinação é indefinida, de modo que podem ser aplicados pelo

Poder Público para obtenção de renda.

É nesta classificação que temos os terrenos de marinha como bens dominicais e é

esta sua natureza jurídica (art. 20, VII, CF).

45

MADRUGA, Manoel. Op. cit. P. 668

38

Pertencentes à União, constituem parte de seu patrimônio disponível, quando não

afetados ao uso comum ou ao uso especial, como ensina Hely Lopes Meirelles:

“São aqueles que embora integrando o domínio público como os demais,

deles diferem pela possibilidade sempre presente de serem utilizados em

qualquer fim, ou mesmo alienados pela Administração, se assim o

desejar.”46

Manoel Madruga excepciona os terrenos de marinha, posto serem insusceptíveis de

propriedade privada. Verbis:

“Terrenos de marinha são bens de domínio público, e, assim, não são

susceptíveis de propriedade privada, sendo que as concessões feitas sobre

elles são sempre a título precário e, portanto, revogáveis a todo tempo que o

interesse da comunhão o exija, princípios de direito, esses, aliás,

consagrados pelo art. 203 da Consolidação das Leis da Alfândega.”47

Todavia, podem ser disponibilizados pelo Estado aos cidadãos, mediante aforamento

ou ocupação, assim cumprindo função social.

A Administração exerce o papel de proprietária: daí, afirmar-se tratar do domínio

público mais aproximado do direito privado.48

Assim, admite-se a aplicação das normas de direito privado quanto a esta espécie de

bens, no que tange aos conflitos entre particulares. 49

Submetem-se a um regime jurídico híbrido, com regras de direito público e direito

privado, como ensina Maria Sylvia Zanella di Pietro:

46

MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 33ª ed, São Paulo: Malheiros, 2007, p. 522 47

MADRUGA. Manoel. Op. cit., p. 167 48

CAVALCANTI, Themistocles. Curso de Direito Administrativo.3ª ed., Livraria Freitas Bastos: São Paulo,

1954, p.451 49

49

CAVALCANTI, op. cit., p. 451

39

“Se nenhuma lei houvesse estabelecido normas especiais sobre esta

categoria de bens, seu regime jurídico seria o mesmo que decorre do Código

Civil para os bens pertencentes aos particulares. Sendo alienáveis, estariam

inteiramente no comércio jurídico de direito privado (art. 101); em

conseqüência, poderiam ser objeto de usucapião e de direitos reais,

inclusive os de garantia (art. 1420); como também poderiam ser objeto de

penhora e de contratos como os de locação, comodato, permuta,

arrendamento.

No entanto, o fato é que as normas do direito civil aplicáveis aos bens

dominicais sofreram inúmeros desvios ou derrogações impostos por normas

publicísticas.”50

Este regime jurídico misto é o que acontece, verbi gratia, quando do aforamento,

como ensina Rosita de Sousa Santos:

“(...) quando a União defere a proposta de se constituir um aforamento, ela

está praticando um ato administrativo, mas quando ela contrata a

negociação do domínio útil com o pretendente ao aforamento,

transformando-o em foreiro, ela é parte em um contrato regido pelo Código

Civil.”51

Como exceções à aplicabilidade do regime jurídico de direito privado, temos: o

processo especial de execução contra a Fazenda Pública, com exclusão de penhora dos bens

públicos, a impossibilidade usucapião de bens públicos, a inviabilidade de instituição de

direitos reais de garantia.52

Nesta senda, importa notar que, no que tange aos terrenos de marinha, embora bens

públicos dominicais, insuscetíveis de usucapião (Súmula 340, STF), tem-se entendido cabê-lo

no tocante ao domínio útil. Neste sentido, Benedito Silvério:

50

DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 17ª ed., São Paulo: Atlas, 2004, p. 573. 51

SANTOS, Rosita de Sousa. Op. cit. P. 66 52

DI PIETRO, Op. cit., p. 573-574

40

“Resumindo, é perfeitamente possível usucapião de enfiteuse, ordinária ou

extraordinária, primeiramente, desde que haja a comprovação do

pagamento da pensão ou foro do senhorio direto; em segundo lugar, tirante

as hipóteses apontadas por Lafayette, que embasam a usucapião de maior

prazo, compete a ordinária, àquela que tenha título, mas insuficiente de

aquisição completa (sem registro), seja por vício extrínseco (aquisição a

non domino), seja por vício impedititivo da transferência por ausência de

poder legal do transmitente para alienar a coisa, estes últimos eventuais e

nunca formais, de vez que são incompatíveis com o justo título.”

E prossegue o doutrinador especificamente quanto aos bens públicos:

“Não é demais lembrar que para a usucapião da enfiteuse deverá o poder

público (federal, estadual ou municipal) ser citado, pois titular do domínio

direto, nada impedindo a declaração do domínio útil se já perfeccionado o

prazo prescricional e tenham cumpridos os demais requisitos impostos por

lei.”53

Nesta mesma linha de raciocínio, há orientação do Supremo Tribunal Federal.

Verbis:

“O ajuizamento de ação contra o foreiro, na qual se pretende usucapião do

domínio útil do bem, não viola a regra de que os bens públicos não se

adquirem por usucapião.”54

Não difere o posicionamento do Superior Tribunal de Justiça. Verbis:

“Postulado na inicial o usucapião da propriedade plena do imóvel, o

deferimento, pelo Tribunal Regional, da prescrição aquisitiva apenas sobre

53

RIBEIRO, Benedito Silvério Ribeiro. Tratado de Usucapião. Vol. 1, 2ª ed., São Paulo: Saraiva, 1998, p. 421-

423 54

RE-AgR n. 218324/PE, 2ª Turma, v.u., rel. Joaquim Barbosa, DJe 28/05/2010.

41

o domínio útil não constitui julgamento extra petita, por haver deferido

apenas menos do que pedido.”55

Assim, em que pese possível a usucapião do domínio útil, inusucapível a propriedade

plena.

Sem embargo, conclui Hely Lopes Meirelles que as normas civis são usadas de

maneira subsidiária, sendo a regra o regime administrativo especial. Verbis:

“O domínio patrimonial do Estado sobre seus bens é um direito de

propriedade, mas direito de propriedade pública, sujeita a um regime

administrativo especial. A esse regime subordinam-se todos os bens das

pessoas administrativas, assim considerados bens públicos em como tais,

regidos pelo Direito Público, embora supletivamente se lhes apliquem

algumas regras da propriedade privada. Mas advirta-se que as normas civis

não regem o domínio público; suprem apenas as omissões das leis

administrativas.”56

Relevante debate trava-se sobre a natureza jurídica das marinhas localizadas no

ambiente praial. Conforme vimos, a utilização da linha do preamar médio do ano de 1831 e o

crescente aumento do nível das águas, faz com que, por vezes, ambas as porções de terras

identifiquem-se quanto à localização.

Embora não hajam estudos a respeito do tema, nos parece que ante a natureza

jurídica da praia ser bem de uso comum do povo, este deve sobrepujar frente seu interesse

público. Aliás, este entendimento está em consonância com o art. 11, do Código das Águas.

Outrossim, os terrenos de marinha são, em regra, bens dominicais e ao regime

jurídico administrativo especial submetem-se, sendo supletivamente aplicadas as normas de

55

REsp 262071/RS, Rel. Min. Aldir Passarinho Junior, 4ª turma, j. 16/03/2004, DJ 03/05/2004. 56

MEIRELLES, Op. cit. P. 518

42

direito privado, estas, mormente, aplicadas no tocante a disciplina dos contratos enfitêuticos,

naquilo que não confrontarem com as disposições especiais.

1.4. Classificação

A idéia que terrenos de marinha limitam-se as faixas litorâneas - embora assente e

exclusivo objeto deste estudo - dista da realidade.

Tal crença advém do adjetivo marinha, que remete ao substantivo mar, olvidando-se,

em regra, que a influência das marés podem ser sentidas em locais outros, tais como fozes de

rios e lagos e, é nesta medida, que também são tidos como terrenos de marinha, somente onde

os possa sentir.

É por esta razão que são diversas as espécies de marinhas, diferindo-se por dois

principais critérios de classificação: a) quanto à localização; e b) águas que banham.

Quanto à localização, podem ser: continentais, costeiras e insulares. São marinhas

costeiras as localizadas na costa marítima. Insulares as que se situam nas ilhas oceânicas e

costeiras.

Já as continentais localizam–se no interior do continente.

Sob o critério das águas que banham, podem ser: lacustres, fluviais e marítimas.

As marítimas são as banhadas pela água do mar. As lacustres, por lagos e fluviais,

rios.57

No tocante às duas últimas espécies, hão de sofrer a influência das marés, a tornar

salgadas as águas por essência doces.58

57

GASPARINI, Diógenes. Direito Administrativo. 11ª ed., São Paulo, Saraiva, 2006, p. 863 58

Revista de Direito Administrativo, vol. 2, p. 282

43

Assim, como elemento comum e essencial às diversas espécies de marinhas, tem-se a

água salgada, necessariamente presente em todas elas.

1.5. Terrenos de marinha e sesmarias

De origem portuguesa, em nosso regime fundiário, releva o estudo das sesmarias.

Trata-se de regime jurídico pelo qual, inicialmente, eram submetidos os terrenos de

marinha, daí a importância do tema.

Como forma originária de aquisição da propriedade temos, por excelência, a

ocupação do território brasileiro, como ensina Themístocles Cavalcanti:

“O título originário do domínio público foi a posse da terra pelo

descobridor. Desde aquele momento, constituiu-se o patrimônio territorial

da Nação, sobre o qual, com as doações e benemerências da Coroa

Portuguesa havia de se constituir o domínio privado.”59

No princípio, a propriedade era pública. As leis sobre a distribuição/concessão das

terras visavam – primordialmente - o povoamento, sem maior relevo à agricultura.

Paulatinamente, o povoamento foi cedendo espaço à necessidade do cultivo da terra,

passando esta a ser a preocupação fundamental.

As sesmarias eram terras não cultivadas, confiscadas pelo Estado e distribuídas

àqueles que quisessem, pudessem ou soubessem plantar.

59

CAVALCANTI, Themistocles Brandão. Tratado de Direito Administrativo. vol. III. 3ª ed., São Paulo: Livraria

Freitas Bastos, 1956, p. 437

44

Outrossim, já no Império Romano, como estímulo ao seu aproveitamento, eram

cedidas terras mediante insignificante remuneração ou gratuitamente aos velhos guerreiros.60

Dentre as primitivas formas de aquisição da propriedade no reino luso, estava o fogo

morto – focuo mortuo – consistente no direito adquirido por aquele que, queimando os

matagais, lavrara terras sem cultivo.

Era também forma de extinção da propriedade, porque pelo fogo morto o antigo

proprietário que abandonara a terra sem cultivo, perde-a pelo simples abandono, como anota

Ruy Cirne Lima:

“Longe de ser uma inovação o fogo morto encontra exemplo numa

constituição do quarto século, segundo o qual, aquele que, por dois anos,

lavrasse e cultivasse terra abandonada, lhe adquiriria a propriedade; bem

como no costume dos belgas gauleses, pelo qual o proprietário, intimado

para ocupar a sua terra, caso não acudisse dentro de seis meses, perderia

todo o seu direito.”61

Foi no governo de D. Fernando, com inspiração no fogo morto e visando o incentivo

agrícola no reino lusitano, que publicada a Lei das Sesmarias, em 26 de junho de 1375.

Dispunha a lei sobre obrigações de cultivo, expropriação e terras incultas e concessão

aos que cultivassem sob pagamento de modesta renda, fixada na sexta parte dos frutos – as

sesmas – de onde originou-se a denominação de sesmarias62

.

Ensina Ruy Cirne de Lima:

“A palavra – sesmaria – tanto deriva para alguns de sesma, antiga medida

agrária portuguesa, como para outros de sesmo, que significa a sexta parte

60

MADRUGA, Manoel, op. cit., p. 14 61

LIMA, Ruy Cirne. Op. cit., p. 5-6 62

MADRUGA, Manoel. Op. cit, p. 14

45

de qualquer cousa, ou ainda, para outros do latim “caesina”, que quer dizer

incisão, corte.”63

E, conclui:

“Dar em sesmaria significava, pois, naqueles tempos, arrendar propriedade

inculta, contra a vontade do dono, e para o bem da coletividade.”64

Este regime largamente aplicado no sistema português, foi importado para

as terras colonizadas, com as devidas adaptações – a despeito da

inexistência de outros senhores, aplicou-se no Brasil, a mesma legislação,

pois as terras eram incultas.65

Tratou-se da primeira forma – graciosa - de distribuição de terras nacionais, como

ressalta Themistocles Cavalcanti:

“a primeira manifestação de generosidade do descobridor na distribuição

das terras de sua nova conquista, fez-se através das concessões das

sesmarias.”

Foi a divisão do Brasil em capitanias hereditárias que possibilitou as concessões das

terras, através das sesmarias.

Estes imensos lotes de terras, com cerca de 300km de largura, eram doados pela

Coroa à pessoa de confiança do Rei, os quais eram denominados donatários. O instrumento

que legitimava a doação, era a denominada carta de doação, que tinha como função

estabelecer os limites geográficos das áreas doadas pela Coroa. Por sua vez, o foral

estabelecia os direitos e deveres dos donatários, conferindo-lhe poderes para exercer diversas

funções, tais como: jurisdicional, cobrança de impostos e dízimas, bem como concessão das

sesmarias.

63

LIMA, Ruy Cirne. Op. cit., p.8 64

LIMA, Ruy Cirne. Op. cit., p. 7 65

Ordenações Manuelitas, Liv. IV, Tít. 67; Ord. Filipinas, Liv. IV, Tít. 43.

46

Embora os donatários tivessem amplos poderes sobre suas capitanias, a distribuição

das terras em sesmarias, deveriam respeitar as determinações expressas no foral, como se

observa na carta:

“O capitão e seus sucessores darão e repartirão todas as terras da

capitania de sesmarias, a quaisquer pessoas, de qualquer condição,

contanto que sejam cristãos, livremente sem foro nem tributo algum, mais do

que o dízimo do que colherem ao mestrado de Cristo, seguindo nisso a

forma estabelecida nas Ordenações...”66

Assim, somente poderiam ser sesmeiros, os cristãos que em retribuição à concessão

das sesmarias, pagassem o dízimo de Deus à Ordem de Cristo.67

Entrementes, importa notar que a figura do Rei de Portugal confundia-se com a

Ordem de Cristo.

Esta carta de doação e foral ela lida em praça pública, como forma de dar

publicidade e legitimidade aos poderes conferidos pela Coroa, como representado

artisticamente por Benedito Calixto, na leitura da carta de doação e foral concedida à Brás

Cubas:

66

CAVALCANTI, Themístocles. Op. cit., p. 439 67

A figura do rei de Portugal confundia-se com a Igreja, nesta época.

47

Disponível em: <http://www.novomilenio.inf.br/santos>

Outrossim, posteriormente estes poderes foram transferidos aos Governadores e

Capitães-Gerais, todavia a depender de confirmação Real. Tal processo encontra-se ilustrado

no alvará de 3 de março de 1770.

As Ordenações Manuelinas, e depois as Filipinas eram aplicadas supletivamente e no

que coubessem, sendo numerosos os alvarás, decretos e ordens que regulavam a concessão de

terras, mediante o regime da enfiteuse no Brasil.

Sesmeiros, para o regime implantado no Brasil, eram aqueles a quem eram cedidas

terras.

Difere-se, assim, a denominação de Portugal, onde sesmeiros eram os juízes

responsáveis pela fiscalização da arrecadação e cultivo.68

As sesmarias brasileiras deveriam ainda ser medidas e demarcadas, outrossim, sem

limite certo: ora cedia-se uma légua quadrada, ora apenas meia, pois variava de acordo com a

província e costume, em que pese tenha havido tentativa de fixação do alvará de 25 de janeiro

de 1809.69

Outrossim, variava não apenas a légua, mas a medida da légua.

68

MADRUGA, Op. cit., p. 38 69

CAVALCANTI, Themístocles. Op. cit., p. 443

48

As primeiras sesmarias foram concedidas já nos primeiros anos de colonização,

sendo as mais conhecidas as cedidas por Martim Afonso de Souza, fundador da Vila de São

Vicente.

No início as marinhas eram dadas em sesmarias, como se observa na Carta Régia de

12 de novembro de 1698:

“E daqui por diante ordeno se não dê mais em sesmarias de terras sitas

junto às marinhas, porque essas se devem requerer a mim, e dando-se

algumas se haverão por nullas a todo o tempo que constar forão dadas sem

ordem e graça especial minha.”70

Assim, a clássica concepção do respeito às marinhas nas concessões de sesmarias,

são sempre embasadas na já posterior Ordem Régia de 21 de outubro de 1710:

“(...) que as sesmarias nunca deveriam compreender a marinha que sempre

deve estar desimpedida para qualquer incidente do meu serviço, e defensa

da terra.”

A análise isolada desta Carta Régia conduz à idéia – errônea – de que as sesmarias

sempre foram concedidas respeitando os terrenos de marinha.

No entanto, como se lê na ordem de 1628, não foi sempre assim, sendo a afirmação

encontrada em muitos doutrinadores, senão falsa, parcialmente verdadeira, pois no princípio a

este regime submetiam-se também as marinhas.

Este quadro é reforçado pela legislação portuguesa dos bens de domínio público

hídrico, que reconhece a propriedade particular aos que tivessem títulos legítimos anteriores

aos anos de 1864 ou 1868, conforme o caso, em estreita harmonia as concessões das marinhas

por sesmarias.

70

SANTOS, op. cit., p. 117

49

Nada obstante, houve um colapso no sistema de sesmarias: muitos sesmeiros não

pagavam o dízimo, as terras não eram medidas, nem demarcadas e muito menos cultivadas –

objetivo primordial da lei.

As sesmarias geraram verdadeiros latifúndios e os sesmeiros eram incapazes de

cultivar a extensão concedida.

Ao lado desta realidade, colonos ocupavam terras e nelas cultivavam para a própria

subsistência – dando-se, início ao regime de posses.

Ao final, as sesmarias desaparecem com a Independência do Brasil, abrindo-se

espaço para a consolidação do costume da aquisição pela posse posteriormente legitimadas.

1.6. Terrenos de marinha e terras devolutas

Difere-se um do outro e esta foi a discussão objeto da ação originária n. 8, julgada

pelo Supremo Tribunal Federal.

Atualmente, é do Decreto-lei 9.760 de 1946 que se extrai o preciso conceito de terras

devolutas:

“Art. 5º: São devolutas, nas faixas de fronteira, nos Territórios Federais e

no Distrito Federal, as terras que não sendo próprias, nem aplicadas a

algum uso público federal, estadual ou municipal, não se incorporaram ao

domínio privado: a) por força da Lei 601, de 18.9.1850, Decreto 1318, de

30.01.1854 e outras leis e decretos gerais, federais ou estaduais; b) em

virtude de alienação, concessão ou reconhecimento por parte da União ou

dos Estados; c) em virtude de lei ou concessão emanada de governo

estrangeiro e ratificada ou reconhecida, expressa ou implicitamente, pelo

Brasil, em tratado ou convenção de limites; d) em virtude de sentença

judicial com força de coisa julgada; e)por se acharem em posse contínua e

incontestada com justo título e boa-fé, por termo superior a 20 (vinte) anos;

50

f) por se acharem em posse pacífica e ininterrupta, por 30 (trinta) anos

independentemente de justo título e boa-fé; g) por força de sentença

declaratória proferida nos termos do art. 148 da Constituição Federal de 10

de novembro de 1937.

Parágrafo único: A posse a que a União condiciona a sua liberalidade não

pode constituir latifúndio e depende de efetivo aproveitamento e morada do

possuidor ou do seu preposto, integralmente satisfeitas por estes, no caso de

posse de terras situadas na faixa de fronteira, as condições especiais

impostas na lei.”

Não se há de tomar, assim, terrenos de marinha por terras devolutas.

Antigamente as terras devolutas eram dadas por sesmarias, (Ord. Liv. 4.º Tit. 43,

Alv. de 5 d’Outubro de 1795, e Decr. de 22 de Junho de 1808).

Mas pela Resolução de Consulta de 17 de Julho de 1822, confirmada por aviso de 6

de outubro de 1823 e provisão de 22 de outubro da mesma época, aliada a resolução de 5 de

Fevereiro de 1827, foram suspensas suas concessões, garantido-se, entretanto, o direito

adquirido (provisão de 14 de março de 1822, e portaria de 4 de setembro de 1822).

A concessão de terras devolutas foi primeiro regulada pela Lei Imperial n. 601 de 18

de Setembro de 1850, regulamentada pelo Decreto n. 1318 de 30 de Janeiro, e n. 98 de 8 de

Maio de 1854, in verbis:

“Art. 3º: São terras devolutas:

§1º: as que não se acharem em algum uso público nacional, provincial e

municipal;

§2º: as que não se acharem no domínio particular por qualquer título

legítimo, nem forem havidas por sesmarias e outras concessões do governo

geral ou provincial, não incursa em comisso por falta de cumprimento das

condições de medição, confirmação e cultura.

§3º as que não se acharem dadas em sesmarias, ou outras concessões do

governo que, apesar de incursas em comisso, forem revalidadas por esta

lei.”

51

Logo, consideravam terras devolutas as que, não se achando sob domínio público e

concedidas em sesmarias perdidas por comisso, descumprimento das condições de medição,

conformação e cultura.

Pela mesma lei – primeira que disciplina as terras públicas - restou proibida a

aquisição de terras devolutas por outro título que não fosse o da compra.

Regulamentada pelo Decreto 1318 de 30 de janeiro de 1856, também conhecido

como regulamento de 1854 – este último criando o Registro Paroquial - constituem ambos

marcos na legislação nacional.

Assim, devolutas eram as terras originalmente públicas que foram devolvidas ao

Estado.

Vale dizer: somente é devoluto o que foi devolvido.

Diferenciavam-se as terras devolutas por certas características como revalidação e

legitimação de títulos e posses baseado em trabalho e cultura.

As posses tituladas ou legitimadas de terras devolutas geravam a propriedade (art.

11, lei n. 601/1850), conquanto resolúvel.

Outrossim, tais terras devolutas eram frequentemente doadas às províncias para

fomentar o desenvolvimento e, através da venda a particulares, para colonização (art. 16 da lei

514/4848, lei 3.396/1888).71

Foi com a Constituição de 1891 (art. 60) que os Estados ganharam o domínio das

terras devolutas, passando a ser de sua competência a legislação sobre o assunto.

Já na Constituição de 1934, havia limitação à competência dos Estados nesse

particular, em prol do interesse público nacional.72

Em seguida a carta de 1937, consolidou o domínio nas mãos dos Estados federados,

conquanto mantida a restrição contida no artigo 130 da Constituição anterior.

71

CAVALCANTI, Themistocles Brandão. Op. cit., p. 459 72

Vide art. 130 da constituição de 1934

52

O Decreto-lei n. 1202 de 1939 impôs duras limitações aos poderes de concessão,

cessão e disposição de uma forma geral dos imóveis estaduais e municipais.

Com a Constituição de 1946, manteve-se o domínio do Estado, mas permaneceram

as restrições quanto às concessões, conforme disciplina o colacionado Decreto lei 9760 de

1946.

A Constituição de 1967 (art.4º, I) as enquadrava entre os bens da União, o que se

repetiu na Constituição de 1969, nos arts. 4º e 5º.

Atualmente é disciplinada pelo art. 20, II, e art. 26, IV, da CF e art. 5º, do Decreto

9.760/46, utilizando-se o critério da exclusão para aferimento.

As terras devolutas que não cumpram com os requisitos supramencionados

pertencem aos Estados federados, conforme art. 26, inciso IV, da Constituição Federal.

Destarte, a diferença fundamental entre terras devolutas e terrenos de marinha –

ambas públicas - é a localização, conforme decidiu o STF na ação originária n. 8.

53

Capítulo II - Breve Histórico

2.1. Colônia e Império

Foi em 20 de maio de 1710 que o Provedor da Fazenda Real da Capitania do Rio de

Janeiro representou ao Governo de Lisboa contra as muitas edificações que se faziam nas

áreas de marinha.

Em resposta, determinou El-Rei ao Governador do Rio de Janeiro, que informasse

sobre as edificações feitas nas marinhas, em relação às quais representara o Provedor da

Fazenda, vê-se a primeira menção ao termo marinha, cujo texto conclui:

“Parece-me ordenar-vos Me informeis com vosso parecer, ouvindo os

Officiaes da Camara sobre a matéria, e ouvireis também ao Patrão-Mor da

Ribeira, e algumas pessoas que tenhão intelligencia de mar, se se poderão

fazer estaleiros, onde se possão fabricar Navios de Guerra.”73

Seguiu-se a esta, a Ordem Régia de 7 de maio de 1725, em que El Rei demonstra sua

preocupação com as construções nas testadas das marinhas e proibindo-as:

“(...) os moradores desta Cidade que possuem casas na banda do mar,

tratando do seu accrescentamento, as avançarão tanto delle que totalmente

deixarão as praias sem marinha, não só em prejuízo do bem público, mas de

Minha Fazenda Real.”

Para o quanto ordena:

73

Ordem Régia de 21 de outubro de 1710.

54

“(...) daqui em diante se siga a disposição que insinuais, de que ninguém,

pode alargar um só palmo para o mar, nem edificar casa até a ponte do

Valongo (...)”

Ante a já presente dificuldade de delimitação, seguiu-se a sempre citada Ordem

Régia de 10 de janeiro de 1732, esclarecendo e introduzindo parâmetros para definição legal

das terras de marinha:

“Determina porém o mesmo Senhor que Vm. faça continuar a mesma obra,

na certeza de que tudo o que toca a água do mar e accresce sobre ella é da

Coroa, na forma da Ordenação do Reino; e de que da linha dagua para

dentro sempre são reservadas 15 braças pela borda do mar para serviço

publico, nem entrão em propriedade alguma dos confinante com a marinha

e tudo o quanto allegarem para apropriar do terreno é abuso inattendivel;”

Às Ordens Régias, seguiram-se os Avisos de 18 de novembro de 1818, de 29 de abril

de 1826, de 13 de julho de 1827, onde, segundo, Manoel Madruga, conclui-se que se designou

por marinhas e de propriedade nacional – o espaço de terreno compreendido em 15 braças

entre a terra firme e o bater do mar em marés vivas.”74

Inicia-se, assim, a consolidação da práxis administrativa, por meio de decisões,

instruções, resoluções, editais, circulares, avisos, ordens e portarias, como ensina Rosita de

Sousa Santos:

“Do período do descobrimento ao ano de 1818, encontramos um único

decreto – o de 21 de janeiro de 1809 -, e ao chegarmos à Independência em

1822, as marinhas tinham merecido somente mais um decreto, em 13 de

julho de 1820, quando foi declarada de competência da Repartição da

Marinha, em todos os portos, de qualquer porção de praia.”75

74

MADRUGA,op. cit., p. 68 75

SANTOS, op. cit., p. 6

55

Embora ainda não figurasse em corpo legislativo, as marinhas eram já importante

realidade nacional e fonte arrecadatória.

Foi assim que em 04 de outubro de 1831, foi publicada lei sobre a Organização do

Tesouro Nacional e Tesourarias das Províncias no Império, onde estabeleciam-se

competências para inspecionar arrecadação, distribuição e contabilidade das despesas públicas

a ser exercida pelo Tribunal do Tesouro Nacional (art. 6º, §1º).

A Lei Orçamentária de 15 de novembro de 1831 foi a primeira a mencionar a

expressão “terrenos de marinha”, no art. 51, n. 14:

“Art. 51: O governo fica autorizado a arrecadar no ano financeiro do 1º de

julho de 1832 ao último de junho de 1833, as rendas que foram decretadas

para o ano de 1831-1832, com as seguintes alterações:

14: Serão postos a disposição das Câmaras Municipais, os terrenos de

Marinha, que estas reclamarem do Ministro da Fazenda ou dos Presidentes

das Províncias, para logradouros públicos, e o mesmo Ministro da Corte, e

nas Províncias os Presidentes, em Conselho, poderão aforar a particulares

aqueles de tais terrenos, que julgarem convenientes, e segundo o maior

interesse da Fazenda, estipulando, também, segundo for justo, o foro

daqueles mesmos terrenos, onde já se tenha edificado sem concessão, ou

que, tendo já sido concedido condicionalmente, são obrigados a eles desde a

época da concessão, no que se procederá a arrecadação. O Ministro da

Fazenda no seu relatório da sessão de 1832, mencionará tudo o que ocorrer

sobre este objeto.”

Da leitura das leis, conclui-se que a competência do Tribunal era mais ampla, do que

a do Ministério.

Assim, os terrenos de marinha passaram ao controle do Ministério da Fazenda, sob

vigilância do Tribunal do Tesouro Nacional, ambos com a incumbência de relatórios.

Fora conferida a disposição às Câmaras Municipais para logradouros públicos, bem

como foi permitido ao Ministro da Corte e aos Presidentes das Províncias, o aforamento, à luz

56

do que fosse mais conveniente segundo o maior interesse da Fazenda, inclusive com

determinação do foro mais justo, controle, fiscalização, regularização e arrecadação.

Esta descentralização e confiança emprestadas aos presidentes das províncias,

tinham como finalidade a facilitação do exercício do aforamento, com o conseqüente cultivo

das terras.

Outrossim, a falta de clareza e a interpretação tendenciosas, fizeram nascer a

instrução n. 348 de 14 de novembro de 1832, na qual definiu-se em seu art. 4º:

“Hão de considerar-se terrenos de marinha todos os que, banhados pelas

águas do mar e rios navegáveis, vão até a distância de 15 braças craveiras

para parte da terra, contadas estas desde os pontos a que chega a preamar

médio.”76

Ainda neste mesmo ano decisão assinada por Nicolau Vergueiro, Presidente do

Tribunal do Tesouro Nacional, no qual estabelece:

“(...) hão de se considerar terrenos de marinha todos que, banhados pelas

águas do mar, ou dos rios navegáveis, vão até a distância de 15 braças

craveiras para parte da terra, contadas estas desde os pontos a que chega o

preamar médio.”77

Outra Lei, também desta, época determinou a demarcação dessa faixa em todo o

litoral brasileiro.78

A lei orçamentária n. 38 de 3 de outubro de 1834, destinava à Câmara Municipal do

Rio de Janeiro, a receita dos foros arrecadados.79

76

SANTOS, op. cit., p.13 77

Jornal A Tribuna, 28/09/1976. “A Lei e a realidade na questão dos terrenos de marinha”. Jorge Martins

Rodrigues 78

Jornal A Tribuna, op. cit. 79

Cf. Anexo, p.

57

Segundo Rosita de Sousa Santos, esta lei teve vigência por 104 anos, até ser

revogada pelo Decreto-lei n. 710, pelo qual conclui:

“(...) daí, por diante, a terra de marinha apareceu sempre como o elemento

gerador de uma renda registrada nas leis orçamentárias, e a regulamentação de

todos os casos que surgiram, foi toda ela feita por meio de atos administrativos.

(...)

Os atos administrativos conduziam a vida dos terrenos de marinha e dos foreiros,

através de uma algaravia, que hoje classificaríamos como casuística, atendendo e

resolvendo situações formadas por uma vivência que muito distante já se achava

das regras ditadas pelas ordenações filipinas, que continuariam em vigor até a

constituição outorgada por D. Pedro I, e que permaneceram como embasamento

da atuação do judiciário até 1916.”80

Nada obstante, a administração além de suprir a falta de legislação expressa, estava

em descompasso com o Poder Judiciário, como se nota no Aviso de 1º de outubro de 1861,

expedido pelo Presidente do Tribunal do Tesouro Nacional, dirigido pelo Sr. Presidente da

Província da Bahia:

“(...) para sua intelligencia e devido cumprimento.... acrescendo o que está

decidido na Resolução de 30 de maio de 1850, que he de competência

administrativa o contencioso dos terrenos de marinha...”

Em 19 de junho de 1863, novo Aviso reforçava a determinação:

“Declarou-se ser de exclusiva competência administrativa o contencioso

dos terrenos de marinha, e no caso do Poder Judiciário insistir em tomar

conhecimento de semelhante questão, deve ser levantado conflito de

jurisdição.”81

80

SANTOS, op. cit., 13/14 81

SANTOS, op. cit., p. 15

58

2.2. Império

A expressão terrenos de marinha povoou, principalmente, as leis orçamentárias, ante

seu caráter arrecadatório.

Foi com promulgação do Decreto n. 4.105 de 22 de fevereiro de 1868, que buscava

positivar o direito consuetudinário sobre o tema, que se tentou sistematizar o instituto.

Seus poucos artigos, buscavam sintetizar o posicionamento já assente.

A Lei Orçamentária n. 3348, de 20 de outubro de 1887, surge com a ampliação do

poder de todas as Câmaras Municipais, de todo Império, no aforamento dos terrenos de

marinha:

“A transferir a Ilma. Câmara Municipal do Rio de Janeiro o direito de

aforar os terrenos acrescidos aos de marinha existentes no Município

Neutro, e às Câmaras Municipais das Províncias os de marinha e

acrescidos dos respectivos municípios. Passando a pertencer à receita das

mesmas corporações a renda que daí provier, e correndo por sua conta as

despesas necessárias para medição e avaliação dos mesmos terrenos,

observadas as disposições do Decreto n. 4105, de 22 de fevereiro de 1868.

(item 3º, do art. 8º)”

Esta descentralização culminou por gerar verdadeiro imbróglio, aquecido por Ordem

do Presidente do Tribunal do Tesouro Nacional, de 12 de dezembro de 1887, determinando

que os Inspetores das Tesourarias da Fazenda remetessem à Presidência das províncias lista

dos foreiros das marinhas e acrescidos e das extintas aldeias indígenas, como anota Rosita

Santos:

“Muitas Câmaras Municipais entenderam-se donas dos terrenos de marinha

e muitos Presidentes de Província, também assim, na posição de senhores

do domínio direto, se entenderam o que fez com que freqüentemente, os

59

governos provinciais, e os municípios, tomassem decisões que forçavam as

interpelações do Tribunal do Tesouro Nacional. A imprensa explorou o

assunto, e muitos jornais das províncias davam destaque aos interesses

regionais espoliados pela União.”

Rui Barbosa em 28 de dezembro de 1889, na qualidade de Ministro da Fazenda e

Presidente do Tribunal do Tesouro Nacional, lança instrução, na qual busca esclarecer o

assunto:

“Art. 1º - Quando tratar-se de terrenos de marinha, propriamente ditos, ...

§1º Na capital federal, quanto aos de marinha e acrescidos – Dependem: a

primeira concessão de aforamento, em ambos os casos de aprovação do

Ministro da Fazenda, como representante do senhorio direto de tais

terrenos, que é a República; e as transmissões de uns para outros foreiros,

da licença do Conselho de Intendência Municipal, quando se tratar de

terrenos de mangue e de marinha, propriamente ditos, e daquele ministério

se os terrenos forem acrescidos; observadas nos processos respectivos as

Instruções de 14 de novembro de 1832, e as disposições do Decreto n. 4105

acima citado no que forem aplicáveis.

§2º Nos Estados Federais, exceto o do Rio de Janeiro, as respectivas

câmaras municipais, ou as corporações que as substituírem, dependendo,

porém, as primeiras concessões dos aforamentos de terrenos de marinha e

acrescidos, de aprovação e transferência de domínio útil de uns para outros

foreiros, de licença de seus governadores, observadas no que forem

aplicáveis as regras estabelecidas na legislação acima citada.”

Os esparsos regulamentos e a consolidação das idéias republicanas faziam com que o

sentimento de nação e propriedade pulsassem.

Em 30 de dezembro de 1891, a Lei Orçamentária n. 25, manda que se inclua no

exercício de 1892 as receitas dos foros e laudêmios.

Aos 25 de julho de 1892, circular assinada pelo Ministro da Fazenda:

60

“Os Srs. Inspetores das Tesourarias da Fazenda providenciem para que

reverta aos cofres federais, a começar pelo corrente exercício em diante, a

renda proveniente dos foros dos terrenos de marinha, visto ter sido retirada

pela lei n 25, de 30 de dezembro de 1891, a faculdade que o art. 8º, n. 3, da

Lei 3.348, de 20 de outubro de 1887, conferia às municipalidades das

Províncias, hoje Estados, para aforar tais terrenos, conforme já lhes foi

declarado pela Circular n. 27, de 8 do corrente mês – Francisco de Paula

Rodrigues Alves.”

Em 8 de novembro de 1892 novo Aviso, reiterando que os foros pertencem à União.

Em 25 de fevereiro de 1895, Instrução do Ministério da Fazenda, onde reiterada a

necessidade de cumprimento da Circular de 25 de julho de 1892.

A estas seguiram-se diversas Instruções, Avisos e Circulares ressaltando que as

marinhas pertenciam a União, contrariamente ao entendimento de muitos Estados e

Municípios.

O pleito dos Estados da Bahia e Espírito Santo, restaram famosos pelo exame do

Supremo Tribunal Federal (Ação Originária n. 8).

Neste famoso acórdão, ressalta-se que os terrenos de marinha são bens nacionais.

2.3.República

O decreto 14.595, de 31 de dezembro de 1920, estabeleceu a cobrança da taxa de

ocupação aos possuidores de imóveis localizados nas áreas da marinha, sem qualquer título

firmado pela União, dispensando-se a necessidade de cadastro para os fins do decreto, bem

como equiparando-os aos foreiros no tocante ao pagamento do laudêmio.

O decreto 22.785, de 31 de maio de 1933, vedou o resgate dos aforamentos dos

terrenos de marinha.

61

O Código das Águas, decreto n. 24.643/1934, classificou os terrenos de marinha

como bens dominicais.

Depois de longo período de calmaria, é editado em 17 de setembro de 1938, o

Decreto-lei n. 710, reorganizou a Diretoria do Domínio da União. A partir deste decreto, a

União retomou a arrecadação dos foros e laudêmios relativos aos terrenos de marinha do

Distrito Federal, sendo importante marco regulamentador.

A estes seguiram-se os Decretos 2.175, de 6 de maio de 1940, decretos n. 2289 de 7

de junho de 1940, decreto 2490 de 16 de agosto de 1940, este último veio aperfeiçoar as

situações obscuras deixadas pelo decreto lei n. 710, de 1938, como o estabelecimento de

novas normas para aforamento.

Este último (decreto 2.490) foi ainda ampliado pelo 3.438, de 17 de julho de 1941,

que também cuidou das ocupações, comisso e transmissões.

Contemporâneo a Segunda Guerra Mundial, foi editado o decreto-lei 4.120 de 21 de

fevereiro de 1942, onde, para além de limitar-se a concessão de novos aforamentos para fins

úteis, restritos e ilimitados, adota-se a linha da preamar máxima atual, como linha de

marcação – daí sua importância.

A este seguiu-se o decreto 5.666 de 15 de julho de 1943, que visava ampliar o campo

de atuação do anterior.

Aos 29 de janeiro de 1945, novo decreto (n. 7278), concedendo novo prazo aos

posseiros para regularização.

Com o término da Segunda Guerra Mundial, aos 5 de setembro de 1945, o decreto

7.937, voltou a permitir a concessão de aforamentos de quaisquer áreas para divisão em lotes

e posterior transferência a terceiros, desde que os lotes a transferir sejam aproveitados em

construções, com extensão da permissão aos posseiros, ocupantes e ao foreiro desde que

regularizados.

62

2.4. Decreto-Lei 9.760/46

A breve introdução histórica ao regime territorial brasileiro – com especial atenção

aos terrenos de marinha – traz a idéia, sobre algumas das muitas dificuldades enfrentadas.

Na emblemática decisão do Supremo Tribunal Federal de 31 de janeiro de 1905

(ação originária n. 8), já restava assente o posicionamento que nortearia o prosseguir da

questão: terrenos de marinha são bens nacionais, sobre os quais a União exerce um direito de

soberania ou jurisdição territorial, não se confundindo com terras devolutas ou próprios

nacionais.

Contudo, foi somente com a edição do decreto lei n. 9.760/46, que a questão restou

definitivamente pacificada.

Também conhecido como Lei do Patrimônio, trata-se da legislação federal completa

sobre bens públicos, vigente até os dias atuais.

No que se refere aos terrenos de marinha, é verdadeira compilação das leis

anteriores, com impressão dos traços já assentados da experiência jurídica pregressa, como

anota Rosita de Sousa Santos:

“Como se pode constatar a linha formadora do Decreto-lei n. 9760/46, bem

como os princípios doutrinários que o informaram, não sofreram alteração

e terra de marinha é hoje, constitucionalmente, civilmente, e

administrativamente um bem nacional, um bem público dominical, um bem

da União, que sob a guarda da Administração Pública, tem sido

resguardado em benefício da coletividade.”82

É, pois a principal fonte legislativa, quando o assunto é terrenos de marinha.

82

SANTOS, Rosita de Sousa. Op. cit. P. 52

63

2.5 A Constituição Federal de 1988

A primeira inserção constitucional dos terrenos de marinha no rol dos bens

pertencentes à União, deu-se com a Constituição Federal de 1988. As demais Constituições

anteriores não fizeram expressa alusão a esta espécie de bens. Esta omissão legislativa

culminou em verdadeiro imbroglio jurídico, acerca de quem seria o real titular destas terras,

com fundamento no art. 64, da Constituição Federal de 1891, o que restou pacificado pela já

citada ação originária n. 8, julgada pelo Supremo Tribunal Federal.

Portanto, a inclusão constitucional pela Carta vigente, em seu art. 20, VII, foi grande

marco, a confirmar o status público destes bens.

Relevante questão, embora afora o objeto do presente trabalho, foi trazida com a

Emenda Constitucional n. 46 de 2005, que excluiu as ilhas costeiras com sede de municípios,

excetuando as áreas afetadas ao serviço público e à unidade ambiental federal, do rol dos bens

da União. Verbis:

“Art. 20. São bens da União:

IV - as ilhas fluviais e lacustres nas zonas limítrofes com outros países; as

praias marítimas; as ilhas oceânicas e as costeiras, excluídas, destas, as que

contenham a sede de Municípios, exceto aquelas áreas afetadas ao serviço

público e a unidade ambiental federal, e as referidas no art. 26, II;(Redação

dada pela Emenda Constitucional nº 46, de 2005)”

Esta exclusão das ilhas costeiras com sede de municípios acendeu importante

polêmica: Os terrenos de marinha existentes nestas localidades permaneceriam sob

titularidade da União? Ou bem esta titularidade seria, agora, dos particulares?

Ambos os pontos de vista tem sido defendidos, tendo já Ação Civil Pública (n.

2006.50.01.000112-6) ajuizada pelo Ministério Público Federal em face da União Federal,

64

sustentando a inexistência de terrenos de marinha e acrescidos na ilha de Vitória (ES), com

fundamento na interpretação sistemática dos incisos IV e VII do art. 20 da Constituição

Federal.

Sustenta a União, em sua defesa, a manutenção do inciso VII, e, portanto, a

permanência dos terrenos de marinha e acrescidos sob propriedade da União.

A ação foi julgada procedente, sob o fundamento de que a parte final do inciso IV,

em que tratam das exceções, não elenca os terrenos de marinha e acrescidos, mas tão somente,

“aquelas áreas afetadas ao serviço público e a unidade ambiental federal, e as referidas no

art. 26, II”.

Assim, segundo a sentença, os preceitos que comportam exceções, como no caso em

tela, hão de ser interpretados restritivamente e não há qualquer ressalva relativa aos terrenos

de marinha.83

Opinião diversa sustenta Rodrigues, para quem a titularidade da União sob os

terrenos de marinha e acrescidos situados nas ilhas costeiras, com sede de município,

permanece incólume. Verbis:

“Se interpretarmos isoladamente a norma contida no inciso IV, do artigo

20, da Constituição Federal, os terrenos de marinha e seus acrescidos

presentes nas ilhas costeiras que contenham sede de município foram

excluídos dos bens da União, mas sabemos que uma norma constitucional

ou mesmo infraconstitucional não pode ser interpretada isoladamente, nesse

sentido o artigo 20 não é formado apenas pelo inciso IV, é formado por um

total de 11 incisos, dentre os quais está o inciso VII, que dispõe ser os

terrenos de marinha e seus acrescidos bens da União. Acrescentando que a

ratio legis não foi de excluir os bens dominiais existentes nas ilhas

marítimas, não há que se falar em exclusão dos terrenos de marinha e seus

83

Pende ainda o julgamento de recurso de apelação interposto pelo União Federal.

65

acrescidos, seja na orla marítima ou no interior das ilhas, permanecendo

essa espécie de bem sob domínio da União.”84

Buscando solucionar a celeuma há Projeto de Lei (PL 1117/11), de relatoria do

deputado federal Lourival Mendes, com objetivo de introduzir modificações no decreto

9760/46. Verbis:

“O CONGRESSO NACIONAL decreta:

Art. 1º. O Decreto-lei nº 9.760, de 5 de setembro de 1946, passa a vigorar

com as seguintes alterações:

‘’Art. 2º São terrenos de marinha, em uma profundidade de 33 (trinta e três)

metros, medidos horizontalmente, para a parte da terra, da posição da linha

do preamar-médio de 2011:’’

‘’Art. 2º-A Não se incluem nos terrenos de marinha as áreas que contenham

sede de Municípios, exceto aquelas áreas afetadas ao serviço público e a

unidade ambiental federal, e as referidas no art. 26, II da Constituição

Federal.’’

Art. 3º São terrenos acrescidos de marinha os que se tiverem formado,

natural ou artificialmente, para o lado do mar ou dos rios e lagoas, em

seguimento aos terrenos de marinha, excetuados os previstos no art. 2- A

desta Lei.’’

‘’Art. 9º É da competência do Serviço do Patrimônio da União (S.P.U.) a

determinação da posição das linhas do preamar médio do ano de 2011 e da

média das enchentes ordinárias.’’

Da leitura do projeto, extrai-se que seu fito é solucionar, ao mesmo tempo, o

problema relacionado às ilhas costeiras com sede de municípios, bem como a delimitação das

marinhas, com substituição pela linha do preamar do ano de 2011.

Notadamente, o assunto está a merecer uma análise mais apurada.

84

RODRIGUES, op. cit., p. 121-22

66

Inicialmente, cumpre esclarecer que a exclusão das ilhas costeiras com sede de

municípios do rol dos bens da União, teve como motivação o tratamento isonômico dos

cidadãos que residiam tanto nas áreas continentais, como nas ilhas costeiras.

Isto porque, aqueles que residiam nas ilhas costeiras tinham apenas o domínio útil

dos bens, com obrigação de pagamento dos foros ou taxas de ocupação e laudêmio, afora o

imposto predial territorial urbano (IPTU), enquanto os moradores das áreas continentais tinha

a propriedade plena de seus imóveis, como esclarece Rodrigues:

“Partindo da intenção do legislador ao elaborar essa Emenda à

Constituição, é certo que a finalidade foi garantir o pleno cumprimento do

princípio da isonomia, até então desrespeitado, visto que os ocupantes de

imóveis em área continental eram tratados diferentemente dos habitantes

das ilhas marítimas (oceânicas ou costeiras), apesar destas ilhas há muito

terem sido urbanizadas, passando a fazer parte das áreas administradas

pelos Municípios. Tratava-se de corrigir uma injustiça que teve início mais

propriamente na Constituição Federal de 1988, que incluiu entre os bens da

União as ilhas costeiras e manteve as oceânicas, com isso trazendo

insegurança e indefinição a todos os proprietários de imóveis localizados

nestas ilhas, impedindo a aquisição da propriedade das áreas pelos

particulares em razão da impossibilidade de usucapir o bem público, além

da sanha arrecadatória.”85

Conquanto a intenção fosse nobre, restou a polêmica acerca dos terrenos de marinha

localizados nas ilhas costeiras, sede de municípios.

A questão há de ser analisada à luz de duas premissas: a primeira delas, concernente

à intenção do legislador e a segunda, sob o enfoque do inciso VII, do mesmo artigo.

Assim, se a intenção do legislador foi igualar as situações jurídicas dos moradores

das áreas continentais aos das ilhas costeiras com sede de municípios, qual a razão da

85

RODRIGUES, op. cit., p. 120

67

exclusão das marinhas no perímetro lacustre costeiro e não das áreas continentais? Não seria

igualmente desigual?

À toda luz, nos parece que sim, mormente da leitura conjugada com o inciso VII do

mesmo artigo que inclui entre os bens da União os terrenos de marinha e seus acrescidos, sem

qualquer ressalva no tocante aos situados nas ilhas costeiras, com sede de municípios.

Assim, da leitura ampla da Constituição, conclui-se, com grau satisfatório de certeza,

que os terrenos de marinha e acrescidos localizados nas ilhas costeiras com sede de

municípios permanecem sob domínio da União, sem qualquer alteração.

A despeito da polêmica, a Constituição Federal de 1988, foi importante marco, por

incluir os terrenos de marinha no rol dos bens pertencentes à União.

68

Capítulo III – Demarcação

3.1. A linha do preamar médio do ano de 1831

A definição da linha do preamar médio do ano de 1831 é senão o mais tormentoso

tema relacionado às marinhas, certamente um dos mais interessantes e mormente o cerne da

problemática.

Isto porque a definição da linha do preamar médio do ano de 1831 está

umbilicalmente ligada ao próprio conceito de marinha.

Ou seja, sem sua delimitação, não é possível precisar-se com exatidão que são

terrenos de marinha.

Conquanto a dificuldade em sua determinação seja evidente, sua omissão gera

incontáveis reflexos sociais.

A primeira dificuldade enfrentada pelo intérprete é saber que é preamar médio.

Derivado do latim “plena mare”, preamar significa média da maré cheia.

Assim, sua determinação está intimamente relacionada ao fenômeno das marés,

como ilustrativamente representado no quadro de Benedito Calixto:

69

Disponível em: <http://www.novomilenio.inf.br/santos>

Grosso modo, a este vai-e-vém das ondas, denomina-se maré.

Cientificamente, é a variação periódica ou oscilação do nível do mar, sob forte

influência de forças astronômica - vis atractiva luni-solar – ou mesmo pela força dos ventos,

ou pressão.

Em verdade, é o resultado das forças gravitacionais exercidas entre Terra, Sol e Lua.

Assim, o nível das águas, em determinado ponto, sobe – enchente – até seu ponto

máximo, o que se denomina preamar.

Da mesma sorte, também desce – refluxo – ao que referimo-nos como baixamar.

À média aritmética entre as alturas de uma e outra (preamar e baixamar), chamamos

de nível médio.

Regra geral, há duas preamares e duas baixamares por dia lunar, com elevações

idênticas em números absolutos (estas são as marés semidiurnas).86

Mas, existem também as marés do tipo diurno (com única preamar e baixamar por

dia lunar) e intermediária (em que há dias com uma e dias com duas preamares e duas

baixamares).87

86

LIMA, Obéde Pereira. Op. cit. p. 16

70

Estas diferentes espécies de marés tem importância fundamental no aproveitamento e

desprezo de valores, conforme prejudiquem ou não o resultado final dos níveis médios, como

ressalta Obéde Pereira de Lima.88

Outrossim, há uma crescente variação global do nível do mar nos últimos séculos,

influenciando diretamente nos níveis das marés e, por conseguinte, as alturas das preamares.

Vale dizer: a média da preamar atual, não é a mesma do ano de 1831.

São diversos os fatores que contribuem para esta discrepância, tais como: diminuição

da pressão atmosférica, aumento da quantidade de calor contida nos oceanos, diminuição da

salinidade, aumento na componente dos ventos dirigidos à Terra e correntes litorâneas,

modificações climáticas, ajustamento isostático, efeitos tectônicos locais, modificação na

circulação oceânica, bem como as deformações do geóide por efeitos gravitacionais.89

Estes elementos estão todos associados ao aumento crescente do nível do mar, como

conclui Obéde Pereira de Lima: “(...) é inegável a constatação de que o nível médio do mar

está se elevando na maior parte do globo terrestre.”

Sobre a costa brasileira encerra o especialista, ilustrando sua conclusão com gráfico:

“De acordo com o estudo feito pelo Potsdam Institute for Climate Impact

Research, da Alemanha, publicado no site “Sciencexpress” <

www.sciencexpress.org/14December2006 >, as cidades litorâneas

brasileiras, onde vivem na zona costeira cerca de 42 milhões de pessoas

(25% da população), serão possíveis vítimas dos impactos da elevação do

nível do mar. Nas cinco principais metrópoles à beira-mar – Fortaleza,

Recife, Salvador, Rio de Janeiro e Belém – residem mais de 22 milhões de

indivíduos.

Ainda, segundo os referidos estudos, nos últimos 50 anos foi observada uma

tendência na costa brasileira de um aumento do nível relativo do mar de

87

LIMA, Obéde Pereira. Op. cit. p. 14 88

LIMA, Obéde Pereira. Op. cit. p. 14 89

LIMA. Obéde Pereira Lima. Op. cit., p. 19

71

valor na ordem de 40 cm/século, ou 4mm/ano. O nível médio do mar pode

aumentar entre 30 cm e 80 cm nos próximos 50 a 80 anos.

Adotando-se o valor da taxa de elevação do nível médio do mar de 38 cm

por século, em Cananeia, SP, calculado por Franco et. al. (2001), e

estendendo esta taxa para toda a costa brasileira, o que é um índice bem

razoável, tem-se o gráfico da Figura 15:90

Disponível em: <http://www.novomilenio.inf.br/santos>

Outrossim, o fenômeno percebido em nossa costa, está em harmonia com o

observado em todo mundo: há um inegável aumento do nível do mar.

Assim, a preamar média do ano de 1831 está, hoje, encoberta pelas águas do mar.

Ilustrativamente, toma o expert como exemplo o caso da cidade de São Francisco do

Sul (SC):

“Não há dados amostrados de séries longas de maré no porto de São

Francisco do Sul. Há dados esparsos no tempo e no espaço, o que dificulta

estabelecer uma correlação entre eles. Entretanto, em face da proximidade

espacial deste local com a estação maregráfica de Cananéia, SP (distante

157,4 km ao norte) é lícita a adoção da taxa de variação secular do nível

médio do mar de +38 cm por século, na localização geodésica da LPM/1831

em São Francisco do Sul, SC, cuja variação total de 1831 até 2002 resulta

90

LIMA. Obéde Pereira Lima. Op. cit., p.30

72

no valor de +64,98 cm. Isto equivale a dizer que o nível médio do mar no

ano de 1831, nestas localidades, encontrava-se 65 cm abaixo do nível médio

atual.”

Para além dos elementos naturais, a que todos os locais estão sujeitos, há ainda

elementos acidentais que dificultam precisar qual a exata localização da linha preamar do ano

de 1831.

Exemplo destes elementos são os aterros artificiais feitos nas praias de Santos –

jardins – como se observa nas considerações feitas no agravo de petição n. 439, em outubro

de 1948, ao Tribunal Regional de Recursos:

“No caso que estudamos é patente que a praia é assoriada naturalmente,

fazendo recuar a linha do preamar: também é sabido que a obra de

embelezamento da praia, envolvendo aterros artificiais, produzem o mesmo

resultado. Os aterros artificiais são de possível determinação (vide anexo n.

8 – perfil transversal dos jardins); porém, como determinar os naturais,

ocorridos desde 1831, quando nessa ocasião não se faziam observações

maregráficas e os levantamentos feitos do litoral utilizavam-se de processos

expeditos e imprecisos, pois visavam apenas a finalidade da navegação?”91

E conclui: “Essa sucessiva superposição de camadas de areia retiradas da Praia torna

completamente falsa qualquer investigação que se faça por meio de sondagens.”92

Assim, aliam-se aos aterros naturais, aqueles produtos das mãos do homem, como se

observa em fotografia da época do aterro para as construções dos canais de Santos:

91

Agravo de petição n. 439, em outubro de 1948, ao Tribunal Regional de Recursos, Agravante: José Bento de

Carvalho e Agravado: Fazenda Nacional, Revista dos Tribunais ltda., São Paulo, p. 14 92

Op. cit., p. 20, Revista dos Tribunais ltda., São Paulo

73

Disponível em: <http://www.novomilenio.inf.br/santos>

Assim, a preamar atual, já afetada pelos inúmeros fenômenos naturais e, por vezes

também os artificiais, dista daquela preamar utilizada como parâmetro legal, não podendo ser

utilizado o critério adotado pela Secretaria do Patrimônio da União.

Em suma: preamar é o auge da maré cheia e contrapõem-se a baixamar.

Preamar médio é a linha, traço ou vestígio deixado na praia pelo bater incessante e

continuo das águas do mar.

Trata-se de linha variável, à mercê de forças astronômicas e naturais, que fazem o

mar avançar (enchente) e recuar (refluxo), no vai e vem das ondas, de dia para outro, e assim

por diante por meses, anos e séculos.93

Este fenômeno deve ser observado em uma ou várias lunações94

, como se observa na

Ordem n. 373, de 12 de julho de 1833: “deve observar-se a maior e menor enchente da maré

de uma lunação e, tomando por ponto médio dele, contar-se 15 braças.”95

93

MADRUGA. Manoel, op. cit. p. 505 94

Ciclo completo das fases das lunares, compreendido entre duas luas novas consecutivas; 95

RDA, vol. 2, p. 283

74

Não destoa do parecer elaborado pelo Dr. Armando Godoi Filho, diretor do Serviço

de Patrimônio da União:

“Para as variações máximas e mínimas do nível das águas dos mares, lagos

ou rios, possam ser consideradas marés, devem elas na sua periodicidade,

no que diz respeito ao intervalo de tempo decorrido sucessivamente entre

aqueles acontecimentos, corresponder, pelo menos aproximadamente, ao

ciclo periódico de uma lua, como principal agente das marés, nas suas

passagens repetidas pelo meridiano do lugar.”96

É possível, ainda, a utilização do período de um ano/calendário, como já dispôs a

Ordem n. 616, de 21 de novembro de 1833:

“Na falta de marés regulares que produzam o preamar médio dentro de uma

lunação, para assim achar os pontos de contagem para as quinze braças

determinadas no regulamento, sirvam para o mesmo fim os pontos aonde

chegam as águas na sua elevação médio no decurso de um ano, produzida

esta elevação, ou pela ação dos ventos em algumas das estações do ano, ou

por maior cópia de águas nas fontes, que alimentam os rios que banham o

litoral.”97

Assim, a precisão do preamar médio é para Saturnino de Brito:

“(...) a média das alturas de preamar observadas em condições de não

comprehenderem casos extremos; as alturas do preamar por ocasião dos

ventos fortes serão desprezadas; toma-se em cada observação, no caso de

determinação rigorosa, a pressão barométrica para fazer as correções

conhecidas (0,133 por 0,001 conforme a pressão é inferior ou superior a

760mm).”98

96

RDA, vol. 2, p. 279 97

RDA, vol. 2, p. 283 98

MADRUGA. Manoel. Op. cit., p.. 542

75

Para Aarão Reis, citado por Rosita de Sousa Santos:

“Preamar médio é a superfície de nível, em sua acepção a mais geral,

correspondente à posição média de preamares observadas durante uma ou

várias lunações, de maneira a attender-se não só à ação conjuncta da lua e

sol, como também à acção das causas perturbadoras normaes e a reduzir ao

mínimo a influência das causas accidentaes ou anormaes.”99

Hão de ser consideradas, portanto, as condições normais, como assinala Manoel

Madruga:

“A lei quis evitar que para linha onde se contam os 33 metros de marinha,

fosse adoptada a que corresponde ao logar onde as águas do mar só

chegam em marés excepcionalmente grandes, para adoptar a que

corresponde ao limite onde chegam as marés normaes de preamar;”100

Na instrução normativa n. 1, do Serviço de Patrimônio da União, de 30 de março de 1981, há

orientação em seu item 118:

“A linha da preamar média de 1831 é determinada pela intersecção do

plano horizontal que contém o ponto definido pela cota básica, com o

terreno, considerando-se, caso tenha ocorrido qualquer modificação, sua

configuração primitiva.”101

O processo prático, em regra geral, para sua determinação consiste em observar o

preamar durante uma ou várias lunações, em condições normais, como assinala Aarão Reis:

“O processo scientífico mais practico para determinar o nível de preamar

médio com a necessária exatidão consiste em observar os preamares

99

SANTOS. Rosita de Sousa. Op. cit. p. 120, em Revista n. 12, 1905, do Clube de Engenharia 100

MADRUGA, Manoel. Op. cit, p. 505 101

Instrução normativa n. 1, de 30 de março de 1981 (Serviço do Patrimônio da União)

76

consecutivos durante uma lunação, pelo menos, todas as vezes que o mar

estiver em condições normaes. – Si se trata de praias inclinadas estas

observações devem ser feitas por meio de estacas graduadas fincadas em

fileiras, no sentido normal à linha do litoral, tendo o cuidado de referi-las

previamente a um ponto fixo da terra e, si além disso, a costa extensa e de

sensível irregularidade, deve-se fixar ao longo do litoral, em diversos

pontos, outras tantas estacas em sentido normal à linha do llitoral, de forma

a ter-se em cada observação o preamar no próprio logar em que se

necessita determina-lo – E si se trata de uma costa abrupta, determina-se o

preamar ainda por meio de estacas, ou por meio de maregrapho registrador

em local abrigado, mas onde o phenomeno da maré se possa manifestar

livremente.

No terrenos marginais de um rio sujeito à maré, as operações devem ser

feitas estando o rio em seu regimen normal e próximo ao local onde

interessa a determinação o preamar.”102

Assim, a linha do preamar médio é o traço ou vestígio deixado na praia pelo bater

incessante e contínuo das águas do mar, a ser medido em uma ou várias lunações e calculado

como média aritmética das maiores enchentes ordinárias compreendidas neste período.

Além da determinação da linha da preamar, a localização exata dos terrenos de

marinha estão a depender de outro critério informativo: o espacial ( 33 metros).

Diga-se, a limine, que a extensão das faixas marginais há de ser contada da linha do

preamar médio do ano de 1831 em direção à terra, na medida de 33 metros.

Curiosamente, apontam que a origem dos 33 (trinta e três) metros, seria a distância

alcançada por uma bala de canhão.

Trata-se de medida comumente utilizada para época e igualmente presente no

estabelecimento da soberania marítima, cuja delimitação era dada pelo alcance de um tiro de

102

SANTOS. Rosita de Sousa. Op. cit. p. 121

77

canhão colocado na costa portuguesa: esta foi a regra adotada pelo reino lusitano, no alvará de

04 de maio de 1805.103

Sob esta mesma ótica, agora no tocante ao critério temporal, explica-se que o ano de

1831 foi utilizado em razão da tradição de quase dois séculos, iniciada com a lei orçamentária

de 15 de novembro de 1831.

Sua eleição pelo legislador acarretou substanciais complicações.

Embora tenha havido tentativa de modificação deste critério pelo Decreto-lei

4.120/42 (art. 3º), utilizando-se como parâmetro a preamar máxima atual, retomou-se, com a

edição do Decreto-lei 9760/46, à tradição, mantendo-se como marco o ano de 1831.

Contudo, este apego ao conceito clássico, gera subjetividade e arbitrariedades – e

talvez, por isto, sua adoção.

Assim, sobre a determinação do preamar médio de 1831, Themístocles Cavalcanti

cita a Resolução do Conselho de Estado, Seção da Fazenda, de 30 de abril de 1868:

“A lei citada de 1831 teve por fim determinar no litoral do Império a zona

constitutiva de marinhas. Na falta de legislação expressa, que fixasse os

limites de tais terrenos, o governo lançou mão da tradição que a tal respeito

havia na repartição de Marinha, por onde se expediam as concessões e

deliberou que por ela se entendesse toda a superfície compreendida entre os

pontos a que chegam as águas na alta da maré nas costas do mar e margens

dos rios navegáveis e a linha que daqueles dista 15 braças (Relatório do

Ministério da Fazenda de 1833, pág. 24 e Instruções de 14 de novembro de

1832, art. 4º).”104

103

CORDEIRO, Antonio Menezes. Tratado de Direito Civil Português. I Parte Geral, Tomo II, Coisas, 2ª ed.,

2009, Coimbra: Almedina, p.62 104

CAVALCANTI. Themistocles Brandão. Op. cit., p. 508

78

Desta forma, indispensável se faz a remontagem do preamar médio do ano de 1831,

não servindo a linha atual, como ressalta, ainda, Themistocles Cavalcanti citando resolução

imperial:

“(...) por marinhas não se deviam entender os terrenos atualmente banhados

pelo mar, mas sim os que tinham sido concedidos a Ilma. Câmara, isto é, 15

braças de marinhas, na época da Lei pertencendo os acrescidos e aluviães

ao Estado que foi depois, pela Lei de 27 de setembro de 1860, autorizado a

aforá-la.” 105

Embora seja inegável a necessidade de precisar a linha do preamar do ano de 1831,

sua dificuldade é evidente.

Por esta razão, foi disposto no art. 10 do Decreto-lei 9.760/46, que a linha do

preamar médio de 1831 será feita “à vista de documentos e plantas de autenticidade

irrecusável relativos a esse ano, ou, quando não obtidos, da época que do mesmo mais se

aproxime.”

Desta forma, subsidiariamente, são permitidas outras referências:

“Essa linha deve ser tanto quanto possível a do estado do lugar em 1831, e

o conhecimento de sua posição dependerá principalmente da iniciativa

pessoal do engenheiro, visto serem variadíssimos dos elementos a que

poderá recorrer em cada caso particular: em virtude do que, apenas são

indicadas aqui, de modo geral, as referências que podem orientar o estudo a

que se refere o item 7, para locação, em planta, da linha do preamar. Tais

referências são: a observação da natureza do terreno, das obras municipais

executadas, de velhos edifícios e da vegetação; o exame de plantas antigas,

títulos, concessões e processos, bem como informações de moradores

locais.”106

105

CAVALCANTI. Themistocles Brandão. Op. cit., p. 509 106

RDA, vol.2, op. cit., p. 291

79

Contudo, mesmo com a utilização de critérios suplementares, a tarefa não será menos

árdua, como anota Mariana Passos de Freitas:

“Nos termos do Dec.-lei 9.760, de 05.09.1946, devem ser usadas como base

“plantas de autenticidade irrecusável relativas àquele ano, ou, quando não

obtidas, à época que do mesmo se aproxime. É evidente a enorme

dificuldade de localização de tais plantas, tendo em vista o longo tempo

decorrido.”107

Já Manoel Madruga em 1928, afirmava que àquela época, inexistiam documentos ou

elementos aptos a determinar a linha do preamar de 1831, verbis:

“Pelo decreto n. 4.105 de 1868 se deprehende que tenha sido demarcada em

toda a costa do Brasil a linha do preamar médio no tempo da execução da

lei de quinze de novembro de mil oitocentos e trinta e um e que essa linha

sirva sempre de testada de terreno de marinha.

É claro que hoje, decorridos oitenta e um annos da execução dessa lei, não

se encontre elementos que permitam marcar ou affirmar qual era a linha do

preamar médio nessa época, máxime em lugar sujeito a fortes ventos, com o

mar constantemente batendo e onde se levantam construcções permanentes

que contribuem para modificar o regimem das águas e alterar a

topographia e aspecto da praia.”108

Assim, tal método, senão impraticável, é de difícil aplicação, consoante aponta a

remansosa doutrina.

A dificuldade criada pela utilização da linha da preamar média do ano de 1831

culmina na utilização de critérios – afora os legais – tomando-se por público o que é

particular.

107

FREITAS, Mariana Almeida Passos. Zona Costeira e meio ambiente, 2006, p. 174 108

MADRUGA, Manoel. Op. cit., p. 503

80

Interessante alternativa é a utilizada por Portugal, cuja linha de testada não é pautada

através de datas.

3.1.1. A linha de jundu e outros vestígios deixados pelas águas do mar

“Jundu s.m. vegetação rasteira do litoral, próxima às dunas e aos areais das

praias; nhundu, etim. Segundo Nascentes, tupi jun’du, atestado em Teodoro

Sampaio e em Silveira Bueno como nhu tu, campo sujo.”109

Trata-se de linha deixada por pequenina vegetação - o jundu -, sempre existente além

das praias e para o interior das terras que com elas confinam.

Vale dizer: nas áreas de restingas - cordões litorâneos - descortina esta espécie de

vegetação – o jundu, também conhecida como escubre ou vegetação de restinga. Enquanto em

outros lugares do país, chamam-na de vegetação de restinga ou escumbre, em regiões do

litoral paulista, prefere-se a denominação jundu.110

Trata-se de vegetação xerofítidica, que deflagra a existência do ecossistema praial.

A constante urbanização das zonas litorâneas tem contribuído para o

desaparecimento do jundu, o que importará, em poucos anos, em sua extinção.

Com efeito, sua aparência, como a etimologia sugere, remete a um areial sujo pela

mata, como retratado por Benedito Calixto:

109

Dicionário Houaiss da língua portuguesa, Edit. Objetiva Rio de Janeiro, 2001, 1ª ed., p. 1692 110

AZEVEDO, Aroldo de. Brasil – A Terra e o Homem. v. 1. 2. ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional. p.

545).

81

Disponível em: <http://www.novomilenio.inf.br/santos>

Sem embargo, seu conhecimento é indispensável para os estudiosos do tema, pois

utilizado como critério prático para demarcação dos terrenos de marinha.

Ou seja, na ausência de elementos aptos à demarcação da linha da preamar de 1831,

tal linha é utilizada – ilegalmente - em suprimento ao parâmetro legal, como já se observava

nas instruções dadas pelo ofício n. 155, de 14 de setembro de 1903:

“Considerando que os vestígios mais acentuados da ação continuada do

mar na costa, nela assinalam linha em posição inferior ao do logar onde

elas chegam nas maiores marés; que a lei não poderia ter em vista reservar

para os seus serviços a que são destinadas as marinhas, terrenos banhados

pela água do mar; que usando a preamar médio , a lei quis evitar que para

a linha de onde se contam os 33 metros de marinha, fosse adotada a que

corresponde ao logar onde as águas do mar só chegam em marés

excepcionalmente grandes, para adotar a que corresponde ao limite onde

chegam as águas em marés normais da preamar; o fim que se tem em vista é

reservar à borda da água uma faixa de 33 metros de terreno enxuto para

certos serviços a que nenhum processo em condições práticas atende, sem

exorbitar de modo mais completo, a esse fim, do que a adoção, como testada

dos terrenos de marinha, da linha assinalada por vestígios assinalados pelo

mar nas praias e rochedos, indicando que as águas neles batem

incessantemente e constantemente; deve a demarcação dos terrenos de

marinha ser feita, contando-se 33 metros para o lado da terra, a partir da

82

linha gravada pelo mar, que é a do preamar médio a que se refere o

decreto.”111

Tal recomendação é anotada, ainda, por Manoel Madruga:

“Praticamente e approximadamente para o estado atual do logar, se a reconhece,

pela linha de vegetação nas praias, das ostras, mariscos e das erosões feitas pelo

bater constante e incessante das águas nos rochedos mergulhados.

A linha assim determinada só pode ser aceita na impossibilidade de se determinar

a referente ao anno de 1831. Todavia, conhecê-la já é facilitar a pesquiza da

verdadeira.”112

Este é o critério prático adotado pela Secretaria do Patrimônio da União, em repulsa

ao Decreto-lei 9760/46, bem como às instruções normativas n.02, de 12 de março de 2001 e

Orientação Normativa GEADE-002, de 12 de março de 2001, sob alegação de ausência de

parâmetros científicos para determinação.

Não diferem decisões dos tribunais

Contudo, embora largamente utilizada até os dias atuais, mesmo ante a ausência de

critérios aptos a demarcação, não legitima sua substituição, como assinala Diógenes

Gasparini:

“Em razão da falta de demarcação, o Judiciário, os particulares e os órgãos

públicos, inclusive a SPU, tem aceito outro critério, diferente do previsto no

Decreto-Lei 9.760/46, para determinar a linha que separa as marinhas das

terras particulares. Substituem os peritos a linha da preamar média pela

linha de jundu, caracterizada pelo início de uma vegetação (jundu), sempre

existente além das praias e para o interior das terras que com elas

confinam.”113

111

Processo n. 112

MADRUGA, Manoel. Op. cit., p. 504, cit. Ramos, Daniel de Souza, Terrenos de Marinha, p. 29-30 113

GASPARINI, Diógenes. Direito Administrativo. 11ª ed., Ed. Saraiva, 2006, São Paulo, p.865.

83

Outrossim, neste sentido acórdão citado por Jacintho Guglielmi, de lavra do Des.

Bonfim Pontes, onde afirma-se textualmente: “os terrenos de marinha deveriam ser medidos

da linha de jundu para dentro da terra.”114

Tal recomendação ainda é vista nos dias atuais: “Se houver a existência de jundu

adjacente à faixa de areia, inicie a contagem a partir dessa vegetação.”115

Este critério para além de não ser apropriado, é de flagrante ilegalidade, pois

dissonante ao prescrito no art. 2º, do mencionado decreto.

Isto porque, por este método encontraremos – quando muito, se reunidas

determinadas circunstâncias – a linha da preamar atual, sendo a referência legal ao ano de

1831, como ensina Manoel Madruga:

“Com o incessante vaivém das águas, assim originado pela arrebentação

das vagas, forma-se aos poucos uma orla de montículos, que sobre a paia

indica o alcance mais comum da maré; pode esta orla servir de marco para

assinalar aproximadamente os limites do preamar médio, quando no ponto

considerado a amplitude da maré é diminuta a inclinação da praia

relativamente forte e esta é mais ou menos protegida contra a ação das

vagas por meio de ilhas e bancos; não se reunindo porém semelhante

conjunto de circunstâncias , tais indícios podem induzir a graves erros de

apreciação por se acharem geralmente acima do nível do mar,

correspondendo o preamar médio, sendo que, por exemplo sobre as praias

inclinadas acontece com qualquer sobrelevação acidental da água, por

pequena que seja, espraiar-se esta em lençol por sobre um trato de sensível

extensão, ficando assim sobremodo incerta a demarcação dos pontos, a

partir dos quais seja haja de efetuar-se a medição dos terrenos de

marinha.”116

114

Cf. citação de Jacintho Guglielmi, na obra A propósito dos terrenos de marinha, Palácio do Livro, 1968, p.

164-8. 115

RODRIGUES, Rodrigo Marcos Antônio. Curso de Terrenos de Marinha e seus acrescidos, São Paulo: Nelpa,

2012, p.144

84

E, conclui o renomado doutrinador:

“Indicação um tanto mais segura oferecem os vestígios bem visíveis que as

oscilações do mar deixam sobre os rochedos que porventura emergem

isolados nas proximidades da praia, ou se elevam à beiramar; são uma série

de listas horizontais abrangendo em uma altura uma estreita faixa, cujas

linhas medianas poderia em alguns casos indicar proximamente o nível

procurado do preamar médio, sendo que então a cota correspondente

deveria ser transportada sobre a praia pelo processo atual de

nivelamento.”117

Assim, segundo Madruga, os traços gravados nos rochedos, seriam forma mais

segura, do que a sempre utilizada linha de jundu.

Aliás, via de regra, a linha de jundu estará localizada bastante a frente da linha da

preamar do ano de 1831, apenas considerando-se o aumento do nível do mar, sem qualquer

consideração sobre os aterros artificiais.

Desta forma, usurpam-se terras privadas, tomando-se por públicas.

Nada obstante, tratam-se de métodos arcaicos, incompatíveis com a nova tecnologia

já capaz de precisar, senão com exatidão, com grande aproximação a linha da preamar do ano

de 1831, como defende Obéde Pereira Lima.

Enfim, importa destacar que a ausência de parâmetro científico, não poderia ser

utilizada como escusa para utilização de critério tão dissonante, qual seja: a linha de jundu.

E diga-se mais, o simples fato de ter sido empregado há anos, tanto pelo Serviço do

Patrimônio da União, quanto pelo próprio judiciário, não legitima critérios contrários à

própria lei.

117

MADRUGA, Manoel. Op. cit., p. 511

85

3.1.2. Critérios utilizados pela Secretaria de Patrimônio da União

Nos termos do artigo 9º do Decreto-lei n. 9.760/46, é atribuição do Serviço do

Patrimônio da União a demarcação da linha do preamar médio do ano de 1831.

Todavia, já à época do citado decreto, conheciam os legisladores as dificuldades,

convenientemente adotadas, para calcular a preamar média do ano de 1831.

Por força disto, inseriu-se a ressalva contida no artigo 10: “a determinação será feita

à vista de documentos e plantas de autenticidade irrecusável, relativos àquele ano, ou

quando não obtidos, à época que do mesmo se aproxime.”

Contudo, este dispositivo - de flagrante ilegalidade - deixa ao arbítrio das autoridades

a adoção de critérios outros - que não o legal – com margem às arbitrárias demarcações

presumidas.

Não é raro encontrar-se a crença de que a Secretaria do Patrimônio da União arquiva

plantas e documentos históricos de todo o terreno nacional, os quais remontam ao ano de

1831, e por conseguinte, dão ensejo as demarcações.

Tal convicção é senão desprovida de fundamento, dissonante da grande realidade

nacional, dando ensanchas às arbitrariedades.

Com respaldo dos artigos 9º ao 14º, a Secretaria de Patrimônio da União consagrou

praxe por intermédio de instruções normativas.

O Decreto-lei n. 3.725/2001, regulamentador da Lei nº 9.636/1998, dispôs sobre a

regularização, administração, aforamento e alienação de bens imóveis de domínio da União,

poderes atribuídos a Secretaria de Patrimônio da União (art. 19).

Para o atendimento daquela finalidade, baixou a Instrução Normativa IN-Nº 2, de 12

de março de 2001, a qual revogou as disposições da IN-Nº 1, de 30 de março de 1981.

86

Posteriormente, transformou esta IN-2/01 em Orientação Normativa “ON-GEADE-

002/01”.118

Atualmente esta é a norma que disciplina a demarcação de terrenos de marinha.

Os procedimentos praticados atualmente para a determinação da linha de preamar do

ano de 1831, permanecem inalterados e arcaicos, a despeito das recentes inovações

tecnológicas.

Da simples leitura da Orientação Normativa ON-GEADE 002/2001, deflagram-se os

equívocos.

Os critérios praticados pela SPU na localização da linha de preamar do ano de 1831 e

na demarcação dos terrenos de marinha estão definidos especificamente nos itens: 4.6

Determinação da Posição da Linha de Preamar Média de 1831 e da Linha Limite de

Terrenos de Marinha; 4.7. Pesquisas em Documentos Antigos; e 4.8 Determinação da Cota

Básica.

Várias incoerências estão contidas nesta norma. Calha ao exame, v.g., o item 4.6.1.1,

ao afirmar em premissa que “terrenos de marinha são terrenos enxutos”.

Tal afirmação não corresponde à realidade - terrenos de marinha não são,

necessariamente, enxutos.

Isto porque, conforme visto, a preamar é a média das maiores enchente ordinárias.

Sendo assim, parte do terreno é coberta pelas águas do mar durante as preamares,

tornando-os encharcados.

Desta forma, não há como afirmar-se que as marinhas são terrenos enxutos.

Outro ponto que merece destaque é o item 4.8.2, ao qual a cota da preamar média é

a média aritmética das máximas marés mensais.

118

ON-GEADE: Orientação Normativa da Gerência de Área de Cadastramento e Demarcação

87

Preamar média, a ser medida nas enchentes ordinárias, não pode ser confundida com

média aritmética das máximas marés mensais, na qual não há desprezos.

Os respectivos valores médios são, gritantemente, diferentes.

Assim, os critérios atualmente utilizados pela Secretaria de Patrimônio da União,

partem de premissas equivocadas, contidas na Orientação Normativa 002/2001, a qual

reclama urgente modificação, posto que em flagrante ilegalidade.

3.1.3. Critérios propostos por Obéde Lima

Obéde Pereira de Lima, Oficial Superior da Marinha do Brasil e engenheiro cartógrafo, em

tese de Doutorado para Universidade Federal de Santa Catarina, defende método científico

para determinação da linha do preamar do ano de 1831. Divide-o em 5 (cinco) etapas, a saber:

“(...) a primeira atividade para a localização planialtimétrica da linha da

preamar média na costa marítima é a obtenção dos dados amostrados da

maré durante um período mínimo de um ano comum. A segunda ação é a

realização das atividades de gabinete, utilizando-se das ferramentas da

Informática no processamento dos dados amostrados de marés, efetuando-se

a análise harmônica e a retrovisão da preamar média para o período

desejado (ano de 1831).

88

A terceira tarefa consiste na execução das atividades geodésicas para a

localização planimétrica e altimétrica de pontos da linha de costa e dos

respectivos perfis transversais da praia na área de estudo, sobre os quais

será localizada a linha da preamar média calculada. A quarta atividade é a

realizada em trabalho topográfico no campo, quando se executa a

localização geodésica da LPM/1831 e da correspondente "Linha Limite dos

Terrenos de Marinha - LLM".

Por fim é realizada a quinta e última atividade correspondente à elaboração

dos mapas e cartas cadastrais, representando os elementos caracterizadores

dos terrenos de marinha e de seus acrescidos, com todas as parcelas

imobiliárias envolvidas, com seus respectivos atributos.”119

Esta atividade estaria representada no gráfico:

Disponível em: <http://www.novomilenio.inf.br/santos>

Embora – por nós - não se possa precisar a eficiência do método defendido pelo

professor Obéde, trata-se, no mínimo, de valiosa tentativa de sistematização, a caminho de sua

verdadeira delimitação.

Sua tese é sempre citada quando o assunto são terrenos de marinha.

119

LIMA, Obéde Pereira. Op. cit. p. 32

89

Conquanto não haja, ainda, comprovação de sua eficácia, é método científico que, no

mínimo, deveria ser estudado pela Secretaria do Patrimônio da União.

3.2. Processo administrativo de demarcação

É o decreto-lei 9760/46, quem delineia o processo administrativo a ser seguido pela

Secretaria de Patrimônio da União para determinação da preamar média do ano de 1831.

Consoante disposto no artigo 11, com redação dada pela Lei 11.481/2007, a

Secretaria do Patrimônio da União deve convidar os interessados, por edital, para que no

prazo de 60 (sessenta) dias ofereçam a estudo plantas, documentos e outros esclarecimentos

sobre o terreno demarcando.

Diferentemente da redação primitiva, a qual dispunha que os interessados certos

deveriam ser convidados pessoalmente, a nova redação estabelece indistintamente que os

certos e incertos devem ser convidados por edital.

Contudo, em recente e brilhante julgamento proferido pelo Supremo Tribunal

Federal, em Medida Cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade ajuizada pela Mesa da

Assembléia Legislativa do Estado de Pernambuco, restou decidido:

“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. MEDIDA CAUTELAR.

ART. 11 DO DECRETO-LEI 9.760/46, NA REDAÇÃO DADA PELA LEI

11.481/2007. VIOLAÇÃO AOS PRINCÍPIOS DO CONTRADITÓRIO E

AMPLA DEFESA. OCORRÊNCIA. MEDIDA CAUTELAR DEFERIDA.

I – Ofende as garantias do contraditório e ampla defesa o convite aos

interessados, por meio de edital, para subsidiar a Administração na

demarcação da posição das linhas do preamar médio do ano de 1831, uma

vez que o cumprimento do devido processo legal pressupõe intimação

pessoal.

90

II – Medida Cautelar deferida.”120

Esta decisão seguiu a linha das já reiteradas decisões do Superior Tribunal de Justiça. Verbis:

PROCESSUAL CIVIL E DIREITO ADMINISTRATIVO. LAUDÊMIO. NÃO

INCIDÊNCIA. PREQUESTIONAMENTO. AUSÊNCIA. SÚMULAS 282⁄STF

E 211⁄STJ. TERRENOS DE MARINHA. DEMARCAÇÃO. CHAMAMENTO

DAS PARTES INTERESSADAS POR EDITAL. NULIDADE. CITAÇÃO

PESSOAL. NECESSIDADE.

(...)

2. Por força da garantia do contraditório e da ampla defesa, a citação dos

interessados no procedimento demarcatório de terrenos de marinha, sempre

que identificados pela União e certo o domicílio, deverá realizar-se

pessoalmente. Somente no caso de existirem interessados incertos, poderá a

União valer-se da citação por edital.

3. Após a demarcação da linha de preamar e a fixação dos terrenos de

marinha, a propriedade passa ao domínio público e os antigos proprietários

passam à condição de ocupantes, sendo provocados a regularizar a situação

mediante pagamento de foro anual pela utilização do bem. Permitir a

conclusão do procedimento demarcatório sem a citação pessoal dos

interessados conhecidos pela Administração representaria atentado aos

princípios do contraditório e da ampla defesa, bem como à garantia da

propriedade privada.

5. Recurso especial conhecido em parte e provido.

(REsp 1146557⁄SC, Rel. Ministro Castro Meira, 2ª Turma, julgado em

25⁄05⁄2010, DJe 09⁄06⁄2010)

E, ainda:

TRIBUTÁRIO E ADMINISTRATIVO. AGRAVO REGIMENTAL. AÇÃO

ANULATÓRIA DE DÉBITO FISCAL. TAXA DE OCUPAÇÃO

DECORRENTE DA DEMARCAÇÃO DE TERRENO DE MARINHA.

120

Medida Cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 4.264, relator Ricardo Lewandowski, j.

16/03/2011

91

PROCESSO ADMINISTRATIVO DEMARCATÓRIO. DECRETO-LEI

9.760⁄46. INTERESSADOS CERTOS. INTIMAÇÃO POR EDITAL.

NULIDADE. PRINCÍPIOS DA AMPLA DEFESA E DO CONTRADITÓRIO.

INOBSERVÂNCIA. VIOLAÇÃO AO ART. 535, II, CPC. INOCORRÊNCIA.

1. A exegese Pós-Positivista, imposta pelo atual estágio da ciência jurídica,

impõe na análise da legislação infraconstitucional o crivo da principiologia

da Carta Maior, que lhe revela a denominada “vontade constitucional”,

cunhada por Konrad Hesse na justificativa da força normativa da

Constituição.

2. Nesse segmento, a interpretação dos artigos do Decreto-Lei nº 9.760⁄46

não pode se distanciar dos postulados constitucionais da ampla defesa e do

contraditório, corolários do princípio mais amplo do due process of law,

também consagrados no âmbito administrativo.

3. Desta sorte, revela-se escorreito o acórdão regional, segundo o qual,

identificados os interessados no procedimento de demarcação dos terrenos

de marinha, cabia à Administração Pública intimá-los pessoalmente a fim

de oportunizar-lhes a defesa de seu título, o que eiva de nulidade o ato

administrativo pertinente (Precedente do STJ: AgRg no Ag 1028974 ⁄ RJ,

Segunda Turma, DJe 05⁄08⁄2008; REsp 827680 ⁄ SC, Primeira Turma, DJe

05⁄06⁄2008; REsp 724741 ⁄ SC, Relator Min. LUIZ FUX, Primeira Turma,

DJ 15⁄02⁄2007; REsp 550146⁄PE, publicado no DJ de 05.12.2005).

5. Agravo Regimental desprovido.(AgRg no REsp 892.847⁄SC, Rel. Ministro

Luiz Fux, 1ª Turma, julgado em 18⁄08⁄2009, DJe 10⁄09⁄2009)

Assim, os procedimentos demarcatórios executados sem o convite pessoal dos

interessados certos e determinados, podem ser declarados nulos.

Ou seja, hão de ser convidados os interessados certos pessoalmente e os incertos por

edital para que participem do processo demarcatório.

Sem embargo, pelo teor do artigo 13, determina-se que sejam realizados trabalhos

topográficos, para que, assim, o Chefe do órgão local da Secretaria do Patrimônio da União

determine a posição da linha em despacho.

Esse despacho deve ser publicado por meio de edital, dando-se ciência aos

interessados e abrindo-lhes o prazo de 10 (dez) dias para impugnação. Havendo objeção, a

92

autoridade local deve reexaminar a sua decisão e, ex officio, recorrer ao Diretor da Secretaria

do Patrimônio da União, sem prejuízo do recurso das partes interessadas.

Cabe, ainda, recurso da decisão do Diretor, no prazo de 20 (vinte) dias, para o

Conselho de Terras da União.

Em suma: o procedimento adotado pela Secretaria do Patrimônio da União, que, sem

o convite pessoal dos interessados, determina, de modo arbitrário e unilateral, a linha da

preamar-média de 1831, é ilegal e pode ser considerado nulo de pleno direito, pois ofende os

princípios do contraditório e ampla defesa.

93

Capítulo IV – Enfiteuse

4.1.Evolução do instituto

Enfiteuse do grego enfuteúsis.

Vocábulo derivado de futón, que juntamente com o afixo-prefixo em, aliado ao afixo-

sufixo sis e ao radical futeu (com origem futón), resultou em em-futeu-sis.

Ensina João de Freitas Guimarães:

“O significado de fiton é planta, objeto do estudo da botânica (em grego,

“Botanikós, Botaniké, Botanikón”, respectivamente gêneros masculino,

feminino e neutro), ou latino Phytologia. O prefixo em leva a ação verbal à

idéia de penetração, ida a fundo, interiorização, próprias dos

enraizamentos. O sufixo “sis” a sua vez exprime resultado da ação, e se

compatibiliza ou harmoniza com o prefixo referido, que dá o sentido e

direção da ação verbal. Esta fica expressa no radical futeu, que significa

plantar, produzir.”121

A etimologia da palavra está a nortear a idéia do instituto, cuja significação nos

remete ao cultivo, plantação e semeadura das terras.

Embora a origem do instituto seja deveras controversa, muitos apontam-na para a

antiga Grécia.

Maria Helena Diniz, ensina que suas origens encontram-se no próprio direito grego,

cujo translado deu-se para o direito romano, por volta do século V a.c., em fusão com a ager

vectigalis ( arrendamento público).122

121

GUIMARÃES, João de Freitas. Vocabulário Etimológico do Direito. Santos: Gráfica Atribuna, 1991, p.106 122

DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro, vol. 4. 6ª ed., São Paulo: Saraiva, 1989, p. 241

94

Não difere a opinião de Washington Monteiro de Barros, acrescentando que a

migração do instituto deu-se por intermédio das províncias helênicas, com existência concreta

apenas no século V da era cristã, sob império de Zenon.123

Luiz da Cunha Gonçalves, leciona que, sua origem grega, data das repúblicas e dos

reinos de Esparta e Lacedemônia, consistindo o instituto em concessões que os poderes

públicos faziam aos particulares, com vistas no cultivo de terras públicas incultas, ante a

impossibilidade direta pelo Estado. 124

Acrescenta, o doutrinador, que o contrato de arrendamento não se prestava a garantir

o agricultor, sujeitando-o à retomada estatal, justamente quando a terra iniciava a produzir,

daí a larga utilização do instituto da enfiteuse.

Mesma necessidade social econômica, segundo ele, teria suscitado idêntica

instituição jurídica na Roma antiga, embora a denominação fosse diversa ( locação perpétua ),

com a incorporação do termo emphyteusis, apenas nos tempos do império.125

Conquanto seja praticamente unânime entre os doutrinadores a atribuição do contrato

enfitêutico à antiga Grécia – até mesmo pela etimologia da própria palavra - o certo é que não

foram encontradas fontes legislativas, nos exatos moldes do instituto.

Outrossim, vale transcrição de pequeno trecho de interessante decreto sobre a

fundação da colônia de Brea, na antiga Grécia, com data de 445 a.c., que trata justamente

sobre a distribuição das terras públicas. Verbis:

“Face A: (...) Os colonos vão dar à colônia quanto desejarem. Deverão

eleger dez geonomoi, um de cada tribu (phylé), que deverá distribuir a terra.

Damóclides deverá ser o governador da colônia e deverá fazer o melhor

123

BARROS, Washington de Barros.Curso de Direito Civil, 3º vol., 17ª ed., São Paulo: Saraiva, 1977, p. 269 124

Não destoam as opiniões de Clóvis Bevilacqua, José Carlos Barbosa Moreira, dentre outros. Para estes a

concepção mais conhecida da enfiteuse viria de uma fusão do jus emphyteuticon dos gregos e do ager vectigalis,

dos romanos. 125

GONÇALVES, Luis da Cunha. Tratado de Direito Civil. vol IX, tomo I, 2ª ed., São Paulo: Max Limonad,

1956, p.286-7

95

possível. A terra consagrada aos deuses continuará sendo sagrada, mas não

deverá ser consagrada nenhuma outra terra. A colônia deverá mandar um

boi ao festival das Panatéias e um phallós para o festival das Dionísias.

(...)”126

Trata-se de instrumento de colonização das terras gregas, solução amplamente

utilizada para povoação do território, com cláusulas relativas à distribuição e governo, sem

contudo dispor nada sobre pagamento do cânon, característica marcante dos contratos

enfitêuticos.

Assim, embora a etimologia da palavra seja de origem grega – o que está a indicar

sua presença – não foram encontradas fontes a demonstrar as exatas características do

instituto.

Nada obstante, anota, Menezes de Cordeiro, que a enfiteuse tem suas raízes no

direito oriental do antigo Egito, como fruto da desagregação da propriedade tributária,

incorporada posteriormente pelo Direito Romano (período clássico e pós-clássico) como

direito pessoal. Sua introdução no ordenamento romano coincide com período de decadência e

abandono da agricultura.127

Neste mesmo sentido, Eva Cantarella, leciona que embora com raízes grega, na

prática já era aplicado em Roma e antigo Egito.128

Em que pesem suas origens controversas, que ora norteiam para antiga Grécia, ora

para Roma, ou mesmo para o antigo Egípcio, nos parece que o mais acertado é concluir que a

enfiteuse é instituto revelado no seio social, com atendimento às necessidades econômicas de

plantio e povoação de terras incultas, ante a impossibilidade direta estatal ou dos grandes

latifundiários. Por isso mesmo, coexistiram em todas as mencionadas civilizações, ao passo

126

ARNAOUTOGLOU, Ilias. Leis da Antiga Grécia. Tradução: Ordep Trindade Serra, Rosiléa Trindade

Carnelós. São Paulo: Odysseus, 2003, p. 130 127

CORDEIRO. Menezes. Direitos Reais, vol. I. Imprensa Nacional, Casa da Moeda, 1979, p. 167 128

CANTARELLA, Eva. Diritto Romano, istituzioni e storia. Milano: Mondadovi Education S.P.A., 2010, p.

422

96

que todos estariam corretos – ou seja, ao mesmo tempo, porém em espaços diversos, com

influências naturais advindas de outros povos.

Doutra sorte, e aí, sim possível a afirmação, a evolução do instituto - nos moldes

atuais - deu-se, primordialmente, na Roma antiga e mormente, no direito justinianeu, quando

alçou o status de direito real perpétuo iura in re aliena, protegido por ação real (actio

vectigalis).

Nesta concepção galgada no período de Justiniano – como direito real sobre coisa

alheia - já estavam presentes as características ainda, hoje, discriminadoras do instituto.

Isto porque, a fragmentariedade do domínio não é idéia dos romanos, mas influência

bárbara – para estes ( romanos ) imperava a construção unitária do domínio, por nós herdada.

Assim, a feição contemporânea que conhecemos seria a fusão do agri vectigales

(arrendamento de origem romana), somada ao ius emphyteuticam e ius perpetuum

(arrendamentos originários da parte oriental do império romano), o que resultou no instituto

conhecido pelos romanos como emphyteusis. 129

Caracterizado como contrato sui generis, consistia no direito de cultivar o campo

alheio mediante módica pensão ânua (cânon) e de aproveitá-la como se proprietário fosse –

contudo, sem destruir a substância.

Difere-se, assim, do arrendamento ou da compra e venda, como bem definiu o

Imperador Zenão.130

Na medida da expansão do Império Romano, esta espécie contratual tornou-se

popular pela necessidade de aproveitamento dos grandes latifúndios que se contrapunham à

impossibilidade de cultivo pelo próprio titular do direito de propriedade.

É, pois invenção econômica com vistas à necessidade social.

129

Alves, José Carlos Moreira. Direito Romano, vol. I, 6ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 1987, p. 428 130

ALVES, José Carlos Moreira. Op. cit, p. 430

97

Com a queda do Império Romano e invasão bárbara, modificou-se a feição da

enfiteuse romana.131

No feudalismo, sistema construído sob destroços de um império e sob influência das

leis bárbaras, a enfiteuse assumiu nova concepção: fragmentou-se o direito de propriedade

com a bipartição do domínio, como ensina Lacerda de Almeida:

“À construção unitária do domínio por Direito Romano, contrapõe-se a

idéia medieval do desdobramento da propriedade, que a atribui a mais de

um titular, idéia essencialmente germânica como o feudalismo.”132

Já sob novas vestes, na Idade Média, teve ampla aplicação na propriedade feudal.

O aforamento, o censo e o feudo, eram institutos análogos, em que era tipo o

feudo.133

A Igreja e aristocracia necessitavam de contrato estável que garantisse, sem prejuízo

do direito de propriedade, uma renda paga através do foro.

Atendia-se, assim, ao duplo interesse dos detentores do poder.

Transformando-se a fisionomia do velho instituto, foram outorgados poderes mais

amplos ao senhorio direito (v.g.: caducidade, aumento de pensões e laudêmios), o que acabou

por criar a figura do foreiro-servo, em contraposição a supremacia do senhorio.

O comisso tinha caráter de sanção, como infração da lealdade devida ao suserano.134

Assim, os vassalos cultivavam a terra dos senhores feudais.

Paulatinamente, a aparência do direito de propriedade do cultivador - a dar função

social – somada aos ideais da classe em ascensão – burguesia - levaram à noção do domínio

dividido.

131

ALMEIDA, Francisco de Paula Lacerda. Direito das Cousas. Rio de Janeiro: J. Ribeiro dos Santos, 1908, p.

421 132

ALMEIDA, Francisco de Paula Lacerda. Op. cit. p. 420 133

ALMEIDA, Francisco de Paula Lacerda. Op. cit. p. 421 134

ALMEIDA.Franciso de Paula Lacerda de. Op. cit. p. 423

98

Se por um lado, o senhorio detém domínio direto do bem, o enfiteuta é investido no

próprio conteúdo do direito de propriedade - domínio útil.

Esta bipartição da plena in re potestas, em dominium directum e dominium utile,

acaba por conferir ao enfiteuta o estatuto econômico de verdadeiro proprietário.

Por outro lado, o domínio direto do senhor acaba por se degradar num mero ônus -

direito a renda ou foro, pago pelo explorador.

Ante as faculdades amplas do foreiro, deu-se – tempos mais tarde - azo a criação da

teoria do quase domínio – quasi dominio - por obra dos doutrinadores italianos.135

Contudo, o crescimento das cidades e o êxodo rural, ambos incentivado pelos ideais

liberais burgueses e os ataques ao regime feudal, resultaram na superação da antiga estrutura (

com prestações e privilégios dos senhores sobre as terras), donde deflui a propriedade alodial,

conferida a um proprietário pleno e absoluto.

Estes fatores contribuíram para seu momentâneo esquecimento, ressurgindo tempos

mais tarde.

Diferentemente do influxo sucedido no restante da Europa, em Portugal e suas

colônias, as vantagens conferidas pelo instituto contribuíram para sua sobrevida.

Tal como ocorreu no Império Romano, o Reino lusitano era titular de inúmeras terras

além-mar.

Ante a impossibilidade prática de exercício do domínio pleno, o emprazamento

mostrou-se instrumento adequado, pois necessário aos fins exploratórios – assegurava o

direito de propriedade, com percepção de renda – como sucedeu cá, com relação às marinhas.

Foi somente com as Ordenações Afonsinas (IV, 81), que ingressaram no corpo

legislativo.

135

PIRRO, Vito de. Della enfiteusi, 2ª ed., Milão: Societa Editrice Libraria, 1907, p.9

99

A primeira revolução liberal portuguesa ocorreu somente em 1820, e definitivamente

em 1834, com a legislação de Mouzinho da Silveira. Extinguiram-se os encargos e a

propriedade retomou seu caráter alodial.136

No Brasil – harmonizando com tendência internacional - a enfiteuse foi abolida com

a entrada em vigor do Código Civil de 2002.

No entanto, embora sua figura não esteja mais presente no diploma privado, ficam

ressalvadas as enfiteuses já constituídas, que permanecem sendo reguladas pelas disposições

do Código Civil de 1916 (art. 2038, nCC).

Sem embargo, há expressa exceção legal, no que concerne aos terrenos de marinha

(art. 2038, §2º).

Portanto, as enfiteuses administrativas, reguladas por lei especial, permanecem como

direito real – daí a importância do estudo.

4.2. Características

Direito real sobre coisa alheia, a enfiteuse é o mais amplo dos jus in re aliena - é

direito real imobiliário perpétuo.

Sua função tradicional – e sobretudo social – sempre foi de facultar acesso ao

cultivador, por uma renda módica, ao domínio útil dos terrenos incultos, tornando viável, em

condições econômicas de igual paridade, a construção de edifícios em terrenos alheios.137

Assim, aos contratos celebrados por tempo determinado, considerar-se-ão

arrendamento, como direito pessoal que é (art. 679, CC/1916).138

136

FRAGA, Álvaro Moreira Carlos. Direitos Reais. Lisboa: Livraria Almedina, p. 226 137

LIMA, Pires de. VARELLA, Antunes de. Código Civil Anotado, vol. III, Lisboa: Coimbra editora limitada,

1987, p. 688

100

Seus moldes atuais, tem origem no Direito Romano, com contornos dados pelo

direito medievo, como ensina Lacerda de Almeida:

“Destas duas noções da emphyteuse, isto é, direito amplíssimo, mas direito

real na cousa alheia, como a entendia o direito romano, e de domínio,

embora subordinado, embora inferior (domínio útil) no sentido do Direito

medieval, esta foi incontestavelmente a que prevaleu; attesta-o a história

deste instituto em Portugal e noutros paizes.”139

É, pois contrato por meio do qual transfere-se ao foreiro o jus utendi, jus fruendi e o

jus disponendi - o último mediante aquiescência do senhorio – podendo ainda o enfiteuta

reivindicar a coisa de quem quer que a possua.

Seu conteúdo é similar ao direito de propriedade, sem contudo desnaturá-lo – é

direito real sobre coisa alheia, tal e qual em sua origem: o enfiteuta tem poder jurídico sobre a

coisa de outrem.

É isto que deflui do perfil unitário do direito de propriedade.

Ensina Clóvis Bevilácqua:

“Enfiteuse é o direito real de posse, uso e gozo pleno do imóvel, que o

titular (enfiteuta) pode alienar, e transmite hereditariamente, põem com a

obrigação de pagar uma pensão anual (foro) ao senhorio direto.”140

Para Maria Helena Diniz:

138

Não foi assim em todos os países que se utilizaram do regime enfitêutico: na França, proibiu-se

expressamente o contrato perpétuo. Já na Itália, era permitida a enfiteuse perpétua e temporária. Em Portugal, as

disposições eram análogas ao do Código Civil de 1916. 139

ALMEIDA, Francisco de Paula Lacerda. Op. cit., p. 420 140

BEVILACQUA, Clovis. Código Civil dos Estados unidos do Brasil comentado. 7ª tiragem, edição histórica,

Rio de Janeiro: editora Rio, p. 1145.

101

“(...) vem a ser o direito real sobre coisa alheia que autoriza o enfiteuta a

exercer, restritiva e perpetuamente, sobre coisa imóvel, todos os poderes do

domínio, mediante o pagamento ao senhorio direto de uma renda anual.”141

Também conhecida como emprazamento ou aforamento (art. 648, CC/1916), o

prédio sujeito ao regime enfitêutico – rústico ou urbano – dá-se o nome de prazo, designação

também emprestada para denominar a própria concessão.142

Ao passo que ao titular do domínio direto denomina-se senhorio; ao detentor do

domínio útil, chama-se foreiro ou enfiteuta.

Foro representa a prestação, o cânon a ser pago pelo enfiteuta ao senhorio direto, em

contraprestação a transferência do domínio útil.

A enfiteuse constitui-se por ato inter vivos ou por disposição de última vontade (art.

678, CC/1916), sendo ainda - o domínio útil - passível de usucapião.

Seu conteúdo similar ao direito de propriedade, fez surgir a teoria do quase domínio,

defendida por muitos doutrinadores, que enxergam na figura do enfiteuta um proprietário de

fato.

Embasados na bipartição do domínio e na extensão ampla dos poderes do enfiteuta

cunhada nos moldes do direito medieval, com origens germânicas na fragmentação da

propriedade, entre nós não merece acolhida.

Esta bipartição do domínio, própria desta espécie contratual, foi por muitos

classificada como modalidade de propriedade, em concorrência com a do senhorio direto.

Sucede que embora a terminologia por nós utilizada faça menção a dois domínios,

tecnicamente não há esta fragmentação dominial.

Isto porque nosso modelo de propriedade é unitário – assim como no direito romano

- sendo incompatível com o ordenamento pátrio esta bipartição.

141

DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil, 4º volume. 8ª ed., São Paulo: Saraiva, 1993, p. 255 142

BEVILACQUA, Clovis. Op. cit., p. 1145

102

Em que pese nos direitos do enfiteuta estarem presentes todos os poderes de

proprietário, não há tecnicamente um direito de propriedade – pois ao senhorio, ainda,

reservadas a percepção do foro e a preferência na aquisição do domínio útil, sob pena de

pagamento do laudêmio.

O senhorio, em verdade, cede ao foreiro o exercício dos direitos integradores do

conteúdo dominial, mediante o pagamento do foro.

Estes direitos passam então ao exercício do foreiro, sem qualquer limitação do

próprio conteúdo dominial, que continua íntegro, sem qualquer diminuição.

Se assim não fosse a enfiteuse seria inviável juridicamente, pois a existência do

direito de propriedade é o pressuposto para sua constituição.

Não há, por assim dizer, um duplo domínio, mas um domínio único e pleno, cujo

conteúdo é atribuído a pessoa denominada foreiro.

Conquanto, o mais extenso de todos os direitos reais, com exceção feita ao direito de

propriedade, é sempre um direito real sobre coisa alheia.

Outrossim, não pode o intérprete, se olvidar da essência do instituto e de sua

evolução pelos séculos – a interpretação mais justa sempre será aquela que são considerados

os históricos dos institutos.

Mesmo quando se fala em fragmentação do domínio, refere-se ao direito do

enfiteuta, com vistas ao conteúdo – são faces diferentes de um mesmo instituto.

Em verdade, não há dualidade de domínios, pois não existem dois direitos de

propriedade sobre um mesmo bem.

Ou bem se é proprietário, ou não.

Nada obstante, é contrato bilateral e oneroso, com obrigação de pagamento do foro.

103

4.3. Enfiteuse nos terrenos de marinha

In prima facie, oportuno ressaltar que os terrenos de marinha são bens públicos

dominicais e seu aforamento é regido por lei especial - o Decreto-lei 9760/46 – com utilização

supletiva das regras de direito privado.

As principais disposições acerca da enfiteuse nas marinhas encontram-se nos artigos

64, §2º, 99, parágrafo único; 101, 102, 117 e 103, deste decreto.

O senhorio direto é a União e o enfiteuta, por sua vez, são as pessoas com imóveis

localizados nos denominados terrenos de marinha, com aforamentos já constituídos.

Nos termos do § 2º do artigo 64 do Decreto-Lei nº 9.760/46, “o aforamento se dará

quando coexistirem a conveniência de radicar-se o indivíduo ao solo e de manter-se o vínculo

da propriedade pública.”

Assim, para que reste constituída a enfiteuse mister o preenchimento do duplo

requisito legal: conveniência de radicar o indivíduo ao solo aliado à necessidade de

manutenção da propriedade pública.

A Secretaria do Patrimônio da União é o órgão competente pela aplicação e pelo

gerenciamento dos contratos de aforamento.

Sem embargo, para que imóvel da União seja aforado, necessária se faz, ainda, a

autorização administrativa do Presidente da República, salvo expressa disposição legal nesse

sentido (caput do artigo 99 do Decreto-Lei nº 9.760/46).

Para além, as alíneas do artigo 100 do mesmo Decreto-Lei exigem a audiência dos

ministros da guerra, do Ministério da Agricultura, do Ministério da Viação e Obras Públicas e

das Prefeituras Municipais.

104

O foreiro deve pagar anualmente à União o foro correspondente a 0,6% (seis

décimos por cento) do valor do respectivo domínio pleno, o qual será anualmente atualizado

(caput do artigo 101 do Decreto-Lei nº 9.760/46).

No caso de transferência onerosa do aforamento – que deve contar com o prévio

consentimento da União, que poderá exercer direito de preferência (caput e § 1º do artigo 102

do Decreto-Lei nº 9.760/46) -, deve pagar o laudêmio correspondente a 5% (cinco por cento)

sobre o valor do domínio pleno e benfeitorias (art. 3º, decreto n. 2.398/87).

Supletivamente e naquilo que não contrariar as normas especiais, serão utilizadas às

normas de direito privado, mormente no tocante ao contrato enfitêutico.

4.4. Ocupação

A ausência de demarcação e constituição das enfiteuses administrativas fez com que

a ocupação dos terrenos de marinha fosse uma realidade.

Este título precário e resolúvel de posse é considerado como mera tolerância

administrativa, e pressupõe o efetivo aproveitamento do terreno pelo ocupante, outorgado –

sempre - após a análise da conveniência e oportunidade administrativa (art. 7º, lei 9363/98).

Esta inscrição da ocupação que pode ocorrer ex officio ou a pedido do interessado

(art. 7º, §3º, lei 9363/98), gera a obrigação de pagamento anual da taxa de ocupação, sem,

contudo, importar em reconhecimento de qualquer direito de propriedade ao ocupante ou

mesmo ao seu aforamento, conforme teor do art. 131, Decreto-lei 9760/46.

Em verdade, é situação mais vantajosa à Administração Pública, pois, para além dos

valores pagos pelos ocupantes serem maiores do que para os enfiteutas, permite-se, ainda, a

105

desocupação sumária a qualquer tempo, consoante disposto no art. 132, do supramencionado

decreto.

Neste caso, “até a efetiva desocupação, será devida à União indenização pela posse

ou ocupação ilícita, correspondente a 10% (dez por cento) do valor atualizado do domínio

pleno do terreno, por ano ou fração de ano em que a União tenha ficado privada da posse ou

ocupação do imóvel, sem prejuízo das demais sanções cabíveis”, este é o teor do parágrafo

único, do art. 10, da lei 9363/98.

Desta sorte, contrariamente ao que ocorre nos casos de aforamento constituído, aos

ocupantes não são conferidos muitos dos privilégios garantistas gozados pelos enfiteutas – é

pois posse precária, à mercê das vontades estatais.

De todo modo, ainda que sem resguardo de direitos, os ocupantes ficam obrigados ao

pagamento anual de taxa da ocupação (artigo 127 do Decreto-Lei nº 9.760/46).

A simples inscrição da ocupação na Secretaria do Patrimônio da União, com o

respectivo pagamento da taxa, em nada alteram a situação precária do ocupante (artigo 131 do

Decreto-Lei nº 9.760/46): ficam preservados, assim, o direito da União de imitir-se, a todo

tempo, na posse dos imóveis então ocupados (artigo 132 do mesmo Decreto-Lei).

Pelo art. 9º, da Lei 9363/98, são vedadas a inscrição de ocupações que:

“I - ocorreram após 27 de abril de 2006”; II - estejam concorrendo ou

tenham concorrido para comprometer a integridade das áreas de uso

comum do povo, de segurança nacional, de preservação ambiental ou

necessárias à preservação dos ecossistemas naturais e de implantação de

programas ou ações de regularização fundiária de interesse social ou

habitacionais das reservas indígenas, das áreas ocupadas por comunidades

remanescentes de quilombos, das vias federais de comunicação e das áreas

reservadas para construção de hidrelétricas ou congêneres, ressalvados os

casos especiais autorizados na forma da lei”;

106

As disposições relativas aos direitos dos ocupantes estão reguladas no art. 13 e

seguintes da supramencionada lei (Lei 9363/98).

4.5 Laudêmio, foro e taxa de ocupação

Laudêmio provém do vocábulo latino “laudo emtio ou emptio”, que significa aprovo

a compra.143

Também outrora designado de domínio, terrádego, direito e venda, é prestação

devida como compensação natural pela renúncia do senhorio direto na consolidação do

domínio pleno.144

É obrigação nascida da relação contratual, e apenas indiretamente deriva da lei.

Assim, o laudêmio é indenização devida pelo foreiro ao senhorio direto, pelo não

exercício de seu direito de preferência na alienação do domínio útil, como ensina

Themístocles Cavalcanti:

“O laudêmio, instituição de direito enfitêutico, constitui um dos traços de

ligação do regime de concessões das terras públicas ao direito privado.

Tendo o Estado o direito de opção, em caso de alienação do domínio útil,

deve o foreiro indenizá-lo quando não quiser consolidar seu domínio pleno,

usando do direito de preferência.”145

Sua natureza jurídica não é de imposto, embora inscrito em dívida ativa e sua

cobrança feita mediante executivo fiscal, como ressalta Manoel Madruga, citando o Decreto

Imperial n. 656, de 5 de dezembro de 1849:

143

GONÇALVES, Luis Cunha. Op. cit., p. 322 144

GONÇALVES, Luiz da Cunha. Op cit. p. 324 145

CAVALCANTI, Themistocles, op.cit. p. 485

107

“Laudemio é uma espécie de renda ou proveito particular do domínio e

propriedade dos bens de raiz dados por aforamento e, portanto regulados,

pelas disposições e práticas do direito civil; neste objecto é a Fazenda

Nacional sujeita como qualquer outro proprietário ou senhor direto dos

bens aforados.

Não gosando o laudemio do caracter e privilegio de imposto, não constitui

ônus real que, annexo a cousa, passe com ella de uns a outros possuidores e

faça recahir no ultimo a responsabilidade pelos laudêmios anteriores não

pagos.

Os laudêmios devidos e não pagos à Fazenda Nacional das vendas de seus

bens aforados, porque não constituem ônus real, garantido por hypotheca

legal, não passam a cargo de uns a outros possuidores que, pelas vendas, os

houverem; e por isso o ultimo possuidor não é obrigado ao pagamentos dos

laudêmios anteriores, pelos quaes devem ser demandados os respectivos

vendedores, pelos meios ordinarios.”146

É, pois indenização, razão pela qual não destoam as lições de Themístocles

Cavalcanti, citando mesmo Decreto Imperial:

“Quanto à sua natureza, sob o ponto de vista fiscal, declarou o Decreto

Imperial n. 656, de 5 de dezembro de 1849, que não tendo o laudêmio

devido à Fazenda os característicos do imposto, não pode constituir ônus

real, e daí todas as consequências, quanto à transmissão do encargo aos

novos adquirentes.”147

Esta conclusão, impõe importante consequência jurídica – não sendo uma obrigação

propter rem, sua responsabilidade não é do titular do direito real, mas dos respectivos

alienantes, conforme já assinalava o Decreto Imperial n. 656, de 5 de dezembro de 1849.

Contudo, hodiernamente o laudêmio é visto como exemplo para as obrigações

propter rem.

146

MADRUGA, Manoel. Op.cit, p. 416 147

CAVALCANTI, Themistocles. Op. cit., p. 486

108

O pagamento do laudêmio é devido em caso de transferência onerosa do aforamento

– que deve contar com o assentimento da União, que inclusive exerce direito de preferência -,

e seu valor corresponde à 5% (cinco por cento) do valor do domínio pleno e benfeitorias (art.

3º, decreto n. 2.398/87).

Releva realce, ainda, que o laudêmio somente é exigível quando da realização da

alienação perfeita e consumada.

Isto porque, não se pode realizar a preferência em venda que, em verdade, não se

realizou.

Esta conclusão tem importantes consequências, haja vista que nos termos do art. 3º

do Decreto-lei 2.398/87, “dependerá do prévio recolhimento do laudêmio, em quantia

correspondente a 5% (cinco por cento) do valor atualizado do domínio pleno e das

benfeitorias, a transferência onerosa, entre vivos, do domínio útil de terreno da União ou de

direitos sobre benfeitorias neles construídas, bem assim a cessão de direito a eles relativos.”

Este decreto tem sua regulamentação dada pela orientação normativa n. 01, a qual

dispõe em seu item 3.4.2 que além da compra e venda, o laudêmio incide também na

promessa de compra e venda irretratável e irrevogável, na dação em pagamento, adjudicação

ou arrematação judicial, na integralização de capital social, na incorporação, fusão e cisão de

pessoas jurídicas e nas desapropriações de domínio útil de imóveis da União, para além das

cessões de direito do ocupante (este último no item 3.4.1)

Vale dizer: a citada orientação normativa, com fundamento no decreto-lei de 1987,

alarga as hipóteses de exigência do laudêmio.

No tocante, especificamente a possibilidade de cobrança do laudêmio no caso de

cessão dos direitos do ocupante – o tema é bastante controverso.

Isto porque, nesta hipótese não há aforamento constituído e, portanto, mera

tolerância administrativa, com posse precária.

109

Como o laudêmio, nasce de um relação contratual, como indenização devida no caso

de não exercício do direito de preferência pelo senhorio direto – no caso a União –

inexistente, o direito de preferência pela não constituição do aforamento, não há que se falar

em cobrança da verba. Neste sentido, acórdão do Tribunal Regional Federal da 4ª Região.

Verbis:

"A cobrança de laudêmio somente se afigura legítima nos casos de

aforamento, por ocasião da transferência do domínio útil. A situação dos

autos possui natureza jurídica diversa, qual seja, a ocupação de terras de

marinha. E, nesses casos, revela-se descabida a cobrança do laudêmio. É

que laudêmio é instituto próprio da enfiteuse ou aforamento (art. 2.038 do

Código Civil), a qual não se confunde com a ocupação. Ao contrário da

enfiteuse, que é direito real alienável sobre coisa alheia, em que o foreiro

detém o domínio útil do imóvel, a simples ocupação de terreno da marinha é

posse não ad usucapionem, que pode ser retomada a qualquer tempo pelo

titular direto.

O Decreto-Lei nº 2.398/87, que trata sobre a cobrança de laudêmio em tais

transferências de imóveis, em seu art. 3º assim dispõe: Dependerá do prévio

recolhimento do laudêmio, em quantia correspondente a 5% (cinco por

cento) do valor atualizado do domínio pleno e das benfeitorias, a

transferência onerosa, entre vivos, do domínio útil de terreno da União ou

de direitos sobre benfeitorias neles construídas, bem assim, a cessão de

direito a eles relativos.

Assim, verifica-se que a cobrança laudêmio está vinculada apenas aos

imóveis sujeitos ao regime de aforamento. Sobre a questão, transcrevo

precedentes desta Turma: DIREITO ADMINISTRATIVO.

TRANSFERÊNCIA DE IMÓVEL DA UNIÃO OCUPADO. COBRANÇA DE

LAUDÊMIO. INEXIGIBILIDADE. É inexigível a cobrança de laudêmio a

propósito da transferência onerosa entre vivos de direitos sobre benfeitorias

construídas sobre terrenos da União diante de simples hipótese de

ocupação. (APELAÇÃO/REEXAME NECESSÁRIO Nº 2009.72.08.001465-

1/SC, RELATORA : Des. Federal MARGA INGE BARTH TESSLER, D.E.

01/12/2009) ADMINISTRATIVO. TERRENO DA UNIÃO. COBRANÇA DE

LAUDÊMIO. REGIME DE OCUPAÇÃO. INEXIGIBILIDADE. O Decreto-

110

Lei 2.398/87, por seu art. 9º, revogou expressamente o art. 130 do Decreto-

Lei 9.760/46, que dava ensejo à cobrança do laudêmio para os imóveis

nãoforeiros, submetidos ao regime de mera ocupação".148

Não destoam as decisões do Superior Tribunal de Justiça:

“ADMINISTRATIVO - RECURSO ESPECIAL - TRANSFERÊNCIA DO

DIREITO DE OCUPAÇÃO DE TERRENO DE MARINHA -

INEXIGIBILIDADE DA COBRANÇA DE LAUDÊMIO - PRECEDENTE.

1. Não se admite a cobrança de laudêmio na transferência do direito de

ocupação de terreno de marinha, pois nesta modalidade de cessão de

utilização do bem público não há direito de opção e preferência do

proprietário enfiteuta para retomada do domínio útil do imóvel aforado. 2.

Recurso especial não provido.”149

Bem de se ver que para os casos de ocupação, entendem os Tribunais que por se

tratar de modalidade de cessão de utilização do bem público, inexiste direito de opção e,

portanto preferência da União para retomada do domínio útil do imóvel.

Assim, não se admite a cobrança de laudêmio na transferência do direito de ocupação

de terreno de marinha, a despeito da cobrança feita pela Secretaria do Patrimônio da União.

Por outro lado, quanto ao foro é contraprestação devida pela transferência do

domínio útil ao foreiro, e deve ser paga anualmente à União, na razão de 0,6% (seis décimos

por cento) sobre o valor do respectivo domínio pleno (caput do artigo 101 do Decreto-Lei nº

9.760/46).

Nos casos de aforamento não constituído, deve-se a taxa de ocupação, calculada

sobre o valor pleno do terreno, corresponde à 2%, (dois por cento) para as ocupações já

inscritas e para aquelas cuja inscrição seja requerida, ao SPU, até 30 de setembro de 1988, e

148

TRF4, AC 2006.72.08.005281-0, Quarta Turma, Relator Márcio Antônio Rocha, D.E. 16/06/2008) 149

Resp n. 1.190.970 – SC (2010/0073560-8), 2ª Turma Rel. Ministra Eliana Calmon, j. 15/06/2010

111

5% (cinco por cento) para as ocupações cuja inscrição seja requerida ou promovida ex officio,

a partir de 1° de outubro de 1988 (art. 1º, incisos I e II, do decreto-lei n. 2.398/87).

A taxa de ocupação e o foro são lançados anualmente em nome do ocupante ou

foreiro, conforme o caso, inscrito na Secretaria de Patrimônio da União.

O não pagamento de laudêmio, foro ou taxa de ocupação ensejará na inscrição na

dívida ativa. Trata-se de dívida ativa não tributária, nos termos do §2º, art. 39, da lei 4.320 de

17 de março de 1964.

Pelo Decreto-lei nº 1.876, de 15 de julho de 1981, dá-se a isenção do pagamento do

foro, taxa de ocupação e laudêmio às pessoas carentes, consideradas como aquelas que

tenham renda familiar igual ou inferior a 5 (cinco) salários mínimos mensais (art. 1º, §§ 2º e

4º).

4.6. Extinção do aforamento

A extinção do aforamento, no tocante às marinhas, vem disciplina no art. 103 do

Decreto-lei 9760/46. Verbis:

“Art. 103. O aforamento extinguir-se-á:

I - por inadimplemento de cláusula contratual;

II - por acordo entre as partes;

III - pela remissão do foro, nas zonas onde não mais subsistam os motivos

determinantes da aplicação do regime enfitêutico;

IV - pelo abandono do imóvel, caracterizado pela ocupação, por mais de 5

(cinco) anos, sem contestação, de assentamentos informais de baixa renda,

retornando o domínio útil à União; ou

V - por interesse público, mediante prévia indenização.

§ 1o Consistindo o inadimplemento de cláusula contratual no não-

pagamento do foro durante três anos consecutivos, ou quatro anos

112

intercalados, é facultado ao foreiro, sem prejuízo do disposto no art. 120,

revigorar o aforamento mediante as condições que lhe forem impostas.

§ 2o Na consolidação pela União do domínio pleno de terreno que haja

concedido em aforamento, deduzir-se-á do valor do mesmo domínio a

importância equivalente a 17% (dezessete por cento), correspondente ao

valor do domínio direto.”

Primeiramente, cumpre destacar que este rol não é exaustivo, existindo hipóteses

outras não reguladas pela norma, como verbi gratia, sucederá com o falecimento do enfiteuta

sem deixar herdeiros, caso em que haverá a consolidação do domínio na figura do senhorio

direto.

O comisso é a mais comum das formas de extinção da enfiteuse.

É sanção imposta ao foreiro pelo não pagamento do foro por determinado período de

tempo, com reversão do domínio útil ao senhorio direto.

No caso dos aforamentos dos terrenos de marinha, dá-se o comisso pela

inadimplência do foreiro por 3 (três) anos consecutivos ou 4 (quatro) anos intercalados (

artigo 101, parágrafo único, do Decreto-Lei nº 9.760/46).

Sem embargo, antes da extinção do aforamento, a Secretaria do Patrimônio da União

deve notificar o enfiteuta por edital ou quando possível por carta registrada, concedendo-lhe o

prazo de 90 (noventa) dias para apresentar reclamação ou solicitar a revigoração do

aforamento (art. 118, do Decreto-lei 9760/46).

É, assim, a revigoração oportunidade conferida ao foreiro para o cumprimento de

suas obrigações e, por conseguinte, manutenção do aforamento.

A revigoração dos aforamentos das marinhas é direito do enfiteuta, que somente

pode ser negado na hipótese de necessidade comprovada do terreno para o serviço público,

mediante o pagamento de indenização pelas benfeitorias existentes (artigo 120 do Decreto-Lei

nº 9.760/46).

113

O aforamento também pode extinguir-se pelo acordo entre as partes (senhorio e

foreiro), ou abandono do imóvel caracterizado pela ocupação por assentamentos informais de

baixa renda, por mais de 5 (cinco) anos (art. 103, IV).

Quanto à remissão ou resgate é o direito assegurado ao foreiro de aquisição do

domínio pleno, mediante o pagamento de indenização ao senhorio direto, justificado pelo

interesse público de tornar a propriedade plena e livre.

Particularmente, no tocante aos terrenos de marinha é permitida, desde que não mais

subsistam os motivos determinantes para aplicação do regime enfitêutico (art. 103, III,

Decreto-lei 9760/46).

Esta decisão ficará o cargo do Diretor do Patrimônio da União, e a Secretaria do

Patrimônio da União notificará o foreiro por edital, na forma do parágrafo único do art. 104,

do supramencionado decreto (art.122).

A remissão será feita mediante o pagamento da quantia correspondente a 17%

(dezessete por cento) sobre o domínio pleno do terreno (art. 123), e será lançado certificado

de remissão, para averbação no Registro de Imóveis (art. 124).

114

CONCLUSÃO

1. Os terrenos de marinha são bens dominicais, e compõem o patrimônio disponível

da União (art. 20, VII, CF).

2. Sua definição é extraída do art. 2º do Decreto-lei 9760/46 - a principal fonte

legislativa sobre o tema.

3. São diversas as espécies de marinhas, sendo comum a todas elas as águas salgadas,

à mercê do regime luni-solar.

4. A titularidade pública, remonta aos tempos do Descobrimento, pelo direito de

conquista.

5. Sua origem, ao que tudo indica, aponta para as lezírias do rio Tejo em associação

com salinas ou marinhas de sal portuguesas.

6. Sua criação tinha vistas no interesse econômico dos colonizadores, deixando livres

as zonas de embarque e desembarque das mercadorias.

7. A sempre citada função de salvaguarda – defesa – é subsidiária e, na medida de

preservação dos lucros da Coroa.

8. Atualmente, sua finalidade econômica não se desnaturou - é importante fonte

arrecadatória estatal.

9. Contrariamente ao sustentado – e repetido – pela pouca doutrina, em terras

lusitanas, existe instituto análogo – são bens que compõem o domínio público hídrico do

Estado.

10. Em Portugal, as faixas destinadas as marinhas hão de ser contadas em 50m para

terra, a partir da linha da máxima preia-mar das águas vivas equinociais até 50 m, aplicando-

115

lhes diversas regras. Há o reconhecimento da propriedade privada, aos que comprovarem por

título legítimo, antes de 1864 ou 1868, conforme o caso.

11. A primeira menção que se tem notícia, sob a alcunha de salgados, é feita na Carta

Régia de 04 de dezembro de 1678, embora as mais famosas datem de 21 de outubro de 1710 e

10 de janeiro de 1731.

12. Era, pois, praxe administrativa do Brasil-Colônia, com sua primeira figuração

legislativa na Lei Orçamentária de 15 de novembro de 1831.

13. Diferentemente do que apontam muitos doutrinadores, inicialmente, os terrenos

de marinha eram dados em sesmarias, sendo posteriormente às concessões dadas em respeito

a eles.

14. Os terrenos de marinha não se confundem com as terras devolutas como restou

decidido pelo Supremo Tribunal Federal na Ação Originária n. 8.

15. O conceito das marinhas é orientado por duplo critério: temporal (preamar média

do ano de 1831) e espacial (33 metros contados para a parte da terra).

16. Preamar, deriva do latim plena mare, e significa média da maré cheia.

17. É linha variável à mercê das influências astronômicas – vis attractiva luni-solar, a

ser observada durante uma ou várias lunações.

18. Há variação crescente do nível global do mar, afetando as alturas das preamares

atuais.

19. São diversos os fatores naturais que tem contribuído para o aumento do nível do

mar, tal como o aquecimento do planeta, com o consequente derretimento das calotas polares.

20. Aliam-se aos fenômenos naturais, outros elementos acidentais, como, v.g., os

aterros artificiais realizados nas praias litorâneas, que dificultam a precisão da linha da

preamar de 1831.

116

21. É possível dizer com grau de certeza satisfatório que os terrenos de marinha, nos

dias atuais, encontram-se submersos, ante ao avanço do nível do mar.

22. O critério utilizado pela Secretaria do Patrimônio da União para determinação da

preamar do ano de 1831, constante na Orientação normativa n. 02, parte de premissas

equivocadas.

23. A linha de jundu, consistente em pequena vegetação sempre existente para além

das praias, é critério adotado pela Secretaria de Patrimônio da União.

24. Contudo, é critério apto a determinar apenas a preamar média atual e não a do

ano de 1831, como é o parâmetro legal.

25. Os traçados deixados nos rochedos são mais seguros para determinação da linha

de preamar do ano de 1831, porém não se mostram suficientemente eficaz para a precisão.

26. O artigo 10 do decreto-lei 9.760/46 permite a utilização de documentos e plantas

de autenticidade irrecusável relativos ao ano de 1831 ou o mais aproximado para a precisão da

linha do preamar.

27. À evidência, a dificuldade de localização, à vista do transcurso do tempo – assim,

senão impraticável, é de difícil aplicação, pelo que se mostra arbitrário.

28. Há estudo científico proposto pelo engenheiro Obéde Pereira Lima para

determinação da preamar média do ano de 1831, em que resta demonstrada a discrepância

existente entre os critérios adotados pela SPU e os critérios legais de fixação.

29. A dificuldade na determinação do preamar do ano de 1831, não é motivo

legítimo para aceitação de métodos ilegais e acientíficos, como os adotados pela Secretaria de

Patrimônio da União.

30. A adoção dos critérios contidos na Orientação Normativa n.02, gera importantes

consequências jurídicas aos particulares – tomando-se por público, o que é alodial, em afronta

ao direito de propriedade.

117

31. O processo administrativo de demarcação, ainda não resta integralmente

concluído.

32. A Secretaria do Patrimônio da União deve convidar os interessados certos

pessoalmente e os incertos por edital para participarem do procedimento demarcatório,

consoante art. 11 do decreto lei 9760/46, sob pena de nulidade, consoante entendimento do

Supremo Tribunal Federal.

33. Realizados os trabalhos topográficos, será determinada a linha do preamar (art.

13, decreto 9760/46).

34. Esta decisão será publicada por meio de edital dando ciência aos interessados que

terão o prazo de 10 dias para impugnação e eventuais recursos.

35. A decisão administrativa tem natureza meramente declaratória.

36. A enfiteuse é o mais amplo direito real sobre coisa alheia, pelo qual transfere-se o

domínio útil do imóvel ao enfiteuta, permanecendo o domínio direto nas mãos dos senhorio.

37. Em contraprestação à transferência do domínio útil, deve o foreiro pagar o foro

anual e, nos casos da transferência onerosa, deve após consentimento e não exercido o direito

de preferência, pagar o laudêmio.

38. Os aforamentos dos terrenos de marinha, são regidos por lei especial o decreto

9760/46.

39. O domínio direto do bem pertence à União, e o enfiteuta são as pessoas que tem

imóveis localizados nos terrenos de marinha, com aforamento já constituído.

40. O foreiro deve pagar à União o foro de 0,6% sobre o domínio pleno e

benfeitorias e o laudêmio na razão de 5%, nos mesmos moldes.

41. O foro e o laudêmio são cobrados por intermédio de executivo fiscal.

42. O Laudêmio não é obrigação propter rem, mas indenização paga pelo não

exercício do direito de preferência.

118

43. Enquanto não constituído o aforamento, o que há é ocupação.

44. A ocupação é mera tolerância administrativa – posse precária.

45. Não goza dos mesmos privilégios dos enfiteutas, podendo a União pedir a

desocupação sumária do imóvel.

46. O valor pago pelo ocupante, a título de taxa de ocupação, é maior do que o

enfiteuta.

47. Embora a União cobre laudêmio nas cessões dos direitos do ocupante, os

Tribunais vem entendendo que não é caso de pagamento, pois não há direito de preferência a

ser exercitado.

48. Comisso ou caducidade é sanção imposta ao foreiro pelo não pagamento do foro

por determinado período de tempo e forma de extinção da enfiteuse, com reversão do domínio

útil ao senhorio direto.

49. No caso dos aforamentos dos terrenos de marinha, dá-se o comisso pela

inadimplência do foreiro por 3 (três) anos consecutivos ou 4 (quatro) anos

intercalados ( artigo 101, parágrafo único, do Decreto-Lei nº 9.760/46).

50. A revigoração é, oportunidade conferida ao foreiro para o cumprimento de suas

obrigações e, por conseguinte, manutenção do aforamento (art. 118, do Decreto-lei 9760/46).

51. É direito do enfiteuta, que somente pode ser negado na hipótese de necessidade

comprovada do terreno para o serviço público, devendo, então, indenizar o foreiro pelas

benfeitorias existentes (artigo 120 do Decreto-Lei nº 9.760/46).

52. O aforamento também pode extinguir-se pelo acordo entre as partes (senhorio e

foreiro).

53. A remissão ou resgate é o direito assegurado ao foreiro de aquisição do domínio

pleno, mediante o pagamento de indenização ao senhorio direto, justificado pelo interesse

público de tornar a propriedade plena e livre.

119

É permitida, desde que não mais subsistam os motivos determinantes para aplicação

do regime enfitêutico (art. 103, III, Decreto-lei 9760/46).

54. Esta decisão ficará o cargo do Diretor do Patrimônio da União, e a Secretaria do

Patrimônio da União notificará o foreiro por edital, na forma do parágrafo único do art. 104,

do supramencionado decreto (art.122).

55. A remissão será feita mediante o pagamento da quantia correspondente a 17%

(dezessete por cento) sobre o domínio pleno do terreno (art. 123), e será lançado certificado

de remissão, para averbação no Registro de Imóveis (art. 124).

120

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