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Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUC - SP Elaine Cássia Pereira Fernandes Você como pronome de segunda pessoa no Brasil: motivações e percursos histórico, literário e gramatical Mestrado em Língua Portuguesa São Paulo 2009

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Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

PUC - SP

Elaine Cássia Pereira Fernandes

Você como pronome de segunda pessoa no Brasil: motivações e percursos histórico, literário e gramatical

Mestrado em Língua Portuguesa

São Paulo 2009

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

PUC - SP

Elaine Cássia Pereira Fernandes

Você como pronome de segunda pessoa no Brasil: motivações e percursos histórico, literário e gramatical

Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para a obtenção do titulo de MESTRE em Língua Portuguesa, sob a orientação da Profª. Drª. Leonor Lopes Fávero.

São Paulo 2009

BANCA EXAMINADORA __________________________________ __________________________________ __________________________________

__________AGRADECIMENTOS____________________________________ A Deus; À Professora e Orientadora Leonor Lopes Fávero, pelo apoio, pela dedicação e

pela compreensão nos momentos difíceis;

Aos professores Jarbas Vargas Nascimento e Márcia Antônia Guedes Molina,

pelas construtivas contribuições feitas no exame de Qualificação;

Ao meu marido, pelo custeio do curso;

À direção e aos colegas da Escola Estadual “Professora Maria Auxiliadora

Marques”, pelo incentivo e respeito;

À minha mãe, fiel companheira, pelo apoio incondicional e pela presença

indispensável;

Ao meu filho, pela tolerância e pela motivação que seu sorriso representava;

À PUC e aos meus professores durante o curso de mestrado, por terem

possibilitado meu crescimento profissional;

Ao Programa Bolsa Mestrado, por ter viabilizado este trabalho.

DEDICATÓRIA

Aos meus alunos, motivação maior

desta conquista.

__________RESUMO_____________________________________________

O emprego do pronome você como pronome de segunda pessoa, no

português corrente no Brasil, é aspecto singularizante da língua em território

nacional e fato que faz indagar acerca das vicissitudes históricas e sociais que

levaram a essa alternativa no direcionamento íntimo e direto ao interlocutor.

O presente trabalho buscou, por meio dos pressupostos teóricos da História

das Ideias Linguísticas, as motivações que levaram à opção nacional,

contrastando, nesse aspecto, a língua portuguesa em uso no Brasil com a língua

portuguesa em uso em Portugal, onde o emprego do tu e do você apresentam

matizes bem definidas, prestando-se o primeiro ao tratamento informal e o segundo

ao tratamento semiformal do interlocutor.

Ao construir os percursos histórico e literário do pronome, resgataram-se

sua origem medieval, em meio aos modos de tratamento reverencial do

interlocutor, o processo de transferência dos modos de tratamento de Portugal para

o Brasil, sua aceitação e seu desgaste semântico, além de sua posterior inserção

nos textos literários, por meio de uma breve retrospectiva aos séculos XVII e XVIII

e de uma análise mais detalhada de obras nacionais dos séculos XIX e XX,

período de afirmação nacional, de intensa produção romanesca e de uma

crescente preocupação com a construção verossímil da participação discursiva dos

personagens.

A construção do percurso gramatical permitiu constatar o quanto o progresso

da Linguística possibilitou mudanças em relação às definições pronominais, além

de evidenciar o caráter conservador, próprio das Gramáticas, por meio da

constatação de que um fato linguístico, mesmo que inquestionável, pode ter

protelada sua legitimação em um texto gramatical, seja ele de caráter prescritivo ou

descritivo.

__________ABSTRACT___________________________________________

The use of YOU as a second person pronoun in the Brazilian language, has a

singular form in the national territory and it is a fact that makes us think about the

historical and social changes that led it to this alternative in the closer and right

direction to the interlocutor.

Through the teorical issues about History of Linguistic Ideas, this work tried to show

the reasons that led the YOU to this national option, contracting, this way, the

Portuguese language spoken in Brazil with the Portuguese spoken in Portugal,

where the use of THOU and YOU shows accurated tints, being the first one an

interlocutor´s informal treatment and the second a seminformal one.

For building the ways for the literary history about this pronoun, the medieval origins

were retaken by the reverencial treatment from the interlocutor, by the process of

changes about personal treatment from Portugal to Brazil, by the acceptation and

the semantical wear, besides its insertion in the literary scripts through a fast

reviewing about literature works from XVII and XVIII centuries and a deeper study

about national ones from XIX and XX centuries, cause it was a period of a national

affirmation, lots of novel productions and a growing worry about the truth

construction for the speach participation from the characters.

The construction of the grammatical way allowed confirming how much Linguistical

progress could change the relationship to the pronominal meanings, not to mention

certificating the conservative character, as Grammar says, by certifying that a

linguistic fact, even not questioned, could postpone its legal use in a gramatical

script, even it´s being prescritive or descritive.

__________SUMÁRIO_______________________________________________

INTRODUÇÃO 1

CAPÍTULO I – NOVA HISTÓRIA: NOVOS OLHARES SOBRE OS FATOS

LINGUÍSTICOS 5

1.1 Os Annales e o advento da história problematizante 5

1.2 História das mentalidades e história das ideias: a representação como

documento histórico 9

1.3 História das Ideias Linguísticas: o fato linguístico sob uma perspectiva

interdisciplinar e multidocumental 11

CAPÍTULO II – PERCURSO HISTÓRICO E SOCIAL DO PRONOME VOCÊ 15

2.1 Uma visão atualizada da Idade Média 16

2.2 A Idade Média e suas classes estanques 18

2.3 Renascença portuguesa: instabilidade e rearranjo social 20

2.4 Portugal: de Vossa Mercê a você 23

2.5 Emprego de você no Brasil: dissociação e peculiaridade 28

CAPÍTULO III – PERCURSO LITERÁRIO DO PRONOME VOCÊ 37

3.1 A literatura e o conceito de brasilidade 39

3.2 Uma breve retrospectiva 41

3.3 O pronome você na literatura oitocentista 44

3.3.1 Juiz de Paz da Roça: atualidade na peça oitocentista 45

3.3.2 A Moreninha: o pronome você desde o primeiro romance

nacional 47

3.3.3 José de Alencar: o manejo na escolha pronominal 50

3.3.4 Machado de Assis: caminho para a supremacia do pronome

você 58

3.4 Modernismo e Produção Contemporânea: a hegemonia do

pronome você na literatura 65

CAPÍTULO IV – PERCURSO GRAMATICAL DO PRONOME VOCÊ 74

4.1 Os pronomes na gramática portuguesa: a justificável ausência do

você 75

4.2 Pronome você nas gramáticas brasileiras do século XIX: ausência 79

4.3 O pronome você nas gramáticas brasileiras do século XX 84

CONCLUSÃO 91

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 93

1

__________INTRODUÇÃO___________________________________________

O presente trabalho vincula-se à Linha de Pesquisa História e Descrição da

Língua, do Programa de Pós-Graduação em Língua Portuguesa, e objetiva

buscar, na História do Brasil e na constituição da língua nacional, uma explicação

para o uso consolidado do pronome você como pronome pessoal de segunda

pessoa, no português em uso no Brasil, como opção ao pronome tu.

Sabe-se que as manifestações culturais são capazes de revelar muito da

psicologia e do caráter de uma comunidade. Quando se trata de um país,

guardadas as diferenças regionais e pessoais, há traços que o singularizam,

mesmo em um mundo com tendências globalizantes e homogeneizantes, como o

atual. No confronto com a alteridade, descobrem-se as particularidades de um

povo ou nação. É por meio desse confronto que se reconhecem, por exemplo, a

pompa e a pontualidade britânicas, a fleuma e a frieza germânicas, o ritualismo

chinês, o apego á hierarquia japonês, o pragmatismo americano, a alegria e a

hospitalidade brasileiras.

Dentre as manifestações culturais de um povo está sua língua. As escolhas

e as soluções linguísticas – sintáticas, semânticas, estilísticas, ortoépicas - de uma

determinada comunidade revelam características dessa sociedade e tornam-se,

assim, fonte documental importante não apenas para a Linguística, mas também

para a Sociologia, a História, a Antropologia, a Geografia. Essas ciências

encontram, na língua, elementos para subsidiar suas indagações e seus

questionamentos, para alimentar suas pesquisas e para enriquecer suas

conclusões.

Dentre os vários aspectos da língua que podem suscitar o interesse de

estudiosos de diferentes disciplinas está a opção pronominal de tratamento do

interlocutor, devido às questões subjacentes que tal preferência pode revelar, tais

como dados relativos à organização social e à história de um povo, sua relação

2

com a hierarquia, sua tendência ou não a relações aproximativas, seu caráter

mais ou menos conservador.

Esses dados produzidos por pesquisas multidisciplinares e interdisciplinares

podem e devem ter emprego em várias esferas da vida em sociedade - como a

política, a educação, a economia -, conduzindo ações e tornando-as mais

efetivas.

Ao comparar o sistema pronominal brasileiro com o que diretamente o

originou – o sistema pronominal português – e com aqueles com os quais guarda

similitudes de origem e desenvolvimento – o sistema pronominal espanhol e o dos

países hispânicos da América Latina – percebe-se uma característica que

peculiariza o sistema nacional: a alternativa representada pelo pronome você no

tratamento direto e informal do interlocutor.

Tanto na Espanha, quanto nos países americanos que falam espanhol, o

correspondente hispânico do você – o pronome usted - carrega ainda hoje uma

carga reverencial ou distanciadora que faz dele uma opção para as interações

formais ou não íntimas. Nesses países, com exceção da Argentina – que fez

opção pelo vós – o pronome eleito para o tratamento direto é o tu.

Também em Portugal, o pronome tu é empregado em situações corriqueiras

e informais, cabendo ao você uma posição intermediária entre o irreverente tu e o

respeitoso o senhor / a senhora, o que não lhe imprime, no país europeu, o caráter

prosaico de que desfruta no Brasil.

Não há, portanto, como não se indagar sobre as vicissitudes históricas e

sociais que motivaram a inusitada escolha pronominal no Brasil, com o intuito de

conhecer mais sobre o povo brasileiro e de reconhecer-se como nação, cujas

características precisam ser consideradas para a formulação de um projeto de

desenvolvimento nacional.

3

Levando-se em consideração que o fato linguístico é resultado de uma

interação de inúmeros aspectos sociais e que seu estudo deve colaborar com a

solução de problemas da sociedade que o originou, buscou-se na História das

Ideias Linguísticas e em sua imanente filiação aos pressupostos da Nouvelle

Histoire - interdisciplinaridade, multiplicidade documental e aplicabilidade do

conhecimento científico – o apoio teórico que orientou esta pesquisa.

Dividiu-se a dissertação em quatro capítulos. O primeiro expõe a formulação

de uma nova concepção de História, motivada por inquietações sociais e

científicas, cujo desdobramento culminou no nascimento da História das

Mentalidades e da História das Ideias, dentre elas a História das Ideias

Linguísticas, cujos pressupostos norteiam este trabalho.

O segundo capítulo visa a reconstruir o percurso histórico e social do

pronome você, revelando-se suas origens medievais e a consolidação

renascentista de sua forma matriz – Vossa Mercê - , além de expor os motivos que

levaram ao sucesso das formas reverenciais de tratamento, em Portugal, e que

determinaram a alternativa ao tu , no tratamento do interlocutor, no Brasil.

A fim de evidenciar também que, sobre o fato linguístico, atuam agentes

legitimadores e infirmativos e que, sobre a língua, atuam forças centrípetas –

homogeneizantes - e centrífugas – heterogeneizantes -, analisaram-se a

legitimação do emprego pronominal em textos literários e sua representação e

descrição em gramáticas.

Assim sendo, o capítulo III dedica-se à elaboração do percurso literário do

pronome você, fazendo um breve recuo a textos produzidos nos séculos XVII e

XVIII, em Portugal, mas focando primordialmente obras escritas nos séculos XIX e

XX, no Brasil, por ser um período de consolidação do caráter nacional.

4

O Capítulo IV, ao buscar a inserção e a representação do pronome você em

obras gramaticais, traça o percurso gramatical dos pronomes pessoais, iniciando-o

com uma gramática que serviu de modelo às portuguesas – a Grammaire de Port-

Royal - e finalizando-o com obras gramaticais brasileiras do último quartel do

século XX.

Por fim, apresentam-se a conclusão e as referências bibliográficas.

5

__________CAPÍTULO I_________________________________________ NOVA HISTÓRIA: NOVO OLHAR SOBRE OS FATOS LINGUÍSTICOS

1.1 Os Annales e o advento da história problematizante Enquanto as ciências biológicas e as ciências exatas proveram o ser

humano de conquistas e confortos sem precedentes, as ciências sociais - aquelas

cujo material de pesquisa é o próprio fator humano, suas relações, suas ideias,

seus conflitos - parecem não responder significativamente às demandas por suas

propostas e soluções. É nesse vácuo de respostas e proposições que o mundo se

vê à beira de um colapso humanitário e ambiental, paradoxalmente, em um

momento ímpar de produção de alimentos, de riquezas, de saberes terapêuticos e

de domínio de tecnologias diversas.

Claro está que as reflexões e os saberes produzidos pelas ciências sociais -

a sociologia, a antropologia, a psicologia, a política, a história - têm orientado

muitas das escolhas para a vida em sociedade, possibilitando que ela fosse

organizada da forma como a conhecemos hoje. Cabe, no entanto, a essas

ciências, a elaboração de respostas emergenciais às questões que as vicissitudes

humanas criaram. Tais questões nos colocaram em embates sociais cujas faces

mais frequentes e alarmantes são a violência, a intolerância, o preconceito, a

degradação ambiental, o fosso social, o fracasso educacional. É do bojo das

ciências que lidam com o material humano que devem emergir os saberes

capazes de encaminhar a humanidade a um futuro mais equitativo, justo, seguro e

sustentável.

Não se pode negar que uma ciência nos parecerá sempre ter algo de incompleto se não nos ajudar, cedo ou tarde, a viver melhor. Em particular, como não experimentar com mais força esse sentimento em relação à história, ainda mais claramente predestinada, acredita-se, a trabalhar em benefício do homem na medida em que tem o próprio homem e seus atos como material? (BLOCH, 2001, p. 45)

6

Do mesmo modo, a complexidade da sociedade hodierna, com suas

demandas urgentes em todos as esferas – social, econômica, política, ambiental –

não admite mais um acúmulo científico e uma produção de saberes e informações

sem precedentes, que se restrinjam a seu próprio campo de atuação,

incomunicável com outros campos científicos e, portanto, incomunicante com a

sociedade que os concebeu e que deles espera respostas para seus problemas e

inquietações.

É com o espírito de combate ao fazer científico de gabinete – aquele que

não ultrapassa as paredes do laboratório – e à especialidade que, em 1929,

Lucien Febvre e Marc Bloch propõem uma renovação nos estudos históricos, o

que vai ocasionar uma verdadeira “revolução francesa da historiografia” - nos

dizeres de Peter Burke (1997) – e dar o impulso para o que hoje se conhece como

La nouvelle histoire.

Como intuito primordial, Febvre e Bloch desejavam, com a criação da

revista Les Annales d’Histoire Économique et Sociale, que deu forma e divulgação

a suas ideias e interesses, romper os limites disciplinares e promover o diálogo

entre diferentes ramos do saber, além de aproximar os conhecimentos produzidos

pela história das problemáticas coetâneas.

Como desconsiderava os rígidos limites entre as disciplinas, propondo um

olhar global aos problemas e um intercâmbio de informações entre as distintas

esferas do conhecimento, Febvre conclamava suas plateias, com seu peculiar

discurso inflamado, a desvencilharem-se das amarras disciplinares, que poderiam

tolher e limitar o fazer científico:

Historiadores, sede geógrafos. Sede juristas também, e sociólogos e psicólogos; não fecheis os olhos ao grande movimento que, perante vós, transforma num ritmo vertiginoso as ciências do universo físico.(FEBVRE, 1985, p. 40)

7

O primeiro grande combate dos Annales foi contra o espírito de

especialização, porém menor não foi sua luta contra a história historicizante. Se

se espera uma atitude interdisciplinar do historiador, no intuito de, por meio de

uma visão holística da realidade, poder problematizá-la e compreendê-la, não há

de se conformar com uma visão restritiva, que teime em considerar a história

como mero arrolar de fatos ligados aos grandes feitos de uma nação, às suas

conquistas bélicas, à vida de seus ilustres representantes políticos e

governamentais.

Por meio dos pressupostos da Nouvelle Histoire, as sociedades humanas

devem ser encaradas de modo amplo. Assim, não interessa apenas o governante,

mas também o governado; não interessa apenas a grande batalha, mas também o

modo de vida de quem combateu; não interessa apenas os sucessos econômicos

de uma nação, mas também as relações comerciais entre seus compatriotas. A

História não poderia mais se reduzir a crônicas de poderosos ou a relatos pontuais

sobre a vida de figuras proeminentes.

Ou a história ascende a este alargamento da visão do historiador – e, através dele, da dos seus contemporâneos – ou ela não será mais do que um jogo estéril, jogo de paciência para eruditos. Acredito ser esta a missão da História. (Ibid., p.117)

À história historicizante opor-se-á, então, a história problematizante

proposta pelos Annales: ao analisar um dado fato social, devem-se perscrutar-lhe

os motivos, as causas, os desdobramentos, as implicações, a fim de buscar as

respostas aos porquês socialmente suscitados e elaborar intervenções

cientificamente orientadas.

É que pôr um problema é precisamente o começo e o fim de toda a história. Se não há problemas, não há história. Apenas narrações, compilações. (Ibid., p.31)

Assim sendo, mais importante que a narrativa histórica tradicional, que

passa pelo “descobrimento” do Brasil e pela descrição dos períodos colonial,

monárquico e republicano até os dias de hoje, é constatar uma situação atual em

8

nosso país, indagar o porquê de tal estado de coisas e buscar, em uma

perspectiva multidisciplinar, as motivações políticas, sociais, econômicas,

psicológicas para tal conjuntura. Na resposta obtida por meio da análise do

passado para a explicação de um dado do presente, pode estar a base para a

formulação de políticas compensadoras ou retificantes. É a sociedade oferecendo

os elementos para que a ciência os organize, os analise e retribua na forma de

soluções de problemas, pois “a ignorância do passado não se limita a prejudicar o

conhecimento do presente, comprometendo, no presente, a própria ação.

(BLOCH, 2001)

Dessa forma, os estudiosos da História deixam de ser arqueólogos e

expectadores de fatos passados, expostos em livros como peças de museu para

apreciação pública passiva, para serem atuantes na sociedade da qual participam

e produtores de dados capazes de possibilitar uma reformulação do presente.

Na busca por respostas aos desafios postos pela vida moderna, a partir das

proposições dos Annales, amplia-se o conceito de documento histórico, que

ultrapassa o limite do texto escrito e vai encontrar em utensilagens diversas e em

constructos multidiscplinares o material necessário para a elaboração

interpretativa do historiador.

Os textos, sem dúvida: mas todos os textos. E não só os documentos de arquivos em cujo favor se cria um privilégio – o privilégio de daí tirar, como dizia o outro, um nome, um lugar, uma data; uma data, um nome, um lugar – todo o saber positivo de um historiador indiferente ao real. Mas, também, um poema, um quadro, um drama: documentos para nós, testemunhos de uma história viva e humana, saturados de pensamento e de acção e potência... (FEBVRE, 1985, p.24)

A partir de Febvre e Bloch e durante as três gerações dos Annales, a

unidade da concepção fundadora do grupo se manteve, por meio da defesa de

uma abordagem interdisciplinar dos fatos sociais que deve formular respostas às

situações-problema apresentadas ao pesquisador, valendo-se de documentação

diversa, isto é, de variadas produções culturais , cuja imanente capacidade

9

reveladora de necessidades, expectativas, sentimentos e valores humanos não

pode ser desprezada.

Como era de se esperar, o potencial heurístico dos Annales – como

proposta multidisciplinar e multidocumental - vem contribuindo, desde sua

fundação, para o intercâmbio entre várias áreas do conhecimento e para o

desenvolvimento de inúmeras ciências, dentre elas, a que mais particularmente

nos interessa: a Linguística.

A benfazeja aproximação entre Linguística e História não chega a ser

novidade, pois permeia as reflexões e pensamentos dos colaboradores da

Nouvelle Histoire, desde seus primórdios. Para esses pesquisadores, as trocas

entre as duas disciplinas deveriam ser estimuladas, visto que as áreas e objetos

de pesquisas de ambas estavam intrinsecamente entrelaçados.

(...) que qualquer explicação lingüística comporta a consideração de factos múltiplos – e que não se pode dar conta da evolução de uma língua senão considerando as situações históricas e as condições sociais em que essa língua se desenvolveu. Assim, a lingüística faz apelo à história e pede-lhe, para os fins que lhe são próprios, um auxílio desinteressado. Não se segue daí, inversamente, que estudos lingüísticos apresentem para a história o mais vivo interesse? (FEBVRE, 1985, p.158)

Dessa aproximação surgirá uma nova linha de estudos, em que História e

Linguística se auxiliam e se interpenetram, revelando fontes documentais

inusitadas, carregadas de ideias que tanto têm a comunicar ao mundo, facilitando

sua compreensão e, consequentemente, orientando as intervenções de que

necessita.

1.2 História das mentalidades e história das ideias: a representação

como documento histórico

10

Sob inspiração de Febvre e Bloch e, posteriormente, de Braudel, Le Goff, Le

Roy e Chartier, que concebiam e conclamavam a conceber a história de maneira

interdisciplinar e a vislumbrar como objeto de análise histórica e científica as mais

variadas fontes documentais, viu-se nascer o estudo das representações, o que

amplia ainda mais o já vasto manancial de fontes históricas, a partir dos Annales .

Todo conhecimento é imbuído pela visão de mundo de quem o elaborou,

portanto nunca se tem acesso ao fato passado , mas à representação cultural que

alguém lhe deu. O estudo de tais representações vai impulsionar a criação da

História das Mentalidades, que visa a analisar como determinada sociedade, em

determinada época, sob determinadas condições, deixou registradas suas

impressões sobre os mais variados assuntos, circunscritas às mais variadas áreas

do saber humano.

Passam a fazer parte do cabedal científico do historiador, a partir de então,

as próprias produções de cada campo de pesquisa. Assim sendo, não interessa

mais apenas os dados estatísticos com os quais a geografia possa contribuir para

o desenvolvimento da pesquisa de sua e de outras áreas do conhecimento;

interessa também a visão de mundo do momento e do espaço onde tais dados

foram criados e analisados, que interesses moveram sua criação e registro. Não

interessa apenas a representação do fato linguístico por meio das tecnologias e

dos instrumentos linguísticos dos quais o homem tem se valido, mas também os

valores da sociedade que permitiu tal representação e com qual finalidade a fez.

(...) construindo-se e aplicando-se cada vez mais a novos objetos, a novos campos, a História busca identificar o modo como, em diferentes lugares e momentos, uma determinada realidade social é construída, interpretada e deixada para a posteridade. Nesse sentido, é preciso pensar essa história como um trabalho de representação, isto é, como são traduzidos as posições e interesses dos indivíduos que compõem a sociedade, como pensam que ela é, como agem ou como gostariam que ela fosse. (FÁVERO & MOLINA, 2004, p.138)

A análise das representações que uma sociedade faz de um determinado

dado social pode revelar muito mais que a própria representação intentou. Pode

indicar ao analista as atitudes valorativas, os preconceitos, os interesses e

11

intenções subjacentes às coerções sociais que impulsionaram a criação do

contributo cultural.

E, para o historiador, idéias, instituições nunca são dados do Eterno; são manifestações históricas do gênio humano, numa determinada época e sob a pressão de circunstâncias que nunca mais se reproduzem.(FEBVRE, 1985, p.225)

No século XX, o nascimento da História das Ideias – as da Pedagogia, da

Psicologia, da Sociologia, da Geografia, da Linguística – traçará a possibilidade

de, por meio da análise e da interpretação das representações sociais, lançar luz

às instigantes indagações possibilitadas e engendradas pelo fazer histórico

problematizante.

1.3 História das Ideias Linguísticas: o fato linguístico sob uma

perspectiva interdisciplinar e multidocumental

A linguagem humana suscita, desde muito antes do advento da Linguística

como ciência, no século XX, reflexões a seu respeito. O conjunto de obras

destinadas a registrar essas reflexões e todo o conhecimento - advindo dessas

considerações e desenvolvido a partir delas - produzido acerca da língua pode ser

arrolado pela História das Ideias Linguísticas.

Seja a linguagem humana, tal como ela se realizou na diversidade das línguas; saberes se constituíram a seu respeito; esse é nosso objeto. (AUROUX, 1992, p. 13)

Desse modo, são de interesse do pesquisador da História das Ideias

Linguísticas os instrumentos linguísticos tecnológicos, como a gramática e o

dicionário. São também de capital importância para esse pesquisador as

instituições, os programas de ensino, as diretrizes, os documentos que versam

sobre a linguagem, os recursos midiáticos que abordam e visam a disseminar o

“bom uso” da língua, as ideias socialmente concebidas sobre a linguagem -

oficialmente ou não, em instituições de ensino ou não -, as representações

12

linguísticas na literatura, visto que todas as ideias, acerca da língua, expressas

nesses espaços documentais guardam estreita relação com a sociedade que as

produziu e, em grande medida, as determinou, revelando conceitos, preconceitos

e interesses dessa mesma sociedade.

As causas que agem sobre o desenvolvimento dos saberes lingüísticos são extremamente complexas. Pode-se notar conjuntamente: a administração dos grandes Estados, a literarização do idioma e sua relação com a identidade nacional, a expansão colonial, o proselitismo religioso, as viagens, o comércio, os contactos entre línguas, ou o desenvolvimento dos conhecimentos conexos como a medicina, a anatomia ou a psicologia. O purismo e a exaltação da identidade nacional com seu acompanhamento de constituição / preservação de um corpus literário (seja religioso ou profano), são, por exemplo, fenômenos quase universais na constituição, espontânea ou por transferência, dos saberes lingüísticos. (AUROUX, 1992,p. 28)

O presente trabalho visa a vincular a história do saber metalinguístico à

história da constituição da língua nacional, com o intuito de formular uma

explicação para o emprego generalizado do pronome você como pronome de

segunda pessoa no português em uso no Brasil.

Orientando-se por essa fundamentação teórica, analisar-se-á o fato

linguístico na sua complexidade, recorrendo-se para isso, às contribuições

interdisciplinares, buscando na história e na sociologia – cujas fronteiras nem

sempre estão bem delimitadas - as características fundamentais da brasilidade

que enveredaram a escolha pronominal. Além disso, por meio da análise das

representações linguísticas – literárias e gramaticais -, procurar-se-á traçar o

confronto das forças centrípetas e centrífugas que atuaram na formação da língua

nacional, elemento maior da própria constituição da nacionalidade, entendendo-se

como forças centrípetas aquelas que objetivam conferir à língua um caráter mais

homogêneo e como forças centrífugas aquelas que, apesar de mecanismos

coercitivos, agem na constituição da diversidade, fato inerente a todas as línguas

naturais.

Língua e Nação – estas duas coisas estão em parte ligadas. A história da língua pressupõe a da nação. Mas, inversamente, quem faz a história da língua escreve em parte a da nação. (FEBVRE, 1985, p.162)

13

A fim de observar os métodos e limitações impostos ao pesquisador da

História das Ideias Linguísticas (Fávero e Molina, 2006), limitou-se o trabalho à

análise de obras literárias e gramaticais do século XIX e XX, ambos momentos

cruciais para a afirmação de uma identidade nacional, que suscitou a asserção de

uma língua também nacional, repleta de peculiaridades e com um caráter

desvencilhador da matriz europeia que a originou. Com a consciência da

impossibilidade de exaustividade, buscaram-se obras de autores relevantes, sem

no entanto, ater-se a nenhum critério de filiação teórica ou literária.

Além disso, as obras escolhidas foram analisadas, levando-se em conta “a

intransponível distância espaço-temporal entre o cenário no qual viveram os

personagens que produziram as obras que constituem objeto de estudo e o

contexto em que se produz o trabalho” (FÁVERO, 1996, p.16), visto que a

conjuntura passada, em parte dedutível, jamais será plenamente reconstituível.

(...) pode-se dizer que o estudioso da História das Idéias Lingüísticas, mais que localizar a fonte de um pensamento, deverá analisar, no contexto em que foi criada aquela idéia, como frutificou, foi compreendida, difundida, interpretada e representada, mergulhando em sua profundidade, enxergando os fios que a constituíram e todos os seus reflexos, favorecendo uma melhor compreensão da lingüística atual. (FÁVERO & MOLINA, 2006, p. 29)

Valendo-se, então, de uma análise documental, na qual se conciliarão os

olhares do historiador e do linguista, buscar-se-á, neste trabalho, a resposta a uma

indagação do presente que se faz possível por meio de uma reorganização do

passado, cujos documentos manifestam modos de ser e de pensar, de agir, reagir

e representar.

A história recolhe sistematicamente, classificando e agrupando os fatos passados, em função de suas necessidades atuais. É em função da vida que ela interroga a morte. Organizar o passado em função do presente: assim se poderia definir a função social da história.” (LE GOFF, 2003, p.26 )

Dados históricos, sociais, linguísticos e gramaticais serão organizados com

o objetivo de responder a questão que norteia este trabalho: quais as motivações

14

que levaram ao uso consolidado do pronome você em território nacional e,

paralelamente, que forças atuaram em sua legitimação - ou não – em

instrumentos linguísticos brasileiros?

15

__________CAPÍTULO II _____________________________________________ PERCURSO HISTÓRICO E SOCIAL DO PRONOME VOCÊ

Ao filiar-se teoricamente à História das Ideias Linguísticas não se pode

analisar um fato da língua, qualquer que seja ele, de um ponto de vista

estritamente linguístico. A análise interdisciplinar é uma condição sine qua non,

quando se adere a uma corrente de investigação científica tributária da História

das Mentalidades, por sua vez nascida da corrente histórica que revolucionou a

historiografia na França no do séc XX, a Nouvelle Histoire.

(...) qualquer explicação lingüística comporta a consideração de fatos

múltiplos e não se pode dar conta da evolução de uma língua senão

considerando as situações históricas e as condições sociais em que essa

língua se desenvolve.(FEBVRE, 1985, p.158)

Assim sendo, concebe-se a língua como palco dialógico em que coerções

sociais as mais diversas atuam. Tais coações motivam escolhas linguísticas,

elegem e preterem fórmulas comunicativas, arcaízam construções e vocábulos,

inovam e atualizam instrumentos linguísticos, sintonizando a língua com o mundo

circundante, pois “sendo a língua o fato social por excelência, ela reflete com uma

fidelidade única, o estado geral da civilização nas diversas épocas” (Ibid, p.182).

Com o intuito de explicar um fato linguístico atual – o uso do você no

tratamento da segunda pessoa, no português brasileiro – buscou-se,

diacronicamente, nas relações entre contextos históricos e sociais e escolhas

pronominais de tratamento do interlocutor, um fio condutor capaz de elucidar o

sucesso dessa opção, em território nacional, atendo-se assim a um dos pilares da

Nouvelle Histoire: a reconstrução analítica de fatos passados com vista à

elucidação de fatos presentes.

16

A Idade Média, conduzida ao posto de berço do Ocidente pela historiografia

do séc. XX, especialmente representada por medievalistas ligados à École des

Annales, suscitará a primeira reflexão sobre as estreitas relações entre estruturas

sociais e escolha do tratamento do interlocutor.

2.1 Uma visão atualizada da Idade Média

A representação medieval concebida pela historiografia do século XX não

se pretende definitiva, visto que feriria dessa maneira um dos principais aportes

que a fundou e que regem este trabalho: as formas de representar o mundo são

frutos de uma sociedade, em uma determinada época, limitada por toda sorte de

imposições sociais, políticas, psicológicas, ideológicas. Desse modo, dos já

célebres dizeres de Lucien Febvre , a História é filha de seu tempo, deduz-se seu

caráter provisório e mutável.

No entanto, a Idade Média que a atual historiografia nos tem legado

desconstrói algumas representações medievais com as quais se está habituado. A

própria denominação do período é hoje utilizada, convencionalmente, sem que se

vincule a esse espaço de tempo nenhuma característica desdenhosa ou

depreciativa, como se fez por longo tempo.

O século XX assiste a uma reabilitação da Idade Média, não mais encarada

como um período de trevas, de retrocesso, de atraso religioso, de criação artística

grosseira e de produção científica desprezível. Ora, foi nesse período, marcado

pela insegurança e por uma estabilidade que essa própria insegurança ajudou a

manter, em que germinou tudo que veio a se conceber como moderno: o

protestantismo, a formação dos Estados absolutistas, o capitalismo comercial, as

evoluções tecnológicas que permitiram as grandes navegações, a divulgação da

cultura escrita e a revolução da gramatização, por exemplo.

17

Até mesmo a delimitação da Idade Média é hoje contestada, aceitando-se

os mil anos entre os séculos V e XV como meros limites institucionais -

questionáveis e flexíveis, de acordo com a abordagem (política, religiosa,

econômica, geográfica) que se desenvolva.

Embora, segundo penso, o núcleo central da Idade Média esteja situado nos

três séculos e meio transcorridos entre o ano mil e a Peste Negra, atualmente

eu tenderia a enquadrar esta curta Idade Média numa longa Idade Média que

se estende aproximadamente do século 3º até meado do século 19, um

milênio e meio em que o sistema essencial continuou a ser o feudalismo,

mesmo que se possa distinguir fases por vezes contrastantes. (LE GOFF,

2005, p.11)

Não cabe ao presente trabalho tentar estabelecer, como critério de análise,

um limite cronológico para a Idade Média, mesmo que tal limite partisse de uma

abordagem linguística. Relevante será traçar um panorama daquilo que veio a se

consubstanciar como caracterizador de um período coeso, com atribuições

particulares que o coloca em oposição a outros períodos com características

distintas. Período esse, cujas raízes encontram-se na Antiguidade e cujo reflexo

ainda se faz sentir nas sociedades ocidentais hodiernas.

Nesse sentido, faz-se, na Idade Média, um corte sincrônico, a fim de

enfocar-lhe o momento em que suas estruturas sociais se apresentam, ao menos

na aparência, estanques, embora escondam uma mobilidade silenciosa e rasteira,

que é o próprio motor da História.

É esse recorte que permitirá ver constância e imobilidade em um período

cuja complexidade não se poderia reduzir por meio de uma análise simplista e

homogeneizante, mas que manteve uma estrutura, mesmo que superficial e

artificialmente, estável.

18

2.2 A Idade Média e suas classes estanques

Apesar da onda medievalista que, durante o século XX, atualizou as

representações acerca da Idade Média, procurando analisá-la, sem julgá-la, além

de propor novos problemas e novas explicações a problemas já postos, algo

parece inquestionável e unânime para os historiadores que se debruçam sobre o

período: ele foi, de fato, essencialmente agrário, feudal e cristão.

O mundo romano, cujas estruturas ruíram com as invasões bárbaras,

assiste a uma fuga em massa da população para o campo, já que os ambientes

citadinos eram atraentes para os invasores. Essa fuga provocou a formação de

uma estrutura econômica baseada em grandes propriedades rurais fechadas e

pretensamente autossuficientes.

A sociedade romana, hierarquizada, reorganiza-se e contrapõe dois

segmentos sociais: os grandes proprietários de terra e os camponeses

despossuídos, já que as classes intermediárias rurais e urbanas desapareceram.

Dentre os latifundiários estão as aristocracias laica e eclesiástica,

descendentes das mesmas famílias elitistas de outrora; dentre os já outrora

despossuídos vieram juntar-se as camadas médias da organização econômica

pré-bárbara. Nesses estratos se infiltraram, com relativa facilidade, os bárbaros ,

cuja organização social também era hierarquizada – formada por ricos e pobres,

fracos e poderosos .

Essa nova estruturação social - agrária, feudal e cristã - irá possibilitar, por

confluência de interesses, o equilíbrio mantido durante um vasto período: os ricos

precisam garantir quem trabalhe suas terras e sustente suas necessidades; os

pobres submetem-se em busca de proteção e subsistência; e a Cristandade

legitima a imobilidade social, por meio de um discurso que a descreve como a

ordem de Deus estabelecida na Terra.

19

Fato social, a ruralização é o aspecto mais espetacular de uma evolução que

vai imprimir à sociedade do Ocidente medieval um traço essencial que

permanecerá arraigado nas mentalidades por muito mais tempo do que na

realidade material: a compartimentação social e profissional. A fuga de certos

ofícios e a mobilidade da mão-de-obra rural tinham levado os imperadores do

Baixo Império a tornar obrigatoriamente hereditárias certas profissões, e

encorajado os grandes proprietários a fixar na terra os colonos que

substituíam os escravos – cada vez menos numerosos. A Cristandade

medieval fará do desejo de renegar seu próprio estado um pecado grave. Tal

pai, tal filho, será a Lei herdada do Baixo Império romano. (Ibid. p. 35)

A sociedade medieval, assim configurada, regida pelo contrato de

vassalagem, que sela a submissão de um servo a seu suserano, a quem, em troca

de proteção e sustento, deve absoluta fidelidade, além de conformar-se à função

da sua ordem social – a de trabalhador braçal, de produtor – na sociedade

imobilizada de que participa, por si só já faz imaginar a existência de uma relação

assimétrica marcada pela reverência do mais humilde em relação ao mais

poderoso.

As representações iconográficas ou literárias da Idade Média corroboram

essa tese, reforçando a postura de servidão e submissão que marcaram o

período. Se as estruturas sociais românicas motivaram - se não condicionaram -

representações artísticas, com certeza também o fizeram em relação à linguagem

cotidiana.

Especialmente no que concerne às formas de tratamento do interlocutor em

uso na Idade Média, a imutabilidade social reflete-se em um sistema simples e

estável: o pronome tu, utilizado na relação entre iguais; e o pronome vos,

empregado nas relações assimétricas, pelo hierarquicamente inferior dirigindo-se

ao superior - na Idade Média, o detentor do poder econômico, religioso e político.

É evidente que essa simulação do tratamento medieval só leva em conta a

hierarquia social, deixando-se de lado as preferências por construções mais

20

formais, em situações que exprimam respeito ou ironia, e também as opções por

modalidades informais, utilizadas para a expressão de desprezo, exasperação, ira.

Parafraseando Bakhtin, é a língua o mais sensível indicador das mudanças sociais

- e também temperamentais, psicológicas, emocionais.

Dirigia-se, portanto, o servo ao seu senhor ou o vassalo a seu suserano por

meio de vos e recebia, em contrapartida, do mesmo interlocutor, tu, configurando

uma relação de poder, que estendia sua assimetria para dentro das classes

sociais, submetendo o sexo feminino ao masculino e os filhos aos pais.

Dentro das classes senhoriais, houve uma constante disputa por autoridade

entre a nobreza e o clero, ou seja, entre a aristocracia laica e a eclesiástica, com

uma pendência favorável a esta, sem que isso, aparentemente, se refletisse nas

formas de tratamento entre as classes dominantes, visto que não há alusões a

esse fato nos estudos sobre formas de tratamento medievais.

Mas, como já foi mencionado, sob o aparente manto da rigidez e da

imobilidade medievais, caminhava inexoravelmente a história, que se desenvolve

por meio de aparentes rupturas, numa continuidade imanente ao humano, cujo

traçado leva, inevitavelmente, à transformação da realidade.

2.3 Renascença portuguesa: instabilidade e rearranjo social

A instabilidade do poder facetado, distribuído nas mãos de muitos senhores,

ao final da Idade Média, fez surgir o Estado moderno centralizado e suas

instituições – jurídicas, políticas, tributárias - como formas de garantir o poder da

antiga aristocracia. Esse fator, aliado a outros de ordem econômica, cultural e

tecnológica, configura, em diferentes épocas e em diferentes regiões, o período

que se convencionou chamar de Renascimento, o início da Idade Moderna.

21

Portugal, estado que mais cedo se centraliza e se emancipa no grupo de

estados remanescentes da România Ocidental, por características conjunturais

diversas, logo reúne condições para se tornar a primeira potência da Idade

Moderna. A ascensão da burguesia no século XIV foi um dos motivos que

impulsionou a empresa naval e colonizadora portuguesa; porém, aliados aos

interesses burgueses na expansão marítimo-comercial estavam os interesses dos

monarcas, dos nobres, dos religiosos e até do povo miúdo, motivo determinante

do sucesso dessa empreitada lusitana .

Apesar da centralização do poder em Portugal e de seu caráter mediador e

conciliador, à estabilidade medieval sobrevém a instabilidade provocada pelos

novos arranjos sociais. A nobreza portuguesa, acostumada com seus privilégios -

garantidos pelas instituições medievais e supostamente eternizados pela

legitimação religiosa - se percebe ameaçada pela expansão burguesa, cuja

formação em Portugal tanto teve de precoce quanto de efêmera.

Assim como, na esfera política, se forjaram instituições para uma

manutenção relativa da ordem vigente – o poder concentrado nas mãos dos

nobres -, forjaram-se também normas de tratamento: a aristocracia tenta estancar

por meio da linguagem o que não conseguia estancar socialmente, exigindo para

si formas de tratamento que a diferenciasse de qualquer elemento do terceiro

estado, por mais endinheirado que ele fosse. No entanto, a Renascença traz

consigo uma mobilidade no topo da sociedade, provocando, especialmente em

Portugal, a união da nobreza à burguesia, pois aquela precisava reconstituir ou

reconquistar seu poder econômico e esta tinha um arraigado desejo de

nobilitação. Fundava-se assim um conceito de aristocracia, em Portugal, que

pouco privilegia os direitos consanguíneos ou hereditários e, em contrapartida,

valoriza e possibilita, como em nenhum outro país, o enobrecimento por méritos

próprios, entenda-se, aqueles que levem ao enriquecimento e à ascensão social.

22

Tendo recebido do latim o dual sistema pronominal tu / vós, de uso

abrangente e extensivo, Portugal também herdou as formas de tratamento

cunhadas no período medieval.. Essas formas visavam a estabelecer uma

distância entre súditos e soberanos, por meio de um tratamento reverencial,

representado por uma construção perifrástica, cujo efeito era o de não se dirigir

diretamente ao nobre interlocutor, mas a um atributo seu. Ora, era de se esperar

que em sociedades de estrutura feudal e agrária, como as que prevaleceram na

Idade Media pré-absolutista, um dos atributos da classe dominante fosse a

senhoria, isto é, a qualidade daquele que detém a posse da terra; e, se nessas

sociedades, os laços de dependência pessoal eram intensos, haveria de o mais

humilde contar com a mercê de seu superior hierárquico. Desse modo, de duas

características relevantes do período medieval – a dependência pessoal e a posse

da terra – surgem os duas formas de tratamento mais populares da Renascença

portuguesa: Vossa Mercê e Vossa Senhoria.

Se o pronome vós atendeu a uma necessidade de distanciamento entre

povo e nobres, durante um bom período da Idade Média, a Renascença verá

surgir, nos dizeres de Biderman (1972-1973), um maneirismo de tratamento,

recuperando e multiplicando os usos de formas derivadas de substantivos

abstratos, cujo emprego se alastrará, em Portugal, por todas as camadas sociais,

a partir da infiltração de elementos não nobres na aristocracia.

Ao antigo e estável sistema dual medieval – tu / vós - sobrepõe-se,

portanto, o complexo e instável sistema renascentista, o que transforma o modo

de tratar o interlocutor e o tratamento recebido socialmente em uma contínua

preocupação dos portugueses, que se estende até os dias atuais, apesar da

tendência democratizante ocidental, que afeta as relações interpessoais,

tornando-as mais solidárias e menos exigentes de soluções linguísticas

distanciadoras.

23

As mudanças sociais fizeram, de fato, emergir novas formas linguísticas de

direcionamento ao interlocutor, que denotassem as múltiplas intenções e o status

dos falantes. No entanto, o sucesso que as formas reverenciais de tratamento

atingiram em Portugal não pode ser explicado somente por parâmetros sociais e

econômicos. Há características psicológicas, emocionais, temperamentais,

axiológicas do povo português que atuaram nesse êxito. Se assim não o fosse,

todos os povos que viveram situações semelhantes às que Portugal vivenciou

teriam desenvolvido o mesmo maneirismo no tratamento, o que não aconteceu,

pois:

É bem conhecida a estranheza que causa no falante de outra língua moderna

européia a complexidade do sistema das formas de tratamento em português

– isto é, das formas que, em Portugal, um interlocutor usa para se dirigir a

outro interlocutor, a primeira pessoa do discurso (para empregar termos

gramaticais), à segunda pessoa do mesmo discurso. (LINDLEY CINTRA,

1972, p. 8)

Assim sendo, há de se procurar, também, no caráter português e na

mentalidade portuguesa, as motivações para a disseminação dos modos de

tratamento reverenciais em Portugal, especialmente da expressão Vossa Mercê,

expandida de forma mais livre e democrática e de emprego mais generalizado.

2.4 Portugal: de Vossa Mercê a você

De acordo com Santos Luz (1956), o primeiro registro de Vossa Mercê se

dá, na corte portuguesa, em 1331. Portanto, em Portugal, no século XIV, esse

tratamento já existia em sua função inicial, o direcionamento ao monarca. Como o

país se consolida em 1139, com Afonso I se proclamando rei de Portugal,

subentende-se que o tratamento real ainda se contentava, no século XII, com o

plural majestático vós.

24

Cintra (1972) corrobora a tese de que a forma Vossa Mercê já aparece nas

cortes de 1331 e acrescenta que Vossa Senhoria surge a partir de 1442, em

tentativa de substituição à primeira, já desgastada e de emprego não mais

restrito.

De origem latina anterior à centralização do poder em Portugal, essas

formas entram no país por meio de empréstimos do italiano – Vossa Senhoria – e

do castelhano – Vossa Mercê - e logo conhecem em solo lusitano intensa

aceitação. De tratamento exclusivo ao rei, no começo do século XIV, Vossa

Mercê passa, ainda no mesmo século, a tratamento extensivo à nova aristocracia

formada pela Revolução de Avis, que, ao se miscigenar com as camadas

socialmente mais elevadas do terceiro estado, pretende deste se distinguir por

meio de diversos comportamentos, inclusive linguísticos, evidenciando a pretensa

superioridade de sua estirpe, “demarcando” seu território e forjando uma

estabilidade social que estava irremediavelmente abalada.

A miscigenação social entre a nobreza e as camadas mais elevadas do

terceiro estado, a partir da revolução de 1383-1385, foi, aliás, o principal motivo

que levou, em Portugal, ao uso cada vez mais ampliado de algumas dessas

fórmulas de tratamento, pois os burgueses, mesmo os que não se enobreciam,

por meio de casamentos ou pela concessão de títulos, julgavam-se dignos de

tratamento diferenciado, à medida que expandiam seus poderes econômicos e

políticos.

Essa dinâmica inter-relação entre fatores sociais e verbais pode ser

particularmente visível no sistema de tratamento do interlocutor, já que esse

sistema representa talvez da forma mais direta alguns dos fundamentos

axiológicos da organização do status social. Assim, se uma sociedade

passou ou está passando por rápidas mudanças que se refletem nas

relações interpessoais possíveis, pode-se esperar que mudanças lingüísticas

na área do tratamento venham a ocorrer, com possíveis conseqüências para

outros aspectos da língua. (FARACO, 1996, p.57)

25

Logo esse sentimento de merecimento nobilitante e até de pertinência à

nobreza se alastraria das camadas superiores para as camadas mais populares

da sociedade, levando consigo o tratamento reverencial, então a todos concedido,

algo que tanto estranhamento causara ao estrangeiro em Portugal, como fica

evidente em várias alusões históricas à fidalguia do povo português. De acordo

com Godinho (1997), “ a mania de ostentação atingira as proporções duma

loucura coletiva. Das classes mais elevadas propagava-se ao povo.”

O século XV assiste ao desgaste e à expansão de Vossa Mercê e suas

variantes entre a população não aristocrática; a aristocracia – ou os que se

julgavam aristocratas – passa a exigir Vossa Senhoria, entre os séculos XV e XVI.

Vossa Mercê já caíra nas graças do povo, definitivamente, em quinhentos, o que

generalizou seu uso, mas não dilapidou, ainda, seu caráter respeitoso entre as

camadas populares. Já, no direcionamento a - e entre - aristocratas era tido como

vulgar e expressivo, especialmente em suas formas abreviadas, do pouco valor

que se atribuía a quem se dirigia a palavra.

Essa apropriação das formas de tratamento pelas classes populares,

resultado da associação do sentimento de fidalguia português ao fato histórico-

social da aristocratização das camadas superiores do “terceiro estado”, fez do uso

do tratamento pessoal assunto de lei, levando à formulação da primeira

pragmática, no final do século XVI, a legislar sobre os modos como se devia se

dirigir ao interlocutor, e de uma segunda, que atualizava a primeira, no século

XVIII, visto que a mais antiga se mostrou inócua em seu caráter disciplinador.

As maneiras nominais como há que dirigir-se a outrem, e que esse outrem

pode exigir foram reguladas por lei em 1597 e 1739; proibia-se não só dar

tratamento, como mesmo aceitá-lo, às pessoas a quem não era devido.(Ibid,

p.72)

26

Interessante ressaltar que a mania de ostentação dos portugueses se fazia

notar pelos trajes que usavam, pelos séquitos de escravos dos quais se faziam

seguir, pelos adornos das casas e, claro, pelo emprego do tratamento cortês.

Assim como se apropriou da forma de tratamento dada inicialmente ao rei e

posteriormente aos nobres, o povo também lhes imitava a maneira de vestir e de

se portar socialmente.

As pragmáticas - sejam aquelas que regulavam a suntuária, restringindo,

por exemplo, o uso de seda apenas pelos nobres, sejam as que regulavam o

tratamento destinado ao interlocutor - visavam a atender o desejo das classes

dominantes de manterem seu status social, diferenciando-as da gente comum,

mas, como não se muda o comportamento de um povo por meio de decretos

oficiais, todas foram vãs, especialmente aquelas destinadas a legislar sobre a

linguagem, pois, conforme Fiorin (2000), “nenhum domínio linguístico, a não ser a

ortografia, curva-se a decretos.”

As pragmáticas sobre o tratamento, como todas as leis, tinham intenções

prescritivistas. No entanto, malogrado seu intento, acabaram por servir de

documento denunciador, mesmo sem ser seu ideal, da problemática social

relacionada às formas de tratamento, ou seja, da tentativa de manutenção do

status quo, por meio de imposições linguísticas, nos séculos em que foram

promulgadas.

Essas Leis de Cortesia - nome dado às pragmáticas ou decretos reais de

1597 (de Felipe II) e 1739 (de D. João V) - já não fazem referência a Vossa Mercê,

dado que faz dos decretos instrumentos mais eficazes para a reconstrução da

história do pronome, que para a realização de sua intenção reguladora dos modos

de tratamento, mesmo porque até Vossa Senhoria e Vossa Excelência - formas

com as quais as leis se preocupavam, restringindo seu emprego - também se

popularizaram entre os portugueses, sem, evidentemente, o sucesso e o alcance

de Vossa Mercê.

27

O fato de não se legislar sobre a forma reverencial Vossa Mercê demonstra

que, à época da publicação das leis, seu emprego já era de tal forma

generalizado, que frustraria qualquer tentativa inibidora ou reguladora. Nesse

período de uso intenso, os fidalgos exigiam sua forma inicial, pronunciada

integralmente, banindo as foneticamente reduzidas, mas entre o povo, conviviam

as formas derivadas, inclusive aquela que tanto prestígio teria entre lusófonos de

todas as classes sociais, o pronome você. .

Embora já de domínio popular, a expressão Vossa Mercê continuou sendo

usada entre os nobres, denotando status social sempre inferior à Vossa Senhoria,

até o século XVIII, época em que já aparece com tom arcaizante.

A expressão você tem seu surgimento no século XVII, como uma das

formas resultantes dos desgastes fonético e semântico a que foi submetido o

outrora nobre tratamento cerimonioso, Vossa Mercê. Concorrendo certamente

com rivais procedentes da mesma origem, o você se afirma como tratamento do

interlocutor em Portugal e no Brasil. Lá, como pronome intermediário entre tu e o

senhor; aqui, como legítimo representante da segunda pessoa do discurso,

desbancou tanto as rivais corroídas quanto a originária, que deixou de circular

entre o final do século XVIII e início do século XIX..

O primeiro registro escrito de você data de 1666, em Feira dos anexins1, de

Francisco Manuel de Melo, o que nos faz concluir que sua circulação oral seja

anterior a essa data, em Portugal. No século XVIII, já conta com a supremacia da

escolha como tratamento não íntimo entre as camadas mais populares e, em

efeito “bumerangue”, após a arcaização de Vossa Mercê, passa a ser usado

pelos nobres e pela alta sociedade.

1 O livro Feira dos Anexins traz o primeiro registro literário do pronome você, em Portugal. A partir desse

registro, inferiu-se que a circulação do pronome, em situações orais corriqueiras e sem intenção artística,

seja anterior a 1666. No entanto, por tratar-se de uma obra literária, será mais bem descrita e analisada no

capítulo dedicado ao percurso literário do pronome.

28

2.5 Emprego de você no Brasil: dissociação e peculiaridade

Até o século XVII, as observações acerca da língua portuguesa versam

sobre a vertente europeia. A explicação para isso encontra-se no fato de que, nos

primeiros séculos coloniais, não se pode falar ainda em constituição de um

conceito de brasilidade, já que os primeiros colonos dispersos no imenso território

se restringiam a relações delimitadas geograficamente, pouco ou nada se

comunicando com outras regiões, pois, como reclamavam os primeiros jesuítas,

era mais fácil ter notícia de Portugal que de outra parte do Brasil.

Grosso modo, havia, na América portuguesa, nos séculos iniciais da

colonização, os sistemas familiares fechados do Nordeste canavieiro e o

aventureirismo próprio dos portugueses que desembarcavam ao Sul do país.

Objetivando superar o clima inóspito e a adversidade cultural que o contato com

outra “raça” desencadeava, as línguas gerais prevaleciam na restrita comunicação

colonial até o século XVII.

Em meados do século XVIII, a língua que viria a se tornar hegemônica no

Brasil ainda não vingara. Somente na segunda metade desse século começa a

haver observações sobre a língua portuguesa em uso no Brasil, que, agora

obrigatória por meio da imposição da política pombalina, já começa a apresentar

singularidades em relação à língua portuguesa falada em Portugal.

É interessante, a esse propósito, estudar a maneira como é apresentada a

personagem do brasileiro no teatro português da segunda metade do século

XVIII e dos primeiros anos do século XIX. Trata-se do brasileiro rico de

origem européia, chamado quase sempre ‘mineiro’. A primeira alusão à

maneira de falar desse tipo de personagem aparece numa peça de 1788 (O

miserável Enganado). É necessário, no entanto, esperar O Periquito no Ar

ou O Velho Usurário, de Manuel Rodrigues Maia (comédia transmitida por

um manuscrito da Biblioteca Nacional de Paris copiado em 1818, mas que

reproduz um texto anterior), para encontrar uma série de pormenores

29

caracterizadores da língua da personagem : mi diga (diga-me), di lá (de lá),

sinhorinho, emprego generalizado de você, etc. (TEYSSIER, 2001, p. 96)

Sabendo-se que a maior parte dos colonos portugueses que vieram ao

Brasil pertenciam às camadas populares e que, dentre os indivíduos dessa

camada, era corrente desde o século XV o emprego de Vossa Mercê, pode-se

concluir que, desde muito cedo, essa forma desembarcou no Brasil, ao lado do tu,

denotador de intimidade e proximidade.

Durante os séculos XVII e XVIII, quando se intensifica a migração de

portugueses para o Brasil, atraídos pela descoberta das minas de ouro e

diamantes, já era corrente entre as populações pobres portuguesas o emprego

de você, que ainda guardava em Portugal, apesar do evidente desprestígio social

entre as camadas mais elevadas, um caráter distanciador e não íntimo, que

permanece, em território lusitano, até os dias atuais.

Cabe determinar o que levou à dissociação entre o sistema de tratamento

português e brasileiro, fato documentado a partir do século XVIII, em que, como

visto, já há alusões à opção majoritária brasileira por você, de acordo com

Teyssier (2004).

A partir dos primeiros momentos do processo colonizador, chegou ao

território brasileiro várias formas de se dirigir ao interlocutor: tanto o tu, quanto o

Vossa Mercê e o você , além de outras variantes de Vossa Mercê.

Quando, no século XVIII, a língua portuguesa finalmente torna-se

preponderante no Brasil, Vossa Mercê já se arcaizava e tendia ao

desaparecimento na linguagem oral, mesmo em Portugal, cedendo espaço às

formas fonética e semanticamente corroídas, dentre as quais, a mais bem

sucedida – você. Portanto Vossa Mercê teve caminhos similares em ambos os

países, saindo de circulação em períodos semelhantes. Resta entender o motivo

que levou a constituir-se, em Portugal, um sistema atual tripartido – tu, você, o

30

senhor – com sua gradação semântica, do mais íntimo ao menos íntimo; do mais

solidário ao mais hierárquico; do mais irreverente ao mais polido, além do êxito de

Vossa Excelência; e, no Brasil, um sistema dual – você ou tu, o senhor -, com

oposições ao invés de gradações.

Em primeiro lugar, a disputa por formas de tratamento expoentes de prestígio

social ocorria nas camadas mais elevadas da sociedade portuguesa. Nas

camadas populares, universalizou-se o emprego de Vossa Mercê, cujo uso

intenso levou à erosão já aludida. Vossa Mercê já traduzia o respeito diferenciador

de um tu entre os mais humildes e já lhes satisfazia a vaidade, qualidade própria

de qualquer português. É por esse motivo que não houve no Brasil o êxito que

Vossa Excelência, tratamento requerido pela aristocracia, teve em Portugal. Ora,

os setores mais elevados da sociedade portuguesa estavam envolvidos com os

negócios na Ásia, até então mais promissores que os do América. Restou para a

colonização brasileira a grande massa de desprovidos, que vislumbravam no

continente americano a possibilidade de ascensão social, que não viam na terra

natal. Vossa Excelência não fazia parte do repertório dessa camada social, o que

explica o fato de esse tratamento, no Brasil jamais ter tido lugar fora de situações

protocolares, como por exemplo, nas audiências do senado federal. Mesmo em

entrevistas com o presidente da República, contenta-se com um respeitoso o

senhor.

Se a exposição de qual parcela da sociedade portuguesa veio ao Brasil

explica o insucesso de Vossa Excelência em território nacional, não explica, no

entanto, a forte concorrência entre você e tu , no direcionamento íntimo ao

interlocutor, fato não observado em Portugal, nem dentre os mais humildes.

Na procura por fatores condicionantes do bem sucedido emprego do

pronome você, no Brasil, chegou-se a facetas do caráter português pouco

conhecidas entre brasileiros, cujas características psicológicas e sociais, muitas

vezes herdadas do elemento formador europeu – incapacidade de organização e

31

planejamento, desprezo à hierarquia, tendência à simetrização das relações –

creditavam-se aos elementos africano e indígena.

Por mais que esses dois últimos elementos fundadores da chamada

brasilidade tenham contribuído para dar ao caráter e à língua brasileiros suas

feições atuais, a realidade é que, sem dúvida, nesse processo hibridante, a

contribuição portuguesa sobrepuja as demais.

É herança lusitana nosso “amor” ao conhecimento superficial e de

aparência, como bem retrata Machado de Assis em Memórias Póstumas de Brás

Cubas. É lusitana nossa mania nacional de tratar filhos e filhas por príncipes e

princesas, de nomear estabelecimentos comerciais com títulos de nobreza – O rei

da Tainha, Princesa dos Mares - , resquício de nosso passado colonial e

monárquico e, mais que isso, produto do nosso herdado sentimento de fidalguia e

desejo de nobilitação, que paradoxalmente, faz o brasileiro buscar ser nobre e

solidário: uma nobreza à portuguesa, aquela que não raro come à mesa com a

criadagem.

A fatia da população portuguesa que se desloca ao Brasil já havia sido

contaminada com a tão aludida mania de ostentação e fidalguia das classes

aristocratas portuguesas. O desejo de nobilitação era comum a todo humilde

português que buscou fora de seu país a chance de enobrecer-se por meio das

novas possibilidades comerciais que se desenvolviam e da consequente

mobilidade social, muito mais flexível aos desprovidos, que em sua terra natal.

Não só a burguesia urbana mas os próprios labregos deixavam-se

contaminar pelo resplendor da existência palaciana com seus títulos e

honrarias. (BUARQUE DE HOLANDA, 1995, p. 36)

Pertencer à nobreza de direito ou à de fato era aspiração corrente de toda a

sociedade, como no caso dos senhores de engenho no Brasil colonial. Assim,

se entende por que, em muitos países, a burguesia de comerciantes

32

freqüentemente desejava o enriquecimento não como um fim em si , mas

como meio de enobrecimento, interrompendo o ciclo capitalista poupança-

investimento e direcionando seus recursos para a compra de títulos

nobiliárquicos, cargos enobrecedores, terras improdutivas e palácios

dispendiosos – aquilo que Fernand Braudel chamou de ‘traição da burguesia’

a seus ideais supostamente capitalistas. Este fenômeno, particularmente

intenso em Portugal , foi fustigado pela crítica do mordaz Gil Vicente, entre

outros. (WEHLING,1999, p. 26)

Chegando ao Brasil, estimulados pela propaganda pró-emigração, os

portugueses tinham exacerbado sua fidalguice: eram descendentes da ilustre e

orgulhosa nação portuguesa, cujos feitos cantados por Camões os engrandeciam.

Além disso, eram os desbravadores, os dominadores, aqueles que subjugariam as

raças tidas como inferiores e carentes de civilização e catequização, na América

portuguesa.

Os colonos, “nobres” portugueses entre índios, negros e mestiços, não

poderiam admitir um tuteamento plebeu e aproximativo. Haviam de marcar sua

nobre posição com um tratamento mais cerimonioso, que, à época, mesmo no

Brasil, o você ainda carregava. Passaram a dar e receber você e suas formas

correlatas – vossamecê, vosmecê e outras - , que foram suplantadas pela bem

sucedida forma abreviada, respondendo a uma tendência natural da língua à

economia de esforços e a simplificação e acomodação de palavras muito

empregadas.

O tu, marca da anterior situação plebéia do colono, na Europa, passa a ser

desprezado no Brasil, onde a simples menção à origem portuguesa já fazia do

cidadão um ser diferenciado, distinto da turba cabocla. Em Portugal, o povo,

embora com desejos nobilitantes, continuava plebeu, com nada que o tornasse

distinto pelo simples fato de ser português, em nação portuguesa. Lá, o tu se

consolida em relações solidárias e, no século XX, ascende a todos os níveis

sociais como índice de relações íntimas, igualitárias, mas não necessariamente

33

depreciativas. Ao seu lado, o pronome você, carregando ainda parte da reverência

de suas formas ancestrais, estabiliza-se como tratamento intermediário entre tu e

o formal o senhor.

Ao lado do desprezo pelo tu, indiferente e plebeizante, atuou para a eleição

do você, no direcionamento à segunda pessoa no Brasil, outra característica do

caráter português: sua tendência democratizante e sua repulsa à hierarquia.

As elites portuguesas sempre procuraram, por meio de suas instituições,

impedir a mobilidade social em Portugal, no entanto as fronteiras sociais no país

nunca foram impermeáveis: à pretensa inércia social sempre correspondeu uma

real mobilidade, como nos prova o fracasso das “leis de cortesia”, que pretendiam,

por meio de decretos oficiais, estancar o fluxo entre as diferentes classes.

Isso se deve a um pendor democrático entre os portugueses, que jamais

acharam justos os direitos hereditários, valorizando mais o mérito pessoal que o

nome herdado. Assim, a todos está aberta a porta do prestígio e não somente

àqueles que descendem de famílias notórias. Democracia e hierarquia são

palavras que não combinam: à tendência democratizante se une a aversão às

relações subordinativas.

Por estranho que pareça, a própria ânsia exibicionista dos brasões, a

profusão de nobiliários e livros de linhagem constituem, em verdade, uma das

faces da incoercível tendência para o nivelamento das classes, que ainda

tomam como medida certos padrões de prestígio social longamente

estabelecidos e estereotipados. (BUARQUE DE HOLANDA, 1995, p. 37)

No fundo, o próprio princípio de hierarquia nunca chegou a importar de modo

cabal entre nós. (Ibid. p.35)

A onda democrática que quis fazer do tu uma bandeira igualitária na França,

jamais vingaria em Portugal, visto que, aliada à propensão democrática do

português está a presunção de fidalguia, atributos exacerbados e potencializados,

34

em um primeiro momento, no Brasil. Aqui os portugueses são todos iguais: todos,

fidalgos; todos, Vossas Mercês; todos, vocês.

O pronome você, que logo se expande entre os homens cuja origem está

em Portugal, o que os distancia, a princípio, das outras etnias que compunham o

cenário colonial, terá seu uso difundido entre todos os habitantes, como resultado

do caráter democratizante e anti-hierárquico do colonizador, o que o leva ao

desenvolvimento de relações afetivas, mesmo quando exerce o papel de

dominador:

Compreende-se, assim, que já fosse exíguo o sentimento de distância entre

os dominadores, aqui, e a massa de trabalhadores constituída de homens de

cor. O escravo das plantações e das minas não era um simples manancial de

energia, um carvão humano à espera de que a época industrial o substituísse

por combustível. Com freqüência as suas relações com os donos oscilavam

da situação de dependente para a de protegido, e até de solidário e afim.

(Ibid, p. 55)

Conclui-se que, tanto em Portugal quanto no Brasil, as relações de

solidariedade sobrepujam as de poder, desde tempos remotos, mesmo em

momentos de nossa história em que o que mais se evidenciava eram as relações

de dominação.

Com a tendência contemporânea a relações cada vez mais democráticas,

fica fácil entender a expansão do pronome você no Brasil, pois, além de herdar

dos portugueses a disposição a relações solidárias, pôde, mais ainda que aqueles,

usufruir dessa inclinação em termos linguísticos, já que não compartilhava com a

nação portuguesa a responsabilidade e o desejo de defesa do idioma.

Se não há como provar a hegemonia do pronome você no Brasil, nos usos

cotidianos que os falantes fazem da língua portuguesa, atualmente, devido ao

tamanho do território nacional e à diversidade de sua gente, há como constatar

sua preponderância, expressa e difundida pelos modernos processos midiáticos,

35

cujos textos almejam um caráter de abrangência universal: você, hoje, é nome de

revista de circulação nacional – Você S\A, da Editora Abril -; fica subentendido no

nome de outra revista de circulação mais intensa – Veja, também da editora

Abril -; é parte do nome de um dos programas da maior rede de televisão do país

– Mais você, da Rede Globo - , além de ser a escolha preferida por anunciantes,

nos mais diversos textos publicitários:

� A gente escolheu o Santander. E você?

� Chegar aonde você chegou deu trabalho. O Uniclass sabe disso.

� Assine já a HBO na Sky. Ta bom, vai: a gente espera você acabar de ler

a revista.

� Em 2008 você merece reconfigurar sua vida. Compre um computador

Intel Core 2 Duo.

Se não aparece expresso nas propagandas, vem implícito na desinência

verbal:

� Fique tranquilo: o saldo devedor de seu cheque especial tem saída.

� Registre essa marca Bayer.

� Ford. Viva o novo.

Também por meio da mídia, a música popular brasileira2 é outro legitimador

e difusor nacional e internacional da familiaridade que o brasileiro tem com o

pronome você.

Ao analisar a evolução dos modos de tratamento do interlocutor em

Portugal e no Brasil, revela-se muito do que a História tradicional não foi capaz de

2 Pelo caráter artístico das composições, a referência à música popular brasileira será explorada, de modo

mais intenso, no capítulo dedicado ao percurso literário do pronome.

36

elucidar sobre a sociedade, suas concepções, seus valores. Sobressai-se, nessa

análise, por exemplo, a tendência a relações aproximativas e democratizantes do

brasileiro e sua repulsa à hierarquia.

Essa constatação, por si só, não é nem positiva, nem negativa, mas a

aplicação desse conhecimento acerca do caráter nacional pode nortear ações

educativas, profissionais ou comerciais.

A publicidade já se vale, sem dúvida, de informações como essas e, a fim

de conquistar clientes, escolhe soluções linguísticas sedutoras, baseadas no perfil

do público brasileiro. A educação, no entanto, parece refratária a esses dados, ao

ignorar, por exemplo, o caráter insubordinativo do brasileiro. Desse modo, deixa

de constatar que surtiria muito mais resultado uma prática didática mais afetiva e

cooperativa, que uma distanciadora e impositiva.

Reconhecer-se e conhecer-se como povo, cujas qualidades, características,

atributos e aspirações se somam no conceito de brasilidade, é tornar-se capaz de

propor soluções para problemas, baseando-se em nossas reais capacidades, que

devem ser aproveitadas, e em nossas limitações, que devem ser superadas, para

a construção de um projeto de país diferente, em muitos aspectos, do que se vê

hoje.

37

__________CAPÍTULO III_____________________________________________ PERCURSO LITERÁRIO DO PRONOME VOCÊ

É razoável imaginar uma sequência para a inserção do pronome você no

patrimônio linguístico da língua portuguesa: em primeiro lugar, ele surge, como

visto, em situações reais de comunicação, da simplificação fonética e do desgaste

semântico da forma Vossa Mercê, por meio de uma sucessão de formas

intermediárias cuja trajetória precisa é impossível reconstruir, mesmo porque

essas alterações não se fizeram de modo concomitante em todos os lugares, em

todas as camadas sociais, em todos os registros estilísticos que se pode imprimir

a uma expressão linguística. Além disso, reconstruí-la é trabalhar sobre hipóteses

de oralidade, cujos vestígios estão em textos escritos, nem sempre preocupados

com a reprodução exata da fala.

Tem-se, então, um percurso histórico, construído a partir de hipóteses e

probabilidades, que se assenta sobre dois extremos mais facilmente descritíveis e

analisáveis: de um lado a forma reverencial de procedência medieval Vossa

Mercê; e de outro, o popularíssimo pronome você.

Se a descrição do percurso histórico do pronome é muitas vezes hesitante,

partindo de registros escritos, para levantar hipóteses sobre o registro oral

corrente e espontâneo, a descrição de seu percurso literário é mais objetiva:

trabalha-se, então, com textos concretos, de caráter artístico, de datação definida

e inseríveis em conjunturas reconstituíveis .

O texto literário aparece, portanto, como segundo estágio na apropriação

do pronome você pelo cabedal linguístico do português, não só legitimando-o, por

meio da expressão de sua aceitação pelo público leitor, como passando a

contribuir com sua divulgação, na sempre dialógica relação entre língua e

sociedade.

38

Traçaram-se, de maneira independente, os percursos histórico e literário do

pronome você, apesar de se reconhecer o quanto suas fronteiras são tênues e

permeáveis, pois não se advoga, neste trabalho, a literatura como espelho

absolutamente fiel da realidade linguística, mesmo reconhecendo-se, em muitos

casos, seu empenho numa construção plausível da realidade.

Seria, portanto, postura ingênua traçar o percurso histórico do pronome,

apoiando-se apenas em sua representação literária, visto que a literatura se presta

a variadas funções, dentre as quais uma pode ser a reprodução o mais

verossímil possível da oralidade real, por meio dos diálogos ficcionais. Seria

também ingênuo imaginar um percurso literário concomitante ou reflexo do

histórico, visto que as opções linguísticas, mesmo que bem sucedidas entre

falantes em situações comunicativas diversas, não são de imediato incorporadas

pela literatura, por conta de uma série de fatores, que vão desde a aceitação do

público alvo, até a resistência em trazer para a escrita características avaliadas

como próprias da oralidade.

Mesmo num traçado literário, apenas enumerar e apresentar obras que

tragam o registro de você, seria, por outro lado, tarefa inócua, incomodamente

classificável como “curiosidades linguísticas”. Objetivou-se, portanto, ao analisar

uma representação linguística literária, no tocante ao pronome você, perscrutar-

lhe as intenções, com o intuito de aproximar-se do quanto essa representação

carrega do momento histórico em que se desenvolveu, dos valores sociais que a

configuraram, da psicologia do grupo que a acolheu, dos conceitos e preconceitos

da sociedade em relação à língua.

Desse modo, a escolha entre você e tu, em obras representativas da

literatura nacional, mais que indicar um provável período em que se apresentou

uma opção brasileira pelo pronome você como representante da segunda pessoa

do discurso e sua legitimação literária, o que restringiria o interesse de seu estudo

39

a esferas meramente linguísticas, revela muito do trabalho do artista em aliar a

eleição às expectativas dos leitores, além de conferir ao modo de se dirigir ao

interlocutor os valores sócio-políticos que a sociedade lhe credita, como símbolo

de passadismo / modernidade, de afirmação nacional / submissão aos padrões

europeus / de adequação ou inadequação ; ou estilísticos que seu emprego pode

denotar no que diz respeito à expressão de afetação ou esmero / despretensão,

por exemplo.

Com base nos pressupostos apresentados, parte-se para uma elaboração

do percurso literário do pronome você, do qual não se elimina, como ficou claro,

seu imanente componente sócio-histórico-psicológico, conferindo à literatura um

interesse irrestrito e concebendo-a como objeto de análise privilegiado para várias

ciências e não somente para as exclusivamente linguísticas.

Não se pretendeu, neste trabalho, a exaustividade, até mesmo pela

consciência da impossibilidade de sua execução. Optou-se, isso sim, por obras

de autores cuja relevância seja incontestada. Excluindo-se esse critério de

relevância autoral e o enfoque cronológico que se efetuou, a escolha das obras

teve caráter aleatório.

Além disso, cabe mais um esclarecimento: o percurso literário do pronome

enfocará sua representação em obras nacionais, diferentemente do percurso

histórico que não podia prescindir das referências ao caminho do pronome em

Portugal.

3.1 A literatura e o conceito de brasilidade nos séculos XIX e XX

Ao buscar traçar um percurso literário do pronome você, focalizou-se,

essencialmente, os séculos XIX e XX, por diversos motivos: primeiro, porque foi

nesses séculos em que se passou a pensar na construção do conceito de

40

brasilidade e de afirmação nacional; segundo, porque é também do século XIX a

elevação do pronome você a seu posto de efetivo pronome de segunda pessoa do

discurso no Brasil, legitimado por sua representação literária em nossos clássicos,

muitas vezes modelo para descrições e prescrições gramaticais; terceiro, pois é

no século XIX que o Brasil inicia sua tradição romanesca, de cujos textos parte a

maioria das análises e reflexões deste trabalho; e quarto, visto que é a partir de

meados do século XIX que os autores passam a valorizar, de forma cada vez mais

reflexiva, as variações linguísticas, na construção da participação discursiva dos

personagens.

O século XIX assistiu, em um primeiro momento, à transformação do Brasil

em pátria independente – porém monárquica e escravocrata – e, só depois, em

república não escravista. As profundas mudanças ocorridas em oitocentos

trouxeram ao Brasil e aos brasileiros a necessidade de afirmação, por meio da

criação de uma imagem de oposição a Portugal: era o jovem país que queria se

mostrar ao mundo independente da velha metrópole portuguesa. É claro que essa

intenção não foi unânime: contra forças progressistas sempre se opõem forças

conservadoras, o que se evidencia em instrumentos linguísticos como a literatura

e a gramática; além do que, no Brasil, uma grande parcela da população sempre

ficou à margem de discussões culturais ou ideológicas.

O jovem país encontraria em sua elite cultural – poetas, artistas em geral,

pensadores, gramáticos – os precursores de uma representação de caráter

nacionalizante que, embora nem sempre vitoriosa, tentava se impor, por meio de

uma luta contra o tradicionalismo, o conservadorismo e o servilismo cultural.

São autores do Romantismo que, além de criar as condições para a

discussão linguística, preparando terreno para os desafios e as inovações

realistas e modernistas, vão iniciar a nossa própria tradição romanesca,

procurando desvencilhá-la da mera imitação de produções europeias.

41

O reconhecimento de variedades linguísticas - diatópicas, diastráticas,

diafásicas e diacrônicas - tão próprio do Modernismo tem suas raízes literárias nos

romances regionalistas do Romantismo, o que confere à escolha pronominal

expressa nas falas dos personagens, desde o século XIX, não um caráter

subserviente à norma portuguesa, mas uma característica reflexiva, no intuito de

atribuir aos textos nacionais um caráter menos artificial e mais próximo da fala

natural brasileira.

Esse conjunto de fatores faz dos duzentos anos enfocados, palco para uma

frutífera coleta das representações do você, em textos literários brasileiros, ora

rivalizando – e perdendo – para sua rival tu; ora convivendo com ela, para

finalmente, assumir posição hegemônica em nossa literatura do século XX.

3.2 Uma breve retrospectiva

Será feita uma breve retrospectiva aos séculos XVII e XVIII, pois são ,

respectivamente, desses séculos, a considerada primeira representação do

pronome você em um texto literário de língua portuguesa e o primeiro registro do

emprego desse pronome, como particularizante do falar brasileiro, em diálogos

teatrais portugueses.

O texto em que se acredita haver o primeiro registro literário de você é

Metaphoras ou Feiras dos Anexins, de Dom Francisco Manuel de Mello3 (1608 –

1666). Pedagogo, historiador e escritor português, o autor retrata com fidelidade

os costumes de sua época, por meio de poemas, cartas, peças teatrais e diálogos.

Dentre suas obras mais famosas figuram o texto Carta de Guia de Casados e a

peça teatral Fidalgo Aprendiz .

3 Os dados biográficos de Dom Francisco Manuel de Mello não são precisos e sua obra carece de mais

apurada pesquisa. Por esse motivo, não se tem, ao certo, o ano em que foi escrita a obra Feira dos Anexins, no

entanto convencionou-se datá-la de 1666, ano da morte do autor.

42

A obra Feira dos Anexins, publicada postumamente em 1875, se

desenvolve por meio de um diálogo constante entre os personagens, que se

propõem um desafio de anexins – provérbios, ditos populares. Os turnos baseiam-

se no uso intenso de parônimos, homônimos, e homófonos, aproveitando-se do

efeito cômico que o emprego desses termos provocam. Cada interlocutor se

aproveita de uma deixa de outro participante do diálogo, para inserir sua

exposição, sua crítica ou seu comentário. A estrutura do texto o aproxima,

modernamente, de um desafio de repentistas, inclusive por seu caráter popular.

O texto todo traz o interlocutor tratado ora por o senhor, ora por você – com

grafia própria da época -, sem nenhum uso de tu:

- Diga vossê alguma cousa.

- Vossê entesta comigo?

- Sim; e não nos franza a testa; porque vossê é o papa equivocos.

- Pouca testa está a massa, que se faz em papas.

- Aquillo é testamento: salvo o senhor me elegeu palpando-me os testículos.

- E elles que devem ser algum bico de testo.

- Taes os tivera vossê na testa.

- Eu de tudo o que vossês dizem, contesto por negação.

- Isso é falar com os textos.

(MELLO, 1916, p. 53-54)

Embora os personagens e o cenário não sejam descritos, imagina-se que o

embate representa um desafio entre homens, em lugar público, sob assistência de

outros, o que explica a preferência por você – mais respeitoso - a tu –

extremamente íntimo e familiar -, durante todo o diálogo. Cabe lembrar que,

mesmo hoje, em Portugal, o emprego de você mantém um distanciamento entre

os interlocutores. Projetando-se para o passado, quando o pronome tinha maior

proximidade cronológica com seu antecessor cerimonioso, Vossa Mercê, é de se

esperar que o seu caráter distanciador fosse, no mínimo, igual ao atual.

43

Os provérbios ou anexins são creditados a pessoas de baixa escolaridade e

de cultura popular, que acabam, muitas vezes, reproduzindo estereótipos ou

conhecimentos de senso comum, sem uma devida avaliação crítica. Entende-se,

portanto, que o diálogo em Feira dos Anexins reproduz a fala de pessoas

humildes, do povo - camada social em que cedo o você e seus precursores se

consolidam – em uma situação semi-informal, porém não familiar. Isso, além de

justificar a escolha do escritor, confirma sua habilidade como ficcionista, ao criar

uma impressão de realidade, que se tornaria artificial ao simplesmente reproduzir

um ideal de língua das classes dominantes, as quais deveriam exigir, ainda à

época, uma forma mais cortês em público, como o Vossa Senhoria, por exemplo.

O tu, por outro lado, soaria íntimo demais para uma situação em que se elabora

uma disputa intelectual, mesmo que de caráter popular.

Do século XVII, passa-se ao final do século XVIII e começo do século XIX,

época em que autores teatrais portugueses compõem a fala dos personagens

brasileiros com várias escolhas linguísticas singularizantes, dentre elas o uso

frequente de você. Teyssier (2004) cita peças datadas de 1788 – O miserável

Enganado – e de 1818, mas escrita antes, pois seu autor morre em 1804 – O

periquito ao ar ou O velho usuário, de Manuel Rodrigues Maia – como textos

precursores desta percepção de alteridade linguística em relação aos brasileiros,

entre os portugueses.

Desse modo, a literatura portuguesa ajuda a traçar a história do português

no Brasil, mesmo porque, nos textos aludidos, não haveria motivo para a

adequação à aceitação dos leitores ou para a representação idealizada do falar

brasileiro, visto que, ao representar a fala do Brasil, o autor português desejava

apresentá-la, para um público também português, como modelo do mau emprego

da língua, de um emprego distorcido e corrompido.

Por outro lado, no Brasil do século XIX, vastos setores da sociedade

nacional, não só identificam distinções entre falares português e brasileiro, como

44

desejam legitimá-las e valorizá-las, buscando atrelar à autonomia política, a

autonomia linguística e cultural.

Dessa busca afirmativa, não se pode deduzir que toda representação de

fala de personagens em textos ficcionais brasileiros do século XIX sejam legítimas

reproduções dos falares nacionais: ao lado de autores de tendência nacionalista,

havia outros que viam na língua portuguesa do Brasil uma corrupção do autêntico

falar lusitano.

Dentre esses dois extremos, os autores nacionais buscaram modalizações

que , além de refletirem as intenções de cada obra, respeitaram as expectativas

dos leitores de cada momento, criando um equilíbrio entre a necessidade de

verossimilhança e a imprescindível aceitabilidade do público leitor.

É sob essa perspectiva, relativizadora e cuidadosa, que o pronome você

será analisado nas obras literárias oitocentistas e novecentistas arroladas neste

trabalho, lembrando que, ao lado da preocupação com as expectativas do leitor e

com a construção de um texto verossímil, está a intenção artística imanente a toda

obra literária.

3.3 O pronome você na literatura brasileira oitocentista

Para a análise do pronome você, nas obras literárias do século XIX, optou-

se prioritariamente pelo romance, por conta da qualidade indiscutível dos

romancistas brasileiros, desde o advento do gênero no país. Seja da vertente

romântica, seja da fase realista, as obras estudadas fazem parte de qualquer

antologia em que se use a representatividade como critério de seleção. No

entanto, não se deixaram de lado peças teatrais, mesmo porque, de uma escrita

que se pretende oralizar, como acontece nos diálogos teatrais, há de se esperar

um apurado trabalho com a representação da fala dos personagens, em que não

45

pode faltar a forma de se dirigir a outrem: tu, o senhor, vossa senhoria e, claro,

você.

3.3.1 Juiz de Paz na Roça: atualidade na peça oitocentista

A primeira obra brasileira a ser analisada é Juiz de Paz da Roça4, de 1838,

peça de Martins Pena, o fundador do teatro de costumes no Brasil. Sua obra

costuma ser lembrada como documento histórico, sociológico e linguístico do

período em que foi escrita, dada a fidelidade com que retrata os costumes e

valores da época.

A peça mostra uma similaridade entre o emprego de tu e você: em uma

mesma cena, empregam-se os dois pronomes, mesmo sem mudanças

situacionais, emocionais ou de interlocutor que pudessem justificar a troca ou

revelar alguma nuance diferenciadora entre os dois. A alteração ocorre no diálogo

entre personagens jovens, como Aninha e José; ou maduros, como Manuel João e

Maria Rosa, não sendo, portanto, denotativa de emprego restrito a uma faixa

etária:

Aninha – Nem vintém? Então o que fez do dinheiro? É assim que me ama? (Chora.)

José – Minha Aninha, não chores. Oh, se tu soubesses como é bonita a Corte! Tenho um

projeto que te quero dizer.

Aninha – Qual é?

José – Você sabe que eu agora estou pobre como Jô, e então tenho pensado em uma

cousa. Nós nos casamos na freguesia, sem que teu pai o saiba; depois partiremos para a Corte e

lá viveremos.

..............................................................

Aninha – Quando é que você pretende casar-se comigo?

José – O vigário está pronto para qualquer hora.

Aninha – Então, amanhã de manhã.

4 A edição analisada da obra juiz de Paz da Roça traz o texto integral do autor, respeitando as regras

ortográficas da época em que foi publicada.

46

José – Pois sim. (Cantam dentro.)

Aninha – Aí vem meu pai! Vai-te embora, antes que ele te veja.

(...)

Manuel João – Adeus, Senhora Maria Rosa.

Maria Rosa – Adeus, meu amigo, estás muito cansado?

Manuel João – Muito. Dá-me cá isso.

Maria Rosa – Pensando que você viria muito cansado, fiz a tigela cheia.

(PENA, 1997, p.101-104)

Percebe-se nos trechos acima que tu e você têm valores semelhantes e

são utilizados indiscriminadamente. Há, inclusive, o emprego do pronome

possessivo teu no mesmo turno em que Carlos se dirige a Ana por meio de você,

o que mostra que, já na primeira metade do século XIX, a fala caminhava, no

tocante à uniformidade pronominal – uso de formas pronominais possessivas e

oblíquas correlatas diferenciadas para tu e você, conforme as gramáticas

prescritivas – em desacordo com a norma padrão.

O você, de acordo com o texto, já era compreendido como pronome de

segunda pessoa, o que o faz se acompanhar de pronomes correlatos de segunda

pessoa (teu, tua, te), em um processo de fusão que ainda se estuda como

novidade, no português em uso no Brasil.

A peça termina com uma festa de casamento em que se entoa uma cantiga,

cuja letra traz, ao lado da tradicional forma verbal com desinência de segunda

pessoa, o pronome você:

Se me dás que comê,

Se me dás que bebê,

Se me pagas as casas,

Vou morar com você. (Ibidem, p. 130)

Embora o processo de fusão da segunda pessoa já evidenciasse, no século

XIX, empregos que continuam ainda em pleno vigor na atualidade, a diferença

47

fica por conta do verbo que acompanha o pronome tu, ainda com a terminação –s,

cujo emprego é pouco divulgado pela mídia ou pelos textos literários brasileiros,

mas não pode ser subestimado.

As coincidências pronominais entre o texto teatral e a realidade linguística

atual fazem com que se deduza que a reprodução da fala dos personagens, nesse

aspecto, seja fidedigna. Caso contrário, seria forçoso imaginar uma incrível

capacidade prognóstica do autor.

Essas semelhanças entre os diálogos ficcionais de Martins Pena e as

construções linguísticas modernas revelam o quanto algumas “inovações”

linguísticas creditadas à atualidade são, na realidade, empregadas há quase dois

séculos, o que torna injustificáveis certas atitudes saudosistas em relação à língua

e mesmo a condenação de empregos mais que legitimados, por meio de uma

prescrição linguística ancrônica.

Em relação ao emprego do pronome você, o texto ratifica a tese de que ele

já era generalizado entre brasileiros desde o final do século XVIII, o que garantiu

sua presença nos textos do teatrólogo que viveu de 1815 a 1848.

3.3.2 A Moreninha: o pronome você desde o primeiro romance nacional

A Moreninha é a obra que inaugura a produção romanesca no Brasil.

Escrita por Joaquim Manuel de Macedo e publicada em 1844, gozou de imediato

sucesso entre seus contemporâneos. Em relação a Macedo, a crítica se divide,

mas a tendência atual é de revitalizar sua obra e a importância dela na descrição

da vida e dos costumes do Rio de Janeiro do Segundo Reinado.

Como primeiro romance brasileiro, poderia ter atraído sobre si a pecha de

incipiente, sem que isso se configurasse em total demérito: não tinha nenhuma

48

obrigação de ser modelar, pois era aventura em terreno desconhecido. No

entanto, guardou surpresas para a crítica, para o público e até para o estudo do

emprego pronominal no tratamento do interlocutor, o que revelou um autor

habilidoso, ao apresentar uma inovação do português brasileiro, sem ferir as

expectativas do público leitor de então.

Os jovens estudantes que conduzem os diálogos iniciais tratam-se

predominantemente por tu. Ao pronome fazem acompanhar a forma correlata

tradicional com desinência –s e os pronomes oblíquos e possessivos próprios de

segunda pessoa, de acordo com a gramática padrão: te, teu, tua. A fala desses

personagens não tem sequer uma vez o emprego de você, a não ser em sua

versão plural, substituto de vós, pronome que cedo se torna improdutivo:

– Bela conseqüência! É raciocínio o teu que faria inveja a um calouro, disse Fabrício.

- Bem raciocinado...não tem dúvida, acudiu Felipe; então conto contigo, Augusto.

- Dou-te palavra...e mesmo porque eu devo visitar tua avó.

- Sim...já sei...isso dirás tu a ela.

- Mas vocês não têm reparado que Fabrício tornou-se amuado e pensativo, desde que se

falou nas primas de Filipe?...

- Disseram-me que ele anda enrabichado com minha prima Joaninha.

- A pálida?... pois eu já me vou dispondo a fazer meu pé de alferes com a loira.

- E tu, Augusto, quererás porventura reqüestar minha irmã?...

- É possível.

- E de qual gostarás mais, da pálida, da loira ou da moreninha?...(MACEDO, 1997, P.14)

Percebe-se no diálogo acima que o plural de você – vocês -, na referência à

segunda pessoa do plural, explicita a arcaização do pronome vós .

Embora não apareça na fala dos rapazes, o pronome você, na forma

singular, já aparece na obra, mesmo que ainda timidamente, nas falas femininas:

- Você, d. Joaninha, acudiu d. Clementina, tem-se regalado hoje com o incomparável

Fabrício. Não lhe gabo o gosto...só as perninhas que ele tem!...

49

- Ora, respondeu aquela, ainda não tive tempo de lhe olhar para as pernas...,mas também

você parece que não se arrepia muito com a corcova do nariz do meu primo; confessemos, minha

amiga, todas nós gostamos de ser conquistadoras.(Ibidem, p.65-66)

........................................................................................

- É preciso decidir-nos a começar, disse d. Gabriela.

- Principie você, disse d. Joaninha.

- Eu não! Comece você.

- Eu não, que sou a mais moça. (Ibidem, p. 85)

Levando-se em consideração a sintaxe, percebe-se que há uma tendência a

seguir a norma do português europeu, evidenciada pelo uso da ênclise e da

mesóclise, tão pouco natural no diálogo entre brasileiros. A fala dos rapazes

segue, no tocante ao emprego do pronome pessoal, essa tendência lusitana, com

uso de tu, acompanhado de verbos e pronomes correlatos, para direcionamento

íntimo e distenso ao interlocutor.

Comparando-se com o texto contemporâneo Juiz de Paz da Roça, que já

denunciava o emprego frequente de você, ao lado de tu, além da desuniformidade

pronominal, conclui-se que o romance, já que é escrito para ser lido e não ouvido

como em uma encenação teatral, deveria contar com uma aceitação diferenciada

do público em relação às novidades linguísticas, o que não permitiu que o autor

incorporasse em seu texto traços da espontaneidade da fala. Além disso, a fala

dos estudantes é sempre pautada por um lusitanismo, cuja intenção maior é

evidenciar o status cultural desses jovens: ao menos no ideal do público leitor, a

estudantes de medicina ou direito - aos doutores -, corresponderia uma variante

culta da língua, um português muito parecido com o dos europeus.

Apesar de os rapazes simularem uma intimidade, expressa pelo tu, seus

diálogos nunca parecem frugais como o das moças. Mesmo quando o assunto é

mulheres e namoro, entre os jovens impera uma disputa verbal, em que o purismo

da fala devia corresponder às expectativas dos leitores quanto à caracterização

dos personagens desse status social.

50

Entre as mulheres, às quais não se faz alusão à condição de estudante - e

era de se esperar que à época não o fossem de fato -, a fala parece sempre

menos empolada, mais natural e despretensiosa.

De forma hábil, embora ainda tímida, o pronome você tem presença desde

o primeiro romance brasileiro.

Vale lembrar que anteriormente à publicação desse romance, como já

mencionado, se representavam em Portugal peças em que o pronome você era

predominante na fala de brasileiros, conforme Teyssier (2004). Esse fato não deve

surpreender, pois é muito mais fácil retratar o desempenho linguístico do “outro”

de forma anedótica que retratar a si mesmo, equilibrando-se entre língua oral

espontânea e representação aceitável dessa mesma língua em textos literários.

3.3.3 José de Alencar: o manejo na escolha pronominal

José de Alencar é o grande nome do Romantismo brasileiro e figura entre

os clássicos da literatura em língua portuguesa. Comprometido com o processo de

afirmação nacional que a independência inflamou, buscou com suas obras

valorizar a natureza brasileira, a formação étnica do povo brasileiro e, como não

poderia deixar de ser, a língua portuguesa implantada no Brasil e suas

peculiaridades. Embora Alencar não dispusesse do aparato científico de que se

dispõe hoje para os estudos linguísticos, foi capaz de intuir e pensar criticamente a

língua, o que lhe possibilitou a escrita de vários romances, com intenções

diversas, às quais corresponderam escolhas linguísticas diferentes.

Em Iracema, apesar de ter sido escrito em 1865 e, portanto, ser posterior às

obras já analisadas, há uma opção global pelo tuteio. O pronome tu é o

empregado no diálogo entre Iracema e Martim, desde o momento em que se

conhecem e, portanto, ainda não são íntimos:

51

- Quebras comigo a flecha da paz?

- Quem te ensinou, guerreiro branco, a língua de meus irmãos? Donde vieste a estas

matas, que nunca viram outro guerreiro como tu? (ALENCAR, 1991, p. 7)

O tratamento entre Iracema e Martim continua até o último diálogo entre

eles, no capítulo XXXII. Em nenhum momento, mesmo que mais emotivo, mais

aproximativo ou mais distanciador, há troca da forma de se dirigir ao interlocutor: é

sempre o pronome tu que aparece, ora explícito, ora implícito na desinência

verbal:

– Tu me deixas?

- As mais belas mulheres da grande taba contigo ficam.

(...)

- Vem! disse a virgem.(Ibidem, p.9)

.............................................................

– Bebe! (Ibidem, p.11)

..............................................................

– Que guardas tu em teu seio virgem formosa do sertão?

Ela pôs os olhos cheios no cristão:

- Iracema não pode mais separar-se do estrangeiro.

- Assim é preciso, filha de Araquém. Torna à cabana de teu velho pai, que te espera.”

(Ibidem, p.33)

..............................................................

- Enterra o corpo de tua esposa ao pé do coqueiro que tu amaste. Quando o vento do mar

soprar nas folhas, Iracema pensará que é tua voz que fala entre seus cabelos. (Ibidem, p.57)

Em todos os diálogos, quer nos turnos de Iracema, quer nos turnos de

Martim, mantém-se a uniformidade de tratamento, com os pronomes oblíquos e

possessivos correspondentes ao tu, fato que evidencia o desejo de se retratar

uma língua anterior à mistura pronominal que a elevação do você à categoria de

pronome pessoal de segunda pessoa ocasionaria.

52

Não há na obra nenhuma marcação hierárquica, por meio do modo de se

dirigir ao interlocutor. Assim, mesmo nos diálogos com o pajé Araquém, líder

espiritual da tribo, permanece o emprego do tu, em virtude da relativização do

emprego linguístico, pois, embora em Portugal, apesar de sua tendência

democratizante, se usassem formas reverenciais para o direcionamento a líderes

políticos e religiosos, buscou-se adequação aos princípios igualitários – reais ou

ideais – do indígena.

Quando o guerreiro terminou a refeição, o velho pajé apagou o cachimbo e falou:

- Vieste?

- Vim, respondeu o desconhecido.

- Bem vieste. O estrangeiro é senhor na cabana de Araquém. Os tabajaras têm mil

guerreiros para defendê-lo e mulheres sem conta para servi-lo. Dize e todos te obedecerão.

- Pajé, eu te agradeço a casa que me deste. Logo que o Sol nascer, deixarei tua cabana e

teus campos aonde vim perdido; mas não devo deixá-los sem dizer-te quem é o guerreiro, que

fizeste amigo.

- Foi a Tupã que o pajé serviu: ele te trouxe, ele te levará. Araquém nada fez pelo

hóspede; não pergunta donde vem, e quando vai. Se queres dormir, desçam sobre ti os alegres

sonhos; se queres falar, teu hóspede escuta. (Ibidem, p.78)

Essa opção pronominal, ao invés de anacrônica, justifica-se por meio da

compreensão da obra. A leitura de Iracema precisa ser feita sob uma perspectiva

relativizadora: em nenhum momento o romance reflete a realidade linguística

contemporânea à sua produção, mas tenta criar uma linguagem que acompanha a

reconstituição de um Brasil colonial, em que as pessoas ainda não são

“brasileiras”. Os personagens são, em verdade, “pré-brasileiros”: Martim (o

europeu), Iracema (a indígena, a nativa de uma terra que não era ainda o Brasil).

Se não são brasileiros, na concepção que se dá ao termo hoje – amálgama de

raças, culturas e crenças –, não poderiam se valer de um vocabulário

marcadamente brasileiro. Temos, então, no romance, a língua portuguesa anterior

à sua climatação na América, recheada de onomástica e léxico indígenas. Se o

romance Iracema é considerado uma metáfora da formação do Brasil, seu

componente linguístico corrobora essa metáfora: à sobreposição de raças

53

correspondeu uma sobreposição de línguas e culturas, que, aos, poucos, deu ao

Brasil e à língua portuguesa desenvolvida na América suas características atuais.

Assim como Iracema morre ao dar à luz Moacir, o único personagem brasileiro5,

morre também a língua indígena, cujos vestígios se encontram incorparados ao

português.

Como, no romance, a língua ainda não é expressão da alma nacional, não

poderia carregar as singularidades do idioma no Brasil e, portanto, ainda não se

havia rendido ao você.

A carta com que José de Alencar abre e fecha a obra, essa sim retrato da

contemporaneidade do autor, traz, em contraste com os diálogos do romance, o

emprego do pronome você, no direcionamento íntimo ao interlocutor. Nela, José

de Alencar se direciona ao Dr. Jaguaribe - importante político da época, casado

com a tia do autor – com quem mantinha conversas durante a elaboração de

Iracema:

Eis-me de novo, conforme o prometido.

Já leu o livro e as notas que o acompanham; conversemos pois.

Conversemos sem cerimônia, em toda familiaridade, como se cada um estivesse recostado em

sua rede, ao vaivém do lânguido balanço, que convida à doce prática.

(...)

Há de recordar-se você de uma noite em minha casa (...)

Cuidava eu porém que você, político da antiga e de melhor têmpera, pouco se preocupava das

cousas literárias, não por menos apreço, sim por vocação. (Ibidem, p. 60-62)

Percebe-se que, a despeito da posição política do interlocutor, a carta

insiste no você como marca de intimidade e aproximação, sem resvalar para o

desrespeito, em uma manifestação plena das tendências democratizantes que a

forma de se dirigir ao interlocutor assume no Brasil.

5 Na obra Iracema, carregada de simbologias, Moacir, filho da indígena – nativa da terra que viria a se tornar

o Brasil - com o homem branco – o português dominador – representa o primeiro brasileiro , o mameluco.

54

Como prova de que José de Alencar fez escolhas linguísticas diferentes

para expressar intenções literárias também diferentes, analisou-se o emprego

pronominal em suas obras regionalistas.

Embora menos conhecidos que seus romances indianistas e urbanos, os

romances regionalistas , por se destinarem a retratar características das diversas

regiões culturais do país, são objetos de análise privilegiados para estudos

antropológicos, sociais e, é claro, linguísticos.

Nesses romances, a expressão de brasilidade já permite a inserção do

pronome você nas interações verbais. Ao lado do pronome você, há uma profusão

de empregos de tu e o senhor, em situações variadas, o que caracteriza um

momento de instabilidade de tratamento, em que formais pronominais se arcaízam

e outras são denotadoras de modernidade.

Em O gaúcho, O sertanejo e Til, o senhor fica restrito a tratamentos

cerimoniosos ou respeitosos, e tu e você disputam a primazia em situações não

reverenciais, no tratamento solidário, íntimo ou familiar.

Os diálogos entre personagens mais jovens dão preferência ao pronome

você, numa clara manifestação de sua modernidade à época. Na voz de uma

menina, Catita, dirigindo-se a um rapaz, em O gaúcho, observa-se essa escolha:

- É você que eu queria para noivo, disse-lhe Catita a sorrir.

- Quando for viúva, então sim, serei seu noivo! Respondeu o gaúcho em amargo tom de

ironia. (ALENCAR, 1998, p.9)

A mesma Catita é tratada por tu em diálogo travado com seu pai. Nesse

mesmo diálogo ao ser interpelada por um rapaz mais jovem que seu pai, recebe o

tratamento você:

55

- Papai está aí?

Lucas Fernandes voltou-se para a menina que subia os degraus do alpendre.

- Que queres, Catita?

- Já se foi a tropa, papai?

- Pois não viste?

- Ora! cuidei que iam brigar!

- Olhem a pequena! Exclamou o ferrador a rir. Então você queria ver-nos brigar com os

castelhanos?

- Queria; há de ser bonito! (Ibidem, p. 8)

Na representação da fala de adultos, a opção por tu é mais frequente e

corrente:

- Oh! Estás por cá Manuel?

- Cheguei esta tarde!

- Como vai a comadre?

- Boa, graças a Deus. (Ibidem, p.11)

Em Til, esse contraste entre jovens e adultos permanece. No primeiro

diálogo do livro, entre uma moça, Inhá, e um rapaz, Miguel, o pronome você é a

forma escolhida:

- Que me está olhando aí? Nunca me viu? exclamou de surpresa, mas travada sempre da

petulância que animava-lhe todos os movimentos.

- Não era para você! respondeu rápido o moço, baixando a cabeça de modo a ocultar o

rubor que lhe afogueava o rosto. (ALENCAR, s/d, p.2)

Curiosa referência depreciativa à forma mecê aparece no capítulo três, em

um diálogo entre os mesmos personagens, evidenciando que a forma você já

gozava de aceitação ampla e denotava uma variedade urbana e moderna.

- Cuida que eu não reparo que Afonso brinca tanto com mecê?

- Mecê, hein?

- Que me importa! Hei de dizer mecê. (Ibidem, p.7)

56

Na mesma sequência dialogal já retomam o você:

- Mas não vê que Afonso gosta de você?

- Estimo bem! Disse Inhá dando uma pirueta.

- Então?...

- Acabe!

- Então Inhá também gosta dele?

- Também!

- Ah!

- Tanto como de você, nhô Miguel!

- Muito obrigado! retorquiu Miguel com um modo sério.

Esse contraste entre as representações de fala de pessoas mais maduras

e de pessoas mais jovens se repete em O Sertanejo, escrito em 1875. No diálogo

entre dois jovens, temos:

- Ouça-me, você é um homem de fôrça e um homem de vontade, Aleixo Vargas. Antes de

lhe dar este aviso, quis mostrar-lhe que tenho poder de cumprir minha palavra, porque de dois

homens que se estimam e se acham na luta convencidos ambos que têm razão, o mais fraco deve

ceder ao mais forte.

- Visto isto tem-se você na conta de mais forte? perguntou Aleixo.(ALENCAR, s/d, p. 26)

Em outro diálogo, uma jovem, Flor, se dirige a uma senhora, Justa, também

se valendo de você:

- Esta certeza que você tem, mamãe Justa, é que eu não vejo. Só porque não se sabe de

onde veio o relicário? (Ibidem, p. 34)

O diálogo entre mais velhos dá preferência ao tu. Mesmo quando a

interação é entre um personagem mais idoso e um mais jovem, o tu permanece

na fala dos mais velhos, ora obtendo resposta por meio da forma pronominal o

senhor/ a senhora, ora contando com a benevolência do jovem que compartilha o

tratamento, ora recebendo o tratamento de você:

57

- Ouve, Arnaldo! disse a mãe buscando reter o filho. Eu te peço!

- Quando precisar de mim, mande sua comadre chamar-me.

- Não te vás, filho, que te perdes! (Ibidem, p. 56)

O tratamento desinencial que o filho emprega em relação a mãe deixa dúbia

possibilidade: ele a trataria, nessa situação por você ou a senhora, mas,

certamente, não lhe devolveu o tratamento tu.

O emprego de você, nos textos oitocentistas ainda é tímido, se pensarmos

na popularidade de que gozava entre brasileiros desde o começo do século XIX.

Como era de se esperar, a maior fidedignidade com que foi representado

aconteceu em uma peça teatral, cuja realização dos diálogos, destinados a uma

representação oral, permite uma maior flexibilidade na aceitação do público em

relação às inovações linguísticas, como a próclise no início de frases e o emprego

de você juntamente com os pronome oblíquos tu, te e possessivos teu, tua.

Dos romances analisados, percebe-se o emprego do tu, com variadas

intenções: em A Moreninha é elitizante, a compor a fala dos estudantes, futuros

doutores, a quem se creditava uma linguagem tradicional, não “corrompida” por

“brasileirismos”. A expectativa e a valoração da sociedade em relação à

linguagem ficam evidenciadas: o bom falar é o falar dos instruídos, que não deve

se deixar contaminar pela fala dos menos cultos. Deve-se levar em conta que o

público leitor à época era seleto - visto que a maioria dos brasileiros não tinha

acesso à escolaridade - e deveria menosprezar os falares populares.

Em Iracema, somente uma leitura relativizadora pode demonstrar o quanto

o emprego de tu é não prosaico, visando a contribuir com a construção de um

passado idealizado, em um texto declaradamente poético. A linguagem nesse

romance não tem compromisso com a realidade linguística contemporânea a sua

publicação, mas buscava compor diálogos que parecessem verossímeis na boca

de personagens legendários, como Iracema e Martim.

58

Nos romances regionalistas, o emprego de tu, mesmo que amplo, já traduz

uma realidade arcaizante, perdendo espaço no diálogo entre jovens, o que se

intensificará nas fases realista e modernista. Cabe lembrar que o emprego de tu

ao qual se refere este trabalho, até o momento, é aquele acompanhado de verbo

que carrega a marca da desinência –s, ou seja, aquele emprego abalizado pelas

gramáticas normativas.

A literatura romântica aponta, então, para uma aceitação e uma divulgação

cada vez maior do pronome você, iniciando um processo de legitimação que será

consumado a partir do Realismo e que gozará de franca hegemonia nos textos

representativos do Modernismo, opondo de vez a escolha pronominal em Portugal

e no Brasil.

3.3.4 Machado de Assis: caminho para a supremacia do pronome você

O Realismo representa, no tocante à inserção do pronome você na

literatura, uma ponte entre o Romantismo, cujos textos ainda trazem um convívio

quase simétrico entre essa forma pronominal e o pronome tu, e o Modernismo,

momento em que o você se tornará predominante.

Dissociam-se, com o Realismo, os sistemas pronominais português e

brasileiro: ao tutear de Eça de Queirós, opõe-se o emprego do pronome você,

nas obras machadianas, para o tratamento natural do interlocutor, quando não há

desejo de depreciação nem reverência, mas o simples interesse de representar no

discurso a pessoa a quem se dirige a palavra.

Do Realismo, selecionou-se Dom Casmurro (1899) , de Machado de Assis,

por sua relevância para a literatura nacional. Essa obra - lida, relida e discutida

intensamente até os dias atuais - marca, ao lado dos romances Memórias

59

Póstumas de Brás Cubas e Quincas Borba, a independência literária brasileira,

que se buscara desde a independência política.

Os personagens machadianos, na fase chamada realista do autor, são

verdadeiramente brasileiros, não sendo elaborados de modo pitoresco: não se

terá, em Machado, o gaúcho, o sertanejo, o caipira, mas aquele conceito de

brasileiro que paira sobre as diversidades, que dá unidade à imanente diversidade

humana.

Não se encontrarão, então, em Dom Casmurro, diálogos estigmatizantes. A

linguagem dos personagens não choca o leitor, nem pelo inusitado, nem pelo

excesso de purismo. O romance contempla a provável norma culta urbana do

século XIX, modalizada dentro dos limites de um texto escrito, no que se refere à

adequação à expectativa e à aceitabilidade do leitor contemporâneo a ele.

O primeiro diálogo a chamar atenção quando se lê Dom Casmurro6 é aquele

empreendido unilateralmente entre narrador e leitor. Nesse diálogo, o narrador

abusa do uso de tu e até de vós, de modo explícito ou implícito, com intenção

estilística: as falas dirigidas ao leitor são afetadas, presunçosas, o que lhe confere

um tom irônico, com o qual Machado deseja sutilmente desafiar o leitor e suas

expectativas moldadas ao gosto romântico:

Cap. XIV – Não me tenhas por sacrílego, leitora minha devota, a limpeza da intenção lava o

que puder haver menos curial no estilo.

Cap. XXXIII – Se isto vos parecer enfático, desgraçado leitor, é que nunca penteastes uma

pequena, nunca pusestes as mãos adolescentes na jovem cabeça de uma ninfa...

Cap. LVII – Sim , leitora castíssima, como diria o meu finado José Dias, podeis ler o capítulo

até o fim, sem susto nem vexame.

6 Embora haja, na bibliografia, referência à obra consultada , preferiu-se, ao apresentar os excertos de Dom

Casmurro, indicar-lhes o capítulo a indicar-lhes a página. Por se tratar de obra extremamente popular, com

variadas edições, a indicação do capítulo – todos muito breves - facilita a consulta a qualquer exemplar

disponível .

60

Ao contrário, os diálogos entre personagens, ao buscarem uma maior

naturalidade, não poderiam abusar dos pronomes tu e vós sem parecerem

artificiais, já que retrata uma história que começa em 1857, com o personagem

principal ainda criança e é contada como memória pelo próprio personagem em

sua fase adulta . É assim que se atinge a plena legitimação do pronome você na

literatura nacional, no final do século XIX, um século depois do registro português

sobre essa peculiaridade do idioma no Brasil.

O pronome você aparece nas mais variadas circunstâncias:

► em diálogos entre adultos:

Cap. III:

Tio Cosme, José Dias, D. Glória, prima Justina:

- Você [José Dias] o que quer é um capote; ande, vá buscar o gamão. Quanto ao

pequeno, se tem de ser padre, realmente é melhor que não comece a dizer missa atrás das portas.

Mas, olhe cá, mana Glória, há mesmo necessidade de fazê-lo padre?

- É promessa, há de cumprir-se.

- Sei que você fez promessa...mas, uma promessa assim...não sei...Creio que , bem

pensado...Você que acha, prima Justina?

- Eu?

► entre marido (João Pádua) e mulher (Fortunata) :

Cap. XVI:

- João, você é criança?

► entre os personagens principais, quando crianças:

Cap. XVIII:

Capitu para Bentinho:

- Você? Você entra.

- Não entro.

- Você verá se entra ou não.

61

..............................................................

- Se eu fosse rica, você fugia, metia-se no paquete e ia para a Europa.

..............................................................

Cap. XX:

Bentinho para Capitu:

- Mas eu queria dizer a você...

...............................................................

Cap. XLVIII:

- Mas eu também juro! Juro, Capitu, juro por Deus Nosso Senhor que só casarei com você.

Basta Isso?

...............................................................

Cap. XLIII:

Recíproco:

- Não é nada, Bentinho. Pois quem é que há de dar pancada ou prender você? Desculpe

que eu hoje estou meio maluca; quero brincar, e..

- Não, Capitu,, você não está brincando; nesta ocasião, nenhum de nós tem vontade de

brincar.

► entre os personagens principais adultos e já casados:

Cap. CVI:

- Você não me ouve, Capitu.

- Eu? Ouço perfeitamente.

- O que é que eu dizia?

- Você...você falava de Sirius.

► de prima Justina para Bentinho:

Cap. XXI:

- Estive aqui ao pé, conversando com D. Fortunata, e distraí-me. É tarde, não é? Mamãe

perguntou por mim?

- Perguntou, mas eu disse que você [Bentinho] já tinha vindo.

► de José Dias para Bentinho:

Cap. XXIII:

- Amanhã, na rua. Tenho umas compras que fazer, você pode ir comigo.

62

► de Padre Cabral para Capitu:

Cap. XXXIX:

- Obrigado, Capitu, muito obrigado; estimo que você goste também. Papai está bom? E

mamãe? A você não se pergunta, essa cara é mesmo de quem vende saúde.. E como vamos de

rezas?

► De Dona Glória para Capitu:

Cap. L:

- Minha filha, você vai perder o companheiro de infância.

► Entre Bentinho e Escobar:

- quando jovens:

Cap. LXXVIII:

- Escobar, você é meu amigo, eu sou seu amigo também; aqui no seminário você é a

pessoa que mais me tem entrado no coração, e lá fora, a não ser a gente da família, não tenho

propriamente um amigo.

- Se eu disser a mesma coisa – retorquiu ele sorrindo – perde a graça:parece que estou

repetindo. Mas a verdade é que não tenho aqui relações com ninguém, você é o primeiro e creio

que já notaram; mas eu não me importo com isso.

- quando adultos:

Cap.CXVIII:

- Você entra no mar amanhã?

- Tenho entrado com mares maiores, muito maiores. Você não imagina o que é um bom

mar em hora bravia. É preciso nadar bem, como eu, e ter estes pulmões – disse ele batendo no

peito -, e estes braços; apalpa.

Percebe-se que o pronome você invade todos os níveis sociais e conversas

espontâneas. A expressão o senhor é utilizada no direcionamento a pessoas mais

63

velhas, mesmo que socialmente inferiores, em conformidade com o que acontece

atualmente.

O pronome tu, ainda aparece esporadicamente, ou com intenção estilística,

ou na voz de personagens mais velhos, muitas vezes alternando-se com o você,

motivo que deve ter provocado a (con)fusão entre formas pronominais oblíquas e

possessivas e imperativos verbais de segunda e terceira pessoa, reorganizando

os quadros pronominal e verbal do português no Brasil:

►De D. Glória para Bentinho:

Cap. XLI:

- Nosso Senhor me acudiu salvando a tua existência, não lhe hei eu de faltar, Bentinho;

são coisas que não se fazem sem pecado, e Deus que é grande e poderoso, não me deixaria

assim, não, Bentinho; eu sei que seria castigada e bem castigada. Ser padre é bom e santo; você

conhece muitos, como o padre Cabral que vive tão feliz com a irmã; um tio meu também foi padre,

e escapou de ser bispo, dizem...Deixa de manha, Bentinho.

(...)

- E se mamãe pedisse a Deus que a dispensasse da promessa?

- Não, não peço. Estás tonto, Bentinho? E como havia de saber que Deus me dispensava?

- Talvez em sonho; eu sonho às vezes com anjos e santos.

- Também eu, meu filho, mas é inútil...Vamos, é tarde; vamos para a sala. Está entendido:

no primeiro ou no segundo mês do ano que vem irás para o seminário. O que eu quero é que

saibas bem os livros que estás estudando; é bonito, não só para ti, como para o Padre Cabral. No

seminário há interesse em conhecer-te, porque o Padre Cabral fala de ti com entusiasmo.

►De José Dias para Capitu e Ezequiel:

Cap. CXVI

- Tem razão, Capitu – concordou o agregado – Você não imagina como a bíblia é cheia

de expressões cruas e grosseiras. Eu falava assim para variar...Tu como vais, meu anjo? Meu

anjo, como é que eu ando na rua?

O imperativo de segunda pessoa já é usado quando se representa o

interlocutor por você : antes que qualquer gramática descritiva ou normativa, o

falante já creditava ao você seu caráter de segunda pessoa do discurso, tão

64

próximo do tu, que com ele compartilhava – e compartilha - formas verbais e

pronomes correlatos:

► De Capitu para Bentinho:

Cap. XXXIII :

- Senta aqui, é melhor.

►De Bentinho para Capitu:

- Levanta, Capitu.

►Recíproco

Cap. XXXIX:

- Não, venha[Bentinho], não; amanhã falaremos.

- Mas eu queria dizer a você...

- Amanhã.

- Escuta!

- Fica!

Por meio das ocorrências citadas ficam constatados tanto o emprego de

você, agora já atestado pela literatura realista, quanto a maestria de Machado de

Assis, que foi sensível, como todo bom ficcionista, ao papel relevante das formas

de se dirigir ao interlocutor na construção de um texto verossímil.

O nivelamento que o pronome você representa no Brasil comprova a tese

da tendência às relações democráticas e igualitárias e do desapreço à hierarquia,

características que, herdadas dos portugueses, encontraram entre brasileiros

condições ainda mais favoráveis a sua disseminação.

Para encerrar a análise de Dom Casmurro, segue a reprodução do único

diálogo em que Capitu é tratada por Bentinho por meio da expressão pronominal a

senhora, quando a confissão da desconfiança acerca da traição provoca uma

abrupta mudança emocional:

65

Cap. CXXXVIII:

- Só se pode explicar tal injúria pela convicção sincera; entretanto você que era tão cioso

dos menores gestos, nunca revelou a menor sombra de desconfiança. Que é que lhe deu tal idéia?

Diga – continuou vendo que eu não respondia nada -, diga tudo; depois do que ouvi, posso ouvir o

resto, não pode ser muito. Que é que lhe deu agora tal convicção? Ande Bentinho, fale! fale!

Despeça-me daqui, mas diga tudo primeiro.

- Há coisas que se não dizem.

- Que se não dizem só metade; mas já que disse metade, diga tudo.

Tinha-se sentado numa cadeira ao pé da mesa. Podia estar um tanto confusa, o porte não

era de acusada. Pedi-lhe ainda uma vez que não teimasse.

- Não, Bentinho, ou conte o resto, para que eu me defenda, se você acha que eu tenho

defesa, ou peço-lhe desde já a nossa separação: não posso mais!

- A separação é coisa decidida – redargüi pegando-lhe na proposta – Era melhor que a

fizéssemos por meias palavras ou em silêncio; cada um iria com a sua ferida. Uma vez, porém, que

a senhora insiste, aqui vai o que lhe posso dizer, e é tudo.

3.4 Modernismo e produção contemporânea: a hegemonia do

pronome você na literatura

O Modernismo no Brasil representa a conquista da plena maturidade da

literatura nacional. Desde seus primórdios contestadores e demolidores de normas

e modelos, a procura por uma manifestação genuinamente nacional provocou a

criação de personagens variados, representantes de cada região do Brasil, de

cada condição social, não com o intuito de realçar-lhes traços pitorescos,

caricaturizando-os ou idealizando-os, mas para revelar o quanto o regional e o

marginal têm de universal.

A partir do Modernismo, a literatura brasileira segue rumos diversos,

aproveitando-se da autonomia cultural já conquistada. É nesse emaranhado de

tendências e autores que se buscaram, de forma aleatória , obras representativas

da literatura nacional, a fim de se concluir o itinerário do pronome você em textos

literários nacionais.

66

Os textos produzidos por autores de distintas regiões brasileiras vão

reforçar o caráter nacional do pronome, desvencilhando-o de uma possível

limitação geográfica que se sugerisse impor-lhe.

Assim sendo, serão analisados textos de diferentes gêneros literários, de

autores e vertentes literárias diversas, com o intuito de mostrar que o pronome

você não se circunscreve nem a opções regionais, nem a opções estilísticas, nem

a opções estruturais.

As análises não serão pormenorizadas, para que se possa contemplar um

maior número de obras, sem tornar a leitura do trabalho enfadonha.

A primeira obra modernista em que se observou o emprego majoritário do

pronome você foi Macunaíma, do paulista Mário de Andrade. Essa obra que

representa a valorização da oralidade brasileira, a qual tenta reproduzir por meio

de uma ortografia e de uma sintaxe originais em textos literários, não poderia

abster-se do pronome você, índice indiscutível de independência e de alteridade

linguística entre Brasil e Portugal.

O pronome você, em Macunaíma , é nosso representante da segunda

pessoa do discurso :

- O que foi mesmo que você caçou, herói?

- Dois viados mateiros.

(...)

- Mas, meus cuidados, pra que você fala que foram dois viados e em vez foram dois ratos

chamuscados!

(...)

Eu menti

(...)

Mas pra que você mentiu, herói? (ANDRADE, 2000, p. 40)

........................................................

- Eu até que nem não sei balançar...Milhor você vai primeiro, que Macunaíma rosnou.

67

- Que eu nada, herói? É fácil que-nem beber água! Assuba na japecanga, pronto: eu

balanço!

- Então, aceito porém você vai primeiro, gigante.(Ibidem, p.128)

O pronome tu restringe-se a poucas falas de anciãos:

(...) A velha botou o curumim [Macunaíma] no campo onde ele podia crescer mais não e

falou:

- Agora vossa mãe vai embora. Tu ficas perdido no coberto e podes crescer mais

não.(Ibidem, p.19)

..................................................................

(...) O velho falou:

- Quem és tu?

- Não sou estranho não, conhecido. Sou Macunaíma o herói e vim parar de novo na terra

dos meus. Você quem é? (Ibidem, p 141)

Acompanham Macunaíma, na escolha pronominal para o tratamento do

interlocutor, alguns dos célebres personagens de nossa literatura, como a

Macabéa de A Hora da Estrela, romance da ucraniana, criada no Recife, Clarice

Lispector:

►Macabéa e Olímpico

Ele: - Melhor mudar de conversa porque você não me entende.

Ela: - Entender o quê?

Ele: - Santa Virgem, Macabéa, vamos mudar de assunto e já!

Ela: - Falar então de quê?

Ele: - Por exemplo, de você.

Ela: - Eu?

Ele: - Por que esse espanto? Você não é gente? Gente fala de gente. (LISPECTOR, 1998,

p.48)

68

► Macabéa e Glória

- Você endoidou, criatura? Pintar-se como uma endemoniada! Você até parece mulher de

soldado! (Ibidem, p. 62)

- Sou moça virgem! Não sou mulher de soldado e marinheiro.

- Me desculpe eu perguntar: ser feia dói?

- Nunca pensei nisso, acho que dói um pouquinho. Mas eu lhe pergunto se você que é feia

sente dor.

O alagoano Graciliano Ramos cria Fabiano “que não sabia falar”, em seu

maior romance, Vidas Secas, e em seus monólogos:

- Fabiano, você é um homem, exclamou em voz alta. (RAMOS, 2007, p.18)

..............................................

- Você é um bicho, Fabiano. (Ibidem, p.19)

Da prosa alagoana parte-se para a prosa mineira, com Guimarães Rosa e

encontra-se como exemplo digno de nota do emprego do pronome em sua obra,

não o que aparece nas falas de um de seus personagens mais famosos, mas o

que surge na fala da mãe do narrador do conto “A Terceira Margem do Rio”, ao

se dirigir, contrariada, ao marido que resolvera partir sem rumo em uma canoa que

mandara fazer. O autor concentra toda força emotiva que a troca de um pronome,

no tratamento do interlocutor, pode representar:

– Cê vai, ocê fique, você nunca volte! (ROSA, 1988, p.32)

A gradação pronominal expõe o distanciamento que a atitude do marido

provocou, com sua insensatez. Essa gradação, que poderia ser feita, por

exemplo, com os pronomes tu – você - o senhor, do mais íntimo ao mais

distanciador - como ocorre em Portugal - , ou com os pronomes você - o senhor ,

não demonstraria a força expressiva que a inusitada involução do você

proporciona. É o talento que transforma em arte o trivial.

No conto “Venha ver o pôr-do-sol”, de Lygia Fagundes Telles, dois jovens,

antigos namorados, tratam-se do começo ao fim por você, acompanhado, como

69

não poderia deixar de ser, da forma obliqua te, o que confere ao diálogo uma

naturalidade que a forma recomendada pela gramática normativa o / a não

conferiria:

- Eu gostei de você, Ricardo.

- E eu te amei. E te amo ainda. Percebe agora a diferença? (FAGUNDES TELLES, 1998,

p.31)

O autor goiano J.J. Veiga, em seu A Hora dos Ruminantes, expoente do

realismo fantástico, escolhe o pronome você para a segunda pessoa, como se

confere no diálogo entre compadres:

- Mas Amâncio, por que agora? Ou você está assustado com alguma outra coisa?

Amâncio abaixou a cabeça e disse em voz baixa:

- Você sabe o que é que eu estou dizendo. Não pensei que chegasse a esse ponto, mas

chegou. Caímos na ratoeira e por enquanto não vejo saída.

- Não sei de nada. Você não está exagerando? (VEIGA, 1997, p. 70)

Do gênero teatral, o exemplo do emprego do pronome você extraiu-se dos

hilários diálogos entre Chicó e João Grilo, personagens da peça Auto da

Compadecia, do paraibano Ariano Suassuna:

João Grilo: Conte, conte sempre, você está em casa.

Chicó: Você sabe que eu comecei a correr da ribeira do Taperoá, na Paraíba. Pois bem, na

entrada da rua perguntei a um homem onde estava e ele me disse que era Própria, de Sergipe.

João Grilo: Sergipe, Chicó?

Chicó: Sergipe, João. Eu tinha corrido até lá no meu cavalo. Só sendo bento mesmo.

João Grilo: Mas Chicó, e o Rio São Francisco?

Chicó: Lá vem você com sua mania de pergunta, João.

João Grilo: Claro, tenho que saber. Como foi que você passou? (SUASSUNA, 1997, p. 28)

Em Ciumento de Carteirinha, Moacyr Scliar, gaúcho, cria para o público

adolescente uma obra em que homenageia Dom Casmurro, de Machado de Assis.

O diálogo abaixo se passa entre dois adolescentes, Queco e Júlia:

70

- É isso que você tinha pra me dizer?

- É isso – eu, ainda ofegante.

- Pois então ouça, Queco. Não sei o que exatamente você está pensando ou imaginando,

mas de uma coisa pode ter certeza: você está fora da realidade, entendeu? Completamente fora

da realidade. Nada do que você pensa ou imagina aconteceu.

- O quê? Você está querendo dizer que não pintou nada entre você e o Vitório? (SCLIAR,

2006, p. 102)

Para terminar, o retrato duro e violento que Rubem Fonseca cria do Brasil,

cujos diálogos, recheados de palavrões e vocabulário obsceno, saem da boca de

marginalizados, em situações degradantes. Do conto “Idiotas que falam outra

língua” retirou-se um diálogo entre Sílvia e José Roberto, que são amantes, em

que aparece o pronome você acompanhado das formas verbal imperativa e

pronominal oblíqua emprestadas do tu:

Sílvia: E por que você não vem pra cá nas terças e sextas?

José Roberto: Quintas. Não quero cansar você.

Sílvia: Você nunca me cansa, seu brutamontes fodedor.

José Roberto: Você não quer saber o que eu decidi?

Sílvia: Você não pode decidir nada. O dinheiro é dela.

José Roberto: Quer ou não quer saber?

Sílvia: Você já escovou os dentes? Vem pra cama. Estou pingando.

(...)

Sílvia: Anda, diz.

José Roberto: Estou alucinado por você.

Sílvia: O que mais?

José Roberto: Eu te amo, eu te amo. (FONSECA, 1995, p. 38-39)

Dos modernos aos contemporâneos, abundam os exemplos em que o

pronome você assume o lugar de segunda pessoa nos textos literários do Brasil.

Tal representatividade em textos literários diversos, de diferentes regiões do

Brasil, escritos por autores de diferentes vertentes, no decorrer de dezenas de

anos, é prova incontestável de sua popularidade e aceitação em território

nacional.

71

A variedade de autores e gêneros analisados atesta que, de fato, o

pronome você não é corrente apenas no eixo Rio - São Paulo, o que faria crer

que o conceito de brasilidade que ele expressa é aquele concentrado nos grandes

centros urbanos. O você traduz a naturalidade do discurso cotidiano na Bahia e

no Rio Grande do Sul, em Minas Gerais e no Recife, assim como em São Paulo e

no Rio de Janeiro.

Nesse sentido, importa lembrar que Mario de Andrade fez pesquisas

intensas sobre a flora, a fauna, as lendas, as expressões linguísticas de várias

regiões do Brasil e as fundiu em Macunaíma, com o intuito de desregionalizar sua

obra, isto é, de dar-lhe um caráter brasileiro generalizador. Para realizar esse

intento, a escolha do pronome pessoal para o tratamento do interlocutor, na

rapsódia modernista, recaiu sobre o você.

A música popular brasileira, que assistiu no século XX e no corrente, à

valorização de suas composições no Brasil e no exterior, é outro canal divulgador

da opção - se não hegemônica, ao menos expressiva - do pronome você, no

tratamento do interlocutor, em território nacional. O caráter lírico de muitas de

suas letras - carregadas da função apelativa, por meio da qual o eu lírico se dirige

ao ser amado, como nas cantigas medievais – aliado à intenção de atingir um

público amplo, recorre regularmente à escolha do pronome você.

Por meio da música nacional que se divulga pelo mundo, estudiosos da

língua portuguesa empregada no Brasil, estejam eles na França ou nos Estados

Unidos, no Japão ou em Angola, em Portugal ou na Argentina, tomam

conhecimento de uma importante escolha pronominal brasileira.

Letristas das cinco regiões brasileiras e de diferentes estilos musicais

contribuem, com suas criações para a divulgação da espontaneidade e do caráter

72

suprarregional do pronome você como representante da segunda pessoa no

Brasil:

Você – Roberto Menescal e Ronaldo Bôscoli, rio de Janeiro

Você – TIM Maia, Rio de Janeiro

Por você – Barão Vermelho, Rio de Janeiro

Por causa de você, menina – Jorge Bem, Rio de Janeiro

Canção pra você viver mais – Pato Fu, Minas Gerais

Fico assim sem você – Adriana Calcanhoto, Rio Grande do Sul

Você é você – Gilberto Gil, Bahia

Você e eu – Maria Betânia, Bahia

Você, você – Chico Buarque, Rio de Janeiro

É por você que canto – Leandro e Leonardo, Goiás

Você me enganou – banda Calypso, Pará

Você – Roberto Carlos, Espírito Santo

Você bem sabe – Djavan, Alagoas

Quem é você – Zizi Possi, São Paulo

De Você – Pitty, Bahia

Os exemplos citados não implicam o uso exclusivo do pronome você, pelos

compositores, em suas interações cotidianas. No entanto, a escolha desse

pronome revela a percepção de que seu emprego ultrapassa os limites regionais e

sociais. Títulos de canções como: Tu; Por ti; Por causa de ti, menina; Canção

para que tu vivas mais; Fico assim sem ti; Tu me enganaste; Tu bem sabes; Quem

és tu; De ti; não teriam o apelo universal e causariam estranheza a um maior

número de brasileiros que os títulos reais das canções.

A legitimação do pronome você se deu de forma crescente e intensa não só

no discurso cotidiano, mas também na literatura brasileira, de onde se podem

inferir os motivos que levaram à fusão, no Brasil, de formas verbais e pronominais

convencionalmente chamadas de segunda e terceira pessoas.

73

Completados duzentos anos de sua bem sucedida trajetória no tratamento

do interlocutor no Brasil, atestada, inclusive, como se viu, por grandes expoentes

culturais nacionais, por meio de obras literárias publicadas desde a primeira

metade do século XIX , até a explosão da música popular brasileira - os poemas

musicados contemporâneos - é hora de constatar a representatividade do

pronome você em obras gramaticais brasileiras, o que implicará a construção de

seu outro percurso – o gramatical.

74

__________CAPÍTULO IV ___________________________________________

PERCURSO GRAMATICAL DO PRONOME VOCÊ

Ao se construir a trajetória histórica do pronome você, fez-se necessária a

reconstituição histórica do sintagma reverencial Vossa Mercê . No entanto, ao

elaborar-se o percurso da representação do pronome você nas gramáticas, não se

manifesta a mesma necessidade, visto que a busca, agora, é pela representação

do pronome, já consolidado em sua forma reduzida, em interações verbais

espontâneas.

Desse modo, buscaram-se, em gramáticas a partir do século XVIII, as

referências ao pronome você, exclusivamente. As menções à forma Vossa Mercê,

quando feitas, terão caráter tangencial e visarão ao esclarecimento e à análise

acerca do pronome enfocado.

Justifica-se a pesquisa a partir do século XVIII, pois o século XVII produz a

primeira representação literária do pronome, o que faz crer que seu uso em textos

não literários seja anterior e que sua representação em gramáticas seja posterior,

já que o caráter das obras gramaticais é mais conservador e não se vale ao

registro imediato de inovações linguísticas.

Restringiu-se o trabalho à análise de um número limitado de obras

representativas dos períodos investigados, mesmo porque seria tarefa impossível

o levantamento de toda produção gramatical dos séculos XVIII, XIX, e XX, com

seus inúmeros autores e variadas edições. Assim sendo, analisar-se-ão os

capítulos dedicados aos pronomes da Grammaire de Port Royal, obra modelar

para os autores portugueses setecentistas, além de três gramáticas portuguesas

escritas entre os séculos XVIII e XIX. Partir-se-á, então, para as obras gramaticais

brasileiras.

75

4.1 Os pronomes na gramática portuguesa: a justificável ausência do

você

Segundo Fávero (1996), ao lado de Minerva, do espanhol Francisco

Sánchez de las Brozas (século XVI) e dos verbetes “linguísticos” dos

Enciclopedistas , posteriormente organizados na Encyclopédie méthodique:

grammaire et littérature (século XVIII), figura a Grammaire genérale et raisonnée,

de Claude Lancelot e Antoine Arnauld (século XVII), mais conhecida como

Grammaire de Port-Royal, como modelo “recente” para os gramáticos portugueses

do século XVIII.

Na Grammaire, a classe dos pronomes ocupa duas páginas do capítulo VIII

da segunda parte - que é dedicada, especialmente, à morfologia, destinando-se

apenas o último capítulo, o XXIV, à sintaxe – já que para seus organizadores,

seguindo o exemplo de Sánchez em sua Minerva, “a sintaxe é o fim da gramática

e não parte dela” e um apêndice às figuras de construção. O capítulo IX da

segunda parte é dedicado ao pronome relativo.

No breve espaço destinado aos pronomes em geral e a sua descrição, a

Grammaire evidencia a função do pronome de substituir o nome, em um texto, a

fim de se evitar a repetição de uma mesma palavra, além de esclarecer que, por

esse motivo, a classe de palavras com tal função recebeu o nome de pronome

(pro- : em lugar de; nome: nome).

É essa definição, calcada nas gramáticas latinas - já que apenas reproduz

a origem etimológica da palavra pronome ao tentar definir a classe morfológica -

que perdurará em muitos gramáticos portugueses dos séculos subsequentes, em

que ainda não se contempla a função discursiva do termo.

A gramática de Jerônimo Contador de Argote, publicada em 1721, cujo

nome expressa sua filiação latina – Regras da Língua Portugueza, Espelho da

76

Latina ou Disposiçam para Facilitar o Ensino da Língua Latina pelas Regras da

Portugueza - reproduz textualmente a definição da Grammaire de Port- Royal

acerca dos pronomes:

Comme lês hommes ont eté obligez de parler souvent dês mesmes choses

dans mesme discours, & qu’il eut até importun de repeter toujours lês

mesmes noms, ils ont inventé certains mots pour tenir la place de ces noms;

& que pour cette raison ils ont appellé Pronoms.

(Grammaire de Port- Royal , II, 8, p. 59 apud Fávero, 1996, p. 177)

Os pronomes são classificados por Argote em primitivos (ou pessoais),

possessivos, demonstrativos e relativos.

Não há nenhuma menção ao pronome você, como era de se esperar, pois,

apesar de sua franca expansão já no século XVIII, era tido ainda como forma

cortês de tratamento, assunto ao qual nenhuma gramática dedica espaço até o

século XIX, já que na tradicional sociedade portuguesa de outrora este fora

assunto de estado, como provam as leis de cortesia de 1597 e 1739, que

regulavam as formas de se dirigir a outrem em Portugal. Além do mais, como

decalque da gramática de Port-Royal, por sua vez, reprodução da latina no que

concerne à definição do pronome, não haveria espaço, na gramática de Argote

para as formas reverenciais de tratamento que tanto sucesso alcançaram em solo

português.

É pertinente lembrar que o pronome você estava, à época do lançamento da

gramática de Jerônimo Contador de Argote (1721), em pleno estágio de

experimentação, concorrendo, entre os falantes do português, com suas rivais

oriundas do mesmo processo de desgaste do Vossa Mercê. O sistema de

tratamento permanecia, então, instável em Portugal, o que impediria qualquer

representação nas gramáticas do século XVIII.

77

A gramática de Antônio José dos Reis Lobato – Arte da Grammatica da

Língua Portugueza -, publicada em 1770 e, portanto, posterior à última lei de

cortesia (1739), é considerada uma gramática de transição entre o período da

gramática latina e o de renovação filosófica (FÁVERO, 1996, p201) .

Reproduz a mesma definição de Argote e Port-Royal, ao caracterizar

pronome como aquele que se põe em lugar do nome, na oração. Divide a classe

de pronomes em demonstrativo, recíproco, possessivo, relativo e interrogativo.

Para Reis Lobato, os pronomes pessoais são demonstrativos, pois mostram ou

exprimem as pessoas que podem estar na oração:

1ª pessoa: eu – que fala;

2ª pessoa: tu – com quem se fala;

3ª pessoa: ele,ela – de que se fala.

A ausência de uma parte da gramática dedicada a descrever os modos

como se deve se dirigir ao interlocutor, quando a situação ou a condição da

pessoa a quem se dirige a palavra exigir reverência, se explica pelo fato de que

ainda se considerava que esse assunto deveria ser tratado fora dos compêndios

gramaticais, não mais por textos legais - já que não houve a elaboração de outra

pragmática após a de 1739 -, mas por manuais de etiqueta social, de grande

circulação na sociedade de setecentos, como se pode comprovar em O Caminho

dos livros, de Márcia Abreu.

Como o pronome você estaria circunscrito aos modos corteses de

tratamento do interlocutor, entende-se, portanto, porque a Arte da Grammatica e

suas contemporâneas, não lhe façam qualquer alusão.

A gramática de Jerônimo Soares Barbosa é considerada a principal

representante da renovação filosófica que inspiraria várias gramáticas do século

XIX. Declara-se favorável às reformas empreendidas por Pombal, que privilegia a

78

gramática portuguesa, ao determinar que seja ensinada antes que a latina, com o

objetivo de tornar o aprendizado mais bem sucedido.

A preocupação com o rigor científico, própria da época, faz com que Soares

Barbosa busque fugir da mera acomodação da gramática portuguesa aos moldes

da latina:

Esta postura [a de Soares Barbosa] mostra não só o espírito de época em

que se inicia a busca do rigor científico, mas também a ruptura em relação

às gramáticas anteriores, meros sistemas analógicos ‘baseados na gramática

latina’. (Ibidem, p.206)

Até Jerônimo Soares Barbosa, as gramáticas definem pronomes de acordo

com o modelo de Port-Royal e de La Logique, dos Enciclopedistas, explicando-os

como palavras que substituem o nome, e passam a classificá-los de acordo com o

modelo latino, no qual essas duas gramáticas francesas se inspiraram.

A originalidade de Soares Barbosa está no fato de que, embora se apoie na

clássica definição de pronome como substituto do nome, apresenta uma

conceituação discursiva do pronome, introduzindo, sem os recursos teóricos da

atualidade, a cena enunciativa no estudo das formas pronominais.

Segundo sua Grammatica Philosophica da Lingua Portugueza:

Os determinativos pessoaes são uns adjectivos que determinam os nomes a

que se juntam ou a que se referem, pela qualidade da personagem ou papel

que fazem no acto discursivo, ou da propriedade e posse, relativa às mesmas

personagens.

Estas personagens ou papeis, por ordem à representação no discurso

são tres, a saber: a primeira pessoa, que é aquella que falla no discurso; a

segunda, que é aquella com quem se falla; e a terceira, que é aquella de

quem se falla, ou seja pessoa ou coisa. Os determinativos pessoaes que

modificam os nomes com estas tres relações por ordem ao acto ou

representação da palavra, chamam-se primitivos. D’estes se formam os

79

pessoaes derivados, que determinam os nomes pela qualidade de

pertinência ou posse, relativa a cada uma d’estas pessoas.

A nossa Lingua tem onze determinativos pessoaes, a saber, seis primitivos

que são, dois da 1ª pessoa eu para o singular e nós (com ó grande aberto)

para o plural; dois da 2ª pessoa tu para o singular e vós (com ó grande

aberto) para o plural; um directo da 3ª pessoa elle, ella para o singular, elles,

ellas para o plural; e outro recíproco ou reflexo da mesma terceira pessoa

para o singular e para o plural, que é se.” (SOARES BARBOSA, 1866, p.99)

Embora Soares seja inovador em vários aspectos, não se encontram

ainda alusões ao pronome você, tampouco às formas pronominais reverenciais,

em sua gramática.

O exemplar consultado é relativo à 4ª edição da obra, datada de 1866,

época em que o pronome - vigoroso em Portugal, mas não como alternativa ao

pronome tu -, já havia sido transportado ao Brasil, onde se consolidara como

opção nacional bem sucedida no tratamento direto da segunda pessoa, o que

ocorreu entre o final do século XVIII e começo do século XIX.

Como todas as gramáticas analisadas até o momento são portuguesas,

não há de espantar o fato de não haver uma clara referência ao pronome você

como autêntico pronome de segunda pessoa do discurso, já que em Portugal ele

nunca ocupou o mesmo lugar do tu. Caber-lhe-ia, então, nas gramáticas lusitanas,

uma mera menção honrosa em capítulo dedicado às formas reverenciais ou semir-

reverenciais, o que só viria a acontecer no século XX., época em que, de forma

definitiva – ao menos se espera - o Estado deixa de se pronunciar acerca das

questões linguísticas e a sociedade ocidental caminha para práticas mais

solidárias e democráticas, desprezando os outrora bem sucedidos manuais de

etiqueta. Desse modo, a gramática abre suas portas para a descrição e prescrição

dos modos de se dirigir ao interlocutor, em situações informais, formais e

reverenciais.

4.2 Pronome Você nas Gramáticas Brasileiras do século XIX: ausência

80

O século XIX é o século em que amadurece a consciência sobre a

necessidade de construção do que se pode chamar de brasilidade: um conjunto

de características, de interesses, de representações e manifestações culturais que

colocam o Brasil em contraste com as outras nações.

Em busca desse contraste, especialmente em relação a Portugal, o Brasil

buscará, após a independência, e por esforço de vários segmentos sociais, a sua

individualização. É no século XIX que se coloca a questão da língua nacional, isto

é, da língua portuguesa, que, em território nacional, adquirira outra prosódia, outra

sintaxe, outras escolhas vocabulares e, até, outras preferências quanto às formas

de se dirigir ao interlocutor. É desejo dos intelectuais de então ver a língua

nacional legitimada, vislumbrando nela, de acordo com as correntes científicas

evolucionistas, um aperfeiçoamento do próprio português europeu.

Não se pode falar em língua portuguesa no Brasil do século XIX, sem se

referir ao século XVIII, visto que é nesse período que a língua geral entra em

decadência, dando lugar preponderante ao português que se afirma graças às

hordas de portugueses atraídos pelas minas de ouro e diamantes e ao Diretório do

Marquês de Pombal, que, em 3 de maio de 1757, proíbe o uso da língua geral e

obriga o uso da língua portuguesa.

Passados cinquenta anos das reformas pombalinas, o português já se

firmara no Brasil, como língua fundamental de comunicação e cultura, e

atravessará o século XIX, buscando representações literárias e gramaticais

tradutoras de sua individualidade e de suas particularidades, intento nem sempre

alcançado ou compreendido.

O que a Independência havia auferido, a república ratificará, por meio do

desejo de se mostrar ao mundo o Brasil como jovem nação, liberta dos

81

condicionamentos coloniais e monárquicos, com manifestações culturais

autônomas e originais.

No bojo do processo de construção da brasilidade, encontra-se, no século

XIX, o nascimento da gramatização no Brasil – produção de instrumentos

linguísticos, como gramáticas e dicionários, que visavam a descrever o português

brasileiro e normatizá-lo, por meio de exemplos de autores nacionais. A frustrar

esse propósito renovador estava o caráter tradicional da gramática, que, mesmo

quando produzida em território nacional, bebeu em exemplos lusitanos, dos quais,

em muitos aspectos, não consegue se desvencilhar.

As gramáticas produzidas no Brasil até a década de 70 do século XIX

seguem a tradição portuguesa, de inspiração latina, sob orientação da Gramática

Geral e Filosófica, sem qualquer alusão à língua falada no Brasil, já que, mesmo

após a Independência, muitos setores da sociedade desejavam que o idioma

desenvolvido no Brasil fosse espelho do desenvolvido na Europa:

Lembremo-nos de que nossa pátria, na época, colônia de Portugal e, a

despeito de se ter começado a pensar a questão da nacionalidade, qualquer

expressão que não seguisse os modelos da língua de nossa pátria-mãe era

considerado brasileirismo e, portanto, um vício de linguagem.

(FÁVERO & MOLINA, 2006, p.55)

Como aqueles que, em Portugal, inspiraram-se na Grammaire Générale et

Raisonnée e nos Enciclopedistas, durante o século XVIII, os gramáticos brasileiros

até Júlio Ribeiro, ora repetiram a clássica conceituação de pronome como

substituto do nome e limitaram-se a classificá-lo, como o fez Frei Joaquim do

Amor Divino Caneca, em seu Breve Compêndio de Grammatica Portugueza,

escrito entre 1817 e 1819 e Francisco Sotero dos Reis, na Grammatica

Portugueza, editada em 1866; ora a negaram, como Antônio de Moraes Silva, em

sua obra Epítome da Grammatica Portugueza,escrita em 1802:

82

Em relação aos pronomes diz que eles não são substituidores dos nomes,

mas, sim, nomes: eu, me, mim, migo, tu, te, ti, tigo, se, si, sigo, nós, nos ,

nosco, vós, vos, vosco. Enfoca-os do ponto de vista do discurso, posição

também adotada por seu contemporâneo Soares Barbosa.

(Ibidem, p. 64)

Ao se referir ao tratamento do interlocutor, diz que, quando falamos com

alguém, dizemos familiarmente tu, te, ti, tigo, deixando implícito seu

reconhecimento de que há outras formas de tratar o interlocutor que não seja a

familiar; no entanto não há referência ao você ou às formas reverenciais.

Já se adentrou a segunda metade do século XIX, em pleno Brasil dominado

pelo emprego generalizado de você, e ainda não se encontrou seu registro em

gramáticas da Língua Portuguesa, quer produzidas no Brasil, quer produzidas em

Portugal.

Partir-se-á, agora, para as gramáticas do período dito científico, “cujos

autores, dizendo seguir os pressupostos da recém inaugurada Linguística

histórico-comparativa, procuraram romper (embora nem sempre com sucesso),

com o modelo das anteriores, fundado na tradição greco-latina.” (Ibidem, p.123)

A Grammatica Portugueza, de Júlio Ribeiro, publicada em 1881, inicia o

período “científico”, no processo de gramatização brasileiro, em que as forças de

renovação deveriam prevalecer sobre as de conservação. Sua adesão às

correntes cientificistas da época fica evidente em sua apresentação e

estruturação, em que quadros expõem a aproximação entre as línguas naturais e

as espécies orgânicas. Ao mesmo tempo usa conceitos da Gramática Geral,

tentando conciliá-los com os pressupostos evolucionistas, a fim de justificar a

criação de uma gramática prescritivista, que visa ao ensino e à valorização de

uma norma padrão.

83

Embora a evolução das palavras lhe interesse, de maneira singular, não faz

referências ao sintagma Vossa Mercê e às palavras dele derivadas por desgaste

fono-semântico.

Para Manuel Pacheco da Silva Junior e Boaventura Plácido Lameira de

Andrade, na obra Grammatica da Língua Portugueza, publicada depois do

programa traçado por Fausto Barreto, o pronome é a classe mais primitiva dentre

as palavras, por sua escassa inventividade. Por meio dessa afirmação, conclui-se

que não comentaram todas as formas por meio das quais o português pode se

referir ao seu interlocutor, dentre elas, o você.

Nas quase quatro páginas de sua Grammatica Descriptiva, de 1894,

dedicadas aos pronomes, Maximino Maciel volta à antiga definição :

“Pronome é qualquer palavra substituta do nome ou de qualquer expressão

nominativa, ex.: Eu, ninguém, quem quer que, cada um.

Os pronomes substantivos substituem sempre os nomes, pois não exercem

outra função, ex.: eu, elle, tu, nós, vós, elles, ninguém.” (MACIEL, 1916,

p.124)

Segue classificando-os em “pessoaes, demonstrativos ,articulares,

conjuntivos, indefinidos”.

Apresenta os pronomes pessoais da forma mais tradicional possível, sem

nenhuma referência ao você, mesmo em sua sexta edição, datada de 1916.

“Pronomes pessoaes são aquelles que substituem e representam as pessoas

gramaticaes.

O pronome pode substituir:

A) A primeira pessoa, isto é, aquella que fala, e tem por substitutos os

pronomes: - eu e nós;

B) A segunda pessoa, isto é, aquella que ouve, e tem por substitutos os

pronomes: - tu e vós;

84

C) A terceira pessoa, isto é, aquella que serve de assumpto ao que se diz, e

tem por substitutos os pronomes: - elle e elles.

Termina-se, assim, a busca pelo pronome você nas gramáticas brasileiras

do século XIX, quer do período filosófico, quer do período denominado científico,

sem que se encontre nenhuma alusão a ele, o que atesta o caráter tradicional e

conservador da gramática, no que tange à representação dos interlocutores no

discurso e, em especial, à forma de se dirigir ao locutário que, em português,

externa tantas nuances e interesses.

Ao nortear-se por essas gramáticas, qualquer estudioso da língua

portuguesa teria certeza de que no Brasil, assim como em Portugal, o pronome tu

é maneira dominante, para não dizer exclusiva, no direcionamento a um

interlocutor e que o vós ainda é produtivo em ambos os países. Jamais poderia

imaginar que, em terras brasileiras, o vós é fóssil há bastante tempo e que o tu,

como descrito nessas gramáticas, ainda prevalece, embora concorrendo com o

você, com quem, aliás, chega a compartilhar hoje a mesma desinência verbal, em

produções espontâneas.

4.3 O pronome você nas gramáticas do século XX

Só se contemplará o pronome você em gramáticas brasileiras, a partir do

século XX, mesmo se sabendo que seu uso generalizado é um dos traços

singularizantes do português falado no Brasil, desde o século XVIII, quando

personagens brasileiras eram representadas no teatro português empregando-o.

O você poderia ter sido bandeira dos românticos que buscavam uma

expressão nacional genuína, dos escritores e gramáticos pós-republicanos, que

teriam um fato linguístico incontestável e não passível de condenação, visto que

legitimado pelo uso que invade todos os níveis sociais, etários, culturais e,

85

atualmente, até hierárquico, no diálogo entre chefes e subordinados, entre alunos

e professores, entre professores ou alunos e diretores e assim por diante.

Nossa gramática poderia ter sido diferenciada desde o século XVIII, por

meio do simples argumento de que, no Brasil, o tu e sua forma verbal correlata

com desinência –s, simplesmente não descrevem nossa língua em sua totalidade,

tampouco tem a gramática a intenção de prescrevê-los, pois tal uso, que soaria

arcaizante e anacrônico para a maioria dos brasileiros, não poderia ser imposto.

Perceber-se-á que, mesmo em pleno século XX, o você, muitas vezes, não

ocupa o lugar que lhe cabe nas gramáticas, equiparando-se com os pronomes

pessoais, mas ainda ocupa assento ao lado de o senhor ou de Vossa Senhoria,

Vossa Excelência, Vossa Alteza e outras formas protocolares semelhantes.

Nas duas gramáticas históricas analisadas – a de Eduardo Carlos Pereira e

a de Manoel Said Ali, ambas da primeira metade do século XX, como era de se

esperar, não por conta da já mais que consumada profusão do emprego de você

entre brasileiros, mas pela característica fundamental de uma gramática histórica

– estudar a origem e a evolução de uma língua – encontram-se alusões ao

pronome você.

Na Grammatica Histórica, de Eduardo Carlos Pereira, de 1935, a definição

de pronome pessoal faz referência a sua função de substituir um nome, para

evitar sua repetição e, também, a sua função discursiva de representar a pessoa

gramatical que evoca.

Por buscar as origens da língua portuguesa, expõe os vestígios da

declinação latina nos pronomes pessoais e dedica três tópicos para traçar,

sucintamente, o panorama histórico acerca dos pronomes de reverência, desde o

momento em que o plural majestático começa a ser empregado, no Império

86

Romano, para se dirigir a uma pessoa proeminente até a criação das expressões

formadas por substantivos abstratos:

Desenvolvida na b. da latinidade a idéia accessoria de deferencia ou

dignidade no emprego dos pronomes da 1ª e 2ª pess. Do plural (nós, vós),

requintou em nossa língua o espírito de cortezania, promovendo a creação

de certo numero de pronomes ou expressões pronominaes de tractamento,

taes são: Vossa Mercê (V.M), Vossa Senhoria (V.S.a.), Sua Senhoria

(S.S.a), Sua ou Vossa Excellencia (S. ou V. Exc.a.), Reverendo (Rer.), Sua

ou Vossa Reverendíssima (S. ou V. Revd.ma., Sua ou Vossa Alteza (S. ou

V.A.), Sua ou Vossa Majestade (S. ou V. M.), Sua ou Vossa Mercê (S. ou

V.M.). (PEREIRA, 2004,p.461)

O tópico seguinte já trata da forma você:

Vossa Mercê deu-nos, contrahido, você (V.), com mudança de sentido, pois

você equivale a tu, no uso actual, e se refere a eguaes ou inferiores,

indicando, ás vezes, no circulo domestico, carinho e confiança de filhos para

com seus paes.

Também Manoel Said Ali, em sua Gramática Histórica da Língua

Portuguesa, reitera a origem latina da língua e os resquícios de declinação nos

pronomes pessoais, além de reconstruir a mesma trajetória do tratamento

cerimonioso em Portugal até chegar à referência ao pronome você:

Do uso e abuso da fórmula vossa mercê nasceu em boca do povo a variante

você, a qual não só perdeu o antigo brilho, mas acabou por aplicar-se a

indivíduos de condição igual, ou inferior, à da pessoa que fala; e dirigindo-nos

a mais de um indivíduo, servimo-nos hoje de vocês como plural semântico de

tu. (SAID ALI,1965, p. 93)

Já se encontram, portanto, alusões ao pronome você em obras gramaticais

brasileiras da primeira metade do século XX. O nome de gramática histórica, no

entanto, confere às duas gramáticas analisadas uma função descritiva da

evolução da língua, de caráter diacrônico, como se pode perceber. Nesse sentido

87

se afasta bastante da função normativa ou prescritiva das gramáticas tradicionais,

como as que serão referidas a seguir.

A Gramática Normativa da Língua Portuguesa, de Francisco da Silveira

Bueno, e a Gramática Normativa da Língua Portuguesa, de Carlos Henrique da

Rocha Lima, cujas edições consultadas datam de 1956 e 2003, respectivamente,

declaram que pronomes pessoais são palavras que representam as três pessoas

do discurso, trazendo o clássico quadro com os pronomes do caso reto, com o tu

representando a segunda pessoa do singular e o vós, a segunda pessoa do plural.

Como gramáticas normativas têm como primordial função a prescritiva, ou

seja, deveriam sugerir, senão impor, o uso culto ou padrão. Ora, ninguém imagina

que a função dessas gramáticas no tocante ao pronome de segunda pessoa seja

a de levar os falantes brasileiros a usarem ou a voltarem a usar o tu.

De fato, em relação ao modo de se direcionar ao interlocutor, a maioria das

gramáticas não se define entre prescrição e descrição e acabam não fazendo nem

uma coisa nem outra, mas apenas seguindo uma tradição:

Segundo Silveira Bueno (1956), por exemplo:

Na língua portuguesa e, mormente, no Brasil, a segunda pessoa é sempre

substituída pela terceira que se vê, assim , empregada duplamente. Quando

a terceira se encontra em lugar da segunda, é sempre uma expressão de

tratamento: o snr., a snra., você, etc. Na linguagem literária empregamos a

segunda pessoa (...)

De acordo com esse parágrafo, temos uma confusa descrição do emprego

real de segunda pessoa: em primeiro lugar, se a segunda pessoa é sempre

substituída pela terceira, essa não seria a real segunda pessoa? Em segundo

lugar, como pode ser a terceira pessoa, em lugar da segunda, sempre pronome de

tratamento, se a substitui, segundo o próprio autor, sempre, e, portanto, mesmo

88

em diálogos informais? Para completar, quando o autor diz que na linguagem

literária usamos a segunda pessoa se refere, sem dúvida, ao tu. Essa declaração

fica desmentida pelos exemplos de emprego do pronome você em seu percurso

literário pelas obras nacionais, descrito neste trabalho.

Para Rocha Lima (2003), no entanto, os pronomes são sempre de segunda

pessoa, mas podem exigir verbo na terceira:

Há alguns pronomes de segunda pessoa que requerem para o verbo a

terminação da terceira. Tais são:

você, vocês (tratamento familiar)

o Senhor, a senhora (tratamento cerimonioso)

O que se pode inferir da leitura das duas gramáticas, no que diz respeito ao

pronome pessoal de segunda pessoa, é que não se consegue desvencilhar

facilmente do modelo das gramáticas portuguesas. Desse modo, as tentativas de

descrição da língua são arbitrárias, pois se deixa de perceber o que parece mais

óbvio: no Brasil, o lugar do pronome de segunda pessoa não é exclusivo do tu: é

também ocupado pelo você. Portanto o verbo do qual o pronome você se faz

acompanhar só pode ser também de segunda pessoa. Desde o final do século

XVIII, essa é parte da realidade brasileira, que não não foi ainda descrita de

modo efetivo.

O mesmo modelo prevalece também na Nova Gramática do Português

Contemporâneo, de Celso Cunha e Lindley Cintra (1985). O pronome você, nessa

gramática é classificado como pronome de tratamento, assim como o senhor,

Vossa Excelência, Vossa Senhoria, apesar de se admitir logo depois que “ em

quase todo o território brasileiro, foi ele [o tu] substituído por você como forma de

intimidade.

89

A mesma descrição de Rocha Lima encontra-se na Moderna Gramática

portuguesa, de Evanildo Bechara, cuja 37ª edição, revista e ampliada, foi

publicada em 2001 e, portanto, representante do corrente século:

Existem ainda formas substantivas de tratamento indireto de 2ª pessoa que

levam o verbo para a terceira pessoa. São as chamadas formas substantivas

de tratamento ou formas pronominais de tratamento:

você, vocês (no tratamento familiar)

o Senhor, a Senhora (no tratamento cerimonioso)

A orientação nessa passagem da Moderna Gramática é descritivista, no

entanto, como se pode admitir uma descrição do pronome você, em pleno século

XXI, como forma de tratamento indireto7 do interlocutor?

A última gramática a ser analisada é a Gramática de Usos do Português,

de Maria Helena de Moura Neves. A tendência global dessa gramática, como seu

próprio nome faz entender, é descritivista, como se advoga em sua

Apresentação: “A Gramática de usos do português constitui uma obra de

referência que mostra como está sendo usada a língua portuguesa atualmente

no Brasil.” (MOURA NEVES, 2000)

É de supor, portanto, que o sistema pronominal e verbal brasileiros sejam,

de fato, descritos, como o uso corrente atesta.

Há, é certo, uma inovação em relação às outras gramáticas analisadas: o

pronome você aparece classificado como pronome pessoal de segunda pessoa,

em um quadro, exatamente ao lado do tu. Entretanto, o apego ao tradicionalismo,

embora admita que o pronome você é aquele que representa

predominantemente a segunda pessoa do discurso no Brasil, não permite que se

reconheça que a forma verbal de segunda pessoa é também aquela que

7 Dentre as variadas formas de se dirigir ao interlocutor, em Língua Portuguesa, há o tratamento direto, por

meio de pronomes pessoais de segunda pessoa; e o tratamento indireto - que manifesta intenções

reverenciais, cerimoniosas ou respeitosas -, por meio dos pronomes de tratamento.

90

acompanha o pronome você e, inclusive, o pronome tu, do modo com vem sendo

empregado hoje por grande parte dos brasileiros.

A descrição que a autora apresenta da mistura de “formas de referência

pessoal de segunda e terceira pessoa”, na evidente fusão que o falante fez entre

o você e o tu, atribuindo àquele as formas oblíquas deste, pode ser

exemplificada com textos literários produzidos desde a primeira metade do

século XIX, como pode ser observado no percurso literário do pronome,

elaborado neste trabalho.

O caráter conservador das gramáticas – mesmo uma gramática dos usos,

como a de Maria Helena de Moura Neves – se comprova como grande força

centrípeta, que atua na manutenção da unidade linguística contra as forças

centrífugas, que promovem a diferenciação e a variedade inerente a todas as

línguas naturais.

No que concerne ao modo de se direcionar ao interlocutor, percebe-se que

o esforço uniformizador das gramáticas não aufere resultado algum, pois trata-se

de uso linguístico frequente, altamente sensível e afeito a toda sorte de

motivações sociais, pessoais, psicológicas. Trata-se de parte da língua que

definitivamente não se rende a decretos legais – como as pragmáticas de

antigamente, tampouco a “decretos” gramaticais.

Mesmo que o intuito dessas gramáticas não seja o de prescrever o melhor

uso, no que diz respeito ao emprego do pronome representante da segunda

pessoa do discurso, seu caráter conservador não lhe permite sequer uma

descrição efetiva do fenômeno linguístico: o que prepondera quanto ao pronome

pessoal nos compêndios gramaticais não é nem a descrição, nem a prescrição,

mas a tradição.

91

__________CONCLUSÃO ___________________________________________

Por meio da busca por uma explicação para o uso consolidado do pronome

você, como pronome pessoal de segunda pessoa, no português em uso no

Brasil, em alternativa ao tu, cujo emprego no tratamento direto e informal do

interlocutor foi herdado de Portugal, chegou-se a características dos portugueses

amainadas ou intensificadas em território nacional: o você foi escolha que

satisfez, a princípio, a necessidade de ostentação e a presunção de fidalguia do

português transplantado para o Brasil, e que , por meio da confluência de

características aparentemente inconciliáveis, tornou-se índice de igualdade e

democracia.

Assim, o pronome você, desprovido do caráter semiformal ou

semirreverencial, - que ainda carrega em Portugal - popularizou-se

sobremaneira no Brasil, tornando-se um dos traços singularizantes do idioma

português em nosso país e dando ao brasileiro uma opção a mais no tratamento

direto a quem se dirige a palavra no discurso.

Os textos publicitários exploram o emprego do você, em detrimento do tu,

por desejarem atingir um público amplo, revelando-se assim a aceitação de seu

caráter suprarregional e a intimidade que o brasileiro de diferentes classes

sociais e culturais tem com o pronome: é por meio do você que se vende um

produto por todo o território nacional. Além disso, a publicidade já se vale de

aspectos do nosso caráter, revelados pelo estudo, a fim de tornar seus intentos

mais bem sucedidos.

O pronome você aparece incorporado à literatura brasileira, desde o início

de sua tradição romanesca, quando ainda, nos textos apresentados, rivaliza com

o pronome tu , no tratamento interpessoal informal. A partir do Realismo, a opção

hegemônica pelo você, na representação da segunda pessoa do discurso,

92

atestada pelos textos reproduzidos neste trabalho, leva à constatação de que a

literatura age como força legitimadora de soluções inovadoras, não se prestando

ao papel de baluarte da tradição e da conservação linguística: além do pronome

você, como pronome pessoal de segunda pessoa, os textos literários nacionais

apresentam, desde o século XIX, diálogos em que o hibridismo entre formas

pronominais de segunda e terceira pessoas já aparecem.

A gramática, ao contrário - como era de se esperar - apresenta-se como

instrumento de conservação da língua, resistindo a inovações e mantendo-se

refratária mesmo a empregos já consagrados. No tocante ao sistema verbo-

pronominal brasileiro, as gramáticas normativas e prescritivas seguem a

orientação tradicional e, mesmo as gramáticas de cunho descritivista, ainda não

formularam um quadro capaz de abranger a realidade brasileira nesse quesito.

Nelas, o pronome você ainda não encontrou o destaque que seu emprego

generalizado sugeriria.

A elaboração dos percursos histórico, literário e gramatical do pronome

você explicitou aspectos culturais, mentais e históricos de nosso povo úteis para

a formulação de projetos educacionais e sociais, que visem ao desenvolvimento

do Brasil por - e para os - brasileiros.

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