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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC – SP
Danilo Filgueiras Ferreira
Um Exame da Dignidade Humana sob a Perspectiva da Filosofia Terapêutica do “Segundo” Wittgenstein
MESTRADO EM DIREITO
SÃO PAULO 2015
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC – SP
Danilo Filgueiras Ferreira
Um Exame da Dignidade Humana sob a Perspectiva da Filosofia Terapêutica do “Segundo” Wittgenstein
MESTRADO EM DIREITO
Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Mestre em Direito, Área de Concentração Efetividade do Direito, Núcleo de Pesquisa em Filosofia do Direito, sob a orientação do Prof. Dr. Luiz Sérgio Fernandes de Souza
SÃO PAULO 2015
BANCA EXAMINADORA: __________________________________________ __________________________________________ __________________________________________
AGRADECIMENTOS
A meus pais, Ana e Iodésio, pela vida e pelo exemplo de vida. Nunca pensei
em desejar nada melhor.
A meu irmão, por sempre ter estado aí pra mim, ainda quando não estava
aqui.
A Camila, pelas "road lectures" e pela paciência de ter me suportado quando
nem eu me suportava.
Ao amigo Aureo, por ter me iniciado na filosofia e pelas incontáveis horas
de conversa ouvindo e acenando veementemente que "sim".
Ao amigo Fausto, pelos comentários sempre pertinentes sobre quase todas
as coisas.
Aos professores Márcio Pugliesi, Willis Santiago, Clarice Von Oertzen e
Marcelo Aguiar, que fizeram parte de minha história na PUC-SP e contribuíram, cada um a
sua maneira, para que esse trabalho saísse exatamente do jeito que saiu.
Por fim, ao professor Luiz Sérgio Fernandes de Souza, que se revelou um
exemplo de dedicação, caráter e cuidado em sua nem sempre fácil tarefa de me orientar.
UM EXAME DA DIGNIDADE HUMANA SOB A PERSPECTIVA DA FILOSOFIA
TERAPÊUTICA DO "SEGUNDO" WITTGENSTEIN
Danilo Filgueiras Ferreira
RESUMO
O presente estudo tem como premissa o reconhecimento de que se enfrenta,
hoje, na temática da dignidade humana, inúmeros desafios no que se refere à sua aplicação no
campo da ética quanto do direito. Tais dificuldades originam-se, sobretudo, da necessidade de
encontrar-se um núcleo conceitual que o torne apto a desempenhar todas as inúmeras funções
que tal idéia, hoje, é chamada a desempenhar. Ao se propôr um exame de tal tema sob a
perspectiva da filosofia terapêutica do segundo Wittgenstein, não se objetiva alcançar esse
núcleo conceitual perseguido, tampouco encontrar uma solução para as inúmeras dificuldades
apontadas, mas antes revelar que tais dificuldades são fruto de um mal-entendido, que pode
ser superado através de uma visão clara de nossa gramática. O cerne do trabalho consiste, por
conseguinte, em analisar esta filosofia terapêutica e suas possíveis interações com a temática
da dignidade com um duplo objetivo: mostrar que o modelo ontológico ou metafísico não é o
único possível e que existe alternativa, inclusive com repercussões interessantes dentro do
direito; deixar claro que essa alternativa não é facilmente alcançável e iluminar as
dificuldades, inclusive dentro do direito, para que seja alcançada essa mudança de
perspectiva. Ao final, acredita-se que este objetivo foi alcançado.
Palavras-Chave: Filosofia terapêutica. Wittgenstein. Dignidade humana.
Fundamentos dos direitos humanos.
A EXAMINATION OF HUMAN DIGNITY ON THE SECOND WITTGENSTEIN'S
THERAPEUTICAL PHILOSOPHY PERSPECTIVE
Danilo Filgueiras Ferreira
RESUMO
This study has as its premise the knowledge that we face, today, in the
theme of human dignity, a lot of challenges about the utility of the concept in the field of
ethics and law. These difficulties have its origins, mostly, in the need of finding a conceptual
core that make the concept able to fulfill all the functions that we attribute to it. When we
offer a examination of the theme under the perspective of late Wittgenstein’s therapeutical
philosophy, we don’t have in mind to reach the core of the concept or to find a solution to the
innumerous problems, but to reveal that these difficulties stems in a misunderstanding about
our language, that we can overcome trough a survey. So, the core of this essay comprises the
analysis of the therapeutical philosophy and its possible interactions with the human dignity
with two intentions: reveal that the ontological or metaphysical model is not the only one and
that exists alternatives; clarify that these alternatives are not easily reached, for there is
difficulties, some of them in law, which we must illuminate before we reach them. At the end,
we believe that this final intention was reached.
KEYWORDS: Therapeutical philosophy. Wittgenstein. Human Dignity.
Foundations of Human Rights.
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS OBRAS DE WITTGENSTEIN
TLP -‐ Tractatus Logico-‐philosophicus IF -‐ Investigações Filosóficas (seguido do parágrafo) BT -‐ Big Typescript LA -‐ Livro Azul LC -‐ Livro Castanho Z -‐ Zettel CV -‐ Culture and Value GF -‐ Gramática Filosófica RFM -‐ Remarks on the Foundations of Mathematics AWL -‐ Wittgenstein’s lectures, Cambridge, 1932-‐1935: From the notes of Alice Ambrose and Margaret Macdonald RO -‐ Observações sobre o “Ramo de Ouro”de Frazer
OUTRAS SIGLAS UTILIZADAS
DUDH -‐ Declaração Universal dos Direitos do Homem
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 10
CAPÍTULO 1. VISÃO GERAL ............................................................................................ 14 1.1 Algumas descrições possíveis e uma tentativa de organização ...................................... 14 1.2 A introdução da dignidade no direito positivo ............................................................... 18 1.3 A dignidade é o fundamento dos direitos humanos? ...................................................... 23
1.3.1 Problemas de conceito e fundamento ...................................................................... 26 1.3.2 O problema da universalidade. ................................................................................ 37 1.3.3 A dignidade da pessoa humana e os diversos sentidos de fundamento .................. 42 1.3.4 A aptidão da dignidade como fundamento .............................................................. 48
1.4 A dignidade na práxis ..................................................................................................... 58 1.4.1 A dignidade entre imanência e transcendência ....................................................... 60 1.4.2 A matriz kantiana como núcleo de sentido ............................................................. 63 1.4.3 Análise da fórmula-objeto. Algumas conclusões preliminares ............................... 66
CAPÍTULO 2. DEFINIÇÕES, SIGNIFICADO E A FILOSOFIA DA LINGUAGEM COMUM ................................................................................................................................. 75
2.1. Primeira camada: A Definição Nominal e a Definição Real ........................................ 77 2.1.1 Uma primeira tentativa de conclusão ...................................................................... 84
2.2. Segunda camada: uma fisionomia do significado ......................................................... 87 2.2.1 Uma tipologia do significado e sua superação ........................................................ 93
2.3. O ponto de inflexão ....................................................................................................... 96 2.3.1 Três temas na filosofia do Tractatus......................................................................102 2.3.2 A passagem do "primeiro" para o "segundo" Wittgenstein...................................104
2.4 A subversão wittgensteiniana ....................................................................................... 107 2.4.1 Superação da tendência essencialista .................................................................... 111 2.4.2 Atos do espírito e o solipsismo ............................................................................. 116 2.4.3 Os jogos de linguagem e as formas de vida .......................................................... 122
2.5 Um novo caminho ........................................................................................................ 130
CAPÍTULO 3 – UM DIAGNÓSTICO POSSÍVEL .......................................................... 132 3.1 O caráter peculiar da dignidade .................................................................................... 132 3.2 A pergunta pela essência ............................................................................................ 134
3.2.1 Os diferentes pontos de partida ............................................................................. 138 3.2.2 Uma aproximação wittgensteiniana ...................................................................... 139
3.2.2.1 Um apontamento metodológico preliminar .................................................... 141 3.3 A composição de um conceito unívoco a partir da variedade de usos ......................... 143
3.3.1 Duas pesquisas históricas possíveis sobre a dignidade ......................................... 144
3.3.2 As origens do termo e sua (ir)relevância ............................................................... 146 3.3.3 Um pequeno catálogo de usos históricos .............................................................. 149 3.3.4 A dignidade na Declaração Universal dos Direitos Humanos: um consenso pragmático? .................................................................................................................... 159
3.4 A formação de uma Übersicht ..................................................................................... 163 3.4.1 O Método terapêutico ............................................................................................ 164
3.4.1.1 A crítica filosófica de Wittgenstein e a questão do sentido............................164 3.4.1.2 A derrocada da teoria ..................................................................................... 164 3.4.1.3 Iludidos pela gramática .................................................................................. 174 3.4.1.4 A gramática da dignidade humana ................................................................. 178
3.4.1.4.1 O ponto de parada wittgensteiniano e a fundamentação dos direitos humanos ................................................................................................................. 180 3.4.1.4.2 “Dignidade humana”, “fundamento” e “direitos humanos” .................... 186
3.4.2 Por uma Übersicht jurídica da dignidade? ............................................................ 188 3.4.2.1 Há utilidade em uma Übsersicht jurídica da dignidade humana? .................. 190 3.4.2.2 Introdução a uma Übersicht........................................................................... 193
CONCLUSÃO ...................................................................................................................... 196
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS................................................................................201
10
INTRODUÇÃO
Não é novidade que a dignidade humana, a despeito de ter-se tornado um
conceito central no discurso ético e jurídico em diversas partes do mundo ocidental,
permanece problemática em sua operacionalização, especialmente quando se tenta
compatibilizar as diversas funções que lhe são outorgadas no direito interno e no campo dos
direitos humanos. Diante de tal cenário, acumulam-se tentativas de esclarecimento conceitual,
sempre acrescentando-se um elemento novo ou pugnando-se por uma perspectiva que lhe
permita desempenhar todas as funções às quais é convocado. O objetivo central a que se
propõe o presente trabalho não é contribuir para estas discussões fornecendo o substrato
necessário do conceito de dignidade humana ou julgando, sob o binômio verdade/falsidade, as
tentativas jurídicas e filosóficas de caracterizá-lo e defini-lo, mas sobretudo tentar elencar as
dificuldades enfrentadas e compreender suas razões, notadamente quando se trata dos
esforços empreendidos no sentido de fornecer ao conceito uma definição que seja válida em
seus diversos campos de aplicação. Nesse intuito é que se recorre à teoria do “segundo”
Wittgenstein, pioneiro na transposição entre a filosofia ontológica e a filosofia da linguagem
comum.
Não se realiza o recurso a Wittgenstein, entretanto, como ponto intermédio
para desenvolvimentos ulteriores no campo da filosofia da linguagem comum, permissivos de
que se entreveja a estruturação pragmática dos discursos, tampouco como premissa inicial de
uma análise ideológica da dignidade. Recorre-se a Wittgenstein como ponto de partida e de
chegada, na tentativa de viabilizar a reprodução, sobre o discurso da dignidade, do
pioneirismo e do caráter exploratório do método wittgensteiniano, que resultaram na
superação da Ontologia enquanto filosofia primeira. Justamente por tal motivo, o trabalho não
se limita à famigerada aproximação wittgensteiniana entre significado e uso, imiscuindo-se
também nos reflexos, sobre a própria filosofia, de seu método inovador, que teve por
resultante aquilo que se poderia chamar de filosofia terapêutica. Em total consonância com as
suas demais conclusões, Wittgenstein teceu inúmeras críticas ao modus filosófico tradicional,
estruturado sobre a pergunta clássica “o que é?” – agora considerada fruto de uma confusão
mental –, e propugnou que a filosofia deveria constituir, em substituição, “uma luta contra o
enfeitiçamento de nosso intelecto pelos meios de nossa linguagem” (Investigações Filosóficas
§ 109). Para Wittgenstein, o filósofo tradicionalmente lidaria com a linguagem de férias,
11
dissociada dos seus inúmeros contextos, e em virtude desse tipo de proceder incorreria,
frequentemente, em inúmeros mal-entendidos, inclusive violando os limites do sentido. O que
nos faltaria, a fim de evitar estes mal entendidos, seria uma visão panorâmica acerca do uso
que outorgamos às nossas palavras (Investigações Filosóficas, § 122).
A aproximação entre a dignidade humana e a filosofia do segundo
Wittgenstein dá-se na base de uma dupla percepção, que transparece em momentos distintos
do desenvolvimento do trabalho. No primeiro capítulo, mostra-se como boa parte das
trabalhos tendentes a definir a dignidade humana confundem-se com tentativas de
compreender a condição humana e de definir o próprio homem, sempre sob o pressuposto de
que a dignidade corresponderia a uma espécie de essência presente no homem, o que acaba
por acarretar a frustrante sensação de indefinibilidade que permeia boa parte do estudo
jurídico a respeito do tema. Nesse capítulo assenta-se, também, como tal dificuldade de
encontrar respostas parece acarretar as intersecções entre o direito e a filosofia, campo do
saber a que o jurista acorre na tentativa de elucidar o significado da “dignidade humana”. No
segundo capítulo explora-se esta indefinibilidade, levando ao extremo a problemática das
definições reais e nominais e concluindo que ela remete, em última instância, a um
questionamento a respeito das relações entre linguagem e realidade. É neste capítulo que se
introduz o pensamento wittgensteiniano, que levou a tradição designativa ao limite antes de
inverter a polaridade naquela relação, pugnando por um mundo “à sombra da gramática”. No
terceiro capítulo, já sob o influxo desta filosofia e de seu aspecto terapêutico, é possível
inverter-se também a polaridade da percepção inicial, concebendo-se que boa parte dos
problemas relativos à dignidade, antes de resolvidos pela filosofia, surgem, precipuamente, do
fato de o questionamento a respeito da dignidade humana – inclusive no campo do direito –
ser estruturado ao modo da filosofia tradicional. É em razão de pressupor-se como natural a
existência de uma resposta unívoca, que permita compatibilizar os diversos usos do termo
dignidade humana e na qual se encerre um significado interculturalmente válido, que a
pergunta a respeito da dignidade é formulada abstratamente (e permanece sem resposta).
A filosofia do segundo Wittgenstein vista no capítulo intermediário permite
enfrentar, simultaneamente, ambas as percepções. Por um lado, a aproximação entre
significado e uso promovida pelo austríaco fornece um novo paradigma para superação da
perspectiva ontológica, fazendo transparecer a linguagem como uma atividade que medeia o
conhecimento e cuja compreensão mútua depende do compartilhamento de uma determinada
12
forma de vida. É esta reviravolta que fornece cabedal teórico à proposta de abandonar a busca
por um significado unívoco e universalmente válido de dignidade humana, alcançando-se uma
compreensão do termo mais coerente e próxima do modo de vida de cada sociedade. Por
outro lado, a crítica de Wittgenstein à filosofia permite identificar que a raiz de boa parte dos
problemas enfrentados no trato com o tema consiste, precisamente, no modo como se
estrutura o questionamento jurídico pela dignidade. Formulando a pergunta pela dignidade ao
modo da filosofia ocidental, e no pressuposto de uma resposta unívoca, válida universalmente
e que dê conta de todos os contextos possíveis, o jurista revela atitude típica de quem incidiu
em inúmeras confusões e mal-entendidos, decorrentes de não ter desenvolvido uma visão
panorâmica da nossa linguagem. O método terapêutico de Wittgenstein permite, através da
formação desta visão de conjunto, que se trave uma constante luta contra a linguagem,
superando não apenas a visão ontológica, mas também os mal-entendidos que conduzem à
ideia de que o significado da expressão dignidade humana constituiria um halo que a
acompanha em todos os contextos (Investigações Filosóficas, § 117). Nessa nova perspectiva,
avessa às explicações e à formação de teorias, os problemas filosóficos, dentre eles o da
dignidade humana, não seriam passíveis de solução, mas de dissolução, reconhecidos como
fruto destes mal-entendidos.
É importante, entretanto, assentar dois aspectos desta aproximação entre a
filosofia terapêutica e o problema da dignidade humana: 1) o primeiro consiste em destacar,
como feito ao longo de todo o trabalho, que tal aproximação com o método terapêutico não
importa em negar a pergunta jurídica pela dignidade humana, tampouco negar a legítima
construção do conceito no interior de cada ordenamento e, inclusive, no discurso internacional
dos direitos humanos. O problema, aqui, residiria no papel peculiar atribuído à dignidade
humana em tais contextos, que conduziria, muitas vezes, à formulação da pergunta de forma
abstrata, desprezando-se estes mesmos contextos nos quais a pergunta foi engendrada. Isto se
revelaria através de uma tensão constante entre uma resposta filosoficamente correta e uma
outra, juridicamente útil; 2) o segundo passa pela constatação de que adotar-se a filosofia
terapêutica como ponto central deste trabalho não implica necessariamente anuir, de modo
irrestrito, à negação da filosofia tradicional promovida por Wittgenstein. Como bem afirma
Horwich (2012, p. xiii), não é preciso aceder completamente à crítica wittgensteiniana sobre a
filosofia para reconhecer-se que ao menos alguns problemas, estruturados e teorizados sob a
forma da filosofia ocidental, podem ser afastados como fruto de confusões a respeito do nosso
próprio uso da linguagem.
13
A proposta do texto, por conseguinte, não é negar a pergunta jurídica pela
dignidade humana e tampouco sustentar a validade irrestrita do método terapêutico, mas tão
somente discutir a adequação de tal método ao problema da dignidade, demonstrando-se que a
pergunta abstrata, formulada pelo jurista a respeito da dignidade é, em grande medida, fruto
de uma confusão, passível de ser afastada por uma visão panorâmica de nossa linguagem e
dos usos que fazemos dela. Esta tarefa, que tem por resultado não apenas a compreensão de
que o conceito de dignidade pode se afastar da noção de uma essência do homem, mas
também a compreensão de que o termo não possui um significado universal dissociado de seu
uso concreto em um determinado jogo de linguagem, envolverá ao menos três etapas, que se
interpenetram e realizam-se simultaneamente: 1) a delimitação da dignidade enquanto objeto
de estudo, o que demanda averiguar o papel que se lhe atribui nos ordenamentos jurídicos
nacionais e no discurso dos direitos humanos, bem como as dificuldades enfrentadas na
operacionalização do conceito; 2) a identificação de que a pergunta jurídica hodierna pela
dignidade estrutura-se sob a forma filosófica tradicional, sempre pressupondo-se uma rigidez
conceitual mínima e universal, mesmo diante da variedade de usos e de contextos; 3)
apreensão, ainda que forma dispersa e assistemática, dos distintos empregos dos termos
“dignidade” e “dignidade humana” – inclusive daqueles mencionados nos dois itens
precedentes –, sempre na tentativa de fomentar, através de interações com o método
wittgensteiniano, uma nova compreensão a respeito do problema filosófico da dignidade
humana, reconhecendo-se, em especial, que a aproximação necessária entre a “dignidade” e
uma essência humana resulta, precisamente, desse enfeitiçamento combatido no método
terapêutico.
14
CAPÍTULO 1. VISÃO GERAL 1.1 Algumas descrições possíveis e uma tentativa de organização
O termo “dignidade”, corrente no vernáculo nacional, tem origem nas
palavras latina dignĭtas e digntātis, que se vinculavam, nessa raiz remota, à idéia de
“merecimento, valor, nobreza” (HOUAISS; VILLAR, 2009). Esta mesma origem é
compartilhada pelos termos equivalentes a “dignidade,” encontráveis nas línguas neolatinas
de um modo geral1 e na língua inglesa, que se vale da palavra “dignity”, de semelhante
etimologia. No idioma alemão, é tido como existente, na linguagem culta, o termo “Dignität”,
que compartilha a origem latina, mas de uso bastante reduzido. O equivalente na linguagem
corrente é o substantivo “Würde”, que tem raiz etimológica propriamente germânica e que se
conecta ao adjetivo “wert”, que por sua vez poderia ser traduzido como “valioso”.
É cediço que o espectro semântico entre termos pertencentes a línguas
diversas raramente é idêntico, recebendo cada um dos termos matizes mais ou menos variados
a depender de seu idioma e dos diferentes contextos em que utilizado. É sabido, também, que
a pretendida sinonímia entre eles costuma ser antes uma equivalência aproximada, uma
sinonímia parcial, que uma perfeita identidade de ideias. A relação de sentido entre as
palavras acima, todavia, não perde sua razão de ser diante destas dificuldades, mormente
quando se tem em conta que a aproximação dá-se na base do contexto em que são utilizadas.
A despeito de compartilharem, ou não, uma mesma raiz etimológica, ou um mesmo campo
extensional, o conjunto de palavras mencionado aproxima-se pela circunstância de terem sido
utilizadas, em variadas traduções do texto original da Declaração Universal dos Direitos
Humanos de 19482, como equivalentes da palavra “dignity”, expressão em língua inglesa
empregada no texto original da Declaração. Neste documento3, a palavra “dignidade” é
1 Em francês utiliza-se o termo dignité; dignità em italiano; dignidad em espanhol; demnităţii em romeno e 2 As traduções da Declaração Universal dos Direitos Humanos em 418 idiomas estão disponíveis na página do Office of the High Commissioner for Human Rights, agência da Organização das Nações Unidas: <http://www.ohchr.org/EN/UDHR/Pages/SearchByLang.aspx.> Acesso em 7 jun. 2015 3 Doravante, as menções ao texto da Declaração Universal dos Direitos Humanos terão por referência a tradução brasileira, disponível no sítio eletrônico do Ministério da Justiça: http://portal.mj.gov.br/sedh/ct/ legis_intern/ddh_bib_inter_universal.htm. Como cediço, a Declaração dos Direitos Humanos, aprovada pela Assembléia Geral da ONU em 10 de dezembro de 1948, não tinha força vinculante para os países membros, sendo admitida originalmente como uma “recomendação”, nos termos do artigo 10 da Carta das Nações Unidas (esta sim, aprovada no Brasil pelo Decreto-Lei nº 7.935, de 3 de setembro de 1945). Por tais razões, não há uma versão completamente oficial da Declaração, vertida para o idioma português.
15
empregada cinco vezes, duas delas no preâmbulo4 e outras três no corpo da carta, mais
especificamente nos artigos 1º, 22 e 235, sempre tendo por referência, direta ou indireta, o
homem.
Essa sucinta tentativa, empreendida nos dois parágrafos anteriores, de
contextualizar o uso do termo “dignidade” e de encontrar um referencial válido para a sua
sinonímia em diversos idiomas pode soar para muitos, e não sem motivo, como um certo
preciosismo, dada a associação, hoje bastante consolidada na seara dos direitos humanos,
entre os termos “dignidade” e “homem”. Os direitos humanos6 universalizaram-se sob a
premissa de que os homens são iguais em dignidade e direitos e de que constitui dever das
nações preservar tal dignidade7, poucas dúvidas subsistindo a respeito da terminologia
utilizada neste projeto de extensão global de tais direitos. A “dignidade humana” – ou
“dignidade da pessoa humana”, expressões que serão usadas como sinônimas ao longo do
4 PREÂMBULO: “Considerando que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e de seus direitos iguais e inalienáveis é o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo” (...) Considerando que os povos das Nações Unidas reafirmaram, na Carta, sua fé nos direitos humanos fundamentais, na dignidade e no valor da pessoa humana e na igualdade de direitos dos homens e das mulheres, e que decidiram promover o progresso social e melhores condições de vida em uma liberdade mais ampla” (grifo não constante do original) 5 “Artigo I: Todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotadas de razão e consciência e devem agir em relação umas às outras com espírito de fraternidade” “ Artigo XXII: Toda pessoa, como membro da sociedade, tem direito à segurança social e à realização, pelo esforço nacional, pela cooperação internacional e de acordo com a organização e recursos de cada Estado, dos direitos econômicos, sociais e culturais indispensáveis à sua dignidade e ao livre desenvolvimento da sua personalidade.” “Art. XXIII (...) 3. Toda pessoa que trabalhe tem direito a uma remuneração justa e satisfatória, que lhe assegure, assim como à sua família, uma existência compatível com a dignidade humana, e a que se acrescentarão, se necessário, outros meios de proteção social.” (grifo não constante do original) 6 É importante ressaltar, desde logo, o costume, especialmente na doutrina alemã, de diferenciar-se “Direitos Humanos” e “Direitos Fundamentais”, reservando-se a esta última categoria os direitos que foram devidamente positivados (COMPARATO, 2013, p. 71). Luño (1993, p. 181) também reporta esta distinção entre um plano prescritivo e outro descritivo em diversos idiomas, a exemplo da diferenciação em língua francesa entre droits de l'homme y libertes publiques e italiana entre diritti umani y diritti fundamental. Há quem defenda, ainda – o que representa uma pequena variação deste panorama – que a diferenciação entre direitos humanos e direitos fundamentais diria respeito ao plano (internacional ou interno) em que estabelecidos, de modo que o cenário de internacionalização de tais direitos a faria desaparecer (RAMOS, 2015, p. 50-52). A distinção, todavia, é mais doutrinária que de direito positivo, e ao longo da história dos direitos humanos várias nomenclaturas conviveram, como se pode notar da extensa pesquisa feita por Sampaio (2010, p. 7-20). No presente trabalho, será utilizada, de regra, a expressão “direitos humanos”, salvo quando se fizer referência à obra de algum autor que adote nomenclatura diversa. Não obstante a opção terminológica, deve ser salientado que a distinção entre um plano prescritivo e um descritivo é de extrema relevância e permeia boa parte dos estudos doravante empreendidos, assunto que será retomado no item 1.3.3 7 Na DUDH chega-se a elencar o direito a uma ordem internacional em que os direitos e liberdades possam ser plenamente realizados (Artigo XXVIII). Comparato (2013, p. 246) considera que tal importaria em uma comunidade internacional respeitadora da dignidade humana.
16
presente trabalho8 – foi elevada, sobretudo a partir do pós-guerra, à qualidade de expressão
mundial, de fácil tradução em qualquer idioma do Ocidente, passando, inclusive, a integrar o
sistema constitucional de várias nações, onde se consolidou como princípio jurídico de maior
importância.
A extensão mundial do discurso e a facilidade de tradução do termo não
importaram, todavia, em que as discussões a respeito de seu conteúdo e implicações gozassem
dessa mesma univocidade, nem mesmo quando contextualizadas especificamente na seara dos
direitos humanos. A despeito do aparente consenso teórico universal sobre a dignidade
(MAURER, 2013, p. 119-120)9, a sua concretização prática, especialmente como conceito
jurídico, sempre foi cercada de inúmeras questões, às quais não bastava o suposto consenso.
A tradição jurídica, mesmo quando admite alguma nota de vagueza ou imprecisão em seus
conceitos, exige neles uma dose razoável de objetividade, normalmente traduzida em uma
definição que permita operacionalizá-lo (MAURER, 2013, p. 120) e que proteja a segurança e
a estabilidade jurídica (SARLET, 2012, p. 70). Tratando-se da dignidade, esta fixação do
conteúdo revelou-se, todavia, sobremaneira dificultosa, tendo em vista que a expressão já
encerrava uma extensa e nem sempre coerente carga semântica pretérita, oriunda de reflexões
religiosas, filosóficas (sobretudo no campo da ética e da metafísica) e também de seu uso
comum, na linguagem ordinária.
As tentativas já feitas de compatibilizar esses distintos componentes
teóricos e fixar um conteúdo operacionalizável, na seara jurídica, para a dignidade,
constituem um terreno difícil de ser explorado, especialmente quando ocorre o deslocamento
8 Adiante-se que a sinonímia aqui propagada decorre de não se ter divisado, terminologicamente, uma distinção clara entre os contextos nos quais estas expressões são comumente utilizadas. Embora o direito nacional tenha eleito como princípio fundamental a “dignidade da pessoa humana” e o direito espanhol encerre, no artigo 10 da Constituição, a “dignidad de la persona”, não se colheu indício concreto de que tal escolha linguística, introduzindo-se o termo “pessoa” ao lado do termo “dignidade”, importe em uma proposta claramente distinta daquela feita pelo direito alemão – que consigna a dignidade humana (Menschenwürde) como princípio – ou pela DUDH de 48, que em sua redação original traz a expressão “human dignity” (artigo 23, item 3), corrente no discurso anglófono. A opção de sinonímia aqui feita não importa, todavia, o desconhecimento de que eventuais distinções conceituais podem ser albergadas sob estas duas expressões, a exemplo da relatada por Miranda (2008, p. 170) que, comentando a Constituição Portuguesa, distingue as expressões sob a premissa de que a “dignidade da pessoa humana”, adotada pela Constituição, dirigir-se-ia ao homem concreto e individual, enquanto a “dignidade humana” teria por objeto a humanidade, compreendida como qualidade comum a todos os homens. Também Sarlet (2012, p. 63-64) reporta a existência desta possível distinção conceitual – inclusive na doutrina alemã – ponderando, assim como o fizera Miranda, que este modelo individualista teria como norte evitar o sacrifício da dignidade da pessoa individual, em constante tensão com uma dimensão transindividual desta mesma dignidade. 9 A autora, como suporte desse consenso teórico, questiona “Quem, na aurora do terceiro milênio, contestaria o direito de a pessoa humana viver e morrer de maneira digna?”.
17
do contexto em que a dignidade aparece como uma garantia de objetividade,10 aproximando-
se da sua aplicação concreta. É neste campo, da operacionalização do conceito, quer pela
doutrina, quer pela jurisprudência, que se entrelaçam, por vezes formando uma trama difícil
de se apreender, a apropriação, pelo direito, dos discursos filosóficos pertinentes à
fundamentação da dignidade, a ponderação sobre uma possível inerência da dignidade ao
homem e os efeitos que dela o mundo jurídico se propõe a extrair. Os constructos jurídicos
assim formatados variam desde as simples aproximações conceituais, normalmente
ressaltando-se a posição proeminente ocupada pelo princípio da dignidade humana, até
tentativas mais elaboradas de estruturação sistemática, postulando-se um fundamento para a
dignidade do homem (autonomia, reconhecimento etc.) e desta extraindo-se, quer pela sua
inserção nos ordenamentos positivos concretos, quer pelo reconhecimento de uma relação
entre dignidade e homem anterior ao direito positivo, uma série de consequências jurídicas e
direitos não positivados expressamente. Estas vinculações entre fundamento e consequências,
por sua vez, também se revelam variadas, ora consistindo em meras reproduções pouco
refletidas de enunciados do senso comum jurídico, ora resultando em teorias e reflexões de
escol, que revelam a intersecção crescente entre filosofia e direito.
A organização e descrição deste conteúdo multifário, dada a sua extensão e
as imbricações entre disciplinas diversas, é empreendimento de quase impossível realização,
especialmente tendo em vista a mundialização do discurso e a quantidade de novas obras e
artigos que surgem diariamente11. A esses empecilhos soma-se a peculiaridade de algumas
pesquisas atuais a respeito do tema não abrangerem, apenas, as teorias filosóficas que se
dedicaram expressamente ao termo “dignidade”, mas também uma tentativa de reconhecer, na
história das idéias, um progresso moral que teria culminado na identificação de um valor
inerente ao indivíduo. Tudo somado, a temática da dignidade da pessoa humana, quando
considerada sob todos os vieses hoje abordados, resulta em uma vastidão praticamente
impossível de ser explorada em sua totalidade.
10 Martínez (2003, p. 11) considera que a referência à dignidade da pessoa humana, no direito internacional, constitui uma garantia de objetividade. 11 A tentativa mais compreensiva de lidar com o tema no Brasil reside, provavelmente, na excelente monografia de Ingo Wolfgang Sarlet, já mencionada. A despeito do título restritivo, o texto revela-se como obra de referência ao fornecer uma perspectiva bastante abrangente do pensamento jurídico e filosófico a respeito da dignidade da pessoa humana não apenas no Brasil, mas também em outras partes do mundo ocidental, especialmente na Alemanha.
18
Ao presente capítulo não interessa conquistar essa vastidão e as inúmeras
construções que a povoam – o que importaria, para muitos, inclusive no empenho de
desvendar o ser humano em sua inteireza –, mas tão somente tentar compreender como a
expressão dignidade inseriu-se no universo propriamente jurídico, sobretudo como conceito
de direito positivo, buscando identificar alguns dos papéis que nele desempenha. Ao final do
trabalho, acredita-se, estará desenhado o quadro a partir do qual será possível diagnosticar,
com as reflexões adequadas, a razão de alguns problemas enfrentados na aplicação cotidiana
do termo “dignidade”.
1.2 A introdução da dignidade no direito positivo
É comum o reconhecimento, hoje, de que a dignidade da pessoa humana
constitui idéia central mesmo em ordenamentos nacionais em que não foi positivada, a
exemplo do que ocorre no direito americano e no direito francês, nos quais sua força
normativa vem sendo diuturnamente invocada pelos tribunais (BARROSO, 2013, p. 20-21)12.
Este reconhecimento, entretanto, não é fenômeno antigo, datando sobretudo do pós-guerra,
período no qual a dignidade aparece com papel proeminente em vários documentos jurídicos
nacionais e internacionais. Não parece incorreto, assim, sustentar-se que, a despeito da longa
história que envolve o uso do termo, as tentativas de definição da dignidade como conceito
jurídico, e de sua consequente aplicação a situações da vida, coincidem com a sua positivação
em diversos textos e ordenamentos, que se iniciou timidamente no fim da segunda década do
século XX, ganhando corpo sobretudo no pós-guerra.
É difícil precisar, especialmente em relação ao período anterior à segunda
grande guerra, qual foi o primeiro documento constitucional a mencionar, em seu texto, a
dignidade como algo relacionado à pessoa humana.13 Mccrudden (2008, p. 664) menciona as
Constituições alemã (Constituição de Weimar) e finlandesa em 1919, a irlandesa em 1937 e a 12 Há, ainda, ordenamentos, como o espanhol, em que a dignidade, a despeito de constar apenas no preâmbulo e no artigo referente a direitos humanos da Constituição, é reconhecida como fundante dos valores superiores daquele ordenamento, encerrados no artigo 1º do texto constitucional. (MARTINÉZ, 1984, p. 110-112). 13 Observe-se que a ocorrência do adjetivo “digno” em textos constitucionais não está, necessariamente, vinculada às condições de vida ou a uma relação de inerência com a pessoa humana. Em diversas Constituições brasileiras (1934, 1946, 1967 e inclusive na Constituição atual, de 1988), existe menção à possibilidade de o oficial das forças armadas perder o posto se for considerado “indigno do oficialato”. Este uso do adjetivo associa-se ao sentido de dignidade encontrável em dicionários, como “honraria, título, função ou cargo de alta graduação” (HOUAISS; VILLAR, 2009.). A esse respeito, vide também Maurer (2013, p. 122), que não apenas reconhece esse uso na língua francesa, mas vai além, afirmando que as expressões “degradação da dignidade” e “decadência humana” originam-se do fato de os oficiais subalternos que cometem erros graves serem “degradados”.
19
cubana em 1940.14 Estas inserções, todavia, ainda podem ser consideradas em alguma medida
pontuais e deslocadas do contexto atual15, que se inicia sobretudo no pós-guerra, quando se
avolumou o uso do termo em diversas constituições nacionais e textos internacionais.
A relação entre as violações ao homem perpetradas na guerra e o papel
proeminente a partir de então desempenhado pela dignidade da pessoa humana fica evidente
não apenas pela já mencionada Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 e pela
Carta das Nações Unidas de 1945, mas também pelo fato de, no quinquênio que sucedeu o
pós-guerra (1945-1950) os três países derrotados terem novas Constituições, todas elas
incorporando o princípio da dignidade da pessoa humana em seus textos (Japão 1946, Itália
1947 e Alemanha Ocidental, 1949). Destes três, certamente o mais influente emprego da
expressão dignidade ocorreu na Alemanha, em que o conceito, elevado à condição de
princípio,16 passou a ocupar papel central no texto da Constituição, como tal reconhecido,
reiteradamente, pelos tribunais daquele país17. A expansão do princípio da dignidade não
envolveu, entretanto, apenas os países derrotados ou diretamente afetados pela guerra,
observando-se um duplo movimento desta expansão: por um lado, no plano do direito
internacional e comunitário e, por outro, em diversas ordens constitucionais internas.
Na seara do direito internacional, embora seja possível encontrar alguns
empregos do termo “dignidade” em documentos e propostas anteriores à Declaração
14 O autor faz referência, também, às Constituições portuguesa de 1933 e mexicana de 1917, mas tais referências parecem equivocadas. O artigo 45 da Constituição Portuguesa só recebeu menção à dignidade com a alteração promovida pela Lei 3/71, de 16 de agosto de 1971. Já a Constituição Mexicana de 1917, também referida por Barroso (2013., p. 19), a despeito de seus avanços na seara dos direitos sociais (COMPARATO, 2013, p. 189 e seguintes), tampouco tinha, em sua redação original, qualquer referência à dignidade. <http://www.diputados.gob.mx/LeyesBiblio/ref/cpeum/CPEUM_orig_05 feb1917.pdf.>. A alínea I “c” do artigo 3º só passou a fazer referência à dignidade após alteração promovida em 30 de dezembro de 1946, consoante <http://www.diputados.gob.mx/LeyesBiblio/ref/dof/CPEUM_ref_041_30 dic46_ima.pdf >. A despeito de não propriamente constitucional, vale observar que McCrudden (2008, p. 661) registra ter a França, ao abolir a escravidão em todas as suas colônias, (Decreto de 27 de abril de 1848), referido-se já à escravidão como uma afronta à dignidade humana 15 Para McCrudden (2008, loc. cit,), estes primeiros desenvolvimentos constitucionais da dignidade deveram-se a uma conjunção de iluminismo, democracias sociais ou propriamente socialistas, republicanismo e dos usos católicos da dignidade. 16 O princípio foi previsto já no artigo 1º, nº 1 da Constituição, sob a emblemática fórmula “Die Würde des Menschen ist unantastbar. Sie zu achten und zu schützen ist Verpflichtung aller staatlichen Gewalt.”. Conforme tradução de José Afonso da Silva (1998, p. 589): “A dignidade humana é inviolável. Respeitá-la e protegê-la é obrigação de todos os Poderes estatais.” 17 Barroso (2013, p. 21) menciona decisão do Tribunal Constitucional Federal Alemão, de acordo com a qual “a dignidade humana se situa no ápice do sistema constitucional, representando um valor supremo, um bem absoluto, à luz do qual cada um dos outros dispositivos deve ser interpretado”.
20
Universal dos Direitos Humanos18, é a partir dela que inúmeros instrumentos internacionais
sobre direitos humanos passaram a valer-se da expressão, quer em seus preâmbulos, quer no
corpo de seus textos, sendo lavrada, inclusive, muito tempo depois, pela Assembléia Geral da
ONU, a Resolução 41/120, por meio da qual conclamava aos países membros e organismos
internacionais a ela vinculados a levar em consideração a dignidade da pessoa humana em
quaisquer documentos futuros versando sobre direitos humanos.19
Seria muito difícil esgotar o exame ou mesmo a simples menção dos textos
internacionais e regionais sobre direitos humanos20 produzidos a partir de 1948 que levam em
consideração, expressamente, a dignidade da pessoa humana. Elencando-se os textos
internacionais mais importantes, todavia, valem menção a Convenção Suplementar Sobre
Abolição da Escravatura, do Tráfico de Escravos e das Instituições e Práticas Análogas à
Escravatura de 1956, que se reporta, no preâmbulo, à fé na dignidade reafirmada pelas nações
na Declaração Universal; os dois Pactos Internacionais de direitos humanos adotados pela
Assembleia geral da ONU em 196621 (Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos e o
Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais), que fazem menção, tanto
em seu preâmbulo quanto no corpo do texto, à dignidade22, além de outras três Convenções
Internacionais da ONU que mencionam a dignidade apenas em seu preâmbulo: a Convenção
Internacional sobre a Eliminação de todas as Formas Discriminação Racial (1966), a
Convenção sobre a eliminação de todas as forma de discriminação contra a mulher (1979) e a
18 McCrudden (2008, p. 665) relata, dentre várias outras, a “Dijon Declaration” de 1936 e a proposta de declaração de direitos formulada pelo Bispado católico dos Estados Unidos em 1946. Observe-se que todos os exemplos reportados, à exceção da Dijon Declaration, situam-se no período final da guerra ou, mais propriamente, no quinquênio que antecede a elaboração da Declaração Universal. 19 Resolução 41/120, da Assembléia Geral da ONU, 4 de dezembro de 1986. Disponível em http://www.un.org/en/ga/search/view_doc.asp?symbol=A/RES/41/120&Lang=E&Area=RESOLUTION. No original: “(…) Invites Member States and United States bodies to bear in mind the following guidelines in developing international instruments in the field of human rights; such instruments should be, inter alia: (…) (b) Be of fundamental character and derive from the inherent dignity and worth of the human person.” 20 No Direito Humanitário pode ser apontada a Convenção de Genebra, de 12 de agosto de 1949, sobre a Proteção das Vítimas de Conflitos Bélicos e seus protocolos seguintes. No texto de 1949, proíbe-se sejam submetidos doentes, prisioneiros e rendidos em situações de Guerra a violações da dignidade, a humilhações e a tratamento degradante. 21 Ratificados pelo Brasil através do Decreto Legislativo n. 226, de 12 de dezembro de 1991, e promulgados pelo Decreto n. 592, de 6 de dezembro de 1992 22 Conforme afirmado por Comparato (2013, p. 237 e 291), estes pactos constituíram a segunda fase de implementação, pela ONU, dos direitos humanos, conforme discutido na reunião de 16 de fevereiro de 1946. Nesta reunião, sustentou-se que a primeira fase consistiria na elaboração de um documento de direitos humanos, enquanto a segunda consistiria na edição de um pacto vinculante e a terceira na criação de mecanismos para assegurar o respeito aos direitos humanos. Os pactos de 66, por conseguinte, constituem desenvolvimentos da Declaração Universal dos Direitos Humanos.
21
Convenção contra a Tortura e Outras Penas ou Tratamentos Cruéis, Desumanos ou
Degradantes (1984).
Após 1986, ano em que editada a Resolução da ONU 41/120 há pouco
mencionada, era mesmo de se esperar que os instrumentos internacionais de proteção aos
direitos humanos continuassem a arrolar a dignidade da pessoa humana como fundamento
geral e específico, mencionando-o não apenas no preâmbulo, mas nela ancorando diretamente
obrigações e direitos, a exemplo do que ocorreu com a Convenção sobre o Direito das
Crianças (1989), com a Convenção Internacional sobre a Proteção dos Direitos de todos os
Trabalhadores Migrantes e dos Membros das suas Famílias (1990), Convenção Internacional
para a Proteção de todas as Pessoas contra o Desaparecimento Forçado (1992) e com a
Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (2007). Também merece menção,
embora se trate mais de um protocolo de intenções que de um documento com força
vinculante, a “Declaração e Programa de Ação de Viena”, resultante da Conferência Mundial
sobre Direitos Humanos organizada pela ONU em 1993, a segunda em sua história e a
primeira após o fim da guerra fria. Neste documento 23, a palavra “dignidade” é mencionada
por duas vezes no preâmbulo e outras oito vezes no corpo da declaração, mais
especificamente nos itens I-11 (possível interface entre tecnologia e dignidade da pessoa
humana), I-18 (direitos das mulheres), I-20 (relaciona dignidade e povos indígenas), I-25
(pobreza extrema e exclusão social como violação da dignidade) e II -55 (elenca a tortura
como ato extremo de violação da dignidade).
Este breve panorama de direito internacional é reforçado, ainda, por atos
regionais sobre direitos humanos, que igualmente fazem referência à dignidade da pessoa
humana, dos quais se destacam24 a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de
São José da Costa Rica – 1969)25, a Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a
Tortura (1985) e a Carta dos Direitos Fundamentais da União Européia (2010), texto no qual a
dignidade é apontada como fundamento da própria União e cujo artigo 1º reproduz, quase
integralmente, a fórmula constante da Constituição da Alemanha26.
23 UN General Assembly, Vienna Declaration and Programme of Action, 12 July 1993, A/CONF.157/23, Disponível em: <http://www.refworld.org/docid/3ae6b39ec.html.> Acesso em: 15 de julho de 2014 24 Para uma listagem mais completa, confira-se McCrudden (2008, p. 671-672) 25 Promulgada com ressalva interpretativa no Brasil através do Decreto 678/92 26 O texto, no idioma português, está disponível em www.europa.eu, sítio oficial da União Européia. Observe-se que a dignidade, nesse texto, dá nome a todo o título I, sob o qual se reúnem, além do já mencionado artigo 1º,
22
Paralelamente a esta abundância de atos no plano internacional, no direito
interno de diversos países o conceito de dignidade também foi sendo paulatinamente
introduzido (ou renovado), isto desde o fim da Segunda Guerra, em movimentos esparsos,
cujo ápice, na Europa, deu-se com o fim das ditaduras grega, espanhola e portuguesa,
ocorrido na década de 70 e, posteriormente, com a redemocratização dos países do Leste
Europeu no início dos anos 90, os quais acabaram adotando como modelo de constituição
democrática, inclusive no que tange aos Direitos Humanos, a Constituição da Alemanha, com
a interpretação que a esta foi dada pelos Tribunais daquele país (MCCRUDDEN, 2008, p.
671). Tal influência se teria feito sentir, ainda, na Constituição pós-Apartheid da África do
Sul, promulgada em setembro de 1996, que encerra, logo em seu primeiro artigo, a dignidade
como fundamento da República Sul Africana27.
A lista das Constituições que fazem referência à dignidade ainda seria
longa, mas os exemplos mencionados aqui não seriam representativos o suficiente sem a
referência à Constituição brasileira de 1988. Nosso texto constitucional não só albergou a
dignidade da pessoa humana logo em seu artigo 1º, mencionando-a como fundamento da
República Federativa do Brasil, como também associou-a à ordem econômica, ao
planejamento familiar e aos direitos da criança e dos idosos.28 Não foi, todavia, o primeiro
texto nacional a relacionar a dignidade à existência humana. As Constituições democráticas
de 1934 e 1946 já o faziam na seção referente à ordem econômica (artigos 130 e 115,
respectivamente), assim como as Constituições de 1967 (artigo 157) e de 1969 (artigo 160),
em que se pregava, de um modo geral, a compatibilização entre a livre iniciativa, o trabalho e
outros quatro versando sobre o direito à vida e à integridade física, bem como sobre a proibição da tortura, penas degradantes, escravidão e trabalhos forçados. 27 Texto disponível em http://www.gov.za/documents/constitution/1996/a108-96.pdf 28 Art. 170 A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios (…) Art. 226 – (…) § 7º - Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas (…) Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão (…) Art. 230. A família, a sociedade e o Estado têm o dever de amparar as pessoas idosas, assegurando sua participação na comunidade, defendendo sua dignidade e bem-estar e garantindo-lhes o direito à vida.
23
o direito a uma existência digna. Nenhuma dessas, todavia, apontava a dignidade como
fundamento da comunidade estatal ou dos atos republicanos, como feito pela Constituição de
1988. A exceção em nossa história constitucional, curiosamente, é o Ato Institucional nº 5,
que a despeito de seu conteúdo coarctador de liberdades e garantias individuais, constitui o
primeiro (e único) texto de caráter constitucional baseado na dignidade da pessoa humana
antes da atual Constituição29.
Apesar desse evento episódico na história constitucional brasileira, além de
possíveis outras ocorrências da mesma natureza30, a inserção da dignidade em textos
constitucionais de diversos países parece estar vinculada a processos genuínos de
democratização, constituindo o resultado da penetração do discurso internacional sobre os
direitos humanos em diversos regimes internos. Esta influência internacional faz-se sentir,
inclusive, no papel atribuído à dignidade nestes diversos textos constitucionais, do qual o
exemplo brasileiro é bastante ilustrativo. Embora não se trate de uma tendência livre de
inúmeras exceções, a dignidade, que outrora aparecia pontualmente em Constituições,
associada à educação, à família ou ao trabalho, passa a ocupar lugar de destaque, atribuindo-
se-lhe o papel de fundamento da própria comunidade estatal e passando a sua defesa e
garantia a constituir um dos objetivos primordiais desta mesma comunidade.
1.3 A dignidade é o fundamento dos direitos humanos?
Até o momento, ao cuidar dos direitos humanos em sua intersecção com a
dignidade da pessoa humana, focou-se nos textos positivos elaborados no período posterior à
segunda grande guerra, marcado pela criação da ONU e pela internacionalização dos direitos
humanos. A história destes direitos, todavia, não se resume, de maneira alguma, a este
período. Além de ser corrente a pesquisa histórica orientada pela tentativa de reconhecer um
progresso moral do homem desde a Antiguidade Clássica31, subsiste também aquela que se
29 Em seu primeiro “considerando”, traz expressamente: “CONSIDERANDO que a Revolução Brasileira de 31 de março de 1964 teve, conforme decorre dos Atos com os quais se institucionalizou, fundamentos e propósitos que visavam a dar ao País um regime que, atendendo às exigências de um sistema jurídico e político, assegurasse autêntica ordem democrática, baseada na liberdade, no respeito à dignidade da pessoa humana, no combate à subversão e às ideologias contrárias às tradições de nosso povo, na luta contra a corrupção (…)” 30 Barroso (2013, p. 20) menciona, ainda, como exemplos de uso semelhante, o Fuero de los españoles de 1945, uma das leis fundamentais aprovadas durante o regime franquista na Espanha, e o esboço de Constituição do Marechal Petain em 1940, na França, elaborado durante o período de colaboração com os nazistas. 31 Este progresso confundir-se-ia com a própria história dos direitos humanos e, na medida em que permitiria “intuir o sentido geral da marcha da humanidade” (TRAVIESO, 2005, p. 15), serviria não apenas como seu fundamento, em uma abordagem objetivante claramente hegeliana da história (SAMPAIO, 2010., p. 101), mas
24
dedica a estudar os sucessivos textos normativos cogentes que fizeram avançar, em alguma
medida, a proteção à vida, à liberdade e a diversos outros direitos do homem. A Magna Carta
inglesa de 1215, a Bill of Rights da Inglaterra de 1689, a Declaração de Independência
americana de 1776 e a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (França, 1789) são
considerados, dentre muitos outros textos normativos, como marcos importantes deste estudo
histórico que tem seguimento, no período pós-guerra, com a Declaração Universal dos
Direitos Humanos, a Constituição da Alemanha e o incontável número de documentos
internacionais já mencionados no item anterior, todos eles encerrando referência à dignidade
humana.
Esse período do pós-guerra, todavia, não adquire relevo apenas pela
crescente internacionalização dos direitos humanos32, mas também pelo que é considerado
uma mudança em seu fundamento de validade, operada por meio da substituição, ao menos no
plano formal, de abstrações metafísicas e revelações religiosas transcendentes pelo próprio
homem, considerado em sua dignidade (COMPARATO, 1997, p. 7) 33 . Enquanto nos
documentos anteriores, para fundamentar a validade dos direitos humanos então protegidos,
invocava-se expressamente a vontade de Deus34, na Declaração Universal dos Direitos
Humanos de 1948 postulou-se, pela primeira vez, um conjunto de direitos baseado
unicamente na dignidade humana, sem referência a Deus ou a qualquer outro elemento
declaradamente metafísico.
É certo que, bem analisada dentro do contexto histórico e filosófico, não se
pode considerar que esta superação formal da autoridade divina ocorrida em 1948 – ou
tampouco a invocação dela em textos anteriores – seja representativa de uma modificação
também como justificador de sua crescente universalização. Sem a objetivação hegeliana, mas considerando, sob invocação de Kant, que o atual debate sobre direitos humanos constitui um “‘sinal premonitório’ do progresso moral da humanidade”, vide Bobbio (2004, p. 49). 32 Segundo Travieso, (2005, p. 260) este período de internacionalização marcou-se pela impugnação do conceito clássico de soberania e pela admissão da pessoa individual como sujeito de direito internacional. Cliteur e Wissen (2004, p. 157-158), ratificando a importância da Declaração Universal, aponta que esta constituiu um salutar compromisso entre Oriente e Ocidente e a primeira vez que um conjunto de valores foi estabelecido com pretensões de universalidade. 33Tal espectro de laicização, segundo Comparato, é tendência da modernidade, consolidada na DUDH. Observe-se, todavia, que a menção ao “ser supremo” no preâmbulo da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 não impediu que Arendt (1989, p. 324) a considerasse já o marco decisivo a partir do qual a fonte da lei deveria encontrar-se no homem e não mais em Deus. 34 v.g. a Declaração de independência dos Estados Unidos da América propugnava: “Consideramos as seguintes verdades como autoevidentes, a saber, que todos os homens são criaturas iguais, dotadas pelo seu Criador de certos direitos inalienáveis, entre os quais a vida, a liberdade e a busca da felicidade”.
25
súbita na história do pensamento humano ou da vida pública. Ao revés, se comparados ambos
os cenários, o que se verifica é um aparente descompasso entre esta invocação e o
desenvolvimento histórico, tendo em vista que o movimento antropocêntrico e a crescente
secularização da vida pública já se haviam iniciado muitos séculos antes, no início da Idade
Moderna, período em que ocorreu a retomada das tradições greco-romanas e a fratura da
unidade católica na Europa. Foi em tal época que se estabeleceram, como ressalta Kelly
(2010, p. 207), os fatores a partir dos quais o mundo moderno nasceu, inclusive a crescente
superação da autoridade eclesiástica, que culminou no racionalismo iluminista, marcado pela
rejeição de todos os sistemas tradicionais de autoridade ou ortodoxia e pela fé no poder da
razão para fazer progressos ilimitados nas ciências e nas técnicas conducentes ao bem estar
humano (KELLY, 2010, p. 328).
Observe-se que nem mesmo se comparada com a história das ideias
propriamente jurídicas, em especial com os desenvolvimentos do pensamento a respeito do
direito natural, esta superação formal do divino apenas em 1948 parece cronologicamente
adequada. Aqui não se cogita, ainda, da influência do pensamento jurídico sobre a elaboração
de instrumentos legislativos, mas pode-se reconhecer que a tentativa de estabelecer um
sistema de Direito Natural válido mesmo sob a hipótese da inexistência de Deus já vinha
sendo desenvolvida desde os espanhóis da escolástica tardia, ganhando corpo e consistência
sobretudo com Hugo Grócio (sec. XVII), ao basear sua construção teórica na natureza
sociável do homem e não diretamente em Deus (KELLY, 2010, p. 295-296). Considerando-se
que esta separação acirrou-se no período iluminista, época na qual, inclusive, a figura de Deus
passou a ser tomada, em muitos casos, por mero “acessório decoroso” em um sistema racional
de direitos (KELLY, 2010, p. 340), não parece incorreto afirmar que já havia, em
praticamente todas as declarações de direitos, ao menos esteio teórico para o engendramento
de um corpo normativo sem o recurso ao ser divino, o que só acirra a percepção de um
aparente anacronismo. O que se pretende pôr em relevo, entretanto, não é este aparente
anacronismo, mas a mudança operada a partir de 1948. Como decorrência dessa forma de
justificação explícita de direitos na dignidade, do fato de não se invocar a religião como
fundamento, bem como dos subsequentes usos que se passou a fazer da expressão dignidade
em diversos documentos versando sobre direitos humanos, tornou-se corriqueira a afirmação
de que a dignidade da pessoa humana constitui o fundamento dos direitos humanos
26
(CLITEUR; WISSEN, 2004, p. 158)35, com o que se empreenderam esforços, a partir deste
fato, para encontrar as raízes históricas do conceito. Invocar-se a dignidade como justificação
dos direitos humanos, todavia, só permite responder à questão dos fundamentos até certo
ponto e acaba revelando-se, nessa perspectiva, um truísmo decorrente da referência ao direito
internacional positivado. Afirmar-se, como se faz modernamente, que todo homem é
merecedor de igual respeito e proteção em virtude de sua dignidade conduz, necessariamente,
a um questionamento acerca do que confere esta dignidade ao homem e, por via de
consequência, a uma nova investigação de fundamentos.
As discussões ordinariamente desenvolvidas sobre a dignidade da pessoa
humana, entretanto, não deixam sobressair com tanta facilidade esta diatribe sobre
fundamentos últimos, porquanto a pesquisa histórica sobre o conceito de dignidade e seu
significado acabam por suprir, ao menos em alguma medida, um tanto do necessário à
operacionalização do conceito. Ademais, no subterrâneo desse problema parece encontrar-se a
vasta discussão acerca da possível separação, sob diversos quadrantes, entre conceito e
fundamento dos direitos humanos, debate que se mostra pertinente a fim de esclarecer, ou de
pelo menos formular uma hipótese acerca do papel da dignidade no discurso dos direitos
humanos.
1.3.1 Problemas de conceito e fundamento
Quando se cogita da vinculação entre o conceito de direitos humanos e sua
fundamentação, costuma-se classificar os resultados obtidos em perspectivas monistas ou
dualistas (LUCAS, 1992, p. 13-14). Da ótica monista, as perguntas pelo conceito e pelo
fundamento dos direitos humanos recebem a mesma resposta, o que acaba por conduzir ao
jusnaturalismo ou ao legalismo positivista extremado. Do ângulo dualista, encontram-se
respostas de matizes variados, que sustentam, em comum, a separação do plano jurídico
(conceitual) e do filosófico (fundamentação), ora tentando fugir da aporia representada pelo
35 Hennette-Vauchez (2008, p. 5) aponta que seria quase impossível listar, dada a ingente quantidade, todos os trabalhos segundo os quais a dignidade figuraria como fundamento dos direitos humanos. Observe-se que esta função fundante é reconhecida expressamente pelo comitê redator da Carta Européia dos Direitos Fundamentais, conforme rascunho da Carta disponível em http://www.europarl.europa.eu/charter/pdf/04473_en.pdf , em que cada artigo é acompanhado de uma série de razões explicativas. Nas explicações relativas ao artigo 1º afirma-se que a dignidade constitui a base real dos direitos fundamentais (no original: “The dignity of the human person is not only a fundamental right in itself but constitutes the real basis of fundamental rights”)
27
binômio jusnaturalismo/positivismo através de soluções complexas como a de Peces-Barba,
ora questionando a própria possibilidade de fundamentação filosófica.
As diversas perspectivas sobre conceito e fundamentos dos direitos
humanos nas teorias monistas e dualistas possivelmente encontram como ponto de partida os
questionamentos relacionados ao próprio conceito de direitos humanos, que teriam certa
prioridade lógica sobre aqueles relacionados ao seu fundamento (LAPORTA, 1987b, p. 23-
24)36. Embora tal assertiva, acerca da prioridade lógica do conceito sobre as questões
filosóficas, já seja reveladora das dificuldades enfrentadas por aqueles que propõem tal
separação37, serve para marcar a atitude comumente adotada por tais teóricos, que ao tentar
fugir do problema central gerado pelas teorias monistas, focam seus esforços em alcançar um
conceito de direitos humanos que, sem perder a conexão com o direito positivado no plano
nacional e internacional, não o faça depender unicamente da vontade do legislador. Dito em
outras palavras, já um pouco mais críticas: por um lado, se o conceito de direitos humanos
coincide com a sua positivação, nela encontrando fundamento, tais direitos poderiam perder
boa parte sua própria razão de ser38; por outro, postular-se direitos humanos como uma ordem
ideal, que independa do direito positivo, remete não apenas a uma necessária fundamentação
no direito natural, mas ao preenchimento jusnaturalista do conceito, o que tem sido, por
muitos, rechaçado, em razão de inúmeras dificuldades teóricas, visualizadas especialmente
quando se enfrenta uma concepção ahistórica do jusnaturalismo (LUÑO, 1987, p. 54)39.
36 É importante salientar que, não obstante adote este ponto de vista como uma tendência geral, o autor não o fundamenta e reconhece, antes de tecer sua teoria dualista, que as questões conceituais sempre estão vinculadas a problema de justificação e que é artificioso distingui-las de maneira demasiado enfática. 37 O problema reside, precisamente, em, admitindo-se a coexistência entre um plano jurídico-experiencial e um outro, filosófico, sustentar-se a prioridade lógica daquele sobre este. Observando-se a discriminação do saber jurídico realizada por Miguel Reale, não há como deixar de admitir que o plano filosófico, marcado pela atitude crítica diante da condicionalidade recíproca entre sujeito e objeto e pela pesquisa das condições transcendentais da experiência jurídica, antepõe-se, ainda que apenas sob o ponto de vista lógico ou axiológico, a tal experiência concreta. É nesse plano transcendental, em que se situa o que Reale denomina “Ontognoseologia jurídica”, que se estabelecem os conceitos universais, válidos para todo e qualquer direito possível, nisto consistindo o caráter de sua transcendentalidade, como condição universal das experiências possíveis. (REALE, 1992, p. 51-58) 38 A propósito dos “moral rights”, conceito anglo-saxão de grande penetração na doutrina espanhola sobre os Direitos Humanos, Laporta, discutindo respostas a sua teoria, afirma que o desconhecimento de tais direitos “justifica acciones como la desobediencia a las leyes y la resistencia a la opresión jurídico-positiva” (LAPORTA, 1987a, p. 74). Também Luño (1993, p. 180-181) ressalta terem os direitos humanos uma irrenunciável dimensão prescritiva ou deontológica, que implica exigências de dever ser e legitima sua reivindicação onde não foram reconhecidos. 39. Conforme salienta esse autor, levando-se a concepção jusnaturalista às últimas consequências seria necessário reconhecer que as declarações de direitos humanos não dizem respeito aos direitos humanos. Não obstante tal assertiva, é difícil deixar de reconhecer que as doutrinas de direito natural revigoraram-se definitivamente na segunda metade do Século XX, após um período de certo declínio no curso do Século XIX, ao menos em alguns setores do pensamento (WALDRON, 2009b, p. 5-6).
28
As tentativas de superação dessa dicotomia são realmente variadas e talvez a
posição mais elementar seja a negação da possibilidade de fundamentar racionalmente os
direitos humanos por uma via única, como diz Noberto Bobbio. Com a aparente simplicidade
que lhe é peculiar, e com objetivo claro de desqualificar tal busca, Bobbio apresenta a questão
do fundamento nos seguintes termos:
Partimos do pressuposto de que os direitos humanos são coisas desejáveis, isto é, fins que merecem ser perseguidos, e de que, apesar de sua desejabilidade, não foram ainda todos eles (por toda a parte e em igual medida) reconhecidos; e estamos convencidos de que lhes encontrar um fundamento, ou seja, aduzir motivos para justificar a escolha que fizemos e que gostaríamos fosse feita também pelos outros é um meio adequado para obter para eles um mais amplo reconhecimento. (BOBBIO, 2004, p. 15-16)
Conclui, em seguida, que a busca do fundamento é uma ilusão40. Os direitos
humanos não seriam definidos por tal fundamento, mas como produtos históricos de uma
determinada época, o que importa lidar com o conceito de Direitos Humanos
independentemente de uma fundamentação única e perene. Na doutrina espanhola, ao menos dois posicionamentos distintos podem ser
qualificados pela mesma aproximação histórica na pesquisa conceitual, mas sem o ceticismo
manifesto quanto à possibilidade de fundamentação. Perez Luño (1987, p. 62) 41 considera
que o conceito de Direitos Humanos não pode ser obtido abstraindo-se a trama real e concreta
da história, já que tais direitos aparecem como réplicas a situações de violação 42 ,
mencionando, inclusive, o “trânsito à modernidade” proposto por Peces-Barba para sustentar
que são uma categoria histórica, que só pode ser predicada com sentido em um contexto
determinado (LUÑO, 1987, p. 55). Não pretende, todavia, fundamentar tais direitos históricos
pelo recurso à própria história, nem tampouco desiste de fundamentá-los, adotando uma
posição cética, como fica evidente em outro texto que dedica especificamente ao assunto
(LUÑO, 1983). Neste artigo, no qual analisa a possibilidade de fundamentação dos direitos
humanos, examina, ainda que brevemente, desde as posturas não cogniscitivistas da filosofia
40 Bobbio afirma que é justamente dessa finalidade que surge a ilusão do fundamento. 41 Neste artigo, produzido em resposta ao artigo de Francisco Laporta que será comentado em sequência, o autor tenta buscar diversas respostas à pergunta “o que são direitos humanos”?, iniciando por análises lógicas e culminando em sua aproximação histórica do conceito. 42 Também Habermas (2012, p. 11) considera o surgimento dos Direitos Humanos a partir da oposição à arbitrariedade, opressão e humilhação.
29
analítica até as que importam em fundamentação intersubjetiva dos direitos humanos43,
sustentando, ao final, embora sem negar peremptoriamente qualquer das propostas de
fundamentação, a necessidade de uma mediação crítica entre a teoria consensual da verdade
habermasiana e a filosofia das necessidades radicais defendida pela Escola de Budapeste
(LUÑO, 1983, p. 67-68)44. Observe-se que tal autor, embora adote uma acepção da palavra
“jusnaturalismo” que qualifica como deontológica, funcional e aberta, inicia sua análise sob o
pressuposto de que nem os direitos legais, nem os reconhecidos pelo costume constituem
fundamento suficiente para os direitos humanos, acrescentando que só sob o enfoque
jusnaturalista tem sentido postular uma fundamentação de tais direitos (LUÑO, 1983, p. 13)45.
Mais precisamente, sustenta ele que sua definição de direitos humanos responde a três ideias
43 De peculiar interesse é a análise que desenvolve a respeito das consequências práticas de cada uma das espécies de fundamentação. A teoria objetiva dos valores, que adquiriu relevância na jurisprudência alemã no período imediatamente posterior à guerra, é criticada pela possibilidade de conduzir a uma tirania dos valores (Tyrannei der Werte); as fundamentações de caráter subjetivista, em que pese o papel crucial na garantia das liberdades públicas individuais decorrentes da defesa da autonomia do indivíduo, têm se mostrado ineficazes quando se trata da incorporação, ao rol dos direitos fundamentais, dos assim chamados direitos sociais e; por fim, as fundamentações intersubjetivistas, a despeito de viabilizarem um discurso defensor da multifuncionalidade dos direitos fundamentais, adequados a um sistema axiológico pluralista, apresentam o risco de permitir a relativização, em excesso, do conteúdo de tais direitos. (LUÑO, 1983, p. 61-62) 44O próprio Perez Luño qualifica a teoria consensual da verdade como uma superação crítica das perspectivas éticas subjetivististas e objetivista, desenvolvida sob o postulado de que a validade ou invalidade de um determinado argumento pode ser medida a partir de sua aptidão para que se alcance, a seu respeito, um entendimento intersubjetivo. Nessa perspectiva, o valor verdade, aplicável a um enunciado, assim como o valor correção, pertinente às normas que regulam a atividade social, só podem ser postulados sob a ideia de um consenso racional, alcançável a partir do que Habermas considera uma situação comunicativa ideal. A postulação do complemento da Escola de Budapeste na seara dos direitos humanos decorreria, segundo o próprio Luño, de uma espécie de “lacuna” interna da teoria habermasiana, tendo em vista que o consenso universal neste campo teria como condição necessária a possibilidade de argumentar intersubjetivamente sobre necessidades generalizáveis. A Escola de Budapeste, conforme explicita Luno, é formada essencialmente por discípulos de György Lukács e teria promovido, principalmente através de Agnes Heller, a reconstrução do conceito de necessidade formulado por Marx, que distinguia entre “necessidades naturais” (auto conservação), “necessidades necessárias” (elementos culturais) e “necessidades radicais” (opções axiológicas conscientes só passíveis de serem satisfeitas em uma sociedade completamente desalienada). A reconstrução de Heller importava em realizar o trânsito entre a necessidade natural e a radical ressaltando as distinções entre os planos quantitativo e qualitativo (orientados, respectivamente, ao ser e ao ter) e entre a dimensão autêntica das necessidades (produto da autoconsciência livre que só ocorreria no reino da liberdade da comunidade dos trabalhadores associados) e a sua falsificação, culminando na compreensão de que as necessidades radicais são autênticas e qualitativas . O objetivo de unir, complementarmente, essas duas filosofias, consistiria em buscar, na Escola de Budapeste, mais especificamente na teoria das necessidades radicais, o substrato para o consenso habermasiano. Essas necessidades, enquanto dados sociais e historicamente vinculadas à experiência humana, possuiriam uma objetividade e uma generalidade que permitem sua generalização através da discussão racional e do consenso, bem como sua concreção em postulados axiológicos materiais. (LUÑO, 1983, p. 47-54) 45 Segundo o autor, o caráter deôntico, funcional e aberto relaciona-se, precisamente, com a amplitude pretendida ao conceito de jusnaturalismo, que é contraposto, apenas, ao de realismo e ao de positivismo, posturas segundo as quais a fundamentação apresenta-se, respectivamente, desnecessária e impossível. Sob o manto do jusnaturalismo, conclui, não se albergam apenas as teorias que apelem a alguma versão concreta do direito natural, mas todo o conjunto de teses metaéticas que afirmam a necessidade do reconhecimento de um conjunto de direitos básicos, bem como aquelas que propõem a possibilidade de conhecer e justificar tais direitos.
30
guia: jusnaturalismo em seu fundamento, historicismo em sua forma e axiologismo em seu
conteúdo (LUÑO, 1993, p. 180).
A exemplo de Perez-Luño, Peces-Barba Martinéz também sustenta ser a
dimensão histórica imprescindível para entender o sentido dos direitos fundamentais. Sob a
emblemática afirmação de que “los derechos fundamentales son un concepto histórico próprio
del mundo moderno” (MARTÍNEZ, 1986-1987, p. 220-221) 46 , Martinéz não nega a
possibilidade de uma fundamentação ética prévia à positivação como direitos, ou a existência
de necessidades humanas ahistóricas e permanentes, mas recusa-se a sustentar que tais
elementos sejam determinantes em seu conceito de direitos fundamentais, pois, do contrário,
adotar-se-ia uma perspectiva semelhante à jusnaturalista. Não se trataria, pois, da atualização
histórica de uma ideia central definidora dos direitos humanos, mas de um conceito
essencialmente histórico, marcado pela confluência de diversos fatores, inclusive de
necessidades humanas fundamentais e de outras exigências éticas.47 Em consonância com tal
conceito histórico, sustenta que a investigação dos direitos fundamentais há de ser feita
através de um exame histórico que tenha como ponto de partida o trânsito para a
modernidade, abrangendo três níveis distintos (MARTÍNEZ, 1986-1987, p. 229-231): 1) da
evolução de todos os fatores econômicos, sociais, culturais e políticos que explicam a origem
histórica dos direitos fundamentais e que podem iluminar o desenvolvimento de tais direitos;
2) da evolução do pensamento jurídico-filosófico acerca destes mesmos direitos, sobretudo as
tentativas de explicação de seu conceito, sentido e fundamentação. Neste ponto, não se deve
descurar do jusnaturalismo racionalista e clássico, da fundamentação ética e tampouco das
justificações intersubjetivas, as quais o autor vincula ao “consenso majoritário das culturas
avançadas a respeito do sentido da defesa da dignidade do homem, através dos valores da
liberdade e igualdade cristalizados nos direitos fundamentais” (MARTÍNEZ, 1986-1987, p.
230, tradução nossa); 3) incorporação destes valores, destes ideais éticos e dos instrumentos
de defesa das necessidades essenciais aos direitos fundamentais, o que ocorre através do
estudo das declarações de direitos, das constituições, das leis, da jurisprudência e de todos os
instrumentos de produção normativa. Neste terceiro nível é que se tomaria progressiva 46Observe-se que o autor, justamente em virtude de sua concepção histórica, privilegia o termo direitos fundamentais em detrimento do termo “direitos humanos”. 47 Isso fica mais claro quando se observa o que afirma sobre as necessidades humanas: “Las necessidades humanas, o al menos algunas de ellas, son ahistoricas y permanentes, y hay que matizar que sólo a partir del transito a la modernidad se dispone del instrumento conceptual y luego jurídico de los derechos fundamentales para resolverlas, y precisamente por tratarse de uno concepto histórico no sólo aparece en un momento histórico, sino que se perfila, se matiza, evoluciona y se desarolla a lo largo de esos siglos XVI a XX y todavía hoy, como veremos, tiene mucho que recorrer.” (MARTÍNEZ, 1986-1987, p. 227-228)
31
consciência, segundo Peces-Barba, da importância do poder como determinante do transcurso
entre os ideais da filosofia dos direitos humanos e sua transformação em direito positivo.
Outros autores de língua espanhola, a exemplo de Carlos Santiago Nino e
Francisco Laporta, ambos defensores da teoria anglo-saxã dos direitos morais, tentam superar
a problemática positivista/jusnaturalista no campo dos direitos humanos através de uma
associação específica entre direito e moral, que se vislumbraria explicitamente no “discurso
justificatório” e que tem como pressuposto a constatação linguística de que direitos não
podem ser confundidos com os mecanismos para sua proteção48. As teorias desenvolvidas por
ambos assentam-se sobre a premissa comum de não existir qualquer tipo de incongruência na
expressão “direitos morais”, já que ter direito a algo seria uma categoria anterior à sua
proteção através de mecanismos diversos49. Na acepção de Laporta, não temos direitos porque
nos atribuem uma proteção, mas nos atribuem uma proteção em virtude de termos direito,
assim como, da mesma maneira, não temos direitos em virtude dos deveres alheios de
respeito, mas o inverso. Justamente dessa confusão entre direito e técnica de proteção é que
teria surgido a ideia de que “direitos” são fenômenos exclusivos do sistema jurídico e que não
aparecem em outros sistemas normativos.
Observe-se que estas ideias não implicam, ao menos não de forma simplista,
negar-se a atributividade50 como nota distintiva entre o jurídico e o moral. A possibilidade de
exigência destes direitos por meio do recurso a mecanismos de proteção continua, mesmo
nessa visão, demarcando o território do jurídico. O que se propugna, em realidade, é um
alargamento da expressão “direitos” – especialmente no sentido subjetivo – reconhecendo-se
que em qualquer sistema normativo dotado de um certo grau de complexidade interna seria
possível utilizar a expressão “ter um direito”, que não estaria associada, de forma necessária,
à linguagem jurídica e aos mecanismos de proteção instituídos (LAPORTA, 1987b, p. 31).
Não se olvida que este pensamento pode acarretar inúmeras discussões a respeito do que
significa “ter um direito”, mas também se pode considerar que a problemática constitua, em
48 Nino (1990, p. 314) fala em “acciones procesales”, enquanto Laporta (1987b, p. 27) assevera que constitui erro confundir tipos de direitos com tipos de proteção normativa que se dispensa aos direitos. 49 “Lo que quiero sugerir es que los ‘derechos’ son algo que, por así decirlo, está antes que las acciones, pretensiones o exigencias, antes que los poderes normativos, antes que las libertades normativas y antes que las inmunidades de status. (…) Sugiero que cuando usamos la noción de ‘derecho’ no estamos hacienda referencia a ciertas normas primarias o secundarias de un cierto sistema normativo, sino a la razón (Raz, 1984) que se presenta como justificación de la existencia de tales normas”. (LAPORTA, 1987b., p. 27) 50 A atributividade é expressão tomada de empréstimo de Reale e compõe, em conjunto com a coercibilidade e a heteronomia, os caracteres distintivos entre direito e moral. (REALE, 2015, p. 46-52)
32
grande parte, um preconceito linguístico, decorrente de, em inúmeras línguas latinas, existir
uma única expressão para denominar direito objetivamente considerado (sistema jurídico) e o
direito de um determinado indivíduo. Esta dificuldade, que implica, principalmente, a já
mencionada impressão de existir uma incongruência na expressão “direitos morais”, não
estaria presente no idioma inglês, em que os conceitos diferenciam-se, linguisticamente, sob
as palavras “law” e “right” (NINO, 1990, p. 312-313)51.
Segundo Laporta (1987b, p. 28-29), trazer os direitos para um momento
anterior à sua proteção institucionalizada e considerar que os mecanismos de proteção surgem
em virtude deles, conduz a que se tome consciência, ao menos, de dois pontos relevantes. Por
um lado, permite a constatação de que o sistema normativo não é composto só por normas
constituidoras dos mecanismos de proteção – que denomina “normas-conduta” e “normas-
poder” –, mas que tal sistema estrutura-se para proteger algo que é anterior a tais mecanismos.
Questionar o que seria esse algo, que está no cerne da discussão sobre o que se chama direito,
constituiria uma das tarefas de quem se dedica a analisar essa noção. Por outro, esta
multiplicidade de elementos internos ao sistema demandaria a percepção de que a natureza
das relações entre tais elementos se afastaria, algumas vezes, daquelas de caráter lógico
dedutivo e se aproximariam de uma justificação racional, com recurso à razão prática52.
Deveras, o que parece haver de marcante nessa linha de ideias – embora o desenvolvimento
do tema exceda os objetivos do presente trabalho – é o aparente alinhamento à percepção
mais ampla, desenvolvida sobretudo no pós guerra, de que as ciências humanas não poderiam
prescindir de uma racionalidade moral-prática, rompendo-se – ao menos parcialmente, já que
ambos ainda convivem – com o modelo de racionalidade cognitivo-instrumental até então
predominante (SOUZA, 2005, p. 281-282).
A inserção dessas relações de justificação dentro do sistema jurídico parece
mais clara, entretanto, em Santiago Nino, que propõe a convivência de diversos conceitos de
norma jurídica, separando ao menos dois planos de referencialidade. Por um lado, considera
que o termo pode referir-se 1) a uma prática social (regularidade de ações e atitudes); 2) a um
ato linguístico que se executa com intuito de influenciar um comportamento (prescrições); 3)
a um determinado texto (quando se fala de interpretar uma norma) e; 4) às proposições que 51 Como lembra o autor, embora a expressão inglesa “moral rights” traga à tona uma dificuldade conceitual, tendo em vista a existência, na língua inglesa, das categorias “law” e “right”, que estão reduzidas no espanhol (e no português) à palavra “direito”, isto não constitui óbice intransponível à operacionalização do conceito de direitos morais. 52 Ibidem., p. 28-29.
33
descrevem estes fenômenos. Aparentemente, este primeiro plano estaria relacionado, ao
menos em alguma medida, às relações de caráter lógico-dedutivo mencionadas por Laporta.
Por um outro lado, considera que norma jurídica refere-se também a um juízo normativo, i.e.
a uma proposição que qualifica deonticamente uma determinada ação. É principalmente por
meio do reconhecimento da existência deste conceito de norma jurídica que Santiago propõe-
se comprovar que o discurso jurídico prático é uma espécie do discurso prático geral – prova
que considera de suma importância e que seria capaz, inclusive, de substituir boa parte das
discussões a respeito do conceito de direito –, culminando na ideia de que só os direitos
estabelecidos direta ou indiretamente por princípios morais – e que constituem portanto
direitos morais – podem servir de razões para atuar (NINO, 1990, 316-321).
Para alcançar esta conclusão, Nino toma como base o conceito de
proposição justificatória de uma ação ou decisão – aquela cuja formulação implica certa
inconsistência prática com a ausência de realização da ação ou decisão ali prevista – e
prossegue analisando o discurso judicial prático, com a ponderação de que somente tomando-
se a norma em uma de suas acepções possíveis, qual seja, a de juízo normativo, é possível
justificar-se uma determinada proposição do tipo “alguém deve fazer algo”. Como ressalta o
autor, o arrazoado a respeito de tal prescrição sempre conjugaria um juízo de fato e um de
direito, não bastando, para este último, grosso modo, uma afirmação do tipo “o legislador
prescreveu algo”, já que esta assertiva não tem força justificatória. Uma afirmação desta
espécie só adquiria tal força quando acompanhada de um juízo normativo prévio do tipo “o
legislador deve ser obedecido”, linha de raciocínio que identifica a juridicidade da norma
jurídica sob o aspecto da autoridade/origem, mas que conduz a uma regressão
necessariamente finita dentro do universo jurídico. Sob o ângulo da razão prática, entretanto,
o sistema não admitiria um fechamento artificial ao estilo kelseniano, tendo em vista que a
norma hipotética fundamental, justamente pelo seu caráter hipotético, não é capaz de
desempenhar qualquer papel no discurso prático53. Alcançado os limites do sistema jurídico e
cessada, assim, a distribuição de competência, seria necessário admitir que um juízo
normativo final não seria aceito em virtude de ter sido posto por uma autoridade respaldada
em uma outra norma, mas por seus próprios méritos, o que permite reconhecer nele o
caractere de autonomia, enfatizado por Kant como próprio dos juízos morais. Com esta
53 “Un juicio normativo que es aceptado sólo como hipótesis sólo permite justificar decisiones hipotéticas, por lo que no tiene ningún rol en un razonamiento práctico justificatorio de acciones y decisiones reales, como el de los jueces” (NINO, 1990, p. 321).
34
raciocínio, poder-se-ia alcançar a conclusão, aparentemente paradoxal, de que as normas
jurídicas podem ser identificadas enquanto tal por sua derivação, no discurso prático, de um
juízo de índole moral.
Tal aproximação entre o cerne do Direito e a Moral, entretanto, não
transformaria o Direito em um sistema estático, que se resolve sob o desenvolvimento lógico
dedutivo de uma ou várias premissas morais específicas, concepção ademais notadamente
incompatível com qualquer sistema jurídico moderno. Mesmo tomando-se o sistema apenas
sob o prisma das normas jurídicas justificatórias, as normas morais puras desempenhariam
duas funções razoavelmente distintas. Em boa parte do sistema, constituiriam fundamento
último da legitimidade da autoridade estatal, apenas estabelecendo o dever de obedecer a uma
determinada autoridade e, por conseguinte, às normas jurídico-morais por ela prescritas, sem
que se visualize, em tais normas, um desdobramento direto de uma norma moral. Estes
direitos correlativos de deveres, estabelecidos por normas jurídico-morais assim postas, serão
chamados pelo autor de direitos institucionais. Outras normas morais puras, todavia,
estabeleceriam diretamente direitos não institucionais, também de natureza moral, que
constituiriam, os chamados direitos fundamentais54. O grau de vinculatividade de tais direitos,
o seu destinatário (legislador, juiz e cidadão), bem como a maneira de resolver eventuais
conflitos com direitos institucionais são remetidos, por Santiago Nino, para o plano da ética
normativa.
É importante ressaltar, para exata compreensão dessas ideias, que o sistema
normativo acima é entrevisto a partir do contexto justificatório, mas que este não seria, como
já visto, o único sentido de norma para Nino. As outras espécies de normas, entretanto, não
proporcionariam razões para justificar uma determinada ação ou decisão, embora possam
constituir, quando tenham origem democrática, fundamento epistêmico para inferir, com
alguma probabilidade, quais são as normas morais puras do sistema (NINO, 1990, p. 324). É
54 A esta altura é importante salientar que Nino admite clara inspiração dworkiniana, em especial ao reportar-se ao esquema justificatório e aos assim chamados direitos institucionais. Dworkin, efetivamente, tenta superar o que considera ser o positivismo hartiano através de um exame do Direito sob o prisma da razão prática, além de traçar distinção, realmente, entre direitos institucionais – definidos como aqueles “que oferecem uma justificação para uma decisão tomada por alguma instituição política específica” – e os “ground rights”, que forneceriam, na perspectiva do autor anglo-saxão, justificativa “para as decisões políticas tomadas pela sociedade em abstrato” (DWORKIN, 2002, p. 145). Não obstante estas aparente semelhanças, assenta-se que não constitui objeto do presente estudo avaliar a fidelidade de Nino aos conceitos de Dworkin, tampouco efetuar exame sobre a doutrina anglo-saxã dos direitos morais, mas tão somente realizar um aporte da doutrina de Nino, na medida em que fornece um esquema para separação metodológica entre direito e fundamento dos direitos humanos.
35
através deste expediente, concebendo diversos sentidos distintos para a norma jurídica e
admitindo o uso da palavra direito também para a descrição do quanto positivado em um
determinado sistema, que Nino acredita superar as intermináveis controvérsias entre
jusnaturalismo e positivismo, que teriam se desenvolvido, equivocadamente, tendo em seu
cerne justamente o conceito de direito (NINO, 1990, p. 316)55 e que atingem, outrossim, a
questão dos direitos humanos.
A igual desfecho acredita ter chegado, também, Laporta (1987a, p. 73), ao
aproximar direitos humanos e direitos morais, sob o argumento de que não se trataria de
pressupor dois sistemas jurídicos paralelos, circunstância típica do jusnaturalismo, mas de um
sistema normativo moral paralelo ao jurídico, ambos compostos por direitos, sendo no
primeiro os morais e no segundo os jurídicos. Entre estes sistemas não haveria intersecção
necessária, mas o conceito moderno de direitos humanos, com os caracteres de serem
universais, absolutos (que ele melhor caracteriza como prima facie) e inalienáveis,
demandaria que se lhes qualificasse como direitos morais e não jurídicos.
Os dois modelos acima analisados propõe-se a alcançar um conceito de
direitos humanos que independa de sua fundamentação. No primeiro (Perez Luño e Peces-
Barba Martinéz), os direitos humanos são trazidos a lume como um fenômeno eminentemente
histórico, fruto da modernidade, e não podem ser abordados senão em consonância com a
complexidade histórica que determinou a sua formação, sem que para tanto seja
imprescindível um apelo definitivo e unívoco à fundamentação56. No segundo (Francisco
Laporta e Carlos Santiago Nino), eles são aproximados da moral, mas tais direitos morais não
são trazidos como fundamento dos direitos humanos, senão como seu conceito, visualizando-
se duas possibilidades distintas em sua relação com o direito positivo: a) não reconhecidos 55 Nino, em conformidade com o já exposto, acredita que o tema central da filosofia do direito consistiria em determinar se o discurso jurídico prático constitui um discurso autossuficiente ou, meramente, um caso especial do discurso prático geral, questão que estaria no cerne, inclusive, da controvérsia a respeito do jusnaturalismo em contraposição ao positivismo. Sua forma de pensar representa um deslocamento, para a seara da razão prática, desta controvérsia entre jusnaturalismo e positivismo, que normalmente encontra seu foco no conceito de direito e nos diversos empregos visualizáveis para o termo “direito”. Exemplo do questionamento sob a formatação “clássica” pode ser encontrado em Hoerster, que tematiza tanto a questão terminológica quanto a do direito injusto ao perguntar: “qué otro concepto de nuestro lenguaje natural como no fuera el concepto de derecho podría cumplir mejor esta función de abarcar todas las normas creadas de acuerdo con la Constitución y sancionadas por el Estado? Por lo general, los antipositivistas omiten dar a esta pregunta una respuesta unívoca” (HOERSTER, 2000, p. 20) 56 É sintomático o uso de uma piada, atribuída a Jaques Maritain, acerca de uma reunião da UNESCO em que paladinos de ideologias abertamente contrárias, quando questionados a respeito do acordo sobre a lista de direitos humanos, responderiam algo do tipo: “de fato estamos de acordo com relação a esses direitos, com a condição de que não se nos pergunte o motivo” (LUÑO, 1983, p. 9).
36
tais direitos morais pelo direito positivo, estariam justificadas ações de desobediência civil e
“resistência à opressão jurídico positiva” (LAPORTA, 1987a , p. 74); b) quando integrados ao
sistema jurídico – e para tal integração seria necessário ter em conta que os sistemas
normativos não são compostos apenas de técnicas de proteção (normas de conduta e
competência), mas também de princípios, juízo de valor, descrições etc. –, compareceriam na
forma de razões intrasistemáticas (LAPORTA, 1987a, p. 73; LUCAS, 1992, p. 19), no bojo
de juízos de justificação e não como fundamentos externos do sistema.
Podem ser lançadas dúvidas concretas a respeito do êxito de qualquer dos
dois modelos em vencer o desafio que propuseram enfrentar, qual seja o de lidar com o
conceito atual de direitos humanos dissociando-se da problemática referente ao seu
fundamento. No que tange aos direitos humanos como direitos morais, dificilmente se
consegue deixar de reconhecer, quanto a estes, dentro de um sistema jurídico, um papel
relacionado à justificação dos direitos fundamentais, ainda que limitado (LUCAS, 1992, p.
16-19)57. Já em relação às concepções históricas, Laporta considera que não se prestariam à
operacionalização do conceito, sobretudo quando se trata de lidar com o caractere da
“universalidade”, que é inerente à semântica dos direitos humanos. Não seria incorreto, sob a
ideia de que a história é o “artífice dos direitos humanos”, considerar-se que estes aparecem e
se desenvolvem na história, ou que, ainda mais especificamente, surgem como consequências
de certos problemas que provocam um desenvolvimento da consciência moral ou jurídica.
Mas tal perspectiva constituiria apenas a explicação genética dos direitos humanos, não se
revelando suficiente para defini-los em termos de validade universal, tarefa que demandaria
um esforço de justificação que a concepção histórica não estaria apta a dar (LAPORTA,
1987a, p. 75).
Deveras, quando se trata de lidar com a universalidade, a separação entre
conceito e fundamento promovida pelos que tendem a considerar os direitos humanos sob o
prisma da história acaba se revelando excessivamente artificial, além de pressupor,
aparentemente, uma filosofia da história de matriz kantiana que acabaria por importar em
trazer, embora Kant não o tenha feito, a própria história como parte da justificação dos
direitos.
57 Essa limitação decorreria do fato de o esforço de justificação não cessar pelo mero recurso aos “direitos morais”, tendo em vista que estes acabariam constituindo, nessa situação, um circunlóquio, passível de remeter igualmente a uma resposta antropológica jusnaturalista, axiológica, às necessidades básicas etc.
37
1.3.2 O problema da universalidade.
Normalmente, postular que os direitos humanos são universais significa
dizer que eles se adscrevem a todos os seres humanos, à margem de quaisquer condições ou
contextos específicos. Tal universalidade exigiria, segundo Laporta (1987b, p. 32-34), não
apenas que os direitos humanos se dissociassem do direito positivado, e daí a única solução
seria a sua aproximação com os direitos morais, mas também que a própria moral se
descontextualizasse, abstraindo de seus contextos vitais concretos e dos caracteres
experienciais pertinentes aos seres humanos individualmente considerados. A ideia de direitos
morais assim libertados das ataduras institucionais significaria um avanço que tem por
pressuposto a consideração de todos os seres humanos como agentes morais, o que conduziria
à paulatina superação das moralidades positivas locais, a caminho de uma ética universal.
O grande questionamento que surge quando contrapomos tal perspectiva de
universalidade à concepção histórica dos direitos humanos diz respeito à compatibilidade
entre a abstração da universalidade e o que há de contingente e concreto no aspecto histórico
de todo e qualquer processo. Os que apontam o viés histórico nos direitos humanos lidam com
a contingência do que é histórica e geograficamente (Ocidente) dado recusando-se a apontar
um elemento único que tenha servido, ao longo da história, como fio condutor dos direitos
humanos e que se expressasse, em cada época da história da humanidade, de uma forma
diferente. Por este ponto de vista, os direitos humanos não constituiriam a expressão,
conformada pelas circunstâncias da época, de um princípio único, mas o resultado de fatores
que remetem, especialmente na concepção mais bem desenvolvida de Martínez, ao mundo da
cultura (fatores sociais, pensamento jurídico filosófico, intermediação do poder, etc.) e que só
podem ser reconhecidos na modernidade, no pós-iluminismo.
É evidente que tal juízo histórico não se apresenta – ao menos não à
primeira vista e do modo como exposto – compatível com a abstração pertinente à
universalidade. Nem por isso muitos dos que aproximam o conceito de Direitos Humanos da
história deixam de postulá-los, de regra, como uma categoria aplicável a todas as culturas.
Para que as nuances desta compatibilidade sejam, entretanto, compreendidas, é necessário que
se tenha como pressuposto o conhecimento dos seus três planos possíveis, quais sejam o
lógico, o temporal e o espacial (MARTÍNEZ, 1994, p. 614-615). No plano lógico, a ideia de
universalidade implica que todos os seres humanos são titulares de direitos humanos, direitos
38
estes marcados, necessariamente, pela racionalidade e pela abstração. No plano temporal,
supõe-se que tais direitos tenham um caráter racional e abstrato à margem do tempo, válidos
para qualquer momento da história. Por fim, no plano espacial, entende-se a universalidade
como extensão da cultura dos direitos humanos a todas as sociedades políticas, sem exceção.
Quando se fala em universalidade dos direitos humanos, o discurso se
refere, normalmente, ao plano espacial. No mundo da práxis, postular a universalidade
significa sustentar a disseminação de tais direitos por todas as culturas, a fim de evitar
violações e de garantir a todos os seres humanos os bens por eles tutelados, seja numa
perspectiva negativa, exigindo-se respeito, seja na positiva, relacionando-os a prestações
efetivas que os assegurem. Tal postulado de universalidade espacial, entretanto, não se
sustenta isoladamente. Só faz sentido tratar-se de universalidade espacial, e também histórica,
se a elas anteceder uma universalidade no plano lógico, ou seja, a consideração de que os
direitos humanos são aqueles que tem por titulares todos os homens, pela sua mera qualidade
de homem. Em Laporta, por exemplo, a conformação destes direitos parece remeter a uma
ética formalista de matriz kantiana, reconhecendo-se cada homem como legislador moral.
Mas as explicações para tal titularidade são extremamente variadas e muitas vezes apresentam
fundo religioso.
Quando se lida com o caractere da universalidade dos direitos humanos,
outorgar-lhe um conceito histórico não implica, de regra, renunciar à sua universalidade, mas
sim, pelo menos aparentemente, contingenciá-la e restringi-la em diversos aspectos.
Analisado o modelo trazido por Martínez (1994), por exemplo, pode-se observar que o autor
não renuncia à universalidade no plano espacial, mas tampouco admite assumir a abstração
própria da teoria dos direitos morais. Quando trata da universalidade, embora rejeite a tese
dos direitos morais, reconhece que a universalidade a priori (plano lógico) tem que ser
proposta, necessariamente, de uma perspectiva moral, ainda que não dissociada
completamente do direito positivado58. Não se trataria, entretanto, de analisar cada direito
isoladamente, tendo em vista que o seu surgimento resulta de demandas e do contexto
histórico, mas de elevar-se das pretensões morais concretas, que respaldam cada direito, à
58 “La universalidad como a priori no se puede predicarse desde la positividad, tampoco tiene mucho sentido afirmar para proclamarla como hemos dicho, que los derechos son morales y deben ser considerados exclusivamente desde esa vertiente. Lo importante es, a mi juicio, que la universalidad tiene que plantearse desde la moralidad y en nuestro caso desde la de los derechos, desde las pretensiones morales justificadas que se convierten en derechos, cuando se positivan.” (MARTÍNEZ, 1994, p. 623-624)
39
moralidade genérica, que respalda o conjunto de direitos. A afirmação sobre a universalidade,
nessa perspectiva, poderia ser feita, segundo o autor, a partir da ideia de dignidade humana e
dos valores da liberdade, igualdade, segurança e solidariedade, que sempre teriam estado
presentes na história da cultura (MARTÍNEZ, 1994, p. 624)59.
O modelo dos direitos humanos como direito histórico, assim concebido,
traz pelo menos aparentemente, uma restrição à universalidade. No plano lógico, a
perspectiva de universalidade oriunda de um recurso ilimitado à natureza humana estaria
coarctada pela necessária vinculação ao direito positivado. No plano temporal, reconhece-se
que os direitos humanos são um fenômeno que só adquire sentido a partir do trânsito à
modernidade, e não em momentos anteriores.
A despeito de tais aparentes restrições no plano lógico e temporal, quando
se trata da universalidade espacial é necessário reconhecer que o modelo histórico não limita a
expansão dos direitos humanos, antes a reforça. Para que se compreenda tal reforço, todavia, é
necessário observar que o modelo, nos termos em que apresentado, não encerra justificativa
para tal universalização, carecendo de mais uma premissa, ainda não trazida a lume.
Em primeiro lugar, é claro que os direitos humanos, para que de seu
conjunto positivado extraiam-se os fundamentos da moralidade, não podem ser tomados como
mero dado histórico neutro, pressupondo um valoração positiva desse produto histórico.
Extrair os fundamentos da moralidade universal a partir de um determinado produto histórico
valorado positivamente, todavia, importaria em petição de princípio. O sistema de direitos
fundamentais, dado o seu caráter principiológico, pode até representar em alguma perspectiva,
decerto, uma abertura do sistema jurídico para o sistema moral (ALEXY, 2011, p. 543-544)60,
com importantes repercussões na operacionalização de tais direitos, mas a contingência do
surgimento de tais direitos em uma determinada comunidade não permite que se extraia do
59 Deixa-se de lado, por ora, o papel da dignidade. 60 Segundo Alexy, a vigência das normas de direitos fundamentais, em especial a incorporação da dignidade, igualdade e liberdade, conceitos fundamentais de filosofia prática e do direito racional moderno, conduz à conclusão de que o sistema jurídico é um sistema aberto em face da moral. Essa abertura insere-se em uma proposta filosófica que propõe uma dupla natureza do direito, ideal e fática, e que tem por pressuposto premissa semelhante à de Santiago Nino, qual seja a de que o discurso jurídico constitui um caso especial do discurso prático e de que os direitos humanos constituem direitos morais. Quando trata do discurso jurídico, entretanto, Alexy deixa evidente que não se trata de um caso especial do discurso moral puro, que versa, em última instância, sobre justiça, mas do discurso pratico geral, que leva em consideração também a “autocompreensão coletiva”, ou seja, que compreende discussões acerca de tradições e valores comuns. (ALEXY, 2009, p. 82)
40
sistema moral aí visualizado notas de universalidade. Tal dedução direta pressuporia um
direito positivo também universal, que ainda não foi, a despeito da crescente
internacionalização dos direitos humanos, alcançado.
Para que se possa, dos direitos humanos positivados em diversos países e
blocos de países, derivar-se uma moralidade com pretensões universalizantes, é preciso que
eles constituam não a expressão de uma moralidade local, mas a concretização de uma
proposta ética de cunho universalista, embora (ainda) não universalizada. É necessário, por
conseguinte, pressupor, nos direitos humanos espacialmente limitados, a concretização de
uma ética universal, para daí ser possível neles encontrar os elementos de tal ética. Isto
conduz novamente a um raciocínio circular, que só se pode superar na base de algum
elemento que conforte tal pressuposição. E aqui parece ingressar a própria história, dando
sentido aos direitos humanos, ao permitir que se os considere a “cristalização”61 de um
aperfeiçoamento moral não linear do homem. Os Direitos humanos ocidentalmente postos
representariam um retrato mais bem acabado do desenvolvimento moral do homem que
outros, o que seria revelado e confirmado pela própria história.
Fazer tal afirmação não significa, todavia, considerar que aqueles que
defendem os direitos humanos como um conceito histórico assumam uma posição historicista,
na qual se vislumbre na história uma racionalidade ínsita62. O historicismo hegeliano é
expressamente rechaçado por Perez Luño (1983, p. 71); Peces-Barba tampouco parece
assumi-lo e Eusébio Fernandez, que modificou sua forma de pensar a respeito da história,
afirma apenas, a propósito dos fundamentos dos direitos humanos, que a história poderia nos
auxiliar a “distinguir entre lo menos fundamental, aunque importante, y lo fundamental, por
imprescindible, con lo cual el proprio relativismo histórico se encuentra a sí mismo
relativizado” (FERNÁNDEZ, 2004, p. 227). O esforço de tais autores não consiste em igualar
realidade e razão, mas em ver na história humana, especialmente pós revolução francesa, um
progresso da moral, no que parece ser um eco do pensamento kantiano sobre a história.
61 Martínez usa expressamente o termo “cristalização”, como se pode notar deste trecho: “La universalidad temporal seria congruente, con esa concepción, si se acepta su limitación en cuanto la cristalización de la moralidad en la forma de ‘derechos humanos’, al mundo moderno y como concepto histórico”. (MARTÍNEZ, 1994, p. 625) 62 Isto pode estar relacionado ao próprio descrédito da filosofia da história, conforme apontado por Bobbio em discurso que em 1987, na Universidade de Madrid, proferiu a pedido de Peces-Barba Martínez (BOBBIO, 2004, p. 47).
41
Comentando as reflexões de Kant sobre a Filosofia da História, Noberto
Bobbio (1997, p. 153-159)63 afirma que os problemas centrais da filosofia kantiana sobre a
história poderiam ser sinteticamente resumidos nos seguintes questionamentos: 1) se existe na
história humana um progresso; 2) qual o critério pelo qual seria possível medir o progresso;
3) quais seriam os meios para isso; 4) qual seria o fim. Sintetizando as considerações de Kant,
Bobbio conclui que o mestre de Könisberg consideraria 1) que o gênero humano está em
contínuo progresso; 2) que o critério para julgá-lo “é o maior ou menor desenvolvimento da
razão que acompanha o desenvolvimento da liberdade”; 3) que o instrumento deste
desenvolvimento gradual do homem como ser racional e livre é o antagonismo entre os
homens, de forma que as civilizações em progresso seriam aquelas em que a rivalidade, a
emulação e a concorrência constituem desafios constantes, o que Bobbio toma como reflexo
do mito iluminista da luta como instrumento de progresso e, como último ponto; 4) que o fim
último seria a constituição de uma sociedade jurídica que possa abranger toda a humanidade e
instituir a liberdade na paz. Como ressalta Bobbio, a Revolução Francesa, da qual Kant foi
contemporâneo, influenciou bastante para a sua resposta afirmativa acerca do progresso. Kant
visualizaria, no grande revolvimento dos espíritos causado pela Revolução, um sinal
premonitório do progresso da humanidade, o que condiz com a sua concepção liberal de
história e da própria sociedade. O progresso da história, vista como teatro dos antagonismos
humanos, estaria associada ao Estado como promotor da máxima liberdade individual e ao
direito como coordenador das liberdades externas. O homem progridiria na medida em que,
na qualidade de ser ético, desenvolve a faculdade da razão, criando coletivamente
mecanismos impessoais que garantam a convivência com a máxima liberdade externa, em um
processo que não se encerraria em uma única geração e que tenderia à internacionalização e à
paz.
A possibilidade de visualizar-se um progresso moral na história, todavia,
não resolve, por si só, o problema da universalidade a priori, na medida em que o critério
eleito para o reconhecimento de tal progresso já pressupõe um determinado julgamento moral
prévio (BOBBIO, 2004, p. 50)64. A história não representará, assim, o fundamento dos
63 As considerações sobre a filosofia da história kantiana apresentada por Bobbio são sumárias. Várias questões podem ser discutidas em outro nível de profundidade, mormente aquelas relativas à compatibilização entre uma concepção transcendental da moral e a fenomenalidade da história. (KLEIN, 2013). 64 Nessa conferência, embora inicie recorrendo a Kant, Bobbio encerra conclamando que não aumentemos o atraso na tutela dos direitos humanos “com nossa incredulidade, com nossa indolência, com nosso ceticismo. Não temos muito tempo a perder” (BOBBIO, 2004, p. 61). Michel Villey, que busca, em sua filosofia do direito, e especialmente nos direitos humanos, um retorno à antiguidade clássica, considera que o historicismo matou a
42
direitos humanos, mas constituirá um importante instrumento para confirmar a expectativa de
que a conformação hodierna destes direitos é a expressão necessária, ao menos em uma
determinada época, de um progresso moral de base racional e cunho formalista.
A partir dessas reflexões, é possível concluir que trazer a história para o
conceito de direitos humanos não significa, apenas, reconhecê-la como um produto da
história, mas julgar a história e nele reconhecer a expressão de uma determinada etapa do
progresso moral-racional do homem, isto quando a aproximação com a história não esteja
associada a uma fundamentação ontológica com pretensões universalistas, própria do direito
natural. Em última instância, considerar os direitos humanos como conceito histórico significa
inserir a história no processo de legitimação racional desses direitos, especialmente quando se
trata de fundamentar a sua universalidade.
1.3.3 A dignidade da pessoa humana e os diversos sentidos de fundamento
Nos itens anteriores não se teve a intenção de esgotar o assunto do conceito
e fundamento dos direitos humanos, tampouco trazer à superfície as questões mais profundas
que ele revolve, pertinentes ao conceito do próprio direito e à sua fundamentação. O conflito
entre direito não escrito e escrito – entre nomos e physys – já se apresentava na Grécia antiga
(BILLIER; MARYIOLLI, 2005, p. 34) e parece acompanhar, como uma sombra, a
experiência jurídica através dos tempos, com períodos de recrudescimento e expansão. O
objetivo da seção anterior foi, sobretudo, pontuar como este conflito constante reflete-se em
uma tensão interna ao discurso dos direitos humanos, mais especificamente quando tangencia
o seu caractere de universalidade. Em primeiro plano, trata-se de responder à questão acerca
de como sustentar a universalidade dos direitos humanos sem recorrer ao direito natural
clássico ou a um fundamento religioso, em ambos os casos, à ontologia. E em segundo, como
justificar a universalidade para um conjunto de direitos humanos cada vez mais extenso.
Sustentando que se trata de direitos morais, parece razoável concluir, como bem reconheceu
Laporta, que a possibilidade de justificação cede progressivamente à medida que aumenta o
história e que o progresso pode ser visualizado em certos setores, a exemplo das ciências positivas, mas dificilmente de maneira global, salvo se recorrermos aos valores vigentes. Sua crítica dirige-se, especialmente, ao pensamento filosófico, em relação ao qual propõe um retorno às origens clássicas. (VILLEY, 2007. p. 12-15). Uma crítica expressa ao pensamento de Villey pode ser encontrada em Billier e Maryiolli (2005, p. 379-385).
43
seu rol65. Inserindo-se a história como fator de progresso a fim de justificar a sua constante
expansão e sua forma atual, acrescenta-se uma camada de justificação, mas ainda não se
colmata a lacuna referente à universalidade66.
É importante lembrar que a tensão entre ambos os pontos de vista afigura-
se, em parte, sob a questão conceitual em que se contrapõem direitos humanos e direitos
fundamentais. Embora não se propugne, aqui, a prevalência de qualquer das duas expressões
para referir os direitos básicos do homem, é importante retomar a ideia de que, principalmente
na Alemanha, essa dupla terminologia é utilizada para contrapor um plano prescritivo
(direitos humanos) a um plano descritivo (direitos fundamentais)67, marcando os direitos
humanos como uma categoria universal e abstrata relacionada ao homem, que manteria
sempre um caráter aberto68 e que não se esgotaria em sua eventual positivação. O ponto nodal
deste binômio, entretanto, continua sendo o mesmo, resumindo-se à prévia definição de quais
seriam os direitos qualificados como humanos69. A partir daí é possível, adotando-se esta
distinção entre palavras conceito, questionar-se a respeito da coincidência entre os direitos
humanos (plano prescritivo) e os fundamentais (plano descritivo).
É nesse cenário de dificuldades e de controvérsias teóricas que se insere a
discussão acerca da dignidade da pessoa humana, conceito que reflete, nos seus diversos usos, 65 A esse respeito, observe-se as ponderações de Laporta. “Me parece razonable suponer que cuanto más se multiplique la nómina de los derechos humanos menos fuerza tendrán como, exigencia, y cuanto más fuerza moral o jurídica se les suponga más limitada ha de ser la lista de derechos que la justifiquen adecuadamente” (LAPORTA, 1987b, p. 23). Também Arthur Kaufmann considera que nos direitos humanos sucede o mesmo que com o antigo direito natural. São universais quando pensados de forma muito abstrata, mas contingenciam-se na medida em que se concretizam. (KAUFMANN, 2002, p. 333). 66 Perez Luño, contrapondo Laporta, convoca a história para sustentar a constante ampliação do rol de seus direitos humanos, fundamentados nas necessidades: “En el plano teórico, es sabido que para la concepción progresista de la historia ésta se resuelve en una constante ampliación de las necesidades humanas, que tiene como puntual correlato la ampliación de la libertad” (LUÑO, 1987, p. 60) 67 Como visto na Nota de Rodapé 6, esta distinção conceitual ocorre, também, em outros países, por vezes sob títulos distintos, como na França, país em que se distingue entre droits de l'homme y libertes publiques e na Itália, em que se repete, no idioma local, a terminologia alemã, diritti umani y diritti fundamental 68Segundo Sobottka, Hinkelammert chama atenção para a abertura do conjunto dos direitos humanos, concluindo que a quantidade de reivindicações agregadas sob o manto da universalidade conduz a uma situação em que, “nunca y em ningún lugar, todos estos derechos pueden ser cumplidos a cabalidad. Siempre hace falta limitarlos en algún sentido.” (HINKELAMMERT, F. J. Democracia y derechos humanos. Pasos, v. 1, 1985, p. 12-15. apud SOBOTTKA, 2008, p. 117-118). 69 Observe-se que no plano prático, dentro de um determinado ordenamento, esta divisão entre direitos humanos e fundamentais apresenta-se, ao menos, sob duas roupagens distintas: 1) os direitos humanos, enquanto categoria abstrata, serviriam de parâmetro para julgar, dentro de um determinado ordenamento positivo, quais dos direitos ali previstos, independentemente da classificação feita pelo constituinte, adequam-se à categoria de direitos humanos; 2) os direitos humanos, considerados como categoria distinta dos direitos positivados, poderiam interagir com estes de diversas formas possíveis, quer conferindo direito de resistência ao cidadão, quer passíveis de aplicação direta pelo judiciário, por se reconhecer a abertura do sistema a tais direitos, ainda que não positivados nem dedutíveis do sistema.
44
a mesma tensão. A assertiva, comumente feita, de que a dignidade ocupa posição de
fundamento dos direitos humanos, será agora enfrentada a fim não apenas de elucidar em que
medida e com quais sentidos a dignidade pode constituir tal fundamento, mas também de
esclarecer como o conceito, aparentemente, integrou-se à própria noção de direitos humanos
na modernidade.
Boa parte da dificuldade enfrentada no que concerne aos sentidos em que a
dignidade aparece como fundamento dos direitos humanos pode ser ultrapassada pela
compreensão de diferentes significados possíveis para o próprio termo “fundamento”, que é
utilizado na linguagem comum e jurídica em diversos contextos. Waldron (2013, p. 12-21), ao
propor questão semelhante à ora analisada, traz quatro significados distintos para este termo,
consignando que a circunstância de um conceito “X” ser o fundamento de um conceito “Y”
pode significar: 1) que se trata de uma questão histórica ou genealógica, ou seja, que Y foi
gerado de X; 2) que X é a fonte de Y, no sentido de que constitui a fonte de validade de Y; 3)
que Y deriva logicamente de X, quer dedutivamente, de maneira direta, quer com o auxílio de
premissas empíricas; 4) que X auxilia na interpretação de Y, iluminando-o70.
Buscando aplicar aquelas considerações ao problema que vem sendo
discutido até aqui, qual seja o da divisão metodológica entre conceito de direitos humanos e
seu fundamento, pode-se perceber claramente que: a) o significado “4” remete quase sempre à
operacionalização do conceito, à práxis jurídica, relacionando-se, em tese, mais aos direitos
fundamentais que aos direitos humanos; b) que o significado “3”, permitindo construir, por
derivação, um rol de direitos humanos, relaciona-se tanto à práxis quanto à formação abstrata
desse rol, confundindo-se, neste aspecto, com a sua justificação; c) que o significado “2”
guarda relação de pertinência com discussões mais profundas, as quais remontam ao
fundamento e à legitimidade do próprio direito; d) que o sentido “1” ingressaria,
principalmente, como elemento hermenêutico, permitindo que se compreenda melhor a ideia
de direitos humanos.
De todos esses modos de compreender fundamento, certamente os mais
facilmente destacáveis são o sentido “1” e o “4”. Considerar-se a dignidade como fundamento
70 Observe-se que Waldron apresenta uma certa indecisão quanto ao uso do termo validade ou legitimidade quando se refere ao item 2, usando inicialmente validade e depois considerando que se trataria de uma questão de legitimidade.
45
dos direitos humanos, no significado “1”, consistiria em afirmar que a dignidade da pessoa
humana é, propriamente, a origem dos direitos humanos, ou seja, que o discurso filosófico,
político e teológico a respeito da dignidade é que deu lugar à ideia de direitos humanos. Trata-
se, como se pode perceber, de pesquisar a genealogia de uma ideia, buscando elucidar quais
os seus antecedentes e como ela se formou na história do pensamento (WALDRON, 2013, p.
13). Nesse ponto surge um questionamento de Waldron, que mereceria alguma reflexão: ele
considera, na esteira de Schachter (1983, p. 853), que em muitos aspectos não seria a
dignidade o fundamento dos direitos humanos, mas justamente o inverso, ou seja, que a ideia
de dignidade refletiria as concepções sócio-históricas a respeito dos direitos básicos e da
liberdade, sobretudo se considerarmos o discurso sobre dignidade que se desenvolveu após
1948. Essa ideia faz bastante sentido, mas para tanto é necessário reconhecer que o discurso
atual sobre dignidade já adquiriu foros próprios e não se identifica, ao menos não totalmente,
com o pensamento prévio a respeito do assunto.
No quarto sentido cogitado, qual seja, o de elemento que permite interpretar
os direitos humanos, tampouco a ideia da dignidade como fundamento parece despertar
grandes dificuldades71, merecendo, apenas, a correção de que seria mais apropriado tratar-se,
aqui, de direitos fundamentais, e não de direitos humanos. É normalmente no contexto de um
determinado ordenamento jurídico, ou da aplicação de um instrumento normativo de direito
internacional, que esta função interpretativa será ativada.
As maiores dificuldades teóricas são encontradas quando se considera a
dignidade como fundamento dos direitos humanos nos sentidos “2” e “3”. Os obstáculos
residem, sobretudo, no fato de o fundamento, nesses casos, remeter, ao mesmo tempo, à
justificação da universalidade dos direitos humanos e à positivação de tais direitos. No sentido
3, afirmar-se que a dignidade constitui fundamento dos direitos humanos significa que da
dignidade poderia ser extraído o rol de tais direitos propriamente humanos,
independentemente da sua positivação em um determinado instrumento legal. Esta “lista”,
entretanto, não tem serventia apenas quando se trata de estudar os direitos humanos no plano
abstrato, da filosofia do direito, mostrando-se relevante também na práxis jurídica de diversos
países, na aplicação frequente dos preceitos constitucionais, tendo em vista a reconhecida
força normativa dos princípios e o fato de a dignidade encontrar-se constitucionalmente
71 Nesse sentido, ressaltando a importância da dignidade para a hermenêutica constitucional, confira-se, dentre outros Bittar (2010, p. 251).
46
positivada em grande parte dos ordenamentos jurídicos72. Nesse sentido, portanto, lidar com a
dignidade como fundamento de direitos, em um determinado ordenamento que a tenha
72 Nesse tópico, em que se toma como pressuposta a força normativa dos princípios e a constitucionalização crescente do direito, releva apontar que o trabalho desenvolvido neste capítulo tem como pano de fundo, não problematizado, o cenário jurídico que encontra nomeação mais adequada no termo neoconstitucionalismo, complementado, em alguma medida, por algo que se poderia chamar de pós-positivismo, termo que com aquele frequentemente se confunde. Como primeiro ponto, é importante ressaltar que, embora os termos não sejam intercambiáveis, divisar seus respectivos significados é tarefa tormentosa, em especial tendo em vista a imprecisão que os cerca e a coincidência parcial de seu uso, ambos remetendo não apenas à perspectiva de “superação” expressa nas partículas “pós” e “neo”, mas também a fenômenos ocorridos no período iniciado após a Segunda Guerra Mundial. Não se pretende, aqui, delinear com acuidade os termos, mas para os fins do presente trabalho parecem bastante úteis os resultados alcançados por Silva e Netto (2011), que não apenas distinguem os conceitos pós-positivismo e neoconstitucionalismo, mas que também propõem a associação eventual entre ambos, ressaltando a possibilidade, ao lado de um neoconstitucionalismo pós-positivista, também de um outro marcadamente positivista. Ao efetuar esta distinção, inicialmente demarcam o “pós-positivismo” como expressão que se associa a uma proposta eminentemente metodológica, denotando um conjunto de teorias jusfilosóficas que, a exemplo daquelas capitaneadas por Viewegh, Perelman, Dworkin e Alexy, surgiram após a segunda grande guerra como contraponto ao positivismo jurídico, apontando suas limitações e deficiências, em especial no que tange à rígida separação entre moral e direito. Tal conjunto, a despeito de não completamente homogêneo, teria como notas distintivas a reinclusão da razão prática na metodologia jurídica, a valorização dos casos difíceis, a utilização de princípios na resolução de conflitos constitucionais e uma maior preocupação com a decisão dos problemas jurídicos, em detrimento de sua mera descrição. O neoconstitucionalismo, a seu turno, embora marque o direito no mesmo período histórico, não se confunde com o pós-positivismo, em especial enquanto se faça possível divisar, no neoconstitucionalismo, um sentido descritivo – que teria por referente as principais transformações históricas, dogmáticas e institucionais verificadas no Direito Constitucional contemporâneo em inúmeros sistemas jurídicos – e um sentido prescritivo/normativo, no qual se instalaria o embate entre uma proposta positivista e uma pós-positivista. É precisamente esta divisão, entre uma perspectiva descritiva e uma normativa, que apresenta salutar interesse para o presente estudo, a medida que revela ser possível descrever, sem o compromisso com uma determinada proposta metodológica, as transformações contemporâneas no cenário jurídico, a fim de verificar sua constitucionalização progressiva. Nessa dimensão, o neoconstitucionalismo não constitui uma proposta normativa, mas a constatação – compartilhada por positivistas e pós-positivistas – de que, em diversos ordenamentos jurídicos estatais, a Constituição apresenta importância crescente, ainda que em grau variado. É evidente que a medição do grau de constitucionalização demandaria um exame de cada ordenamento, tarefa que foge aos objetivos deste estudo, mas convém, por constituírem o cenário final certamente já presente em alguns ordenamentos, relatar as condições que se considera devam ser satisfeitas para que se tome um ordenamento como “impregnado” pela Constituição: 1) existência de constituição rígida; 2) previsão de controle de constitucionalidade; 3) compartilhamento, pela comunidade jurídica, da tese da força normativa da constituição, contrariando a ideia pretérita da Constituição como um manifesto meramente político; 4) ideia da “sobreinterpretação” do texto constitucional, significando que, após interpretação dos dispositivos constitucionais, não haja espaços vazios, livres do direito constitucional; 5) aplicação direta das normas constitucionais; 6) interpretação das leis conforme a Constituição; 7) influência da Constituição sobre as relações políticas, implicando na judicialização da política, ou seja, na possibilidade de o Judiciário resolver conflitos políticos ou morais profundamente controversos com esteio em normas constitucionais. (GUASTINI, 2003, p. 49, apud SILVA; NETTO, 2011, p. 235-236.). A descrição dessas condições, entretanto, não esgota o que aqui se toma como pano de fundo, tendo em vista que sobre esta arena de constitucionalização embatem-se, no plano teórico, diversas propostas metodológicas e, no plano prático, decisões que revelam pendores metodológicos diversos, muitas vezes pouco conscientes. Qualquer tarefa descritiva não poderia olvidar, por conseguinte, que também excertos de propostas metodológicas diversas, inclusive de algumas qualificáveis como pós-positivismo, já encontram penetração variada em diversos meios jurídicos e deveriam ser descritivamente relatadas, ao menos enquanto modelos eventualmente seguidos e que vão se impregnando, paulatinamente, em um determinada práxis jurídica. Essa intersecção entre o plano descritivo e o normativo parece particularmente evidente quando se trata da diferenciação entre regras e princípios e do reconhecimento da força normativa destes, tida como elemento chave do Constitucionalismo contemporâneo (BONAVIDES 2010, p. 286). Por um lado, a admissão de tal força normativa está vinculada, intrinsecamente, ao quadro de neoconstitucionalismo acima descrito e à crescente constitucionalização do direito, superando-se a perspectiva de uma Constituição programática em prol de um cenário em que o texto maior, eminentemente principiológico, impregna todas as demais normas jurídicas e a concreta aplicação do direito. Por outro lado, esta distinção apresenta inequívoco aspecto não apenas jusfilosófico – relacionado ao fato de ter adquirido notoriedade como elemento chave de teorias que buscavam, a
47
positivado, não importa, necessariamente, discutir a dignidade como fundamento de direitos
humanos universais, mas tão só a possibilidade de derivar, de um princípio jurídico, a
normatização de um caso específico. A discussão interna coincidirá com a discussão sobre
direitos humanos apenas se houver a pressuposição de que a dignidade os fundamenta.
Isso permite entrever, na exata sequência aos dois itens anteriores, que a
derivação do rol dos direitos humanos a partir da dignidade não se confunde com a ocorrência
de tal fenômeno dentro de um determinado sistema. É possível, analisando-se um
ordenamento jurídico, inferir dos direitos positivados que a dignidade constitui o seu
“fundamento”, o valor central que os ilumina, e daí extrair diversas consequências jurídicas
sem que, para tanto, seja necessário pressupor-se que tais direitos são inerentes ao homem, ou
que antecedem o sistema de direito positivo de alguma forma. Essa relação de “inerência”,
entretanto, é necessária quando se trata de direitos humanos. Obter, a partir do rol de direitos
humanos, o seu fundamento, pode ser útil para operacionalizá-lo, mas constitui evidente
circularidade quando se relaciona ao propósito de caracterizá-los como universais. É
justamente aqui, quando fundamento se relaciona à necessidade de justificação última para o
rol de direitos, que surge o sentido “2” acima mencionado.
Segundo Waldron, afirmar-se que a dignidade constitui fundamento dos
direitos humanos, nesse segundo sentido, representaria a tentativa de estabelecer a dignidade
da pessoa humana como elemento suprapostivo, anterior ao direito positivo e que lhe confere
legitimidade. Embora a análise desenvolvida por Waldron, nesse aspecto, seja limitada, aqui
ingressariam todas as tentativas de afirmar-se que a proteção dos direitos humanos responde a
um imperativo ético racional73, ou que o direito se legitima pela correspondência a um direito
exemplo da de Alexy e Dworkin, encontrar um campo neutro onde se pudesse superar a antinomia clássica Direito Natural/Direito Positivo (BONAVIDES, 2010, p. 276) –, mas também eminentemente prescritivo, dado implicar em uma determinada metodologia para diferenciar e lidar com ambas as categorias. É, por conseguinte, como modelos limite, seguidos com grau de fidelidade variável, que as prescrições pertinentes à força normativa dos princípios e às consequências de tal separação podem ser trazidas à baila, em especial a ideia de que as regras enfrentam-se no campo da validade, à base do tudo ou nada, enquanto os princípios embatem-se na seara do valor, com a necessária consideração de seu peso ou importância (ALEXY, 2012, p. 93-94; DWORKIN, 2002, p. 39-40). Observe-se que a separação entre princípios e regras constitui elemento central nas teorias “pós-positivistas” de ambos os autores – como ilustração, anote-se que Dworkin (2002, p. 36) considera o positivismo uma teoria “de e para um sistema de regras”, desenvolvendo seu raciocínio como crítica ao positivismo hartiano – mas não há indício de que este dilema já esteja superado no interior de qualquer ordenamento, ideia que permeia todo o presente capítulo. 73 “[nesse sentido] the invocation of dignity may suggest that there is a suprapositive explanation for why we accord the importance to human rights that we do, why we insist on their universality, inalienability and non-forfeitability. It is not simply a matter of our having decided to create positive law in this form; our creation of laws with these features presents itself as an affirmative response to facts about human specialness that we
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natural de origem divina ou racional. Nesse sentido, tomar-se a dignidade como fundamento
importaria não apenas em reconhecê-la como algo anterior ao direito positivo, mas também
dizer que tal direito constituiria uma resposta a ela. Este é, claramente, o sentido que mais
interessa ao questionamento a respeito da universalidade dos direitos humanos. O
reconhecimento da dignidade como elemento anterior ao sistema jurídico positivado, que
justifique a inerência de tais direitos a todos os seres humanos, fundamenta a sua
universalidade.
Delineados desta maneira os diversos sentidos pelos quais a dignidade pode
ser considerada fundamento dos direitos humanos, deve-se reconhecer que todos eles
convivem, interpenetram-se legitimamente e, por vezes, confundem-se no discurso jurídico.
Trazida à base do ordenamento, por vezes a dignidade é utilizada como um princípio jurídico
que pode se inserir no sistema e transigir com os demais; ora lhe é outorgado caráter absoluto
e preponderante na resolução de qualquer questão, ora se lhe concede condição de
anterioridade em relação ao sistema positivo; por outras vezes essa posição de anterioridade é
apresentada no contexto da universalidade dos direitos humanos. A estrutura dela na práxis
será vista no capítulo subsequente, mas por ora interessa, sobretudo, compreender como a
dignidade, concretamente considerada, pode ser tomada como fundamento dos direitos
humanos nos diversos sentidos e como a pesquisa conceitual a respeito da dignidade acaba
confundindo-se com a pesquisa de fundamento dos direitos humanos, sobretudo quando se
tem em vista o caractere da universalidade de tais direitos.
1.3.4 A aptidão da dignidade como fundamento
Compreender a aptidão da dignidade como fundamento dos direitos
humanos não é tarefa fácil. As dificuldades em lidar com tal conceito têm sido objeto de
vários estudos específicos, devendo-se, principalmente, aos problemas de concretização e
definição do conceito, na linha do que afirmam por vários autores74. Não se pretende aqui
fornecer uma definição, mas para os fins dessa análise sumária parece que a dignidade,
tomada em caráter amplamente abstrato, está associada, na maioria de seus usos jurídicos e
recognize in our ethical talk of human dignity.” (WALDRON, 2013, p. 15). Comparato (1997, p. 3), comentando a questão do fundamento, ressalta que na filosofia ética de Kant o fundamento enquanto fonte passou a significar razão justificativa. 74 Vide, entre inúmeros outros, Kaufmann (2002, p. 334-335).
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não jurídicos, à ideia de valor75. Pode-se considerar, por conseguinte, ao menos para os
presentes fins, que a dignidade da pessoa humana consistiria na associação de valor ao
homem, ainda que remanesça em aberto a questão consistente em saber se a dignidade
fundamenta o valor do homem ou se ela se confunde com tal valor.
Esta definição, que se apresenta abstrata o suficiente para não despertar as
controvérsias normalmente suscitadas a respeito da dignidade, não se mostra, em grande
medida, útil (LEBECH, 2006) 76 , tendo em vista que ao menos três questionamentos
permanecem sem resposta. Em primeiro plano, pode-se perguntar se essa dignidade é idêntica
em todos os homens, se está igualmente distribuída entre todos, ou se uns seriam mais dignos
que outros por qualquer razão. Em segundo, é possível questionar qual o fundamento desse
valor, ou seja, porque os homens são portadores de igual dignidade. Em terceiro, pode-se
indagar a quais dos atributos do homem está associada essa dignidade (vida, liberdade,
autonomia etc.)77 ou, mais especificamente, qual deles prevalece na hipótese de eventual
conflito. Na resposta à integralidade destas perguntas, ou ao menos a algumas delas, erigem-
se grande parte das teorias filosóficas e jurídicas a respeito da dignidade78.
Quando se levam em consideração a necessidade de complementação do
conceito relatada no parágrafo anterior, as diversas perspectivas de fundamentação vistas no
item 1.3.3 e o problema da universalidade, examinado no item 1.3.2, pode-se constatar que as
respostas demandadas, sobre o que constitui dignidade, são bastante distintas a depender do
objetivo almejado. A mais fácil de ser identificada, certamente, é a perspectiva segundo a qual
a dignidade ocuparia lugar preponderante na genealogia dos direitos humanos. Este sentido
associa-se a uma ampla investigação na história do pensamento, a fim de elencar os diferentes
usos teóricos que o termo “dignidade” teve e também as teorias que, mesmo sem utilizar tal
75 Esta aproximação com o valor já havia sido ressaltada no início dessa monografia e evidenciar-se-ia na pesquisa etimológica, sobretudo na língua alemã, onde pode ser considerada a materialização de um valor, na medida em que “Würde” (dignidade) constituiria um abstrato do adjetivo “Wert” (valor). (SEGADO, 1996, p. 15). 76 A autora pondera, com razão, que a definição “Dignidade humana é o valor fundamental do ser humano” é meramente formal (op. cit, p. 10). 77 Kirste (2013, p. 190), após analisar um pequeno histórico da dignidade, reconhece que ela se refere a um certo aspecto distintivo do ser humano, não à sua totalidade 78 Estes questionamentos tomam a dignidade como a atribuição de um valor. Waldron (2009a, pos. 441), por exemplo, prefere aproximar a noção de dignidade atual à sua origem nobiliárquica, considerando-a um status, um posto, um rank que a pessoa ocupa na sociedade pelo mero fato de nela estar inserido. Este ponto de vista, entretanto, não deixa de suscitar questionamentos semelhantes a respeito das características deste posto, de quem está apto a ocupá-lo e das consequências. As origens históricas desses pontos de vista serão analisados no capítulo 3.
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termo, açambarcaram de alguma forma a ideia. A operacionalização jurídica do conceito
(sentidos “4” e parte do “3”), a seu tempo, certamente configura a categoria mais aberta de
todas, comportando, ao menos em tese, uma pesquisa conceitual amplíssima, que abrange
desde os usos na linguagem comum até as diversas considerações filosóficas a respeito da
dignidade. A dificuldade na resposta, que aqui remete o operador do direito à hermenêutica
jurídica e a todos os problemas naturais decorrentes de trabalhar com um conceito de tão
vasta história, vê-se agravada em virtude das intersecções entre este discurso e aquele
concernente à universalidade e à consideração da dignidade como elemento fundante do
sistema jurídico estatal.
Certamente, de todos os sentidos vistos para o termo “fundamento”, a
dignidade mais se apresenta problemática naquele em que ela resulta justificadora da
universalidade dos direitos humanos. Ao operacionalizar, nos moldes previstos no parágrafo
anterior, a dignidade como conceito jurídico positivo, bastaria uma pesquisa prospectiva do
conceito, tentando compreender exatamente quais os aspectos valorados no homem e quais as
consequências jurídicas daí oriundas, não se fazendo imprescindível questionar as razões de o
homem encerrar esse valor a ser tutelado ou de ser possuidor de uma dignidade, embora se
reconheça que tais razões teriam grande chance de ingressar no processo hermenêutico. A
justificação dos direitos humanos universais, entretanto, passa necessariamente pelo
questionamento a respeito das razões para atribuir-se tal valor ao homem, independentemente
do direito positivo. Se todo homem é igualmente digno, e dessa dignidade extrai-se o conjunto
de direitos humanos universais, é preciso que se expliquem as razões de tal dignidade e
porque dela se extraem aqueles determinados direitos, o que, sem responder ao problema da
fundamentação, remete a uma nova seara de pesquisa. Retorna-se, por conseguinte, mas agora
com um elemento a mais, ao problema da contraposição entre jusnaturalismo e positivismo e
às teorias examinadas nos itens precedentes, que remetem à moral e, em alguma medida, à
história.
É difícil dizer em que medida as tentativas de fundamentação dos direitos
humanos conseguem evitar o transbordo para um viés jusnaturalista, tendo em vista a
aproximação inevitável entre o conceito de direitos humanos e de direito natural. Definido o
direito natural como aquele que cuida de precisar tudo que é devido ao homem e que tem por
objetivo refletir o que é comum aos seres humanos, enquanto seres humanos (GUIMARÃES,
1991, p. 211), sua vinculação com os direitos humanos fica evidente, não parecendo
51
equivocado afirmar que o discurso atual sobre os direitos humanos constitui, ao menos
quando se trata da pretensão de universalidade, um tipo de revigoramento do direito natural
(WALDRON, 2009b, p. 5), sobretudo no pós-guerra (GUIMARÃES, 1991, p. 60-61)79.
Mesmo as tentativas explícitas de superação, vistas nos capítulos anteriores, em especial a
aproximação com os direitos morais, parecem passíveis de confusão com o direito natural80 e
a que dele melhor se afasta é a proposta dos direitos humanos como direitos históricos, na
qual se recusa a ideia de um corpo de leis imutáveis, anteriores ao direito positivo, própria do
jusnaturalismo.
Quando a dignidade se insere nesse cenário conflituoso, não encerra o
conflito a respeito da fundamentação e tampouco remete a uma solução única, que se afaste
do direito natural. A noção de dignidade parece limitar-se a agir como um anteparo no
processo de justificação, que dará abertura a diversas possibilidades, inclusive ao
jusnaturalismo. Afirmar-se que a dignidade fundamenta uma ética pública laica81 ou que a
inserção do termo, que se vê em diversos documentos, importa em uma mudança de
fundamento (como visto acima) pode ser considerada uma afirmação correta, mas apenas em
parte. A ética pública e o discurso sobre os direitos humanos têm atualmente, é certo, caráter
predominantemente laico, mas tal se deve à crescente laicização histórica da sociedade e não
à introdução do conceito de dignidade da pessoa humana, em relação à qual continuam
convivendo fundamentações religiosas82 e laicas.
A despeito destas considerações, parece um erro afirmar-se que a dignidade,
dentro da temática dos direitos humanos, constitui meramente um anteparo de pouca
utilidade. Em primeiro lugar, por constituir um ponto intermédio de várias fundamentações
distintas e por ser uma ideia que se apresenta em várias culturas, formula-se em torno dela um
79 Reale (1984, p. 3), a seu turno, reconhece que as Constituições, ao proclamarem direitos indeclináveis do homem, aproximam-se do Direito Natural. 80 Essa confusão fica evidente quando se toma o direito natural, a exemplo do que faz Guimarães (1991, p. 213-215), como fator de valoração moral do direito. 81 A conclusão sobre constituir a dignidade fundamento da ética pública laica é de Martínez (2003, p. 13) 82 Observe-se, por exemplo, a Carta Encíclica Evangelium Vitae, que conduz a dignidade à relação do homem com Deus: “Ao homem foi dada uma dignidade sublime, que tem as suas raízes na ligação íntima que o une ao seu Criador: no homem, brilha um reflexo da própria realidade de Deus”. (PAULO II, capítulo II, item 34). Deixando evidente a sobrevivência da perspectiva cristã também na seara jurídica, observe-se haver quem derive a dignidade diretamente da verdade teológica na qual se identifica o homem e à imagem e semelhança do criador. (GOMES, 2004. p. 157).
52
consenso teórico 83 que acaba fazendo parte do próprio conceito de direitos humanos
universais84, com o que a pesquisa de fundamentos transforma-se em uma questão conceitual,
embora não menos tormentosa85. Em segundo lugar, a dignidade aparenta desempenhar um
papel de extrema relevância quando se trata de justificar o rol atual de direitos humanos, ao
menos sob o ponto de vista do conceito histórico e de uma fundamentação moral. Aqui, o
homem é tomado como um ser essencialmente moral, capaz de autorregular racionalmente a
sua conduta, e a dignidade da pessoa humana ingressa como eixo dessa concepção moral,
imperativo primeiro de qualquer ética racionalmente organizada e, portanto, universalista. A
modernidade, com o crescente reconhecimento da dignidade da pessoa humana, traria indícios
da concretização paulatina dessa ética e os direitos humanos construídos no pós-guerra, que
encerram a dignidade da pessoa humana em seu cerne, constituiriam a cristalização histórica
dessa moral universalista86. A dignidade, assim, assumiria uma dupla função: por um lado,
eixo de uma moral racional com pretensões universalistas que só conseguiu desabrochar
politicamente a partir da modernidade; por outro, comprovação de que os direitos humanos
hoje estabelecidos, a medida que representam a sua concretização, constituem expressão
legítima, no atual momento histórico, dessa moral de cunho universalista.
É preciso alertar que a estrutura acima apontada não corresponde a um
modelo teórico adotado, expressa e isoladamente, por qualquer autor. As tentativas de 83 A ideia do consenso teórico foi trazida na Nota de Rodapé 9 e parece estar em consonância com a hipótese do consenso pragmático, que será objeto de análise no item 3.3.4 deste trabalho. 84 Sobre a integração ao conceito, observe-se, por exemplo, o reconhecimento tácito de Reinaldo Pereira e Silva: “Em sentido subjetivo, a universalidade é sinônimo da igual dignidade de todos os homens independentemente do espaço territorial onde se encontram.” (SILVA, R. P., 2003, p. 206). Esta integração parece ficar evidente, também, em Ramos (2015, p. 91-94), que relaciona a dignidade a outros caracteres pertinentes ao conceito de direitos humanos: segundo o autor, a indivisibilidade consistiria no reconhecimento de que todos os direitos humanos possuem a mesma proteção, uma vez que essenciais para uma vida digna; a interdependência no reconhecimento de que todos os direitos humanos contribuem para realização da dignidade humana; a abertura na possibilidade de expansão do rol dos direitos necessários a uma vida digna; a fundamentalidade estaria relacionada ao fato de os direitos humanos serem fundamentais para uma vida digna e, por fim, considera que a imprescritibilidade, a inalienabilidade e a indisponibilidade cumpriam uma proteção de intangibilidade aos direitos tidos como essenciais a uma vida digna. 85 Observe-se, por exemplo, que Boaventura Souza Santos (1997, p. 19-21), ao discutir a multiculturalidade, afirma inicialmente que os direitos humanos assentam-se em um conjunto de pressupostos composto por: uma natureza humana universal, que pode ser conhecida racionalmente e que é essencialmente diferente e superior à restante; pela dignidade absoluta e irredutível do indivíduo que tem que ser defendida da sociedade e do estado e; por uma autonomia que exige que a sociedade esteja organizada sob o manto da liberdade, sem hierarquias. Assenta, todavia, logo em sequência, que esses pressupostos são ocidentais e distinguíveis facilmente de outras concepções da dignidade humana, complementando que nem todas as culturas concebem a dignidade em termos de direitos humanos. 86 Vale trazer à colação o que afirma Peces-Barba Martínez: “Por supuesto que los derechos fundamentales son la cristalización histórica de una concepción moral que sitúa como eje la dignidad del hombre y los valores de libertad e igualdad como cauces para alcanzarla”. (MARTÍNEZ, 1986-1987, p. 226). Na página 241 refere-se expressamente a serem os direitos humanos positivados (fundamentais) a forma moderna de reconhecimento social da dignidade.
53
fundamentação racional dos direitos humanos desenvolvem-se normalmente com o aporte de
outros elementos que lhe deem esteio, ainda que seja algo passível de ser qualificado de
historicismo87. Peces-Barba Martínez, por exemplo, mencionado inúmeras vezes, embora
recuse a construção de um modelo racional dissociado da realidade histórica, o que considera
uma confusão entre direito e moral, fundamenta os direitos humanos em uma perspectiva
ética baseada na liberdade e na integração de três modelos parciais dela, quais sejam o liberal,
o socialista e o democrático, aptos a realizar o dinamismo que conduz da liberdade de eleição,
para ele inata, à liberdade moral (MARTÍNEZ, 1989). Os esquemas de fundamentação que
convivem atualmente, aliás, inúmeros, conduzem, cada um deles, a resultados distintos quanto
à composição dos direitos humanos e estrutura da sociedade.
Um vislumbre dessa variedade de fundamentações para os direitos humanos
pode ser encontrado no já mencionado artigo de Perez Luño (LUÑO, 1983)88, que as
classifica em três grandes grupos, quais sejam as fundamentações objetivistas, as subjetivistas
e as intersubjetivistas. As fundamentações objetivistas, nas quais se inserem os intentos da
ética material dos valores e do objetivismo ontológico cristão, caracterizam-se pela afirmação
de uma ordem de valores, regras ou princípios que possuem validade objetiva, absoluta e
universal e que independem da experiência do indivíduo ou de sua consciência valorativa. A
ética material dos valores consiste na tentativa, sobretudo de Max Scheler e Nicolai
Hartmann, de superar o formalismo da lei moral kantiana através da concepção de uma ordem
objetiva e apriorística de valores89. As teorias cristãs, atribuídas a Sergio Cotta, John Finnis,
Martin Kriele e Louis Lachance, esteiam-se, por sua vez, em uma retomada da tradição
aristotélico tomista, tentando recuperar, através do recurso a uma dimensão metafísica da
natureza humana, o nexo entre o ser e o valor. Sob este ponto de vista, o homem tem, desde o
seu nascimento, a evidência racional de um status e uma dignidade90 próprios, que procedem
87 Fernández (1982, p. 93), após considerar que as fundamentações dos direitos humanos inserem-se em três grandes grupos, quais sejam as fundamentações jusnaturalistas, historicistas e éticas, afirma que as historicistas qualificar-se-iam não pelo recurso à natureza humana, mas pelas necessidades humanas e pela possibilidade de satisfazê-las em uma determinada sociedade. Isso daria aos direitos humanos o caráter de históricos, variáveis e relativos, bem como uma origem social. 88 Uma classificação distinta e mais detalhada pode ser encontrada em Sampaio (2010, p. 55-125). 89 As principais teses dessa teoria consistiriam em que: A) Os valores são essências ideais existentes de per se, com anterioridade e independência a qualquer experiência; B) Os valores não podem ser conhecidos através da razão, mas pelo sentimento e intuição de sua evidência; C) A apreensão dos valores não deriva de sua cognoscibilidade racional ou empírica, mas da constituição ontológica de um espírito que é privativo do homem, de sorte que a mutação de valores na história não constituiria modificação nesse plano objetivo, mas variações da consciência axiológica do homem. (LUÑO, 1983, p. 15) 90 Kriele, considerando que a ideia central dos direitos humanos é o valor da dignidade do homem, afirmaria expressamente tratar-se tal dignidade um conceito metafísico, já que na história do direito natural esse valor se
54
de sua natureza intrínseca e é dessa natureza humana metafísica que se extraem valores que
orientarão a razão prática, que não “funciona no vazio, [mas] tem por missão a regulação
concreta da existência, tarefa na qual parte da ordem vital que impõe à pessoa a sua condição
de ser humano e dos imperativos de seu meio físico e social.” (LUÑO, 1983, p. 20, tradução
nossa).91
No subjetivismo axiológico Perez Luño reúne, de um modo geral, as teorias
que reivindicam à autonomia humana o papel de fonte de todos os valores, conhecidos
subjetivamente e desenvolvidos em uma ética racional. Essa matriz fundacional, que nega
qualquer valor social ou princípio histórico transcendente ao indivíduo, está associada aos
grandes sistemas jusnaturalistas do século XVII e XVIII, dando origem às declarações de
direito e constituições do período, podendo ser compreendida como a autoconsciência
racional da dignidade, da liberdade e da igualdade (LUÑO, 1983, p. 23). Interessante é notar
que esta ideia de uma ética desenvolvida racionalmente tendo por matriz a autonomia
individual, com os consequentes postulados da liberdade, da igualdade e do reconhecimento
de que o ser humano tem valor, desenvolveu-se, contemporaneamente, em inúmeros projetos
políticos distintos, muitos deles qualificados como neoliberais e duramente combatidos pelo
autor, por desembocarem em uma concepção individualista e não solidária dos direitos
básicos (LUÑO, 1983, p. 34)92.
A fundamentação intersubjetivista, por fim, colocando-se a meio caminho
entre um subjetivismo e o objetivismo, representaria um esforço de conceber os direitos
humanos como categorias intrinsecamente comunicáveis, ou seja, categorias que, por
expressarem necessidades compartilhadas social e historicamente, possibilitam um consenso
geral sobre sua justificação (LUÑO, 1983, p. 44). Trata-se, como se pode ver, de uma
classificação voltada sobretudo para as perspectivas contemporâneas, que têm por norte o
status dos valores, classificando-os conforme se situem em um plano externo e independente
da experiência do indivíduo (objetivista), em um plano imanente ao indivíduo, negado
teria fundado ou na revelação ou na suposição de que está inscrita no coração do homem e manifesta-se na sua consciência. 91No original: “La razón práctica no funciona en el vacío, tiene por cometido la regulación concreta de la existencia, para lo que parte del orden vital que impone a la persona su condición de ser humano, así como los imperativos de su medio físico y social”. 92Dentre as concepções criticadas encontram-se as concepções de Karl Popper, que inclusive parte da máxima kantiana de que todo indivíduo constitui um fim em si mesmo. Nesta concepção subjetivista inserem-se, também, os direitos morais de Dworkin e o contratualismo de Rawls.
55
qualquer valor transcendente (subjetivista), ou no plano intersubjetivo, obtendo-os em
condições discursivas ideais.
Desta categorização de Perez Luño, em especial do vislumbre das teorias
subjetivistas, pode-se observar que as tentativas de fundamentação dos direitos humanos são
bastante distintas, cada uma delas conduzindo, também, a resultados razoavelmente díspares
no que se relaciona ao rol de tais direitos. Se hoje o pensamento a respeito dos direitos
humanos e da ética pública é predominantemente laico, tal se deve especialmente ao
jusnaturalismo racionalista dos séculos XVII e XVIII, que deitou raízes profundas na
concepção moderna dos direitos humanos e continua influenciando não apenas o conceito
deste, mas também a sua justificação.93. Essa fundamentação laica, todavia, que hoje já
assume a forma de inúmeros projetos políticos bastante díspares, não é a única e ainda
convive com uma influência cristã, mais propriamente neotomista, que não se pode considerar
irrelevante, quer na história dos direitos humanos, quer atualmente, enquanto elemento
componente da forma de pensar de muitos.
Quando a dignidade insere-se como ponto de convergência entre conceito e
fundamento dos direitos humanos, é natural que adquira significados distintos a depender do
projeto ético que se tem em vista. Do ponto de vista de uma fundamentação transcendente, a
tendência é integra-la à natureza humana como elemento metafísico reconhecível por intuição
ou por fé94 e que demandaria, de per se, respeito, gerando, ao menos em tese, um rol de
direitos compatível com tal. Já sob a perspectiva de uma moral imanente e estritamente
racional, sem qualquer apelo a valores transcendentes ao homem, a dignidade depende de
uma justificação também racional, que leva em consideração a natureza empírica do homem,
conduzindo a um projeto ético-político compatível com os pressupostos originários e com a
interpretação racional desses pressupostos.
93 É a partir de Grocio que o Direito Natural torna-se uma norma humana posta pela autonomia e pela atividade do sujeito, livre de todo pressuposto objetivo e teológico e explicável mediante a razão, considerada instrumento essencial da subjetividade, e levando em consideração sobretudo a natureza empírica do homem. (FASSÓ, 1979, p. 79 apud FERNÁNDEZ, 1982, p. 84) 94 O conceito relevante aqui, como é evidente, diz respeito à própria pessoa. Barzotto (2010, p. 63-66), por exemplo, considera que reconhecer o ser humano como pessoa significa considerá-la sagrada, transcendente ao mundo das coisas, e que tal reconhecimento demandaria uma “fé secular”, conforme proposta por Jaques Maritain. Barzotto, entretanto, sintomaticamente, limita suas considerações à filosofia do direito e remete sua operacionalização a outra seara.
56
Quando se atualizam tais discursos para a práxis jurídica, todavia, a sua
limpidez e coerência se perdem. A separação metodológica entre conceito e fundamentação
dos direitos humanos, corriqueira na práxis por permitir operacionalizar os direitos humanos
no plano jurídico e relegar a fundamentação aos “meandros” da filosofia e da filosofia do
direito, fratura esses projetos éticos que dão suporte aos direitos humanos precisamente no
ponto de convergência entre conceito e fundamento, ou seja, no ponto que toca a dignidade da
pessoa humana. E é justamente sobre este último conceito que os efeitos desse artificial
rompimento se fazem sentir de maneira mais significativa. Uma vez efetuada a ruptura, seria
natural que a dignidade, mesmo implicando algo tão relevante como uma determinada
imagem a respeito do próprio homem (KAUFMANN, 2002, p. 335),95 se transformasse em
conceito jurídico e, nessa qualidade, fosse operacionalizada em um determinado
ordenamento, integrando-se à cultura e interagindo com outros princípios e valores próprios
daquela determinada comunidade. A aproximação da dignidade ao conceito de direitos
humanos e ao direito positivo, entretanto, não parece ter implicado o abandono do seu
potencial fundante. Mesmo compondo, na qualidade de princípio, boa parte dos ordenamentos
jurídicos, a dignidade continua gozando, conforme a grande maioria da doutrina, de um
inolvidável status pré-jurídico96, ora assumindo a forma de uma essência integrada ao homem
e conhecida intuitivamente, ora de um conceito filosófico estrito, que a remete
primordialmente à ideia de valor e a um conteúdo determinado, como é o exemplo do
constante recurso à filosofia kantiana. Conforme Häberle (2013, p. 72), foi com esteio nesta
filosofia que Günter Dürig alcançou, em 1958, a conclusão de que “a dignidade humana é
atingida quando o homem concreto é degradado em objeto, num mero meio, numa grandeza
substituível”, ideia que chegou a ser canonizada na jurisprudência alemã sob o epíteto
“fórmula-objeto” e que foi levada em consideração em inúmeros contextos, mesmo quando o
pano de fundo filosófico de que se valia não era expressamente adotado.
Tanto na hipótese da essência quanto na do conceito filosófico estrito, que
em realidade abrangem inúmeras abordagens distintas, opera-se uma integração, mas apenas
95 O próprio autor logo em seguida pondera que essa imagem é sempre relativa. Se bem analisada a questão, tomar a dignidade como componente da natureza humana ou aproximá-la da essência do homem, remete a um problema gnosiológico que diz respeito ao método para tal reconhecimento e à própria possibilidade de tal reconhecimento. 96 Um exemplo desta tendência pode ser visto no seguinte excerto: “a dignidade é atributo intrínseco, da essência, da pessoa humana […] a dignidade da pessoa humana não é uma criação constitucional, pois ela é um desse conceitos a priori, um dado preexistente a toda experiência especulativa, tal como a própria pessoa humana.” (SILVA, J. A., 1998, p. 589). Nesse sentido, também Sarlet (2013, p. 18) aponta que, para a “esmagadora maioria” da doutrina, a dignidade seria uma qualidade tida como “inerente”.
57
parcial, entre o direito e a filosofia. Por um lado, reconhecer a dignidade como um conceito
jurídico implica a necessidade de aplicá-la dentro de um determinado ordenamento, o que
pressupõe construir, juridicamente, seu conceito. Por outro, tomá-la como dado97 pré-jurídico,
elemento que se relaciona, de maneira universal, ao ser humano e que não apenas é valorado
pelo direito mas que também o fundamenta, importa, claramente, em restringir as
possibilidades de construção do conceito e vincular o direito a um conteúdo conceitual prévio,
normalmente apropriado da filosofia. A apropriação de um conceito filosófico, todavia, não
implica, especialmente quando se ingressa no senso comum teórico dos juristas 98 , a
atualização de um determinado projeto ético. É isto que Maluschke (2007, p. 112-116) tenta
demonstrar quando contrapõe a utilização do conceito kantiano de dignidade a algumas das
consequências, previstas por Kant, para as premissas de seu sistema moral, embasadoras da
conclusão racional de que o homem é um fim em si mesmo99. Decerto que a ética formalista
kantiana poderia ser, a despeito das dificuldades, desenvolvida em uma ética material
distinta100, mas o que impende aqui ressaltar é que a aproximação da dignidade com a
filosofia restringe-se sobretudo à perspectiva conceitual e não à integração, ao direito, de um
projeto ético determinado do qual se possa extrair o rol de direitos humanos. Isso torna-se
ainda mais evidente quando a dignidade é tomada como a essência do homem, constitutiva de
sua humanidade, hipótese em que a intersecção com a filosofia pode se afastar a tal ponto de
um projeto concreto de fundamentação de direitos universais que apenas remanesça a própria
afirmação de uma essência fixa e universal, ainda que não definida. 97 Como se verá em seguida, existe uma tendência a aproximar-se esse dado de uma ontologia, como o faz Sarlet. Parece procedente, todavia, a crítica de Weyne (2013, p. 157), no sentido de que a dignidade, no sentido kantiano, não se integra à pessoa sob uma perspectiva ontológica. Por isso, preferiu-se considera-la um dado pré-jurídico, terminologia que remete a uma perspectiva fixista, comum a ambas, sem necessariamente incorrer em uma interpretação equivocada da filosofia kantiana. Não obstante, como se verá adiante, a perspectiva kantiana costuma ser colocada no mesmo grupo das ontológicas. 98 O conceito foi criado por Luis Alberto Warat. Interessa-nos, sobretudo, a constatação de como o conhecimento epistemológico e filosófico, sobretudo crítico, perde-se quando na consciência do jurista comum, já que “os juristas contam um arsenal de pequenas condensações de saber: fragmentos de teorias vagamente identificáveis, coágulos de sentido surgidos do discurso dos outros, elos rápidos que formam uma minoria do direito a serviço do poder” (WARAT, 1994, p. 15). Um outra aproximação interessante para retratar esta fragmentação e perda paulatina de sentido, mas que demandaria uma reflexão especificamente jurídica – que não acreditamos seja difícil, dado o empobrecimento geral da cultura jurídica – é a proposta flusseriana de reconhecer-se como característico da contemporaneidade o discurso anfiteatral, qual seja aquele através do qual os aparelhos de comunicação em massa transcodam mensagens vindas da ciência, técnica etc, para mensagens extremamente simples e pobres. (FLUSSER, 2011, p. 76-77). Em ambos os casos, pondera-se ser difícil, ao autor deste trabalho, na qualidade de fruto desse mesmo sistema e a despeito da pretensão evidente aqui veiculada, situar as presentes reflexões como superação ou como fruto desse senso comum e discurso anfiteatral. 99 Maluschke ressalta, por exemplo, que a pena de morte, tida por muitos como violadora do princípio, era, para Kant, compatível com a ideia de que o homem é um fim em si mesmo e que a adoração religiosa, resguardada em muitos ordenamentos, era tida por Kant como violadora da dignidade. Ademais, a doação de órgãos em vida era tida por Kant como uma espécie de suicídio parcial e, portanto, violador da dignidade. 100 Sobre as dificuldades de desenvolvimento de uma ética a partir do imperativo categórico kantiano, vide Kauffman (2002, p. 318-322).
58
Tais ponderações, lançadas à guisa de compreender se e como a dignidade
da pessoa humana pode constituir o fundamento dos direitos humanos, deixam claro de que
modo aquela noção, ponto de fratura do dualismo entre conceito e fundamento dos direitos do
homem, acaba adquirindo uma identidade própria e uma certa autonomia em relação a este
debate101. Por outro lado, estas mesmas ponderações deixam entrever como a dignidade torna-
se um conceito juridicamente complexo e difícil, sempre oscilando entre a rigidez necessária à
universalidade dos direitos humanos, de um lado, e a liberdade hermenêutica imprescindível à
integração a um determinado sistema jurídico positivo e à sua operacionalização, de outro102.
Em sequência, tratar-se-á de trazer à tona algumas dessas dificuldades, ainda que de modo
bastante sucinto, especialmente no que se relaciona às tentativas de conceituação da
dignidade.
1.4 A dignidade na práxis
Pensa-se haver demonstrado, nos itens precedentes, por meio de uma análise
estrutural, que a dignidade, tomada como fundamento dos direitos humanos universais,
apresenta uma série de aporias não facilmente contornáveis, em especial a necessidade de
complementação teórica quando se trata de justificar a universalidade de um determinado rol
de direitos como direitos humanos. Tratada como outorga necessária de valor ao ser humano
ou como uma essência do ser humano que demanda o reconhecimento do seu valor – no que
poderia ser visualizado, inclusive, um elemento da metafísica aristotélica (MALUSCHKE,
2007, p. 108; WEYNE, 2013, p. 160) –, a dignidade garante um caráter absoluto necessário a
constituir o fundamento de direitos humanos universais, mas continua precisando de
justificação ulterior para fundamentar o rol e a titularidade desses direitos por todos os
homens. Essa complementação parece ocorrer por meio da consideração de que tais direitos
são históricos e através do apelo fluido a um determinado consenso teórico, de natureza e
consequências ainda não muito bem explicadas.
101 É sintomático desta autonomia a quantidade de estudos que subsistem, hoje, acerca da dignidade na história do pensamento, além de esforços concretos para fundamentá-la. A esse respeito, observe-se a interessante análise feita por Weyne (2013, p. 152 et seq), que visualiza três possibilidades de fundamentação distintas para a dignidade, qual seja uma ontológica, uma intuicionista e uma teológica, apresentando, em seguida, a fundamentação kantiana. 102. Hennette-Vauchez (2008, p. 13), por sua vez, assenta que ainda não se estabilizou um conceito do princípio da dignidade que seja axiologicamente satisfatório ou instrumentalmente útil.
59
Quando se transporta a dignidade para o interior dos ordenamentos jurídicos
tentando dar-lhe um caráter prático, as aporias mencionadas no parágrafo anterior não apenas
subsistem, como também, a medida que interagem com conflitos de interesse concretos e com
a necessidade de concretização, agravam-se, terminando por colocar em xeque a própria
utilidade do conceito de dignidade. Os problemas normalmente identificados parecem se
relacionar à tentativa de transportar o modelo acima desenvolvido para o interior dos
ordenamentos jurídicos, sobretudo pela conservação do caráter necessariamente filosófico da
dignidade – que naquele modelo é decorrência de sua integração aos direitos humanos
universais – e da sua aparente capacidade para fundamentar, sozinha, um determinado rol de
direitos. Na aplicação constitucional do preceito, estes caracteres darão origem, isoladamente
ou em conjunto com outros fatores, a inúmeras dificuldades, especialmente quando se trata de
empregar o conceito de dignidade para fundamentar raciocínios jurídicos em casos que não
encontram solução evidente no direito positivo.
É importante assentar, contudo, que a despeito do título da presente seção a
análise doravante pretendida não envolverá modelos argumentativos específicos, tampouco o
exame das inúmeras funções efetivas que a dignidade pode vir a desempenhar dentro de um
determinado ordenamento. Este tipo de averiguação compreenderia, por exemplo, o
questionamento a respeito da existência um “direito à dignidade” ou, admitindo-se a divisão
das normas entre regras e princípios, a pergunta acerca da natureza exata da norma da
dignidade e de como um princípio da dignidade interagiria com as demais normas
constitucionais103. O exame que se tenciona desenvolver abre mão destes questionamentos em
103 Destes três temas, certamente a interação da dignidade humana com as demais normas do ordenamento é o que mais interessaria ao presente trabalho. É a partir dessa interação que se faria possível visualizar não apenas o papel de destaque que a dignidade humana passou a ocupar dentro dos ordenamentos, mas também a tendência, presente em alguns setores da doutrina, de outorgar-se à dignidade o caractere de um princípio absoluto, que deve sempre prevalecer quando de seu confronto com outros. Nesse sentido, Sarlet (2012, p. 88) aponta existir inúmeros doutrinadores na Alemanha que sustentam tal ponto de vista, sob o argumento de que o princípio apresenta diferenças estruturais em relação às outras normas de direitos fundamentais. Entre nós, Guerra Filho (2008) reconhece-lhe um papel estruturalmente distinto, qualificando o princípio da dignidade humana como fundamento e limite do princípio da proporcionalidade, e Nunes (2010, p. 20) afirma expressamente que a dignidade humana constitui princípio absoluto. Alexy (2011, p. 111-114), por sua vez, embora admitindo que a dignidade humana prevalecerá em inúmeros casos em virtude de sua configuração constitucional, pondera que a aparência de tratar-se de um princípio absoluto decorre da aliança entre este fato e a circunstância de conviverem, no direito alemão, um princípio da dignidade humana e uma regra da dignidade humana, cujo conteúdo é determinado pela relação de preferência do princípio em face dos demais. É a aplicação da regra, pautada pela prevalência do princípio decorrente de seu especial status constitucional, que conduziria à impressão de tratar-se de um princípio absoluto, que não cede diante dos demais. O que apresenta interesse nisso tudo, entretanto, é menos a controvérsia metodológica que a tendência por ela revelada, de condicionar o sistema de direitos à dignidade humana e a ela submeter os valores de um dado ordenamento, a ponto de considerá-la um
60
prol de um de caráter mais amplo, que ponha no centro a tentativa de compreensão do que se
toma como pressuposto na dignidade humana a fim de que ela possa desempenhar os
inúmeros papéis que a ela são atribuídos. Não é, pois, um exame de direito positivo-
constitucional, tampouco de hermenêutica, retórica ou argumentação jurídica, mas de como se
visualiza, teoricamente, a dignidade humana que é chamada a funcionar nos inúmeros
ordenamentos, e de qual papel efetivamente desempenha.
1.4.1 A dignidade entre imanência e transcendência
Nos itens anteriores pode-se observar que a dignidade, pela sua forma de
ingresso no universo jurídico e em virtude do papel ali desempenhado, constitui um ponto de
intersecção, ainda que limitado, entre direito e a filosofia. Precisamente em virtude dessa
tangência, que já se tinha apontado desde o início, praticamente todos os estudos jurídicos a
respeito da dignidade da pessoa humana envolvem algum tipo de pesquisa filosófica e
histórica, que ora versam sobre a história do termo “dignidade”, ora sobre o valor atribuído ao
homem na história do pensamento, sempre na tentativa de encontrar elementos que permitam
conceituar a dignidade e operá-la juridicamente.
Analisando-se as respostas da doutrina, observa-se primeiramente que, ao
menos em relação ao termo “dignidade”, estão longe de serem uníssonas, variando desde a
negação completa da dignidade até a sua atribuição generalizada a todos os seres humanos104.
Esta disparidade de resultados acaba não sendo, entretanto, tão relevante, já que boa parte
dessas respostas filosóficas recebem uma atenção bem reduzida ou praticamente nula do
jurista no momento da aplicação concreta da dignidade, ao menos quando se trata das teorias
princípio absoluto. É exatamente este pólo extremado – que não se confunde com o reconhecimento da extrema relevância do conceito dentro de determinado ordenamento e das inúmeras funções que se lhe atribuem – que parece estar relacionado a inúmeros dos problemas visualizados na sequência deste capítulo. 104 Maurer (2013, p. 125-127) elabora uma divisão tripartite a respeito do pensamento sobre a dignidade e agrupa os pensadores conforme o tipo de visão que tenham elaborado a respeito: em um primeiro grupo assenta os pensadores para quem a dignidade seria um “absoluto inalienável, um a priori fundamental e transcendental”, dando como exemplos Kant, Levinas, Mounier, Cícero, Pascal e Gabriel Marcel; em um segundo grupo insere os teóricos para os quais a dignidade não é inerente ao homem, mas um porvir, dependente de um desenvolvimento posterior, que pode ser externo, pela inserção no Estado, histórico, relacionado a uma realização da história, ou mesmo interno, pertinente ao desenvolvimento interno do homem. Nesse grupo variado estariam Hegel, Marx, Taine, Durkheim, P. Lecomte du Noüy, T. Engelhart, R. M. Hare entre outros. Por fim, em um terceiro grupo insere os que negam a dignidade da pessoa, quer sob o argumento de que os homens não seriam superiores aos animais (Lévi-Strauss), quer considerando que tal noção é uma ilusão ou um fato mental pressuposto (Skinner), além de alguns biologistas, que considerariam que o indivíduo não existe para ele próprio, mas para outros fins que são os genes ou a espécie. Uma visão ainda mais ampla pode ser encontrada em Sarlet (2013, p. 34-49).
61
que negam a sua formatação universal ou que a restringem de modo considerável, tendo em
vista a incompatibilidade dessas respostas com o significado de dignidade nos inúmeros
textos constitucionais e internacionais em que inserida105. Se a dignidade é afirmada para
todos os homens e tenta-se resguardar, como visto acima, algo de seu potencial fundante, é
natural que, dentre as respostas filosóficas obtidas, exista uma tendência à aceitação das teses
que a distribuem universalmente entre todos os homens, negando-se as que a façam depender
de uma condição ou de uma prestação específica
A restrição acima apontada ainda constitui, entretanto, um passo muito
pequeno quando se trata de construir um conceito jurídico de dignidade. E a existência de
perspectivas negatórias ou restritivas sequer chega a constituir, normalmente, um problema
efetivo para o jurista. Na concretização do conceito, as dificuldades residem, em um primeiro
plano, na compatibilização entre um ordenamento jurídico específico e as diversas
perspectivas filosóficas e religiosas confirmatórias da dignidade. Em um segundo plano, em
saber como extrair consequências jurídicas válidas a partir dessa profusão de influências.
Quando se visualiza a compatibilização, o maior problema reside,
precisamente, em decidir se a dignidade é tomada como algo anterior ao direito, fundamento
de direitos humanos universais e fonte de legitimação do sistema ou se, a despeito de sua
relevância dentro daquele determinado sistema, trata-se de conceito de direito positivo
constitucional. A resposta a esta questão justificaria, ao menos em tese, um tratamento distinto
para a dignidade: na primeira hipótese, como elemento anterior ao direito positivo e
independente deste, seria necessário recorrer-se, de imediato, a um preenchimento conceitual
que remetesse à natureza humana ou à moral universalista e que permitisse entrever, em todos
os homens, a igual dignidade em torno da qual foram erigidos o sistema jurídico e o sistema
de direitos humanos universais; na segunda hipótese, tratando-se de um conceito jurídico
positivo, mesmo ocupando o ápice do sistema, poderia, ao menos hipoteticamente, ter seu
conteúdo delineado em conformidade ao ordenamento e àquela determinada comunidade
jurídica, formando-se uma imagem de homem válida em um determinado meio cultural e
105 É exatamente sob este argumento que Häberle critica a concepção de Luhmann, afirmando que “sua construção contraria os textos constitucionais consagradores da dignidade humana, que vislumbram a dignidade humana como inata” e que ela “coloca em risco de modo desnecessário uma abrangente proteção jurídica da dignidade humana” (HÄBERLE, 2013, p.75-76). Esta crítica é compartilhada por Kirste (2013, p. 187) – que afirma ser a teoria de Luhmann incapaz de resolver o problema para cuja solução o conceito de dignidade foi inserido nas Constituições, qual seja, o da tutela da dignidade de pessoas incapazes de se articular – e por Starck (2013, p. 205-206), que a amplia também ao behavorismo de Skinner.
62
renunciando-se à universalidade, que só pode ser justificada mediante o recurso a alguma
perspectiva filosófica específica.
As duas respostas acima, entretanto, pela sua radicalidade, dificilmente são
adotadas in totum106 e servem menos como modelos teóricos concretos que como esquemas
para delimitar os extremos em torno dos quais se reinstala, agora tendo por centro a definição
da dignidade da pessoa humana, a tensão entre imanência e transcendência ou, mais
propriamente, entre jusnaturalismo e juspositivismo, sem que nenhum deles seja adotado
integralmente. Em um extremo, mesmo quando se considera a dignidade um conceito anterior
ao direito positivo, dificilmente se abre mão deste em prol de um direito natural assumido
integralmente; no outro extremo, quando se considera que a dignidade é um conceito de
direito positivo, tampouco tal se faz acompanhar da renúncia a uma determinada imagem
mínima do homem, imagem esta que normalmente se resolve no apelo à sua própria
humanidade (SARLET, 2012, p. 174) e da qual se tende a extrair determinados efeitos no
ordenamento jurídico.
Como resultado desse cenário, pode-se perceber que a dignidade, já
apontada como ponto de convergência e de ruptura metodológica entre conceito e fundamento
dos direitos humanos universais, passa a constituir o epicentro da controvérsia inquebrantável
entre Direito Natural e Direito Positivo, agora transmudada (e camuflada), em grande medida,
numa questão conceitual. Não se trata mais de recorrer explicitamente a um direito imutável e
anterior ao direito positivo, mas de delimitar o conceito positivado de dignidade e, com tal
delimitação, estruturar o que há de próprio no homem, qual o seu valor, como este se
manifesta e é reconhecido e quais as consequências práticas dele extraíveis, ou seja, como se
pode, compreendendo o seu conteúdo como princípio jurídico, tomá-lo como fundamento de
direitos e deveres fundamentais (SARLET, 2013, p. 17). 106 Observe-se, por exemplo, o modelo proposto por Christian Starck (2013, p. 200-205) que, reconhecendo a dignidade como um conceito de Direito Constitucional positivo, sustenta que “interpretação constitucional não é filosofia” e que existe a necessidade de pesquisar a Constituição na tentativa de elucidar qual ou quais das distintas raízes filosóficas foi por ela albergada. Não abre mão, entretanto, da existência de um minimum comum, que o levará a postular um fundamento metafísico para a dignidade. In verbis: “É concebível que a Constituição como todo, isto é, por meio da interpretação sistemática, dê a entender claramente qual conceito filosófico de dignidade humana ela segue em termos de linha de desenvolvimento histórica. Se ela acolhe elementos de diferentes conceitos de dignidade humana, então estes devem ser reciprocamente conjugados. Apenas quando esse caminho não leva ao sucesso, poder-se-ia pensar em examinar os conceitos filosóficos de dignidade humana sob um minimum comum, e colocá-lo como base para a interpretação da garantia constitucional da dignidade humana. [...] Um fundamento metafísico traduz, em seu cerne jurídico, uma última salvaguarda do homem diante de uma total disponibilização sua por parte de poderes estatais ou sociais.” (STARCK, 2013, p. 201-202; 204)
63
1.4.2 A matriz kantiana como núcleo de sentido
É de se imaginar que a construção do conceito mencionado no fim do
parágrafo anterior não se revela tarefa fácil, especialmente se não se promover uma espécie de
corte metodológico, afastando, no pressuposto de estarem resolvidas, as diversas
controvérsias que o cercam. É nessa toada que Sarlet, após incorporar as controvérsias
referentes a fundamento, constituição e consequências do princípio da dignidade, constrói,
tentando compor a sua complexidade, uma definição do conceito de dignidade que já se
tornou clássica107. Mais interessante que a definição em si, todavia, é a análise de suas
premissas, compostas pelo que Ingo denomina “dimensões” da dignidade e nas quais se
evidencia todos os caracteres da tensão mencionada e dos problemas entrevistos nos capítulos
anteriores.
Antes de iniciar o exame, pode-se argumentar, não sem razão, que a
aproximação conceitual de Ingo Sarlet é uma dentre muitas e que não constitui um registro
completo das discussões a respeito da dignidade. Não obstante, a sua análise é justificada não
apenas em virtude de postar-se como uma tentativa de reunir, sob uma expressão única,
multifárias perspectivas distintas, mas sobretudo pela circunstância de ter partido de uma
identificação com o pensamento kantiano, predominante na doutrina nacional e estrangeira
(SARLET, 2012, p. 42),108 e de adotar a “fórmula-objeto”, que é considerada, ainda hoje, a
construção teórica mais convincente para a compreensão do princípio da dignidade
(HÄBERLE, 2013, p. 75).
A teoria de Sarlet estrutura-se da seguinte forma: 1) sob a dimensão
ontológica Sarlet considera que a dignidade é qualidade integrante e em princípio 107 Dignidade é a “qualidade intrínseca e distintiva reconhecida em cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos, mediante o devido respeito aos demais seres que integram a rede da vida”. (SARLET, 2012, p. 73). Conceito praticamente idêntico é encontrado em outra obra (SARLET, 2013, p. 37), alterado apenas pela substituição de “que integram a rede da vida” por “humanos”. 108 Não obstante, a coincidência entre a abordagem jurídica e a efetiva doutrina de Kant é matéria que varia bastante e não pode ser afirmada sem uma análise mais apurada, razão pela qual se prefere considerar que a grande maioria da doutrina postula uma distribuição universal e igualitária da dignidade entre os homens. Observe-se que afirmação semelhante a respeito da conceituação da dignidade, mas com muito menos pesquisa, é tomada como pressuposto por Hoerster (2000, p. 92)
64
irrenunciável da própria condição humana, valor absoluto do homem que não é afetado pela
sua conduta concreta e que estaria centrado, sob influência de uma matriz kantiana espalhada
pela doutrina, na autonomia e no direito à autodeterminação da pessoa, mas com o adendo de
que tal autodeterminação é considerada em abstrato, enquanto capacidade potencial de
determinar sua conduta; 2) sob a segunda dimensão, que denomina comunicativa e relacional,
pondera que a dignidade só faz sentido no plano intersubjetivo e postula o que considera uma
tese complementar à ontológica, qual seja a de que a dignidade é uma “qualidade reconhecida
como intrínseca à pessoa humana” (SARLET, 2013, p. 27)109; 3) na terceira dimensão,
nomeada de histórico-cultural, assevera que a definição da dignidade de maneira fixista não
se coaduna com o pluralismo de valores das sociedades democráticas, devendo ela ser
reconhecida como categoria axiológica aberta, pendente de concretização na práxis
constitucional e um conceito em permanente desenvolvimento. O reconhecimento dessa
dimensão, todavia, não importa renúncia à universalidade, nem uma concepção
necessariamente multicultural de dignidade, mas principalmente o reconhecimento da
possibilidade de mudanças históricas, mantida, sempre, uma “constante antropológica”
(SARLET, 2013, p. 28)110; 4) por fim, na quarta dimensão, em que ressalta o dúplice caráter
negativo e prestacional da dignidade, propõe uma releitura da fórmula kantiana, extirpando
da autonomia do sujeito o caráter de expressão absoluta da dignidade e demandando que, ao
lado dele, seja também reconhecida uma dimensão protetiva que poderá, inclusive, prevalecer
em relação àquela. Segundo essa dimensão protetiva, onde a autonomia faltar, ao sujeito deve
ser reconhecida a dignidade em virtude de sua condição humana, o que demanda um
tratamento digno mesmo quando os indivíduos já perderam capacidade de autodeterminação e
quando não conseguem reconhecer sequer insultos à sua autoestima (SARLET, 2013, p.
31)111. Também em virtude dessa dimensão dúplice é que se sustenta a dignidade poder
109Não é preciso ir muito longe para vislumbrar um início de contradição aparente entre a inerência e a necessidade de reconhecimento apontados por Sarlet. 110 É interessante, também, o trecho do acórdão do Tribunal Constitucional Alemão, em que se assevera: “o julgamento sobre o que corresponde à dignidade da pessoa humana, repousa necessariamente sobre o estado vigente do conhecimento e compreensão e não possui uma pretensão de validade indeterminada” (BverfGE v. 45, p. 229 apud SARLET, 2013, p. 29) 111 Neste ponto Sarlet socorre-se expressamente da lição de Dworkin, que trata tanto do respeito à autonomia quanto do direito à dignidade das pessoas em estado demencial. Observe-se, todavia, que Dworkin não amalgama autonomia e dignidade, tampouco fundamenta esta naquela, ponderando, separadamente, sobre cada um dos temas. Em relação à primeira, alcança, com esteio em uma concepção integral da autonomia, que o seu valor deriva da capacidade que protege, qual seja, a de alguém expressar seu caráter, de modo que o respeito demandaria um exame concreto do grau da demência. Já o direito à dignidade, definido inicialmente pelo autor como direito a não ser tratado de uma forma que, na sua cultura ou comunidade, entende-se como demonstração de desrespeito, buscaria fundamento na ideia do valor intrínseco (santidade) de nossas próprias vidas. O demenciado não perde o que o autor chama de interesses críticos, interligados a nossas convicções sobre o valor intrínseco de nossas próprias vidas, e deve ser reconhecido como tipo de criatura cuja posição moral torna
65
comparecer como limite e tarefa do poder público e da comunidade: como limite, implicaria o
impedimento de que a pessoa seja reduzida à condição de mero objeto da ação própria ou de
terceiros, inclusive gerando direitos fundamentais contra atos que a violem; como tarefa,
demandaria atitude positiva (prestações) estatal no seu devido respeito e promoção, criando
condições que viabilizem o seu pleno exercício e fruição.
No final, antes da construção do conceito, tenta outorgar alguma concretude
às diversas dimensões, ponderando:
O que se percebe, em última análise, é que onde não houver respeito pela vida e integridade física e moral do ser humano, onde as condições mínimas para uma existência digna não forem asseguradas, onde não houver limitação de poder, enfim, onde a liberdade e a autonomia, a igualdade (em direitos e dignidade) e os direitos fundamentais não forem reconhecidos e minimamente assegurados, não haverá espaço para a dignidade da pessoa humana e esta (a pessoa), por sua vez, poderá não passar de mero objeto de arbítrio e injustiças. (SARLET, 2013, p. 34)
Exposto sumariamente o pensamento de Sarlet, é fácil entrever, sob a
complexidade das diversas dimensões, ao menos um foco claro da tensão entre imanência e
transcendência que se revela no aspecto histórico-cultural, com um claro apelo jusnaturalista.
Mais do que este foco, todavia, é preciso reconhecer que a própria construção do conceito, em
sua integralidade, já ocorre sob a pregnância dessa questão aporética, em especial quando se
observa a tentativa de derivação a partir de uma das perspectivas universalistas, qual seja a
fórmula kantiana (embora já mitigada). Aqui, todas as dificuldades desta tarefa, já apontadas
nos itens anteriores, retornam, mas com um duplo contraponto: por um lado, torna-se mais
fácil operar a dignidade, tendo em vista que ela já conta com um rol de direitos fundamentais
positivados, que lhe servem de base; por outro, a especificidade das questões a serem
resolvidas tornará ainda mais problemática qualquer derivação. É fácil observar tais
dificuldades nas ponderações transcritas no parágrafo anterior, em que a título de
concretização do conceito ora opera-se com tautologias (sem condições de existência digna
não há espaço para dignidade) e ora remete-se às normas do sistema (respeito pela vida e
integridade física, reconhecimento dos direitos fundamentais).
intrínseca e objetivamente importante o modo como sua vida transcorre. (DWORKIN, 2003, p. 318-320 e 333-341).
66
Diante de tais dificuldades de formatação conceitual em um plano abstrato –
que se estendem também para a tentativa generalizada de aproximar-se a dignidade de uma
essência – tem-se considerado que as formas de violação da dignidade revelam-se apenas no
caso concreto e só neste podem ser aferidas. É dessa perspectiva que se diz saber,
intuitivamente, quando a dignidade foi espezinhada. É dessa ótica que se aplica, também, a
fórmula-objeto, a qual, embora não ofereça, por não definir o que será protegido, uma solução
global para o problema, permitiria, à luz das circunstâncias do caso concreto, verificar uma
efetiva violação da dignidade (SARLET, 2013, p. 34).
Este postulado de que a violação da dignidade afere-se no caso concreto,
todavia, resulta problemático pelo menos sob dois aspectos: a) em primeiro lugar, como visto
no parágrafo anterior, é justamente diante dos casos concretos mais difíceis, em que a solução
não pode ser extraída diretamente de algum direito fundamental, que a aplicação do conceito
tende a enfrentar as maiores dificuldades; b) em segundo, mesmo reconhecendo-se à
dignidade o caráter de princípio jurídico e de categoria axiológica aberta, sua
operacionalização parece não poder prescindir de um núcleo de sentido, de difícil construção
e que não é fornecido, de modo suficiente, pela fórmula-objeto, como se verá no próximo
item.
1.4.3 Análise da fórmula-objeto. Algumas conclusões preliminares
A insuficiência da fórmula-objeto é demonstrada, mediante análise, por
Hoerster (2000, p. 91-103), que ao final insiste em dizer que subsiste, no cerne da própria
fórmula, a demanda por um juízo moral. Hoerster analisa brevemente o raciocínio kantiano e,
tomando como ponto de partida a conclusão, contida na Metafísica dos Costumes, de que a
pessoa não pode ser tratada, por si ou por outros, meramente como um meio 112, inicia a sua
análise sobre o que pode se considerar tratar-se alguém meramente como um meio. Afirma
que, para Kant, o sentido de meramente se resolveria sob a premissa de que o sujeito conheça
as intenções do outro antes de agir e tenha possibilidade de a ela aderir, mas que tal
112 Embora não se tenha tido acesso à edição mencionada pelo autor, acredita-se que se refira expressamente à seguinte passagem: “A humanidade ela mesma é uma dignidade, pois um ser humano não pode ser usado meramente como um meio por qualquer ser humano (quer por outros quer, inclusive, por si mesmo), mas deve sempre ser usado ao mesmo tempo como um fim”. (KANT, 2003, p. 306)
67
raciocínio, quando confrontado com casos concretos, pode conduzir a resultados absurdos,113
reveladores de que o cerne da questão não reside, apenas, no conhecimento acerca das
intenções do outro, mas em uma inolvidável questão ética. O que exsurgiria da dignidade,
após a análise, não seria a proibição generalizada de frustrar a autodeterminação, mas apenas
a de frustrá-la a medida que esta seja eticamente legítima. Antes de julgar a violação da
dignidade, far-se-ia necessário valorar eticamente a própria autodeterminação, o que deixaria
evidente a necessidade de um juízo moral acoplado à aplicação do princípio a um caso
concreto. Em virtude da necessidade deste juízo moral autônomo, Hoerster acaba por concluir
que a dignidade constitui, em grande medida, uma fórmula vazia, tendo em vista a ausência
de critérios intersubjetivamente válidos para determinar o que é, na maioria dos casos,
eticamente legítimo.
Apresentada a crítica de Hoerster a respeito da abertura da fórmula-objeto
para a moral, em primeiro lugar é necessário anotar que ela muito se aproxima da “revisão”
da doutrina kantiana postulada por Sarlet na dimensão protetiva da dignidade, mas dela
diferencia-se pelas premissas ontológicas lá utilizadas. Em Hoerster, frustrar a
autodeterminação só representa violação da dignidade se ela for eticamente legítima, o que
nos remete, diretamente, em todos os casos, ao campo da moral114. Já em Sarlet esse juízo
moral, se existente, subjazeria a uma camada ontológica relacionada à condição humana,
como se pode notar no postulado segundo o qual a autodeterminação deve, como regra, ser
protegida, mas não em todos os casos, já que, quando ela faltar ou estiver prejudicada, há o
dever de preservar a dignidade em função da condição humana. Nesse modelo, é fácil
perceber, instala-se, em última instância, um conflito no julgamento entre “autodeterminação”
113 Eis a sequência de exemplos apresentado para apresentação da ideia A) um taxista que presta um serviço não é usado meramente como um meio, tendo em vista a contraprestação ajustada; B) se o passageiro omite a intenção de não pagar a corrida, haveria violação. Este exemplo é equiparável ao de Kant, no sentido de ser violadora da dignidade dar empréstimo sob a falsa premissa de que o outro o adimpliria; C) A consideração de que esse raciocínio conduz a uma situação absurda é desenvolvido sob o seguinte exemplo: “A” descobre que “B” pretende furtar sua residência e instala um sistema de alarme sem a ciência de “B”, que acaba preso. Se “B” conhecesse tal circunstância, teria agido de outra maneira de modo que, sob a estrita fórmula kantiana, teria sido utilizado como um meio. (HOERSTER, 2000, p. 94-95). É necessário reconhecer que o exemplo dado não é particularmente bom, mas a conclusão geral, acerca da abertura da fórmula, é válida. 114 Observe-se que uma tensão semelhante, embora em um contexto que não envolve expressamente a autonomia, é percebida expressamente por Dworkin (2003, p. 339) ao ponderar sobre a adequação entre seu modelo de dignidade e a fórmula-objeto kantiana: após considerar que as pessoas podem ser colocadas em situação de desvantagem sem que incorram em indignidade, reconhece que os limites entre as duas categorias são traçados, convencionalmente, de forma distinta em cada sociedade, o que não afetaria, entretanto, o direito de todos a que a sociedade em que vive reconheça a importância de suas vidas.
68
e “condição humana” que reabre o círculo de questionamentos para além da fórmula-objeto e
conduz a uma decisão que dificilmente se resolve sem um apelo moral115.
Em um segundo plano, certamente a conclusão alcançada por Hoerster, se
observada sob uma perspectiva mais ampla, pode ser criticada por não constituir, salvo para
um positivista, algo além de uma obviedade. Que, na aplicação de um determinado conceito
jurídico ingresse um juízo moral, é questão há muito debatida sob a égide da metodologia da
ciência do direito e já aventada inclusive, ainda que de passagem, no item pretérito. A
importância efetiva das ponderações de Hoerster, entretanto, reside no fato de ter
empreendido essa análise especificamente sobre o conceito de dignidade da pessoa humana e
demonstrado que, mesmo sob a pretensa objetividade da fórmula-objeto, encontra-se a
necessidade de um juízo ético de caráter amplo e que não se resolve no mero recurso ao
conceito. É justamente esse juízo ético que, quando se trata da dignidade, corre o risco de se
perder na tensão entre imanência e transcendência, ocultando-se sob o postulado dogmático
da dignidade da pessoa humana116.
Questionar-se a respeito da necessidade de um exame ético complementar é
perguntar-se, em última medida, em que momento a dignidade ingressa na argumentação
jurídica e, mais propriamente, até que ponto a dignidade pode servir como ponto final em uma
cadeia argumentativa ou de justificação de uma determinada posição jurídica. É justamente
nesse estágio que costumam surgir as maiores controvérsias e os argumentos contrários à
necessidade de uma perspectiva jurídica da dignidade, como por exemplo os de Hennette-
Vauchez (2007), que radicaliza um dos pontos da tensão aqui mencionada e considera que a
dignidade é não mais que um reavivamento teórico das concepções jusnaturalistas de
115 Incide-se nesta espécie de discussão sempre que o apelo à dignidade implica uma limitação à autonomia. Em muitos casos, esta limitação pode ser estabelecida legalmente, como é o exemplo, no Brasil, da vedação à disposição onerosa de órgãos em vida (Lei 9.434/97). A controvérsia mais famosa nesta seara, entretanto, ocorreu na França, sem respaldo legislativo expresso, e diz respeito ao famoso caso do “lançamento de anões”. Conforme reporta Sarlet (2012, 129-130), o Conselho de Estado da França considerou correta a interdição de estabelecimento que promovia o assim chamado “campeonato de anões”, espetáculo no qual os participantes eram convidados a lançar anões o mais longe possível, invocando, como fundamento de sua decisão, o fato de a dignidade, tomada como elemento integrante da ordem pública, ser bem fora do comércio e irrenunciável. A voluntariedade na participação foi considerada, pelo Conselho, como irrelevante, merecendo destaque a circunstância de o próprio anão ter-se insurgido contra tal decisão perante o Comitê de Direitos Humanos das Nações Unidas, sem lograr êxito, entretanto, em revertê-la. 116 A diferença entre a abordagem inicial de Sarlet, remontando à condição humana, e a de Hoerster, demandando diretamente um juízo moral para resolver questão bem semelhante, deixa entrever ao menos uma faceta do ponto complexo em que se encontra a dignidade.
69
direito.117 Em apoio a tal ponto de vista, realiza algumas análises da Carta Europeia de
Direitos Humanos118 e da jurisprudência francesa119, concluindo que o conceito mais ofusca o
sentido de determinadas normas que o esclarece, acrescentando que uma opção jusnaturalista
fica evidente na forma como os teóricos franceses lidam com a dignidade. Barroso (2013, p.
56 et seq) também formula inúmeras críticas na seara do ordenamento jurídico norte
americano, baseadas na noção de que esse conceito não está lá enraizado, especialmente tendo
em vista que o constitucionalismo americano baseia-se em direitos individuais e não em
valores comunitários120.
As críticas mais relevantes, todavia, dizem respeito às dificuldades de
aplicação do conceito em virtude de seu caráter vago, e é nessa vagueza e indefinição que se
visualiza o principal elemento da tensão entre imanência e transcendência. As tentativas de
elucidar o que seja a dignidade da pessoa humana feitas pela dogmática mais geral esbarram,
quase sempre, em conhecidos óbices, e não vão além do registro de um papel dentro do
sistema jurídico ou da sua referência à pessoa121, existindo mesmo quem fale ser o conceito
117 Saliente-se, neste particular, que a perspectiva de um jusnaturalismo puro faz mais sentido na França, onde o princípio não foi positivado. 118 Ele analisa, sobretudo, o artigo 3º, número 2, alíneas “a” e “b” da Carta, que encerra, sob o título Dignidade, a necessidade de ser respeitado, no domínio da medicina e biologia: “a) o consentimento livre e esclarecido da pessoa, nos termos da lei” e “b) A proibição das práticas eugénicas, nomeadamente das que têm por finalidade a seleção das pessoas”. A análise deixa entrever, sobretudo, a parca aplicabilidade dois dispositivos, tendo em vista que o primeiro abre “aos termos da lei” e o segundo proíbe nomeadamente as práticas eugênicas que tem por finalidade a seleção de pessoas, deixando margem para os inúmeros ordenamentos internos que tem normas que permitem, por exemplo, o aborto em caso de má-formação. 119 Hennettte-Vauchez (2007, p. 15) afirma que o famigerado caso de lançamento de anões tornou-se, na França, a essência da dignidade e que, a partir daí, a dignidade tornou-se um padrão objetivo a partir do qual não apenas se fundam direitos, mas sobretudo restringe-se a autonomia. 120 Nesse sentido, Barroso arrola três tipos de críticas normalmente feitas: uma de natureza formal, pela ausência de norma constitucional protegendo a dignidade; uma segunda diria respeito à incompatibilidade entre a sociedade americana e a ideia de dignidade. É aqui que se inseririam, segundo o autor, as ponderações de Neomi Rao, afirmando que a dignidade é um receptáculo verbal que contém as preferências e os compromissos ideológicos da política européia moderna, e de James Q. Whitman, asserindo que a proteção da dignidade das pessoas é estranha à tradição americana. Por fim, uma crítica mais generalizada diria respeito à vagueza do conceito, sobretudo quando confrontado com conteúdos relativos à bioética. 121 A distinção de concepções da dogmática pode ser vista em diversos autores que não chegam a consignar a dificuldade na obtenção de seu conteúdo: assim, a dignidade “concede unidade aos direitos e garantias fundamentais, sendo inerente às personalidades humanas (…) é um valor espiritual e moral inerente à pessoa, que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida e que traz consigo a pretensão ao respeito por parte das demais pessoas, constituindo-se um mínimo invulnerável que todo estatuto jurídico deve assegurar, de modo que, somente excepcionalmente, possam ser feitas limitações ao exercício dos direitos fundamentais, mas sempre sem menosprezar a necessária estima que merecem todas as pessoas enquanto seres humanos”. (MORAIS, 2012., p. 19); outros consideram que a dignidade significa ter-se a segurança necessária para o exercício da liberdade (CUNHA, , 2004, p. 28); José Afonso da Silva, em seu curso, toma a dignidade como o “valor supremo que atrai o conteúdo de todos os direitos fundamentais do homem, desde o direito à vida” (SILVA, J. A., 2004., p. 104); Luiz Alberto Araújo e Vidal Serrano Júnior aproximam as noções de cidadania, enquanto direito a ter direitos, e dignidade, buscando, para definição desta, a lição do Pe. Laércio Dias de Moura, registrando que “cada ser humano tem, pois, um lugar na sociedade humana. Um lugar
70
indefinível (HENNETTE-VAUCHEZ, 2007, p. 13; ANDORNO, 2011, p. 138). As propostas
mais dedicadas ao tema, a seu tempo, embora ganhem reforço no fundamento e na
estruturação do raciocínio, tampouco alcançam resultados mais coesos122, senão em relação
ao reconhecimento de seu valor preponderante dentro dos diversos ordenamentos123 e no
discurso ético de um modo geral.
Uma organização das dificuldades pode ser obtida examinando-se a
abordagem de Robert Andorno (2011), que sistematiza, especialmente em relação ao campo
da bioética, quatro paradoxos relevantes no conceito de dignidade. Segundo ele, o primeiro
paradoxo emerge no contraponto entre a prática e a teoria da dignidade, acerca do qual afirma
que, a despeito da aplicabilidade prática, no campo teórico da dignidade é difícil justificá-la
sem recorrer a alguma noção metafísica, normalmente rejeitada na pós-modernidade.
(ANDORNO, 2011, p. 134). O segundo paradoxo relaciona-se à abordagem negativa da
dignidade, que está intimamente vinculada à ideia corrente de que a dignidade é aferida
intuitivamente, quando violada. Denominando-a the ex negativo approach, afirma ser muito
mais fácil para o individuo compreender o que é contrário à dignidade do que reconhecer o
que está em conformidade com ela. É quando alguém sofre um ato de humilhação que se
percebe ter sido a dignidade violada; e precisamente na base dessa percepção que se dá voz a
alguns direitos tidos como absolutos, a exemplo da vedação da tortura e da escravidão
que lhe é garantido pelo direito, que é a força organizadora da sociedade. Como sujeito de direitos ele não pode ser excluído da sociedade e como sujeito de obrigações ele não pode prescindir de sua pertinência à sociedade, na qual é chamado a exercer um papel positivo” (ARAÚJO; NUNES JÚNIOR, 2011, p. 133); por fim, Canotilho (S/A. p. 219) elabora a que se pode considerar mais apropriada e completa destas definições sumárias, afirmando que a dignidade pode ser qualificada como “princípio antrópico que acolhe a ideia pré-moderna e moderna da dignitas-hominis (Pico dela Mirandola) ou seja, do indivíduo conformador de si próprio e da sua vida segundo o seu próprio projeto espiritual (plastes et fictor).” Prossegue o autor português recorrendo à ideia de homo numenon e afirmando que a dignidade significa postar o indivíduo como limite e fundamento do domínio político da República. Por último, a dignidade também exprimiria a abertura da República à ideia de comunidade constitucional inclusiva, “pautada pelo multiculturalismo mundividencial, religioso ou filosófico”, significando o contrário de fixismos de qualquer natureza.. 122 A despeito da tendência kantiana já reportada, convivem inúmeras outras compreensões. Vide, por exemplo, a contrastante conclusão de Stephen Kirste (2013, p. 195) que, pugnando por um reconhecimento jurídico do conceito, sustenta tratar-se de um direito, cujo conteúdo é o direito fundamental de ser reconhecido como sujeito de direito. Observe-se, também, as ponderações de Azevedo (2002), que considera serem os problemas relacionados à dignidade fruto da convivência de duas concepções distintas de pessoa, quais sejam a concepção insular de pessoa, fundada no homem como razão e vontade, e aquela baseada em uma nova ética, que encontra esteio no homem como ser integrado à natureza. Ao final, propõe que a dignidade seja compreendida a partir de uma ética fundada na vida e no amor. 123 Isto não quer dizer que a dignidade não disponha de críticos ferrenhos. E mesmo entre os que a defendem, podem subsistir inúmeras controvérsias quanto ao seu papel concreto, como nos reporta José Afonso da Silva (1998, p. 589), que discute sobre ela constituir “valor supremo” ou “princípio fundamental” e opta pela primeira solução.
71
(ANDORNO, 2011, 135-136). 124 É no bojo dessa aproximação, também, que se costuma
recorrer à fórmula kantiana, ao menos no que tange à necessidade de a violação ser aferida no
caso concreto. O terceiro e o quarto paradoxo, que são mais úteis no campo da bioética, dizem
respeito: a) ao reconhecimento da vulnerabilidade humana como elemento constitutivo do
próprio homem, o que se chocaria com o objeto da ciência, tendente à superação dessa
vulnerabilidade; b) ao ofuscamento, provocado pelos avanços da tecnologia e da ciência, dos
limites entre natureza humana e natureza em geral, que deve, quase consensualmente, ser
dominada.
Após apresentar esses paradoxos, Andorno conclui que eles talvez possam
ser úteis para explicar porque é tão difícil, senão impossível, definir dignidade com grande
precisão, e que o melhor que se pode fazer é aproximar-se do conceito através de
comparações, analogias e também de uma forma intuitiva. A despeito de se concordar que tais
paradoxos constituam, efetivamente, óbices na aplicação do conceito, deve-se observar que
eles só adquirem pleno sentido na sequência, quando Andorno lança a pergunta, e fornece
resposta negativa, sobre a possibilidade de definir o valor único de cada ser humano125. É na
referência a esse valor único, irrenunciável e de fundo metafísico que reside o ponto nodal
dessa tensão que acompanha o conceito em praticamente todos os campos em que se tente
aplicá-lo e que, na seara jurídica, centraliza-se o embate entre imanência e transcendência.
A despeito de elencar-se outras fórmulas de aplicação, a exemplo da
fórmula-objeto, é comum que a dignidade se apresente com um viés ontológico ou, quando
menos, com alguma perspectiva de rigidez na aceitação do conceito homem, ainda que não
definido. José Afonso da Silva (1998, p. 590) afirma expressamente que a dignidade compõe
a essência da natureza humana, Ingo Sarlet, como visto, não renuncia a uma dimensão
ontológica e Mendes (2013, p. 83-97) busca a lição de Häberle para sustentar a existência de
um conceito interculturalmente válido, mais propriamente um conceito eterno, universal e que
poderia ser aplicável a todos em qualquer tempo.126 Não se afirma, com estes parcos
124 Observe-se que o direito de não ser escravizado é admitido como absoluto até para aqueles que, adotando postura realista em relação aos direitos humanos, rejeitam uma fundamentação única para o conjunto. (BOBBIO, 2004, p. 171). É provável que justamente esses atos de humilhação tenham dado origem, ao menos parcialmente, aos direitos gravados sob o título Dignidade, na Carta de Direitos Humanos da Europa, especialmente em seu artigo 4º e 5º. 125 “After all, if dignity refers to the unique value of every human being, how could such uniqueness be defined?”. (ANDORNO, 2011, p. 138) 126. Anote-se que mesmo aqueles que tentam construir um conceito estritamente jurídico de dignidade, como Stephen Kirste, não deixam de reconhecer que a “dignidade em si consiste em uma relação de um substrato – no
72
exemplos, que a dignidade tenha necessariamente uma perspectiva ontológica, tampouco que
a totalidade da doutrina compartilhe desse ponto de vista, mas sobretudo que existe uma
tendência absolutamente natural a esse reconhecimento, que se manifesta no ex negativo
approach e que tende a protagonizar, ao final, os problemas referentes à aplicação do
conceito, sobretudo quando se trata da interconexão com a moral e das limitações da
autonomia fundadas na dignidade humana. Mantido um status ontológico necessário na
dignidade, deve-se perguntar em que medida o julgamento a respeito de tal conteúdo fixo, que
tem a pretensão de certeza própria do direito natural, dá lugar ao exame prático da questão e à
tentativa de resolução com base em outros parâmetros intrasistemáticos além da dignidade.
Essa dificuldade decorrente da perspectiva ontológica fica evidente
sobretudo quando se trata de delimitar o que Sarlet chamou de “dimensão protetiva” da
dignidade, que Hennette-Vauchez (2007, p. 14) denomina o direito de terceiros contra o
indivíduo127 e que Barroso reporta como um dos elementos do conteúdo mínimo da ideia de
dignidade, qual seja o “valor comunitário”. Vale a pena analisar, a fim de verificar como se
manifesta esta perspectiva ontológica, o modelo de Barroso (2013, p. 72-98).
Na acepção de Barroso, que pretende elaborar um discurso mínimo, e
portanto transnacional a respeito de tal conceito, a dignidade identificaria: “1. O valor
intrínseco de todos os seres humanos; assim como 2. A autonomia de cada indivíduo; e 3.
Limitada por algumas restrições legítimas impostas a ela em nome de valores sociais ou
interesses estatais (valor comunitário)” (BARROSO, 2013, p. 72). Segundo essa perspectiva,
o valor intrínseco constituiria o elemento ontológico da dignidade e corresponderia “ao
conjunto de características que são inerentes e comuns a todos o seres humanos, e que lhes
confere um status especial e superior no mundo” (BARROSO, 2013, p. 76), dele decorrendo
um postulado antiutilitarista e outro antiautoritário. Na sequência, vincula esse valor
intrínseco ao direito à vida, à igualdade perante a lei, à integridade física e à integridade
psíquica e junta diversos julgados colhidos em diversas partes do mundo. A vinculação com a
autonomia de cada indivíduo teria três faces e diria respeito à autonomia privada,
compreendida enquanto autogoverno do indivíduo e acesso às liberdades civis, autonomia caso, a essência humana – com um contexto específico – urge lembrar que nosso contexto é o do sistema jurídico” (KIRSTE, 2013, p. 189). Outra aproximação a partir dessa essência pode ser encontrada em Hennette-Vauchéz (2007, p. 13), que reporta haver autores franceses que a consideram “o que há de humano no homem”. 127 O autor afirma que tal uso teve pouca penetração na jurisprudência, mas que desde o caso do lançamento de anões ele integrou-se no conceito teórico de dignidade na França. Justamente essa tendência é que considera Direito Natural.
73
pública, que compreende a cidadania e direito de participação na vida política e, por fim, no
direito ao direito ao mínimo existencial, embora admita que tal assunto ainda é fruto de sérias
controvérsias, sendo renegado sobretudo nos Estados Unidos, que na composição da Suprema
Corte formada sob a influência de Nixon continuou com a compreensão de que os direitos
fundamentais não fundamentam prestações estatais positivas. Por fim, o valor comunitário,
que também chama de “dignidade como heteronomia”, representaria o elemento social da
dignidade e se apresentaria pelo reconhecimento de que o indivíduo estaria sob o efeito de
duas forças exógenas, quais sejam “os compromissos, valores e ‘crenças compartilhadas’ de
um grupo social” e “as normas impostas pelo Estado”.
Na aparência, o tópico valor comunitário, constante desse modelo, parece
uma abertura para o sistema moral, já que remeteria aos compromissos e crenças
compartilhadas em um grupo social. Bem analisada a exposição, entretanto, percebe-se que
dificilmente esse juízo sobre o valor comunitário deixa de encontrar esteio na própria
dignidade, em seu aspecto ontológico, o que se pode observar a partir da alegada fonte de
legitimidade para tal restrição. Conforme afirma Barroso, esta limitação à autonomia centra-
se na realização de três objetivos: “1. A proteção dos direitos e da dignidade de terceiros; 2. A
proteção dos direitos e da dignidade do próprio indivíduo; e 3. A proteção dos valores sociais
compartilhados” (BARROSO, 2013, p. 88). Ora, se um dos elementos é a dignidade do
indivíduo, e ela não é protegida enquanto autonomia, já que constitui exatamente uma
restrição à autonomia, é necessário reconhecer que tal dignidade refere-se justamente ao valor
intrínseco e, por conseguinte, ao elemento ontológico da dignidade, que não é excluído deste
juízo moral. O assunto comportaria, é certo, maiores exames, em especial tendo em vista os
exemplos trazidos por Barroso128, mas a análise que já foi feita parece suficiente para a
conclusão sobre como a perspectiva moral e a dos valores comunitários acaba confundindo-se
com a ontológica, especialmente quando se trata da fundamentação.
128 Sob a chancela da dignidade enquanto valor comunitário Barroso (2013, p. 101) afirma se encontrarem os casos clássicos do arremesso de anão ocorrido na França e o processo alemão referente ao peep show, também analisado por Hoerster sob o mesmo viés crítico. Além desses, sustenta que a contraposição entre autonomia e valor comunitário também ingressa na discussão referente à licitude da prostituição em diversos países, ao hate speech americano e a um interessante caso inglês envolvendo encontros sadomasoquistas e a ocorrência de lesões leves decorrentes deste encontro. Analisando estes casos, embora deva-se reconhecer que todos eles ingressam em sua cláusula amplíssima de valor comunitário, não parece ser possível igualar o hate speech, que causa danos a terceiros, aos demais casos, que dizem respeito apenas ao exercício da autonomia privada. Sobre o hate speech, confira-se Sarmento (2010, p. 207-262).
74
O problema que surge aqui foi bem identificado por Dieter Birnbacher
(1996, p. 107) no campo da bioética, onde a dignidade – que comparece, segundo ele, antes
como um artigo de fé que como um princípio aberto a debate racional – acaba funcionando,
no final, como um “conversation stopper” em qualquer discussão. Exemplificando esse
caráter, que qualifica como “irritante”, Birnbacher, além de mencionar o caso dos peep shows,
traz a decisão de Ernst Benda que, na qualidade de Presidente do Tribunal Constitucional
alemão, derivou a proibição da clonagem de seres humanos direto da “essência” do homem,
acabando por concluir que o conceito de dignidade não é, efetivamente, o mais adequado para
discutir-se algumas questões bioéticas (BIRNBACHER, 1996, p. 108, 120)129. Conclusão
semelhante, observe-se, foi alcançada por Habermas (2010, p. 41), ao ponderar que em
questões envolvendo a utilização de técnicas genéticas o argumento moral de que o embrião
já desfrutaria de dignidade interrompe a discussão em um ponto aquém do exigido pelo
pluralismo político da sociedade alemã.
O teor dessas inúmeras discussões não apenas revela como a dignidade
acaba representando, nos ordenamentos em que positivada ou reconhecida implicitamente,
uma porta aberta para o direito natural, mas também como pode se associar, não sem
frequência, ao que parece ser uma certa deficiência na fundamentação das decisões, mormente
em virtude do conteúdo conceitual problemático. Lidar com a dignidade ainda é, para
praticamente todos os que tentam operar jurídica e eticamente o conceito, enfrentar o mistério
chamado “homem” e elucidar o respeito que lhe seria devido de forma absoluta.
129 Vale observar, entretanto, que Birnbacher não renuncia a um conteúdo mínimo para a dignidade, assentando-o em quatro componentes: provisão dos meios biologicamente necessários para a existência; direito de se ver livre da dor forte e continuada; mínima liberdade e; mínimo auto-respeito.
75
CAPÍTULO 2. DEFINIÇÕES, SIGNIFICADO E A FILOSOFIA DA LINGUAGEM COMUM
Em todos os exames realizados no capítulo anterior, a problemática da
definição jurídica do conceito de dignidade humana revelou-se uma questão latente,
permeando praticamente todas as discussões a respeito do assunto. Mesmo reconhecida a
dignidade humana como uma categoria axiológica aberta, em permanente construção e com
algumas notas necessárias de vagueza, decorrentes sobretudo de sua operacionalização como
princípio jurídico, não se abre mão de uma definição do conceito de direito positivo dignidade
humana, discussão em torno da qual se reinstala, inclusive, a já referida tensão entre
jusnaturalismo e juspositivismo. É a partir do desenho deste conteúdo mínimo que se pretende
– ou não, e aí revela-se o caráter de “tensão” – extrair-se um conjunto de direitos humanos,
obtidos em caráter de necessidade. É a partir deste conteúdo mínimo, também, que o homem
moderno pretende formar a autoimagem e compreender-se, remetendo a definição última da
dignidade, quase sempre, à própria condição humana.
A definição da dignidade humana não adquire relevo, entretanto, apenas no
aspecto positivo – necessidade de definir o conceito para obter segurança jurídica e poder
operacionalizá-lo –, mas também no negativo, traduzindo-se na incapacidade do jurista de
encontrar uma definição adequada e consensual a respeito do conceito. Na dogmática
convivem, sem que qualquer delas prevaleça, uma quantidade excessivamente grande de
definições, quase sempre díspares entre si e igualmente inaptas a fornecer um conteúdo
mínimo para o conceito. As tentativas de encontrar este conteúdo mínimo, este cerne
conceitual que permita operá-lo com algum grau de certeza e segurança nas diversas situações
em que dele o jurista se socorre são tão variadas e igualmente incompletas que não seria
incorreto afirmar que esta definição, enquanto projeto perseguido e irrealizado, acabou
adquirindo algumas notas de utopia.
Decerto se poderia dizer, em uma primeira análise, que contribui para as
incertezas a respeito do conceito jurídico a inexistência de uma definição da dignidade em
qualquer dos documentos internacionais que a prevêem130. Aprofundando-se o exame,
entretanto, seria necessário admitir que este documento, acaso existente, certamente seria 130 Como bem ressalta Schachter, (1983, p. 848)
76
tomado, no cenário atual, apenas como um início de explicação, tendo em vista a
complexidade dos papéis hoje desempenhados pela dignidade humana no discurso jurídico e
ético. Ademais, anote-se que este tipo de definição legal costuma estar presente, nas
legislações estatais, apenas para algumas questões específicas, nas quais se pretende conferir,
a um determinado termo da linguagem comum ou técnica, um significado exatamente
delimitado. Nos demais, esta definição está ausente e a tarefa de delimitar o significado de um
determinado conceito jurídico caberá ao intérprete, em consonância com uma determinada
orientação metodológica.
Não constitui objeto do presente trabalho discutir metodologia jurídica, o
discurso decisório ou as vantagens e desvantagens das variadas técnicas de interpretação,
devendo-se reconhecer, ademais, que qualquer juízo genérico a respeito destas ou do pendor
metodológico do direito atual corre sério risco de resultar inadequado. Além das dificuldades
enfrentadas pelo fato de estarmos vivenciando o fenômeno, Villey (2009, p. 174)131 parece
correto ao afirmar não se pode falar de um sistema jurídico moderno, mas da convivência de
uma multiplicidade deles, oriunda sobretudo de distintas tendências racionalistas, empiristas e
ecléticas. Isso não impede, entretanto, que se outorgue algum crédito ao exame genérico
efetivado por Luiz Alberto Warat no final da década de setenta, quando transpõe para o
direito um juízo explícito a respeito da teoria das definições. Segundo o autor, enquanto nas
ciências dogmáticas do direito subsistiria a crença de que os conceitos normativos reportar-se-
iam diretamente à realidade e, nesta medida, comportariam definições reais, de conteúdo
unívoco e apreensíveis por intuição intelectual, na moderna Teoria Geral do Direito negar-se-
ia tal unicidade ao preenchimento do conceito, admitindo-se, com esteio no que chama de
“teses nominalistas”, que a questão deslocar-se-ia da busca ontológica para a investigação
acerca dos critérios de uso (WARAT, 1977, p. 14-16).
Embora não haja aqui – e nem se pretende colhê-los ao longo deste trabalho
– elementos que permitam confirmar, ou negar, a distribuição projetada por Warat entre a
dogmática e a metodologia, não há dúvidas de que ambos os modelos definitórios convivem
na experiência jurídica cotidiana e, por conseguinte, também estão presentes quando se trata
de elencar os caracteres necessários da dignidade humana. De certa forma, aqui parece
131 Observe-se que isso não impede o autor, entretanto, de formular alguns juízos genéricos, sobretudo o de que os caracteres mais marcantes do pensamento jurídico instaurado na modernidade são o individualismo e a laicidade.
77
reinstalar-se a problemática em que se contrapõe a busca ontológica necessária por uma
essência humana subjacente ao conceito (definição real) e as tentativas de delinear o conceito
independentemente desta busca (definição nominal), o que facilitaria a formação, inclusive,
de um conceito juridicamente mais adequado que aquele construído sob os grilhões de uma
ontologia.
É necessário admitir, entretanto, que a discussão travada, sobretudo no
campo da lógica, a respeito da contraposição entre as várias espécies definitórias, não
constitui senão uma das portas de entrada para um problema muito mais tormentoso, que
envolve a própria relação entre linguagem e realidade. É perquirindo sobre o que constitui o
significado subjacente às definições e, principalmente, se a linguagem humana é estruturada
por uma relação isomórfica com a realidade ou se, antes, estrutura-a, que se faz possível
progredir o pensamento em direção a um outro paradigma, segundo o qual não apenas será
possível reavaliar a incessante busca ontológica e as tentativas de definição real, mas que
também importará, em grande medida, na imposição de limites à própria ideia de definição,
tendo em vista a associação entre significado e uso. É a avalizar esse caminho, que conduz da
filosofia ontológica tradicional à filosofia da linguagem comum wittgensteiniana, que se
dedica o presente capítulo, ainda que, para tanto, seja necessário o afastamento momentâneo
da temática da dignidade humana, que será retomado no capítulo seguinte, onde serão
exploradas, sobretudo, as repercussões filosóficas desta mudança de paradigma e do método
terapêutico de Wittgenstein sobre a própria pergunta jurídica pela dignidade.
2.1. Primeira camada: A Definição Nominal e a Definição Real
Os manuais de lógica clássica normalmente associam “definição” à ideia de
expressão do significado de uma determinada palavra, conforme convencionalmente
estabelecido por uma comunidade linguística. Consoante entendimento corrente, a palavra
adquire gradualmente significado por convenção dos falantes e, quando tal convenção atinge
um estágio determinado de desenvolvimento, poderá ser fixada por intermédio de uma
definição (SALMON, 1973, p. 121; ALVES, 2011, p. 218; HEGENBERG, 1974, p. 20-21).
78
Embora a noção de convencionalidade linguística encontre críticas se não
for considerada ideia meramente reguladora (ALSTON, 1972, p. 90-93)132 e em que pese a
dicotomia definição nominal/definição real constitua apenas tratamento parcial da matéria,
que não revela toda a complexidade que se encerra sob a temática da definição, a proposta
apresenta utilidade ímpar ao assentar dois aspectos relevantes do que se pode entender, no
campo da lógica, por definição. Que a definição, via de regra, dirige-se à palavra, na tentativa
de especificar seu significado; e que não há significado associado à palavra de forma
independente da ação humana, ou seja, que o homem não descobre o significado da palavra,
mas que este é associado àquela pela ação conjunta dos homens.
Partindo desta premissa básica, os lógicos procedem a desenvolvimentos
diversos da matéria, elucubrando sobre os propósitos possíveis de uma definição133, sobre
suas técnicas134 e sobre os “tipos” de definição admitidos135, construindo sistematizações
teóricas bem acabadas mas, muitas vezes, não compatíveis terminologicamente entre si, como
se pode ver dos exemplos dados nas três últimas notas de rodapé. Em comum, em um nível 132 Para Alston, a ideia de que as palavras, enquanto símbolos, obtém seu significado por convenção seria apenas a personificação, pela via mítica, da circunstância de o seu significado ser dado por regras vigentes em uma determinada comunidade. Acentua, por conseguinte, que o caráter convencional se traduz, em realidade, no estabelecimento de regras. Simon (1981, p. 64) aponta, igualmente, o caráter dogmático desse estabelecimento. 133 Copi (1978. p. 105-109) enumera, como os cinco propósitos possíveis da definição, os de 1) aumentar vocabulário do falante, embora a definição não seja o método primordial de instrução da língua; 2) eliminar ambiguidade que ocorre quando o termo tem mais de um significado permitido pelo contexto; 3) aclarar significado de termos vagos, quais sejam aqueles em que subsiste uma zona de incerteza; 4) formular uma caracterização teoricamente adequada de objetos a que se deverá aplicar e; 5) influenciar, mediante o despertar de emoções específicas, as atitudes do destinatário da definição. Já Salmon (1973, p. 125-1129) traz, sob a classificação de “propósitos”, os de 1) caracterizar o costumeiro emprego da palavra; 2) introduzir uma palavra nova para exprimir significado relevante; 3) tornar mais precisa palavras vagas; 4) buscar definição conotativa de palavra cuja extensão é bem conhecida; 5) introduzir, no vocabulário, palavras de grande utilidade e importância teórica e 6) efetuar “transferência emotiva”. 134 Copi (1978, p. 126-130) divide as técnicas de definição em dois grandes grupos, quais sejam os das definições denotativas e conotativas. A definições denotativas, que se relacionam ao componente extensional do significado, dividem-se em definições através de exemplos individuais, por subclasses e na definição ostensiva ou demonstrativa. Já as definições conotativas relacionam-se à divisão clássica de gênero e espécie e são obteníveis através da aplicação da fórmula gênero próximo, diferença específica. Além destas, Copi menciona que a “sinonímia” (eleição de palavra sinônima), apesar de suas limitações, constitui técnica de definição largamente usada, sobretudo em dicionários. 135 Copi. (1978, p. 112-118) arrola, como tipos, as definições 1) estipulativas, através das quais se estipula significado para um termo novo ou novo significado para um termo existente; 2) lexicográficas, mediante as quais se registra o(s) significado(s) corrente(s) para um termo já introduzido na comunidade linguística, assemelhando-se a um registro estatístico do termo; 3) aclaradoras, destinadas a resolver a vagueza e que se situam em estágio intermediário entre a lexicográfica e a estipulativa; 4) teórica, que tenta formular caracterização teoricamente adequada de um objeto a que se aplica e; 5) persuasiva, cujo propósito consiste em influenciar atitudes. Hegenberg (1974, p. 68-89), sob a mesma rubrica e tratando a definição já como operação conceitual que se desenvolve na correspondência signo-signo, classifica as definições como explícitas (em que se faz possível a substituição do definiendum pelo definiens em uma sentença), contextuais (em que se constrói outra sentença com mesmo significado de uma sentença contendo o definiendum, mas sem uso deste), recursivas e por abstração, estas últimas de grande relevância na matemática. Ademais, em capítulo no qual remete a ideias tradicionais (HEGENBERG, 1974, p. 28-33), ainda apresenta a classificação das definições em nominais e reais.
79
mais básico, costuma-se ressaltar que a definição, à parte a técnica ostensiva, constitui uma
relação entre determinado símbolo que se quer definir (definiendum) e o símbolo ou conjunto
de símbolos já conhecidos, usados para explicar (ou mais propriamente especificar) o
significado daquele (definiens). No cerne dessa ideia encontra-se a possibilidade de
intercâmbio entre o definiendum e o definiens, de substituição recíproca entre ambos com
manutenção do significado expresso.
Esta concepção, todavia, a despeito de sua simplicidade, já precisa ser
relatada em companhia de um primeiro empecilho, que transparece na diferenciação entre
definições nominais e reais, distinção esta que, embora medieval, acompanha a lógica até hoje
e é reportada em todos os manuais. De acordo com tal classificação, a definição nominal é
aquela que coincide com o formato geral antes apresentado, ou seja, é a que tem por objeto
explicar o sentido de um determinado vocábulo136, através do uso de palavras previamente
conhecidas. A definição real, por sua vez, é a que se relaciona com o definiendum apenas
como designador de uma determinada coisa, à qual tenta delimitar em sua essência. Nesta
perspectiva, quem fornece uma definição real está se referindo ao produto de uma
investigação empírica e não da pesquisa a respeito de um vocábulo, o que importa reconhecer,
em alguma medida, a existência da coisa vinculada ao definiendum ou, ao menos, a
possibilidade de sua existência (HEGENBERG, 1974, p. 30-32)137.
A radicalidade dessa distinção parece pôr em xeque todas as propostas de
aproximação do termo “definição” até então elaboradas, dado que atinge as suas estruturas
basilares, exigindo-se que se abandone o nível linguístico em prol da camada empírica. Em
um primeiro plano, atinge a perspectiva de intercâmbio irrestrito entre definiendum e
definiens, a medida que desloca a questão para o substrato extralinguístico, submetendo-se as
definições ao juízo de verdade e falsidade. Em segundo lugar, embora permita que se continue
admitindo a convencionalidade primária na vinculação entre o signo linguístico e a realidade,
subtrai, pelos mesmos motivos, do significado expresso pela definição o seu caráter
convencional. Por fim, a despeito de manter-se, formalmente, a relação entre signos
136 Hegenberg, (1974, p. 29) pontua que se trataria de explicar o sentido de um conceito. 137 Observe-se que Hegenberg também chama de reais as definições lexicográficas, por reportarem o uso estabelecido, por outros autores, de um determinado vocábulo, vinculando as nominais à ideia de estipulação. Em relação às definições reais, vale anotar ainda a observação de Alves (2011, p. 219-220), que ressalta ser tal espécie de definição calcada na concepção realista clássica, que admitia acesso às essências.
80
(símbolos), tal só se dá em aparência, tendo em vista que a relação deslocou-se para o plano
ontológico.
Bem analisada a questão, todavia, pode-se constatar que a existência deste
desvio ontológico, aparentemente incompatível, na raiz da ideia de definição concebida pela
lógica não revela um defeito intrínseco apto a afetar-lhe a estrutura, mas tão só a parcialidade
do caminho voluntariamente percorrido. Ao restringir a definição a uma operação técnica
relativa a signos138, escolhe-se um caminho, revelador de um determinado ponto de vista,
dentre muitos, a respeito do que seja “definição”. Richard Robinson139 (apud MÁYNEZ,
1958, p. 44), questionando qual a definição de “definição”, fornece ao menos doze respostas
célebres, muitas das quais absolutamente díspares entre si. Ilustrando-as, observa que para
Aristóteles a definição consistiria em dar conta da essência de uma coisa, para Kant se
relacionaria à análise do conteúdo de um conceito, enquanto para Russel e Whitehead, em seu
Principia Mathematica, a definição seria uma declaração em que um símbolo novo significa o
mesmo que um conjunto de símbolos cujo significado já é conhecido. Já Abbagnano (2007, p.
235-237), analisando o termo em seu dicionário filosófico, anota que a definição consistiria
sempre na declaração de uma essência, seja ela da coisa (posição realista aristotélica), do
nome (posição nominalista) ou do significado, ponto de vista cuja raiz atribui aos estóicos e
que teria como herança o conceito moderno de que a definição, afastando-se a ideia de uma
essência nominal ou substancial, consubstancia-se na declaração do significado de um termo,
entendido este como o uso que o termo pode ter em determinado campo de investigação.
Sob a multiplicidade de propostas, que não foram trazidas aqui senão em
caráter absolutamente superficial e que dão origem às inúmeras classificações mencionadas,
repousam, segundo Dubislav140 (apud MÁYNEZ, 1958, p. 46), quatro atitudes fundamentais
diante do problema definitório. Pode-se considerar que a definição consiste,
fundamentalmente: a) na determinação da essência de algo; b) em uma determinação
conceitual; c) no esclarecimento ou exposição a respeito do sentido de um signo ou sobre a
forma de sua aplicação; d) na disposição ou prescrição a respeito do sentido de um novo
signo, ou sobre a forma que deve ser aplicado.
138 Hegenberg, a partir do capítulo 3, superadas o que ele considera algumas ideias tradicionais, dedica-se a exatamente este viés de definição 139 ROBINSON, Richard. Definition At the Clarendon Press, Oxford, 1950; 140 DUBISLAV, Walter. Die Definition. 3. ed. Leipzig: Felix Meiner Verlag, 1931 I, 2 pag. 2
81
O primeiro dos posicionamentos corresponde, principalmente, ao
desenvolvimento da afirmação aristotélica de que “uma definição é uma frase que significa a
essência de uma coisa” (ARISTÓTELES, Tópicos, Livro I, 5). A “essência” aqui mencionada
aproxima-se, de um modo geral, nos quadros da metafísica de Aristóteles, às noções de
substância segunda141 e de forma e, no plano lógico conceitual, serve de critério para
classificação dos quatro predicáveis aristotélicos (definição, propriedade, gênero e acidente).
Com efeito, todo predicado de um sujeito deve necessariamente ser ou não ser conversível com ele: e, se é conversível, será a sua definição ou uma propriedade sua, porque, se significa a essência, é a definição; do contrário, é uma propriedade, pois foi assim que definimos a propriedade, a saber: o que se predica de maneira conversível, porém não significa a essência. Se, por outro lado, não se predica da coisa de maneira conversível, ou é, ou não é um dos termos contidos na definição do sujeito; e se é um desses termos, será o gênero ou a diferença, porquanto a definição consiste no gênero e nas diferenças; e se, por outro lado, não é um desses termos, evidentemente será um acidente, pois já dissemos que o acidente é aquilo que pertence como atributo a um sujeito sem ser nem a sua definição, nem o seu gênero, nem uma propriedade. (ARISTÓTELES, Tópicos, Livro I, 8)
Sem necessidade de ingressar na metafísica aristotélica, a passagem
transcrita permite entrever que a definição, em Aristóteles, vincula-se aos predicados
essenciais e convertíveis de um determinado sujeito142 e que se traduz por relações inteligíveis
de gênero e diferença. É do desenvolvimento deste ponto de vista no curso da Idade Média,
sobretudo por Porfírio e sua teoria da quinque voces (genus, species, differentia, proprium,
accidens) que se alcançará a fórmula, até hoje classificada como técnica de definição
conotativa, do “gênero próximo diferença específica” (defínitio fit per genus proximum et
differentiam specificam), já presente, de certa forma, também em Aristóteles. O que 141 Segundo Chauí (2012, p. 390-391) “como essência, a substância é a unidade real e inteligível de propriedades necessárias que determinam aquilo que uma coisa é tomada em si mesma (afastadas todas as propriedades acidentais que ela pode ter ou deixar de ter) e que dizem o que a coisa é dizendo qual é sua finalidade ou função”. A substância segunda, aqui, não se confunde com a categoria aristotélica “Substância”, embora nela se insira, conforme ressalta Auroux (1998, p. 152-153). Existe, conforme reconhecido na doutrina filosófica, uma relativa imprecisão terminológica em Aristóteles no uso do termo “ousía”, o que levou a ser traduzido, posteriormente, no latim, ora como essentia, ora como substantia. (MORA, 1965a, 1965b, vocábulos SUBSTANCIA, ESENCIA e OUSIA). Chauí (2012, p. 491), por sua vez, ainda acrescenta que, no latim, também se fala em essência como quididade, originada da expressão tò tí en eînai, utilizada por Aristóteles para determinar o que seria ousía. 142 Anote-se que, a despeito do uso do termo “sujeito”, a definição essencial aristotélica jamais se dirigia a indivíduos, mas tão somente a classes universais, tendo em vista que não se visualizavam diferenças essenciais entre indivíduos de uma mesma espécie, mas tão somente acidentes. A lógica era ancilar da ciência e a definição era a premissa mais importante desta, que versava apenas sobre o universal (MORA, 1965a, p. 553; PESSANHA, 1987, p. XVI; CHAUÍ, 2012, p. 376-377). Essa perspectiva de precedência do universal sobre o individual revela-se uma constante que subsistiu até a Baixa Idade Média, quando se pode considerar ter sido revista por Duns Scotus – e sua doutrina da haeccitas –, bem como pelo terminismo de Guilherme de Ockham, ambas com repercussões, inclusive, na doutrina do direito natural (GUERRA FILHO, 2013).
82
sobreleva, para Máynez (1958), é a circunstância de, por este modo de ver, a definição voltar-
se aos objetos e não aos conceitos ou palavras143.
A segunda postura apontada, consistente em considerar a definição como o
conteúdo de um conceito, é atribuída por Dubislav a Kant e a Jacob Friedrich Fries. Para
Kant (1992, p. 159), “uma definição é um conceito suficientemente distinto e adequado” e,
segundo Máynez (1958), tanto no caso de definições sintéticas (voltada para conceitos
construídos) quanto na hipótese das analíticas (que tem por objeto conceitos dados), o
procedimento definitório não tem por objetivo assinalar a essência de uma coisa, mas
determinar de maneira adequada e completa o conteúdo de um conceito.
Aqui parece necessário assentar que a distinção entre a primeira postura e a
segunda é muito mais profunda do que aparenta à primeira vista e representa vieses cognitivos
distintos. Pode-se dizer que, em Aristóteles, a definição voltava-se à coisa em virtude da
hipostasiação da essência, pela equiparação da essência definível à substância, enquanto que,
em Kant, dada a inacessibilidade do inteligível, o conceito, construído esquematicamente,
torna-se a instância adequada de diferenciação. Dito em outras palavras, em ambos, trata-se
da tentativa de encontrar o invariante dos elementos de uma determinada classe, garantidor da
unidade de significação, mas enquanto para Aristóteles este invariante está na realidade, para
Kant ele é deslocado para os juízos144. A compreensão mais exata dessa distinção, que marca
o reflexo, nas definições, da separação entre ser e pensar (OLIVEIRA, 2006, p. 36), exigiria
um exame detido da epistemologia kantiana, que não se faz necessário, todavia, para as
conclusões que se pretende alcançar com este estudo. De toda sorte, tendo em vista constituir-
se o mote da presente pesquisa a respeito da definição, é necessário consignar que Kant, sem
abandonar seu sistema conceitual, trata expressamente da definição nominal e da definição
real145, reservando, de modo coerente com sua teoria, aos objetos da experiência apenas a
primeira. As definições reais, tiradas da essência da coisa e que contém a sua possibilidade
143 Deixa-se em aberto em que medida a definição do invariante de uma classe importa na formação de um conceito e de como esse, na teoria aristotélica, equivale ou aproxima-se da noção de essência. 144 Sobre o tratamento da questão conceitual em Aristóteles e em Kant, vide Hardy-Vallée (2013, p. 32-39 e 44-46). Uma introdução acessível ao esquematismo kantiano foi encontrada em Ferry (2009 p. 47-52). 145 “Por meras explicações de nomes, ou definições nominais, devem-se entender aquelas que contém o significado que se quis dar arbitrariamente a um certo nome e que, por isso, designam apenas a essência lógica de seu objeto, ou que servem simplesmente para distingui-lo de outros objetos. Ao contrário, as explicações de coisas ou definições reais, são aquelas que são suficientes para o conhecimento do objeto, segundo suas determinações internas, na medida em que exibem a possibilidade do objeto a partir de suas características internas” (KANT, 1992, p. 161).
83
última, são as únicas compatíveis com os conceitos arbitrários (pertinentes à matemática) e
deveriam ser sempre buscadas no campo da moral (KANT, 1992, p. 161).
As duas posturas seguintes aproximam-se bastante dos modelos de
“definição” trazidos no início do capítulo, hoje correntes na lógica clássica, e equivalem aos
“tipos” denominados por Copi, respectivamente, lexicográfica e estipulativa146. A definição
lexicográfica (ou léxica) não diz respeito à essência de uma coisa, tampouco ao conteúdo de
um conceito, mas ao sentido que se atribui ao signo em determinada época e lugar. É a
definição normalmente encontrada nos dicionários e tem um componente histórico, a medida
que registra, estatisticamente, os usos admitidos para um determinado termo em uma
determinada época. Observe-se que esta espécie de definição, embora não se dirija à coisa,
pressupõe uma pesquisa fática a respeito do uso corrente em uma determinada comunidade147,
razão pela qual o enunciado que a encerra submete-se aos valores veritativos da lógica
moderna e é chamada, por vezes, de “definição real” (HEGENBERG, 1974, p. 31; COPI,
1978, p. 115)148.
A última postura no tocante ao problema definitório consiste em tomar a
definição como estipulação de um sentido até então inexistente a um determinado termo, quer
se trate de um novo termo, quer se trate de um termo já existente usado em um novo contexto.
O que releva anotar neste posicionamento é que não se trata mais de registrar um uso
linguístico existente, mas de dispor, normativamente, o sentido em que um signo deve ser
compreendido e empregado em um determinado contexto. Por este motivo, considerando-se a
inexistência de um uso anterior, tal definição não pode ser considerada um enunciado e, por
conseguinte, não se sujeita a juízos de verdade ou falsidade, mas tão somente de
adequação/inadequação (COPI, 1978, p. 114-115).
146 Conforme visto na Nota de Rodapé 135, nas definições estipulativas estipula-se significado para um termo novo ou novo significado para um termo existente, enquanto nas lexicográficas, registra(m)-se o(s) significado(s) corrente()s para um termo já introduzido na comunidade linguística, assemelhando-se a um registro estatístico do termo. 147 Robinson (op. cit apud MÁYNEZ, 1958, p. 50) lembra que esta espécie de definição sempre encerra, ao menos, três pessoas distintas, quais sejam o sujeito que propõe a definição, o sujeito a quem ela se dirige e os indivíduos cujo uso outorgam à palavra estes determinados sentidos. 148. Segundo estes autores, os que adotam a nomenclatura “real” para designar as definições lexicográficas chamam de nominais as definições estipulativas.
84
2.1.1 Uma primeira tentativa de conclusão
As teorias a respeito da definição, todavia, assim sistematizadas, apenas
arranham em sua superfície o problema que parece central quando se atualiza a vetusta
problemática acerca da definição nominal e da real, qual seja o da relação entre linguagem e
realidade. De certa forma, as quatro posturas mencionadas, inclusive a última, não descuram
completamente de uma relação objetal subjacente ou, ao menos, não põem tal problemática
em foco de modo explícito. A definição de Aristóteles tem por objeto delimitar,
predicativamente, a essência da coisa, enquanto a de Kant volta-se ao conceito mediado pela
consciência na tentativa de organização do real. Observe-se que nem mesmo a teoria
normativa da estipulação prescinde de uma referencialidade, a medida que, como considerada
por Robinson149 (apud MÁYNEZ, 1958, p. 50), consistiria no ato de assinalar um nome novo
para um objeto ou um objeto novo para um nome. A arbitrariedade, nesse ponto de vista
estreito, recairia apenas sobre o estabelecimento de uma nova relação, remontando, em
realidade, a uma relação que parece já resolvida desde o Crátilo de Platão (SIMON, 1981, p.
63). A dúvida real a respeito da referencialidade poderia ficar por conta da definição léxica, a
medida que registra o uso comum do termo e não problematiza explicitamente a respeito da
relação entre palavra e realidade. Deixa-se, por ora, de lado esta perspectiva, em prol das
demais, ora discutidas.
Uma leitura mais detida do parágrafo anterior pode suscitar a impressão de
que se fez confusão a respeito do problema. Pode-se argumentar, não sem apoio, que a
classificação das definições entre nominal e real não diz respeito à referencialidade do termo,
mas a plano distinto, já que na definição nominal trata-se da substituição de um símbolo por
outros, melhor entendidos dentro daquele determinado contexto, enquanto na definição real
inexiste tal substituição e tudo se resolve na enumeração das propriedades mediante as quais
uma determinada coisa pode ser comparada com outras e delas distinguida, não havendo, por
conseguinte, qualquer tipo de rivalidade entre ambas (OGDEN; RICHARDS, 1976, p. 123).
Retoma-se, assim, a ideia básica de que a definição nominal é relação entre termos e não uma
tentativa de delimitar, linguisticamente, um determinado objeto da realidade.
149 op. cit., p 59. A circunstância de ser conhecida como definição impositiva (ato de impor um nome) também é reveladora deste fato.
85
Tal distinção, todavia, da maneira como explicitada, enfrenta um empecilho,
bem aparente, quando analisada sob a perspectiva de referencialidade do signo linguístico.
Para que se compreenda este empecilho, é necessário observar-se que, a despeito da diferença
de conteúdo, os dois tipos de definição expressam-se formalmente de modo idêntico. A
definição nominal vincula a um termo um conjunto de termos que o definem e que podem por
ele serem substituídos, enquanto a definição real associa a um objeto da realidade
previamente designado por um termo um conjunto de termos que tem pretensão de delimitá-
lo. Em ambos, por conseguinte, vincula-se um termo a um conjunto de termos.
Dada essa similitude, deve-se assentar, em primeiro plano, que a forma da
definição é parâmetro pouco adequado para reconhecer a diferença efetiva entre as duas
categorias150, não permitindo aferir se a definição é de um nome ou de uma coisa. Em
segundo lugar, considerando-se que as definições, se não completamente arbitrárias,
expressam significado151 construído a partir de algum outro elemento que não a mera vontade,
é necessário questionar-se em que medida essa construção relaciona-se com a realidade,
delimitando-a, e até que ponto a definição assim obtida pode ser classificada como “nominal”
ou “real”.
Decerto que a distinção não apresenta maiores problemas se igualarmos
definições nominais às estipulativas, já que o componente de arbitrariedade destas seria
suficiente para garantir que a definição verse apenas sobre o nome, sem consistir numa
tentativa de delimitar uma realidade subjacente. Esta parece ser a tendência dos
desenvolvimentos modernos a respeito da definição, em especial quando inseridos nos
estudos de lógica e metodologia da ciência, nos quais é corrente que se tome, como definição
do termo “definição”, apenas aquela teórico-estipulativa, marcada especialmente pela certeza,
pela não aplicabilidade dos valores veritativos e pela validade apenas para um determinado
propósito152. Se a definição é sempre convencional e dirige-se a um nome, faz sentido
considerar-se a distinção nos termos propostos, em que a definição real surgiria como espécie
absolutamente anômala, mero resquício histórico e desimportante. Para que a associação entre 150 Não se considera, nesse particular, que a forma “…’=’…df”, normalmente adotada na lógica, resolva o problema. 151 A noção de significado foi deixada propositalmente de lado até o presente momento e será discutida logo em sequência. 152 Nesse sentido, observe-se que Ogden e Richards (1976, p. 125) asseveram serem as definições essencialmente ad hoc, premissa que parece permear toda a obra de Hegenberg sobre definições. De certa forma, parece-nos que a definição constituída deste modo ganha corpo, na filosofia analítica, especialmente como instrumento na construção de uma metalinguagem destinada a afastar as incertezas da linguagem comum.
86
estipulação e definição nominal fizesse pleno sentido, entretanto, seria necessário que a
arbitrariedade das definições estipulativas fosse absoluta, sem qualquer referencial com a
realidade, o que não parece ser o caso na maior parte das definições, inclusive naquelas
utilizadas nas ciências153. Ademais, a ideia de tomar-se como definição apenas aquela
chamada estipulativa importa em restringir em demasia o que se deseja estudar 154 ,
desconsiderando-se todas as demais posturas já apontadas.
Analisadas as definições sob uma perspectiva mais abrangente, pode-se
observar que a classificação entre nominal e real não se resolve no binômio coisa/palavra,
mas traduz, em realidade, a pretensão, diante da realidade, do sujeito que classifica a
definição como nominal ou real, ao menos naquelas voltadas a termos já existentes e gerais.
Ao subsumir determinada definição à categoria nominal o sujeito está afirmando, em
realidade, ou que não concorda com a “realidade” de algo que se poderia considerar
“referido” pelo termo, ou que não tem acesso suficiente a esta coisa ou, ainda, que não tem
pretensão de verdade naquela definição (com esta pretensão confundem-se os
desenvolvimentos mais recentes a respeito de definição).
A postura mais óbvia consiste, é claro, num julgamento a respeito da própria
constituição da realidade. Nesse caso, nega-se caráter ontológico ao referente de um
determinado conjunto de termos, de modo que eles somente comportariam definição
nominal155. De certa forma, foi o que ocorreu com a instauração da via moderna, quando,
grosso modo, deixou-se de hipostasiar as essências universais e passou-se a reconhecer
realidade apenas no singular. A segunda hipótese seria composta dos casos em que se admite
algum componente de “irrealidade” na construção da definição em virtude de empecilhos de
ordem epistemológica, reconhecidos de modo consciente. Nessa ordem inserem-se as
reflexões de Kant, ao assentar que os objetos da experiência comportam apenas definições
153 Não é incomum encontrar-se, a exemplo do que se verifica na obra de Ogden e Richards (1976, p. 127), estudos dedicados a elencar as conexões essenciais entre os objetos pertencentes à extensão de um termo, que permitiriam a formulação de uma definição conotativa. 154 Não se pode deixar de notar, é evidente, uma certa circularidade viciosa no argumento. É claro que a definição de “definição”, para tais disciplinas e para seus fins, pode restringir-se à teórico estipulativa. O que se propugna, aqui, é tão somente não se estreitar de tal maneira a pesquisa e tentar compreender o que se insere sob o nome “definição”. 155 Abbagnano (2007, p. 235) sustenta que, mesmo nestes casos, trata-se da definição da essência, mas da “essência nominal”.
87
nominais, enquanto os conceitos construídos arbitrariamente (matemáticos) implicam
definições reais156.
A terceira linha de ideias, que de certa forma abrange as anteriores, consiste
em considerar a definição mero instrumento operacional, válido para uma determinada
disciplina, mas que não tem pretensão de retratar a realidade, ou seja, que não se propõe a
selecionar relações comuns perenemente válidas entre os referentes relacionados àquela
determinada definição, de forma a estabelecer, de modo submetível aos critérios de verdade,
os lindes daquela determinada classe. Observe-se que esta postura, no fundo, por não se
estribar em puro arbítrio, mas na construção da definição com esteio em determinados
critérios relacionados à realidade, só se pode qualificar de nominal a medida que a
“suficiência” da definição é postulada normativamente, para os propósitos determinados, e
não porque não se relacione com a realidade. Não se trata, por conseguinte, de negar a
ontologia subjacente, tampouco de reconhecer a inacessibilidade da coisa em si, mas tão
somente de estipular, normativamente, os limites em que se considera compreendida de modo
suficiente a coisa, para aqueles determinados propósitos.157
2.2. Segunda camada: uma fisionomia do significado
As ponderações acima permitiram, dentro de uma perspectiva de
enlaçamento entre linguagem e objeto, vislumbrar que a classificação das definições entre
nominais e reais diz respeito, no limite, à pretensão de suficiência do autor da definição ao
enunciá-la. A análise, todavia, foi propositalmente parcial em um duplo aspecto. Primeiro,
centrou-se nas posturas a respeito de definição enumeradas apenas como “a”, “b” e “d”158,
tomando-se como pressuposto algo chamado de referencialidade, com o que se deixou de fora
a definição léxica, que a despeito de representar uma relação entre palavras, é considerada,
156 No fundo, a distinção escora-se na possibilidade de construir-se proposições sintéticas apenas na matemática. (AUROUX, 1998, p. 187) 157 Ratifique-se não existir, de fato, uma diferença tão grande entre o posicionamento kantiano e este. Em ambos, trata-se de selecionar determinados aspectos, que não delimitam a coisa senão pontualmente, e com eles construir uma definição. Observe-se, a propósito, bases da conclusão alcançada por Kant: “Se um conceito é internamente suficiente para distinguir a coisa, então certamente ele também o é externamente; mas, se ele não é internamente suficiente, ele pode no entanto ser externamente suficiente sob certo aspecto apenas, a saber, na comparação do definitum com outros. Só que a suficiência externa irrestrita não é possível sem a primeira” (Kant, 1992, p. 161) 158 Conforme página 80 do presente trabalho, “a” consiste na determinação da essência de algo; “b” em uma determinação conceitual e; “d” na disposição ou prescrição a respeito do sentido de um novo signo, ou sobre a forma que deve ser aplicado. A postura “c” consiste em tomar definição como esclarecimento ou exposição a respeito do sentido de um signo ou sobre a forma de sua aplicação
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por vários autores, como espécie de definição real. Em segundo lugar, embora se tenha
mencionado que a definição é a expressão do significado de um termo, tampouco se enfocou
o que seja significado e quais as suas possibilidades de compreensão, tomando-se-o
irrefletidamente como sinônimo do referente.
Do entrelaçamento destas lacunas surge a questão, inevitável, acerca do que
consistiria o “significado” expresso nas definições e em que medida o uso comum dos termos
relaciona-se à realidade e a seu significado. Em um segundo plano, ao ignorar-se este uso
corriqueiro, tratou-se das definições estipulativas que recaem sobre termos da linguagem
comum como se elas modificassem não o significado comum do termo, surgido no seio de
uma determinada comunidade, mas a designação direta de um determinado conjunto de
coisas, feita por um sujeito particular após travar conhecimento com a realidade159. Observe-
se que esta última perspectiva marca a linguagem no pensamento ocidental e está presente,
inclusive, na construção conceitual kantiana, em que a transcendentalidade, possibilitadora do
conhecimento comum, é anterior à linguagem.
Estas ponderações descortinam a razão de o problema definitório não ser
suficiente para a compreensão das relações entre linguagem e realidade. Enquanto forma de
expressão de um significado, a definição surge como uma camada posterior, que pressupõe
resolvidas as questões relativas ao que constitui o significado e de como se estabelecem as
relações entre linguagem e ser. Estas relações, todavia, não estão resolvidas. O que se tratou
aqui como “referencialidade” marca a ideia de significado desde o seu surgimento e está
vinculada a uma perspectiva específica de instrumentalidade da linguagem em relação ao
processo de conhecimento, em que este não se estabelece tradicionalmente através da palavra,
mas antes dela, remanescendo a esta o papel central de designar o seu produto a fim de
comunicá-lo. Este não é o único ponto de vista possível, mas convém analisá-lo antes de
delinear, na próxima seção, o seu contraponto.
O que certamente se pode considerar o grande drama da relação entre
linguagem e ontologia, e que de certa forma vinculou uma perspectiva ontológica aos estudos
a respeito da linguagem desde o seus primórdios, revela-se no contraponto entre a
singularidade das coisas e a universalidade do discurso (OLIVEIRA, 2006, p. 31). Como,
159 Robinson (op. cit., apud ABBAGNANO, 2007, p. 237) chama tais definições estipulativas de “redefinições”.
89
numa linguagem geral, garantir-se a unidade de significação de expressões em face de um
determinado conjunto de coisas que se individualizam no tempo e no espaço configura, ao
menos sob uma certa perspectiva, o moto de Platão na teoria das ideias e de Aristóteles na
teoria da forma inerente às coisas (AUROUX, 1998, p. 149).
Com a assertiva acima não se quer dizer que o acesso à ontologia160 para
estes autores ocorria através da linguagem. Ao revés, Platão, refutando o naturalismo
linguístico, tematiza, em seu Crátilo, a ausência de vinculação necessária entre ser e
linguagem e, na República, assenta que o Eîdos só é conhecido diretamente, por intuição
intelectual, independentemente da mediação linguística, que permaneceria vinculada ao plano
do sensível confuso (OLIVEIRA, 2006, p. 22)161. Aristóteles, a seu tempo, embora refletindo
sempre no horizonte da linguagem e admitindo uma “solidariedade natural” entre as coisas, os
conceitos que formamos a respeito das coisas e o discurso162, também parte da separação
entre palavra e coisa ao tentar elaborar uma teoria da significação (OLIVEIRA, 2006, p.
27)163. Em ambos, todavia, persiste a problemática do universal, próprio do pensamento e da
linguagem, em face da singularidade das coisas, problemática esta que permeará a história do
pensamento a respeito da linguagem, em especial no que tange à temática da significação.
A percepção de que, entre o objeto e a palavra interpõe-se algo como uma
significação é comumente atribuída aos estóicos, tidos como primeiros desenvolvedores de
uma doutrina do significado (CHAUÍ, 2010, p. 136; ABBAGNANO, 2007, p. 890). Eles
tematizaram a respeito das relações entre aquilo que está na realidade, a palavra e a
representação racional no indivíduo, reconhecendo uma tríade de elementos, conforme se
constata do comentário de Sexto Empírico:
São três os elementos que se inter-relacionam: O significado, aquilo que significa e aquilo que é. O que significa é a palavra, como por exemplo ‘Dion’. O significado é a coisa indicada pela palavra, que nós apreendemos ao pensarmos na coisa correspondente. Aquilo que é, é o sujeito exterior,
160 Compreende-se ontologia, aqui, como a resposta à pergunta: “O que é?” 161 Sobre a dialética platônica e a teoria do conhecimento na República, vide Chauí (2012, p. 249 et seq). 162 A expressão “solidariedade natural” é de Chauí (2012, p. 437-438). 163 Observe-se que Oliveira (2006, p. 31-33) reconhece, na obra de Aristóteles, também uma dimensão implícita, segundo a qual não haveria acesso ao ser sem a linguagem, ou seja, anteciparia a compreensão contemporânea de que toda reflexão é sempre reflexão mediada linguisticamente.. Haveria, por conseguinte, um caráter dúplice: por um lado, na medida em que Aristóteles faria uma espécie de “reflexão transcendental, determinando a estrutura do real como condição de possibilidade do pensamento”, a ontologia permaneceria na qualidade de ciência primeira. Por outro lado, o ser tampouco poderia ser considerado a priori da comunicação humana sem a mediação da linguagem.
90
como por exemplo o próprio ‘Díon’. (SEXTO EMPÍRICO. Contra os matemáticos – Vol. VIII. apud ABBAGNANO, 2007, p. 890)
Dificilmente se pode considerar, todavia, que a tentativa de elaborar uma
teoria da significação tenha passado despercebida a seus predecessores, a medida que se
posicionaram contra o naturalismo linguístico e a vinculação direta entre linguagem e ser.
Conforme reporta Auroux (1998, p. 97) e Oliveira (2006, p. 29), Aristóteles, no De
interpretatione164, já reconhecia que os sons emitidos pela voz são “símbolos dos estados da
alma”, interpondo, entre o som das palavras e a “forma das coisas” (universal inteligível nas
coisas), a intermediação necessária dos estados psíquicos. Estes estados psíquicos eram
resultantes do curso do procedimento cognitivo e correspondiam diretamente às coisas, numa
perspectiva imagética, o que assegurava a universalidade de ambos. Nesse ponto, é
importante ressaltar uma questão terminológica, já presente na obra de Aristóteles e que
permitirá compreender melhor a relação entre a linguagem e os demais elementos. Para
Aristóteles, a palavra constituía “símbolo” (sumbolon) do real e não “signo” (sêmeion), termo
que na Grécia estava vinculado normalmente à noção médica de “sintoma” (AUROUX, 1998,
p. 98)165. Com tal distinção, que perdura em grande medida até hoje (embora as duas noções
tenham se aproximado e a semiótica de regra considere o símbolo como uma espécie de
signo), Aristóteles ressaltava a distância entre a realidade e a linguagem e impunha uma
intervenção do espírito na formação do sentido, assentando que a linguagem não é um
instrumento natural de significação, mas apenas convencional (OLIVEIRA, 2006, p. 29).
Observe-se, por exemplo, que tal relação é distinta daquela mantida entre os “estados de
alma” e a realidade, que é de semelhança.
A perspectiva triádica que se visualiza em Aristóteles e nos estoicos
acompanha as teorias do signo linguístico ao longo da história, sempre relacionando-se
linguagem, realidade e um terceiro elemento intermediário, conformador do vínculo entre
ambos. Foi justamente a respeito destes dois últimos elementos que as teorias do significado
164 “Os sons emitidos pela fala são símbolos das paixões da alma, [ao passo que] os caracteres escritos [formando palavras] são os símbolos dos sons emitidos pela fala. Como a escrita, também a fala não é a mesma em toda parte [para todas as raças humanas]. Entretanto, as paixões da alma, elas mesmas, das quais esses sons falados e caracteres escritos (palavras) são signos, são as mesmas em toda parte [para toda a humanidade], como o são também os objetos dos quais essas paixões são representações ou imagens.” (ARISTÓTELES: Órganon: Da interpretação (I, 16a1)). Anote-se que o tradutor, na edição retromencionada, opta pela expressão “paixões da alma”, ao invés de “estados da alma”, fartamente encontrada em outros textos, v.g. Oliveira (2006, p. 28-29). 165 A despeito desta distinção, observe-se que a tradução encerrada na Nota de Rodapé anterior menciona, de forma aparentemente indistinta, signo e símbolo. Não se dispõe, aqui, de elementos para julgar as opções do tradutor ou a tradução efetivada.
91
sempre variaram, mesmo quando suprimindo um deles ou unificando-os, e pode-se dizer que
eles estão na raiz do que Putnam (1975, p. 216) considera, conforme reconhecida ao menos
desde a Idade Média, uma ambiguidade no conceito ordinário de significado. Segundo este
autor, foi para esclarecer essa ambiguidade ínsita ao conceito ordinário que teriam surgido as
díades extensão/intensão (ou compreensão/intensão; denotação/conotação) e
significado/sentido, nas quais o primeiro elemento relaciona-se com o conjunto de coisas para
as quais o termo é verdadeiro e o segundo, grosso modo, com o “conceito” relacionado ao
termo. Para comprovar a ambiguidade, Putnam argumenta que a extensão, por vezes, é
insuficiente para significar o termo, fornecendo exemplo em que duas expressões tem
referente idêntico mas “intensões” distintas 166 (embora o contrário, para ele, não seja
admitido). Este tipo de reflexão, ressalte-se, embora voltada para termos singulares, encontra
um paralelo no famoso exemplo fregeano da “estrela da manhã” e “estrela da tarde”, ambas
substitutivas do nome próprio Vênus, que serviu de esteio à formação dos seus conceitos de
sentido e significado167.
Putnam (1975) dedica boa parte de seu texto a criticar as noções de extensão
e compreensão como formadoras do conceito de significado, apontando que se delimitar a
extensão de um termo envolve sempre uma idealização e que ainda não se alcançou,
exatamente, o que se quer dizer por intensão, termo que estaria preso à vaga noção de
conceito e à tradição medieval, de que o conceito é a conjunção dos predicados e deve sempre
providenciar condições necessárias e suficientes para encontrar a extensão 168 . Mais
propriamente, ele sustenta que a noção de significado encontra esteio nas assunções errôneas
de que: 1) conhecer o significado do termo é estar em um certo estado psicológico
(normalmente associado à intensão); 2) a intensão do termo determina a sua extensão.
Por detrás dessas críticas, que tinham por objetivo pavimentar o caminho
para a sua teoria particular, em realidade insere-se a problemática maior da própria linguagem
166 Putnam utiliza como exemplo as “criaturas com coração” e as “criaturas com rim”, assumindo que teriam a mesma extensão, mas significados diferentes. 167 Não se ignora que a discussão a respeito de nomes próprios envolve elementos distintos, não apenas pela problemática relativa à existência de nomes próprios sem referencial concreto na realidade (figuras mitológicas etc), mas também pelas discussões a respeito da possibilidade de reconhecer-se, ou não, nos nomes próprios, uma conotação, assunto vastamente tratado, em artigo clássico, por Kripke (1972). O que se chamou aqui de um “paralelo” entre intensão/extensão e sentido/significado, pensado por Frege, poderá ser melhor compreendido adiante, na seção 2.3 168 Vale ratificar que esta noção foi transportada para o campo das definições, dando origem à “técnica conotativa”.
92
em sua relação com as coisas, relação esta que só poderia ser resolvida satisfatoriamente,
segundo Simon (1981, p. 65-66), por uma filosofia específica, que tivesse um pressuposto
axiomático de tal relação e fosse dissociada da reflexão de problemas ontológicos e
epistemológicos. Na perspectiva aristotélica, em que a representação intelectual é da mesma
natureza que a imagem formada e na qual não há lugar para erro, a problemática não existia e
o signo linguístico repousava apenas numa assimetria entre a sua arbitrariedade e a
naturalidade com que o pensamento representava as coisas. Abandonada essa naturalidade169,
a representação formada no espírito deixa de ser da mesma natureza daquilo que ela
representa, o que teria como consequência, no limite, transformar o próprio pensamento em
um signo arbitrário, similar ao som linguístico (AUROUX, 1998, p. 102)170. É nessa
mudança, quando a estrutura do real, apreendida diretamente por um espírito da mesma
natureza, deixa de ser condição de possibilidade do pensamento, que se encontra o germe do
solipsismo epistemológico e dos problemas de referência mais tarde enfrentados. A
linguagem encontra como limite referir-se à conexão linguística da experiência com as coisas,
perdendo o vínculo direto com as próprias coisas. Segundo Simon (1981, p. 65), “o caráter
essencialmente provisório da elucidação das intensões significativas e o carácter inconcluso
da referência experimental remetem para esta mesma peculiaridade da relação sígnica”.171
Todas estas dificuldades concernentes à referencialidade conduzem, de certa
forma, aos mesmos problemas epistemológicos subjacentes à distinção entre definição
nominal e real. Lá, entretanto, a questão era resolvida normativamente, postulando-se a
suficiência da definição para um determinado fim, coarctando-se o laço direto com a
realidade. Aqui, o problema assume contornos mais nítidos e mais dramáticos na medida em
que o signo linguístico vai, paulatinamente, ganhando “autonomia” e incerteza em relação às
coisas, vinculado à “ideia” generalizante formada no espírito, agora centro dos elementos
intensionais e extensionais172.
169 Auroux (1998, p. 101) aponta como ponto de inflexão a percepção cartesiana de que espírito e matéria não são de mesma natureza ontológica. Com isso, deixada de lado a concepção aristotélica de ideia-forma, o espírito cessa de funcionar de maneira “analógica” e a representação torna-se puramente “digital”. 170 Segundo tal autor, este projeto teria sido levado adiante de modo coerente por Locke e constitui a base da semiótica moderna. 171 O autor chega a afirmar, logo em sequência, que este estado de coisas, após o advento da filosofia da linguagem, poderia ser considerado o fundamento da tese kantiana acerca da incognoscibilidade da coisa em si. 172 Auroux (1998, p. 101-102) irá afirmar que o acirramento desse ponto de vista importará em reconhecer, no pensamento, a mesma arbitrariedade do signo linguístico.
93
Essa perspectiva, que em um plano mais geral conduz ao questionamento
acerca da própria noção de significado, em um plano mais profundo suscitará o problema do
psicologismo e de como garantir a identidade das representações ideativas em diferentes
sujeitos, conduzindo à substituição da ontologia, como filosofia primeira, pela filosofia da
linguagem.
2.2.1 Uma tipologia do significado e sua superação
As teorias formuladas a respeito da significação podem ser agrupadas,
segundo Alston (1972, p. 25-56), em três grandes grupos, quais sejam as teorias referencial,
ideacional e comportamental, cada uma delas apresentando resposta distinta à pergunta “o que
queremos dizer sobre uma expressão linguística quando especificamos a sua significação?”.
Não se trata, aqui, de tentar determinar quais os critérios para formação do significado, ou
como se relacionam intensão e extensão, mas de elucidar, exatamente e numa perspectiva
geral, aplicável a todas as hipóteses, o que se “quer dizer” quando se diz que uma expressão
significa algo.
Na primeira teoria, a que Alston denomina referencial, o significado de uma
determinada expressão consistiria naquilo a que a expressão se refere ou, mais propriamente,
na “conexão referencial”, na relação entre a expressão e seu referente173. Aqui o referente
não é necessariamente entendido como algo particular, podendo ser uma relação, uma
qualidade, uma espécie/gênero, uma situação fática etc, sendo imprescindível, entretanto, que
este referencial sempre exista, já que ele constituiria o cerne da noção de significado. Este
ponto de vista, a despeito de se revelar uma aproximação bastante intuitiva da noção de
significado, é criticado por Alston por tomar como pressuposto que todas as expressões
linguísticas refiram-se a alguma coisa, o que não seria verdadeiro sobretudo para os termos
sincategoremáticos e para os conectores linguísticos de um modo geral, mesmo que se amplie
a ideia de “referência” para algo mais genérico como “representação”. Conclui afirmando que
a linguagem não se resume a rótulos, cada um dos quais vinculados a uma coisa no mundo.
173 Este deslocamento, do referente para a “conexão referencial”, é que permite salvar o componente intensional do significado, já que mantém a possibilidade de expressões distintas terem significados distintos mesmo diante da mesma referência. (ALSTON, 1972, p. 30). Alston não explicita, contudo, onde se situaria esse elemento relacional.
94
A segunda e a terceira teoria deslocam a noção de significado para o sujeito,
relacionando-a a mudanças operadas neste, quer no plano do espírito (formação de ideias),
quer no do comportamento (ação como sinonímia de significado). A teoria ideacional,
conforme categorizada por Alston, teria como expoente Locke, que considera serem as ideias
a “imediata e apropriada significação” das palavras. A linguagem, nessa perspectiva,
constituiria um meio de transmitir ideias, e o que outorga significado a determinada expressão
linguística seria o fato de ser usada como marca de determinada ideia (ALSTON, 1972, p. 44-
45). A teoria comportamental, a seu tempo, também consideraria o que está implícito ao usar-
se a linguagem no processo de comunicação, mas focalizaria nos aspectos publicamente
observáveis, relacionando significado ao comportamento provocado pela mensagem. Uma
versão mais sofisticada desta teoria, conforme sustentada, por exemplo, por Charles Osgood e
Charles Morris, substituiria o comportamento efetivo pela “disposição para responder”, ou
seja, a elocução produziria no ouvinte uma “disposição”, se este tiver propensão a obedecer
(ALSTON, 1972, p. 52).
Contra cada uma destas duas propostas, apresentadas acima de forma
absolutamente superficial, Alston cuida de apresentar críticas pontuais. A idéia lockeana seria
difícil de ser identificada na mente a fim de se verificar a identidade de sentido e nada
garantiria uma correspondência entre imagem e palavra. Uma palavra como “cão” poderia
suscitar distintas imagens em diferentes indivíduos, ao passo que uma diversidade de palavras
pode suscitar, em um mesmo indivíduo, uma imagem unívoca (vg. “perdigueiro”, “cão de
caça”, “mamífero” etc)174. Já a teoria comportamental, que de certa forma postula identificar o
significado no aspecto público da conduta humana vinculada à linguagem, fugindo da aporia
psicologista, tampouco lograria fazê-lo a contento, tendo em vista a variabilidade das
respostas. Conforme análise de Alston, mesmo considerando unívoco o elemento disposição
do ouvinte, a ação pode ser impedida por fatores externos ou poderia ter sido determinada
anteriormente, por elementos estranhos à comunicação. Ademais, seria necessário reconhecer
que nem todo enunciado provoca uma ação.
Decerto que a exposição feita padece do mal de ter apresentado de modo
excessivamente simples cada uma das teorias, além de ter alinhavado acriticamente, em um
mesmo plano, perspectivas distintas de significado, deslocando-o do plano das coisas para o
174 O próprio Locke parece ter reconhecido tal dificuldade, conforme referido por Auroux (1998, p. 110)
95
do comportamento dos agentes em determinado contexto. A exposição serve, todavia, para
demonstrar o caráter problemático na noção de significado, que não parece se resolver em
qualquer perspectiva que se assenhore, unilateralmente, de seu conteúdo. Como assevera o
próprio Alston (1972, p. 55-56), estas teorias, tomadas isoladamente, encerram algo de
correto, mas importariam uma supersimplificação do problema, já que ora as unidades
linguísticas fariam referência ao mundo, ora expressariam pensamentos e ora obteriam seu
significado do fato de estarem envolvidas em diversos tipos de comportamentos.
A sistematização acima e a sua crítica final, assim formuladas, parecem
apontar para o caráter insolúvel do problema da significação, a medida que nenhum dos
pontos de vista conseguiria se impor isoladamente, de forma não problemática, na explicação
do que seja o significado. A própria crítica, todavia, já indica uma via de escape possível, qual
seja a da superação do problema através da associação entre significado e uso. Com tal
solução, não se formata propriamente uma nova teoria da significação, mas se dissolve o
significado no uso175, encontrando-se o seu sentido em cada situação concreta.
De certa forma, esse foi o resultado a que chegou Wittgenstein ao escrever
as suas Investigações Filosóficas, superando, especialmente em seus matizes essencialistas e
unilaterais, a teoria do referente, a teoria ideacional e a teoria comportamental do significado.
A mudança de perspectiva wittgensteiniana, entretanto, não foi gerida como solução deste
problema específico, a despeito de o autor ter se manifestado ao longo do livro sobre cada um
dos posicionamentos mencionados, mas como um contraponto especialmente à concepção
designativa de linguagem que marcou, desde seus primórdios clássicos, o pensamento
ocidental e que culminou, de certa forma, na filosofia analítica, no atomismo de Russel e na
única obra de Wittgenstein publicada em vida (Tractatus Logico-Philosophicus176). É o
combate a essa perspectiva, chamada alhures, quase poeticamente, de “síndrome
agostiniana”177, que constitui uma das teses centrais de Wittgenstein nas Investigações
175 A expressão é de Mora (1965b, p. 663). É curioso notar que, ao utilizar o verbo “dissolver”, Mora acaba aderindo – talvez involuntariamente – ao linguajar típico dos intérpretes da filosofia terapêutica wittgensteiniana, prenunciando que também o problema filosófico da significação não seria passível de solução, mas de superação, dissolução. 176 As referências ao Tractatus serão feitas no corpo do texto, com a sigla TLP acompanhada do número do item referente. 177 A expressão é utilizada por Christiane Chauviré (1991, p. 142) em virtude de tal concepção ter sido sintetizada pelo próprio Wittgenstein, já no § 1 das Investigações, a partir da análise de uma frase de Santo Agostinho. Não obstante esta escolha, o ponto de origem desta concepção parece se situar, como visto, em momento pretérito, mais exatamente na Antiguidade Clássica.
96
Filosóficas e o que mais importa à presente pesquisa, por resultar em mudança de paradigma
que surtirá largos efeitos na história das ideias filosóficas no Ocidente. Antes de ingressar
definitivamente nas Investigações, entretanto, convém avaliar como o próprio Wittgenstein,
em sua obra de juventude, levou o projeto designativo às suas últimas consequências,
inclusive abandonando, em sequência, a própria filosofia, por considerar resolvidos todos os
problemas.
2.3. O ponto de inflexão
Na presente exposição a respeito da linguagem ficou claro que desde seus
primórdios clássicos esta foi rotineiramente concebida como uma camada que se segue ao
procedimento cognitivo, a fim de permitir ao homem fixar o seu resultado e comunicá-lo,
posteriormente, aos outros homens. Essa concepção foi sintetizada por Apel (1974178 apud
OLIVEIRA, 2006, p. 33-34) como um processo que envolve quatro fases: conhecimento do
mundo sensível pelo homem; captação, por meio de processo de abstração auxiliado pela
lógica universalmente válida, da estrutura ontológica do mundo; representação desse
conteúdo por meio de símbolos e, por fim, comunicação a outros homens, por meio da
associação de símbolos, dos conteúdos por nós conhecidos.
Da maneira como exposta, a síntese de Apel encontra, sem dúvida, seu
modelo mais clássico na filosofia aristotélica, em especial na organização das categorias e no
enunciado predicativo de forma “S é P”, expressão de juízo a respeito da realidade e
submetível à díade verdadeiro/falso. Não se pode dizer, todavia, que a concepção designativa
da linguagem encontre seu ponto de partida na epistemologia do estagirita, e muito menos sua
linha de chegada na lógica proposicional de Aristóteles. Por um lado, ela pressupõe uma
isomorfia entre a estrutura gramatical e a estrutura ontológica que já poderia ser visualizada
em Platão, para quem a tarefa da linguagem consistia na expressão adequada, através de um
sistema de frases, da ordem objetiva das coisas (OLIVEIRA, 2006, p. 19). Por outro, é
necessário reconhecer que, mesmo com algumas discussões e variações pontuais, foi a
concepção designativa, calcada na proposição aristotélica, que dominou a história ocidental
(AUROUX, 1998, p. 159-160), espraiando-se em diversos desenvolvimentos teóricos
distintos – especialmente no seio do positivismo lógico – e inclusive culminando na própria
178 Karl –O. Apel. Sprache, in: Handbuch für phil. Grundbegriffe, vol. V, Munique, 1974, pp. 1383-1402.
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teoria do jovem Wittgenstein, desenvolvida no curso da Primeira Guerra Mundial, período em
que redigiu o Tractatus.
Ao eleger-se a proposição como modelo enunciativo na filosofia e ciência
ocidentais, o primeiro e mais natural questionamento diz respeito à referência envolvida nos
componentes do enunciado. Se “S é P” constitui descrição da realidade, surge, grosso modo, a
pergunta a respeito do elemento da realidade, do objeto designado por P e por S
(especialmente quando este último não seja um nome próprio, que remeta a um indivíduo
particular), o que por sua vez relaciona-se aos problemas já vistos, pertinentes ao contraponto
entre generalidade da linguagem e particularidade das coisas 179 . Na linha desses
questionamentos é que se desenvolveu a tradição, tomando-se sujeito e predicado como
unidades independentes, denotando objetos na realidade e unidos por uma cópula, que
constitui sua síntese.
Os estudos linguísticos não se contiveram, entretanto, nos estreitos lindes da
lógica aristotélica. Eleita a descrição da realidade como a função essencial da linguagem, esta
torna-se a instância adequada não apenas para comunicação, mas também para controle dos
conhecimentos adquiridos, em especial dos científicos, o que importa na exigência de uma
linguagem cada vez menos equívoca e mais apropriada para tal descrição e controle. Surge,
nessa linha geral, a busca do positivismo lógico por uma linguagem ideal, em que a função
designativa fosse exercida com precisão e em que o valor de verdade, considerado significado
da proposição, pudesse ser aferido sem dar lugar a dúvidas, mesmo que para tanto se fizesse
necessária a desconstrução, mediante análise, da fórmula proposicional originária e a
destruição do paralelismo entre a estrutura gramatical da frase e a sua estrutura lógica180.
Percebe-se, também, que a silogística aristotélica, centrada nos termos de uma proposição, já
não dava conta das descrições e explicações necessárias, o que acabaria importando na
179 Aqui é importante anotar, apenas, que a despeito do abandono das formas substancias aristotélicas e da digitalização cartesiana do espírito – expressão tomada de empréstimo de Auroux (1998, p. 100-102) –, a proposta epistemológica ocidental sempre importou, de regra, no entrelaçamento de tal atividade de nomeação a alguma espécie de essência, a algo próprio daquela classe de coisas que a palavra deve designar; em suma, à formação de um conceito bem definido daquele algo designado pela palavra. 180 É o caso, por exemplo, das descrições definidas de Bertrand Russel, que só podem ser obtidas mediante paráfrase da expressão originária. O enunciado clássico “O autor de Waverley é escocês”, para que se possa questionar validamente acerca de seu valor de verdade, deveria se transformado em: “Há um termo c tal que 1º ‘x escreveu Waverley’ é sempre equivalente a ‘x é c’; 2º ‘c é escocês’”. Este exemplo é bastante interessante por revelar a pressuposição ínsita de que a linguagem tem que ter, para que funcione corretamente, conexão com o referencial extralinguístico.(AUROUX, 1998, p. 173).
98
complementação desta por uma lógica proposicional simbólica, focada na articulação de
proposições (e não mais apenas de termos) e na maior relevância do uso de quantificadores.
Se esta nova lógica revelou-se, em um momento subsequente, adequada à
instrumentalização do conhecimento científico, foi em momento anterior, na pesquisa
fregeana pelos fundamentos lógicos da matemática (logicismo), que ela teve os seus primeiros
e mais interessantes desenvolvimentos181, ao menos no que tange ao presente trabalho. Foi
empreendendo tal pesquisa – que tinha por objetivo propagar a tese de que as verdades
aritméticas poderiam ser reduzidas a verdades estritamente lógicas, o que pressupunha a
construção de um simbolismo característico, em que as formas gramaticais evidenciassem
materialmente suas formas lógicas (SANTOS, L.H.L, 2010, p. 28) – que Frege, pugnando
por um conceito estritamente lógico de proposição, avesso ao psicologismo e contrastando
com o viés epistemológico que marcara os estudos pretéritos, acabou por engendrar reflexões
peculiares a respeito do problema do significado e do sentido, tanto dos nomes que
compunham a proposição quanto da própria proposição em si.
Existem inúmeros aspectos de relevo que poderiam ser colhidos dos
avanços fregeanos, a exemplo do afastamento da semântica tradicional ao funcionalizar o
predicado 182 , mas o que mais interessa ao presente trabalho é o seu aspecto geral,
especialmente considerando-se que Frege, ao lado de Russell, constitui o principal
interlocutor de Wittgenstein no Tractatus Logico-Philosophicus. Foi seguindo a tradição
fregeana – e aristotélica – que Wittgenstein desenvolveu uma doutrina estritamente lógica da
proposição e de seu sentido, postulando a independência do sentido em relação à verdade ou
falsidade da proposição. Conforme assevera Luis Henrique Lopes Santos (2010, p. 20-26), a
tese da independência do sentido era um ponto de honra entre Frege, Russell e Wittgenstein,
que retomavam, neste particular, o problema pertinente a um antigo paradoxo lançado na
filosofia platônica, no qual se colocava em questão, partindo da premissa de que a proposição
181 Stegmüller (2012, p. 309-311), averiguando as razões do desenvolvimento da moderna lógica matemática, considera que a causa decisiva constitui-se no desejo de complementar a lógica tradicional, incapaz de fornecer instrumental adequado para demonstrações matemáticas de complexidade elevada. A nova lógica, que já tinha seus primórdios em Leibniz, constituiria uma espécie de complementação da lógica tradicional, pautando-se 1) pelo uso de conectivos (“e”, “ou”, “se... então” etc) para vincular umas às outras sentenças simples, formando proposições mais complexas; 2) pela consideração, também, de “predicados-relação”, o que tornava possível formalizar, simbolicamente, relações mais complexas; 3) pelo acirramento no uso de quantificadores (“todos”, “existe”), que poderiam agora ser usados mais de uma vez na construção de raciocínios. 182 Como ressalta Oliveira (2006, p. 66-68), embora Frege não tenha se afastado da tradição representativa, rompe com a semântica tradicional ao considerar que o predicado, alçado à condição de expressão funcional, carente de complementação, não representaria mais um objeto, mas um conceito.
99
representava ou simbolizava a realidade, a significatividade (sentido) de uma proposição
falsa. Se a proposição representasse, como se propunha no diálogo, uma porção determinada
da realidade, ela perderia seu sentido quando falsa, tendo em vista que nada representaria ou
simbolizaria. A solução para o problema, largamente desenvolvida na lógica aristotélica,
consistia, precisamente, na tese de que uma proposição, para ser significativa, não precisaria
representar um espaço da realidade, bastando que resultasse da concatenação de coisas
suscetíveis de entrelaçamento, o que revelava desnecessária, por conseguinte, a existência
efetiva de tais coisas simbolizadas.
O desenvolvimento desta solução é que permitiu a Frege explicitar a sua
ideia de sentido, vinculando-o não à verdade ou falsidade da proposição, das quais
independeria, mas à aptidão da sentença proposicional para, através da articulação de
símbolos que se referem a elementos da realidade, identificar cabalmente o fato possível de
cuja existência ou inexistência depende, respectivamente, sua verdade ou falsidade. Em
Frege, portanto – e também em Wittgenstein (TLP 4.2, 4.431), embora este mereça mais
atenção adiante –, o sentido de uma proposição relaciona-se com as suas condições de
verdade, podendo-se dizer, nessa linha, que a proposição, logicamente considerada, representa
suas condições de verdade.
É como desenvolvimento deste ponto, entretanto, que Wittgenstein irá
afastar-se, segundo Luiz Henrique Lopes dos Santos (2010, p. 40-41), de Frege: enquanto
Wittgenstein desenvolve a ideia aristotélica, reunindo como um dos traços essenciais da
proposição a bipolaridade, Frege abandonou tal ideia ao concluir, em sua lógica, que as
proposições são apenas nomes para os seus valores de verdade (que constituem o significado
lógico das proposições). Ao equiparar, nesse aspecto simbólico, o nome e a proposição, sob o
argumento de que ambos nomeiam e descrevem, Frege retira da proposição o seu caractere de
constituir uma escolha entre duas possibilidades, essencial para delinear a sua bipolaridade.183
183 Luiz Henrique Lopes dos Santos (2010, passim) fornece uma longa explicação do sistema de lógica fregeano que o conduziu a tal conclusão. Conforme Santos, Frege, após trazer para a sua análise o conceito lógico de função – equiparando, grosso modo, a proposição à sentença matemática e lançando a possibilidade de aferição da forma lógica através da substituição de nome e predicado por variáveis – enfrenta dificuldade ao tentar determinar o que deva constituir o valor de uma determinada função proposicional do tipo “x é a estrela da tarde” para um determinado argumento. Usando, por exemplo, o planeta Vênus como argumento, Frege percebe que os vários nomes pertinentes ao planeta (“Vênus”, “Estrela da Manhã”, “Estrela da Tarde”) não fornecem um mesmo sentido para a função (implicando, por exemplo, em uma tautologia se empregado “Estrela da Tarde”), o que impede que o sentido da proposição resultante seja tomado como valor da função para aquele determinado argumento. Sua analítica, entretanto, permitia concluir que a mesma relação existente entre o nome “Vênus” e o planeta Vênus é a que existe entre a proposição “Vênus é a estrela da tarde” e o valor da função especificada por
100
A compreensão mais aprimorada da dissociação exposta no parágrafo
anterior demandaria ingressar em meandros da discussão lógica fregeana que não se fazem
necessários para o presente trabalho. Este desvio entre ambos é relevantíssimo, entretanto, ao
marcar a bipolaridade como traço essencial da proposição para Wittgenstein que, afastando-se
de Frege, desenvolve e explora a doutrina clássica ao extremo, inclusive na contraparte
ontológica da proposição. É partindo da fórmula proposicional clássica que Wittgenstein
concluirá ser a bipolaridade, ao lado da complexidade intrínseca, traço essencial da
proposição, o que teria como decorrência última não a possibilidade – trivial – de a
proposição ser verdadeira ou falsa, mas o postulado de que, essencialmente, a proposição só
teria sentido na exata medida em que pudesse ser verdadeira ou falsa. Observe-se que isso
implicaria, em última instância, na impropriedade da proposição para expressar qualquer tipo
de verdade logicamente necessária, elemento relevante da crítica de Wittgenstein a respeito
do exprimível e, também, da própria filosofia.
Nesse modo de ver wittgensteiniano cada proposição dotada de sentido
defronta-se com o espaço lógico – cuja existência independe de qualquer fato que se pudesse
descrever por outra proposição – e nele circunscreve, de maneira absolutamente definida, uma
determinada região, que corresponde ao conjunto de possibilidades binário de cuja realização
depende sua verdade ou falsidade (SANTOS, L. H. L 2010, p. 56). É com auxílio desse
espaço lógico, composto por todas as descrições de todos os estados de coisas, que
Wittgenstein elucida a relação entre mundo(s) possível(is) e mundo real (STEGMÜLLER,
2012, p. 377-378), bem como desenvolve a sua ontologia particular, descrita ao longo dos
itens 1 e 2 do Tractatus. É com o recurso a este espaço lógico em sua correlação ontológica e
linguística, outrossim, que fica evidente a raiz na ortodoxia aristotélica e o emprego do “x é a estrela da tarde” tendo o nome Vênus como argumento. A esta relação Frege reserva o termo significado. Por outro lado, Frege considerará, na seara do sentido, que a proposição exprime suas condições de verdade (sentido) e que o sentido do nome é o que, em seu conteúdo semântico, contribui para a determinação do sentido das proposições em que ocorra. Semanticamente, essa distinção permitirá diferenciar que um nome ou uma proposição exprimem (sentido) e significam (significado), mas não fornece explicação para o que constitua o significado de uma proposição. Tal explicação só será obtida adentrando no cálculo proposicional fregeano, em que Frege extrai, da conjugação entre, por um lado, a versão lógica do princípio leibziniano da identidade dos indiscerníveis e da indiscernibilidade dos iguais – que propõe a intersubstituibilidade dos nomes de coisas idênticas – e, por outro, o princípio da extensionalidade – que sustenta que toda proposição que inclua uma ou mais proposições entre seus constituintes lógicos pode ter seu valor de verdade definido pela verdade ou falsidade destas proposições –, a conclusão de que o valor de verdade da proposição é o seu significado. É a partir daí que criticará a solução platônica, a qual considera que, para um nome, significar é simbolizar algo, nomear algo na realidade, enquanto para a proposição significar é privilegiar uma entre duas possibilidades abertas na realidade, é poder corresponder a algo na realidade (ser uma descrição). Em Frege, “todo nome nomeia descrevendo, toda proposição descreve nomeando” (ibidem, p. 41).
101
instrumental analítico fregeano, especialmente no que tange ao cálculo proposicional – que
resultará, no Tractatus, no esquema das funções e tabelas de verdade.
Como se pôde perceber pela independência de cada uma destas proposições
pertinentes ao espaço lógico, Wittgenstein não concebe tal espaço como composto pela
simples descrição do mundo possível, mas pelas descrições dos estados de coisas atômicos,
logicamente independentes entre si e afirmados pelas proposições elementares (TLP 4.2.1). É
nestas proposições elementares que reside a maior dificuldade para apreensão do sistema
Wittgensteiniano e o seu cerne, tendo em vista precisamente nela repousar a conformação
entre linguagem e realidade. Segundo a ontologia wittgensteiniana, o mundo seria formado
pela totalidade dos fatos (TLP 1.1), compreendidos estes, individualmente, como um
determinado estado de coisas existente (TLP 2). Estado de coisa, por sua vez, consistiria em
uma ligação de objetos (coisas) (TLP 2.01), que teriam como característica essencial ser
constituinte de um estado de coisas (TLP 2.011) e que encerrariam, em si, adrede, todas as
suas possibilidades relacionais (TLP 2.0123). Vinculada a esta ontologia, as proposições
elementares seriam aquelas que delineiam tais estado de coisas logicamente independentes,
encadeando nomes (TLP 4.22) que significam os mencionados objetos simples, de modo que
a especificação de todas as proposições elementares verdadeiras descreveria o mundo
completamente (TLP 4.26).
É certo que Wittgenstein nunca deu exemplo de um objeto, de uma
proposição elementar ou de um estado de coisas atômico (MONK, 1990, p. 129; MALCOM,
2001, p. 70), mas considerava tal desnecessário, já que para ele “todas as proposições de
nossa linguagem corrente estão logicamente, assim como estão, em perfeita ordem” (TLP
5.5563). Para fazer essa transposição da ontologia wittgensteiniana para a linguagem,
entretanto, faz-se necessário levar em consideração dois elementos, ainda não trazidos à baila
integralmente. Um deles é o postulado fundamental de que a proposição partilha da forma
lógica da realidade; o outro é o papel desempenhado pelo pensamento. O partilhamento da
forma lógica constitui, em Wittgenstein, resposta à velha pergunta acerca do sentido da
proposição: a proposição, quando logicamente articulada, é uma figuração de um estado de
coisas (TLP 4.032) e por isso mostra o seu sentido. Já o pensamento, considerado a figuração
lógica dos fatos (TLP 3) e a proposição com sentido (TLP 4), é o que garantirá a articulação
lógica da proposição, responsabilizando-se por todas as transformações imediatas que
permitam aos sinais da linguagem comum recomporem-se em sua forma lógica
102
completamente analisada (TLP 3.2),. É a partir daí que Wittgenstein afirmará que a
proposição é uma figuração da realidade (TLP 4.01), o que só se faz possível, conforme
assevera Luiz Henrique Lopes dos Santos (2010, p. 73), a medida “que a estrutura sintática
da linguagem seja a própria forma essencial da linguagem (...) [e] que a forma essencial da
linguagem seja a forma essencial do mundo”.
2.3.1 – Três temas na filosofia do Tractatus
Essa diminuta exposição a respeito do Tractatus, que não se prestou senão a
dar notícia de alguns elementos da filosofia lá exposta, já serve, todavia, como ponto de
partida para estabelecer ao menos três pontos de relevo desta primeira filosofia para o
trabalho de pesquisa aqui realizado, quais sejam aqueles que dizem respeito ao isomorfismo
entre linguagem e realidade, aos limites do sentido e aos objetivos gerais da crítica filosófica
wittgensteiniana.
Em um primeiro plano, da exposição é possível ver como os trabalhos de
Wittgenstein, desenvolvidos na segunda década do século passado, ainda inseriam-se na
tradição designativa antes exposta, levando-a aos seus limites. Wittgenstein tentava
compreender como se estruturavam as relações entre linguagem, pensamento e realidade e
nessa esteira tematizou a correspondência possível entre três elementos, concluindo que a
linguagem partilhava da mesma forma lógica da realidade. Era isso que permitia que as
proposições, dizendo algo sobre o real, fizessem sentido, já que presente uma relação de
afiguração.
Em um segundo plano, a narrativa feita permite fixar como objeto de
interesse de Wittgenstein não apenas as relações entre linguagem, pensamento e realidade,
mas também os limites do dizível, já que apontava a incapacidade da proposição e do
pensamento (já que o “O pensamento é a proposição com sentido” – TLP 4) para representar
o que ele mesmo tem em comum com a realidade, o que seja, a forma lógica184. Aqui,
conforme a interpretação tradicionalmente outorgada, Wittgenstein elabora a distinção entre 184 Como afirma Wittgenstein: “A proposição pode representar toda a realidade, mas não pode representar o que deve ter em comum com e realidade para poder representá-la – a forma lógica. Para podermos representar a forma lógica, deveríamos poder-nos instalar, com a proposição, fora da lógica, quer dizer, fora do mundo.” (TLP 4.12) E logo adiante: “A proposição não pode representar a forma lógica, esta forma se espelha na proposição. O que se espelha na linguagem, esta não pode representar. O que se exprime na linguagem, nós não podemos exprimir por meio dela. A proposição mostra a forma lógica da realidade. Ela a exibe.” (TLP 4.121).
103
dizer e mostrar e distingue as proposições sem sentido (Sinnlos), que constituem casos limites
de proposicionalidade, das sentenças que constituem um contra-senso (Unsinn), que apenas
na aparência seriam proposições. As primeiras, por encerrarem verdades ou falsidades
necessárias (proposições da lógica; tautologias e contradições; equações matemáticas,
princípios da ciência da natureza) falham em delimitar uma região do espaço lógico, nada
dizem, mas mostram algo acerca da estrutura lógica do mundo; as do segundo tipo falham na
própria tarefa de constituírem uma proposição, tendo em vista faltar aos sinais nela
empregados capacidade para exercer uma função simbólica. Tais proposições são as que
tentam representar o que não pode, por definição, ser representado proposicionalmente acerca
da estrutura essencial e fundamentos absolutos do mundo, o que só se presta ser mostrado
através das proposições com sentido (SANTOS L. H. L. 2010, p. 86-89; 100-101). É aqui que
se insere, com toda sua veemência, a crítica tractariana à filosofia tradicional (TLP 4.003),
não pela inexistência do objeto de estudo – já que “há, por certo, o inefável. Isso se mostra, é
o Místico” (TLP 6.522) –, mas pela impossibilidade de se formular perguntas ou respostas
sobre o assunto sem incorrer em contra-sensos (TLP 4.003), culminando no famigerado dito
wittgensteiniano que comanda o silêncio sobre tais questões (TLP 7: “Sobre aquilo que não se
pode falar, deve-se calar”). A filosofia deveria limitar-se a uma atividade de esclarecimento
das proposições e do pensamento (TLP 4.112), abandonando completamente as pretensões
metafísicas (TLP 6.53).
Por fim, diante de tal crítica às proposições metafísicas, poderia se supor
que o autor do Tractatus alinhava-se, nesse ponto, a alguma das vertentes do positivismo da
época, especialmente tendo em vista a interpretação do aforismo final do Tractatus como um
slogan positivista do tipo “Metafísicos, calem a boca” (JANIK; TOULMIN, 1991, p. 257). A
maneira como o autor do Tractatus pretendia que sua obra fosse interpretada, entretanto, era
exatamente oposta ao positivismo. Wittgenstein não partilhava do escárnio positivista pela
metafísica; ao revés, embora não abrisse mão de considerá-la inefável e pugnasse uma
perspectiva ainda mais crítica que aquela do positivismo lógico185, fazia questão de ressaltar
que se tratava de um silêncio respeitoso e que a parte importante do Tractatus compunha-se,
185 É interessante, neste particular, a ponderação de Stegmüller (2012, p. 395), no sentido de que a limitação à metafísica estabelecida no Tractatus era muito mais severa que aquela propugnada pelo positivismo, tendo em vista que resultava da própria linguagem e do pensamento, enquanto esta última era baseada no critério empirista de significação.
104
precisamente, de tudo que não fora nele escrito (MONK, 1990, p. 178)186. É claro que esse
respeito, em um primeiro momento, pode – e provavelmente deve – ser compreendido em
virtude de sua crença em uma ordem a priori do mundo187, mas parece inegável que ele está
relacionado, também, a uma tentativa constante de compreensão das razões que levaram ao
que considera confusões da filosofia (TLP 3.324). Não se trata, por conseguinte, tão somente
de negar as proposições metafísicas como contra-senso, mas de um duplo movimento: por um
lado, respeito ao que não pode ser dito; por outro, compreensão das razões de se querer dizê-
lo, seguido do reconhecimento de que tais razões conduzem, naturalmente, a uma resistência
diante de seu novo método (TLP 6.53).188
2.3.2 – A passagem do “primeiro” para o “segundo” Wittgenstein
Normalmente dois fatores conduzem a doutrina sobre Wittgenstein, em
especial a clássica e menos especializada, a pugnar pela existência de duas filosofias distintas,
circunstância que conduziu, inclusive, às alcunhas “primeiro Wittgenstein” e “segundo
Wittgenstein” 189 . Por um lado, observava-se uma mudança radical, praticamente sem
precedentes, entre os pontos de vista propugnados na primeira fase de sua filosofia
(Tractatus) e na sua segunda fase (Investigações Filosóficas), que importara em um abandono
completo das concepções outrora defendidas; por outro, não se conseguia visualizar uma
continuidade ou fluidez entre suas duas filosofias, o que conduzia à ideia de que se tratavam
de trabalhos completamente desconectados. Essa impressão era reforçada, especialmente, pela
icônica biografia filosófica de Wittgenstein, que envolve, após o encerramento, em 1918, de
uma obra em que veiculava a pretensão de ter resolvido definitivamente os problemas da
filosofia190, um hiato temporal razoavelmente extenso – onze anos – sem qualquer produção
186 Quanto tentava viabilizar a publicação do Tractatus, em uma carta escrita a von Ficker, possível editor e amigo pessoal, Wittgenstein assevera que o objetivo do livro era ético e que considerava compor-se seu trabalho de duas partes, uma das quais não fora escrita. Esta seria, para ele, a parte importante. No original: “ (...) for the point of the book is ethical. I once wanted to give a few words in the foreword which now actually are not in it, which, however, I'll write to you now because they might be a key for you: I wanted to write that my work consists of two parts: of the one which is here, and of everything which I have not written. And precisely this second part is the important one” (MONK, 1990, p. 178) 187 Conforme ressalta Monk (1990, p. 129), Wittgenstein considerava, à época da redação do Tractatus, que o grande questionamento de seu trabalho versava sobre a ordem a priori no mundo, que admitia, quase contra a própria vontade, existir. 188 “[...] e então, sempre que alguém pretendesse dizer algo de metafísico, mostrar-lhe que não conferiu significado a certos sinais em suas proposições. Esse método seria, para ele, insatisfatório – não teria a sensação de que lhe estivéssemos ensinando filosofia; mas esse seria o único rigorosamente correto” (TLP 6.53). 189 Vide, por exemplo, Stegmüller (2012, p. 372) e Mora (1965b, p. 936) 190 No encerramento do Prefácio ao seu Tractatus (TLP, p. 133) Wittgenstein consigna algumas frases que expressam claramente essa intenção: “Por outro lado, a verdade dos pensamentos aqui comunicados parece-me
105
filosófica, na qual o filósofo resolveu dedicar-se a atividades aparentemente prosaicas e não
filosóficas, como arquitetura, jardinagem e ensino em escola primária no interior da
Áustria191. Seu retorno ao meio acadêmico só ocorreria em 1929, quando voltou para
Cambridge onde, apesar de ter lecionado e obtido grau de doutor apresentando o Tractatus
como tese, não publicou qualquer obra em vida. A única obra preparada para publicação
quando de sua morte (1951) eram as Investigações Filosóficas, cuja segunda parte só fora
finalizada dois anos antes (1949), o que deixara o meio filosófico praticamente órfão de
qualquer escrito oficial seu por praticamente trinta anos, reforçando a ideia de uma mudança
radical e abrupta em seu pensamento.
Reconhece-se, todavia, que tal perspectiva é parcialmente equivocada. Hoje
é assente que Wittgenstein, após o retorno a Cambridge, dedicou-se incessantemente à
filosofia, não apenas palestrando, dando aulas e ditando para alguns alunos escolhidos, mas
também escrevendo milhares de páginas manuscritas e datilografadas, embora sem publicar
uma linha sequer192. O acesso paulatino a estes escritos da fase intermediária solaparam a tese
de duas filosofias desconectadas (KENNY, 2006, p. XI), permitindo não apenas que se
entrevisse continuidade temática e uma sucessão de fases em seu pensamento, mas até mesmo
que se detectasse a permanência explícita de algumas de suas ideias ou de um determinado
elemento central de sua filosofia. Este quadro teve uma dupla consequência: por um lado,
alguns passaram a enxergar uma continuidade temática que impediria o discurso clássico
sobre dois Wittgensteins, em especial quando se põe sob foco o quadrante da crítica filosófica
(CRARY, 2003a)193, chegando Horwich, (2012, p. xii) a sustentar que se trataria de um
trabalho final (Investigações) precedido por uma série de rascunhos; por outro lado, o acesso
a este trabalho possibilitava que, postulando-se a divisão em fases, tal divisão não mais
compreendesse apenas dois compartimentos radicalmente estanques, mas três (levando-se em
conta a fase verificacionista que se seguiu ao retorno a Cambridge) ou até mesmo quatro, se intocável e definitiva. Portanto, é minha opinião que, no essencial, resolvi de vez os problemas. E se não me engano quanto a isso, o valor deste trabalho consiste, em segundo lugar, em mostrar como importa pouco resolver esses problemas”. 191 Sobre a atividade de Wittgenstein no intervalo entre a redação final do Tractatus, em 1918 e o seu retorno a Cambridge, ocorrido em 1929, vide Cronologia sintética em Chauviré, (1991, p. 9-12), “Biografical Sketch of Wittgenstein’s Philosophy” elaborado por Kenny (2006, p. 1-14) e, para um maior aprofundamento, a excelente biografia filosófica escrita por Monk (1990). 192 Vale observar, todavia, que Wittgenstein teria confessado a Norman Malcom que sempre considerara suas palestras e ditados uma forma de publicação (MALCON, 2001, p. 48) . 193 Este artigo constitui introdução a uma coletânea, editada pela própria autora, de ensaios que tem como eixo o reconhecimento de um propósito terapêutico comum tanto à filosofia do primeiro quanto do segundo Wittgenstein. Não se ingressará, entretanto, na visão destes autores e nas assim chamadas “leituras terapêuticas” do segundo Wittgenstein.
106
considerados os escritos sobre a certeza, elaborados após as Investigações (KENNY, 2006,
p.XX).
O reconhecimento desta transição no pensamento de Wittgenstein, todavia,
não afasta a apreensão de que sua filosofia sofreu uma reviravolta sem precedentes entre a
elaboração do Tractatus e das Investigações Filosóficas, em especial sobre o eixo das relações
entre linguagem e mundo e sobre o eixo do sentido, o que justifica, ao menos para o fins da
presente pesquisa, a tradicionalmente consagrada divisão em um “primeiro” e um “segundo”
Wittgenstein. É óbvio que não se pretende, com esta distinção – e nem se poderia, tendo em
vista os resultados ao final alcançados –, sustentar uma descontinuidade na filosofia
wittgensteiniana, tampouco mudança nos seus eixos de reflexão; ao revés, é precisamente em
decorrência dessa continuidade que se postula uma restrição do estudo ao “segundo”
Wittgenstein. Como se evidenciará ao longo deste trabalho, a filosofia de Wittgenstein
continuou a se desdobrar – ao menos nos temas mais caros – sobre as relações entre
linguagem e mundo, sobre os limites do sentido das proposições e sobre o objetivo geral de
sua crítica ao método filosófico. Ao pugnar-se por uma limitação ao “segundo” Wittgenstein,
promove-se um rompimento intratemático, delineando-se que estes assuntos, em especial
aquele da crítica à filosofia e do método filosófico, não serão tratados sob a perspectiva
tractariana, ou estudando-se eventual relação de continuidade, mas primordialmente sob o
viés das Investigações Filosóficas194 e dos inúmeros textos do período intermediário com ela
compatíveis, utilizados para sua compreensão.
O restante deste capítulo será dedicado a mostrar, de maneira bastante geral,
como o filósofo reestrutura as relações entre linguagem, pensamento e realidade, promovendo
a reviravolta da imagem da linguagem até então vista. O objetivo não é, propriamente,
discutir a obra do segundo Wittgenstein, mas, retomando a questão do significado tratada no
item 2.2, apresentar uma visão geral dos elementos mínimos – sobretudo conforme assentados
nas interpretações mais tradicionais – que permitam visualizar tal reestruturação. No capítulo
194 Foi utilizada, aqui, a tradução das Investigações Filosóficas por Marcos G. Montagnoli, revista e apresentada por Emmanuel Carneiro Leão. 7. ed. Petrópolis: Vozes, 2012. As referências a trechos da obra serão feitos no corpo do texto, entre parênteses, com a rubrica “IF” seguida do número arábico correspondente ao parágrafo, se da primeira parte, ou ao numeral romano, seguido da página, se da segunda parte do livro. Foi consultada, em alguns pontos, a terceira edição da tradução inglesa de G. E. M. Anscombe (Philosophical Investigations. 3. ed. Oxford: Basil Blackwell 1986) e a quarta edição, na qual os autores promoveram mudanças substanciais, inclusive, na estruturação da obra (Philosophische Untersuchungen. Philosophical Investigations. 4. ed. Bilíngue Alemão-Inglês. Traduzido para o inglês por G. E. M. Anscombe, P. M. S. Hacker e Joaquim Schulte. Revisado por P. M. S. Hacker e Joaquim Schulte. Oxford: Willey-Blackwell, 2009).
107
seguinte essa reviravolta será retomada, mas já em sua contraparte essencial de crítica
filosófica e método, conjugando-se-a com a dignidade humana e defendendo-se a
aplicabilidade do método e da crítica wittgensteiniana ao problema da dignidade humana.
2.4 A subversão wittgensteiniana
De certa forma, a passagem do primeiro para o segundo Wittgenstein marca
as duas atitudes filosóficas mais importantes desde que se reconheceu a centralidade do papel
da linguagem no desenvolvimento dos estudos filosóficos. De um lado, embora Wittgenstein
já se afastasse, desde o Tractatus, de qualquer tese que importasse a inaptidão da linguagem
comum para expressar proposições perfeitamente significativas, seu primeiro trabalho ainda
se articulava com a tradição de considerar-se a linguagem vulgar inadequada em vista da
indefinição, da ambiguidade e do caráter vago de seus conceitos, o que havia culminado, nos
trabalhos de seus predecessores, em diversos esforços tendentes à construção de uma
linguagem artificial, técnica e exata195. De outro, seu segundo trabalho alinha-se claramente à
atitude contrária, de considerar-se ser justamente a linguagem vulgar, comum, a adequada aos
fins filosóficos, e que o problema consistiria em se afastar dela sem um propósito definido
(ALSTON, 1972, p. 19). Nesta linha de pensamento, que se tornou comumente conhecida
como “Filosofia da linguagem comum”, insere-se a obra da segunda fase de Wittgenstein, que
altera radicalmente a concepção de exatidão preteritamente associada à linguagem. No
Tractatus, pugnava por uma linguagem logicamente perfeita, capaz de figurar a realidade e
que subjazeria, oculta, na relação entre pensamento, linguagem e realidade. Nas
Investigações, abandona esse ideal de exatidão e propõe como tarefa da filosofia que dê
atenção à linguagem ordinária, ao uso cotidiano da palavra, livre do tipo de análise antes
entrevisto como necessária (CHAUVIRÉ, 1991, p. 88-89).
195 Como visto no item precedente, o Wittgenstein do Tractatus não se distanciava da necessidade de rigor e exatidão absolutos na linguagem, associados à perfeita correspondência entre linguagem e realidade, mas considerava que tal correspondência não carecia da formatação de uma linguagem ideal. Conforme lembra Luiz Henrique Lopes dos Santos (2010, p. 67-69), foi isso que Russell falhou em ver ao atribuir a Wittgenstein, na introdução elaborada para o Tractatus, a tese do gradualismo semântico. Russell considerava que Wittgenstein estaria interessado nas condições para uma linguagem logicamente perfeita – afirmativa que parece encontrar suporte, por exemplo, nos aforismos 3.323 a 3.325 – e que a nossa linguagem adquiriria significado a medida que lográssemos nos aproximar dessa linguagem perfeita postulada. Wittgenstein, todavia, ponderava que a nossa linguagem comum já era logicamente perfeita (TLP 5.5563), e que o pensamento já se responsabilizava pela transição necessária entre o sinal proposicional aparente e o símbolo logicamente significativo (TLP 3.2 et seq).
108
A distinção entre estes dois posicionamentos é muito mais relevante do que
pode aparentar à primeira vista, considerando-se o que cada um pressupõe quanto à natureza
da própria linguagem. Já ficou claro que a descrição de uma linguagem ideal, apta a descrever
a realidade, insere-se na tradição do enunciado predicativo clássico, ao qual foi dada maior
ênfase dentre aqueles componentes da linguagem. Ainda que, no decorrer da história, a
estrutura aparente da proposição tenha sido preterida em favor de sua estrutura lógica, a sua
escolha tomava como ponto de partida reconhecer-se que a essência da linguagem residia em
sua função designativa, na correspondência entre o nome existente na linguagem e algo
extralinguístico, seja ele um objeto simples, seja um indivíduo, seja uma espécie de essência
comum a vários indivíduos, que permitiria outorgar-lhes o mesmo nome. O abandono desta
concepção designativa da linguagem acaba sendo, de certa forma, o ponto de partida e de
chegada da filosofia do segundo Wittgenstein. Ponto de partida a medida que sua filosofia
toma como pressuposto que a designação não pode ser considerada a essência da linguagem,
mas tão somente uma das funções desempenhadas pela linguagem dentre muitas (IF 23).
Ponto de chegada não apenas em face de nenhuma outra essência ter sido reconhecida para
determinar o que seja linguagem196, mas sobretudo em virtude do que a superação desse ponto
de vista designativo pressupõe e acarreta em relação ao conhecimento e ao modo do ser
humano lidar com o mundo.
A reforma dos pontos de vista expostos no Tractatus pelo segundo
Wittgenstein ilustra bem esse giro acarretado pela filosofia da linguagem comum. No
Tractatus, Wittgenstein operava a radicalização do projeto lógico ocidental197, reduzindo a
realidade e a linguagem, através de análise, a suas estruturas mais simples198 e pregando a
isomorfia entre elas. “Pregar”, aqui, revela-se palavra bem adequada para tal posicionamento,
a medida que não apenas inexistia atitude reflexiva a respeito desta relação (APEL, 1967, p.
124-126), como ela era em tese vedada, relegada ao domínio da inefabilidade (TLP 7). A
tarefa da filosofia consistia na tentativa de delinear a estrutura lógica da linguagem, que
permitiria levar a efeito essa isomorfia. Nas Investigações Filosóficas, a questão da isomorfia
196 Conforme Chauviré (1991, p. 90), existe uma tendência a reconhecer, como fruto da filosofia do segundo Wittgenstein, a formação de uma nova imagem da linguagem e não o reconhecimento de uma nova essência, cuja busca constituiria pura ilusão. 197 A rigor, uma linguagem lógica perfeita pressuporia uma língua composta apenas por nomes próprios (SIMON, 1981, p. 81) 198 Um exemplo interessante e didático desse processo de análise, resultando nos objetos simples de Wittgenstein, é trazido por Kenny (2006, p. 5), que ressalta ser a análise completa de uma proposição tarefa impossível, mas que o pensamento expresso pela proposição já encerra a complexidade da proposição completamente analisada.
109
permanece, mas promove-se um giro de cento e oitenta graus sobre o próprio eixo. Se antes
tratava-se do espelhamento da forma lógica do universo pela linguagem, agora é a aparente
“estrutura da realidade” que se revela como a sombra lançada pela gramática (HACKER,
1986, p. 179). A metafísica, que outrora se encontrava no domínio da penumbra, envolta em
uma névoa mística, agora é tomada como mera ilusão filosófica, dissipada pelo exame
descritivo da linguagem comum. É esta a responsável pelo enfeitiçamento do nosso intelecto,
cuja superação constitui o objeto da filosofia (IF 109).
Esse giro, em sua totalidade, não é de fácil apreensão na obra
wittgensteiniana, sobretudo em virtude do caráter assistemático que permeia as Investigações
Filosóficas. As tentativas de sistematizá-lo são realizadas em contrariedade ao que o próprio
Wittgenstein sustentava e estão fadadas, por isso mesmo, a um sucesso limitado199. Não
obstante, é necessário fazê-lo e para tanto, dentre as muitas organizações possíveis,
considerar-se-á que o projeto do filósofo austríaco repousava em dois eixos gerais, quais
sejam, o combate à perspectiva essencialista e a superação do solipsismo ocidental, ambos
entrelaçados em torno do problema da significação, que constitui, decerto, uma grande
questão da filosofia da linguagem.
No eixo central da significação Wittgenstein tenta afastar as três teorias
apresentadas a respeito de significado, aproximando-o do uso. O significado não pode mais se
relacionar exclusivamente à coisa designada, tampouco à ideia formada na mente do sujeito
que pronuncia ou ouve a palavra. O significado é trazido, por Wittgenstein, para o contexto
linguístico e extralinguístico em que tem lugar o processo comunicativo e surge dele,
confundindo-se com o uso que é dado à palavra naquele contexto específico, não se
relacionando necessariamente com um objeto designado, tampouco com o processo mental ou
comportamental desenvolvido nos sujeitos da comunicação. Wittgenstein, após o Tractatus,
iniciando suas novas reflexões, chegou a afirmar expressamente que a própria ideia de
significado resultava, de algum modo, obsoleta, exceto quando se utilizava a expressão em
frases do tipo “isto significa a mesma coisa que aquilo” ou “isto não tem significado”
199 As dificuldades de sistematização aqui visualizadas dizem respeito, sobretudo, ao fato de o estilo do trabalho wittgensteiniano entremear-se às suas conclusões, de modo necessário, como ficará claro ao longo deste trabalho. Há quem defenda, entretanto, a exemplo de Horwich (2012, p. vii, viii), que as ideias de Wittgenstein contidas nas Investigações– ao menos como ele as entende – podem ser reformuladas de maneira clara.
110
(WITTGENSTEIN, 1959200, apud HACKER, 1986, p. 247). Mais tarde, nas Investigações
Filosóficas, consolidou tal percepção, afirmando expressamente que, “para uma grande classe
de casos – mesmo que não para todos – de utilização da palavra ‘significado’, pode-se
explicar essa palavra do seguinte modo: O significado de uma palavra é seu uso na
linguagem” (IF 43).
Esta aproximação entre uso e linguagem, especialmente da forma como
expressa ao final do aforismo, tornou-se, possivelmente, o lema mais conhecido das
Investigações Filosóficas e a síntese do que alguns consideram uma teoria do significado.
Embora pareça ter razão Hacker (2009a, p. 152) ao afirmar que tal dito melhor se qualifica
como uma observação gramatical do que como uma teoria ou hipótese, o que importa, neste
momento, não é averiguar o status teórico desta assertiva201, mas compreender que a conexão
conceitual entre significado e uso está vinculada, principalmente, a uma tentativa de combater
a tentação natural de conceber o significado de uma palavra como uma entidade de qualquer
tipo.
É nesta linha que Wittgenstein oferecerá contraponto não apenas à
perspectiva ontológica do Tractatus, mas também à ideia de que uma palavra ter significado
está relacionado a algo extralinguístico, apreendido mentalmente (HACKER, 2009a, p. 149).
Afirmar-se que o significado é o uso da palavra na linguagem representa dissociá-lo desses
elementos extralinguísticos e encerrá-lo na própria linguagem, questionando-se a respeito do
seu lugar na gramática. A afirmação de Wittgenstein, por conseguinte, não pode ser
compreendida isoladamente, mas apenas em conjunto com o restante de sua filosofia e com
inúmeras outras assertivas que deixam entrever essa limitação gramatical, a exemplo de “O
lugar de uma palavra na gramática é o seu significado”, de “O significado de uma palavra é o
que a explicação de seu significado explica” e de “A explicação do significado explica o uso
da palavra”, todas constantes da Gramática Filosófica (GF 42). O papel da gramática e estes
200 “Wittgenstein’s Lectures in 1930-33”, in G. E. Moore, Philosophical Papers, (Allen & Unwin, London, 1959, p. 258 apud Hacker, op. cit., p. 247. No original: “The ideia of meaning is in a way obsolete, except in such phrases as ‘this means the same as that’ or ‘this has no meaning’”. 201 A consideração de que tal assertiva constitua uma tese filosófica ou de que as Investigações encerrem uma teoria do significado adquire relevo, especialmente, por implicar contradição com o método e com a crítica filosófica pregada por Wittgenstein na segunda fase de seu pensamento, essencialmente anti-teorética (KENNY, 2006, p. xv). Embora tal crítica à filosofia constitua objeto do segundo capítulo, não se ingressará, aqui, no exame desta possível contradição, tampouco se avaliará se as Investigações encerram, de fato, uma teoria do significado.
111
outros elementos serão vistos adiante, mas tomando-se-a como a totalidade das regras que
determinam o uso de uma palavra, fica fácil compreender, inclusive, a função reservada à
definição ostensiva nesta linha de pensamento. Tal definição não é mais um modo de apontar
para o significado extralinguístico da palavra, mas um modo de fornecer-se uma regra de uso,
uma explicação do significado que só faz sentido dentro do contexto da própria linguagem e
que dela não pode prescindir (BT, p. 133; GF p. 63; IF 29202). É nessa linha que se faz
possível entender, inclusive, o complemento do § 43 das Investigações, onde Wittgenstein
afirma que “o significado de um nome se explica, muitas vezes, ao se apontar para o seu
portador”.
2.4.1 Superação da tendência essencialista
Ao projetar o significado no uso e ressaltar que a concepção designativa da
linguagem, sintetizada em Santo Agostinho (IF 1), é apenas um jogo de linguagem dentre
ilimitados jogos possíveis (IF 23), Wittgenstein apresenta, ao mesmo tempo, o elemento final
de seu projeto filosófico e o seu primeiro passo naquela caminhada, que importará em
desconstrução, um a um, dos elementos pertinentes à concepção designativa clássica, em
especial aqueles relacionados ao processo de significação e às atividades mentais envolvidas
no processo linguístico.
Como visto, a ideia de “significado”, ao longo da história, sempre esteve
associada, de regra, a uma tríade de elementos. Embora as perspectivas variem bastante e
haja, por vezes, fusão dos elementos, é comum que, com a palavra significada, reconheça-se a
convivência de um elemento anímico/conceitual e de uma realidade externa, apreendida
intelectualmente. É à crítica destes dois últimos elementos, em especial do primeiro deles, que
o filósofo se dedica (IF 454).
No que tange à realidade externa, Wittgenstein partira, no Tractatus, da
associação entre significado e tal realidade, de forma que a proposição teria significado em 202 “A definição ostensiva pode ser considerada uma regra para traduzir da linguagem do gesto para a linguagem da palavra. Se digo ‘a cor deste objeto é chamada “violeta”’, já devo ter denotado a cor, já a apresentei para o batizado, com as palavras ‘a cor desse objeto’ para que a nomeação possa acontecer. Pois eu também poderia dizer ‘o nome dessa cor você deve decidir’, e o homem que dá o nome, nesse caso, já teria de saber o que deve nomear (onde na linguagem ele está colocando o nome).” (GF, p. 63); “Talvez se diga: o dois pode ser definido ostensivamente somente desta maneira: ‘Este número se chama “dois”’. A palavra ‘número’ indica aqui em que lugar da linguagem, da gramática, colocamos a palavra. Mas isto quer dizer que a palavra ‘número’ tem que ser explicada antes que a definição ostensiva tem que ser compreendida”. (IF 29)
112
virtude de constituir uma imagem do real (KENNY, 2006, p. 111). Nas Investigações, critica
expressamente seu próprio ponto de vista, indicando que a sua perspectiva de objetos simples
e compostos resolve-se, em realidade, na “gramática”203 (IF 46-47; STEGMÜLLER, 2012, p.
406), além de fazer, no plano mais geral, uma distinção entre “portador” do nome e
significado do nome, impedindo que ambos se confundam (IF 40, IF 44)204. Tal crítica não
levanta maiores polêmicas, tendo em vista que, da forma como propostas ambas, a crítica
ganharia mais adeptos na filosofia que a concepção originária do Tractatus (STEGMÜLLER,
2012, p. 406).
Um outro fruto dessa concepção designativa, entretanto, seria mais difícil de
superar e constituiria sério óbice a que se compreenda a aproximação entre uso e significado,
bem como a ideia de jogos de linguagem, especialmente a medida que acaba por se relacionar
diretamente ao processo mental também criticado em sequência. No Livro Azul, Wittgenstein
batiza esse “fruto” de “desejo de generalidade” e o caracteriza, primeiramente, como a
“tendência para procurar algo comum a todas as entidades que geralmente subsumimos num
termo geral” (LA, p. 45-46)205, relacionando-o diretamente, logo em seguida, à tendência
enraizada de associarmos a compreensão de um determinado termo geral a uma espécie de
imagem geral na mente, formada a partir dos particulares206. Nas Investigações, o tema é
abordado em diversos pontos, mas agora de modo mais preciso, relacionando-o à questão da
“essência”, o que se poderia caracterizar como o combate de Wittgenstein à tendência
essencialista que permeia o pensamento ocidental. Esta tendência é comentada por
Wittgenstein pela primeira vez em relação à linguagem (IF 1) e é justamente ao postar-se
contra uma “essência” da linguagem que inicia a sua crítica
Ao invés de indicar algo que seja comum a tudo o que chamamos linguagem, digo que não há uma coisa sequer que seja comum a estas manifestações, motivo pelo qual empregamos a mesma palavra para todas, - mas são aparentadas entre si de muitas maneiras diferentes. Por causa deste
203 Aqui se trata de perquirir a gramática profunda e não a gramática superficial, distinção que será adiante esclarecida. 204 Vale observar que a tradução do § 44 na edição brasileira utilizada encerra um equívoco, que prejudica a compreensão do texto. Onde está escrito “estes são usados somente na ausência do portador”, deve ser lido “estes são usados somente na presença do portador”. O termo “Anwesenheit”, constante do original, foi equivocadamente traduzido como “ausência”, quando o correto seria “presença”. 205 Por esta colocação do problema evidencia-se como ele se enraíza na solução da filosofia clássica para o embate entre generalidade e particularidade. 206 Aqui, Wittgenstein é explícito na afirmação de que “isto significa, grosseiramente, que consideramos as palavras como se todas elas fossem nomes próprios, e que confundimos, por isso, o objecto nomeado com o sentido do nome” (LA, p. 46)
113
parentesco, ou destes parentescos, chamamos a todas de “linguagens” (IF 65)
De um modo imagético, Wittgenstein associa a tendência essencialista à
concepção comum de que um fio único de propriedades perpassaria todos os elementos
subsumíveis a um determinado conceito e propõe que tal concepção seja substituída pela de
“semelhanças familiares” (IF 67), tratada também imageticamente com a ideia de um fio
composto por inúmeras fibras que se entrecruzam e formam uma unidade sem que nenhuma
fibra vá de uma ponta a outra do fio. Assim como os membros de uma grande família não têm
em comum uma só característica, ao invés de encontrar uma única propriedade comum a
todos os elementos relacionados a um conceito, “vemos uma complicada rede de semelhanças
que se sobrepõe umas às outras e se entrecruzam” (IF 66).
Ao elaborar tal crítica à perspectiva conceitual e propor as semelhanças
familiares, vislumbra-se diretamente como Wittgenstein se distancia da idéia de análise
conceitual própria da filosofia analítica e do Tractatus (STEGMÜLLER, 2012, p. 404;
CHAUVIRÉ, 1991, p. 92)207, bem como já engendra o afastamento da perspectiva de certeza
relacionada a tal análise, o que iria desembocar no reconhecimento de uma textura aberta dos
conceitos (IF 68)208. O que parece mais relevante, todavia, é visualizar o quadro mais amplo,
assentando como tal postura vai de encontro à tradição filosófica. A captação da essência
comum das coisas ou dos fenômenos e a sua expressão por intermédio de um termo geral da
linguagem comum é constituinte da tradição filosófica desde Sócrates e, a despeito da
mudança de forma decorrente de atitudes epistemológicas distintas, atravessou a filosofia sem
grande modificações. Conhecer, tradicionalmente, sempre foi entrever a essência de algo, de
tal sorte que, sob um termo da linguagem, normalmente se pressupôs a formação de um
conceito exato e a existência de uma ou mais propriedades comuns, necessárias e suficientes à
determinação das coisas por ela designada. O que Wittgenstein sustenta é a superação desse
ponto de vista, importando no deslocamento do eixo para a linguagem e sua gramática (aqui,
mais uma vez, relaciona-se à gramática profunda). 207 A filósofa francesa retoma a ideia de definição por “Merkmale”, constituintes lógicos do conceito, e aponta como Wittgenstein afasta-se de tal modo de pensar. 208 A ideia de “textura aberta” importa no reconhecimento de uma vagueza necessária dos conceitos da linguagem comum, impossível de ser afastada (OLIVEIRA, 2006, p. 131). É interessante notar, porém, que tal vagueza não se confunde com as semelhanças de família, embora esteja com ela claramente relacionada. A distinção fica evidente no próprio parágrafo 68, em que Wittgenstein, embora admita que os “casos” do conceito matemático “número” se relacionam sob o modo de semelhanças familiares, reconhece a possibilidade de sua limitação como a “soma lógica dos conceitos parciais correspondentes”, o que não ocorreria em relação a “jogo” (BAKER; HACKER, 2009b, p. 156-157).
114
A regularidade e a rigidez no uso da linguagem pressupunham o
reconhecimento de uma “imagem” isomórfica entre linguagem e realidade, que nos mantinha
“prisioneiros” (IF 115) e a tarefa do filósofo consiste em conduzir “as palavras do seu
emprego metafísico de volta ao seu emprego cotidiano” (IF 116). A mudança de ponto de
vista fica evidente em diversos pontos da obra, a exemplo dos parágrafos 89 e 90, quando se
posiciona contra a aspiração comum de compreender o fundamento ou a essência de tudo que
é empírico e assevera que a investigação, propriamente, não se dirige aos fenômenos, mas às
condições de possibilidade dos fenômenos. Meditamos, em realidade, não sobre estes, mas
sobre a espécie de asserções que fazemos sobre os fenômenos. A reflexão é, portanto, uma
“reflexão gramatical” e a perspectiva da busca da essência é deslocada do plano das coisas
para o plano da linguagem e sua gramática.
A “gramática” mencionada por Wittgenstein em diversos momentos das
Investigações não se constitui, como ele mesmo faz questão de esclarecer, das regras
sintáticas comuns ao uso da língua, o que chama de “Gramática superficial”, mas do conjunto
de regras que outorgará critérios para um determinado uso da linguagem, de acordo com as
circunstâncias do uso. Esta gramática, que Wittgenstein denomina, em contraposição à
superficial, de “gramática profunda” (IF 664)209, está intimamente associada aos “jogos de
linguagem” e à questão do sentido das proposições filosóficas em sua obra da maturidade. Os
jogos de linguagem serão vistos em sequência, mas cabe ressaltar que, especialmente quando
trata da própria tarefa da filosofia, a gramática das Investigações Filosóficas é um contraponto
à gramática lógica do Tractatus. Nas Investigações, a gramática adquire autonomia e deixa de
espelhar a realidade, de forma que já não se pode falar mais de uma conexão entre linguagem
e realidade, ao menos não na forma do Tractatus. Tal ausência de conexão não implica em
considerar impossíveis as asserções a respeito do mundo, tampouco em tomar-se Wittgenstein
como aderente a alguma espécie de idealismo transcendental, mas em deixar pra trás nossa
inclinação natural de justificar as regras de nossa gramática pelas propriedades do mundo
(HACKER, 1986, p. 186-187). Não se justifica mais a proposição “branco é mais claro que 209 Como assevera Hacker (1986, p. 182), Wittgenstein não distingue dois tipos de gramática, mas sobretudo fixa campos de investigação e interesse distintos sobre o fenômeno da linguagem, quais sejam aquele do linguista e do filósofo. Esta distinção fica evidente pelas anotações de uma de suas alunas: “Of course there isn’t a philosophical grammar and ordinary English grammar […] The important difference is in the aims for which the study of grammar are pursued by the linguist and the philosopher” (AWL, p. 31). Também no Big Typescript Wittgenstein realiza uma diferenciação entre o seu trabalho de investigação gramatical e aquele desenvolvido por um filologista, asseverando que ambos interessam-se por regras distintas de nossa gramática, mas que nenhuma das investigações é mais essencial que a outra. (BT p. 305e)
115
preto” 210 pela referência ao “branco”, ao “preto” e a alguma espécie de relação “ser mais
claro que”, o que pressuporia uma medida isomórfica com a realidade, mas pela própria
linguagem. “Branco é mais claro que preto” torna-se uma verdade gramatical, uma regra de
gramática que determina o sentido das expressões e a maneira de lidar com elas, não uma
expressão necessária da ordem do mundo. Isto longe está de significar que a gramática, ao ser
engendrada, não atenda à melhor maneira de lidar com certas regularidades empíricas do
mundo, mas apenas que ela não entra, essencialmente, em conflito com a realidade e que suas
regras não determinam o que é verdadeiro ou falso, mas o que faz sentido (GF, p. 139-140)211.
Com tal medida de autonomia da gramática, Wittgenstein não apenas
“desloca” a essência para a gramática (IF 371), reconhecendo-a como fruto da convenção (e
da ação) humana212, mas concebe uma nova maneira de lidar com os problemas filosóficos,
especialmente com aqueles normalmente relacionados à metafísica, distinguindo
investigações factuais de investigações conceituais. O que pretende o filósofo austríaco é
assentar que, a despeito de algumas proposições filosóficas possuírem aparência de
proposições sobre fatos da experiência, de parecerem descrições super-empíricas da realidade
(HACKER, 1986, p. 197), o seu domínio efetivo é o da gramática, constituindo sistemas de
notação convencionalmente estabelecidos pelo homem e não fatos necessários da realidade. O
problema seria, justamente, a confusão feita entre estas duas espécies de uso da linguagem,
210 O exemplo está em Hacker (1986, p. 189). Para ser compreendido plenamente o caráter gramatical da proposição “branco é mais claro que preto” é necessário observar que ela lida com conceitos “simples indefiníveis”, que tradicionalmente possuem significado por se relacionar, de forma direta, a uma entidade no mundo, quer dependentes da mente (ideia), quer dela independente (propriedades simples ou relações, como cores, ou localizações). 211 A questão da gramática será retomada adiante, mas o ponto de vista wittgensteiniano pode ser melhor esclarecido com a seguinte passagem sobre a “gramática das cores”: “somos tentados a justificar as regras da gramática por meio de sentenças como ‘Mas há realmente quatro cores primárias’. E se dizemos que as regras da gramática são arbitrárias isso é dirigido contra a possibilidade dessa justificativa. (...) As regras da gramática não podem ser justificadas mostrando que sua aplicação faz uma representação concordar com a realidade. Pois essa justificativa teria, ela própria, de descrever o que é representado. E se algo pode ser dito na justificativa e é permitido por sua gramática – por que não devia também ser permitido pela gramática que estou tentado justificar?” (GF, p. 140-141) 212 Em Remarks on the Foundation of Mathematics Wittgenstein ratifica que essências são produtos de convenção e não uma descoberta da razão e afirma que o que parece ser a profundidade da essência é, em realidade, a profundidade de nossa necessidade de convenções: “If you talk about essence-, you are merely noting a convention. But here one would like to retort: there is no greater difference than that between a proposition about the depth of the essence and one about- a mere convention. But what if I reply: to the depth that we see in the essence there corresponds the deep need for the convention.” (RFM, p. 65). Deve-se reconhecer, entretanto, que a noção de convencionalidade dentro da obra de Wittgenstein é muito mais controversa do que deixa transparecer a transcrição deste trecho, em especial se tal convencionalidade for interpretada como sinônimo de que nossas práticas seriam meramente produto de convenção (CRARY, 2009b, p. 136).
116
para enunciar regras gramaticais e para enunciar fatos da experiência213. Wittgenstein quer
deixar claro que ao enunciarmos, por exemplo, “dois livros tem a mesma cor”, trazemos à
baila um sistema de notação, uma regra gramatical, uma convenção acerca da “identidade”, e
que poderíamos também afirmar, em um sistema de notação diferente, que dois livros “não
podem ter a mesma cor, porque, no fim de contas, este livro tem a sua própria cor; e o outro
livro tem também a sua própria cor”, embora este último sistema não esteja de acordo com
nosso uso habitual (LA, p. 100). 214 As proposições consideradas metafísicas, assim, a
exemplo de “nada pode ser verde e azul ao mesmo tempo”, não expressam verdades
necessárias a respeito do mundo, mas convenções gramaticais e a tarefa do filósofo a respeito
delas é a investigação conceitual e não a investigação empírica215. Afirmar o contrário de
uma proposição necessária não significa incorrer em falsidade a respeito do mundo, mas
violar regras da gramática acerca do uso das expressões e apresentar, por conseguinte,
proposições sem sentido.
2.4.2 Atos do espírito e o solipsismo
Deslocada a essência para o plano da linguagem, percebe-se que a fuga da
perspectiva essencialista e a consequente abertura dos conceitos permeia todo o pensamento
da segunda fase de Wittgenstein, constituindo instrumento metodológico importante no seu
projeto, inclusive no esforço hercúleo de afastar do processo de significação o que se concebe
tradicionalmente como “atos do espírito”.
Conforme Kenny (2006, p. 112), já na Gramática Filosófica Wittgenstein
pondera sobre o processo de significação e dedica toda a primeira parte ao questionamento
sobre o que confere significação aos sons humanos distintos e às marcas escritas no papel, ou
seja, o que transforma tais elementos em linguagem humana. A resposta mais comum e
natural a esta pergunta remete, normalmente, a uma série de atos do espírito, que recebem,
213 “É particularmente difícil descobrir que uma asserção, feita pelo metafísico, expressa desacordo com a nossa gramática, quando as palavras desta asserção podem também ser usadas para referir um facto da experiência” (LA, p. 103) 214 Note que as proposições do exemplo dado, em si, não expressam regras gramaticais, mas as pressupõem. 215 Conforme lembra Hacker (1986, p. 196), Wittgenstein evitava a terminologia relativa à divisão das proposições entre analíticas e sintéticas, considerando-a inapta às investigações conceituais. Enunciados gramaticais como “branco é mais claro que preto” não podem ser considerados analíticos, mas tampouco seriam enunciados sintéticos a priori. Tais enunciados seriam usos concretos (token) de regras gramaticais (type), expressando aquelas, mas não fatos.
117
dentre outros, os nomes de “ter em mente” e “compreender”216. As palavras só teriam seu
sentido “ativado” graças a processos psíquicos paralelos ao “falar” (externo e público),
processos estes que ocorreriam no mundo privado da consciência e do espírito e que seriam
acessíveis apenas ao próprio indivíduo consciente (STEGMÜLLER, 2012, p. 442). É a
combater a existência destes atos, que se relacionam normalmente à dimensão do
sentido/intensão/conotação do significado, que Wittgenstein dedica boa parte das
Investigações Filosóficas.
A multiplicidade dos argumentos de que se vale Wittgenstein para contrariar
a relação necessária entre atos espirituais e significado, o método exemplificativo utilizado e a
dispersão destes argumentos nos diversos parágrafos das Investigações tornam difícil o
isolamento e a sistematização do ponto de vista defendido, mas em um panorama bastante
geral pode-se dizer que Wittgenstein considera que a defesa da existência de tais atos
espirituais decorre, em realidade, do enfeitiçamento pela linguagem e da aproximação
indevida entre a gramática superficial de verbos como “andar” e “comer” com a de verbos
que retratariam atividades do espírito, como “ter em mente” (meinen) e “compreender”
(verstehen). Se ambos os tipos descrevem ações, e estes últimos não têm lugar no mundo
corpóreo, seria de se imaginar um estrato etéreo em que tais ações ocorreriam. “Onde nossa
linguagem nos faz supor um corpo, e não há corpo, ali gostaríamos de dizer que se trata de um
espírito” (IF 36).
Embora Wittgenstein critique, em vários pontos, a idéia de que estes atos
espirituais sejam tomados como processo217, ele não nega, completamente, com o recurso à
gramática, a possibilidade de existirem vivências interiores, tampouco que a linguagem se
faça acompanhar, eventualmente, de alguma espécie desta vivência interior. O que se ataca é,
por um plano, o postulado de que esta vivência seria determinante daquilo que se chama de
significado e, por outro, a vinculação essencialista das expressões linguísticas “ter em mente”
e “compreender” a processos mentais218. É certo que tais expressões são, no cotidiano,
216 No Livro Azul Wittgenstein ratifica que, na compreensão comum, o “compreender” e o “ter em mente” parecem ser processos inseparáveis do funcionamento da linguagem e os únicos a condicioná-lo (LA, p. 24-25). 217 Ele problematiza a duração ou instantaneidade desses processos mentais quando comparados com o curso da enunciação (IF 332) e também da sua autonomia, ou seja a possibilidade de ocorrerem independentemente do processo linguístico ou em desacordo com ele (IF 510). A respeito, Kenny (2006, p. 113-115). 218 Para Kenny (2006, p. 116-117), a crítica de Wittgenstein a esta espécie de concepção assume, principalmente, duas formas distintas. Em primeiro lugar, ele procuraria demonstrar que mesmo que houvesse algo como um mecanismo mental, tal ponto de vista não resolveria a problemática referente aos termos compreensão e ter em
118
associadas à experiência humana com a linguagem, mas não se poderia daí concluir que se
vinculem, sempre, a atos espirituais, e muito menos que tais atos representem alguma espécie
de essência vinculada ao termo.
A fim de sustentar seu ponto de vista e demonstrar que o ato interno do
sujeito não é necessário para conferir significação à linguagem Wittgenstein analisa vários
empregos das expressões “compreender” e “ter em mente”, ora apontando que não há ato
mental pressuposto naquele determinado uso, ora que o ato mental porventura vislumbrável
não é determinante para aquilo que tomamos como significado (STEGMÜLLER, 2012, p.
443). Dos exemplos dados pelo autor219, merece especial ênfase e análise, pela sua infiltração
no pensamento ocidental desde a sua origem, aquele em que o “ter em mente” é associado à
formação de uma imagem mental.
Deveras, é comum o entendimento de que ter em mente o significado de um
determinado termo relaciona-se à associação deste termo com uma imagem mental, de sorte
que “pronunciar uma palavra é, por assim dizer, tocar uma tecla no piano da imaginação” (IF
6). É fácil perceber que tal associação relaciona-se, em alguma medida, à perspectiva
essencialista, já que a imagem formada tende a ceder ao nosso desejo de generalização,
conforme Wittgenstein já ressaltara no Livro Azul220. A dissociação entre o significado (aqui
tomado como ter em mente) e tal imagem mental, entretanto, não foi feita por Wittgenstein
somente a partir da crítica essencialista, mas principalmente por considerar que a imagem
mental eventualmente formada era incapaz de dar vida ao signo inerte (LA, p. 26; IF 396).
Por um lado, ressalta que o convívio de uma mesma imagem mental (e de qualquer outro
processo anímico) em dois sujeitos não garante igualdade de significado, não implica que
tivessem em mente a mesma coisa221; por outro, ainda mais relevante, ressalta a circularidade
da relação entre a imagem formada e a própria linguagem, que ficaria clara se a imagem
mental fosse substituída por uma imagem física qualquer a que o indivíduo recorresse para
mente. Em segundo, ele mostraria que o critério usado para decidir se e o que alguém compreende e tem em mente é bastante distinto do tipo de critério pelo qual decidimos se um processo mental está ocorrendo. 219 Como exemplos, Stegmüller aponta os casos em que “ter em mente” é utilizado para afastar possíveis dúvidas a respeito do dito, aqueles em que o termo aparece como sinônimo de dirigir a atenção (IF 33-36) e também as hipóteses em que ter em mente dá lugar à formação de uma imagem mental. 220 “Existe uma tendência enraizada nas nossas formas de expressão habituais para pensar que a pessoa que aprendeu a compreender um termo geral, por exemplo, o termo ‘folha’, está, desse modo, na posse de uma espécie de imagem geral de uma folha, em contraste com imagens de folhas particulares” (LA, p. 46) 221 Em determinado ponto das Investigações Wittgenstein consigna, assertoricamente, que “Se Deus tivesse olhado dentro de nossa alma, não teria podido ver ali de quem falávamos” (IF, XI, p. 282)
119
explicar o uso do signo. Conforme Kenny (2006 p. 117, tradução nossa), “se deve ser
explicado como alguém sabe o que ‘vermelho’ significa, então deve ser igualmente explicado
como ele sabe que a imagem exemplo – não importa se mental ou física – é vermelha”.222 A
imagem mental, por conseguinte, não poderia ser a responsável por dar vida ao signo.
A par do “ter em mente”, também o “compreender” foi objeto das
ponderações de Wittgenstein, mantendo a mesma reflexão sobre a gramática da expressão e a
tentativa de afastar a justificação de seu uso por um processo espiritual. Este ato de
compreensão costuma ser associado, de regra, a uma vivência súbita (IF 138, 321-322),
responsável pela apreensão, de um só golpe, de um conteúdo qualquer, sentido em que o
compreender associa-se à ideia de poder, de ser capaz (IF 150), da outorga, ao sujeito, de
determinada capacidade, como, por exemplo, a de continuar uma série de números ou a de
usar corretamente um termo. Para Wittgenstein, todavia, o que caracteriza a compreensão não
é a vivência interior, que não pode ser verificada por qualquer elemento externo, mas
justamente a ação em conformidade com o esperado (IF 142-155). O que se toma,
normalmente, por atividade espiritual de compreensão não é necessário nem suficiente para
que se considere que alguém compreendeu algo; por um lado, é possível seguir uma série ou
usar uma expressão corretamente sem a vivência da compreensão; por outro, tal vivência não
assegura que o uso ocorrerá de forma esperada. Neste sentido, a gramática de “compreensão”
não se vincula à eventual vivência interna, mas ao domínio de uma técnica (IF 150), que
assegurará, no tempo futuro, seguir determinadas regras de uso223. Tal relação de domínio, ao
revés do processo interno, não se contém no indivíduo, remetendo à seara do intersubjetivo,
na medida em que pode ser testada e verificada por outros (KENNY, 2006, p. 118).
A gramática do “compreender” não se resume, nas Investigações e no
restante da obra da segunda fase de Wittgenstein, à hipótese acima desenvolvida. É
particularmente interessante a maneira como Wittgenstein submete a expressão ao processo
paradigmático de semelhança de família, comparando o “compreender” relativo a um
enunciado linguístico ao “compreender” utilizado no contexto da compreensão de uma peça
222 No original: “if it is to be explained how someone knows what ‘red’ means, it is equally to be explained how he knows that his sample image – whether mental or physical – is red”. 223 Em Voices of Wittgenstein, obra editada a partir de conversas entre Wittgenstein e Waismann, colhe-se a afirmação explícita de que “se poderia estabelecer, mais ou menos, que compreender um significado é ser capaz de aplicar a palavra corretamente” (WITTGENSTEIN; WAISMANN, 2003, p. 357, tradução nossa). Nas Investigações explicita, ainda, que “compreender uma frase significa compreender uma língua. Compreender uma língua significa dominar uma técnica”. (IF 199)
120
musical, sem que qualquer dos usos da expressão prepondere sobre o outro ou seja
responsável pela captação de uma inexistente essência (IF 527)224. O que mais interessa no
presente momento, todavia, não é a fuga da perspectiva essencialista, mas a medida em que o
posicionamento de Wittgenstein, contrário à associação entre atos espirituais e o uso que se
faz da linguagem, caracteriza a sua aversão ao subjetivismo que marca o pensamento
ocidental e ao solipsismo que integra, inclusive, sua obra pretérita225.
O problema central, aqui, gira em torno de como relacionar processos
privados internos, que transcorrem em uma consciência isolada, à linguagem pública. Ao
rejeitar que vivências internas, como ter em mente e compreender, sejam tomados como os
responsáveis por conferir significação às palavras, Wittgenstein ataca uma das extremidades
dessa relação. Os sons inertes da nossa linguagem não adquirem significado em decorrência
de processos internos, aos quais não se tem acesso, mas pelo uso público que se faz da
linguagem e pelos comportamentos a ele associados, publicamente observáveis. Na outra
extremidade, Wittgenstein questionará como é possível que sensações e vivências individuais
de variadas espécies, às quais só o indivíduo tem acesso, tornem-se linguagem. Negando tal
possibilidade é que se desenvolverão os inúmeros argumentos contra o que chama de
linguagem privada.
A linguagem privada, conforme proposta no §243 das Investigações, seria
aquela cujas palavras referem-se ao que somente pode ser conhecido pelo falante, ou seja, às
suas sensações imediatas e privadas, às quais só ele tem acesso. O aspecto relevante desta
224 Ainda ilustrando a gramática do “compreender”, vale anotar que esses diferentes usos da expressão aparecem, segundo Wittgenstein, mesmo quando se lida exclusivamente com enunciados linguísticos, sem referência ao mundo musical. Enquanto o compreender um enunciado normalmente se vincula à capacidade de substituir tal enunciado por outro equivalente, por vezes tal compreensão envolverá, justamente, o reconhecimento da impossibilidade de tal substituição, como ocorre diante de enunciados decorrentes de expressão artística (no § 531 das Investigações dá o exemplo da poesia). Ainda sobre o tema da compreensão, vale destacar a forma como Chauviré (1991, p. 108 et seq), passeando por diversas obras e partindo de uma “analogia bilateral” entre o “compreender” e o “compreender uma frase musical” em que nenhuma das duas prepondera sobre a outra, acompanha o pensamento de Wittgenstein a respeito da estética e de como as regras estéticas se relacionam com a cultura de um determinado período. 225 O elemento solipsista do Tractatus (TLP 5.6 a TLP 5.641) não é de fácil apreensão, especialmente na medida em que o próprio Wittgenstein radicaliza-o, concluindo que, levado às últimas consequências, coincidiria com o “puro realismo” (TLP 5.64). Fala-se, aqui, em solipsismo “linguístico” (MORA, 1965b, p. 705) ou, sob viés um pouco distinto, em “Empirismo realista” e “solipsismo transcendental” (HACKER, 1986, p. 104), ambos a indicar que o solipsismo desta fase encontraria termo na linguagem, que está, no primeiro Wittgenstein, em relação isomórfica e inefável com o mundo. É nesse ponto que se inserem as inúmeras discussões a respeito da transcendentalidade da linguagem no Tractatus, defendendo Stegmüller (2012, p. 394 et seq), inclusive, que Wittgenstein transportou o idealismo transcendental de Kant para a linguagem. Também Luiz Henrique Lopes dos Santos (2010, p. 106) reconhece que o sujeito solipsista tractariano é transcendental.
121
perspectiva não é a ostensividade da referência a um processo interno, mas o isolamento em
que transcorre este processo interno de nomeação, que daria origem a uma linguagem também
privada, que só pode ser compreendida pelo próprio falante (IF 248). Wittgenstein posta-se
firmemente, através de inúmeros argumentos, contra esse ponto de vista, para concluir que
não pode existir uma linguagem cujas palavras referem-se ao que só pode ser conhecido pelo
falante da linguagem (KENNY, 2006, p. 12).
A hipótese de uma linguagem privada, embora possa parecer meramente
cerebrina à primeira vista, exsurge como de extrema relevância, a medida que tal linguagem é
pressuposta como possível em toda a epistemologia moderna (OLIVEIRA, 2006, p. 136).226
Classicamente, o conhecimento é um ato individual e o importante é que cada indivíduo tenha
certeza de suas próprias impressões, expressando-as através da linguagem. Wittgenstein, em
que pese não traga propriamente uma teoria epistemológica substitutiva, assume postura de
maneira firme contra tal ponto de vista, encerrando em seus argumentos contra a linguagem
privada o ataque final ao solipsismo metodológico227 que permeia o pensamento ocidental
(HACKER, 1986, p. 215)228.
O desenvolvimento argumentativo de Wittgenstein contra a linguagem
privada é extenso e complexo, valendo-se inúmeras vezes do exemplo da “dor” e
questionando em que medida é a sensação privada da dor que dá origem à inserção da palavra
“dor” na linguagem pública. Seu ponto de vista assenta-se, principalmente, na inutilidade dos
parâmetros internos para assegurar o uso correto de uma determinada expressão (IF 258, 265)
e na inescrutabilidade desta vivência interna, o que impediria a inserção de uma palavra na
linguagem pública com esteio em uma relação meramente ostensiva interna, sob pena de a
própria vivência perder completamente a relevância (IF 293).
226 Também Kenny (2006, p. 13) aponta que filósofos de tradições tão diversas quanto Descartes e Hume pensaram ser possível para uma mente particular classificar e reconhecer seus próprios pensamentos e experiências, deixando em suspenso a questão do mundo exterior e das outras mentes. 227 Ao fornecer os elementos principais do que considera solipsismo metodológico, Hacker (1986, p. 225) enumera os seguintes: 1) não há uma linguagem pública compartilhada, mas inúmeras linguagens individuais, traduzíveis entre si; 2) a ideia de intertraduzibilidade exige paralelismo psicológico-físico, tendo em vista a possibilidade de a dor ser narrada em conjunto com o comportamento; 3) nunca se atribui um predicado experiencial a si mesmo e aos outros, pois todos são ambíguos; 4) não se pode entender o significado quando alguém diz que sente dor. A expressão deve ser tomada como um signo (sinal) e não como um símbolo. 228 Os argumentos a respeito da linguagem privada não são os únicos utilizados por Wittgenstein para refutar o solipsismo metodológico. A partir da página 229 da obra citada Hacker reúne uma série de argumentos diversos que se encontram espalhados em diversos escritos de Wittgenstein.
122
No primeiro caso, Wittgenstein pondera que uma linguagem privada teria de
se basear em regras também privadas, mas que tais regras, sem a possibilidade de apelo a uma
instância objetiva, constituem em realidade ficção e não se distinguem de meras impressões
de regras, incapazes de oferecer parâmetro para avaliar o uso correto da linguagem. Na
segunda linha, demonstra, através do famoso exemplo da caixa de besouros, que se a
linguagem tiver como referencial a experiência interna não compartilhável, tal experiência
acaba tornando-se irrelevante no uso da linguagem. Ao final, demonstrado que não seria a
experiência particular que dá origem ao conceito de dor, sustenta a necessidade de um giro
radical, propondo o caminho inverso (IF 384 – “Você aprendeu o conceito ‘dor’ com a
linguagem”). O que tornaria possível falar-se de uma linguagem compreendida
universalmente a respeito dessas sensações não é a necessidade de nomear uma vivência
interna, mas justamente o fato de algumas palavras, como “dor”, pertencerem de antemão à
linguagem pública (STEGMÜLLER, 2012, p. 462). Como afirma o próprio Wittgenstein,
Quando se diz “ele deu um nome à sensação”, esquece-se que muita coisa já tem que estar preparada na linguagem para que o simples dar nome tenha um sentido. E quando dizemos que alguém dá nome à dor, então a coisa preparada aqui é a gramática da palavra “dor”; ela mostra o lugar onde a nova palavra será colocada. (IF 257)
A partir daí, compreende-se o exame acurado que procede sobre a gramática
da “dor”, onde acaba por demonstrar que, ao usarmos a palavra “dor”, não lidamos com a
representação de uma imagem privada da dor, mas com sua exteriorização, com um
determinado comportamento. O que precisamos, também aqui, não é da dor, mas do conceito
de dor, o que precisamos é dominar o uso da palavra dor nos diversos jogos de linguagem229.
2.4.3 Os jogos de linguagem e as formas de vida
Com o argumento da linguagem privada, Wittgenstein finalmente fecha o
cerco sobre a concepção tradicional da linguagem. Ao longo da história, como um títere, a
linguagem foi sempre manipulada a fim de expressar e testar, intersubjetivamente, a realidade
conhecida de forma individual. Um a um, Wittgenstein cuidou de cortar os fios que
229 “So he has real pain; and now he knows what he is to doubt in someone else's case. He has the object before him and it is not some piece of behaviour or the like. (But now!) In order to doubt whether someone else is in pain he needs, not pain, but the concept 'pain'” (Z § 548). Segundo Kenny (2006, p. 156), Wittgenstein repete, tanto nas Investigações (IF 300) quanto no Zettel, que não há, nos jogos de linguagem com “dor”, a comparação da dor com sua imagem.
123
sustentavam a marionete: o fio que a ligava à estrutura imanente do mundo, o fio que a
conectava com a perspectiva essencialista e o fio que associava sua origem e também seu
significado às vivências subjetivas individuais. A linguagem, assim desvinculada, ganha vida
própria e tem seu ponto de apoio transferido para a práxis social, transparecendo como
produto comunitário, ferramenta não mais destinada a expressar o conhecimento, mas a
mediá-lo (OLIVEIRA, 2006, p. 126-127). O significado de uma determinada expressão,
outrora obtido pela referência direta ao mundo, à intenção do falante230 ou a alguma essência
metafísica, passa a relacionar-se ao uso concreto e comunitário que dela se faz na linguagem.
Não mais se considera que a palavra tenha um significado calcado na realidade, mas que o
tenha associado ao uso, de acordo com determinadas regras estruturantes, normativamente
estipuladas e peculiares a uma determinada “situação”. As perguntas que surgem, nessa linha,
dizem respeito a quais seriam as regras determinantes do uso, como se constituem, como
determinam o significado, qual o seu alcance e por qual motivo são seguidas. É justamente na
confluência das possíveis respostas a estes questionamentos que se formata a ideia de jogo de
linguagem, termo que permeia, direta ou indiretamente, boa parte das Investigações
Filosóficas e das preleções de Wittgenstein posteriores ao Tractatus e que se insere no esteio
de praticamente todas as argumentações aqui descritas.
Embora não tenha recebido uma definição precisa, a ideia de jogo de
linguagem esteve onipresente em todos os pontos da explanação feita até aqui, que
conduziram a uma nova imagem da linguagem. E essa onipresença não é circunstancial. O
projeto de Wittgenstein envolve substituir a antiga atitude essencialista diante da linguagem,
centrada na função designativa, por uma nova imagem, em que a linguagem deixa de ter a
essência descritiva que se lhe atribuiu historicamente e passa a funcionar como um mosaico
de jogos de linguagem distintos, submetidos a regras próprias e vinculados entre si não por
uma essência comum, mas por semelhanças de família231. É em tais jogos, e não mais por
uma relação especular com a realidade, que as palavras adquirem sua significação. Assim
como uma peça de madeira em formato semelhante ao de um “rei”, por exemplo, só adquire
sentido a partir das regras do xadrez, uma palavra só terá seu significado quando inserida em
um determinado jogo de linguagem (IF 31), a partir do papel que desempenha nesse jogo (IF
230 No §498 das Investigações Wittgenstein evidencia que o sentido não está relacionado à intenção do falante 231 Anote-se que é justamente em face do conceito “jogos” que Wittgenstein emprega o método das semelhanças de família (IF 64-66).
124
49, 261). A nomeação e a descrição da realidade não deixam, é claro, de existir, mas elas se
inserem apenas como mais um dentre os inúmeros jogos de linguagem possíveis232.
Wittgenstein explora a analogia da linguagem com jogos de diversas formas
distintas e com vários propósitos (KENNY, 2006, p. 128), mas ao menos três deles merecem
ser destacados. Em primeiro lugar, tal aproximação denuncia a diversidade possível nos
empregos da linguagem e a ausência de um elemento comum a todos eles, na medida em que
o próprio conceito “jogo” adequa-se à idéia de semelhanças de família. No §23 das
Investigações Wittgenstein apresenta a lista mais completa de exemplos de jogos de
linguagem que se pode encontrar em sua obra e lá estão presentes atividades tão distintas
como “ordenar”, “descrever um objeto pela aparência e pelas suas medidas”, “relatar um
acontecimento”, “levantar uma hipótese e examiná-la”, “representar teatro”, “adivinhar
enigmas”, “resolver uma tarefa de cálculo aplicado” e “cantar cantiga de roda”233. Em
segundo lugar, e ainda mais relevante, traz à tona a conexão entre falar uma linguagem e
desempenhar atividades não linguísticas, como se pode ver dos inúmeros exemplos acima. Tal
associação permite entrever que empregar uma linguagem é parte de uma atividade
comunitária, pertinente ao modo de viver em sociedade, a uma determinada forma de vida (IF
19, 23). Por fim, embora nem todos os jogos tenham regras definidas, o seu funcionamento,
quando existentes, apresenta similaridades com o das regras que regem a atividade linguística,
inclusive no espaço que reservam à liberdade do jogador (IF 68)234.
Já no início das Investigações Filosóficas Witgenstein traz ao menos dois
exemplos do que chama de jogo de linguagem, inserindo-os no contexto de atividades
extremamente simples (IF 2, 8), que remontam, inclusive, à forma como crianças aprendem a
232 No §593 das Investigações Wittgenstein ressalta que o problema é a “dieta unilateral” e nos §§ 26 e 49 reconhece a nomeação de objetos – definição ostensiva - como uma atividade preparatória para o jogo, inclusive para o jogo de linguagem consistente em descrever a realidade. 233 Além dos exemplos de jogos contidos no §23, Kenny (2006., p. 131) enumera outros exemplos dispersos nas próprias Investigações: expressar sensações (IF 288), reportar desejos passados (IF 654), definição ostensiva (IF 27), explicação subsequente do que alguém tinha em mente (IF II 234). De particular interesse é a consideração, feita por Kenny, de que os jogos de linguagem são inventados por Wittgenstein como modelos para teorias filosóficas, a exemplo da teoria da nomeação platônica no Teeto (IF 48, 60 e 64) e da teoria da descrição de Russel, que ele próprio encampou no Tractatus (IF 60). 234 Stegmüller (2012, p. 420), traz uma interessante comparação entre um jogo de linguagem e um jogo de xadrez, pontuando as dessemelhanças: As regras estão codificadas e podem ser estabelecidas de forma precisa só neste último; os jogos artificiais não se sobrepõem, ao revés do que ocorre com os jogos de linguagem; Jogos artificiais seriam puros, colocados fora do contexto da vida, enquanto as linguagens seriam formas de vida; por fim, haveria uma diferença no grau de complexidade, já que no xadrez cada lance, embora atente à história do jogo, submete-se a regras fixas, enquanto no jogo de linguagem as próprias regras seriam determinadas no decorrer do jogo, de acordo com a sua história e, inclusive, do seu próprio futuro.
125
linguagem. No início da década de 30, aparentemente, quando ditou o Livro Azul,
Wittgenstein associava os jogos de linguagem unicamente a tal tipo de conformação
linguística235, mas nas Investigações a imagem de tais jogos já é bem mais ampla e acaba por
envolver uma gama quase infinita de possibilidades, de complexidade e extensão variada. Os
jogos não estão restritos a situações simples e bem definidas, mas remontam a um contexto
discursivo muito mais amplo, que não se encerra no próprio falar e tampouco em um
momento definido no tempo. Em uma visão ampla, pode-se dizer que a situação discursiva
representada no jogo de linguagem é um complexo que envolve as circunstâncias e as ações
linguísticas e extra-linguísticas do falante e do interlocutor, todos eles vistos não apenas no
momento da fala, mas também no passado e conforme projetados no momento futuro
(STEGMÜLLER, 2012, p. 419-420).
Lidar com a linguagem, para Wittgenstein, é operar com as expressões
linguísticas nos variados jogos de linguagem a que nos submetemos236, e saber jogar tais
jogos é uma capacidade, é “dominar” uma técnica que aprendemos pelo adestramento e pela
prática até se incorporar como um “hábito” (IF 198-199). Esse hábito não é, por óbvio,
individual, mas social (IF 202) e importa em adotar uma maneira de lidar com a linguagem
que seja intersubjetivamente válida, adaptar-se a uma determinada práxis linguística, ou mais
propriamente a diversas práxis, variáveis de acordo com o contexto discursivo237.
A compreensão de que falar a linguagem é integrar-se a estas diversas
formas de interação linguística deixa entrever, em primeiro lugar, que a ideia de Wittgenstein
não está atrelada a um uso qualquer da linguagem, mas ao uso correto, conforme a
determinadas regras. Em sequência, permite visualizar a peculiaridade das regras retoras de
tal atividade. Ao revés do que ocorre com as regras da maioria dos jogos artificiais, aqui não
se pode tratar de um conjunto fixo de normas adrede codificadas, como as que resultariam de
um corpo de significado (Bedeutungskörper)238 completo das expressões (CHAUVIRÉ, 1991,
235 “Os jogos de linguagem são a forma de linguagem com que a criança começa a fazer uso das palavras. O estudo dos jogos de linguagem é o estudo de formas primitivas da linguagem, ou de linguagens primitivas” (Livro Azul, p. 45) 236 Chauviré (1991, p. 91) ressalta que Wittgenstein, ao retornar à filosofia, esteve em dúvida entre os modelos de jogo e de cálculo, mas decidiu-se pelo primeiro por considerar que a expressão cálculo ainda era um modo de idealizar a linguagem. Uma enumeração dos equívocos do modelo do cálculo e das vantagens da analogia com os jogos pode ser encontrada em Baker e Haker, (1980, p. 91-93) 237 Segundo Oliveira (2006, p 143), “poder usar linguagem significa, então, ser capaz de inserir-se nesse processo de interação social simbólica de acordo com os diferentes modos de sua realização.” 238 A expressão “corpo de significado” comparece uma única vez nas Investigações, mais precisamente no § 559, onde não é propriamente empregado, mas anotado pelo próprio Wittgenstein como referência importante para o
126
p. 85), mas de regras dinâmicas, mutáveis (IF 18) e que estão intimamente relacionadas ao
campo da atividade social (Stegmüller, 2012, p. 420-422) em suas variadas manifestações. À
ideia de um corpo de significado subjacente, completo e acabado, vincula-se a concepção,
rejeitada por Wittgenstein, de que tais regras agiriam de forma mecânica no sujeito,
determinando o seu comportamento de acordo com uma relação de causalidade, entremeada
normalmente por algum ato espiritual de deixar-se guiar239. Ao rejeitar tal concepção, o que
Wittgenstein sustenta é uma conexão interna entre significação (regra) e o uso (aplicação),
extremos que não se resolvem sob a forma de uma imposição heterônoma e determinante do
primeiro em relação ao segundo, mas na gramática, pela compreensão de ser impossível
pensar um sem o outro (CHAUVIRÉ, 1991, p. 96; BAKER; HACKER, 2014, p. 129). Não se
atua em conformidade com as regras porque elas causam algum efeito sobre o indivíduo em
um esquema de estímulo-resposta, mas porque os indivíduos se integram espontaneamente a
uma determinada práxis social, a um papel em uma determinada comunidade que, por sua
vez, só surge no próprio ato de jogar em conformidade com as regras (OLIVEIRA, 2006, p.
144). No uso das palavras, no ato de jogar, é que se aprende as regras do jogo, surgem novas
regras e outras modificam-se (IF 83).
Esta conexão interna entre regra e sua aplicação não é, todavia, útil apenas
para demonstrar que não se segue as regras de acordo com uma relação de causalidade.
Sustentar tal conexão interna e afirmar que ela reside na gramática importa em reconhecer que
tampouco é possível fundamentá-la, ou mais propriamente que toda tentativa de
assunto ali tratado. O assunto receberá um tratamento mais explícito nas conversas entre Wittgenstein e Waismann registradas pelo último (WITTGENSTEIN; WAISMANN, 2013, p. 135-141), onde se pode perceber que Wittgenstein concebe os corpos de significado como um símile utilizado para contrariar o postulado fregeano de que as regras de uso de uma determinada expressão decorrem de seu significado. Para que as regras sejam consequência do significado este teria que ser concebido como algo que repousa por detrás das palavras, ilustrando-a Wittgenstein com a imagem de um corpo geométrico tridimensional de vidro completamente transparente (oculto), no qual apenas uma das faces fosse visível. Esse corpo que repousa invisível (pirâmides, cubos, prismas) representaria as regras decorrentes do significado e são as suas formas que determinariam as possibilidades de combinação daquela determinada palavra para a obtenção de proposições com sentido. Através do símile, entretanto, Wittgenstein pondera que, ao pensarmos desta maneira, sucumbimos à ilusão que surge da expressão “corpo geométrico”, confundindo proposições empíricas e gramaticais, ou considerando que o corpo da geometria (Wittgenstein usa o cubo) seria um cubo ideal posto ao lado do cubo da realidade. Dissipada essa ilusão, pode-se perceber que o resultado é exatamente o inverso, qual seja, o de que o cubo geométrico tem sua forma e possibilidades de combinação determinadas pela gramática, pelos seus usos, e que não pode, por conseguinte, estar oculto. Observe-se que no § 559 das Investigações Wittgenstein combate explicitamente a ideia fregeana de que o sentido de uma determinada proposição surgiria da adequação entre os significados. 239 A relação de causalidade é visualizada no exemplo da pianola, constante da Gramática Filosófica. p. 49-50, e das Investigações § 157. Sobre o deixar-se guiar, e a ausência de uma vivência comum a estes atos, vide § 172 das Investigações. Conforme Kenny (2006, p. 138) Wittgenstein considera que o questionamento sobre ser a ação determinada ou guiada por uma regra relaciona-se, principalmente, à mesma confusão que orienta a percepção natural sobre supostos atos mentais relacionados à “compreensão”.
127
fundamentação, de justificação acerca do “como posso seguir uma regra”, esbarra em uma
limitação gramatical (IF 211, 232). Essa limitação seria insubsistente se a linguagem ainda
fosse visualizada em relação isomórfica com a realidade, circunstância em que a gramática, e
o seguir a regra, encontrariam possibilidade de justificação ontológica. Wittgenstein, todavia,
como fartamente visto, não admite mais tal vinculação entre linguagem e a estrutura do
mundo, reconhecendo que a gramática, e não uma associação ontológica, determina o
significado das expressões240.
Poder-se-ia cogitar, ainda, de uma fundamentação das regras e do uso não
mais por uma perspectiva causal, mas pela finalidade da linguagem. Reconhecido que a
linguagem está inserida na práxis humana, na atividade social, seria natural que tivesse sua
adequação conceitual julgada de acordo com o propósito a que serve. Wittgenstein, todavia, é
contundente ao afirmar que a linguagem, tomada como um todo, não pode ser definida como
um arranjo que cumpre um propósito definido e tampouco como um meio para um fim
particular (GF, p. 143). É nesse sentido que se deve reconhecer que as regras gramaticais são
arbitrárias:
Porque não chamamos as regras de culinária de arbitrárias e por que somos tentados a chamar as regras de gramática de arbitrárias? Porque penso no conceito “culinária” tal como definido pelo fim da culinária, e não penso no conceito “linguagem” como definido pelo fim da linguagem. Você cozinha mal se é guiado na culinária por outras regras que não as certas; mas se você segue outras regras que não as do xadrez, você está jogando outro jogo; e se você segue outras regras gramaticais que não tais e tais isso não significa que você diz algo errado; não, você está falando de alguma outra coisa. (GF, p. 139)241
Com tal perspectiva, Wittgenstein não nega que a linguagem, inserindo-se
numa atividade, pode servir a um propósito definido, ser utilizada como instrumento para uma
determinada finalidade242 e que, por via de consequência, algumas de suas regras surjam
dentro de uma tal perspectiva. O que o filósofo defende é que ela não pode ser justificada ou
240 Conforme expresso na Gramática Filosófica, p. 141: “As regras da gramática não podem ser justificadas mostrando que sua aplicação faz a representação concordar com a realidade”. Nas Investigações, §217, Wittgenstein deixa evidente esta limitação: “Se esgotei as justificativas, cheguei então à rocha dura, e minha pá se entorta”. 241 Vide também: p. 145: “‘As regras de um jogo são arbitrárias’ significa: o conceito ‘jogo’ não é definido pelo efeito que se supõe que o jogo tenha sobre nós” 242 Oliveira (2006, p. 146) traz à colação ao menos três exemplos em que Wittgenstein admite um caráter instrumental da linguagem, nos §§11, 421 e 569 das Investigações.
128
explicada a partir de tal finalidade e tampouco, como visto, de qualquer outra relação causal
externa; o que interessa à filosofia é a linguagem como fenômeno (“e não como uma relação
de meio e fim”, complementa Wittgenstein em sua Gramática Filosófica (GF, p. 143)), já que
todas as relações cogitáveis voltam-se à própria gramática (IF 497). Sem as regras da
gramática, a palavra não tem significado; e se mudarem as regras, ela adquire um significado
distinto ou mesmo perde completamente o significado (IF 556)243.
Afirmar a autonomia e a arbitrariedade da gramática não significa, todavia,
que a gramática paire em suspenso, ou que os conceitos construam-se aleatoriamente, em total
desconexão com as pessoas que utilizam a linguagem. Ao revés, para Wittgenstein, a
linguagem está entrelaçada à vida do homem em sociedade de maneira infinitamente variada
e é nesses contextos, a que o próprio filósofo mais tarde chamaria de “formas de vida” (IF 19,
23, 241, I e XI, p. 292), que os jogos de linguagem têm lugar e que a linguagem ganha
significado. Não é possível conceber uma linguagem sem uma forma de vida a ela pertinente,
como Wittgenstein deixa claro no §19 (“Imaginar uma linguagem é imaginar uma forma de
vida”244) e §23 (“A expressão ‘jogo de linguagem’ deve salientar aqui que falar uma língua é
parte de uma atividade ou de uma forma de vida”) das Investigações Filosóficas.
Esta noção aberta de forma de vida e sua associação necessária aos jogos de
linguagem, ao uso e ao significado acaba funcionando, na filosofia de Wittgenstein, como um
duplo limite ou, mais propriamente, acaba revelando um duplo aspecto do mesmo limite
gramatical: por um lado, a forma de vida constitui o que está imediatamente além da fronteira
final encontrada em qualquer tentativa de justificação das regras gramaticais e dos
significados na linguagem; por outro, representa os lindes da possibilidade de compreensão –
ainda que não de modo absoluto – dessa mesma linguagem.
O primeiro aspecto evidencia-se pela própria associação entre formas de
vida e a gramática dos jogos de linguagem. A cadeia de razões para a justificação encontra
limite na própria gramática e qualquer tentativa de explicá-la é inútil, já que as formas de vida 243 “Não se pode discutir se estas ou outras regras são corretas para a palavra “não” (quero dizer, se são adequadas ao seu significado.) Pois, sem essas regras, a palavra não tem ainda nenhum significado: e se mudarmos as regras, então ela tem agora um outro significado (ou nenhum), e então podemos, da mesma forma, mudar também a palavra”. Pontuando este aspecto da posição wittgensteiniana, também Kenny (2006, p. 139-140). 244 Esse enunciado, da forma como escrito, foi colhido das duas traduções inglesas das Investigações Filosóficas consultadas. Na edição brasileira, o verbo alemão vorstellen foi traduzido como “representar”, enquanto na edição americana optou-se por “imaginar”, aqui considerado mais adequado.
129
não são passíveis de fundamentação ou explicação (STEGMÜLLER, 2012, p. 471). As
formas de vida constituem o dado, o que deve ser aceito (IF XI, p. 292) e, segundo
Wittgenstein, nosso erro consistiria em “buscarmos uma explicação lá onde deveríamos ver os
fatos como ‘fenômenos originários’245. Isto é, onde deveríamos dizer: joga-se este jogo de
linguagem” (IF 654). Os homens, inseridos em uma determinada forma de vida, em um
determinado modo de viver, estão acordes sobre o uso da linguagem (IF 241) e tal acordo não
seria passível de justificação/explicação, mas tão somente de descrição através dos próprios
jogos de linguagem.
O segundo aspecto, a seu tempo, é a contrapartida do primeiro. Se
compartilhar significados, usos e regras só é possível porque os usuários da linguagem
compartilham uma determinada forma de vida, daí resulta que o uso e compreensão da
linguagem por quem não compartilha aquele determinado modo de ser social estaria bastante
prejudicada (IF, XII, p. 295). Em uma perspectiva ampla, esse limite fica claro quando
Wittgenstein dá o exemplo da impossibilidade de entendimento de uma linguagem dos
animais, afirmando que “Se um leão pudesse falar, nós não seríamos capazes de entendê-lo”
(IF XI, p. 289). Não parece, todavia, que Wittgenstein tenha reservado essa dificuldade de
compreensão a casos de tamanha amplitude, que remetem à própria condição de ser humano,
questão tratada explicitamente por Wittgenstein em suas anotações (Z §390) e que pode ser
averiguada, também da hipótese, dada nas Investigações, de chegada em um país estrangeiro,
com tradições completamente diferentes, no qual, mesmo dominando-se a língua, não se
entende as pessoas (IF XI, p. 289)246. O caráter aberto da questão parece ficar mais bem
delineado por uma passagem da Gramática Filosófica, especialmente quando remonta à
variedade infinita de possibilidades de entrelaçamento entre a linguagem e a vida
Entendo a palavra “bom” quando sei como e em quais ocasiões as pessoas a usam? Isso é suficiente para que eu possa usá-la? Quero dizer, usá-la com convicção. Não seria possível eu conhecer o uso da palavra, e ainda assim acompanha-la sem entender? (como, de certa forma, acompanho o canto dos pássaros.) Portanto, não é alguma outra coisa que constitui o entendimento – o
245 Essa é a tradução outorgada ao termo alemão “Urphänomene”. A tradução é controversa, mas não parece prejudicar a compreensão. Na edição inglesa das Investigações o termo é traduzido para o inglês como “proto-phenomena” e na tradução ao livro de Stegmüller traduziu-se como “fenômenos primitivos”. Esta última parece a menos adequada de todas as traduções, especialmente por remeter a uma confusão com os jogos de linguagem primitivos. 246 Esta assertiva fica ainda mais clara em Zettell, p.
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sentimento “no nosso peito”, a experiência viva das expressões? - Eles devem entrelaçar-se com minha própria vida. Bem, a linguagem realmente se liga à minha vida. O que é chamado “linguagem” é algo formado de elementos heterogêneos, e a maneira como se entrelaça com a vida é infinitamente variada” (GF, p. 46-47)247
Neste trecho, evidencia-se de forma ainda mais contundente que o
entendimento da linguagem não se confunde com o mero conhecimento do uso, mas que
depende de um “entrelaçar-se com a minha própria vida”, ou seja, da minha integração a uma
determinada forma de vida, cujo âmbito e extensão permanecem completamente em aberto248.
Sem tal integração, eu posso acompanhar o uso da palavra sem entendêe-la e posso até “usá-
la”, mas sem “convicção”. Só integrando-se a uma forma de vida, enfim, é possível jogar o
jogo de linguagem conforme suas regras.
2.5 Um novo caminho
Com o exame dos jogos de linguagem e das formas de vida é possível
encerrar-se, sem qualquer pretensão de esgotar o assunto, este primeiro aporte da filosofia
wittgensteiniana, necessário para marcar a transição entre o paradigma ontológico e o da
filosofia da linguagem comum. Embora o caminho percorrido tenha sido pouco usual,
adotando-se como porta de entrada o problema das definições, acredita-se ter sido avaliada de
forma suficiente a reviravolta que significou o pensamento do segundo Wittgenstein.
Como primeiro ponto, é importante ressaltar que não se alcançou o que já
foi apontado acima como uma possível quarta fase na filosofia de Wittgenstein e que se revela
247 Simon, (1981, p. 98), reconhecendo as dificuldades de delinear a extensão e abrangência de uma forma de vida, chega a afirmar não ser possível que se estipule, com exatidão, limites entre as diversas formas de vida. Seu argumento vem a pretexto de evitar confusão entre “formas de vida” e algo como uma relatividade linguística, ou seja, a identificação entre a forma de vida e uma determinada língua ou dialeto. A questão da relatividade linguística, a despeito do interesse que desperta, está fora do contexto da presente investigação. Sobre a relatividade linguística e a tese de Saphir-Worf, confira-se Auroux (1998, p. 190 et seq.) 248 Em palestra sobre estética proferida no ano de 1938, Wittgenstein (1967a, p. 08-10) analisa os jogos de linguagem relacionados a julgamentos estéticos e deixa claro que descrever tais jogos importa em descrever toda uma cultura. Como exemplo da implicação entre cultura e os jogos de linguagem, dá o seguinte exemplo, auto-explicativo: (No original, p. 09-10): “You talk in entirely different terms of the Coronation robe of Edward II and of a ‘dress suit.' What did they do and say about Coronation robes? Was the Coronation robe made by a tailor? Perhaps it was designed by Italian artists who had their own traditions; never seen by Edward II until he put it on. Questions like 'What standards were there?', etc. are all relevant to the question ‘Could you criticize the robe as they criticized it?'. You appreciate it in an entirely different way; your attitude to it is entirely different to that of a person living at the time it was designed. On the other hand ‘This is a fine Coronation robe' might have been said by a man at the time in exactly the same way as a man says it now.”
131
nos escritos sobre a certeza, lavrados bem próximos à sua morte249. É a partir destes textos
póstumos que se examina, normalmente, suas relações com um eventual ceticismo, pouco
avaliadas presente estudo. Em segundo lugar, é preciso reconhecer que a reviravolta
pragmática empreendida pelo filósofo austríaco não constitui um ponto final, senão um ponto
de partida para diversos desenvolvimentos teóricos, muitos deles, inclusive, com conclusões
mais positivas que a de Wittgenstein, sobretudo quanto ao papel da filosofia e à possibilidade
de justificação dos juízos éticos.
Ao limitar-se o estudo da filosofia da linguagem comum ao seu limiar, não
se relega, como irrelevantes, tais desenvolvimentos, tampouco se afirma a sua inutilidade no
que se relaciona ao discurso prático e até mesmo à compreensão do direito, mormente tendo
em vista o alcance e a influência da teoria habermasiana em diversas reflexões jurídicas e os
diversos estudos jurídicos de cunho analítico, que pressupõe esta reviravolta. A limitação aqui
proposta decorre de um corte metodológico preciso, marcado pela crença de que tal filosofia,
em especial pelo seu caráter inaugural, já fornece cabedal teórico para um exame e um
diagnóstico, senão completo e definitivo, ao menos possível e útil das aporias levantadas no
capítulo anterior.
Elaborar este diagnóstico não consiste, todavia, em projetar no direito a
mudança de paradigma e engendrar, a partir desta projeção, uma nova forma de lidar com o
conceito de dignidade humana, mas situar-se em um momento imediatamente anterior a tais
atos, abrindo caminho para eles. Elaborar tal diagnóstico é abrir alternativa, concretamente, à
proposta ontológica e examinar, através da análise do uso comum do termo “dignidade” e da
forma como se estruturam as perguntas e respostas jurídicas a respeito da dignidade, em que
medida esta mesma pergunta abstrata pela dignidade humana apresenta-se como fruto de
ilusão e de mal-entendidos sobre o uso da nossa linguagem. Nessa tarefa, objeto do próximo
capítulo, será necessário retomar não apenas os usos jurídicos, mas também a filosofia
wittgensteiniana, agora sob o seu aspecto terapêutico.
249 Disponível em tradução portuguesa, da Edições 70, sob o título “Da Certeza”.
132
CAPÍTULO 3 – UM DIAGNÓSTICO POSSÍVEL
For me on the contrary clarity, transparency, is an end in itself. I am not interested in erecting a building but in having the foundations of possible buildings transparently before me. (Wittgenstein. Culture and Value.)
3.1 O caráter peculiar da dignidade
Iniciou-se o capítulo anterior apontando, sob inspiração de Warat, ainda que
de forma rápida, um descompasso entre a teoria geral do direito e a dogmática jurídica no que
tange ao modo de lidar com os seus conceitos, atribuindo-se à dogmática uma orientação
realista e à teoria geral do direito a associação com o que se poderia chamar de teses
nominalistas. Em um plano mais específico foram analisadas as distinções entre definições
nominais e definições reais, assentando-se que as primeiras aproximam-se, ao menos em
alguma medida, das estipulativas, próprias de uma determinada ciência, enquanto as segundas
traduzem uma pretensão de travar conhecimento total com os atributos essenciais das coisas.
Das definições, o exame avançou para as discussões a respeito do significado, concluindo-se
com a reviravolta de Wittgenstein, que permitiu superar várias questões, inclusive pondo em
xeque a possibilidade de uma definição dissociada do uso específico de um determinado
termo. Lá ficou evidente, outrossim, que as definições lexicográficas não constituem senão
um catálogo dos usos registrados, que de forma alguma substitui o uso da linguagem nos
variados jogos dos quais se compõe. É só na dinâmica destes jogos que um determinado
significado pode ser aferido e só nestes faz sentido tratar-se de significado.
Quando Warat analisa, já em outra obra, as definições reais e sua correlação
com o direito, qualifica como alienante a pretensão de produzir critérios significativos que
revelem os atributos essenciais da coisa e vincula tal pretensão a “inconscientes tendências
jusnaturalistas” dos juristas, tendências que teriam sido revertidas a partir da projeção, no
direito, das modernas teorias sobre definição, desmistificadoras do essencialismo no sentido
de que esclarecem, pragmaticamente, a função das definições no ato de interpretação
133
(WARAT, 1995, p. 58-59)250. Buscar a essência dos termos jurídicos constituiria, segundo
Warat, parte de um mecanismo de fetichização que se caracteriza pela tentativa de apresentar
uma base real para problemas de valor e de justiça; as análises desenvolvidas a partir da
filosofia da linguagem ordinária teriam contribuído para desvelar tais intenções do emissor,
sobretudo porque revelam a carga emotiva contida nos conteúdos valorativos, o que
desemboca na discussão travada por Warat a respeito dos estereótipos e das definições
persuasivas (WARAT, 2005, p. 69-74). Aqui, o autor argentino salienta que as definições
persuasivas encobrem juízos de valor sob a aparência de definições empíricas e que
normalmente se valem de estereótipos, expressões que, a exemplo de “abuso de direito”,
“legítima defesa”, “democracia” e “segurança”, apresentam uma anemia significativa e que
não apresentam, à margem de um ato de valoração, uma denotação clara251.
É possível que uma análise ideologicamente crítica a respeito da dignidade
da pessoa humana, centrada nas intenções do emissor, permita qualificá-la como um
estereótipo, termo cuja carga conotativa apresenta associações tão fortes que a sua mera
evocação já desperta reações de comportamento ou de opinião nos ouvintes, e que se
qualifica, precisamente, por se haver tornado esclerosada ou ausente a significação de base.
Embora a discussão em torno da dignidade centre-se, normalmente, não na esclerose da
significação de base, mas em sua riqueza excessiva (MALUSCHKE, 2007, p. 95-96), há de se
reconhecer que a linha que separa uma e outra ideia é extremamente tênue, o que pode ser
constatado, inclusive, nas inúmeras críticas acerca de a dignidade haver se revelado como
conceito inútil no campo do direito e da ética. Não se enveredará, contudo, pelo caminho de
fazer uma análise do uso emotivo da dignidade, embora esta constitua uma aproximação
bastante razoável para explicar, ao menos em parte, as ocasiões em que a dignidade opera
como um “conversation stopper” (item 1.4.3).
Ao se ultrapassar, no capítulo anterior, a díade definição real/definição
nominal, que representaria, segundo Warat, o descompasso entre a dogmática e a metodologia
jurídica, não se atuou com intuito de demarcar as limitações da teoria jurídica, nem a
250 Para Souza (2005, p. 277) estes desenvolvimentos da filosofia da linguagem teriam implicado a percepção do caráter veladamente ideológico das definições reais, postulando-se em termo de essência aquilo que se reputa importante sob o ponto de vista prático. 251 Ele assim define estereótipo: “Estereótipo é uma expressão ou uma palavra que pretende gerar adesões valorativas, comportamentos ou opiniões a partir de um processo de significação, no qual o receptor da mensagem a aceita de modo acrítico, baseado em solidariedades significativas epidérmicas”. (WARAT, 2005, p. 72)
134
tendência objetivante geral dos juristas quando tratam dos próprios conceitos252, mas pela
tomada de consciência de que as peculiaridades da dignidade da pessoa humana não
permitiam tomá-la como um conceito jurídico ordinário. Mesmo quando positivada
expressamente, a exemplo do Brasil e da Alemanha, a dignidade da pessoa humana continua
sendo considerada um conceito misto, que não se resolve apenas no plano jurídico e que
continua, em grande parte, a remeter, direta e necessariamente, à condição e à essência do
homem ou, ao menos, a uma condição pré-jurídica. Esse tratamento diferenciado está em
consonância com a posição de peculiar predominância da dignidade apontada no primeiro
capítulo, no qual ela ressoa não como um conceito jurídico, mas como o conceito que
fundamenta os direitos humanos e, de certa forma, o próprio sistema jurídico253.
3.2 A pergunta pela essência
No primeiro capítulo, sem qualquer tentativa de definir o que venha a ser
dignidade, tentou-se fomentar uma visão ampla e geral a seu respeito, pautada na exploração
252 Jehring já fez tal crítica de maneira muito mais agradável e eficiente há cento e quarenta anos atrás. Conforme nos reporta Adeodato (2012, p. 326-327), Jhering ironiza, na obra O jocoso e o sério na ciência do direito: um presente de natal para o público jurídico, as próprias tendências idealistas pretéritas e a Jurisprudência dos Conceitos da qual fez parte. Na quarta parte desta obra, denominada No paraíso conceitual dos juristas – uma fantasia, Jhering simula a morte e a visita a tal paraíso, onde não há luz, já que os conceitos jurídicos tem luz própria e os teóricos do direito conseguiriam ver melhor na escuridão. É importante ressaltar que a crítica de Jhering, aqui, é feita diante de um cenário distinto e volta-se para o distanciamento entre a teoria e a prática jurídica, tendo como alvo principalmente a pirâmide lógico-conceitual da Jurisprudência dos Conceitos, de ápice idealista e desenvolvida sob a influência do racionalismo do século XVIII (LARENZ, 2012, p. 25-27). 253 Aqui não parece incorreto reconhecer a persistência de um certo idealismo, combatido por Jhering e mencionado na nota anterior. Esse idealismo, no estágio atual do direito, é responsável, conforme Miaille (2005, p. 51-55), pela desvinculação de uma determinada noção jurídica do fenômeno social que a criou, remetendo a uma outra noção jurídica, a uma outra instituição ou a uma outra ideia e afeta, em alguma medida, inúmeras instituições, a exemplo do contrato, do casamento, do Estado etc. Mesmo nesse quadro idealista mais amplo, todavia, deve-se reconhecer que a dignidade transparece como conceito distinto dos demais, tendo em vista que continua a ocupar uma posição de destaque dentro do sistema. Consoante ressalta o autor as ideias, em conformidade com essa tendência idealista, tornam-se explicação de tudo e vão se destacando do contexto geográfico e histórico que as criou, tornando-se um conjunto de explicações universalmente válidas (universalismo), de modo que os termos que as exprimem vão se tornando abstratos a ponto deixarem de pertencer à sociedade que os produziu, quando se os supõe expressão da racionalidade universal. No contexto do direito, uma das principais formas através da qual esse universalismo se revela é justamente no humanismo, compreendido pela referência constante a um homem universal e eterno em sua essência. Pressupõe-se, neste humanismo, uma natureza humana comum, constituída pelas mesmas ambições, necessidades e objetivos, o que acaba resvalando em um europeocentrismo, já que é a partir do direito moderno e ocidental que se avaliam as instituições de outros sistemas. Embora o autor não mencione, expressamente, a dignidade da pessoa humana, – o que provavelmente se explica pelo fato de a obra ter sido escrita na França da década de setenta, bem antes de a expressão dignidade da pessoa humana adquirir uso constante no discurso jurídico naquele pais, o que só ocorreu na década de 90 – a pertinência ao presente estudo é evidente, alinhando-se, inclusive, com as dificuldades enfrentadas no primeiro capítulo quando da tentativa de caracterizar a dignidade como fundamento dos direitos humanos. Saliente-se que, segundo Miaille, a perspectiva de um tal idealismo desemboca numa concepção linear e progressista da história, o que foi delineado como a consideração de que existiria uma “marcha da humanidade” (MIAILLE, 2005. p. 55).
135
de ao menos três aspectos que se apresentavam problemáticos: 1) em um primeiro plano,
tratou-se dos óbices que se apresentam quando se tenta tomá-la como fundamento racional de
um determinado rol direitos humanos universais, questionando-se, mais propriamente, em que
medida ela poderia servir de fundamento para a universalidade de tais direitos; 2) em
sequência, discutiu-se como esse papel, desempenhado pela dignidade nessa seara, qual seja,
o de ponto de convergência e de ruptura metodológica entre conceito e fundamento dos
direitos humanos, repercutia dentro de um determinado ordenamento jurídico, centralizando
no conceito de dignidade a tensão entre direito positivo e direito natural; 3) por fim, trouxe-se
a lume algumas aproximações dogmáticas a respeito da dignidade e algumas análises de
caráter bastante geral sobre as tendências na aplicação do conceito, mormente com intuito de
mostrar que a sua operacionalização concreta permanece problemática. Ao final, sustentou-se
que no pano de fundo de boa parte dessas controvérsias estava a referência a uma essência do
homem, nomeada pela dignidade e cuja definição se revelava problemática.
A última assertiva não implica dizer que os problemas enfrentados sejam
decorrentes do fato de todas as abordagens jurídico-teóricas da dignidade pressuporem-na
vinculada ao valor intrínseco do homem. Tal afirmativa constituiria um contrassenso diante
do fato, já destacado, de que subsistem ao menos dois modelos bem contrastados de
dignidade. Segundo Alexandrino (2010, p. 21-22), Luhmann foi o primeiro a evidenciar a
possibilidade da existência destes dois modelos, distinguindo entre um ontológico, de raiz
aristotélica e seguido pela grande maioria da dogmática254, no qual a personalidade se
interpreta como substância255 , como ente que exclui sua própria negação e impõe-se
anteriormente ao social, e um funcionalista, sugerido por ele, em que a dignidade é entendida
como resultado bem sucedido de representações difíceis e de uma contínua cooperação social.
Essa mesma distinção está na base da diferenciação, que se tornou corrente na Alemanha,
entre a teoria da “dádiva” (Mitgifttheorie), que encerra as tentativas de considerar-se a
dignidade como a qualidade particular ou propriedade concedida ao indivíduo pelo seu
criador ou pela natureza, no bojo da qual se inclui a base kantiana, e a teoria da “prestação”
254 Quando analisa a abordagem dogmática da dignidade, baseada em uma essência, Luhmann (2010, p. 146-147) acaba por concluir que se torna uma fórmula vazia. Em um ponto, aponta contradição entre a dignidade ser da essência do homem e o homem ter direito à dignidade, proposição sustentada por Hans Carl Nipperdey e que, pode-se acrescentar, é tomada acriticamente em diversos sistemas jurídicos. Em sequência, analisando a proposta de Dürig em relação à fórmula objeto, chega à mesma conclusão alcançada por Hoerster, de que se trata de uma fórmula vazia e, enquanto tal, implica meramente em competência para formular leis. 255 O sociólogo alemão visualiza, aqui, uma raiz escolástica, mencionando a Summa Theologiae de S. Tomás de Aquino, em que o homem comparecia como substância individual de natureza racional. (LUHMANN, 2010, , p. 145).
136
(Leistungstheorie), em que a dignidade é produto do agir em sociedade, binômio ao qual
Hasso Hoffmann acrescentou a dignidade fundada no reconhecimento social, em que o
conceito não surge como uma substância, ou como produto de uma prestação, mas como um
termo relacional ou comunicacional, uma promessa e pretensão de reconhecimento recíproco,
baseada na solidariedade entre os homens, uma categoria de co-humanidade, enfim
(ALEXANDRINO, 2010, p. 24-25). A essas teorias, qualificáveis respectivamente como
absolutizadoras e relativizadoras, podem ser acrescidas as já mencionadas teorias que negam
a dignidade do homem como valor central, dentre as quais merecem destaque o utilitarismo e
o marxismo256.
A existência destes dois modelos pré-jurídicos, entretanto, não contraria os
prognósticos problemáticos acerca da dignidade, feitos no primeiro capítulo, especialmente
por dois motivos: por um lado, há de se reconhecer, como fartamente demonstrado, a clara
preponderância do primeiro dos modelos no pensamento jurídico, remetendo-se a dignidade a
uma essência do homem e à própria natureza humana; por outro, deve-se observar que, a
despeito de sua disparidade, ambos partilham um ponto de arranque comum, apresentando-se
como respostas variadas a um mesmo questionamento pré-jurídico, estruturado no modo
típico da filosofia ocidental clássica e que poderia ser resumido na fórmula: “o que é
dignidade?” ou “o que significa dignidade?”. É este o moto sob o qual se desenvolvem grande
parte das elucubrações jurídicas a respeito da dignidade e é ele que subjaz, ao final, às
dificuldades apresentadas no capítulo 1, que somente se agravam com a justificação na
natureza humana.
Quando a dignidade, inserida no discurso jurídico, transluz como ponto de
ruptura entre conceito e fundamento de direitos humanos universais ou, no plano interno,
ponto de tensão entre imanência e transcendência, o que está sob foco é a medida em que um
discurso unívoco, pautado pela tentativa de definição de uma essência pré-jurídica subjacente
ao conceito, interage com uma construção propriamente jurídica deste mesmo conceito, o que
256 Segundo Alexandrino (2010, p. 26-28), as absolutizadoras relacionam-se ao uso da dignidade como conversation stopper, ou knock-down argument e nesse grupo ingressam as concepções jusnaturalistas, as abstratizantes baseadas no idealismo kantiano – que não deixam de ser jusnaturalistas (SAMPAIO, 2010, p. 55) – além de todas aquelas que pressupõe uma ordem transcendente ou objetiva de valores. Dentre as teorias relativizadoras incluem-se, no plano filosófico, as que visualizam a dignidade como tarefa do indivíduo, como resultado do seu comportamento ou como responsabilidade pelo uso que fizer de sua liberdade, enquanto no plano jurídico tal constitui norte das teorias da “prestação” e do “reconhecimento”, das explicações de base analítica como a de Alexy, das explicações de feição positiva ou cultural e de todas aquelas em que possível reconhecer a condicionalidade do conceito.
137
parece ocorrer de modo distinto de acordo com o plano em que se a visualize. No plano dos
direitos humanos universais tal interação resulta aparentemente simples: para que se
determine em que medida a dignidade constitui o fundamento de tais direitos – ao menos no
sentido de fonte de validade – tem-se a impressão de ser imprescindível a delimitação do que
é a dignidade, qual o seu próprio fundamento e, como consequência, qual o rol de direitos a
partir dela justificável. Em uma tal perspectiva, só estabelecendo-se o que seja dignidade da
pessoa humana seria possível justificar, na sua esteira, determinado rol de direitos humanos
universais. Já quando se trata de delinear a dignidade dentro de um determinado ordenamento
o problema parece ganhar complexidade, pois se somam, enquanto contributos de relevo, a
posição atribuída à dignidade neste determinado ordenamento, as demais normas
constitucionais e infraconstitucionais que com a dignidade interagem neste sistema jurídico, a
variedade de funções que desempenha, especialmente enquanto princípio jurídico e, por fim, a
variedade de casos concretos em que a dignidade é chamada a atuar. Em tese, a depender da
maneira como se delineie cada um destes contextos, a caracterização jurídica da dignidade
pode variar257.
A variação de contexto não é suficiente, entretanto, para que se afaste a
questão central já aventada no primeiro capítulo, que permitiu caracterizar a dignidade como
o elemento de relevo na tensão entre imanência e transcendência e que consiste, em última
instância, no exame do grau em que uma caracterização pré-jurídica da dignidade é tomada
como cogente quando se relaciona com sua interface propriamente jurídica. A utilização da
definição kantiana da dignidade, sobretudo pelo direito alemão, o recurso à história do
conceito, a referência à condição humana, ao valor inerente a cada ser humano e à riqueza
conceitual, a prevalência de uma aproximação intuitiva e negativa do conceito, o seu caractere
absoluto e a conclusão, não infrequente, pela indefinibilidade deste mesmo conceito são
apenas facetas desta relação complexa entre uma concepção juridicamente útil e a reverência
diante de uma essência metafísica, essência esta que não apenas subjazeria platonicamente no
257 Alexandrino (2010, p. 15-16) traz uma compilação das estratégias que a “Ciência do Direito Constitucional” tem proposto para apurar e fixar o conceito de dignidade, arrolando (1) a ideia, preponderante na jurisprudência alemã, de que o conceito, embora “reentre” no núcleo dos direitos fundamentais básicos, só pode ser construído de forma negativa, segundo a fórmula kantiana do objeto; (2) a proposição de Peter Häberle, de que a dignidade deve ser definida de baixo pra cima; (3) a proposta de que seria suficiente um conceito mínimo, ou mesmo nulo, de dignidade e, por fim, outras construções compósitas (como a de Ingo Sarlet) ou mais extensas em conteúdo e consequências, como a que traz em nota de rodapé, de Paulo Otero.
138
conceito, mas também – e essa é uma das grandes dificuldades, a medida que acirra a
reverência – no próprio homem258.
3.2.1 Os diferentes pontos de partida
É natural que, achando-se a ideia de dignidade integrada explícita ou
implicitamente em diversos ordenamentos jurídicos na condição de princípio, exista a
tendência de buscar uma definição substantiva da palavra259, tarefa que se pode dizer, dada a
diversidade das respostas possíveis, potencialmente interminável (HENNETTE-VAUCHEZ,
2008, p. 4) e que se aninha, ao final, na problemática da interpretação jurídica. Mesmo
quando se considera, todavia, uma resposta estritamente jurídica, sustentada em um ato
interpretativo, tal atividade não se revela unívoca e ao menos três pontos de partida distintos,
embora relacionados, podem ser reconhecidos: a) em um primeiro contexto – e é neste que se
entroniza primacialmente a tensão entre imanência e transcendência – pode surgir o
questionamento abstrato sobre o que é, no sentido jurídico, a dignidade da pessoa humana,
cuja resposta estará relacionada a uma pretensão de correção interpretativa em que se
pretende compatibilizar, por um lado, a inserção do termo dentro de um determinado sistema
jurídico, com toda a sua complexidade, e por outro lado o respeito a uma concepção pré-
jurídica de dignidade, condicionante, ou não, da resposta jurídica; b) em uma segunda
camada, a resposta ao que é dignidade, no sentido jurídico, surge, como resultado do exame
empírico realizado sobre a doutrina e a jurisprudência, atuais e pretéritas, e acaba
confundindo-se com o questionamento acerca de como a doutrina e a jurisprudência
compreendem a dignidade260; c) por fim, em uma terceira via, mais consentânea com a
258 Aqui, de certa forma, parece correto afirmar que a dignidade constitui um vestígio dos a priori abstratos que marcaram a ideia de direito em sua constituição pré-contemporânea a que faz referência Miaille (2005, p. 39-40). Segundo este autor, o direito, em seu início, era capítulo da teologia e, laicizado a partir da Renascença, não tem sua situação modificada substancialmente, já que a abstração permanece, substituindo-se a Teologia pela Metafísica. Embora o positivismo tenha sucedido ambas, a libertação é apenas parcial, já que remanescem alguns vestígios no estudo jurídico. É justamente no capítulo destes vestígios que a dignidade se encaixaria. 259 Hennette-Vauchez (2008, p. 3-4), discutindo sobre o princípio da dignidade humana, após salientar o desacordo da doutrina quanto ao seu significado jurídico, enumera diversas concepções adotadas por diferentes autores. A depender do viés doutrinário, o princípio da dignidade: derivaria da antiga proteção legal da honra e reputação; seria a tradução do imperativo kantiano que determina tratar o homem como fim e não como meio; variaria entre a atribuição de direitos, baseada na autonomia, e de restrições, fundada em valores sociais; por fim, poderia operar em três níveis, quais sejam a dignidade da espécie humana em sua inteireza, a dignidade de um determinado grupo humano e a dignidade do indivíduo. 260 Acredita-se ser sobretudo nesta camada que se centra, por exemplo, o estudo de Hennette-Vauchez acima mencionado, em que se propõe demonstrar, a partir sobretudo da análise de inúmeros julgados, que o conceito jurídico contemporâneo de dignidade afasta-se daquele surgido ao fim da segunda guerra mundial, constituindo, mais propriamente, uma revivescência do conceito antigo dignitas, conforme o qual a dignidade era tomada
139
experiência jurídica cotidiana, a resposta à pergunta “o que é” transparece como um exercício
pendular e bastante variado entre os dois percursos anteriores, o que envolve o problema das
fontes do direito, as pretensões do intérprete e uma constante tensão entre, de um lado, o já
assentado doutrinária e jurisprudencialmente e, de outro, uma pretendida correção
interpretativa.
É claro que nenhum dos dois primeiros modelos ocorre de forma pura e que
as possibilidades interpretativas concretas constantes do primeiro cenário são de uma
complexidade dificilmente apropriável em uma descrição sintética, nela se imiscuindo,
principalmente, a resposta ontológica. Não se pretendeu, contudo, com a classificação
sumária, elaborar modelos interpretativos factíveis: o intuito foi tão somente o de destacar
como a resposta jurídica à pergunta “o que é dignidade” pode partir de bases distintas e
chegar, em decorrências destas bases, a resultados igualmente distintos. Também não se
pretendeu, com a singeleza da descrição feita acima, afastar como desimportante o fato de que
a interpretação é demandada, na maior parte das vezes, diante de um caso concreto e envolve
– ou ao menos pode-se considerar que envolva – pretensões do intérprete, considerações
sobre a racionalidade intrínseca ao sistema, modelos de argumentação jurídica, intersecção
entre fatos e norma, justificação racional das decisões, pretensão de correção e justiça do
sistema jurídico etc. Embora se reconheça que todos estes fatores influirão, decerto, na
resposta final engendrada diante de uma determinada lide concretamente considerada,
acredita-se ter sido destacado, suficientemente, que o ponto central, e que confere
especificidade ao conceito jurídico de dignidade, é a circunstância de a construção jurídica
deste conceito, mesmo diante de um caso concreto, apresentar-se sob forte influência, via de
regra, de uma objetividade pré-jurídica.
3.2.2 Uma aproximação wittgensteiniana
No primeiro capítulo foi feito, sobretudo, um exame consentâneo com o
segundo modelo, analisando-se as respostas obtidas, principalmente pela doutrina, para a
pergunta sobre o significado jurídico da dignidade. O exame não teve por finalidade,
entretanto, descrever, a partir destas respostas, o que seria juridicamente a dignidade, mas tão
somente colher elementos que demonstrassem como as respostas jurídicas apresentam um como um status gerador de obrigações, inclusive para consigo mesmo, e tinha uma natureza dupla, pública e privada.
140
apelo filosófico e metafísico ou, mais precisamente, em que medida uma concepção
ontológica, – e aqui utiliza-se a expressão ontológica com o sentido amplo que se firmou na
doutrina jurídica – metafísica e filosófica da dignidade acha-se presente, de forma relevante,
na formação de um conceito jurídico, bem como quais os problemas por ela acarretados.
Assentados desta forma os resultados obtidos no primeiro capítulo, fica
evidente como o exame lá realizado revelou, através da problematização, de que forma a
construção jurídica do conceito de dignidade e a busca pelo significado do termo sempre
estiveram, em última medida, associados à perspectiva essencialista da linguagem que
permeou a história da filosofia ocidental. Essa perspectiva essencialista pode ser visualizada,
principalmente, quando o jurista recorre à filosofia para encontrar o referencial unívoco do
conceito, mas não se limita a tal aspecto, revelando-se também quando da tentativa de fixação
jurídica de um significado que independa do uso do termo.
A escolha do segundo Wittgenstein, no desenvolvimento do capítulo
anterior, deu-se na perspectiva de entender os matizes essencialistas que se encontram na raiz
de grande parte dos problemas enfrentados em relação à dignidade da pessoa humana. O
jurista, embora não encontre resposta satisfatória ao seu questionamento – o que é a
dignidade? –, não cessa de pressupor a existência de uma resposta unívoca, frequentemente
vinculada à filosofia/metafísica e que lhe descortinaria, de um só golpe, toda a ordenação
jurídica dela decorrente. Buscando esteio no pensamento do Wittgenstein maduro, segundo o
qual “toda uma nuvem carregada de filosofia condensa-se numa gota de gramática” (IF XI, p.
287) e para quem a própria pergunta “o que é” revela-se expressão de uma falta de clareza, de
um incômodo mental (SPANIOL, 1989, p. 83), abrir-se-ia uma via de análise do problema
jurídico que até então se encontrava, em grande medida, vedada pelo recurso à essência. A
partir deste novo ponto de vista, em especial pelo abandono da definição por Merkmale e pela
tomada de consciência de que o significado não pode ser dissociado do uso, seria possível
libertar-se destas pressuposições essencialistas adotadas pelo jurista, deixando-se de presumir
um preenchimento unívoco não apenas para o conceito de dignidade, mas também para o
princípio jurídico da dignidade.
Com esse aporte não se pretende, obviamente, substituir as respostas
jurídicas já existentes sobre o que seja dignidade por outra mais bem elaborada, tampouco
alinhar-se com os que afastam a validade do conceito como incoerente, inútil etc, mas tão
141
somente fornecer alternativa aos obstáculos que foram entrevistos no primeiro capítulo, em
especial quando se trata de lidar com o a priori filosófico do conceito de dignidade, vale
dizer, com a necessidade de um conceito pré-jurídico. Abandonado o caractere da precisão
linguística e a condição meramente representativa da linguagem, encerrar-se-ia a
possibilidade de obtenção de um significado unívoco e universalmente válido, mas se
viabilizaria uma compreensão do termo mais coerente e próxima do modo de vida de cada
sociedade.
3.2.2.1 Um apontamento metodológico preliminar
Deve-se reconhecer que a aproximação que doravante se fará, consistente
em examinar-se o tema jurídico da dignidade sob o prisma da filosofia terapêutica do segundo
Wittgenstein, não é empreendimento simples. As dificuldades não decorrem, contudo, apenas
da problemática conjunção entre um sistema filosófico e um tema jurídico tão relevante, mas
também das peculiaridades da segunda parte da obra de Wittgenstein.
Uma das maiores dificuldades ao lidar com a filosofia do segundo
Wittgenstein consiste, principalmente, em seu caráter aforístico e não sistemático. No prefácio
às Investigações Filosóficas – o único registro de sua filosofia última chancelado por ele
próprio – Wittgenstein consignou que nunca conseguiria fundir seus resultados em um todo
idealizado e que as observações contidas no livro aproximavam-se de um conjunto de
“esboços de paisagens”, em que os pontos tocados eram sempre os mesmos, projetando, a
cada abordagem, novas imagens (IF p. 11). Essa ideia já estava presente, outrossim, em outros
pontos de suas anotações, quando comparou seus escritos a uma gagueira261 e quando afirmou
expressamente que cada sentença que escrevia consistia, sempre, numa tentativa de dizer a
mesma coisa de um modo diferente262.
Essa dificuldade em expressar seu pensamento em um todo contínuo e tal
necessidade de repetir-se sempre sobre um mesmo objeto revelam um duplo aspecto de sua
obra: por um lado, evidenciam que, a despeito da aparente dispersão, subsiste uma vinculação
intrínseca entre os elementos centrais, difícil de ser apreendida e que demanda, sempre, a 261 “I never more than half succeed in expressing what I want to express. Indeed not even so much, but perhaps only one tenth. That must mean something. My writing is often nothing but ‘stammering’.” (CV, p. 16). 262 “Each sentence that I write is trying to say the whole thing, that is, the same thing over and over again & it is as though they were views of one object seen from different angles.” (CV, p. 9)
142
visão através de um novo ângulo; por outro, criam a aparência de uma certa disponibilidade
em seus escritos, que permite ao intérprete, descontextualizando uma determinada passagem,
obter suporte para praticamente qualquer ponto de vista que pretenda defender (STERN,
1996, p. 444) 263 . Quando se empreendeu, no segundo capítulo, um exame geral do
pensamento de Wittgenstein, tentava-se, embora sem a pretensão de afastar completamente a
possibilidade destes equívocos, ao menos firmar uma determinada visão acerca do conjunto
de sua obra madura e estabelecer as bases que permitem abordar, sob a perspectiva anti-
essencialista, o problema da dignidade da pessoa humana. Como importava a visão de
conjunto, não foram tematizados alguns pontos específicos com a profundidade necessária – o
que se fará, em sequência, na medida do necessário, em especial no que tange à repercussão
da desconstrução wittgensteiniana sobre a própria filosofia – tampouco foram discutidas
criticamente algumas interpretações alternativas já existentes a respeito das Investigações,
sobretudo em relação à possibilidade de seguir regras e ao tema da linguagem privada264.
O apego ao sentido originário aqui proposto não desconsidera o fato de que
determinadas ideias podem ser úteis e eficientes mesmo se desconectadas do contexto em que
surgiram, e mais, que podem ser aprimoradas, transformadas etc. O apego é sobretudo
metodológico. Quando Baker e Hacker (1980, p. 320) afirmam que uma das ideias
wittgensteinianas mais exploradas pelos filósofos contemporâneos é o de semelhança de
família, logo complementam, reconhecendo que a “Semelhança de família” é utilizada
atualmente de maneiras não sonhadas por Wittgensiten e para propósitos que ele certamente
263 A possibilidade de descontextualização parece agravar-se quando se tratam das anotações de Wittgenstein que não eram destinadas à publicação e que foram reunidas postumamente. O próprio Wittgensteim reconhecia que tais anotações eram débeis, embora pudessem ter significados ocultos, comparando-as com a atividade de um barbeiro, que tem que manter a tesoura constantemente em movimento até que possa fazer um corte certeiro (CV, p. 75-76). 264 Certamente, uma das interpretações alternativas mais conhecidas da obra de Wittgenstein é a de Kripke (1982), que a constrói a partir da solução para o paradoxo lançado pelo próprio Wittgenstein no § 201 das Investigações, considerado por Kripke não apenas como o problema fundamental das Investigações Filosóficas, mas o mais radical e original problema cético já lançado até hoje. A construção kripkneana pauta-se no paradoxo cético acerca de como seguir uma regra e sustenta que Wittgenstein teria renunciado a uma solução direta, adotando, a exemplo do que já fizera Hume diante do problema da causalidade, uma solução cética para o paradoxo, baseada na regularidade das respostas. Para alcançar sua interpretação, Kripke promove uma reviravolta na organização das Investigações, sustentando que Wittgenstein teria dedicado o que Kripke considera a primeira parte das Investigações (§§ 1-137) ao desmantelamento da imagem agostiniana sustentada no Tractatus, a segunda parte (§§ 138-242) à apresentação do paradoxo e do argumento da linguagem privada e a terceira parte (a partir do § 243) à aplicação do argumento da linguagem privada ao problema das sensações. (op. cit. p. 78-79). Com tal modo de visualizar o trabalho de Wittgenstein, Kripke subverte a interpretação tradicionalmente outorgada, que considera que o argumento da linguagem privada inicia-se no § 243, vinculando tal argumento ao problema de como seguir uma regra e sustentando que se um indivíduo é tomado em isolamento, a noção de uma regra guiando a pessoa que a adota não pode ter qualquer conteúdo substantivo. (KRIPKE, 1982, p. 60-89).
143
desaprovaria. Não se trata, aqui, de criticar tais desenvolvimentos ou usos mais ou menos
contextualizados, mas de reconhecer, em cada um dos conceitos e tema utilizados, a sua
vinculação com o todo da filosofia wittgensteiniana da segunda fase e a circunstância de a
presentarem, de constituírem nada mais que diversos ângulos de visão, a mesma ideia dita
inúmeras vezes, sempre de um modo distinto.
3.3 A composição de um conceito unívoco a partir da variedade de usos
Sustentar-se, como feito acima, que as perspectivas jurídicas e filosóficas
acerca da dignidade têm, de regra, matiz essencialista não significa dizer que elas sejam
completamente alheias à diversidade de usos do termo ou à variância do conceito,
especialmente quando se trata de uma perspectiva histórica. Ao revés, esta variedade histórica
é frequentemente levada em consideração pelo jurista, que não a utiliza, todavia, para o
reconhecimento descritivo da diversidade, mas quase sempre para a composição do conceito
unívoco que se integrará ao universo jurídico. Esta composição conceitual costuma ocorrer
através do reconhecimento de uma evolução do conceito ao longo dos tempos, culminando na
ideia atual de dignidade, – atitude na qual se enquadram boa parte das pesquisas jurídicas –
mas também, por vezes, mediante a atualização do que se considera um dos significados
pretéritos da dignidade, em especial aquele relacionado à ideia de status265.
Observe-se que o reconhecimento da variedade e da riqueza conceitual não se
limita às situações em que o jurista lança um olhar para os usos pretéritos do termo, também
ocorrendo quando se tem por objeto a complexidade dos usos presentes e os variados
contextos em que a dignidade, em especial a “dignidade humana”, é explicada ou torna-se
objeto de discussão. Aqui, entretanto, tampouco se verifica libertação da atitude essencialista
antes mencionada, limitando-se o intérprete a consignar, sob a fluidez de uma
pluridimensionalidade e/ou de uma pluridisciplinaridade, diferentes aspectos de uma
realidade única que subjazeria ao conceito, ainda que de difícil definição266. Poucas são as
265 Vide, por exemplo, o trabalho de Hennette-Vauchez (2008) ao buscar similitudes entre o conceito jurídico de dignidade e o conceito antigo dignitas. De modo semelhante, Waldron (2009a) tenta caracterizar, com esteio na mesma ideia, a dignidade como um status jurídico. 266 Embora Sarlet, como já visto, constitua exemplo importante deste tipo de construção teórica, esta não se resume a ele. Castán (2007), por exemplo, trata a dignidade da pessoa sob o signo de uma multidisciplinaridade, decorrente de a sua caracterização cabal depender da confluência de várias disciplinas (Filosofia, em especial a Moral, Antropologia, Política e Direito), e de uma multidimensionalidade, relacionada a uma dimensão
144
atitudes anti-essencialistas quando se lida com a dignidade da pessoa humana, valendo
destacar a de Alexy (2011, p. 355-356), que cogita da existência e convivência de diversas
concepções de dignidade. O referido autor, reconhecendo a indeterminação do conceito de
dignidade humana, propõe que ele pode ser expresso geralmente através de um feixe de
condições concretas, que devem estar presentes (ou ausentes) para que a dignidade seja
garantida. Algumas dessas condições seriam reconhecidas por consenso, enquanto outras
variariam a depender do indivíduo que as visualize, mas entre as diferentes concepções,267
difíceis de serem classificadas e não totalmente separáveis, haveria algo próximo da ideia
wittgensteiniana de semelhança de família.268
3.3.1 Duas pesquisas históricas possíveis sobre a dignidade
Logo acima se disse que o recurso à história, em se tratando de dignidade da
pessoa humana, busca iluminar o significado atual do conceito, consignando-se uma distinção
entre aqueles que pretendem fazê-lo através de uma evolução conceitual e os que se propõem,
com tal finalidade, a resgatar um dos significados pretéritos de dignidade. Uma segunda
distinção, todavia, parece passar despercebida quando se trata do recurso à evolução e, a
despeito da ausência de limites precisos, é importante que seja feita, considerando os
objetivos do presente trabalho.
Não há dúvida de que um primeiro exame sobre a expressão “dignidade
humana”, corrente no direito, pode ser formulado seguindo-se um padrão estritamente
linguístico, a partir do qual nela se reconhece um substantivo (dignidade) e um predicado
religiosa, em virtude da qual se concebe o homem como imagem e semelhança de Deus; de uma dimensão ontológica, na qual se considera o homem como ser dotado de inteligência racional, consciência de si mesmo e de sua superioridade; ética, no sentido de autonomia moral e; social, que promana da estima decorrente de uma conduta valorada positivamente. Saliente-se que, não obstante tal multiplicidade, a autora não deixa de iniciar o texto considerando que a dignidade é um signo da identidade do ser humano e complementar, adiante, que é uma qualidade de que se predica toda pessoa. 267 Alexy recorre, aqui, à diferença entre conceito e concepção propugnada por Rawls quando trata da Justiça. Rawls (2008, p. 5-6) reconhece que, apesar de haver discordância a respeito dos princípios que devem compor uma concepção pública de justiça, retora da sociedade bem organizada, cada pessoa tem uma concepção própria, de sorte que o conceito de justiça, que não se confunde com as distintas concepções, seria especificado pelo papel que esses diferentes conjuntos de princípios, constantes das diferentes concepções, têm em comum. 268Além da menção expressa de Alexy, registram-se, também em outros autores, a associação entre a ideia de semelhança de família e o conceito dignidade, a exemplo de Mccrudden (2008, p. 679) – que a nosso ver emprega a ideia de modo bem distinto, senão diametralmente oposto, daquele proposto por Wittgenstein ao sustenta-la com intuito de reconhecer um núcleo mínimo universal da dignidade – e Leslie Henry (2011), que empreende um extenso estudo da jurisprudência da Suprema Corte Americana, nela identificando, a partir da ideia de semelhanças de família, cinco concepções distintas para a dignidade.
145
(humana) que o qualifica, determinando o tipo de dignidade de que se trata, ou seja, de
dignidade humana269. É justamente a partir da maneira como estes dois componentes do
conceito se relacionam que se pode delinear duas grandes linhas de pesquisa histórica
possíveis: de um lado, as que se pretendem efetuadas sobre o conceito atual de dignidade
humana, destinadas a uma busca essencialista na história do pensamento e, de outro, as que
tem por objeto o conceito dignidade, desenvolvidas sobre o próprio termo,
independentemente de suas relações – eventuais – com o homem.
De acordo com o primeiro tipo de pesquisa, buscar-se-ia, na história, a
confirmação de uma linha evolutiva do pensamento que tem por norte o valor atualmente
reconhecido ao homem e, portanto, o próprio conceito de dignidade hoje considerado, em sua
vertente humanista. É nessa toada que se percorre o pensamento filosófico desde a
Antiguidade Clássica, sempre na tentativa de compreender como a ideia de valor do homem,
reunida sob o signo unívoco e moderno de uma dignidade humana, desenvolveu-se até atingir
o patamar atual, de universalização dos Direitos Humanos. Já sob a segunda vertente da
pesquisa histórica, o objeto não seria a dignidade humana, i.e. o valor reconhecido no ser
humano ao longo dos tempos, mas o próprio termo “dignidade”, em seus variados usos e
significados construídos através da história. A partir da compreensão destes elementos
históricos é que se faria possível compreender a complexidade e o significado atual do
conceito dignidade em seus variados contextos270.
Assentada a possibilidade desta distinção entre modelos de pesquisa
histórica, o que merece especial atenção, em primeiro plano, não são os resultados distintos
passíveis de serem obtidos a partir de cada um destes modelos, mas sobretudo a circunstância
de tal distinção raramente ser pensada no curso de uma pesquisa jurídica, o que constitui claro
sintoma do caráter essencialista deste tipo de exame. Quando se inicia uma pesquisa a
respeito da dignidade humana perquirindo-se acerca do valor do homem na história271, e se
prossegue examinando os vários usos do termo “dignidade” através dos tempos, fundem-se os
269 Desse modo inicia Lebech (2006) as suas considerações fenomenológicas a respeito da dignidade, alcançando, todavia, resultados bastantes distintos dos aqui pretendidos. 270 Nessa linha, Rosen (2012, p. 7) sustenta haver razões sistemáticas por trás dos diferentes (e muitas vezes opostos) usos do termo dignidade e que, para desembaraçar a ideia, o melhor a fazer seria voltar às raízes históricas do conceito. 271 Peces-Barba Martínez (2003, p. 22-23), por exemplo, inicia o capítulo chamado “La dignidad humana en la historia del pensamiento" recorrendo ao Gênesis e a Antígona com intuito de assentar as raízes da ideia de superioridade do homem. Esse mesmo caminho é seguido por Comparato (1997, p. 8-9), que também assenta a dignidade nas tradições judaica e grega, consideradas parcialmente antagônicas.
146
dois modelos mencionados, o que contribui para o acirramento da entonação essencialista que
alcança, sobretudo, o próprio termo “dignidade”. Nessa linha, dignidade, vista como valor do
homem, é tomada como uma ideia sempre presente, que permeou a história e se foi revelando
paulatinamente até alcançar a projeção ocidental moderna. É evidente que este pensamento,
em que se misturam os dois tipos de pesquisa, pressupõe e reforça a percepção da dignidade –
ao menos no bojo do direito272 – como algo relacionado exclusivamente ao homem. Esta
aproximação acaba por resvalar, normalmente, na ideia de uma essência, presente em todo ser
humano e que lhe garantiria igualdade de tratamento, mas mesmo quando ausente o recurso a
essa essência metafísica, acaba contribuindo para que a dignidade seja tomada como um
conceito unívoco e associada inexoravelmente, do modo essencialista comum à filosofia
ocidental, ao valor do homem273.
Esse resultado essencialista não é exclusividade, todavia, das retrospectivas
que se iniciam examinando o valor do homem na história do pensamento e que misturam os
modelos, também se fazendo presente quando se analisam, preponderantemente, os usos
pretéritos do termo “dignidade”. Mesmo aqui é comum que se construa uma explicação
essencialista, denominada por Rosen (2012, p. 8) como narrativa do “círculo em expansão”
(expanding circle) e que se caracterizaria pela percepção de que a dignidade, outrora
qualidade restrita a uma elite social, estendeu-se até ser aplicada a todos os seres humanos. A
condição essencialista manifesta-se, aqui, exatamente por essa restrição da dignidade ao valor
dos seres humanos, deixando de reconhecer que o conceito, ao longo da história e ainda hoje,
tem outras notas que a ele ainda se integram, impedindo, se não descritas adequadamente,
uma visão clara274.
3.3.2 As origens do termo e sua (ir)relevância
É certo que as tentativas de explicação histórico-evolutivas do conceito
dignidade dificilmente se justificariam sob a filosofia wittgensteiniana, avessa às
272 Por isso, quando a dignidade comparece, na Idade Média, associada à honra, nobreza etc, considera-se que ela constitui, em realidade, uma outra ideia. (MARTÍNEZ, 2003, p. 21). 273 Tal associação entre dignidade e valor intrínseco do homem constitui, como veremos logo em sequência, inequívoca herança kantiana, a partir da qual se assentou, no campo da ética, definição estipulativa de dignidade. Reconhecendo este fato e chegando a falar de um “platonismo kantiano”, confira-se Rosen (2012, p. 10). 274 O próprio autor reconhece que a narrativa do “círculo em expansão” é sedutora e que não traduz uma perspectiva completamente incorreta, mas que deixa de fora elementos importantes, especialmente relacionados ao fato de a dignidade ser utilizada em contextos não relacionados ao homem.
147
explicações275. Um exame sobre a história do termo “dignidade”, todavia, constitui peça de
relevo para o exame aqui pretendido, não apenas por coincidir, ao menos em parte, com o
material filosófico do qual se extraem diversas tentativas de definição jurídica da dignidade,
mas também por permitir uma visão mais ampla do conceito, tendo em vista que muitos
destes usos remanescem até os dias de hoje. Deveras, é muitas vezes a partir deste material,
especialmente dos usos que se outorgou ao termo “dignidade” dentro de determinados
contextos filosóficos – culminando no emprego kantiano no final do século XVIII – que o
jurista tenta situar a dignidade e conferir-lhe forma. Assim, ainda que se decline, por
impertinente, a pergunta abstrata pelo que é a dignidade, não se pode tomar como irrelevante
tal material, tendo em vista ser dele que o jurista extrai as bases para sua resposta ou mesmo,
algumas vezes, a própria resposta. Ademais, embora tal exame histórico seja feito
principalmente sobre teorias filosóficas que se valem do termo “dignidade” – mas que não
versam, propriamente, sobre dignidade276 –, não se pode deixar de reconhecer que tais teorias
já constituem um registro do uso que se outorgou ao termo ao longo da história, tendo
algumas delas, inclusive, espraiado-se, exercendo influência para além de seus estritos lindes.
O primeiro dos problemas que se enfrenta quando se tenta analisar um
determinado termo sob uma perspectiva mundial consiste nas diferenças linguísticas
enfrentadas. Deste o início deste trabalho tentou-se contornar o problema da tradução entre
idiomas através de uma equivalência no uso, buscando-se como referencial a Declaração de
Direitos Humanos de 1948. As limitações dessa proposta de equivalência são evidentes e
foram apontadas, por exemplo, por Waldron (2009a, pos. 363), que põe em xeque a bem
estabelecida prática de traduzir-se “Würde” por “dignity”, ponderando que os termos têm
conotações ligeiramente distintas e que a primeira remete, dada a sua etimologia, mais à ideia
275 Vale consignar que segundo Chauviré (1991, p. 137) Wittgenstein dispensaria, ao agrupar-se os dados para uma visão panorâmica, a hipótese de evolução. Nesse sentido, o próprio Wittgenstein consigna, em seus comentários ao “Ramo de Ouro”, de Frazer, que “A explicação histórica, a explicação como uma hipótese da evolução, é só uma espécie de resumo dos dados – a sua sinopse. Assim como também é possível ver os dados na sua relação uns com os outros e resumi-los numa imagem geral, sem fazê-lo na forma de uma hipótese sobre a evolução temporal” (RO, p. 200). 276 É interessante anotar em relação à dignidade humana que tal expressão, a despeito da relevância assumida nos últimos setenta anos, não constitui, tradicionalmente, um dos objetos de investigação da filosofia, o que pode ser constatado, dentre outros fatores, não apenas pela ausência de referências à dignidade nos dois dicionários filosóficos constantes das referências bibliográficas, mas também na Enciclopédia iluminista de Diderot e D’Alembert (MARTÍNEZ, 2003, p. 46). Reconhecendo fato semelhante, vide Lebech (2006, p. 2) e Rosen (2012, p. 4), que compartilha expressamente a opinião aqui exposta e exemplifica a falta de interesse precisamente pelo fato de a dignidade não constar da Routledge Encyclopedia of Philosophy.
148
de “worthy” que de dignity277. Considerações da mesma natureza poderiam ser empreendidas,
com variações, entre o idioma português e o inglês, como por exemplo a percepção de que a
tradução mais adequada da palavra americana “worthy”, em variados contextos, poderia ser o
termo em língua portuguesa “digno”. Não se vislumbra possibilidade de contornar, de modo
definitivo, tais dificuldades e é importante que fiquem registradas.
Já quando se trata de traçar os contornos históricos de um determinado
conceito, estas dificuldades permanecem e a elas são acrescidos os empecilhos relativos à
pesquisa etimológica, que importam no reconhecimento de uma diferença contextual
relacionada não apenas à diversidade cultural, mas também a um necessário aspecto
diacrônico, de difícil apreensão sem uma pesquisa aprofundada. Efetivando-se um exame
superficial a respeito das origens do termo “dignidade” e do adjetivo correlato “digno”,
obtém-se que ambas tem origem latina, respectivamente nas palavras “dignitate” e “dignu”
(FONTINHA, 1960, p. 590), esta última vinculada, por sua vez, à raiz grega DIK ou DEIK,
que remete à ideia de mostrar (ALENCAR, 1961, p. 198). Assim, dignus estaria em lugar de
dícnus, aquele que se pode mostrar e, portanto, justo, honesto, aquele que merece etc,
enquanto dignitas e dignitátis se vinculariam à ideia de mérito, honra, distinção,
consideração, nobreza, excelência e beleza (ALENCAR, 1961, p. 198). Observe-se que uma
outra raiz da palavra “dignidade” é trazida por Lebech (2006), que assenta que dignitas foi,
paradoxalmente, o termo utilizado no campo da lógica para a tradução latina do termo grego
“αχιοµα”, o que é tomado pela autora como elemento indicativo de que a dignidade (dignity),
a despeito de seu aspecto de mostrar, seria algo a ser tomado, desde sempre, como um
princípio primeiro, que se impõe a si mesmo e não pode ser reduzido ao que o fundamenta.
Uma tal espécie de aprofundamento etimológico, entretanto, especialmente
o último, é de utilidade bastante limitada para o tipo de pesquisa aqui empreendida, inclusive
porque tem como ponto de partida uma perspectiva estática da língua e uma determinada
relação entre a linguagem e a realidade que mais se aproximaria da fenomenologia
heideggeriana pós virada que do pensamento de Wittgenstein ou da matéria jurídica, mesmo
reconhecendo-se, nesta última, um viés essencialista. A pesquisa etimológica, assim, presta-se
mais a firmar uma relação formal de continuidade entre os termos atualmente utilizados em
diversos idiomas e sua raiz latina e é nesse contexto que será levada em consideração. 277 O fato de Waldron referir-se ao uso de Würde por Kant e de empreender esse exame na tentativa de caracterizar a dignidade como um status não afeta a utilidade de seu comentário.
149
3.3.3 Um pequeno catálogo de usos históricos
É comum que as pesquisas jurídicas, pautadas pela consideração do valor do
homem na história do pensamento, cruzem seu caminho com a dignitas latina a partir de
Cícero, que utiliza expressamente o termo (e sua variável dignam) para dar entonação à ideia
da superioridade do homem, especialmente em relação aos animais.
“Ex quo intellegitur corporis voluptatem non satis esse dignam hominis praestantia, eanque contemni et reici oportere; (…) Atque etiam si considerare volumus, quae sit in natura excellentia et dignitas, intellegemus, quam sit turpe diffluere luxuria et delicate ac molliter vivere quamque honestum parce, continenter, severe, sobrie” (CÍCERO, De Officiis, Livro I, XXX)278
É difícil (e desnecessário) elucidar o quanto deste uso específico da palavra
por Cícero – vinculando a dignidade a todos os homens – incorporava-se no uso comum do
termo, mas é certo que, à época, dignidade continuava sendo, preponderantemente, um termo
relacionado a um alto status social, bem como ao tratamento respeitoso e às honras devidas
em virtude deste (MARTÍNEZ, 2003, p. 25). É nesse sentido que o termo fazia-se presente,
inclusive, em outros pontos da obra de Cícero, denotando a ideia de um status particular e
dissociado do tom de universalidade presente no trecho transcrito (ROSEN, 2012, p. 11)279.
Fixado o uso de dignitas como se reportando a um status específico, pode-
se questionar – e comumente se o faz – do que decorre este status e como ele deixou de se
referir a um grupo específico de indivíduos selecionados por sua posição social, função etc,
estendendo-se a todos os seres humanos, indistintamente, pela sua mera qualidade de
humanos. É nessa senda que se desenvolvem boa parte das pesquisas, daqui se originando a
mencionada ideia de um círculo em expansão e a ideia da passagem de uma dignidade
heterônoma (dignidade baseada no cargo, posição social, na semelhança com Deus etc) para
278A tradução que se segue foi feita a partir da tradução para o inglês, contida na obra mencionada (CÍCERO, 1913, p. 108-109): “Disto, vemos que o prazer sensível não é compatível com a dignidade do homem e que nós devemos execrá-lo e afastarmo-nos dele; (...) E se tivermos em mente a superioridade e dignidade de nossa natureza, perceberemos como é errado abandonar-nos ao excesso e viver em luxúria voluptuosidade, e quão correto é viver em frugalidade, auto-negação, simplicidade e sobriedade.” 279 O autor transcreve trecho do De Oratore em que Cícero faz menção a “prazer com dignidade”, claramente reportando-se a um status.
150
uma autônoma, originada no próprio indivíduo (MARTÍNEZ, 2003, p. 27-28)280. É este,
também, o ponto de partida do qual se delineia, como visto no primeiro capítulo, a intuição de
uma marcha constante na história do pensamento e na própria auto-compreensão do homem,
cogitando-se de inúmeras obras filosóficas, políticas e jurídicas que, da Renascença até o
Iluminismo281, trouxeram a ideia da dignidade para mais perto do que há de comum a todos os
homens, com o que se desfez a vinculação entre a dignidade e um status social específico, ao
tempo em que todos, definitivamente, passaram à condição de valiosos.
A visualização dessa fascinante e quase contínua marcha na história do
pensamento não é, de per se, problemática, desde que temperada com a consciência de que a
evolução aqui vislumbrada constitui resultado da aplicação dos critérios de julgamento hoje
considerados válidos. Da atitude de postular-se uma conexão necessária entre esta marcha e o
conceito dignidade, entretanto, não se pode dizer o mesmo. Esta atitude tem por consequência
uma unilateralidade que implica o desprezo tanto de nuances conceituais relevantes como de
diversas concepções que, não obstante tomadas como superadas, sobrevivem (e convivem)
nos dias atuais. Nesse modo de pensar tradicional, parte-se de uma diferenciação entre o
conceito atual de dignidade humana e o conceito dignidade e, pressupondo-se um
preenchimento conceitual unívoco para aquele, deixa-se de lado todos os elementos que não
se relacionem ao núcleo de sentido pré-estabelecido282. Com tal comportamento, engendra-se
um raciocínio cuja consequência última acaba sendo, em grande parte, a reunião dos dois
conceitos, mas desta feita ocorrendo a assimilação do conceito dignidade pelo conceito
dignidade humana. “Dignidade” torna-se, precipuamente, dignidade humana, em sua face
280 Essa mudança é condizente com a concepção de Martínez, para quem os Direitos Humanos (e a dignidade) são conceitos próprios do trânsito à Modernidade. 281 Martínez (2003, p. 30-56), embora tendo por referência mais a idéia pré-concebida e moderna de dignidade que o uso do termo, faz um extenso catálogo de obras renascentistas que exaltam a dignidade do homem, incluindo os italianos Lorenzo Valla (“De Libero Arbitrio”), Angelo Poliziano (“Lamia, la Bruja”), Giordano Bruno (“Expulsión de la Bestia Triunfante”) e Pico de La Mirándola (“Oratio de ominis dignitate”), e os espanhóis Fernán Pérez de Oliva (“Diálogo de la dignidad del Hombre”), Francisco Decio (“De Scientarum et academia Valentinae laudibus”) e Juan Luis Vives (diversas obras). Durante o Século XVII, segundo o autor, teria ocorrido um retrocesso, com a sobrevivência, contudo, de elementos do pensamento renascentista, como em Pascal (“Pensées”), que a vincula à racionalidade, embora mantendo algumas notas de religiosidade, e nos jusnaturalistas racionalistas, a exemplo de Pufendorf, para quem o “homem” supõe, em linguagem ordinária, uma ideia de grandeza, dignidade. Já ingressando na Ilustração, o autor destaca o pensamento de Wolff, que não tematiza expressamente a dignidade, mas pugna por uma universalidade do direito tendo por base a essência comum do homem, além de diversos outros autores iluministas, ainda que não tematizem expressamente a dignidade (Georges Louis Leclerc, Voltaire, Rousseau), culminando em Kant. 282 É nessa linha, por exemplo, que o próprio Martínez (2003, p 28) afirma que a dignidade medieval, de origem externa, heterônoma ou derivada, não é propriamente dignidade humana, porque não é autônoma, não impulsiona o desenvolvimento individual da condição humana e não parte do próprio indivíduo.
151
atual, e todos os vieses incompatíveis tendem a ser afastados, inclusive quando se tenta
elucidar seu significado jurídico.
Fazer um exame não essencialista sobre a história da dignidade importaria,
precipuamente, escapar da armadilha ontológica que conduziu o conceito dignidade a
confundir-se com um atributo necessário do homem, libertando-o para que transpareça em
seus variados contextos, não apenas ao longo da história, mas também nos dias de hoje. A
alternativa extrema deste exame consistiria em meramente descrever, sem a pretensão de
fomentar uma compreensão unívoca do conceito, a totalidade dos usos históricos, tarefa que
encerra, em si, o germe da sua inutilidade e que se revela extremamente dificultosa, tendo em
vista a extensão e variedade de usos. Para que esse exame não essencialista tenha êxito,
todavia, basta dissipar-se a névoa ontológica que cerca o conceito, assentando-se que sua
relação com o ser humano não é necessária e que, mesmo quando utilizado nesse contexto,
remonta a uma variedade de usos que não se encerra em uma ideia fixa e unívoca.
Michael Rosen (2012), ao realizar análise histórica sobre o tema, identifica
três “tipos” distintos de dignidade, um deles relacionado ao status, um ao valor e um terceiro
pertinente à qualificação do comportamento humano. Embora este exame, exposto dessa
maneira, ainda encerre um claro viés essencialista – que transparece na própria identificação
de “tipos” 283 – seus resultados são bastante úteis ao presente estudo, não apenas por
constituírem, ao menos em uma primeira medida, um contraponto à univocidade conceitual e
à relação necessária com o homem, mas também por permitirem a visualização de que
diversos usos do termo “dignidade” conviveram entre si, inclusive na história do pensamento
e em obras teórico-filosóficas.
A dignidade como status, como pôde ser visto, constituiria dos usos o mais
antigo, denotando uma alta posição social, bem como as honras e tratamento respeitoso
devido em virtude desta posição de destaque. Esta é, por excelência, o que se aponta como a
Dignitas antiga e acaba desembocando em uma ideia de dualidade e heteronomia, em que a
dignidade não está relacionada ao sujeito, mas ao cargo/função por ele desempenhados, à sua
283 Esse viés ontológico fica evidente, outrossim, na conclusão alcançada por Rosen (2012, p. 38), de que nos três tipos de dignidade poderia ser visualizada uma “tendência” simultânea à igualdade no fim do século XVIII.
152
posição dentro da sociedade, a um determinado título, uma conquista etc284. Como aponta
Kantorowicz, este uso do termo “dignidade” estava muito presente na terminologia que a
Igreja Católica e o juristas Canônicos desenvolveram na baixa Idade Média, em especial a
partir do Século XIII, quando se valeram da dignidade para distinguir delegações papais facta
personae, feitas mencionando-se o nome do indivíduo e que se extinguia com sua morte, e
facta dignitati, em que o nome próprio era omitido e na qual a delegação persistia mesmo no
caso da morte deste (KATOROWICZ, 1998, p. 233-234)285. Foi dentro desse contexto que
surgiu o brocardo Dignitas non moritur (tb. Dignitas numquam perit), ideia que, segundo
Kantorowicz (1998, p. 239-240), estaria inicialmente relacionada a uma ficção jurídica
racional mas que, posteriormente, adquiriu ares de transcendência, em especial quando se
tratava de interpretar a perpetuidade da Santa Sé.286
Kantorowicz (1998, p. 241-242) prossegue seu exame histórico tentando
elucidar como a ideia canônica da Dignitas foi transferida, no curso do Século XIV, para a
esfera secular, aplicando-se a imperadores e reis287, mas o que impende aqui ressaltar é que a
dignidade, utilizada nesse contexto em que seu significado parece remeter a status, não era
criação do Direito Canônico, mas antes a apropriação, por este, do que parece um uso
comum288, a fim de racionalizar uma determinada teoria.
284 É esta dignidade, baseada em status e em um fator externo, que Hennette-Vauchéz (2008) considera ter ressurgido no conceito moderno de dignidade. A ideia central do autor francês é a de que a Dignitas antiga e a dignidade moderna tem a mesma estrutura, em especial ao demandarem do indivíduo obrigações para consigo mesmo. Na Dignitas essas obrigações surgiriam em virtude do cargo ocupado pelo sujeito, que demandaria respeito dos outros, mas que geraria obrigações do próprio indivíduo, enquanto na dignidade moderna essa dualidade se faria presente pelo reconhecimento da humanidade que todos encerramos, que exigiria respeito, inclusive, do próprio indivíduo que a detém. 285 Segundo Kantorowicz, a teoria canônica da Dignitas adquiriu maturidade em um caso específico, relacionada à delegação conferida aos abades de Leicester e Winchester para atuarem como juízes. Falecido este último, o abade de Leicester aguardou a nomeação de um novo abade para Winchester e então retomou os trabalhos independentemente de nova delegação, conduta aprovada pelo Papa Alexandre III sob o argumento de que a delegação ao abade de Winchester fora conferida para o cargo e não para a pessoa. 286 Ao final, a perpetuidade, que era uma construção jurídica para explicar a subsistência da delegação, acabou sendo relacionada à emanação do poder divino e à imortalidade de Cristo. 287 É interessante notar como este uso da dignidade acabou redundando em um claro viés ontológico, chegando-se a distinguir, no rei, duas pessoas: uma persona personalis, que era a “alma na substância de homem” e uma persona idealis, que era a Dignidade. A Dignitas, assim, transparecia, segundo Kantorowicz, como uma pessoa “ideal”, dotada de existência independente, embora estivesse inseparavelmente “anexada” ao monarca enquanto este vivesse ou reinasse. 288 Exemplo deste uso pode ser observado em Rosen (2012, p. 13), que transcreve trecho de uma carta dirigida pelo Papa Gelasius I ao Imperador Anastasius, em 494, na qual o Papa afirma que, embora o imperador tenha precedência sobre os outros homens em dignidade, continua devendo reverência aos que cuidam dos assuntos divinos.
153
Ao lado deste uso, relacionado a um determinado status, Rosen (2012, p.
15-18) assenta que o termo “dignidade” também era utilizado em um contexto valorativo,
como indicação de que determinada coisa encerra uma ou mais características que se pode
considerar valiosas. Rosen exemplifica com o título da obra de Francis Bacon De Dignitate et
Augmentis Scientarum, em que a dignidade é aplicada para uma entidade abstrata
(conhecimento)289, mas argumenta que este tipo de uso tem raízes profundas, encontrando-se,
por exemplo, na definição que Tomás de Aquino outorgou ao termo em seu Comentários às
Sentenças de Pedro Lombardo, no qual a dignidade é definida como “algo bom por si
mesmo”. Aqui, assenta, a dignidade também não constituiria característica exclusiva dos seres
humanos, mas se relacionaria ao valor – distinto, é verdade – que todas as coisas possuiriam
por ocuparem seu devido lugar na criação divina.290
A invocação dos exemplos acima não deve conduzir à conclusão,
equivocada, de que o uso da dignidade para expressar valor se restringisse a obras filosóficas
ou que a dignidade fosse teorizada especificamente nesse contexto. Ao revés, assim como
ocorria para o tipo anterior, os usos da dignidade em contexto valorativo mencionados não
são, de regra, criação filosófica, mas mera reprodução, em uma obra filosófica, de um uso
comum que parecia já estar espraiado291 e que não se distancia muito, evidentemente, daquele
relacionado ao status292.
É nesse contexto valorativo que se insere, também, a contribuição de Kant,
que é, como visto, o autor mais recorrente quando se trata das tentativas de elucidar o
significado do conceito moderno e jurídico de dignidade humana. A concepção kantiana
difere das anteriores, entretanto, em um ponto fundamental. Enquanto os autores antes
289 Esta obra constitui a tradução ampliada para o latim, feita pelo próprio Bacon, do seu trabalho Advancement of Learning. 290 A despeito desta definição abrangente que Tomás de Aquino conferiu a “dignidade”, normalmente seu pensamento não é trazido à tona em virtude de tal largueza, mas pelo fato de referir-se, expressamente, a uma Dignitas humana, que encontraria fundamento não apenas na semelhança do homem com Deus, mas também na capacidade de autodeterminação inerente à natureza humana (SARLET, 2012, p. 37). Não há dúvida de que essa noção de dignidade aproxima-se, bastante, daquela outra relacionada ao status, mormente tendo em vista que Aquino prevê que o homem decai em dignidade quando delinque, rebaixando-se à condição de besta (SARLET, 2012, p. 55). 291 A difusão desse uso pode ser visualizada na própria obra de Bacon, em que se refere, inúmeras vezes, à dignidade do conhecimento, mas também à da filosofia e do saber (BACON, 2006, p. 19, 44, 63, 71). Rosen (2012, p. 16) traz exemplo do uso por Milton, autor que, em “Of the Doctrine and Discipline of Divorce” (1664), atribui dignidade aos propósitos a que o casamento serve. 292 Parece haver poucas dúvidas de que o status de algo ou alguém normalmente decorre de uma estimativa do valor desse algo ou indivíduo. Concordando expressamente com esse ponto de vista, vide Waldron (2009a., pos. 385).
154
mencionados apropriavam-se do termo “dignidade”, em seu sentido corrente, e
contextualizavam-no com o homem, atribuindo-lhe dignidade em virtude de determinados
caracteres intrínsecos, Kant acaba por teorizar, indiretamente, acerca do próprio termo
“dignidade”, engendrando uma definição que deveria ser qualificada, ao menos sob uma
perspectiva teórica da lógica tradicional, como estipulativa. Em Kant – especialmente no
curso da Fundamentação da Metafísica dos Costumes – a dignidade continua sendo um termo
que se relaciona a um conteúdo valorativo, mas a compreensão comum é incrementada,
associando-se a dignidade a um valor incondicional, que não encontra equivalente. Enquanto
nos outros autores a dignidade remonta a um status valorativo que se aproxima do comum, em
Kant ela diz respeito a um valor incomparável. Daí surge a sua famigerada noção de que, no
reino dos fins, o que não tem preço tem dignidade.
No reino dos fins tudo tem ou um preço ou uma dignidade. Quando uma coisa tem um preço, pode-se pôr em vez dela qualquer outra como equivalente; mas quando uma coisa está acima de todo o preço, e portanto não permite equivalente, então tem ela dignidade.
O que se relaciona com as inclinações e necessidades gerais do homem tem um preço venal; aquilo que, mesmo sem pressupor uma necessidade, é conforme a um certo gosto, isto é a uma satisfação no jogo livre e sem finalidade das nossas faculdades anímicas, tem um preço de afeição ou de sentimento [Affektionspreis]; aquilo porém que constitui a condição só graças à qual qualquer coisa pode ser um fim em si mesma, não tem somente um valor relativo, isto é um preço, mas um valor íntimo, isto é dignidade.
(KANT, 2011, p. 82) Segundo o ponto de vista kantiano, por conseguinte, a dignidade qualifica-
se como um tipo de valor, distinguindo um valor fungível, “precificável”, daquele
incomparável, a que outorga o nome “dignidade” (ROSEN, 2012, p. 21)293. Observe-se que
aqui não se trata da mera associação entre dignidade e valor, nem mesmo da relação mais
específica entre dignidade e valor intrínseco, que já havia sido feita por Tomás de Aquino,
mas do estreitamento de ambas as noções, reservando-se o termo “dignidade” ao valor não
relativo, a aquilo que constitui a condição segundo a qual qualquer coisa pode ser um fim em
si mesmo. E este algo que constitui tal condição é, na perspectiva kantiana, apenas a
moralidade, e a humanidade enquanto capaz de moralidade.
293 O próprio Kant, em outro ponto, assenta a dignidade como um valor absolutamente ímpar: “A própria legislação porém, que determina todo o valor, tem que ter exactamente por isso uma dignidade, quer dizer um valor incondicional, incomparável, cuja avaliação, que qualquer ser racional sobre ele faça, só a palavra respeito pode exprimir convenientemente” (KANT, 2011, p. 83-84)
155
Ora a moralidade é a única condição que pode fazer de um ser racional um fim em si mesmo, pois só por ela lhe é possível ser membro legislador no reino dos fins. Portanto a moralidade, e a humanidade enquanto capaz de moralidade, são as únicas coisas que têm dignidade (KANT, 2011, p. 82).
O sentido de dignidade kantiano, portanto, envolve a formação do conjunto
das coisas que tem valor incondicional por implicarem que algo seja um fim em si mesmo,
conjunto cujo elemento singular é a moralidade e, por extensão, o homem, único ser capaz de
agir moralmente (ROSEN, 2012, p. 23). Em Kant, finalmente, a dignidade passa a relacionar-
se, por definição, ao homem.
Aliar esta definição kantiana de dignidade à sua sobredita influência no
discurso dos direitos humanos não importa em sustentar, todavia, que tal influência cinja-se a
esta nova estipulação de significado promovida pelo mestre de Könisberg. Como visto no
primeiro capítulo, o discurso dos direitos humanos universais, em especial quando se trata de
sua fundamentação, apresenta-se muitas vezes como uma miscelânea de ideias diversas
tendentes a justificar o seu atual conteúdo e é comum que sejam trazidas à tona várias ideias
kantianas relacionadas à sua perspectiva moral, especialmente a autonomia da vontade
enquanto fundamentação da dignidade294 e o seu imperativo prático “Age de tal maneira que
uses a humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre e
simultaneamente como fim e nunca simplesmente como meio” (KANT, 2011, p. 73), do qual
se extrai, como cediço, a fórmula objeto. O tom acrítico desta transposição no que tange ao
imperativo prático já foi objeto de ponderações feitas no primeiro capítulo; a tais
considerações poder-se-ia acrescentar que a utilização do conceito de autonomia no discurso
dos direitos humanos, como bem ressaltado por Rosen (2012, p. 25)295, também padece dessa
acriticidade, tendo em vista que dificilmente encontra par com a perspectiva kantiana a
respeito da autonomia. Enquanto no discurso de direitos humanos a autonomia é tomada
como a capacidade humana de decidir o rumo de sua vida da forma que considerar adequado,
em Kant tal autonomia, elevada à condição de fundamento da dignidade da natureza de todo
294 “Autonomia é pois o fundamento da dignidade da natureza humana e de toda a natureza racional” (KANT, 2011, p. 84) 295 Esta disparidade de significados, que exsurge ao menos como uma possibilidade de interpretação do sentido de autonomia em Kant, conduz Rosen à conclusão de que a importância de Kant, neste particular, consistiria, no mínimo, em ter aproximado, terminologicamente, dignidade e autonomia.
156
ser racional, vincular-se-ia à capacidade de auto-legislação do indivíduo de acordo com as
máximas da moralidade (KANT, 2011, p. 89), o que se revela bastante diverso296.
O que importa aqui assentar, todavia, não é apenas a fidelidade (ou
infidelidade) das propostas atuais à teoria kantiana, mas sobretudo duas circunstâncias
decorrentes desta influência, que são de suma importância para a concepção hodierna de
dignidade: por um lado torna-se natural – ou ao menos parece justificado – a partir de Kant
que se assuma, hoje, ser a dignidade, no sentido completo do termo, apenas a dignidade
humana (ROSEN, 2012, p. 23); por outro, como consequência dela, em conjunção com
teorias anteriores, é verdade, a dignidade foi se assemelhando, paulatinamente, menos a um
conceito definido que a um locus teórico que remete a ideias diversas, sobretudo à de
igualdade e respeito entre os homens, de respeito à autonomia do ser humano e da
necessidade de que este seja considerado, sempre, como um fim em si mesmo,
impossibilitado o seu tratamento como simples meio para outra finalidade.
A despeito da assertividade da definição estipulativa kantiana e de sua
influência no discurso moderno de direitos humanos, tal definição não esgota este pequeno
catálogo de usos e sequer representa um marco definitivo na própria obra de Kant, que não
parece ter renunciado, a despeito da estipulação promovida na Fundamentação, ao uso
corrente do termo “dignidade” na linguagem comum. Na Metafísica dos Costumes, obra
escrita quatorze anos após a Fundamentação, Kant volta a utilizar “Würde” inúmeras vezes,
mas desta feita também contextos que remontam à noção clássica de status, afirmando, por
exemplo, que “seria também inferior à dignidade do chefe do Estado desempenhar o papel de
juiz” (KANT, 2003, p. 160)297; que este comandante supremo não deveria interferir em
assuntos clericais por tais interferências estarem “abaixo de sua dignidade” (KANT, 2003, p.
170, grifo do autor); e que todo ser humano, em uma comunidade estatal, ao menos “possui a
296 Em outro trecho: “Via-se o homem ligado a leis pelo seu dever, mas não vinha à ideia de ninguém que ele estava sujeito só à sua própria legislação, embora esta legislação seja universal, e que ele estava somente obrigado a agir conforme a sua própria vontade, mas que, segundo o fim natural, essa vontade era legisladora universal. (...) Chamarei, pois, a este princípio, princípio da Autonomia da vontade, por oposição a qualquer outro que por isso atribuo à Heteronomia.” (2011, p. 79-80). A autonomia para Kant, assim, relacionar-se-ia ao fato de que a lei moral que devemos tomar como obrigatória é dada por nós mesmos, em virtude de nossa capacidade de legislar universalmente em consonância com o imperativo categórico. 297 Este exemplo de uso e os demais foram conferidos, a fim de verificar a fidelidade na tradução – ou seja, o uso efetivo do termo “Würde” – com o original em alemão disponível em <http://www.zeno.org/Philosophie/M/Kant,+Immanuel/Die+Metaphysik+der+Sitten>,.
157
dignidade de cidadão” (KANT, 2003, p. 173)298. É na própria Fundamentação, entretanto, que
Rosen (2012, p. 29) encontra um uso, por Kant, que remeteria àquilo que considera o terceiro
tipo de dignidade, não relacionada a um valor intrínseco do indivíduo ou ao status, mas ao seu
comportamento, à sua conduta digna. Rosen visualiza esse uso específico quando Kant afirma
ser explicável que “possamos achar não obstante simultaneamente uma certa sublimidade e
dignidade na pessoa que cumpre todos os seus deveres” (KANT, 2011, p. 90), assertiva com
a qual este faria referência não a um caractere intrínseco do homem ou à própria moralidade,
mas a uma qualidade encontrável nas pessoas ao se conduzirem na vida de um determinado
modo (no caso de Kant, cumprimento dos deveres morais).
Rosen desenvolve bastante esta terceira via “comportamental” da dignidade,
sobretudo pela análise da concepção schilleriana em “Grace and Dignity”, onde Schiller
tentaria – segundo Rosen (2012, p. 30) – reconciliar a filosofia moral de Kant com o ideal
pagão de integração entre corpo e mente, e no qual qualificaria a dignidade como
“tranquilidade no sofrimento”. O ponto nevrálgico, em Schiller, seria o fato de a dignidade
constituir um atributo da ação ou da postura do indivíduo, relacionada ao domínio dos
instintos, a uma força de caráter que se manifestaria sobretudo quando se está submetido a
uma situação de sofrimento e se consegue manter a altivez299. A dignidade transpareceria,
assim, como expressão de uma disposição nobre da mente, domínio dos instintos e das
inclinações pela força moral.
O que importa para o presente estudo, todavia, é menos a concepção
schilleriana ou kantiana a respeito desta dignidade comportamental que a própria percepção
deste uso sutilmente distinto do termo, em que a dignidade não se relaciona ao valor
intrínseco e necessário do indivíduo ou diretamente ao seu status social, mas à sua conduta e a
sua postura em sociedade. Em Schiller e Kant, esta conduta com dignidade é teorizada como
aquela que se atém ao cumprimento do dever moral e ao domínio dos instintos e inclinações
individuais no cumprimento deste dever, de forma que a dignidade seria um atributo deste
298 Saliente-se que este último exemplo é utilizado por Waldron (2009a, pos. 398) como confirmação de sua tese, em que aproxima a noção atual de dignidade com a de rank. 299 Note-se que existe uma aproximação grande desta perspectiva schilleriana de tranquilidade no sofrimento com aquela kantiana de cumprimento do dever moral. Em ambos, pressupõe-se que a dignidade resida na superação das inclinações naturais do ser humano. Observe-se, por exemplo, o que Kant assevera a respeito: “Tanto assim, que a sublimidade e íntima dignidade do mandamento expresso num dever resplandecerão tanto mais, quanto menor for o apoio e mesmo quanto maior for a resistência que ele encontre nas causas subjectivas” (KANT, 2011, p.68). A distinção maior entre ambos, segundo Rosen (2012, p. 33), consistiria na visualização da graça, enquanto categoria que valoriza a disposição natural para o fazer o moralmente desejável.
158
comportar-se ou do indivíduo que assim se comporta. O que tais autores propõem, entretanto,
não é uma associação nova entre dignidade e conduta, mas tão somente uma nova teoria a
respeito da espécie de comportamento a que poderia ser atribuída dignidade. Assim como nos
outros dois tipos gerais descritos acima, há indícios claros de que não houve, neste último,
uma estipulação completa de sentido do termo pelos filósofos, mas a apropriação de um uso
comum, teorizando-se a partir de uma situação linguística que parecia já consolidada à época.
Este uso pode ser visto, por exemplo, no ensaio baconiano Of Great Place, no qual, sem
teorizar a respeito da dignidade, afirma expressamente “and by indignities, men come to
dignities” (BACON, 2001), reunindo, em uma só frase, dois dos “tipos” de dignidade: através
de uma conduta sem dignidade (indignities), o indivíduo alcançaria um determinado status
(dignities). Segundo Rosen (2012, p. 12-13), esta associação entre dignidade e
comportamento poderia ser entrevista, todavia, já em período bem anterior, no vocabulário
crítico romano a respeito de arte e retórica, em que Dignitas era utilizado para caracterizar um
discurso majestoso e de grande influência, assim como o orador que o proferia, revelando-se a
atribuição da dignidade em decorrência de um determinado comportamento do indivíduo.
Tal relação entre conduta e dignidade parece estar presente, também, no
pensador italiano renascentista Pico Della Mirandola, cuja concepção de dignidade no
Discurso sobre a Dignidade do Homem constitui forte fonte de influência para o pensamento
jurídico contemporâneo. Em tal Discurso, a dignidade envolvia não apenas a outorga de um
status ao homem, pertinente à sua indefinição ôntica300 e à liberdade dela decorrente, mas
também uma responsabilidade moral relacionada a esta liberdade, importando na demanda de
atualizar sua escolha naquela que lhe permitisse elevar-se de sua condição terrena à realidade
celeste (LOIA, 2006, p. XLIV-XLV). Embora, segundo Loia (2006, L) este não fosse o
aspecto principal da obra, que se notabilizou por abrir caminho à ideia do indivíduo centrado
no poder de escolha, é inegável que deixa entrever como a ideia de dignidade vincula-se,
implícita ou explicitamente, à de comportamento. Seja em Kant ou Schiller, que se referem
explicitamente a um “agir com dignidade”, seja em Pico ou em Cícero (trecho transcrito
acima), que postulam um agir compatível com a dignidade do homem, pode-se perceber como
300 “A natureza bem definida dos outros seres é refreada por leis por nós prescritas. Tu, pelo contrário, não constrangido por nenhuma limitação, determina-la-a para ti, segundo teu arbítrio, a cujo poder te entreguei [...] Não te fizemos celeste nem terreno, nem mortal nem imortal, a fim de que tu, árbitro e soberano artífice de ti mesmo, te plasmasse e te informasses, na forma que tivesses seguramente escolhido. Poderás degenerar até aos seres que são as bestas, poderás regenerar-te até às realidades superiores que são divinas, por decisão de teu ânimo.” (MIRANDOLA, 2006, p. 57)
159
a ideia de comportamento parece ter estado relacionada ao conceito dignidade ao longo da
história.
Encerrado, com a análise do terceiro tipo de dignidade, este pequeno
catálogo de usos históricos, evidencia-se que não se prezou, na seleção de exemplos e na
tipologia dos usos do termo “dignidade”, pela completude ou pela precisão. Os exemplos são
decididamente pontuais, escassos, distribuídos assimetricamente pela história e
provavelmente não tão distintos entre si a ponto de justificar a classificação, que se tomou de
empréstimo de Rosen. Deveras, entre os diversos tipos elencados por este autor subsistem,
claramente, mais similitudes que discrepâncias, e a própria identificação destes tipos parece
constituir uma espécie de retrocesso essencialista no caminho argumentativo aqui
desenvolvido, como será mostrado adiante.
Não obstante, este catálogo geral assume sua importância por dois motivos
principais: por um lado, representa uma primeira fuga da univocidade essencialista que está
associada às aporias descritas no primeiro capítulo; por outro, dá conta da gramática do termo
e da sua complexidade, cuja incompreensão também contribui, em grande medida, para o viés
essencialista e para muitas das dificuldades atuais ao lidar com o princípio jurídico da
dignidade da pessoa humana.
3.3.4 A dignidade na Declaração Universal dos Direitos Humanos: um consenso
pragmático?
Antes de iniciar o exame final, cabe complementar este pequeno catálogo de
usos com um exame do modo como a dignidade ingressou, de maneira mais contundente, no
discurso jurídico. Viu-se no primeiro capítulo que o termo “dignidade”, associado ao homem,
integrou-se definitivamente ao vocabulário jurídico no período do pós-guerra, especialmente a
partir de sua inserção na DUDH e na Grundgesetz alemã. Abundam explicações a respeito
dos motivos para tal introdução, bem como para o concomitante crescimento do discurso dos
direitos humanos, quase todas convergindo para a própria Segunda Guerra Mundial e para o
momento de reconstrução posterior à experiência do Holocausto. É como reação jurídica
praticamente consensual aos erros da Segunda Guerra e ao desrespeito institucionalizado ao
homem protagonizado pelo regime nazista que se considera, até hoje, terem surgido os
160
instrumentos de garantia dos direitos humanos no pós-guerra imediato (SEGADO, 1996, p.
11), bem como a menção inicial à dignidade da pessoa humana301.
Examinando-se com um pouco mais de vagar esse vínculo de aparente
causalidade, todavia, observa-se que ele é muito mais claro em relação à estipulação e
garantia de um determinado rol de direitos humanos, contrários às condutas violadoras, que
no tocante à escolha da dignidade como princípio centralizador desta virada humanista. Em
relação a esta sempre remanescem questionamentos acerca das razões de se ter introduzido
explicitamente, no discurso legal dos direitos humanos, um termo de tão vasta e complexa
história e que não fazia até então, salvo exceções pontuais, parte do vocabulário legal clássico
sobre tais direitos.
Quando se buscam explicações para que o termo tenha sido introduzido em
detrimento de outros, constata-se que boa parte das teorias acerca da dignidade antes
analisadas já representam um princípio de explicação, na medida em que cogitam o
significado inicial do termo na DUDH recorrendo a uma interpretação histórica ou à intenção
do legislador302. Se se considera estar a dignidade vinculada, por sua história, ao valor
intrínseco do ser humano, parece natural que se tenha recorrido a ela quando se pretendia um
revide mundial diante das graves violações ao homem perpetradas pelo regime nazista.303
Aqui se visualizaria o homem em busca de um absoluto, de uma reafirmação do próprio valor,
intrínseco e independente do fenótipo individual.
É fácil perceber, contudo, que isto constitui, apenas, um princípio de
explicação, que não responde cabalmente aos questionamentos. Por um lado, neste modo de
pensar pressupõe-se um significado específico para o termo “dignidade”, o que não é de modo
algum pacífico; por outro, tal tipo de explicação, remetendo ao valor do homem, não dá conta
de elucidar como a dignidade, desempenhando tal papel, pode ser fundamentada ou como se
301 Lebech (1998, p. 29) considera que dignidade era a melhor palavra que os redatores da Carta das Nações Unidas teriam encontrado para expressar o que eles queriam respeitar em cada sobrevivente. 302 Observe-se, por exemplo, que Sarlet (2012, p. 55) sustenta expressamente constituir o artigo 1º da DUDH revitalização e universalização das premissas basilares da proposta kantiana. 303 Aqui, parece-nos, a dignidade representaria todo o “humanismo” e poderia ser-lhe aplicada um raciocínio semelhante àquele desenvolvido por Sloterdijk para tal termo. Este autor alemão afirma que o humanismo, enquanto palavra e assunto, sempre tem um “contra que”, sempre voltou à tona como um empenho para tirar o ser humano da barbárie, havendo, por conseguinte, coincidência entre as eras nas quais o chamado ao humanismo foi mais premente e aquelas em que se sentiu, de forma mais vigorosa, o potencial embrutecedor do homem (SLOTERDIJK, 2000, p, 16-17).
161
vincula a um determinado rol de direitos, especialmente tendo em vista a profusão dos
fundamentos visualizáveis e dos róis de direitos possíveis. Remanescem os óbices pertinentes
ao fundamento dos direitos humanos universais e ao papel que o princípio da dignidade
humana nele desempenha.
É nesse ponto, quando se questionam as razões de introdução do princípio
da dignidade em face da fundamentação dos direitos humanos, que começa a ganhar corpo a
ideia de associá-lo a um consenso pragmático acerca de tais direitos, no bojo do qual a
dignidade funcionaria como um ponto de intersecção entre princípios práticos para a ação e
princípios teóricos a respeito da natureza do homem (LEBECH, 1998, p. 30).
A ideia da inserção da dignidade na DUDH de 1948 como fruto de um
consenso pragmático é decorrente da análise do processo de sua realização, sobretudo em face
da influência exercida pelo pensador católico Jaques Maritain, nos estudos prévios à
elaboração do documento, que ocorreram na UNESCO entre 1946 e 1948.304 Conforme
Abrams e Glendon (1998), Maritain era um dos pensadores mais ativos do comitê formado na
UNESCO e é sobretudo na introdução elaborada para o resultado final dos trabalhos
(MARITAIN, 1948) – a ser entregue ao Conselho Social e Econômico da ONU – que a sua
ideia a respeito deste consenso pragmático se faz sentir. Maritain não descurava da
importância de justificações racionais para os direitos humanos – inclusive partilhando
explicitamente de uma –, mas as considerava impotentes para ensejar um acordo entre
mentes, sustentando, por outro lado, que este acordo poderia ser obtido no plano meramente
prático, a despeito das inúmeras desavenças teóricas305. O católico francês considerava,
todavia, que a mera enumeração de direitos consensuais não era suficiente para constituir uma
efetiva Declaração de Direitos e que esta também deveria cobrir uma escala de valores
304 Consoante reporta Abrams e Glendon (1998), em 1946 a UNESCO reuniu um comitê formado por inúmeros pensadores, que tinham por objetivo estudar a viabilidade de elaborar-se uma carta de direitos para todos os povos e nações, adotando como metodologia inicial o envio de um questionário detalhado para estudiosos e homens de Estado de toda parte do mundo. Posteriormente, à vista das respostas, o Comitê trabalhou na elaboração de um documento dirigido ao Conselho Social e Econômico da ONU. 305 “Where it is a question of rational interpretation and justifications of speculation theory, the problem of Human Rights involves the whole structure of moral and metaphysical (or anti-metaphysical) convictions held by each of us. So long as minds are not united in faith or philosophy, there will be mutual conflicts between interpretations and justifications. In the field of practical conclusions, on the other hand, agreement on a joint declaration is possible, given an approach pragmatic rather than theoretical and co-operation in the comparison, recasting and fixing of formulae, to make them acceptable to both parties as points of convergence in practice, however opposed the theoretic viewpoints.” (MARITAIN, 1948, p. III).
162
(MARITAIN, 1948, p. IX), ou ao menos que se devia eleger um conceito prático, um
diapasão (ABRAMS; GLENDON, 1998) que harmonizasse o conjunto de direitos.
É difícil delinear em que medida o pensamento de Maritain exerceu efetiva
influência na elaboração do texto final da Declaração de Direitos, mas ao menos dois
elementos servem de argumento para aqueles que pretendam defendê-la: por um lado, a ideia
da dignidade envolvida em um consenso pragmático parece ter sido encampada nas
conclusões finais do comitê306; por outro, o redator da Declaração, o jurista francês René
Cassin, reconheceu a necessidade de uma matriz interpretativa e a consignou no preâmbulo e
no artigo primeiro da Declaração, vinculando-a expressamente à dignidade humana
(ABRAMS; GLENDON, 1998). Nesse contexto explicativo, portanto, a dignidade teria sido
introduzida, no documento internacional, como a última palavra de consenso entre aqueles
que defendem crenças bastante opostas, o ponto limite deste consenso prático, padecendo,
nessa esteira, das mesmas dificuldades pertinentes a tal consenso pragmático. Assim como
ocorreria com os princípios práticos para os direitos humanos, concordar-se-ia a respeito da
dignidade, mas não se poderia questionar o porque, sob pena de o consenso ruir (LEBECH,
1998, p. 30)307.
Não há, como se observa acima, elementos suficientes a concluir ou afastar
definitivamente a hipótese do consenso pragmático, mas a viabilidade de tal tese serve, no
mínimo, para ampliar horizontes e permitir, finalmente, ingressar na parte final deste trabalho:
ao lado da hipótese de que a dignidade tenha sido inserida na DUDH com um significado
unívoco e classicamente pensado, é admitida pelos estudiosos, também, a possibilidade de
que tal dignidade não corresponda, exatamente, a qualquer dos modelos teóricos entrevistos,
transparecendo, de outra forma, como um locus de convergência de pensamentos, sem um
status teórico definido. Com tais horizontes abertos, inclusive dentro do pensamento jurídico
tradicional, é possível pensar em uma análise da dignidade sem o pressuposto da
essencialidade, adotando-se como parâmetro a perspectiva wittgensteiniana.
306 Na parte final do texto editado pela UNESCO, no “APPENDIX II”, documento denominado “The Grounds of an international declaration of human rights” os redatores consignam expressamente que “The philosophies of our times, notwithstanding their divergences, have deepened the faith in the dignity of man and have vastly expanded the formula for his happiness; but the differences of philosophies have led to varied and even opposed interpretations of fundamental rights and the practical import of philosophies has become more marked.” (UNESCO, 1948). 307 A autora ressalta, especialmente, a divergência entre defensores e detratores do Direito Natural, ponto que também foi objeto de análise pelo próprio Maritain (1948, p. V), que considerava o contraste ideológico como algo irredutível e sustentava não haver reconciliação teórica possível.
163
3.4 A formação de uma Übersicht
Como resultado das observações feitas na primeira parte deste trabalho,
pôde-se delinear a dignidade humana como um capítulo aporético do nosso cenário jurídico
atual. As dificuldades são muitas e envolvem a multiplicidade de significados, a intersecção
com a filosofia e a metafísica, a aptidão para servir como fundamento dos direitos humanos e,
de um modo mais geral, a sua propriedade para fundamentar decisões jurídicas ou éticas,
sempre tendo como pano de fundo a história do homem, o cenário complexo dos direitos
humanos universais e a nossas tentativas de autocompreensão, que parecem constantemente
objurgadas pelo temor reverencial diante de uma essência metafísica inalcançável, encerrada
na dignidade. O homem, tendo inserido a dignidade como peça chave de seu discurso jurídico
e ético, parece perdido na complexidade do que ele mesmo criou, prostrando-se diante dela
como um rabino perante seu Golem fora de controle.
Quando se convoca o pensamento do segundo Wittgenstein para auxiliar na
compreensão deste cenário, superando-se o paradigma representativo em prol de uma filosofia
da linguagem comum, não se pretende, dentro de uma perspectiva crítica, denunciar a
manipulação privada ou pública da crença nesse Golem, a sua utilização na defesa de
interesses particulares e ideologias, mas estacionar em um estágio anterior a esta denúncia,
qual seja, o da tentativa de enunciar o descontrole desse Golem como fruto de uma confusão,
que pode ser afastada por uma visão panorâmica (Übersicht)308 da nossa própria linguagem.
Essa visada ampla já vem sendo feita ao longo deste trabalho, apontando-se sobretudo os
problemas que envolvem o tratamento atual da dignidade e um pouco da complexidade de sua
gramática. Remanesce visualizar como boa parte dos problemas enfrentados são decorrências
308 A visão panorâmica aqui mencionada constitui a tradução ora utilizada para o substantivo alemão “Übersicht”, cujas derivações “übersichtlich” (adjetivação) e “Übsersichtlichkeit” (substantivização do adjetivo) são utilizados por Wittgenstein nos §§ 92 e 122 das Investigações e constituem, como se verá, elemento importante de sua filosofia. A tradução desses termos, entretanto, raramente é unívoca e varia de acordo com o tradutor. Na tradução brasileira das Investigações o termo “Übsersichtlichkeit” é traduzido por “disposição clara” e “übersichtlich” como “de conjunto” (a tradução de “übersichtilich Darstellung” é “exposição de conjunto” – IF 122). Na 4ª edição em língua inglesa das Investigações Filosóficas a tradução do termo é tematizada expressamente (p. 252), modificando-se a tradução anterior da expressão “übersichtilich Darstellung” de “perspicuous representation” para “surveyable representation”. A mudança, segundo os revisores, destinava-se a respeitar a referência a view e survey contidas no termo alemão. Em obras escritas no idioma pátrio, a opção pela tradução visão panorâmica pode ser encontrada em Spaniol (1989, p. 116) e na tradução do Ramo de Ouro, parecendo-nos adequada.
164
dessa confusão, desse enfeitiçamento pela linguagem denunciado por Wittgenstein, e como
esse enfeitiçamento ocorre concretamente no caso da dignidade humana.
3.4.1 O Método terapêutico
Mesmo considerando-se correta a afirmativa de que a dignidade humana
não constitui, como visto no item 3.3, um dos grandes questionamentos clássicos da filosofia,
não há dúvidas de que o tema avolumou-se enormemente enquanto objeto de interesse
filosófico desde o pós-guerra, período em que a literatura a respeito do assunto alcançou uma
dimensão praticamente inesgotável. É difícil definir se a ideia “moderna” de dignidade
encontra-se em uma relação de anterioridade ou posterioridade em relação à temática dos
direitos humanos309 – relação que se revela ainda mais complicada em face da hipótese do
consenso pragmático –, mas o fato é que tal crescimento doutrinário parece caminhar pari
passu com o crescimento do discurso dos direitos humanos e que o recurso à filosofia para
elucidar o significado, inclusive jurídico, da dignidade humana tem sido uma constante. É na
filosofia que boa parte da doutrina jurídica buscou, nos últimos setenta anos, a resposta para o
que é a dignidade e como ela estaria apta a desempenhar os inúmeros papéis que se lhe
atribui, desde o de ponto de ruptura entre conceito e fundamento dos direitos humanos
universais até o de norma capaz de fundamentar decisões específicas. A complexidade destes
papeis foi parcialmente descrita no primeiro capítulo, não com intuito de esgotá-la, mas com o
duplo propósito de demonstrar como a definição da dignidade assume importância central
nessas aporias e como a resposta parece apontar para fora do direito, ao menos o suficiente
para acarretar uma tensão entre a solução filosoficamente correta e a formação de um conceito
juridicamente operacional. É no cerne dessa controvérsia, que mostra a dignidade como
questionamento extrajurídico, trazendo a filosofia para o centro do processo de resposta, que
se pretende realizar um aporte da filosofia wittgensteiniana, ao questionar o próprio método
filosófico tradicional e propor-lhe, em substituição, uma filosofia “terapêutica”.
3.4.1.1 A crítica filosófica de Wittgenstein e a questão do sentido
No curso da seção 2.4 do presente trabalho empreendeu-se um exame da
filosofia do segundo Wittgenstein tendo como base a sua aproximação entre significado e uso.
309 Retome-se, por exemplo, a lição de Schahter (1983, p. 853) ao considerar que sob o ângulo histórico a dignidade antes refletiria concepções sócio-históricas de direitos e liberdades que as teria engendrado.
165
Embora não se tenha sustentado expressamente que o discurso wittgensteiniano a respeito
desta aproximação constitua uma tese ou teoria filosófica do significado – proposição, de
resto, bastante controversa –, considerou-se, tendo em vista a sequência das discussões sobre
definição e significado realizadas no curso do capítulo, que este constituiria um eixo propício
à apresentação dos principais conceitos de sua filosofia (semelhança de família, jogos de
linguagem, argumento da linguagem privada, seguir uma regra, forma de vida etc).
Este modo de proceder, que encontra suporte nas interpretações mais
clássicas de Wittgenstein, teve como consequência a formação de uma determinada imagem
de sua filosofia, na qual os problemas e soluções foram agrupados em torno da questão do
significado e em que remanesceram desfocadas – mas não completamente apagadas, ressalte-
se – a crítica de Wittgenstein à filosofia tradicional, o método filosófico empregado pelo
mestre vienense e a questão do sentido das proposições, matérias que constituíam temas
recorrentes da sua filosofia desde o Tractatus (como se viu na seção 2.3). É difícil julgar se
algum dos aspectos da filosofia wittgensteiniana, em especial a sua crítica filosófica, merece
as luzes da ribalta em detrimento dos demais310, mas é chegado o momento de trazer estas
questões pendentes para o foco, o que se faz não apenas por considerá-las contraparte
essencial da reviravolta wittgensteiniana descrita no segundo capítulo, mas principalmente
pela reconhecimento de que o aspecto terapêutico dessa crítica é essencial para o
prosseguimento deste trabalho.
Foi visto que no curso do Tractatus Wittgenstein, ponderando sobre o
sentido de uma proposição, levara a tradição filosófica designativa ao limite, desenvolvendo
uma visão eminentemente metafísica na qual toda proposição com sentido espelharia alguma
propriedade lógica do universo. Nesta visão, as sentenças da linguagem comum constituiriam
funções de verdade das proposições elementares, que por sua vez encontrariam seu sentido
por constituir a imagem de um possível arranjo de coisas. Sua investigação lógica, como bem
310 Parece haver uma tendência, em estudos recentes, a focar no aspecto crítico da filosofia de Wittgenstein. Horwich (2012. p. viii-xiv), por exemplo, que tem postura radical, não se limita a trazer o que chama de “metafilosofia” de wittgenstein para o primeiro plano, mas também dissocia-a de todos os demais elementos, postulando como ponto de partida uma crítica de senso comum sobre as aspirações científicas e assumpções metodológicas que governam a filosofia tradicional. A partir daí tenta derivar as principais conclusões alcançadas nas Investigações. O próprio autor, entretanto, admite o caráter controverso de seu ponto de vista e traz uma extensa lista de estudiosos que pensam de modo diverso. Já Folgelin (1996, p. 36) preconiza, do mesmo modo – mas partindo de um ponto de vista menos radical – a prioridade da crítica sobre os demais aspectos, ponderando que a doutrina de Wittgenstein não encerra uma teoria do significado e que tampouco a resolução de problemas filosóficos dependeria de uma tal teoria.
166
percebem Baker e Hacker (2009a p. 253-254), era também a investigação sublime a respeito
da essência de todas as coisas, da ordem a priori do mundo, da sua natureza essencial, já que
pressupunha que a lógica espelha as propriedades metafísicas do mundo e que as proposições
elementares, que ainda esperavam análise, eram marcadas pela ausência de falha na
referência. Em última instância, por conseguinte, Wittgenstein pressupunha uma lógica da
linguagem em que as proposições completamente analisadas revelariam nomes com
significado e proposições que, encerrando esses nomes e representando um estado de coisas
possível, tivessem sentido (TLP 6.124).
Ao romper com esse modelo radical de sublimação da lógica é quase natural
que Wittgenstein tenha radicalizado, precisamente, no sentido oposto. O próprio Wittgenstein
reconhece essa necessidade, afirmando que a lógica não pode perder apenas parte do seu rigor
e que “O preconceito da pureza cristalina só pode ser eliminado dando uma guinada em nossa
reflexão. (Poder-se-ia dizer: é preciso dar uma guinada em nossa reflexão, mas em volta de
nossa verdadeira necessidade como ponto axial.)” (IF 108). É municiado desse espírito que
Wittgenstein desenvolve a sua segunda filosofia, considerando a sua obra pretérita como a
culminação radical da tradição filosófica e sua obra de maturidade como destruidora da
grande tradição da filosofia tradicional e de suas pressuposições mais profundas (BAKER;
HACKER, 2009a, p. 273).
Enquadrando-se a crítica filosófica wittgensteiniana em uma perspectiva
bastante ampla pode-se concordar com Baker e Hacker (2009a, p. 271) ao afirmarem que ela
constitui um rompimento com a filosofia enquanto disciplina cognitiva, destinada a fornecer
proposições que expressem conhecimento filosófico311. Tal assertiva, entretanto, pelo seu alto
grau de generalidade, diz muito pouco a respeito da filosofia do segundo Wittgenstein e do
seu projeto terapêutico, que envolvem não apenas a percepção de que os filósofos tem uma
tendência a ver a linguagem sob uma perspectiva desorientada, mas também as tentativas de
fazê-los abandonar tal perspectiva (FOLGELIN, 1996, p. 34). É nesse empreendimento que se
faz presente o mencionado aspecto terapêutico e que se faz possível efetuar a guinada ou,
311 Observe-se que esta é a linha explicitamente desenvolvida, por exemplo, por Horwich (2012, p. 21), que define, para seus propósitos, as teorias filosóficas tradicionais como um “corpo não óbvio de princípios a priori, que ofereça um relato completo, sistemático, preciso e básico a respeito de algum fenômeno generalizado, mas que cause perplexidade” (tradução nossa). Pondera, entretanto, que de acordo com este conceito boa parte da teorização na filosofia não seria alvo da verve wittgensteiniana, já que não envolveria o elemento a priori (ibidem, p. 23).
167
parafraseando o próprio Wittgenstein, obter a libertação de uma determinada imagem, que nos
mantinha prisioneiros e que reside na própria linguagem (IF 115).
Logo que Wittgenstein retornou à filosofia, em 1929, escreveu em um de
seus cadernos que aquele método constituía, em essência, a transição da pergunta pela
verdade para a pergunta pelo sentido (BAKER; HACKER, 2009a, p. 275). Pode-se discutir,
dado o momento da assertiva, se ela ainda se referia à filosofia tractariana ou se já dizia
respeito às suas novas ideias, mas parece inequívoco, conforme exame feito no capítulo
pretérito, que o problema do sentido das proposições permaneceu como uma preocupação
central de Wittgenstein ao longo de toda a sua produção filosófica312, constituindo, inclusive,
o eixo sobre o qual ocorreu a guinada em seu pensamento. No Tractatus, os limites do sentido
eram aferidos pelo significado dos sinais constantes da proposição, cotejados dentro da
perspectiva de espelhamento lógico entre linguagem e mundo (TLP 6.53). O sentido estava
vinculado, por conseguinte, a essa gramática profunda e totalmente delimitada que encontrava
par com o mundo. Na segunda fase de seu pensamento, as possibilidades de sentido
continuam sendo determinadas pela gramática, mas esta já não mais reflete, como visto no
segundo capítulo, as propriedades essenciais do mundo. Antes, são o que se considera as
“propriedades essenciais do mundo” que são colocadas à sombra da gramática, não mais
composta por uma estrutura essencial e profunda, especular da realidade, mas por um mosaico
de jogos de linguagem, jogados em consonância com uma determinada forma de vida.
A ideia tradicional de que a linguagem tem uma estrutura que se encaixa na
realidade decorre, em grande medida, da distinção entre regras intragramaticais e outras que
parecem conectá-la com a realidade, em especial as definições ostensivas (BAKER;
HACKER, 2000, p. 91). Wittgenstein, entretanto, esforça-se amplamente para demonstrar que
as definições ostensivas são instrumentos da gramática, que não deixa de ser qualificada, por
se valer de tais instrumentos, como um “cálculo à deriva”:
“A gramática, para nós, é um cálculo puro (não a aplicação de um cálculo à realidade). [...] Não há nenhuma questão, no caso, de uma ligação com a realidade, que mantenha a gramática nos trilhos. A ‘ligação da linguagem com a realidade’ por meio de definições ostensivas e coisas assim não torna
312 No Big Typescript, Wittgenstein assere, no que parece ser uma confirmação do dito trazido por Baker e Hacker, que tudo que constitui requerimento para a compreensão pertence à gramática e constitui requerimento para o sentido, afastando-se tão somente aquilo que torna a proposição concretamente verdadeira ou falsa (BT, p. 38e).
168
a gramática inevitável nem provê uma justificativa para ela. A gramática continua a ser um cálculo à deriva, que só pode ser estendido e nunca sustentado. A ‘ligação com a realidade’ meramente estende a linguagem, não força nada nela” (GF p. 245-246)
A explicitação do papel desempenhado pela definição ostensiva, entretanto,
envolve apenas um aspecto do que Wittgenstein pretendeu superar em sua imagem pretérita
da linguagem. Com ele, ultrapassa-se um certo referencialismo imediato, mas não se combate
a perspectiva mais profunda, que conduz à sublimação da lógica de nossa linguagem.
Admitindo-se o espelhamento entre linguagem e realidade, na forma do Tractatus, é natural
que a gramática transparecesse como um conjunto de regras perfeitamente determinadas e
claras, ainda que só reveláveis mediante análise (IF 102). A superação da perspectiva
explicitamente ontológica lá pressuposta, todavia, não implica, necessariamente, a dessa
imagem do perfeccionismo lógico que parece estar arraigada, de modo ainda mais profundo e
menos consciente, no imaginário filosófico (FOLGELIN, 1996, p. 50). É isso que
Wittgenstein tematiza ao longo dos parágrafos 103 a 107, afirmando que este ideal está fixado
em nossos pensamentos de modo irremovível e que ele nos leva tanto à busca pela “essência
do signo propriamente dito” quanto à impressão de que teríamos que descrever “as últimas
sutilezas que nós, por nossa vez, não poderíamos descrever com nossos meios”. É esse
perfeccionismo lógico que Wittgenstein propõe superar ao convidar o leitor a ver que ele não
é o resultado de qualquer investigação sobre a linguagem, mas uma exigência que está em
constante conflito com a linguagem real (IF 107).
Folgelin (1996), ao tratar sobre a crítica de Wittgenstein à filosofia
tradicional, divide-a em duas categorias amplas, delineando, ao lado do que considera ataque
ao referencialismo, também um ataque ao perfeccionismo lógico, categoria que alberga a ideia
de que a linguagem seria uma atividade governada por regras claras, completas e
consistentes. Admitida a linguagem como uma atividade governada por regras, seria natural
supor que estas regras são determinadas, completas e consistentes, podendo ser encontradas
mediante análise ou investigação. Wittgenstein, entretanto, teria percebido que estes
caracteres não resultam de investigações sobre a linguagem, mas antes são pressupostos na
linguagem, sem qualquer evidência que lhes dê suporte. Na filosofia, conduzem-se
investigações conceituais ao modo de uma investigação factual, buscando-se uma regra única
e elementar, escondida na gramática (ou na realidade), capaz não apenas de explicar todos os
usos de uma determinada expressão – e aqui o combate realizado através do símile
169
wittgensteiniano do Bedeutungskörper adquire extremo relevo –, mas também, por vezes, de
garantir a outorga de um novo sentido, completamente dissociado da linguagem cotidiana.
Esta confusão entre uma investigação conceitual e uma investigação factual é que seria, para
Wittgenstein, o problema da metafísica (Z §458), cumprindo à nova filosofia por ele proposta
precisamente combatê-la, conduzindo as palavras de seu emprego metafísico de volta ao seu
emprego cotidiano (IF 116). É nesse sentido, por exemplo, que Wittgenstein postula estar
errado quem disse que não se pode ingressar no mesmo rio duas vezes, apontando para um
alargamento indevido do conceito de identidade e dos próprios termos utilizados na expressão
(BT, p. 304).
Esta visão do perfeccionismo lógico exposta por Folgelin, embora limitada
por si mesma, já deixa entrever, em linhas gerais, em que consiste a transição da verdade para
o sentido. Como ficou claro no exemplo do rio, a filosofia tradicional tem uma tendência a
transgredir as fronteiras do sentido (BAKER, HACKER, 2009a, p. 285) e a explorar conceitos
como se investigasse verdades a respeito da essência do mundo. O método wittgensteiniano
importaria em uma mudança nessas investigações, revelando que ao investigar a gramática
não se deve ter por objetivo alcançar a ordem a priori que justifique o uso da linguagem, mas
simplesmente descrever a gramática real, que está à mostra (IF 126), atividade que permitiria
visualizar as fronteiras do sentido313 e como os conceitos se comportam e se relacionam
dentro destas. Essa atividade, que teria como objetivo a formação de uma visão panorâmica
da geografia conceitual, delineando os limites do sentido, é que permitiria dissipar as ilusões
filosóficas mais arraigadas e dissolver (BT p. 310) os problemas filosóficos.
3.4.1.2 – A derrocada da teoria
Realizado este breve aporte acerca da crítica filosófica wittgensteiniana sob
a perspectiva do sentido, já causa menos estranheza a aproximação entre a filosofia do
segundo Wittgenstein e a abordagem de um tema prático-jurídico, como a dignidade humana.
O jurista recorre à filosofia para responder à questão sobre o que é a dignidade humana,
tomando-a por um problema filosófico; Wittgenstein ataca precisamente esses problemas
filosóficos e metafísicos tradicionais, considerando-os fruto de algum mal-entendido 313 No Big Typescript Wittgenstein afirma que o objetivo da filosofia é erigir uma parede onde a linguagem já para de qualquer forma (BT p. 312). No § 119 das Investigações afirma que “Os resultados da filosofia são a descoberta de um absurdo simples qualquer e as mossas que o intelecto arranjou ao bater contra o limite da linguagem. Elas, as mossas, fazem-nos reconhecer o valor daquela descoberta”.
170
gramatical (SPANIOL, 1989, p. 136, 138), cuja superação deveria fazê-los desaparecer
completamente (IF 133). O que se considera o questionamento filosófico por excelência, a
pergunta a respeito do “que é”, não seria, para Wittgenstein, necessariamente decorrência de
uma pergunta legítima pela coisa, mas consequência de a filosofia postar-se como um jogo
autônomo, em que a linguagem “folga” (IF 38), ou está em “ponto morto” (IF 132), com
desprezo do contexto e dos jogos de linguagem em que determinada palavra exista
(SPANIOL, 1989, p. 107). O filósofo, trabalhando com a linguagem em férias – e justamente
por conhecer a frase e por poder imaginar os contextos em que ela pode ser empregada –,
cederia à tentação de outorgar à frase sentido absoluto, dissociado do contexto, vinculando-a à
expressão de uma verdade de âmbito metafísico. É esse exercício que Wittgenstein propõe
seja superado através de sua filosofia terapêutica, em que tais problemas seriam dissolvidos
pela consideração gramatical.
Este método terapêutico parece apresentar-se sob um viés estritamente
negativo, já que esta nova filosofia não seria mais destinada a explicar, através de teorias, os
grandes problemas tradicionalmente levantados na história do pensamento, mas a denuncia-
los como fruto de um mal-entendido gramatical, não passível de solução, mas de dissolução.
Pela aplicação do método, os problemas tenderiam a desaparecer, levando consigo a filosofia
tradicional (ou ao menos uma parte dela) e, no limite, a própria filosofia terapêutica, que se
tornaria desnecessária à medida que cumprisse sua função314.
Tomar-se esta nova filosofia apenas como um exercício estéril de
negatividade, todavia, constitui um grande equívoco. É certo que Wittgenstein parecia pôr em
xeque o valor da filosofia e a sua capacidade de influir concretamente na realidade315; é certo,
314 Chauviré (1991, p. 131) chega a qualificar a obra do segundo Wittgenstein como aparentemente “suicida”, já que sua tentativa de superação da filosofia tradicional estaria vinculada ao declínio de toda uma cultura e sua superação por uma nova, que não secretaria mais problemas filosóficos a serem resolvidos e na qual mesmo a filosofia terapêutica não teria mais razão de ser. Spaniol (1989, p. 139), embora não trate do assunto com o mesmo enfoque, parece discordar de Chauviré, afirmando expressamente que a concepção terapêutica não significaria o fim da filosofia, tendo em vista que o método terapêutico não se destinaria apenas à filosofia profissional, mas também aos problemas do dia-a-dia, apresentando sua utilidade onde quer que usemos a linguagem, seja nas ciências, seja na comunicação diária. Parece, neste particular, que os dois pontos de vista são compatíveis e que Spaniol apenas não cogitou da magnitude da mudança cultural afirmada por Chauviré. atentado para a imiscuidade entre a filosofia e nossa cultura ocidental. 315 Wittgenstein não se limitava a por em xeque o método filosófico tradicional, mas também tentava pôr em relevo o que se poderia qualificar como uma impotência da própria filosofia em sua tarefa: “The philosopher says ‘Look at things like this!’--but first, that is not to say that people will look at things like this, second, he may be altogether too late with his admonition, & it's possible too that such an admonition can achieve absolutely nothing & that the impulse towards such a change in the way things are perceived must come from another direction” (CV, p. 70). Essa impotência, inclusive, voltava-se para a própria filosofia: “Most likely I could still
171
também, que sua filosofia não se destinava à elaboração de teorias ou a explicações – ao
menos não as classicamente estabelecidas – e que ao cabo das reflexões não se chegava a algo
como conclusão ou resultado (CHAUVIRÉ, 1991, p. 125). Não se pode olvidar, contudo, que
a sua filosofia tinha uma faceta positiva inegável, que se revela não apenas no exercício de
criatividade de seu método terapêutico, que envolvia o retrabalho da língua (CHAUVIRÉ,
1991, p. 132), a criação de conceitos fictícios (CV, p. 85) e de jogos de linguagem
artificiais316, mas sobretudo no conhecimento mais aprofundado da linguagem (SPANIOL,
1989, p. 117), que tornaria os homens aptos a perceber seu componente mitológico. A
destruição propugnada por Wittgenstein, que parecia atingir tudo que é relevante, teria por
alvo, segundo o próprio filósofo, apenas “castelos no ar” (Luftgebäude)317, pondo a descoberto
o fundamento da linguagem sobre a qual repousavam (IF 118). É nessa revelação do caráter
elusivo da linguagem, e de como os problemas surgem do fato de o filósofo não perceber esse
enfeitiçamento, que reside o grande mérito da terapia wittgensteiniana e, também, o próprio
caráter “terapêutico” (de feições psicanalíticas) do método.
Embora seja cediço, no meio filosófico, que Wittgenstein não estava
confortável com a equiparação de seu método à psicanálise, afirmando que são duas técnicas
diferentes (MALCOM, 2001, p. 48), bem como que tal equiparação, se exagerada, pode levar
a conclusões equivocadas (BAKER, HACKER, 2009a, p. 286)318, não há dúvida de que a
menção constante no § 133 das Investigações, em que se compara o método a uma terapia,
tem bastante proximidade com a terapia psicanalítica, em especial no que tange à atenção com
o paciente e ao que é exigido dele. No Tractatus este aspecto de compreensão com as
dificuldades e confusões de um eventual interlocutor que insistisse no discurso filosófico
clássico já havia ficado patenteada, ainda que incipientemente. Na segunda fase de sua
filosofia, dado o caráter ainda mais radical da reviravolta que se propunha, essas dificuldades achieve an effect in that, above all, a whole lot of garbage is written in response to my stimulus & that perhaps this provides the stimulus for something good. I ought always to hope only for the most indirect of influences”(CV, p. 71). Chamando atenção para este ponto, também Chauviré (1991, p. 152). 316 O uso de jogos de linguagem “inventados” ou artificiais está presente no início das Investigações Filosóficas, mas foi uma técnica utilizada sobretudo no “Livro Castanho” (Brown Book) que Wittgenstein ditou aos seus alunos. Para uma análise da estrutura geral desses jogos, vide Baker e Hacker (2009a, p. 61-62). 317 A expressão “castelos no ar” consta da tradução brasileira das Investigações. Spaniol traduz como “castelos de areia”, enquanto na tradução inglesa já mencionada, optou-se pela expressão “house of cards”. O que importa assentar é que a ideia geral é a de denunciar o caráter fantasioso do que se destruía, e não apenas a sua mera fragilidade, como se pode constatar nesse trecho: “Compare the solution of philosophical problems with the fairy tale gift that seems magical in the enchanted castle and if it is looked at in daylight is nothing but an ordinary bit of iron (or something of the sort).” (CV, p.13). 318 Das dessemelhanças apontadas pelos autores merece atenção, especialmente, o fato de a psicanálise freudiana envolver uma teoria complexa sobre a psique humana, ao revés da filosofia de Wittgenstein, que não encerra qualquer teoria sobre o assunto.
172
foram assentadas como pertinentes à vontade e não ao intelecto, de modo que não poderiam
ser removidas de um só golpe, por uma solução súbita, mas apenas mediante um trabalho
sobre o indivíduo, sobre sua compreensão e sobre o modo como vê as coisas (BT p. 300).
Nesse trabalho, não adiantaria apresentar respostas prontas, sendo necessário antes encontrar
o erro, traçar a sua fonte e mostrar o caminho que conduz do erro à verdade319 (RO, p. 192), já
que só poderíamos provar que alguém cometeu um equívoco se ele efetivamente reconhecer a
expressão deste erro como a correta expressão de seu sentimento (BT p. 303). Por isso o
próprio Wittgenstein afirmaria, em um de seus escritos, “Eu não estou lhe ensinando nada; eu
estou tentando persuadi-lo a fazer algo. O que nós fazemos é muito mais parecido à
Psicanálise do que você poderia dar-se conta” (MS 158, p. 34 apud RO, p. 215)320.
A filosofia terapêutica não se confunde, por conseguinte, com a filosofia
clássica em sua tentativa de convencimento e de formulação de respostas para os problemas
através de teorias. Por um lado, o tipo de confusão enfrentada e o seu enraizamento na cultura
filosófica demandavam um método distinto, que tratasse o problema sob a perspectiva do
indivíduo. Por outro, o tipo de resposta oferecida por esse método, tida como única possível,
também demandava um trabalho de aceitação peculiar que não descurasse do interlocutor. De
certa forma, o reconhecimento do aspecto terapêutico é o reconhecimento de que muitos dos
problemas filosóficos manifestam uma pouco consciente falta de clareza conceitual e de que
constituem antes questões em busca de sentido que de respostas (BAKER; HACKER, 2009a,
p. 274). Se se diz que a filosofia pouco progrediu desde a Grécia antiga, isto se deveria, para
Wittgenstein, ao fato de a linguagem ter remanescido constante e nos seduzido a elaborar,
sempre, as mesmas preguntas (BT, p. 312).
A principal tarefa do filósofo terapeuta, portanto, não seria mais
desenvolver teorias explicativas, mas um pensamento crítico, adquirindo consciência reflexa
da gramática de nossa linguagem, ciente de que as questões filosóficas, que parecem
perguntas a respeito da realidade, são na verdade perguntas a respeito do emprego de nossas
palavras (SPANIOL, 1989, p. 143). Subir a este degrau de consciência a respeito da gramática
e de seus equívocos, entretanto, não é tarefa simples, tendo em vista que as regras de uso das 319 Conforme observa João José Almeida, em nota de final sobre o mencionado dispositivo dos Comentários ao Ramo de Ouro (RO p. 214-215), a utilização dos termos “erro” e “verdade” revelam um certo ar socrático na técnica então exposta. Esta nomenclatura, entretanto, acabou dando origem aos termos “confusão” e “esclarecimento”. 320 O trecho transcrito encontra-se no Manuscrito do Nachlass wittgensteiniano e foi trazido pelo Tradutor do Ramo de Ouro, João José Almeida, em comentário ao texto traduzido.
173
palavras tampouco o são. Penetrar em tal labirinto de caminhos (IF 203) é estar em
permanente luta contra a linguagem ou ao menos contra a mitologia que lhe é inerente e nos
mantém cativos (CHAUVIRÉ, 1991, p. 129); e o modus filosófico nessa luta não é o
desenvolvimento de explicações, a análise da linguagem que persiga sua essência ou a busca
de novas experiências, mas o compilar recordações (IF 127), o combinar o que já é há muito
conhecido (IF 109) em prol de que seja desenvolvida uma visão clara da gramática (IF 122).
Nessa nova filosofia, já não se tenta decompor linguagem para encontrar o que nela está
essencialmente oculto (IF 91, 126), como Wittgenstein fizera no Tractatus,321 tampouco se
teoriza a respeito do significado de um determinado termo; a tarefa consiste em descrever-se o
uso real das palavras (IF 124), à luz do entendimento de que é no contexto do uso, na prática
cotidiana, e não em uma teoria, que se podem encontrar as conexões entre as palavras e os
significados (MONK, 1990, p. 308). A teoria é substituída por uma morfologia do uso que
parece conduzir a uma “sinopse de trivialidades” (MONK, 1990, p. 303), mas é a partir dessas
trivialidades, que passam despercebidas ao homem comum (IF 126)322, que se torna viável a
“exposição de conjunto” (übersichtliche Darstellung) almejada por Wittgenstein e que conduz
a um novo entendimento, consistente em “ver as conexões” internas da linguagem. É com
esse objetivo que o filósofo empreende sua tarefa de recordar, descrever, inventar conectivos
e jogos de linguagem, ganhando uma visão do todo no qual a estrutura da linguagem teve seu
começo (MONK, 1990, p. 304). Já não se trata de analisar a frase ou um contexto específico,
mas de descrever-se, ainda que de forma não sistemática (SPANIOL, 1989, p. 124)323, um
grande número de contextos e jogos de linguagem, inclusive imaginados, na tentativa de
visualizar e compreender os papéis que as palavras realmente desempenham na linguagem324.
Diante de uma tal proposta metodológica, é evidente que não se trata, aqui,
de tomar partido de alguma das teorias filosoficamente desenvolvidas sobre a dignidade em
detrimento das outras, tampouco de apreciá-las sob o binômio verdadeiro/falso, mas de
libertarmo-nos “de dependências supersticiosas em relação a formas de expressão
321 Aqui Wittgenstein reporta-se, claramente, à sua atitude anterior, defendida no Tractatus, em que buscava visualizar a sintaxe lógica da linguagem. 322 Como bem lembra Spaniol (1989, p. 104), não atentamos, ao falarmos, à estrutura profunda da nossa linguagem. 323 Não se trata, por conseguinte, de uma exposição completa das regras, mas apenas do necessário para abordar os aspectos da linguagem que levaram ou facilmente levam a determinados enigmas ou erros filosóficos. 324 Este intuito fica evidente do seguinte trecho, colhido do Livro Castanho de Wittgenstein: “Vê-lo-emos facilmente se examinarmos o papel que esta palavra de facto desempenha no nosso uso da linguagem, mas esse papel permanecerá pouco claro se, em vez de examinarmos o jogo de linguagem na sua totalidade, tomarmos apenas em consideração os contextos, as frases da linguagem em que a palavra é usada.” (LC, p. 46) .
174
indevidamente privilegiadas” (CHAUVIRÉ, 1991, p. 130). Uma das causas da doença
filosófica é a dieta unilateral, alimentarmos o pensar só com uma espécie de exemplo (IF
593)325, e dessa falta de uma Übersicht, de uma visão panorâmica, é que surgem os problemas
e os mal-entendidos filosóficos. A pergunta pela dignidade e as teorias filosóficas formuladas
para respondê-la, assim, resultariam, na perspectiva wittgensteiniana, de mal-entendidos sobre
o funcionamento de nossa linguagem e sobre nossa relação com ela.
3.4.1.3 Iludidos pela gramática
O primeiro e mais decisivo passo concreto na empreitada terapêutica, por
conseguinte, consiste, precisamente, na identificação das fontes destes mal-entendidos que
dão origem às perguntas e confusões filosóficas. A seleção e classificação completa dos mal
entendidos arrolados por Wittgenstein constituiria, entretanto, como já ressaltado em relação a
inúmeros outros pontos, tarefa extremamente difícil, dada a assistematicidade e o caráter
fragmentário da obra do austríaco. Hacker inicia esta empreitada, tentando classificar o que
chama de “fontes da ilusão” sob oito categorias distintas326, mas que acabam por padecer da
mesma característica da obra originária, qual seja a de constituírem, muitas vezes, apenas
pontos de vista distintos sobre o mesmo tema central. E este tema central é, sem dúvida, o que
se extrai de toda a filosofia do segundo Wittgenstein. É de seu conjunto que se consegue
perceber, sobretudo, como somos iludidos pela gramática superficial da nossa linguagem e
pelas suas imagens, como subsiste a tendência de hipostasiar a gramática, de traçar analogias
equívocas e de projetar, na realidade, o que se trata apenas de um elemento gramatical. Só
tomando consciência destes equívocos é que o filósofo, lutando contra o enfeitiçamento do
325 Observe-se que Wittgenstein submetia a própria ideia de verdade ao seu método e rejeitava as explicações unilaterais da verdade. Como nos reporta Monk (1990, p. 321-322), Wittgenstein, comentando as “teorias sobre a verdade” de C. D. Broad, quais sejam a “Teoria da Correspondência”, a “Teoria da Coerência” e a “Teoria Pragmática”, afasta todas elas por sua unilateralidade, afirmando que nenhuma delas é capaz de dar conta da gramática do termo verdade. No original, transcreve um trecho das palestras de Wittgenstein, editada por Desmond Lee: “We can say that the word [‘truth’] has at least there different meanings; but is mistaken to assume that any one of these theories can give the whole grammar of how we use the word, or endeavor to fit into a single theory cases which do not seem to agree with each other” (LEE, 1980, p. 75, apud MONK, 1990, p. 322). 326 Examinando com alguma profundidade o método wittgensteiniano, Hacker (1986, p. 168-175) identifica as seguintes fontes destes mal-entendidos filosóficos diagnosticadas por Wittgenstein, enumerando-os sob oito rubricas distintas: 1) analogias na gramática superficial; 2) projeção das características de um jogo de linguagem noutro; 3) fenomenologia do uso da linguagem; 4) Imagens ou arquétipos incrustrados na linguagem; 5) utilização do modelo de apresentação e solução de problemas das ciências naturais; 6) tendências e disposições naturais da razão; 7) projeções da gramática na realidade e; 8) mitologias filosóficas.
175
intelecto pela linguagem (IF 109), conseguirá conduzir as palavras de seu emprego metafísico
de volta ao se emprego cotidiano (IF 116)327.
Quando se pensa na dignidade sob o ponto de vista desse enfeitiçamento, é
já pela mera qualidade gramatical de substantivo, de que se reveste a palavra “dignidade”, que
se pode iniciar o contraponto com a filosofia wittgensteiniana. No segundo capítulo veio a
lume uma mudança de paradigma, uma reviravolta no bojo da qual se questionou a
necessidade da relação entre linguagem e realidade. Agora trata-se de tomar consciência de
como se realizam analogias a partir da gramática superficial328 e de como o homem cede à
tendência de assimilar todos os substantivos com nomes, interpretando o seu significado
como sendo o objeto por ele designado (SPANIOL, 1989, p. 100). Acostumados à forma
como se estrutura a gramática, procura-se, para cada substantivo, uma substância que lhe
corresponda; e isto constitui uma das grandes fontes de desorientação filosófica 329 ,
contribuindo para a mitologia que domina a linguagem330. Substancializam-se os substantivos
e se os projeta de volta na realidade, questionando acerca do vínculo com ela, ao tempo em
que se teoriza sobre seu significado unívoco, numa tentativa socrática de exatidão (marcada
pelas tentativas de obter definições cada vez mais precisas). Como parte do processo de
substancialização assume-se, platonicamente, a existência de objetos especiais para
corresponder a expressões substantivas para as quais não se encontram objetos ordinários
(HACKER, 1986, p. 169). Como parte do processo de teorização, que está em relação
intrínseca com o primeiro e que remonta à contraposição entre semelhança de família e
definição por Merkmale, persegue-se a necessidade de exatidão conceitual, resolvendo sob a
forma de um universal ou de uma essência a relação entre a multiplicidade de coisas e a
unicidade das palavras. Nesse contexto é que surgem as definições, consideradas, desde a
tradição platônica, a solução dos problemas filosóficos. Não se perceberia, contudo, que tais
327 Chauviré (1990, p. 130) é explícita ao considerar esta a principal tarefa do filósofo terapeuta. 328 Wittgenstein pontua que o que nos confunde é a uniformidade das palavras (IF 11), decorrente da roupagem externa da nossa linguagem (IF XI, p. 290) 329 O próprio Wittgenstein afirma “Enfrentamos uma das grandes fontes de desorientação filosófica: um substantivo faz-nos procurar uma coisa que lhe corresponda” (LA, p. 01) 330 Nas Observações sobre o Ramo de Ouro Wittgenstein trabalha essa mitologia e a substantivização a partir da linguagem. O trecho é longo, mas vale a transcrição: “Na nossa linguagem está assentada toda uma mitologia. Exorcismo da morte ou assassinato da morte; mas, por outro lado, ela foi representada como um esqueleto, como algo morto em certo sentido. ‘As dead as death’. ‘Nada é tão morto como a morte; nada é tão belo quanto a própria beleza’. A imagem sob a qual se pensa aqui a realidade é a de que a beleza, a morte etc. é a substância pura (concentrada) «são as substâncias puras (concentradas)», ao passo que ela«s» existe«m» como mistura em um objeto belo. – Não reconheço aqui minhas próprias observações sobre ‘objeto‘ e ‘complexo’?” (RO, p. 202). Observe-se que nos trechos entre “«»” estão contidas versões alternativas para aquele determinado trecho, escritas nos originais de Wittgenstein.
176
definições, quando “encontradas”, normalmente não dão conta de resolver o problema em
cujo contexto foram engendradas. Isto levaria muitas vezes, como visto em relação à
dignidade no primeiro capítulo, à ideia de que aquele determinado conceito seria indefinível, o
que tampouco resolve o problema (BAKER; HACKER, 2009a, p. 283). Essa ressalva é
especialmente aplicável à dignidade humana quando se percebe que o reclamo por tal
indefinibilidade muitas vezes não decorre de se tratar de um conceito simples, não passível,
por natureza, de definição por Merkmale, mas da pressuposição de uma ordem ou essência
interna ao conceito que não pode ser expressa, mas que se mostra e poderia ser compreendida
através de exemplos. Esta é, contudo, como asseveram Baker e Hacker (1980, p. 330), apenas
uma linha de defesa avançada da ortodoxia contra a admissão da existência dos conceitos de
semelhança de família.
Não é só a condição genérica de substantivo, entretanto, que conduz aos
mal-entendidos filosóficos – do primeiro tipo – no que diz respeito à dignidade. Examinando-
se a gramática superficial envolvida nestes mal-entendidos pode-se entrever como fonte de
ilusão também aquilo que Hacker (1986, p. 171-173) classificou como a pregnância de
algumas imagens encravadas na linguagem331. Esta imagens são tematizadas por Wittgenstein
sobretudo quando trata da filosofia da mente, em que a gramática de alguns verbos conduz à
imagem de um mundo interior, mas poderiam ser pensadas também para a dignidade, em
especial como decorrência de sua associação com o verbo “ter” e das construções linguísticas
em que surge como algo “anexo”, ou que se acopla a um outro algo.
No curso da pequena investigação levada a efeito no tópico anterior pode-se
perceber claramente a pregnância dessa imagem, sempre remetendo a uma instância interna.
Falou-se em dignidade do conhecimento e da filosofia (Bacon), em prazer com dignidade
(Cícero), em agir com dignidade (Schiller), em possuir a dignidade de cidadão, em ter
dignidade e em ser possível achar dignidade na pessoa que cumpre seus deveres morais
(Kant). Essa condição da dignidade como algo “anexo” chegou a ser, inclusive, teorizada
explicitamente na Idade Média, quando Bartolo (apud KATOROWICZ, 1998, p. 234),
explicando que a Dignitas não se confundiria com o cargo a que vinculada, afirmou
expressamente “o cargo em si não era uma Dignidade mas possuía uma Dignidade anexada
(habet dignitatem annexam)”. O que se quer pôr em relevo aqui, entretanto, não é a
331 Chauviré (1991, p. 130) aponta que a função da Übersicht é libertar o pensamento das imagens pregnantes.
177
teorização da dignidade como este algo que se acopla, mas como tal imagem está impregnada
no uso comum, como faz parte da gramática superficial do termo.
É claro que se pode argumentar que os exemplos mencionados no parágrafo
anterior são extraídos sobretudo de obras filosóficas e do uso histórico e que não serviriam,
nessa qualidade, como parâmetros para aferição do uso da palavra na linguagem comum. A
primeira resposta a este argumento é a lembrança de que a dignidade não era, de regra, objeto
de questionamento filosófico próprio, mas ponto acessório em vários questionamentos e
teorias, de modo que o uso do termo, como ressaltado inúmeras vezes, refletia os usos da
linguagem comum da época, consistindo muito mais em uma apropriação do termo que em
uma teorização a respeito do significado ou da forma de uso desta dignidade. Assim, os usos
por aqueles autores refletem, em grande parte, o uso da época e registram imagens que ainda
persistem no uso comum atual, seja na própria expressão dignidade do homem, seja em outros
constructos que permanecem fazendo parte da linguagem comum.
A segunda resposta possível é mais relevante para o desenvolvimento deste
trabalho e consiste na percepção de que boa parte deste material filosófico, mesmo quando
constituía estipulação de sentido e não representava o uso comum, parece ter-se integrado à
mitologia linguística da dignidade, contribuindo para as imagens que impregnam o imaginário
e orientam o questionamento jusfilosófico atual a respeito da dignidade. Com isto não se
afirma que este linguajar tenha se incorporado à linguagem comum – embora não se possa
deixar de perceber algumas coincidências 332 –, mas que uma parte razoável do
questionamento atual a respeito da dignidade humana é construída sobre um amálgama do uso
comum e do uso filosófico pretérito do termo “dignidade”, i.e, que a pesquisa sobre o
significado e consequências da dignidade ocorre, em grande medida, também sobre escritos
filosóficos pretéritos – em especial sobre a filosofia kantiana – como se estes encerrassem, em
seu bojo, o significado “correto” do termo333. Não é irrazoável, por conseguinte, concluir que
332 Não é objeto deste trabalho estudar este tipo de influência, mas não se pode afastar a possibilidade de que ela ocorra, ainda que de forma indireta. Saramago (1995, p. 167), por exemplo, em “Ensaio sobre a cegueira”, afirma que “a dignidade não tem preço”, dito que parece ter-se integrado ao uso comum e que muito se assemelha a uma corruptela da afirmação kantiana de que “o que não tem preço, tem dignidade”. Deve-se atentar, todavia, que a frase derivada transmite uma ideia distinta, quase oposta à original. Em Kant, a dignidade aparece como uma espécie de valor, o valor absoluto; em Saramago, ontologiza-se como algo a que se atribui valor absoluto. 333 Embora por uma outra via, Waldron parece concordar com este ponto de vista. O autor americano, analisando obras filosóficas que, a partir de constructos kantianos, versam sobre a dignidade, admite a importância das ideias associadas pelo autor de Könisberg à dignidade na Metafísica dos Costumes, mas considera que tal obra
178
estes escritos filosóficos pretéritos, por constituírem a base de alguns estudos e por
substituírem, em parte, o uso comum do termo, contribuam para as ilusões gramaticais
formadas a respeito da dignidade, em que esta exsurge com uma roupagem ontológica.
É fácil ver, por conseguinte, do conjunto de considerações acima, que a
gramática do termo “dignidade”, independentemente de sua associação ao homem, já
contribui para a ilusão de uma ontologia, transparecendo a dignidade não apenas como
“algo”, mas como “algo” que se encerra em ou que se anexa a outro algo. É certo que esta
gramática não se distingue totalmente da de outros universais – pode-se falar, por exemplo,
em “beleza” do conhecimento ou em agir com “segurança” –, mas é ela que constitui o
substrato mais básico quando se formula o questionamento acerca da dignidade humana, ou
seja, desta dignidade singular e ontologizada, em associação ao homem. Não há como
questionar acerca da dignidade humana sem anteceder tal questionamento da pergunta acerca
da própria dignidade e sem se deixar seduzir, por conseguinte, pelos mal-entendidos por esta
engendrados. Aproximando-se esta gramática do homem, soa natural que se formule o
questionamento desta dignidade como uma relação de correspondência com algo que o
homem tem, seja em uma instância interna e necessária, o que remonta à ideia de essência,
seja como algo que a ele se anexa, por conquista ou atribuição de terceiros334. É a responder o
que seria este algo – que acaba assumindo o lugar, inclusive, da dignidade por excelência –,
que se dedicam as pesquisas a respeito da dignidade humana, cujos resultados são colhidos
pelo direito.
3.4.1.4 A gramática da dignidade humana
Como resultado das ponderações feitas no item precedente, pode-se concluir
que a gramática do termo “dignidade” relaciona-se com a gramática da dignidade humana de
dois modos aparentemente antagônicos: a) por um lado, o questionamento a respeito da
dignidade humana pressupõe, a princípio, que se elucide o que seria a “dignidade”,
antecedente lógico daquela; b) por outro, já se apontou alhures uma espécie de “movimento
de retorno”, em que a dignidade acaba se confundindo com a dignidade humana, de sorte que
teve uma influência deplorável sobre as discussões filosóficas a respeito da dignidade, especialmente ao levar muitos estudiosos a assumir, simplesmente, que dignidade, no direito, encerra o significado kantiano (WALDRON, 2009a, pos. 420). 334 Não é de se estranhar que esta distribuição muito se aproxime das teorias acerca da dignidade que a percebem como uma dádiva ou como uma prestação, vistas rapidamente no item 3.2
179
as perguntas por ambas tornam-se uma só. Diante desce cenário, descrever a gramática do
termo “dignidade” revelou-se tarefa de extremo relevo, ao menos sob dois aspectos distintos.
No primeiro aspecto, esta descrição da gramática trouxe notícia dos mal-entendidos por esta
engendrados, que afetam, duplamente (vide “a” e “b” acima), a pergunta pela dignidade
humana. No segundo aspecto, a visão ampla acerca da diversidade de usos do termo
“dignidade” permite que se afaste a “dieta unilateral”, responsável pela identificação entre
dignidade e dignidade humana e que contribui para o acirramento da perspectiva essencialista
inúmeras vezes mencionada. Conforme item 3.3.3 pôde-se constatar que subsistem inúmeros
usos da dignidade sem associação com o homem.
Seria um equívoco, entretanto, buscar apenas na gramática superficial da
palavra “dignidade” as origens dos mal-entendidos e da desorientação filosófica relacionados
à dignidade humana. É certo que estes elementos imagéticos e estritamente gramaticais
constituem fonte primária de mal-entendidos, partilhados por inúmeros outros problemas
filosóficos, mas é na gramática da própria expressão dignidade do homem, mais precisamente
em sua associação com os direitos humanos, que se desvela o que parece ser a principal fonte
de desorientação filosófica ao formular-se a pergunta atual pela dignidade.
O primeiro quadrante sob o qual esta associação pode ser examinada é mais
superficial e diz respeito a como este vínculo acaba por constituir, sob mais um aspecto, a
dieta unilateral da qual se alimentam os questionamentos filosóficos. Não cabe aqui formular
hipóteses a respeito de uma eventual relação de precedência entre o discurso ético-filosófico e
o jurídico acerca da dignidade, tampouco explicações sobre a interpenetração e as influências
recíprocas entre ambos, mas é necessário reconhecer que a pergunta moderna pelo significado
da dignidade humana encontra-se marcada, indelevelmente, pela sua associação com os
direitos humanos universais. É com foco nesta associação, em especial nos quatro usos que
remetem à noção de fundamento (item 1.3.3), que se formula – tentando-se responder, sem
sucesso – a pergunta pela dignidade. Sob a influência deste aspecto da gramática, formula-se
o questionamento acerca da dignidade humana – e por extensão da própria dignidade – não
apenas sob o pressuposto de que ela corresponda a algo, mas também de que este algo seja o
fundamento dos direitos humanos. É natural, nessa senda, que as teorias a respeito da
dignidade sejam erigidas na tentativa de elucidar o que seria esta dignidade – que já
constituiria fundamento dos direitos humanos – e que sobre esta se instalem inúmeras
180
diatribes filosóficas, sempre tendo como pano de fundo a necessidade de compatibilização
entre este uso associado aos direitos humanos e os demais usos.
Não é apenas por constituir parte desta dieta unilateral, entretanto, que a
associação entre dignidade e direitos humanos mostra-se salutar para enriquecer o painel dos
mal-entendidos filosóficos. No segundo quadrante vislumbrável, todavia, o vínculo entre
dignidade e direitos humanos já não constitui propriamente fonte destes mal-entendidos, mas
sintoma, expressão de tendências intelectuais e de disposições naturais da razão que, se não
controladas criticamente, podem conduzir à ilusão (HACKER, 1986, p. 173). Aqui não se
trata de uma associação ampla da dignidade com os direitos humanos, mas da sua
entronização nesse sistema de direitos, da sua alocação como justificadora de um determinado
rol de direitos e de sua universalidade. É a própria articulação do sistema de direitos humanos
sob o signo da dignidade, elencada teoricamente como fundamento, com notas de
necessidade, de um determinado rol de direitos naturais ao homem, que estaria sob enfoque
nesse mal-entendido filosófico ou que, mais propriamente, constituiria o resultado desse mal
entendido.
3.4.1.4.1 O ponto de parada wittgensteiniano e a fundamentação dos direitos humanos
Monk (1990, p. 364) chama atenção para o fato de Wittgenstein, ao escolher
uma passagem das “Confissões” de Santo Agostinho para inaugurar as Investigações
Filosóficas, não trazer uma teoria filosófica a ser falseada, mas uma imagem da linguagem,
constituinte da base sobre a qual se erigem as teorias filosóficas. A proposta de Wittgenstein,
no curso das Investigações, não é fornecer uma nova teoria, mas uma nova imagem da
linguagem e de sua relação com o mundo, centrando-se em mostrar, sobretudo através do
próprio estilo – semelhante ao das Confissões –, como os problemas filosóficos não residem
em algum dado objetivo, senão no próprio filósofo, em sua tentação, em sua tendência ao
engano e à confusão (SPANIOL, 1989, p. 86-87) 335 . Nos diálogos imaginários das
Investigações Wittgenstein faz, ao final, um estudo sobre o homem e confronta-o com as suas
próprias tendências, dentre elas o desejo de generalidade, de distinções precisas e o que
Hacker (1986, p. 174) chama de impulso metafísico, que conduziria o filósofo a buscar 335 Janik e Toulmin (1991, p. 270) chamam atenção para a forma de escrita das Investigaçõe e para o fato de que Wittgenstein, com as parábolas, queria que os leitores reconhecessem, por si mesmos, algo implícito em suas próprias práticas linguísticas. Para esses autores, isso revelaria que Wittgenstein continuaria tentando mostrar, ao invés de dizer.
181
infrutiferamente, por trás do fenômeno da linguagem, a essência das coisas. Vem a calhar,
como revelador do resultado deste impulso, a imagem trazida pelo próprio Wittgenstein a
respeito da alcachofra (IF 164): “para encontrarmos a verdadeira alcachofra, retiramos-lhe as
folhas”.
O reconhecimento dessas tendências não consistia, entretanto, em um
ataque isolado à metafísica, mas também aos vários sistemas de justificação e fundamentação
filosófica, construídos em consonância com tais tendências. É como decorrência delas que se
instaura um movimento em duplo sentido: por um lado, o homem teria a necessidade de
ultrapassar o fenômeno, buscando sempre a condição prévia de cada elemento condicionante,
descoberto ao se formular explicações acerca deles336; por outro, haveria, como consequência
do anterior, a tendência de construir, em caráter de necessidade, sistemas teóricos a partir
deste elemento fundante, justificador das derivações e das explicações. Em ambos os
movimentos tem-se por pressuposto que o uso da linguagem – e por extensão o próprio
sistema – encontrar-se-iam justificados pelo recurso a algum fundamento, a alguma regra
inequívoca e adquiririam, portanto, um caráter de necessidade.
Em face desta espécie de tendência, a ponderação wittgensteiniana consiste
em não apenas questionar explicitamente o significado de “justificação” e a inserção da
palavra em vários jogos de linguagem (IF 486), mas sobretudo contrapor-se à própria
tendência geral do homem de questionar indefinidamente e de buscar, sempre, uma norma
inequívoca que ancore os seus julgamentos. O fato de o homem poder, por faculdade – e
tendência – da razão, questionar indefinidamente a respeito de fundamentos não significa que
ele deva fazê-lo, tampouco que a resposta obtida na continuidade seja mais propícia. A
dificuldade consistiria em saber quando parar e, especialmente, em reconhecer como solução
o que parece apenas um prolegômeno a ela, como afirma o próprio Wittgenstein no Zettel, em
passagem que já se tornou clássica:
314. Here we come up against a remarkable and characteristic phenomenon in philosophical investigation: the difficulty--I might say--is not that of finding the solution but rather that of recognizing as the solution something that looks as if it were only a preliminary to it. "We have already said everything.--Not anything that follows from this, no, this itself is the solution!"
336 Hacker (1986, p. 174) chama atenção para o fato de esta tendência da razão ter sido reconhecida, também, por Kant.
182
This is connected, I believe, with our wrongly expecting an explanation, whereas the solution of the difficulty is a description, if we give it the right place in our considerations. If we dwell upon it, and do not try to get beyond it. The difficulty here is: to stop. 315. "Why do you demand explanations? If they are given you, you will once more be facing a terminus. They cannot get you any further than you are at present.” (Z §§ 314, 315).337
Esta proposta de uma “parada total” está presente em diversos
posicionamentos de Wittgenstein (PHILLIPS , 1981)338, mas certamente um dos exemplos
mais ilustrativos deste ponto de vista, e também o mais desconcertante, é o que se passa na
filosofia da matemática. Conforme reporta Monk (1990, p. 326), diante da discussão, corrente
na época, a respeito dos fundamentos da matemática339, o filósofo austríaco, ao invés de se
postar ao lado de alguma das teorias, minava a base sobre as qual estas se desenvolviam, qual
seja, a de que a matemática precisa de uma fundamentação última. Desde que o homem possa
desenvolver a prática matemática, isto é, usar os seus símbolos e aplicar as suas regras
comumente aceitas, não se faz necessária nenhuma teoria que a justifique, evidenciando-se
que todo o debate a respeito destes fundamentos repousaria sobre uma concepção errônea.
Uma justificação última da matemática não seria possível nem necessária, já que a
compreensão de um jogo, para Wittgenstein, não depende da construção de outro (MONK,
1990, p. 306). 340
337 Em tradução livre: “314. Enfrentamos aqui um fenômeno notável e característico na investigação filosófica: a dificuldade – eu poderia dizer – não é encontrar a solução, mas reconhecer como solução algo que parece ser apenas preliminar a ela. ‘Já dissemos tudo. – Não algo que resulta disso, não, isto é a própria solução’. Isto está conectado, penso eu, com a nossa expectativa errada de uma explicação, quando a solução da dificuldade é uma descrição, se lhe dermos a devida ordem em nossas considerações. Se nos detivermos nela, e não tentarmos ir além dela. A dificuldade aqui é: parar. 315. ‘Porque exige explicações? Se elas forem dadas a você, estará mais uma vez perante um limite. Elas não te farão avançar além do ponto em que está agora.”’ Pensamento semelhante, observe-se, está contido no Remarks on The Foundations of Mathematics, em que assevera “The difficult thing here is not, to dig down to the ground; no, it is to recognize the ground that lies before us as the ground. For the ground keeps on giving us the illusory image of a greater depth, and when we seek to reach this, we keep on finding ourselves on the old level. Our disease is one of wanting to explain. (RFM 333). 338 A nomeação da proposta wittgensteiniana como “parada total” (Full stop) foi tomada de empréstimo deste artigo. 339 Conforme Monk, à época contendiam os logicistas (liderados por Frege e Russel), os formalistas (encabeçados por Hilbert) e os intuicionistas (Brouwer e Weyl). Ao presente trabalho importa menos o mérito desta discussão que a atitude de Wittgenstein diante do entrevero filosófico. 340 Monk anota que Wittgenstein, ao dedicar tanta atenção a sua filosofia da matemática, o fazia com intuito de solidificar seu afastamento dos pontos de vista anteriormente defendidos. Assim, enquanto no passado analisava o sistema lógico de Frege e Russel sob a premissa de que, se tal sistema fosse contraditório, isto deixaria a matemática sobre uma base insegura, em sua segunda fase declarava que tais contradições eram triviais e que não se precisa desta fundamentação para usar a matemática.
183
É certo que, nesse ponto, poderia ter início uma interessante discussão a
respeito do caráter científico da matemática, o que culminaria no reconhecimento de uma
outra fonte de confusão na filosofia, estritamente vinculada às ora discutidas e central para
Wittgenstein, consistente em dar aos problemas filosóficos um tratamento de ciência da
natureza (HACKER, 1986, p. 173; SPANIOL, 1989, p. 95); o que releva aqui apontar,
entretanto, não é nenhum destes aspectos, tampouco o mérito da discussão matemática, mas o
fato de até a matemática, classicamente construída a partir de objetos ideais e em caráter de
necessidade, despontar como uma prática antropológica (CHAUVIRÉ, 1991, p. 77) que, a
exemplo de inúmeros outros jogos, não dependeria de fundamentação para ser compreendida
e operacionalizada. Ao invés de buscar uma fundação última da matemática, de construí-la
sob a cogência de uma necessidade irrefragável, Wittgenstein aloca-a à sombra da gramática,
reconhecendo-a como uma prática humana que não carece de fundamentação na realidade, de
explicação última, bastando o exercício de descrição desta prática. Também na matemática as
explicações e teorias deveriam ceder lugar às descrições e o problema consistiria em resistir à
tentação do questionamento e, como consequência, reconhecer a suficiência daquelas.
O transporte destas ponderações a respeito da matemática para o tema da
dignidade e da fundamentação dos direitos humanos universais não pode, entretanto, ser
realizado sob diretriz da equivalência entre ambos, dado subsistir ao menos uma distinção
fundamental. A matemática está consolidada como uma prática humana faticamente
universalizada, ao passo que o sistema de direitos humanos estrutura-se sobre uma inolvidável
pretensão, muitas vezes contrafática, de universalidade, circunstância que, por si só, já revela
uma aparente disparidade entre o fundamento da matemática e dos direitos humanos. Assim,
enquanto na matemática a busca de fundamento revela-se como fruto claro destas tendências
de tentar justificar, em caráter de necessidade, uma prática humana já universal e que não
careceria de fundamentação, na seara dos direitos humanos a nota de universalidade encerrada
no conceito parece tornar a situação distinta, à medida que tal universalidade não se
sustentaria, como visto no primeiro capítulo, se dissociada da respectiva fundamentação. Não
seria possível afirmar, por conseguinte, como se dá na matemática, que a prática discursiva
dos direitos humanos não careceria de fundamentação.
Esta última afirmativa, entretanto, revela-se falaciosa, fruto de confusão que
não permite ver que os direitos humanos também se apresentam como uma prática
antropológica, distinguindo-se da matemática, nesta condição, principalmente pela sua
184
amplitude, e que as tentativas de fundamentá-los em caráter de necessidade relacionam-se, em
grande parte, às mesmas tendências humanas apontadas para a matemática.
Para que este ponto de vista fique mais claro é necessário voltar-se ao
modelo matemático e a uma discussão que Wittgenstein travou com Waismann, ainda antes
do desenvolvimento completo da teoria dos jogos de linguagem – época em que ainda estava
preso à teoria do cálculo, que a antecedeu –, a respeito da tentativa, formulada por Hilbert, de
encontrar os fundamentos da matemática341. Wittgenstein insistia com Waismann que tal
empresa não era uma “metateoria” da matemática, necessária para compreender a matemática,
mas a própria matemática, “mais um cálculo, como qualquer outro”, remontando à ideia de
que a sintaxe – que aqui Wittgenstein começava a comparar a um jogo – não precisava de
justificação por outro meio da mesma natureza. Isto fica ainda mais límpido quando
Waismann questiona se não poderia haver, a respeito de um jogo qualquer, uma teoria que
auxiliasse a compreendê-lo, exemplificando com a teoria do xadrez342, ao que Wittgenstein
contra-argumenta evidenciando que toda teoria explicativa é, ela também, uma atividade
humana, um novo jogo linguístico que não se distingue, nesse aspecto, do que tenta explicar,
e que tampouco é necessário (MONK, 1990, p. 308).
Ao tornar claro que a busca de fundamento e as justificações são, também
elas, jogos de linguagem, Wittgenstein não apenas deixa entrever que constituem atividades
humanas, desenvolvidas em contextos específicos e submetidas a regras e objetivos próprios,
mas principalmente abre o horizonte a que se perceba que sob o conceito de “justificação”
desenvolvem-se inúmeras atividades distintas, cujo significado só pode ser avaliado mediante
um exame específico. Observe-se que o próprio Wittgenstein reconhece esta circunstância no
desenvolvimento de sua obra, ao questionar: “Eu estava justificado em tirar estas
consequências? O que se chama aqui justificação? – como é usada a palavra ‘justificação’?
Descreva jogos de linguagem! Deles poder-se-á deduzir também a importância do estar-
justificado” (IF 486). Não há, por conseguinte, “justificação”, mas “justificações”, com
sentidos, propósitos e motivações distintas.
341 A discussão é relatada por Monk, (1990, p. 307-308) 342 Conforme reporta Monk (1990, p. 308), Waismann questiona: “If, then, there is a theory of chess, I do not see why there should not be a theory of the game of arithmetic, either, and why we should not use the propositions of this theory to learn something substantial about the possibilities of this game. This theory is Hilbert’s metamathematics’”.
185
Admitir esta variedade de jogos de linguagem envolvendo “justificação”
permite, em um primeiro momento, que se reconheça a distinção entre a mencionada
fundamentação da matemática, dirigida a uma prática humana universal, e aquela relacionada
aos direitos humanos, enquanto prática humana estruturada sobre uma pretensão, muitas
vezes resistida, de universalidade. O efeito mais relevante para o presente trabalho, entretanto,
não consiste em permitir que se ressaltem as diferenças entre a justificação nos dois modelos,
mas abrir espaço para que se reconheça a possibilidade da convivência de ambos dentro do
discurso de fundamentação dos direitos humanos. Ao lado de tentativas de fundamentação em
que se busca, pragmaticamente, justificar a universalidade pretendida, deve-se admitir a
existência de discursos em que se tenta fundamentar a própria prática dos direitos humanos
historicamente estabelecida. Nesse jogo de linguagem, é fácil perceber como a atividade de
fundamentação assemelha-se à da matemática e apresenta-se como reveladora das mesmas
tendências já apontadas. Assim como ocorre na matemática, também nos direitos humanos (e
no discurso ético em geral) o homem cede à tentação de buscar uma explicação última para as
suas práticas discursivas, quando deveria reconhecer a existência de conexões internas,
diretas, que não podem ser explicadas, apenas vistas343. “Nosso erro está em buscar uma
explicação, quando deveríamos ver os fatos como ‘fenômenos originários’. Isto é, onde
deveríamos dizer: joga-se este jogo de linguagem” (IF 654).
É certo que o reconhecimento destas tendências parece acarretar uma
mudança de sinal em relação à universalidade, que agora deixa de ser objeto da justificação e
torna-se resultado dela. Não se pretende, entretanto, com a descrição destes jogos, fornecer
uma explicação do porquê estes direitos humanos surgem com tal pretensão de
universalidade, mas tão somente reconhecer que, também aqui, o homem cede ao impulso
metafísico de tentar explicar e justificar, de modo inequívoco, a sua prática, o que deve ser
submetido a um controle, sob pena de resultar em uma ilusão. E esse controle crítico é o que
decorre do conjunto da filosofia wittgensteiniana e do abandono da pressuposição de que o
sistema de direitos humanos, enquanto prática discursiva, tem, necessariamente, um
fundamento.
343 É interessante notar que esta proposta, de ver as conexões, ver as relações internas estabelecidas pela gramática, constitui para muitos a continuidade – e a radicalização – do projeto wittgensteiniano desenvolvido no Tractatus, de que o filósofo não tem nada a dizer, mas algo a mostrar, agora aplicada com rigor completo. .(MONK, 1990, p. 301-302).
186
3.4.1.4.2 “Dignidade humana”, “fundamento” e “direitos humanos”
Feitas as ponderações acima, não é preciso muito para perceber-se que a
dignidade humana, remetendo simultaneamente ao conceito e ao fundamento destes direitos
humanos universais, constitui o alvo primordial de tais tendências. É principalmente por
intermédio da busca de um sentido unívoco e necessário para a dignidade que se tenta
estruturar este sistema de direitos, quer definindo-o, quer outorgando-lhe nota de necessidade
relacionada ao seu fundamento.
À primeira vista, adotar-se o método wittgensteiniano sobre este panorama
poderia conduzir à conclusão de que seu principal efeito seria o de constituir um contributo às
perspectivas não cognitivistas de fundamentação dos direitos humanos344, fornecendo-lhes
esteio filosófico sob a dupla premissa de que os juízos éticos não seriam fundamentáveis e de
que tal fundamentação não seria necessária para operacionalizar o sistema de direitos
humanos, o que o aproximaria de uma postura realista. A limitação de Wittgenstein a um
suposto não-cognitivismo, entretanto, não dá conta da dimensão e da reviravolta que
representou a sua filosofia última ao propor um ponto de parada, o que ia muito além da
problemática dos juízos éticos e dizia respeito, essencialmente, à própria relação entre a
gramática e a realidade. Reconhecendo que o emprego das palavras assemelha-se a um jogo, o
seu método de parada total importa em reconhecer que não há justificativas para estes jogos,
que não precisamos de uma regra para a aplicação de outra regra, que todo nosso desejo de
necessidade é, em realidade, nosso desejo de convenção345 e que todas as tentativas de
explicá-los constituem novas ações humanas, novos jogos, e não meta-teorias explicativas.
Esta limitação, ademais, também padece do mal de não deixar entrever que
o método de Wittgenstein, ao propor que a filosofia se limitasse à descrição, era um método
essencialmente antropológico e que constituía, no fundo, uma tentativa de autocompreensão
do homem (JANIK; TOULMIN, 1991, p. 264)346, para a qual as práticas humanas, ainda que
relacionadas a uma confusão ou mal-entendido, não poderiam ser descartadas como
344 Argumentando exatamente nesse sentido, confira-se Luño (1983, p. 12). 345 Como visto na Nota de Rodapé 212, Wittgenstein consigna, expressamente, que à profundidade visualizada na essência corresponde a profundidade da nossa necessidade de convenção. 346 Para os autores, Wittgenstein visualizava, como tarefa da filosofia, a autocompreensão humana, tendo em vista que, para atender à injunção “conhece-te a ti mesmo”, era necessário compreender a extensão e os limites do próprio entendimento, o que importava reconhecer a extensão precisa e os limites da linguagem, instrumento primordial deste entendimento humano.
187
irrelevantes. Isto reflete-se, sobretudo, no objeto de exame do presente trabalho. Enquanto em
uma perspectiva puramente não cognitivista poderia se fazer tabula rasa das tentativas de
fundamentação da dignidade humana e da prática de utilizá-la como fundamento dos direitos
humanos, sob o ponto de vista wittgensteiniano o fato de os homens terem se organizado em
torno do conceito de dignidade humana e de utilizarem-no em conjunto com os direitos
humanos na tentativa de fundamentá-los constituiria elemento de inegável relevo e que não
poderia deixar de ser levado em consideração na tentativa de formar-se uma Übersicht.
Afirmar a relevância dessa prática não significa, é evidente, aceitar – e
tampouco negar – a conclusão filosófica de que a dignidade seja o fundamento dos direitos
humanos, mas adotar, previamente, uma dupla postura de esclarecimento. Em um primeiro
plano, implica reconhecer que mesmo a fundamentação metafísica da dignidade e, por via de
consequência, dos direitos humanos, não deve ser absolutamente desconsiderada, tendo em
vista que sua descrição permite entrever uma tendência humana, de extremo relevo nesse
método antropológico. É esclarecedor, nesse ponto, a postura adotada pelo próprio
Wittgenstein quando, comparecendo a encontros do círculo de Viena, tratava sobre a filosofia
de Heidegger sem o escárnio que era peculiar aos positivistas, reconhecendo que algo poderia
ser extraído da inclinação de Heidegger de falar as coisas das quais tratava em sua filosofia
(MONK, 1990, p. 282-283).
Em segundo plano, outorgar relevância a tais tentativas de fundamentação
da dignidade e dos direitos humanos implica reconhecê-las como jogos de linguagem
particulares, completos e submetidos a regras próprias, que não devem ser projetadas em
outros jogos de linguagem, a despeito de eventuais semelhanças pontuais entre ambos.
Conforme elencado por Hacker, uma das fontes de ilusão identificadas no método
wittgensteiniano consiste, exatamente, em projetar-se os caracteres de um jogo de linguagem
em outro pela mera circunstância de um mesmo fragmento estar presente em ambos. Em uma
perspectiva mais simples – mas não menos importante – pode-se considerar as hipóteses em
que este fragmento idêntico é constituído, apenas, da própria “dignidade humana”, o que dá
origem a uma confusão que se relaciona, principalmente, à dieta unilateral já mencionada.
Restringir-se a possibilidade de coincidência à “dignidade humana”, entretanto, seria adotar
uma visão muito estreita dos fatos, tendo em vista que esta identidade entre fragmentos pode
se estender, de igual sorte, à associação entre os termos “dignidade humana”, “fundamento” e
“direitos humanos”, sem que tal coincidência autorize a projeção antes mencionada,
188
demandando, ao revés, um cuidado maior em evitá-la. No primeiro capítulo, ainda sob um
paradigma teórico distinto, foi possível, ao analisar-se os diversos sentidos em que a
dignidade poderia constituir fundamento dos direitos humanos, colher alguns fragmentos de
outros jogos de linguagem em que tais termos também se associavam e da tendência de
projetar caracteres de um jogo em outro. No item anterior, já sob uma perspectiva
wittgensteiniana, também se viu a convivência de ao menos dois jogos de linguagem
relacionados à fundamentação dos direitos humanos e passíveis de envolver, também, a
dignidade.
Estes fragmentos, entretanto, não adquirem relevância enquanto jogos de
linguagem concretos, mas principalmente como ilustrativos do quadro mais amplo, que
permite entrever que o jogo de linguagem “filosófico” mencionado, em que se desenrola a
associação entre “dignidade”, “fundamento” e “direitos humanos”, constitui apenas um dentre
um número indefinido de jogos de linguagem possíveis envolvendo estes três termos e que,
mesmo nestes jogos “filosóficos”, seria possível identificar inúmeros jogos distintos. Na
linguagem, esta associação comparece em variados contextos, com significados distintos, e é
justamente a percepção desta variedade e da necessidade de evitar as projeções e confusões
entre estes distintos jogos de linguagem que contribui para a formação de uma Übersicht. Um
exemplo destas confusões e projeções parece estar presente nos diversos sentidos em que a
dignidade pode constituir fundamento dos direitos humanos, confundindo-se jogos de
linguagem em que a dignidade comparece como vetor interpretativo e aqueles em que atua
como fundamento, em caráter de necessidade, de um determinado rol de direitos (item 1.3.3).
Um outro exemplo seria visualizável na tendência de outorgar-se, ao princípio jurídico da
dignidade humana, quando em conflito com outros princípios, um caráter absoluto347.
3.4.2 Por uma Übersicht jurídica da dignidade?
Ao longo do item 3.4.1, num panorama do método terapêutico
wittgensteiniano, pôde-se constatar que nele se buscava uma nova compreensão das relações
entre linguagem e mundo, que permitisse, através da formação de uma Übsersicht, enxergar
as conexões, em vez de explicá-las. Isto longe está de afirmar, é evidente, que o método
descritivo wittgensteiniano não fosse, ele mesmo, uma espécie de explicação, dizendo-se, isto
347 Nunes (2010, p. 59), por exemplo, tenta caracterizar o princípio da dignidade da pessoa humana como um supraprincípio, de caráter absoluto.
189
sim, que constituía uma explicação distinta daquela perseguida pelo método filosófico
tradicional, concebido sob uma relação ancilar entre linguagem e realidade. A nova
compreensão proposta por Wittgenstein tinha por objetivo resolver, de um outro modo, esta
relação sempre complexa, e o resultado derradeiro da aplicação de tal método consiste no
quadro entrevisto no capítulo 2, no curso do qual discutiram-se não apenas as principais
conclusões alcançadas pelo filósofo austríaco, mas também o fato de que tais conclusões
consistiam em uma virada, ao menos quando cotejadas com a perspectiva ontológica
tradicional. Formar uma Übsersicht é justamente alcançar este resultado, lançar um contraste
sobre os caminhos reais e imaginários da linguagem, colorindo-os, e ao final voltar os olhos
para a labiríntica estrada construída348, reconhecendo a sua complexidade e que ela não é
acidental, mas fruto da ação do homem em seus mais variados contextos sociais e propósitos,
inclusive quando incide em mal-entendidos filosóficos decorrentes de fontes diversas. E aqui
é importante salientar que Wittgenstein nunca os considerou erros ou um uso equivocado da
linguagem, mas mal-entendidos349, que se integram, portanto, na formação desta visão
panorâmica, ainda que em caráter vestibular, e que tendem a desaparecer quando
reconhecidos como ilusão.
Quando se questiona a respeito de uma Übsersicht da dignidade humana, a
pergunta parece estar mal estruturada ou, mais propriamente, que o questionador teria
incorrido em uma inversão. Se o resultado da Übersicht consiste no próprio conjunto da
filosofia do segundo Wittgenstein e na modificação do modo como se percebe as relações
entre linguagem e realidade, poder-se-ia pensar que o exame de um determinado termo da
linguagem consistiria, a princípio, apenas parte desta Übersicht, mero instrumento que
contribui para sua formação, e não um resultado autônomo. Deve ser observado, entretanto,
que o método terapêutico não é alheio à profundidade de cada problema filosófico – medida
pela profundidade de seu enraizamento na linguagem e em nossa forma de vida –, tampouco à
necessidade de tratá-los separadamente, reconhecendo as suas especificidades (IF 133;
348 A metáfora geográfica não é aqui utilizada sem propósito. Wittgenstein, em inúmeros pontos de sua obra, faz referencias à geografia e mapas conceituais, chegando a anotar expressamente em seus manuscritos que o “filósofo quer dominar a geografia dos conceitos” (apud BAKER; HACKER, 2009a, p. 284) e a afirmar, em suas palestras, que a dificuldade em filosofia é semelhante àquela enfrentada ao chegar em um país estrangeiro no qual não se dispõe de mapa (AWL 43). Esta mesma ideia é trazida no § 123 Investigações Filosóficas, embora se perca na tradução brasileira. Nesse parágrafo, Wittgenstein afirma que os problemas filosóficos têm a forma “Ich kenne mich nicht aus.”, expressão da linguagem comum alemã muitas vezes utilizada para expressar a desorientação que se enfrenta ao chegar-se em uma localidade na qual não se conhece os caminhos. Na tradução brasileira “não estou por dentro” perde-se esse sentido geográfico. 349 Como chama atenção Spaniol (1989, p. 89), Wittgenstein nunca considerou a linguagem comum algo sacrossanto e intocável.
190
CHAUVIRÉ, 1991, p. 128-129). Por conseguinte, a formação de uma Ubsersicht, enquanto
método e meta, tem por objeto específico um ponto específico da linguagem convertido em
problema, alcançando-se, em relação a ele, uma compreensão que não apenas contribuirá para
a clareza final, mas também com ela coincidirá.
3.4.2.1 Há utilidade em uma Übsersicht jurídica da dignidade humana?
Chancelada a possibilidade de que o exame wittgensteiniano seja realizado
sobre a dignidade humana enquanto problema filosófico, ainda parece remanescer obscura a
sua adequação à pergunta jurídica por tal dignidade. Sem ingressar, aqui, nas diatribes a
respeito do caráter científico do Direito, bastaria, no caminho do reconhecimento de que a
filosofia terapêutica e seus diversos instrumentos apresentam utilidade bastante limitada, que
se identificasse o Direito como uma disciplina autônoma, submetida a uma normatividade
própria e sujeita à necessidade de operacionalizar seus conceitos sob a forma de definições.
Não faria sentido negar à disciplina jurídica a pergunta pelo “que é”, aparentemente legítima
para a operacionalização do conceito, tampouco o recurso a uma normatividade própria, de
sorte que a aplicação da virada wittgensteiniana tomaria corpo, principalmente, como
instrumento de reforço à denúncia de um excessivo formalismo jurídico 350, ou como
prenúncio de que o direito constitui um jogo de linguagem sui generis, submetido às suas
próprias e peculiares regras, conforme consigna expressamente Alexy (2005, p. 73) nos
prolegômenos de sua teoria da argumentação jurídica.
Deve-se reconhecer que tais delineamentos constituem, sem dúvida,
elementos de inegável relevo, especialmente como pontos de partida para alguns
desenvolvimentos teóricos no campo da metodologia jurídica, mas não são estes,
precisamente, os aspectos que demandaram, aqui, a aproximação com a filosofia
wittgensteiniana. O que se tem por foco principal, ao visualizar-se a utilidade do método
terapêutico, não é o reconhecimento do direito como um jogo de linguagem próprio, ou a
crítica ao formalismo jurídico – que já permeia, de toda sorte, o presente trabalho –, mas o já
apontado caráter peculiar da dignidade, a percepção, resultante dos exames feitos no primeiro
capítulo, de que a dignidade humana raramente se apresenta, mesmo quando se persegue uma
resposta dentro dos lindes do direito positivo, como um problema a ser resolvido com
350 Uma análise do formalismo jurídico, contrapondo-o ao ceticismo, pode ser encontrada em Hart (2012, p. 161-199).
191
recursos estritamente jurídicos, mediante análise de um dado ordenamento. Como lá visto, a
dignidade humana, positivada constitucionalmente, acaba por constituir o epicentro de
discussões jurídicas quase imemoriais, que permeiam a experiência jurídica através dos
tempos e que colocam em questão, ao final, o próprio conceito de direito. E o jurista, inserido
nesta tensão perene, embora dificilmente negue a normatividade própria do direito, tampouco
abdica da busca concomitante por um significado universal e, nessa medida, unívoco e
independente do contexto para o conceito dignidade, lidando normalmente com a perspectiva
de um núcleo conceitual intangível, fundamentado metafisicamente e que se relaciona,
necessariamente, ao homem.
Em inúmeros pontos deste trabalho, especialmente no primeiro capítulo,
ressaltou-se que o quadro descrito no parágrafo anterior acenava para um ponto de intersecção
entre o direito e a filosofia, consubstanciado no fato de o jurista buscar, nesta, a resposta
acerca do que é dignidade. Com o aporte das ponderações ulteriores, feitas sobretudo neste
capítulo, foi possível perceber que a intersecção entre as disciplinas, corporificada na
dignidade humana, diz respeito muito mais à estrutura da pergunta que ao conteúdo da
resposta. O jurista, ao questionar abstratamente pelo conceito de dignidade humana, atuando
com a linguagem de férias, girando em vão, dissocia a palavra de seus usos e revela, com tal
atitude, a sua integração plena à mesma cultura que secreta os problemas filosóficos
(CHAUVIRÉ, 1991, p. 124). Não é, por conseguinte, em razão de se buscar respostas na
filosofia que tal disciplina interage com a matéria jurídica, mas antes em razão de o
questionamento ser formulado ao modo filosófico tradicional, ainda que entremeado, em grau
variável, de uma normatividade propriamente jurídica. É justamente em virtude deste modo
de agir, que toma a dignidade humana como um problema ao modo da filosofia ocidental, que
se faz útil a filosofia terapêutica. Por meio dela torna-se possível entrever quais as
pressuposições que conduziram ao questionamento abstrato a respeito da dignidade humana,
quais os mal-entendidos engendrados pela gramática superficial ou pelas tendências do
homem e como tais mal-entendidos poderiam ser superados por um novo modo de visualizar
o uso da linguagem pelo homem. Se o homem moderno – inclusive o jurista – procura,
através da definição do conceito de dignidade humana, elucidar a imagem que tem de si
mesmo, autocompreender-se, o método wittgensteiniano fornece-lhe abertura para uma outra
espécie de autocompreensão, em que suas práticas linguísticas não mais adquirem relevo por
estarem em relação isomórfica com a realidade, mas sim por resultarem na estruturação desta
mesma realidade, que agora é compreendida como repousando à sombra da gramática. Esta
192
nova compreensão não apenas toma como base o abandono da pressuposição de que o
significado de dignidade humana constitui um halo que acompanha a expressão em todos os
seus empregos (IF 117), mas principalmente permite visualizar que uma sentença como “todo
homem é portador de igual dignidade” não constitui proposição que espelha a realidade, mas
antes a estrutura, ao menos para uma determinada comunidade linguística, onde está
relacionada a um modo de ser próprio.
Cogitar a respeito da utilidade de uma Übersicht jurídica da dignidade
humana, assim, consiste inicialmente em uma tarefa organizada de duas etapas concomitantes
e que se interpenetram: 1) perceber, através de um exame descritivo, que a pergunta jurídica a
respeito da dignidade humana estrutura-se, ao menos parcialmente, ao modo da filosofia
tradicional, sempre encerrando a tentativa de desvendar uma essência real ou nominal que
acompanhe o termo e que esteja relacionada, de modo necessário, ao homem; 2) agenciar os
fatos da linguagem envolvendo a expressão dignidade humana de modo a visualizar quais os
mal-entendidos gramaticais que conduzem à problematização da dignidade e, em acréscimo,
identificar como estes mal-entendidos repercutem na seara jurídica, na qual se relacionam,
principalmente, à dificuldade de outorga de uma definição que não apenas seja compatível
com os todos os papéis desempenhados pela dignidade humana nos diversos jogos de
linguagem, mas também que satisfaça a inquietação profunda associada pelo homem a tal
expressão linguística, em especial após a disseminação praticamente mundial do discurso que
associa dignidade humana aos direitos humanos351.
A formação desta visão panorâmica da dignidade humana não encerra,
entretanto, apenas tal atividade de caráter negativo, de destruição das mitologias, também
apresentando uma faceta positiva, consistente no conhecimento maior da linguagem e do
modo como ela é utilizada. Isso decorre do exame de jogos de linguagem em que a expressão
dignidade humana comparece e da função que desempenha em cada um deles; do
reconhecimento de que a dignidade é um conceito de semelhança de família, não passível de
definição por Merkmale, e cuja utilização não precisa pressupor tal definição; da admissão,
351 No § 111 das Investigações Wittgenstein deixa entrever em que medida a profundidade da nossa inquietação tem suporte no grau de assentamento de um determinado uso em nossa linguagem: “Os problemas, que surgem através de uma má interpretação de nossas formas de linguagem, têm o caráter de profundidade. Trata-se de inquietações profundas. Elas estão arraigadas em nós tão profundamente quanto as formas de nossa linguagem, e seu significado é tão grande quanto a importância de nossa linguagem. – Perguntemo-nos: Por que sentimos que um chiste gramatical é profundo? (E esta é a profundidade filosófica)”.
193
por fim, de que a compreensão mútua do termo “dignidade humana” implica o
compartilhamento de uma determinada forma de vida.
3.4.2.2. Introdução a uma Ubersicht
Apresentados os elementos e os efeitos desta visão panorâmica acerca da
dignidade humana, pode-se, por meio de um exame retrospectivo sobre o caminho trilhado até
aqui, perceber que a quase integralidade deste trabalho já consiste na tentativa de fornecer
contributos para a formação desta Übersicht, em especial no que tange a suas repercussões
negativas. Retomando-se os exames feitos ao longo deste estudo, pode-se observar que eles
centraram-se não apenas na gramática das expressões “dignidade” e “dignidade humana”, mas
também nas respostas normalmente encontradas pelo jurista, que foram examinadas e
confrontadas sempre com um duplo intuito: 1) por um lado, pretendeu-se formar um quadro
que permitisse visualizar que o discurso jurídico a respeito da dignidade estrutura-se em torno
da pergunta pela essência, construído sobre a tensão entre uma concepção juridicamente útil e
a reverência diante de uma essência metafísica ou, quando menos, sob a cogência de uma
objetividade pré-jurídica. Saliente-se que o exame não tinha por objetivo elucidar o
significado jurídico de dignidade, tampouco assentar o grau de consolidação e
desenvolvimento conceitual dentro dos lindes do direito, mas sobretudo mostrar a presença
desta tensão constante, que se revela, na dignidade, de forma mais intensa que em outros
conceitos jurídicos; 2) por outro lado, buscava-se, através deste mesmo exame gramatical,
entender como as gramáticas dos termos dignidade e dignidade humana interagem entre si e
como influenciam na formação deste questionamento jurídico abstrato, voltado para a
essência e agora pensado como fruto de mal-entendidos gramaticais. O exame, assim,
prestava-se a revelar as fontes destes mal-entendidos e destas ilusões que conduzem à
pressuposição de uma essência subjacente à dignidade, bem como permitir a compreensão de
como estes mal-entendidos repercutem, em um movimento circular, novamente no discurso
jurídico, alimentado por uma dieta unilateral e pela projeção de caracteres de um jogo de
linguagem em outro.
É certo que não se pode sustentar, alcançada a presente estatura da pesquisa,
que esta Übersicht tenha sido formada ou que o trabalho aqui elaborado ajuste-se, totalmente,
à metodologia wittgensteiniana. A filosofia terapêutica é metodologicamente muito mais rica
do que a análise aqui levada a efeito, especialmente por envolver a rotineira invenção de jogos
194
de linguagem e criação de conceitos fictícios, cujo desenvolvimento para a dignidade humana
exigiria um gênio inventivo mais desenvolvido que o do autor do presente trabalho. Por tais
motivos deixou-se de lado os conceitos de apresentação (ou representação) panorâmica e de
links intermediários (conectivos), que envolvem sobretudo os símiles wittgensteinianos (IF
122). Deve-se reconhecer, ademais, que a tarefa de descrição da linguagem aqui empreendida
centrou-se em um aspecto que dificilmente seria tematizado com tanto empenho por
Wittgenstein, qual seja, a compreensão de como se desenvolvem as pesquisas jurídicas – ou
ao menos parte delas – a respeito da dignidade. Deveras, ao lado da descrição do papel que a
dignidade desempenha nos seus usos concretos, jurídicos e não jurídicos, empreenderam-se
inúmeros exames a respeito das respostas já fornecidas à pergunta “o que é dignidade” e do
modo como estas respostas são construídas, atividade que teve como pressuposto,
essencialmente, a percepção de que os usos jurídicos da dignidade são tributários, em alguma
medida – embora seja difícil definir qual –, destas respostas construídas. Tais elementos não
constituem, de toda sorte, óbices a que se considere os exames aqui realizados como
introdutórios à formação de uma Übersicht, permissiva de que se compreenda, em relação à
dignidade humana, como se engendram os mal-entendidos e como repercutem no discurso
jurídico concreto.
Enunciar o caráter eminentemente negativo desta empreitada
wittgensteiniana não significa, por evidente, negar a pergunta jurídica pela dignidade, mas tão
somente um tipo de formulação desta pergunta, que conduz também a um tipo de resposta
específico, de grande repercussão no discurso jurídico. Dissolvido o problema filosófico da
dignidade humana, desfeita a confusão que remete o jurista à essência e à necessidade de uma
definição unívoca que dê conta do conceito de dignidade humana em todos os sistemas
jurídicos e todos os seus usos, jurídicos e não jurídicos, remanesce intacta a possibilidade da
pergunta jurídica, ainda que agora balizada de modo distinto.
Não se pretendeu, no presente estudo, analisar as potencialidades do
discurso jurídico sob estas novas balizas, mas tão somente remover alguns obstáculos, o que
revela o seu caráter decididamente negativo e introdutório. Não se pode deixar de admitir,
entretanto, que esta introdução também apresenta um aspecto positivo reflexo,
consubstanciado em um conhecimento mais aprofundado das nossas relações com a
linguagem e, particularmente, dos usos variados das expressões “dignidade” e “dignidade
humana” no cotidiano e em jogos de linguagem diversos. É ele que permite entrever que o
195
significado de tais expressões depende de seu uso concreto, em jogos de linguagem variados,
e que constitui fonte de desorientação não apenas pressupor um significado unívoco que
acompanhe a expressão como uma penumbra, mas também que as proposições com sentido
sejam dependente das possibilidades combinatórias entre corpos de significado
(Bedeutungskörper) que permitam visualizar, ao modo de um cálculo prévio, as
possibilidades de uso do termo. A analogia com os jogos de linguagem serve justamente para
pontuar o caminho inverso, culminando em regras que variam de acordo com os jogos e que
não podem ser justificadas, estando em relação interna com a sua aplicação.
Nesse novo contexto assim inaugurado, dominar um conceito não consiste
em ser capaz de fornecer-lhe uma definição precisa, que lhe ressalte os caracteres essenciais
imprescindíveis, tampouco de delinear, abstratamente, todas as regras de aplicação possíveis,
mas aprender, pelo hábito, uma técnica que lhe permita ser capaz de utilizá-lo nos diversos
jogos de linguagem em que comparece. Como contrapartida, as explicações possíveis dos
conceitos precisam ir apenas até esse ponto, qual seja, o de permitir um bom julgamento, não
o de estabelecer uma regra que não possa ser mal-interpretada (HACKER, 1986, p. 174)352.
Com essa consciência, abrem-se caminhos para que o jurista, ao buscar o
conceito de dignidade humana, não mais procure pela sua essência, ou o vincule a uma
essência humana imutável, mas que estude o funcionamento concreto da linguagem e os usos
que tal palavra conceito recebe, nos diversos jogos de linguagem em que comparece. Só a
partir destes usos, compreendendo-se a estrutura dos jogos de linguagem e as formas de vida a
eles relacionadas, bem como evitando-se projeções indevidas, será possível operacionalizar o
conceito de dignidade humana dentro de diversos ordenamentos jurídicos.
352 Isso não impede, evidentemente, que um conceito seja delimitado, para uma finalidade específica, da forma tradicional, como reconhece o próprio Wittgenstein na sua Gramática ao ponderar a utilidade da definição do conceito de planta para a botânica (GF, p. 87)
196
CONCLUSÃO
Em determinado ponto da biografia de Wittgenstein, Monk (1990, p. 247)
narra que o filósofo vienense, após seu retorno para Cambridge em 1929 e a publicação do
Tractatus, tornou-se alvo de uma sátira maldosa em forma de poema, no qual era confrontado
com as contradições internas de seu primeiro trabalho e com as contradições entre a proposta
lá encerrada e o modo de se conduzir na vida353. Embora Wittgenstein tenha abandonado – ao
menos para a maior parte dos estudiosos – muitos do que defendera no Tractatus, as
contradições não o abandonaram na segunda fase de sua filosofia; de uma certa forma
acirraram-se, a medida que se tornaram menos belas, deixando de se cercar da aura do místico
e da beleza do inefável. Na fase madura de sua filosofia, a contradição assumia não mais a
forma avassaladora do Tractatus, que punha em xeque todo o projeto filosófico lá encerrado,
mas a incompatibilidade entre uma filosofia que, por um lado, propunha-se a deixar tudo
como está (IF 124), a não levantar teses controversas (IF 128) e, por outro, encerrava
inúmeras proposições que não constituíam meros truísmos e que poderiam, para muitos, ser
qualificadas como teses (IF 43; IF 371, IF 384 etc.).
Esta contradição foi superada por alguns teóricos negando-se a tais
assertivas, em especial à aproximação entre significado e uso, o caráter de teoria filosófica.
Outros, contudo, a exemplo de Kenny (2006, p. XIX), não lograram escapar dessa aporia e
desistiram de resolvê-la, visualizando, no segundo Wittgenstein, uma contraposição insanável
entre teoria e prática filosófica, que demandaria um ato de escolha entre elas. Para levar
adiante qualquer filosofia baseada no segundo Wittgenstein seria necessário, por conseguinte,
escolher entre sua prática terapêutica e suas inúmeras teorias, a exemplo da que aproximava o
significado do uso ou que desenvolvia o argumento contra a linguagem privada.
No curso deste trabalho não se fez, explicitamente, esta escolha, tampouco
se tematizou a contradição que muitos consideram ínsita ao pensamento do mestre vienense.
Antes, afastou-se-a implicitamente, considerando-a resolvida ou, no máximo, desimportante
em face dos objetivos aqui encerrados, qual seja o de promover um exame da temática da
dignidade humana. Não se tratava, aqui, de lidar com a dignidade humana sob o paradigma da
353 “For he talks nonsense, numerous statements makes. / Forever his own vow silence breaks: / Ethics, aesthetics, talks of day and night, / And calls things good or bad, and wrong or right”
197
filosofia da linguagem comum, o que representaria empregar a contraparte eminentemente
teórica dos trabalhos do segundo Wittgenstein, mas de um esforço orientado a promover, para
a temática da dignidade humana, a transição entre a filosofia ontológica e a filosofia da
linguagem comum, o que demandava o emprego de sua filosofia terapêutica. É esta prática
filosófica que poderá fornecer um instrumentário adequado à temática da dignidade humana,
se não para já promover e desenvolver essa virada, ao menos para revelar onde nasce a
resistência a esta virada e o que poderia resultar se ela fosse minada a contento.
O trabalho dedicou-se, por conseguinte, a analisar um pouco desta filosofia
terapêutica e de suas possíveis interações com a temática da dignidade com um duplo
objetivo: mostrar que o modelo ontológico ou metafísico não é o único possível e que existe
alternativa, inclusive com repercussões interessantes dentro do direito; deixar claro que essa
alternativa não é facilmente alcançável e iluminar as dificuldades, inclusive dentro do direito,
para que seja alcançada essa mudança de perspectiva. Para cumprir esta tarefa, o texto
estruturou-se da forma adiante exposta.
O Capítulo 1 teve como objeto, precipuamente, uma análise abrangente da
dignidade tanto nos ordenamentos jurídicos internos quanto no discurso, mais geral, sobre
direitos humanos. Neste capítulo, ainda sem qualquer incursão na filosofia de Wittgenstein,
identificou-se em quais circunstâncias o termo “dignidade humana” foi introduzido em textos
nacionais e internacionais, examinando-se, em sequência, de que modo pode ser
compreendida a afirmação, comumente realizada, de que a dignidade humana constitui
fundamento dos direitos humanos universais. É como resultado dessa análise, desenvolvida ao
longo do item 1.3 e respectivos subitens, que se alcançaram duas conclusões importantes: 1) a
associação entre dignidade e fundamento pode ocorrer com vários sentidos distintos (item
1.3.3); 2) sob a rubrica de fundamento (ao menos em um dos sentidos possíveis), a dignidade
funciona, em realidade, como um anteparo no processo de justificação, integrando tanto o
conceito quanto o fundamento dos direitos humanos universais e adquirindo um conteúdo
distinto a depender do projeto ético que se tem em vista. É ela que sofre diretamente a
incidência, outrossim, na qualidade de ponto de convergência entre conceito e fundamento, da
ruptura decorrente das tentativas de separação metodológica entre conceito e fundamento, que
fraturam projetos éticos justamente sobre o limite da dignidade humana e acabam conferindo,
a este conceito, a perspectiva de uma certa autonomia e a impressão de que pode ser pensado
de forma desvinculada dos projetos éticos em que inserido.
198
Na sequência do Capítulo 1 (1.4) cuidou-se de examinar, ainda que de
forma bastante geral, como se utiliza a dignidade humana dentro dos ordenamentos concretos
e quais os problemas lá enfrentados, alcançando-se, de início, em uma perspectiva mais
ampla, a conclusão de que a tensão imorredoura entre positivismo e jusnaturalismo reinstala-
se, em inúmeros ordenamentos, transmudada na questão conceitual da dignidade, tendo por
epicentro precisamente a definição que se outorgue a tal conceito. Esta mesma tensão se
revelaria, outrossim, no enfrentamento constante entre uma solução filosoficamente correta e
juridicamente útil, que é reportada inúmeras vezes ao longo de todo o trabalho. Em seguida, o
capítulo encerrou um exame concreto de algumas tentativas doutrinárias de operacionalizar o
conceito, inclusive caracterizando que tais tentativas não logram, de regra, desenvolver-se à
margem de uma concepção ontológica da dignidade humana, responsável, em grande medida,
pelas dificuldades de outorgar-se uma definição ao conceito.
Caracterizado, no primeiro capítulo, que a definição do conceito dignidade
humana passou a constituir, nos últimos anos, epicentro da tensão entre jusnaturalismo e
juspositivismo, iniciou-se o Capítulo 2 sob o influxo desta questão, tentando-se determinar,
num primeiro momento, em que consiste uma definição e o que distinguiria uma definição
real de uma definição nominal. O exame, entretanto, logo evoluiu para o questionamento a
respeito de um problema muito mais tormentoso, qual seja, o da própria relação entre
linguagem e realidade. É perquirindo sobre o que constitui o significado subjacente às
definições e, principalmente, se a linguagem humana é estruturada por uma relação
isomórfica com a realidade ou se, antes, estrutura-a, que trouxe rapidamente o primeiro
Wittgenstein e progrediu-se o capítulo em direção ao paradigma da linguagem comum e à
teoria do segundo Wittgenstein, exposta nos subitens do item 2.4. O objetivo não era
apresentar a filosofia terapêutica e a crítica wittgensteiniana à própria filosofia – embora elas
já transparecessem, inevitavelmente, em alguns pontos –, mas expor uma visão ampla do
pensamento wittgensteiniano, em especial com intuito de delinear o novo paradigma nas
relações entre linguagem e realidade, bem como de revelar, neste novo paradigma, como a
noção de significado aproxima-se da do uso do termo em um jogo de linguagem e como
podiam ser superadas as tendências essencialistas. A apresentação geral da filosofia de
Wittgenstein tinha como propósito, outrossim, evitar o efeito de disponibilidade que decorre,
por vezes, do caráter aforístico e assistemático de sua obra, conforme exposto já no terceiro
capítulo (3.2.2.1).
199
O Capítulo 3, por fim, foi dedicado a buscar as aproximações concretas
entre a filosofia do segundo Wittgenstein e a temática da dignidade humana, tarefa que
ocorreu em dois momentos distintos (itens 3.1/3.2 e 3.4), intercalados pelo que parecia,
erroneamente, um pequeno retrocesso no exame da dignidade (item 3.3).
O primeiro momento de aproximação explícita ocorreu ao longo dos itens
3.1 e 3.2, ocasião em que, após ratificar-se o caráter peculiar da dignidade, ponderou-se que o
tratamento jurídico outorgado ao tema esteve marcado, na maioria das vezes, por um viés
essencialista, quer vinculando a dignidade à idéia explícita de uma essência humana, quer
pela perspectiva de um significado único, que acompanhe a expressão em todos os
ordenamentos jurídicos e em todos os usos. A adequação do pensamento wittgensteiniano
residiria, precisamente, no fato de tal filosofia representar um contraponto a esta perspectiva
essencialista, apontada como a raiz de boa parte dos problemas enfrentados em relação à
dignidade. Este novo modo de ver a linguagem seria apto a abrir uma via antes vedada pelo
recurso à essência, permitindo a compreensão do termo dignidade humana de forma mais
coerente e próxima do modo de vida de cada sociedade.
O objetivo do trabalho, entretanto, não consistia em desenvolver esta via,
pressupondo-a aberta, mas antes em apontar e remover, na medida do possível, os óbices
concretos existentes a que se possa percorrê-la. É nessa senda que se desenvolveu o restante
do trabalho. No item 3.3, já assentados como pontos problemáticos o caráter essencialista e,
especialmente, a associação necessária entre dignidade e homem, examinou-se como as
teorizações sobre a dignidade humana, a despeito da variedade de usos do termo,
desenvolvem-se de modo a culminar em uma aproximação necessária entre os termos
dignidade e homem, reforçando a ideia de uma dignidade ontológica e da vinculação
necessária ao valor do homem. Já no item 3.4, retornando-se à filosofia wittgensteiniana,
delineou-se os contornos do método terapêutico e realizou-se um primeiro enfrentamento com
a própria linguagem, identificando-se, na gramática dos termos “dignidade” e “dignidade
humana”, bem como no tratamento outorgado à matéria, algumas fontes do que Wittgenstein
considera mal-entendidos. O capítulo não foi encerrado, todavia, elencando-se estes mal-
entendidos, subsistindo, ainda, duas postulações salutares: 1) que o problema consistiria na
formulação da pergunta acerca da dignidade ao modo da filosofia ocidental, de modo que só a
formação de uma visão panorâmica a respeito da nossa linguagem e dos empregos das
200
expressões “dignidade” e “dignidade humana” seria capaz de permitir a aplicação, à temática
da dignidade, das conclusões wittgensteinianas; 2) que boa parte do exame realizado ao longo
do trabalho, em especial no “Capítulo 1” e no “Capítulo 3” , já fornecia contributos relevantes
para a formação desta visão panorâmica, tendo em vista que tal exame, ainda que de forma
assistemática, já havia se centrado nos diversos usos outorgados à expressão “dignidade
humana” e às suas respectivas interações com os contextos variados nos quais comparecia.
Concluída a apresentação geral dos temas e perspectivas examinados ao
longo da pesquisa, não há dúvida de que ela deve ser considerada, ao menos sob alguns
aspectos, um trabalho em andamento, cujo resultado final, se concluída a contento, poderia
ser a libertação de uma imagem que nos mantém presos, ou a mudança na “vontade”
mencionada por Wittgenstein. Enquanto trabalho acadêmico e de pesquisa, o objetivo era
mostrar a adequação do propósito terapêutico à temática da dignidade, o que se fez,
sobretudo, apresentando-se o método terapêutico e as fontes de mal-entendido identificadas
por Wittgenstein, bem como questionando acerca de sua aplicabilidade na tentativa de
entender os problemas concretos apontados em relação à dignidade. Acredita-se que desta
tarefa a pesquisa logrou desenlear-se. Cogitando-se, entretanto, da possibilidade de este passo
já coincidir com o primeiro momento de uma empreitada terapêutica efetiva, há de se
reconhecer que ainda restaria uma longa extensão de terra a ser arada (RO p. 199) e um
caminho igualmente longo a ser percorrido.
201
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