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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Maria Lúcia Chaves Lima O uso do nome social como estratégia de inclusão escolar de transexuais e travestis DOUTORADO EM PSICOLOGIA SOCIAL SÃO PAULO 2013

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

Maria Lúcia Chaves Lima

O uso do nome social como estratégia de inclusão escolar de

transexuais e travestis

DOUTORADO EM PSICOLOGIA SOCIAL

SÃO PAULO

2013

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MARIA LÚCIA CHAVES LIMA

O uso do nome social como estratégia de inclusão escolar de

transexuais e travestis

DOUTORADO EM PSICOLOGIA SOCIAL

Tese apresentada à Banca Examinadora da

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

como exigência parcial para a obtenção do título

de Doutora em Psicologia Social, sob a

orientação da Profa. Dra. Mary Jane Paris Spink.

SÃO PAULO

2013

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Banca examinadora

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Á minha mãe, Helena Pessoa, por ter me

ensinado a desconfiar das supostas

evidências da vida.

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AGRADECIMENTOS

Em primeiro lugar e de maneira muito especial, agradeço à Profa. Dra. Mary Jane Spink,

pela compreensão e paciência nesse processo de orientação quase sempre à distância.

Agradeço pela acolhida, confiança, orientações cuidadosas e por me tranquilizar nos

momentos mais angustiantes.

Ao Prof. Dr. Ricardo Pimentel, à Profa. Dra. Cintya Ribeiro e à Profa. Dra. Denise

Sant’Anna pelas considerações feitas a esse trabalho quando do exame de qualificação. Ao

Ricardo, agradeço também, por ter acompanhado de maneira sempre muito generosa o meu

percurso acadêmico desde a graduação em Psicologia.

À CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior), pela bolsa de

doutoramento concedida.

A todas as pessoas que ajudaram a produzir as informações apresentadas na presente

pesquisa. Em especial, a todas as travestis e transexuais que se disponibilizaram a partilhar

comigo um pouco de suas vidas.

À Symmy Larrat, por todo apoio concedido durante a realização desta pesquisa.

Ao Núcleo de Práticas Discursivas e Produção de Sentidos da PUC-SP, pela acolhida e

instigantes discussões estabelecidas.

Ao Instituto de Ciências da Educação da Universidade Federal do Pará, pela colaboração

durante esse percurso de formação profissional.

Agradeço também à minha mãe Helena Pessoa, e à minha irmã, Rosa Chalí, por serem meu

porto seguro, por me apoiarem em tudo e por admirá-las tanto.

Ao meu pai, Wladilson Lima, e à Sarah Rachid, pela generosidade e apoio oferecidos

desde o primeiro momento em que souberam da aprovação no doutorado.

Aos meus irmãos Artur, Adriano, Rafael e Rômulo, pois mesmo distantes, torcem pelo

meu sucesso.

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Às amigas: Angela Di Paolo, Larissa Medeiros, Ana Carolina Secco, Christianne Souza,

Elaine Arruda, Danielle Miranda, Ingrid Ventura, Daniele Vasco, Cláudia Xerfan, Ana

Lúcia Santos, Érika Morhy, Márcia Soares, Auzy Cleyce. Sem vocês, a vida seria um

deserto.

À Alyne Alvarez, pela comovente ajuda oferecida nesse processo solitário que é a escrita

acadêmica. Obrigada pelas leituras, sugestões, críticas, cuidados e pela inestimável

amizade.

À Milena Lisboa, Jullyane Brasilino, Fernando Moragas, Camila Avarca, Fabrício

Doravante e George Moraes por terem tornado a vida mais leve, alegre e intensa durante o

período na PUC-SP. Ao George e à Jullyane, agradeço também pela leitura carinhosa

realizada no texto final desta tese: obrigada pelas críticas, sugestões e horas sem dormir.

À Gabriela Santos, Allan Matos, Rafael Batalha e à graciosa Morena, pela generosa e

divertida acolhida em São Paulo durante o último mês de escrita. Obrigada pelo apoio,

conversas e comidinhas.

Em especial, agradeço ao meu companheiro Eric Alvarenga, por ser a minha calma.

Obrigada pelas constantes leituras, incentivos, assim como pela deliciosa convivência e por

se lançar comigo nessa aventura que é viver.

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Somos ingovernáveis. Nosso único senhor propício é o

Relâmpago, que ora nos ilumina, ora nos fende.

René Char

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RESUMO

LIMA, Maria Lúcia Chaves. O uso do nome social como estratégias de inclusão escolar de

transexuais e travestis.

Em 2008, o governo do Estado do Pará autorizou o uso do nome social para travestis e

transexuais em todas as unidades escolares da rede pública. Diante desse acontecimento,

fez-se uso das teorizações do filósofo Michel Foucault para analisar os efeitos da política

do nome social como estratégia de inclusão escolar de travestis e transexuais. Parte-se de

histórias de vida de oito travestis/transexuais entrevistadas, além de outras informações

produzidas em situações diversas, para problematizar o governo de travestis e transexuais

por meio de uma política de inclusão. Para a construção do campo no qual este estudo se

insere, apresentam-se os saberes que produzem a travestilidade e a transexualidade como

um problema. Do mesmo modo, circunscreve-se a Portaria do nome social como uma

estratégia de governamentalidade, dando visibilidade ao seu processo de formulação, assim

como as oposições e dificuldades de implementação encontradas. Por fim, apresentam-se

aos efeitos da legislação em questão, efeitos estes não redutíveis à almejada inserção do

seu público-alvo nas escolas, pois abrangem também o seu potencial em produzir modos

de subjetivação. Procura-se demonstrar que tal política cria zonas de tensão entre

estratégias de normalização das formas de viver e as práticas de resistência a elas

direcionadas. Defende-se que a inclusão escolar da diversidade de modos de viver depende

de múltiplos fatores, sendo as políticas de inclusão existentes apenas um dentre esses

muitos aspectos.

Palavras-chave: travestis e transexuais; governamentalidade; inclusão escolar.

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ABSTRACT

LIMA, Maria Lúcia Chaves. The use of social name as a school inclusion strategy of

transsexuals and transvestites.

In 2008, the Government of Pará authorized transvestites and transsexuals to use their

social names at public schools. Focusing on this event, we grounded on theories developed

by the philosopher Michel Foucault to examine the effects of social name policy as a

strategy for school inclusion of travestities and transsexuals. We describe life stories of

eight travestites/transsexuals interviewed, and also present pieces of information produced

in various situations, to problematize the government of transvestites and transsexuals

through inclusion policy. To build the field in which this study is situated, we discuss how

knowledge of transvestites and transsexuals experiences are fabricated as a problem. The

ministerial order that establishes the social name is, as well, understood as a

governamentality strategy and we give visibility to their elaboration process as well as

oppositions and difficulties faced in implementation process. Finally, we present the

effects of this legislation. These effects are not reducible to the desired insertion of the

target public at schools because they also cover their potential to produce modes of

subjectification. We intend to demonstrate that such policy creates tension zones between

normalization strategies of modes of living and practice of resistance. It is argued that

educational inclusion of diverse modes of living depends on multiple factors, and inclusion

policies are only one of these many aspects.

Keywords: transvestites and transsexuals; governmentality; school inclusion.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 11

1 A TRAJETÓRIA DE UMA GENEALOGIA 18

1.1 Deixando-se afetar pelo campo-tema 21

1.1.1 Nas entrelinhas da elaboração da Portaria do Nome Social 22

1.1.2 Encontros e desencontros com as histórias de travestis e transexuais 25

Interlúdio 1: O caso Soares 28

1.2 Sobre as entrevistas 32

1.3 Interação com os registros 33

1.4 Considerações éticas 35

2 A INVENÇÃO DA TRAVESTILIDADE E DA TRANSEXUALIDADE 36

Interlúdio 2: Jenifer, Brenda e suas diferenciações identitárias 43

2.1 “Precisamos verdadeiramente de um verdadeiro sexo?”:

patologização da travestilidade e da transexualidade

44

Interlúdio 3: O psicológico feminino de Nayara 53

2.2 A psicologia e a produção da norma: identidades e gêneros 55

Interlúdio 4: Leila e sua crítica à cidadania cirúrgica 62

2.3 Nomes e gêneros em trânsito: processos de normalização da

existência

63

3 A PORTARIA DO NOME SOCIAL COMO ESTRATÉGIA DE

GOVERNAMENTALIDADE

71

Interlúdio 5: Raica: o que pode um nome na chamada? 72

3.1 A governamentalidade e as formas de conduzir a conduta 73

Interlúdio 6: “Na minha época era bem pior”: Babete e suas indigestões

escolares

80

3.2 Diversidade sexual e políticas educacionais de inclusão: um breve

recorte histórico

81

Interlúdio 7: A insistência pelo nome Bianca 89

3.3 A formulação da Portaria do Nome Social 91

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4 EFEITOS DE SUBJETIVAÇÃO NO GOVERNO DE TRAVESTIS E

TRANSEXUAIS

105

Interlúdio 8: Valesca, sua vida, sua identidade 108

4.1 Efeitos de identidade 110

Interlúdio 9: Raica volta à escola 119

4.2 Efeitos disciplinares e de regulação 120

Interlúdio 10: Histórias, resistências, diferenças... 129

4.3 A ser feito: formas de resistências aos mecanismos de normalização 130

CONSIDERAÇÕES TRANSITÓRIAS 138

REFERÊNCIAS 148

APÊNDICES 160

ANEXO 185

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INTRODUÇÃO

Em abril de 2008, o governo do Estado do Pará, através de sua Secretaria de Estado

de Educação (Seduc), promulgou a Portaria Estadual nº 016/2008-GS, que autoriza o uso

do nome social para travestis e transexuais em todas as unidades escolares da rede pública

do Estado. O nome social é o nome através do qual a pessoa deseja ser identificada, uma

vez que o nome civil já não condiz com o modo de vida que a travesti ou a/o transexual

assume na atualidade.

Travestis e transexuais são pessoas que borram as fronteiras de gênero, que

interrogam a heteronormatividade1, aquela que tem como única matriz de inteligibilidade

corpos homens e corpos mulheres (WARNER, 1993). São modos de viver definidos por

uma série de dispositivos: médicos, psicológicos, legais, morais etc. De modo geral, tais

dispositivos definem travestis e transexuais como pessoas que usam adereços, falam e

gesticulam de forma considerada do “outro sexo” e provocam modificações corporais para

se aproximar esteticamente da identidade almejada. Se partindo de algumas perspectivas

tais modos de viver são considerados como patologias (psíquica, mental ou simplesmente

moral), aqui são consideradas como um dos modos possíveis de viver2.

A Portaria Estadual nº 016/2008-GS, conhecida como Portaria do Nome Social, é

uma estratégia pioneira no Brasil, cujo intuito é incentivar a permanência ou retorno de

travestis e transexuais para as escolas. Tal estratégia se fez necessária diante da patente

dificuldade que essa população enfrenta no cotidiano escolar: desde a resposta da chamada

e do relacionamento com colegas e professores/as, até a “escolha” de qual banheiro

utilizar: o feminino ou o masculino?

A pesquisa Preconceito e Discriminação no Ambiente Escolar realizada pela

Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas, publicada em 2009, traz dados alarmantes

sobre essa questão. Baseando-se em uma amostra nacional de 18,5 mil alunos, pais e mães,

1 “Por heteronormatividade entendemos aquelas instituições, estruturas de compreensão e orientações

práticas que não apenas fazem com que a heterossexualidade pareça coerente – ou seja, organizada como

sexualidade – mas também que seja privilegiada. Sua coerência é sempre provisional e seu privilégio pode

adotar várias formas (que às vezes são contraditórias): passa desapercebida como linguagem básica sobre

aspectos sociais e pessoais; é percebida como um estado natural; também se projeta como um objetivo ideal

ou moral” (BERLANT; WARNER, 2002, p. 230). 2 A produção das categorias travesti e transexual será amplamente tratada no Capítulo 2 deste trabalho.

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diretores, professores e funcionários, revelou que 87,3% dos entrevistados têm preconceito

com relação à orientação sexual3.

Segundo Henriques e colaboradores (2007), os casos mais evidentes de preconceito

no contexto escolar têm sido os vividos pelas travestis e transexuais. Essa população tem

sido foco de discriminação sistemática e ostensiva por parte de colegas, professores/as,

dirigentes e servidores/as escolares. Diversos estudos mostram que no segmento LGBT

(sigla para se referir à lésbica, gays, bissexuais, travestis e transexuais), as pessoas que têm

maiores dificuldades de permanência nas escolas e de inserção no mercado de trabalho são

as travestis e as/os transexuais, quer pelo preconceito quer pelo seu perfil socioeconômico

(PARKER, 2000; PERES, 2004).

Além disso, travestis e transexuais não têm a opção de permanecer camuflados/as,

“no armário” (Cf. SEDGWICK, 1993), sem evidenciar a divergência entre seus modos de

viver e a norma sexual que dualiza as experiências identitárias entre homens e mulheres.

Os modos de ser travesti ou transexual, embora sejam múltiplos e apresentem várias

especificidades, expressam no corpo suas diferenças à heteronormatividade, divergência

esta que está arraigada no andar, no falar, nas roupas, no corpo, na pele.

Diante desse cenário aparentemente hostil para as pessoas que violam a norma

heterossexual, cabe questionar se, na perspectiva de travestis e transexuais, a Portaria do

Nome Social se configura como uma estratégia de inclusão escolar. Com essa finalidade,

optei por utilizar as ferramentas fornecidas por Michel Foucault, para quem legislações,

como a portaria em questão, são estratégias de governamentalidade.

O conceito de governamentalidade, neologismo introduzido pelo filósofo francês,

está intrinsecamente relacionado com a concepção de poder que embasa seus trabalhos. No

domínio genealógico das pesquisas de Foucault (2003a), o poder é definido como uma

prática social e, como tal, construída historicamente por dispositivos diversos. Não possui,

portanto, uma natureza ou essência passível de ser definida por suas características

universais. Não é algo unitário e global; apresenta-se como fluxo de forças em formas

díspares, heterogêneas e em constante transformação. Nesse sentido, poder não é uma

propriedade individual e nem exclusiva do Estado4. Ao contrário, o poder é pensado como

uma relação, como estratégia que circula em todo o tecido social.

3 Disponível em: http://www.abglt.org.br/port/pesquisas.php. Acesso em: 1

o jun. 2011.

4 Em uma entrevista, Foucault (2010a, p. 268), instigado sobre a suposta centralidade do Estado nas relações

de poder, rebate: “Como se pode dizer que derivam do poder de Estado o conjunto das relações de poder que

existe entre os dois sexos, entre os adultos e as crianças, na família, nos escritórios, entre os doentes e os

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Porém, a partir dos cursos no Collège de France intitulados Segurança, Território,

População e Nascimento da Biopolítica, houve um deslocamento importante na analítica

foucaultiana do poder: de relações de forças, o poder passa a ser compreendido como

governo. O termo governo aqui referido está relacionado ao sentido amplo que possuía no

século XVI. Como explica Foucault (2010b, p. 288): “Ele não se referia apenas às

estruturas políticas e à gestão dos Estados, mas significava a maneira de dirigir a conduta

dos indivíduos ou dos grupos: governo das crianças, das almas, das comunidades, das

famílias, dos doentes [...]. Governar, nesse sentido, é estruturar o eventual campo de ação

dos outros”5.

Portanto governo se refere tanto ao governo de um Estado, quanto de uma casa, da

alma, da consciência ou de si. Dessa forma, a teorização sobre governamentalidade

empreendida por Foucault (2004, 2008a) diz respeito ao governo não apenas dos outros,

mas também ao governo de si. A noção de governamentalidade se estabelece justamente no

entrelaçamento das relações de poder, o governo dos outros e o governo de si

(FOUCAULT, 2004).

Com efeito, o conceito de governamentalidade está situado na interação entre as

tecnologias políticas de dominação sobre os outros (por exemplo, as políticas públicas que

visam conduzir a conduta da população) e as tecnologias de si, ou seja, as formas pelas

quais as pessoas vivenciam, compreendem, julgam e conduzem a si mesmas. As

tecnologias de si são responsáveis pela forma como o sujeito se relaciona consigo mesmo,

transformando-se em objeto de conhecimento para si próprio6. Foucault (2004, p. 323) as

define como um conjunto de técnicas

que permitem aos indivíduos efetuar, com seus próprios meios ou com a

ajuda de outros, um certo número de operações em seus próprios corpos,

almas, pensamentos, conduta e modo de ser, de modo a transformá-los

com o objetivo de alcançar um certo estado de felicidade, pureza,

sabedoria, perfeição ou imortalidade.

saudáveis, entre os normais e os anormais? Se queremos mudar o poder de Estado, é preciso mudar as

diversas relações do poder que funcionam na sociedade. Se não, a sociedade não muda. Por exemplo, na

URSS, a classe dirigente mudou, mas as antigas relações de poder permaneceram. O que é importante são

essas relações de poder que funcionam independentemente dos indivíduos que têm o poder de Estado”. 5 Alfredo Veiga-Neto (2005), ao analisar a concepção de governo na obra de Michel Foucault, propõe a

utilização do termo governamento quando o governo se refere à ação ou ato de governar. Dessa forma,

marcar a diferença entre governo e governamento é fundamental para estabelecer a distinção proposta por

Foucault entre aquilo que é a instância governamental e a ação de governar. 6 É digno de nota que esse “si” a que o autor se refere não remete a nenhuma substância, a nenhuma

interioridade, mas a uma reflexividade prática: uma maneira de se relacionar consigo mesmo para se

construir, se elaborar. Esse “si” não é espontâneo ou natural, mas histórico e culturalmente contingente

(GROS, 2008).

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Essas tecnologias são importantes para o governo dos outros, para a estruturação do

eventual campo de ação dos outros, pois, como indica a analítica de poder foucaultiana, o

governo de si é o próprio operador da governamentalidade atual (FOUCAULT, 2010b). Se

na sociedade disciplinar – tão bem analisada por Foucault (2003a) em Vigiar e Punir – o

controle era exercido a partir de instituições fechadas, na atualidade tal controle passa a ser

exercido “ao ar livre”, ou seja, o controle disciplinar estabelecido pela vigilância do outro é

substituído pelo controle “interno” de cada pessoa (SÁNCHEZ; RICO; MARTÍNEZ,

2004).

Trata-se de uma incitação à responsabilidade pessoal sobre a sua vida. É preciso ser

competitivo, flexível e preservar um determinado estilo de vida. Ou seja, somos (ou

deveríamos ser) participantes ativos de nossas vidas. Em suma, a atualidade, chamada por

Deleuze (1992a) de sociedade de controle, funciona ao modular permanentemente a

experiência de si para empregá-la a seu favor, conectando os objetivos e ambições pessoais

com os objetivos socialmente valorizados: consumo, enriquecimento e ordem social. Nesse

caso, o controle não se estabelece pela coerção, mas, pela persuasão das imagens de vida e

de eu que oferecem.

Portanto, na tecnologia de governo (neo)liberal, para se governar os outros é

imperioso moldar as tecnologias de si, visto que o controle está em assumir e seguir uma

determinada identidade. É preciso se vincular a alguma categoria identitária para vir a ser

alguém: homem, mulher, travesti, transexual... E para cada um desses segmentos há

normas de condutas, estilos de vida apropriados, desejos específicos. A identidade – seja

sexual, de gênero, de raça, de classe social ou profissional etc. – se torna uma prática

regulatória que busca governar as pessoas a partir das características que as definem como

um “eu” (ROSE, 2001a). É dessa forma que o governo de si se integra a uma prática de

governo dos outros.

Nesta tese, parto do pressuposto de que a Portaria do Nome Social se configura

como uma política de governo dos outros, no caso, travestis e transexuais. É relevante

notar que ela não é direcionada para todas as pessoas, mas somente para travestis e

transexuais. Ou seja, há um interesse em governar essas categorias identitárias. Por quê?

Por que incluir nas escolas travestis e transexuais?

No atual cenário neoliberal, a inclusão é um imperativo para manutenção de

todos/as na rede de mercado e a educação encarna um dos papéis fundamentais nessa

história (ROOS, 2009). Não é produtivo que uma parcela considerável da população – por

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exemplo, pessoas com deficiência, travestis e transexuais – fique apartada, enclausurada ou

na marginalidade A escola, instituição na qual as pessoas (de preferência, todas as pessoas)

frequentam por um tempo considerável de suas vidas, apresenta-se como espaço

privilegiado para o gerenciamento da população.

Além disso, a educação escolarizada vem adquirindo cada vez mais importância na

vida social. “A educação é um direito de todos e um dever do Estado [...]”, assevera a

Constituição Brasileira de 1988. E o Estatuto da Criança e do Adolescente de 1990

reafirma a escola como um direito da criança e do adolescente e um dever social e familiar.

Porém, travestis e transexuais usufruem desse direito? Houve um retorno ou permanência

da população trans após a vigência da Portaria do Nome Social?

Portanto, o objetivo da presente pesquisa é analisar os efeitos da política do nome

social como estratégia de inclusão escolar de travestis e transexuais. Almejamos, com isso,

identificar as relações de poder e as possíveis práticas de resistência na efetivação dessa

política no cotidiano de seu público-alvo.

A tese defendida é que a inclusão escolar da diversidade de modos de viver (sexual,

de gênero, racial, de pessoas com deficiência etc.) depende de múltiplos fatores, sendo as

políticas de inclusão existentes, entre as quais a do nome social, apenas um dentre esses

muitos aspectos. Em contrapartida, tal estratégia legislativa provoca efeitos de subjetivação

diversos, gerando processos de capturas identitárias ao mesmo tempo em que ensaiam

possibilidades de resistência.

Para apresentar tais considerações, o texto segue como linha-mestra a noção de

genealogia utilizada por Foucault (2000a), para quem a pesquisa genealógica consiste em

problematizar o processo de naturalização dos objetos e dos sujeitos. Percorro assim, os

três domínios que caracterizam a obra do autor: o domínio dos discursos que inventam

sujeitos, ou seja, os saberes que criaram a travestilidade e a transexualidade; o domínio das

práticas que regulam as condutas; e o domínio da ética, que correlaciona saberes e poderes

que produzem os modos de subjetivação, destacando as técnicas de si mediante as quais

travestis e transexuais se elaboram enquanto sujeitos dessa sexualidade (FOUCAULT,

2006a; 2010c).

O primeiro capítulo, no qual a noção de genealogia é aprofundada, tem por objetivo

apresentar os procedimentos utilizados nesta pesquisa. Nele apresento os caminhos

percorridos em busca tanto das pessoas envolvidas no processo de elaboração da Portaria

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do Nome Social quanto do público que poderia usufruir de seus efeitos, ou seja, de

travestis e transexuais.

É importante sinalizar que após o capítulo metodológico não há separação entre

capítulos teóricos e analíticos. As referências consultadas e os elementos produzidos na

inserção do campo-tema (SPINK, P., 2003) se entrelaçam ao longo do texto. Além disso,

os capítulos são estruturados a partir de interlúdios, pequenas histórias que dão o tom e as

pistas das considerações por vir. Com efeito, são essas histórias, fruto do meu encontro

com diversos interlocutores, que animam as análises desenvolvidas.

O segundo capítulo é dedicado aos saberes que inventam a travestilidade e

transexualidade. Apresentam-se os discursos e as práticas que objetivam essas experiências

identitárias, transformando-as em um problema, em uma questão. O dispositivo da

sexualidade analisado por Foucault (2003b) no primeiro volume de sua História da

sexualidade é o ponto de partida para a produção das identidades sexuais, entre elas a

travesti e a transexual, tendo por base a crença de que reside no sexo a suposta “essência”

do ser humano.

Elegemos três regimes de verdade que atualizam o dispositivo de sexualidade, ou

seja, que continuam a inventar a travestilidade e a transexualidade: a medicina, a

psicologia e a dificuldade de alteração do nome na documentação civil. A medicina captura

as experiências travestis e transexuais como patológicas; a psicologia, além de reafirmar o

diagnóstico médico, coloca-se, muitas vezes, a serviço da regulação das existências tendo

uma suposta “normalidade” como guia de ação; e o problemático processo de alteração do

nome civil que reafirma a vinculação entre sexo-gênero-sexualidade-desejo a partir da

heteronormatividade.

O terceiro capítulo tem por foco analisar a Portaria do Nome Social, compreendida

como uma estratégia de governamentalidade. Primeiramente, abordaremos a própria noção

de governamentalidade, apontando as três principais formas identificadas por Foucault

(2008a; 2008b): uma proto-governamentalidade caracterizada pelo poder pastoral, a

governamentalidade presente na razão de Estado, e a governamentalidade (neo)liberal. Em

seguida, o foco se volta para as políticas que visam à inserção sobre a diversidade sexual

no âmbito educacional, uma vez que estas formam as condições de possibilidade para a

emergência de uma legislação cujo alvo é a inclusão escolar de travestis e transexuais. Por

fim, apresento o processo de formulação da Portaria do Nome Social, assim como as

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oposições e dificuldades de implementação encontradas nessa tentativa de governo das

experiências trans.

O quarto capítulo se volta mais especificamente aos efeitos da legislação em

questão. Tais efeitos não se reduzem à almejada inserção do seu público-alvo nas escolas;

incluem também o seu potencial em produzir modos de subjetivação. Tal política é o

disparador para se percorrer a dobra analítica entre o governo de si e o governo dos outros

no que se refere à vida de travestis e transexuais.

O que procuro apresentar é que a política em questão cria zonas de tensão entre

estratégias de normalização das formas de viver e as práticas de resistência a elas

direcionadas. A autorização do uso do nome social remete, por um lado, à luta pelo direito

à diferença, de efetivar outros modos de ser diferentes dos hegemônicos (homem X

mulher). Entretanto, tal política também é enredada ao dobramento do poder, uma vez que

força o sujeito a se voltar para si próprio e assim, a assumir uma identidade de modo

coercitivo (FOUCAULT, 2010b).

Dessa forma, a portaria tem efeitos políticos importantes ao mostrar uma

preocupação com a escolarização das pessoas trans. A Portaria do Nome Social pode ser

pensada como uma resistência à produção da travestilidade e transexualidade como

patologia moral e, portanto, àqueles e àquelas acometidos/as por essa “doença” só caiba

ocupar lugares marginalizados, seja na prostituição ou subempregos. Em contrapartida,

pode produzir efeitos de poder normalizadores ao aceitar tais experiências subjetivas

contanto que estejam de algum modo reguladas pelos dispositivos neoliberais de controle.

Em suma, esta tese questiona sobre os limites e as potencialidades envolvidas na

política de inclusão escolar em análise. Em última instância, esta pesquisa trata das

transformações e da manutenção de formas de viver, do governo de si e dos outros, das

práticas de capturas que governam a vida e das possíveis formas de resistência às relações

de poder normalizadoras.

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CAPÍTULO 1

A TRAJETÓRIA DE UMA GENEALOGIA

As verdades são ilusões, das quais se esqueceu que o são.

Friedrich Nietzsche

Com Foucault (2000a) não se pode trabalhar com a ideia de que as coisas tenham

uma origem histórica que deve ser buscada. A procura de uma origem pressupõe a

existência de algo essencial, algo à espera de ser encontrado. Dessa forma, é herdeiro de

Nietzsche (2009) e de sua obstinada recusa à pesquisa da origem. Esta se esforça para

recolher a essência exata das coisas, sua forma imóvel e anterior a tudo o que é externo,

acidental e sucessivo. Tenta reencontrar o “aquilo mesmo” e deseja retirar todas as

máscaras para desvelar enfim uma identidade primeira.

Fazendo referência à obra nietzschiana O andarilho e sua sombra, Foucault (2000a,

p. 18) nos diz que a história, tal como concebida pelo filósofo alemão, ensina a rir das

solenidades de origem:

A alta origem é o “exagero metafísico que reaparece na concepção de que

no começo de todas as coisas se encontra o que há de mais precioso e de

mais essencial”: gosta-se de acreditar que as coisas em seu início se

encontram em um estado de perfeição; que elas saíram brilhantes das

mãos do criador, ou na luz sem sombra da primeira manhã.

Portanto, a busca da origem – da essência, da verdade etc. – não está nos horizontes

de pretensão da presente pesquisa. Com Nietzsche (1974) podemos afirmar que as

verdades são valores que esqueceram seu passado de ponto de vista e se transformaram em

verdade. Para o filósofo, cada valor é simplesmente uma avaliação que se impôs, se

alastrou e se tornou hegemônica. Em outros termos, na filosofia nietzschiana, a verdade é

resultado de um ponto de vista, mas se apresenta como absoluta, necessária, autônoma,

suprema. Oculta-se sua origem prosaica, metafórica e diz ser tudo aquilo que não é:

universal, abstrata, independente de quem a enuncia.

Daí a crítica severa do filósofo alemão à ciência e à sua pretensão de descobrir algo

que ela mesma faz existir. Todo o conhecimento tem uma forma humana

(demasiadamente), mas lhe atribuímos uma universalidade. Trata-se de uma presunção

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antropocêntrica, uma desmesura humana na ênfase que dá à sua visão do mundo, tendo a

própria humanidade como medida de todas as coisas. Como diz Nietzsche (1974, p. 58):

“Quando alguém esconde uma coisa atrás de um arbusto, vai procurá-la ali mesmo e a

encontra, não há muito que gabar nesse procurar e encontrar: e é assim que se passa com o

procurar e encontrar da ‘verdade’ no interior do distrito da razão”.

A pesquisa genealógica, portanto, não se destina a procurar o segredo essencial e

sem data, mas sim, objetiva evidenciar que as coisas não têm essência ou que essa suposta

essência foi construída historicamente. Ou seja, a genealogia problematiza o processo de

naturalização dos objetos e dos sujeitos. Como nos diz Foucault em A verdade e as formas

jurídicas: “as condições políticas, econômicas de existência não são um véu ou um

obstáculo para o sujeito de conhecimento, mas aquilo através do que se formam os sujeitos

de conhecimento e, por conseguinte, as relações de verdade” (FOUCAULT, 2005, p. 27).

Em O sujeito e o poder, Foucault (2010b) afirma que a constituição do sujeito

moderno foi o tema geral de sua preocupação filosófica. Portanto, o objeto privilegiado das

pesquisas do autor está na genealogia do sujeito moderno a partir de uma série de práticas

históricas de objetivação e de subjetivação. Por objetivação, entende-se os processos pelos

quais o ser humano é constituído enquanto um objeto, seja por meio do discurso científico,

por procedimentos disciplinares, de regulação etc. Já os processos de subjetivação são as

práticas que fazem do ser humano um sujeito preso a uma identidade que lhe é atribuída

como própria (FONSECA, 2011).

De maneira geral, Foucault (2010b) sistematiza sua genealogia do sujeito moderno

a partir de três domínios: 1) Domínio denominado com arqueologia do saber, no qual o

interesse está centrado nas práticas epistêmicas que objetivam o ser humano como sujeito

da razão; 2) Domínio caracterizado por genealogia do poder, no qual o autor analisa a

objetivação do sujeito a partir de “práticas divisoras” que individualizam os sujeitos em

torno de um eixo de normalização que separa o louco do são, o doente do saudável, o

sexualmente normal do perverso; 3) E o domínio da ética, este destinado à análise das

práticas de si por meio das quais um ser humano torna-se um sujeito, tomando a si próprio

como objeto de saber e de poder.

Tentei destacar três grandes tipos de problemas: o da verdade, o do poder

e o da conduta individual. Esses três grandes domínios da experiência só

podem ser entendidos uns em relação aos outros, e não podem ser

compreendidos uns sem os outros (FOUCAULT, 2010d, p. 253).

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Dito isto, ressalta-se que o terceiro domínio foucaultiano não ignora ou abre mão

dos domínios anteriores. Pelo contrário, a subjetivação se estabelece entre as técnicas de

governo dos outros (saber e poder) e as técnicas de governo de si. Tais práticas de si não

são fruto de algo inerente ao indivíduo, mas sim, “esquemas que ele encontra em sua

cultura e que lhe são propostos, sugeridos, impostos por sua cultura, sua sociedade e seu

grupo social” (FOUCAULT, 2004, p. 276).

A governamentalidade de travestis e transexuais, fruto da articulação do governo

dos outros e do governo de si, produtora dos modos de subjetivação, será o foco da

presente pesquisa. Ou seja, investigar a transexualidade e a travestilidade a partir dos três

eixos que as constituem: os domínios de saber que as inventam, os sistemas de poder que

regulam suas condutas e as formas de subjetivação mediante as quais travestis e

transexuais se elaboram enquanto sujeitos dessa sexualidade (FOUCAULT, 2006a).

Com efeito, levou-se em consideração um duplo movimento: de um lado o processo

de objetivação da travestilidade e da transexualidade por meio da rede de saberes e das

relações de poder que as constituíram enquanto modos de ser específicos, de onde se retira

um conhecimento a partir do qual se investe em técnicas de governo; de outro lado,

destaca-se os procedimentos de subjetivação de travestis e transexuais capazes de colocá-

los/las em relação consigo próprio/a. Isto é, deve-se pensar nos processos que tomam essas

experiências como objeto de conhecimento e alvo de investimentos de governo, assim

como nas táticas que promovem a autorreflexão, a auto-observação, o autoconhecimento,

que tomam tais modos de ser como sujeitos de um determinado tipo, subjetivando-os como

“travestis” ou “transexuais”.

A história, genealogicamente dirigida, não tem por fim reencontrar as

raízes de nossa identidade, mas ao contrário, se obstinar em dissipá-la; ela

não pretende demarcar o território único de onde nós viemos, essa

primeira pátria a qual os metafísicos prometem que nós retornaremos; ela

pretende fazer aparecer todas as descontinuidades que nos atravessam

(FOUCAULT, 2000a, p. 34).

Com o intuito de fazer aparecer as descontinuidades que atravessam o campo dessa

pesquisa, apresento a trajetória percorrida organizada da seguinte forma: 1.1) deixando-se

afetar pelo campo-tema; 1.2) sobre as entrevistas; 1.3) interação com os registros; 1.4)

considerações éticas.

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1.1 Deixando-se afetar pelo campo-tema

Peter Spink (2003) desenvolve o conceito de “campo-tema” para propor que o

campo da pesquisa (ou a pesquisa de campo) não inicia somente quando o/a pesquisador/a

sai de sua casa para entrevistar, observar, participar de uma determinada ação. O campo da

pesquisa começa quando nos vinculamos à temática estudada.

Como nos interessamos por um dado tema? Quando começa a pesquisa

propriamente dita? É difícil saber, de forma clara e precisa, o momento a partir do qual

passamos a nos interessar por um determinado assunto, ou o lugar que produziu em nós a

vontade de saber e de investigar o que nos instiga. Há uma vinculação fundamental entre o

tema estudado e o campo de pesquisa e, para percebê-la, basta estarmos abertos/as para

deixar-se afetar pelos elementos que compõem esse campo-tema.

Usar a perspectiva do campo-tema não pressupõe que eu seja capaz de abarcar

todos os elementos do tema “o uso do nome social como estratégia de inclusão escolar de

travestis e transexuais”, ou que este seja um instrumento finalmente eficaz para a

dissolução da dicotomia sujeito que pesquisa versus objeto pesquisado. Entretanto, é uma

ferramenta de pesquisa que possibilita deixar-se afetar pelos diversos agenciamentos que o

tema invoca. Matérias da imprensa, informações veiculadas pelos meios de comunicação,

mídias sociais, filmes, documentários, músicas, programas de televisão, autobiografia de

transexuais, blogs e sites de grupos de travestis e transexuais, charges (especialmente a

série Muriel/Hugo do cartunista Laerte7), livros, artigos, dissertações e teses consultadas,

conversas, conversas sobre estas conversas, além das anotações e sensações registradas em

diário de campo. Tudo isso, além de tantos outros elementos, fez parte do campo-tema

dessa pesquisa.

Nesse sentido, estamos sempre potencialmente no campo de nossa investigação,

uma vez que o campo não é um lugar específico, delineado, para o qual nos deslocamos.

Um assunto, antes estranho, passa a ser paulatinamente mais familiar devido aos contatos

estabelecidos. Tais contatos podem proceder de formas mais intencionais ou casuais, como

receber de um amigo a letra de uma música que trata de uma travesti ou assistir a um

7 O cartunista Laerte Coutinho criou uma série chamada Muriel/Hugo, na qual apresenta as histórias de um

homem que passa a assumir uma identidade feminina. Muriel/Hugo brinca com os estereótipos de gênero

uma vez que exagera e imita a performance feminina e masculina. É digno de nota que o próprio cartunista

passou, desde 2009, a usar roupas e assessórios femininos.

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programa de televisão que alude à questão. Peter Spink (2003) fala sobre as posições que

podemos estar no campo-tema, ora mais densas ora mais periféricas:

Nada acontece num vácuo; todas as conversas, todos os eventos, mediados

ou não, acontecem em lugares, em espaços e tempos, e alguns podem ser

mais centrais ao campo-tema de que outros, mais accessíveis de que outros

ou mais conhecidos de que outros. Algumas conversas acontecem em filas

de ônibus, no balcão da padaria, nos corredores das universidades; outras

são mediadas por jornais, revistas, rádio e televisão e outras por meio de

achados, de documentos de arquivo e de artefatos, partes das conversas do

tempo longo presentes nas histórias das ideias. Alguns até podem acontecer

com hora marcada, com blocos de anotações ou gravadores (SPINK, P.,

2003, p. 29).

No intuito de adentrar em regiões mais densas da temática pesquisada, recorri a

conversas – com hora marcada, bloco de anotações e gravador de voz – com pessoas

consideradas informantes privilegiados para a pesquisa. Nas próximas páginas, portanto,

apresento os passos percorridos no campo-tema. Não apenas os elementos que chegaram

até mim, mas principalmente, apresentarei os caminhos e descaminhos percorridos em

busca das pessoas com as quais considerei fundamental encontrar. São os detalhes dessa

trajetória, com seus desvios, atalhos, ultrapassagens, paradas e alguns atropelos que

compartilho a seguir.

1.1.1 Nas entrelinhas da elaboração da Portaria do Nome Social

Meu primeiro movimento foi entender as relações de forças que culminaram na

promulgação da Portaria Estadual nº 16/2008-GS, o incidente crítico8 dessa investigação.

Portarias são atos administrativos expedidos pelos chefes de órgãos que, geralmente,

contêm instruções acerca de aplicação de leis ou regulamentos, aprovação de documentos

de caráter interno etc. A Portaria em questão foi assinada pela secretária de Educação da

época. As portarias possuem fundamento de validade em decretos, estes privativos do

chefe do Poder Executivo (presidente da República, governador e prefeito). A Portaria do

Nome Social foi posteriormente validada pelo Decreto nº 1.675, que amplia a permissão do

uso do nome social de travestis e transexuais em todos os órgãos da administração pública

do Estado do Pará.

8 Inspirando-se na Teoria Ator-Rede, o conceito de incidente crítico pode ser definido como um evento que

dá visibilidade às diferentes posições de atores sociais situados em uma controvérsia e às possibilidades de

negociação entre eles (GALINDO; RIBEIRO; SPINK, 2007).

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Para entender o processo de formulação dessa legislação e principalmente o

pioneirismo do Pará em uma ação dessa natureza, fui em busca de informantes

privilegiados. Essa etapa foi realizada durante o segundo semestre de 2010.

Minha inserção no campo-tema já me dava algumas pistas por onde começar a

investigar a formulação da Portaria. Sabia que a mesma havia sido uma ação da Secretaria

de Educação do Estado do Pará (Seduc) em 2008, quando Cláudia Farias, uma mulher

transexual9, era assessora da secretária de Educação em exercício.

Eu já conhecia a Cláudia. Durante todo o período da graduação e do mestrado em

Psicologia na Universidade Federal do Pará (UFPA) encontrava aquela mulher alta, um

pouco diferente da maioria das mulheres do Norte do Brasil (que têm uma estatura média

mais baixa), pelos corredores do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. Ela é

funcionária da UFPA e exerceu várias funções, principalmente locada neste Instituto.

Devido à sua previsível importância na elaboração da Portaria, assim como pela

facilidade de acesso, foi por Cláudia que iniciei as conversas nessa primeira fase da

pesquisa. No dia combinado, ela me recebeu na secretaria da Pós-Graduação em

Antropologia da UFPA, local onde atualmente trabalha, e falou sobre a rapidez do

processo de produção da Portaria do Nome Social. O fato de ela, uma mulher transexual,

ocupar um cargo privilegiado na Seduc se mostrou como um fator determinante para a

criação dessa legislação.

Depois, fui em busca dos órgãos do Estado que estavam ligados à temática. Dessa

forma, conversei com a coordenadora da Diretoria de Ensino para a Diversidade, Inclusão

e Cidadania (DEDIC) da Seduc e com o coordenador da Coordenadoria de Proteção à

Livre Orientação Sexual (CLOS) da Secretaria de Estado de Justiça e Direitos Humanos

(Sejudh), departamento responsável pelos assuntos referente à diversidade sexual do

Estado.

Como recentemente havia sido inaugurado o Centro de Referência de Prevenção e

Combate à Homofobia do Pará10

, resolvi entrar em contato e consegui conversar com o

assessor de articulação de tal órgão, que, por sinal, é um homem transexual.

9 Quando me refiro a uma mulher transexual, estou levando em consideração a identidade requerida pela

pessoa, independente do sexo biológico. Ou seja, uma mulher transexual é aquela pessoa que nasceu com um

corpo considerado masculino, mas constrói uma identidade feminina para si. 10

Centro de Referência de Prevenção e Combate à Homofobia do Pará, através de um convênio firmado com

a Secretaria Especial de Direitos Humanos (SEDH) da Presidência da República e a Defensoria Pública do

Estado do Pará.

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A partir daí, fui em busca de uma aproximação com os movimentos sociais. Entrei

em contato com um integrante do Movimento LGBT do Estado do Pará que, tendo tomado

conhecimento de minha pesquisa se prontificou a participar, e com o Grupo de Resistência

Travesti e Transexual da Amazônia (GRETTA). Falei com a presidente do grupo, uma

mulher transexual, que informou sobre a pouca articulação do movimento na formulação

da portaria, mas enfatizou a mobilização do grupo na fiscalização do cumprimento dessa

norma nas escolas. Desse modo, no total, estabeleci conversas com seis pessoas ligadas,

direta ou indiretamente, à formulação da Portaria do Nome Social.

O objetivo dessa primeira fase da pesquisa foi entender os elementos em jogo na

formulação de uma legislação que traz o benefício do uso do nome para aqueles/as que já

não se reconhecem com o nome inscrito em seus documentos civis. Ou seja, foi buscar os

nós das redes de relações que culminaram na elaboração da Portaria Estadual nº 016/2008-

GS. Por isso, investiguei a conexão de uma série de dispositivos visando entender o

pioneirismo do Pará em uma decisão dessa natureza. Em resumo, essa etapa proporcionou

entender os mecanismos e as relações de forças que objetivaram a formulação da

legislação em questão.

Neste movimento, as maiores dificuldades foram contatar alguns/mas informantes.

Na maioria das vezes, marcava os encontros previamente por telefone e ia ao encontro

dos/as informantes nos locais mais cômodos para eles/as, geralmente o local de trabalho.

Quando não conseguia contatar por telefone, ia até o local, apresentava-me e pedia um

pouco do tempo para conversar sobre a pesquisa. Nos ambientes mais restritos, como na

Seduc, foi preciso pedir ajuda de colegas que conheciam pessoas que trabalhavam lá para

poder ter acesso a algumas informações importantes. Todas as conversas foram gravadas e

depois transcritas. A exceção foi a entrevista realizada com a coordenadora da DEDIC, que

apesar de consentir a utilização da entrevista na pesquisa (assinando, inclusive, o termo de

consentimento livre esclarecido), não autorizou o registro em áudio.

É digno de nota que as informações produzidas nesses encontros vão permear

vários momentos dessa tese, porém, serão particularmente abordadas no Capítulo 3, no

qual será analisada a formulação da Portaria do Nome Social como uma política pública

educacional, ou seja, como uma estratégia de governamentalidade.

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1.1.2 Encontros e desencontros com as histórias de travestis e transexuais

Realizada a primeira etapa da pesquisa, parti em busca de travestis e transexuais

que cursam o ensino fundamental ou médio da rede pública de ensino, com o objetivo de

compreender os efeitos da autorização do uso do nome social entre eles/as.

Durante o segundo semestre de 2011, passei a estabelecer contato com as

participantes por meio de diferentes vias. O ponto de partida foi o GRETTA. No contato

anterior com a presidente do grupo, percebi que este era um espaço privilegiado para ter

acesso a travestis e transexuais, uma vez que conta com cerca de 80 associadas (travestis

ou transexuais femininas), sendo o grupo de maior representatividade dessa população no

Estado.

Dessa forma, entrei em contato com a presidente do grupo e marquei um encontro

para apresentar a pesquisa no escritório onde trabalha uma integrante do GRETTA, Laura,

que também participou da reunião. Elas gostaram muito da iniciativa da pesquisa e

prontamente se prontificaram ajudar. Porém, infelizmente não conheciam nenhuma travesti

ou transexual que ainda estivesse na escola. Perguntei se sabiam de alguma escola que

geralmente recebe essa população e novamente a resposta foi negativa. Mas se

comprometeram em pesquisar, seja entre as pessoas conhecidas ou indo às ruas conversar

com as que se prostituem. Saí desse encontro feliz com a parceria firmada.

Nos contatos realizados posteriormente, elas me informaram não ter conhecimento

de travestis ou transexuais ainda estudando, com exceção de Raica, uma travesti que voltou

a estudar após a vigência da Portaria. Portanto, meu próximo passo seria contatá-la. Algo

que se revelou bastante complicado. Todos os telefones indicados para falar com Raica

sempre estavam fora de área de serviço. A questão do contato telefônico é problemática

devido às frequentes mudanças do número por causa dos não menos frequentes assaltos

sofridos.

Paralelamente à busca de Raica, continuei a procurar outras pessoas na mesma

situação. Como estava organizando um seminário sobre diversidade sexual e educação em

conjunto com o GRETTA, constantemente estava no local de trabalho de Laura, lugar que

funciona, ainda que informalmente, como um ponto de encontro ou mesmo sede do

GRETTA. Trata-se do escritório de um deputado federal para o qual Laura trabalhava

como assessora. Em um desses momentos, aparece Jenifer, uma travesti, toda molhada da

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forte chuva que caía em Belém. Perguntei se ela poderia dedicar alguns minutos para

conversar comigo sobre sua vida. Em uma sala reservada, com um gravador na mão,

apresentei a pesquisa e passamos muito tempo falando sobre a sua vida, a escola, o

trabalho, a prostituição etc.

Como não conseguia encontrar possíveis participantes da pesquisa que cursavam o

ensino fundamental ou médio, passei a contatar aquelas que estavam cursando o ensino

superior. Pelo GRETTA, consegui o contato da Brenda, estudante de Direito de uma

universidade particular de Belém. Além dela, falei com Leila, jovem estudante de

Psicologia que eu já conhecia pelos corredores da graduação do curso. As entrevistas com

as duas jovens foram feitas nas respectivas universidades onde estudam.

Nessas três primeiras entrevistas, com pessoas que já haviam passado pela escola,

uma informação foi recorrente: elas não eram travestis ou transexuais durante os anos da

escola. Elas se identificavam na época como homens gays, ou seja, elas falaram de suas

lembranças escolares como um rapaz gay, mas ainda não como travesti ou transexual. Tais

identificações só se concretizaram após o período escolar.

As histórias relatadas foram tão interessantes que resolvi não atrelar a pesquisa

somente com aquelas que estavam na escola ou fazendo faculdade. Se o objetivo da

pesquisa é investigar os efeitos da Portaria do Nome Social entre travestis e transexuais,

logo, é importante escutar uma variedade de pessoas que vivenciam tais experiências

identitárias: as que estudam e as que não estudam mais, as que terminaram o ensino médio

e as que abandonaram a escola, as que desejam se graduar e as que estão na prostituição...

A partir dessa nova configuração, a presidente do GRETTA me forneceu uma lista

com o contato telefônico de mais de 80 associadas do grupo. Porém, optei por não utilizá-

la. Achei pouco confiável discar um número aleatório e marcar um encontro. Preferi

realizar a técnica snowball (bola de neve), na qual cada pessoa entrevistada indica outras

que poderiam participar da pesquisa. Dessa forma, pedi a Jenifer, Brenda e Leila, as três

primeiras participantes da pesquisa, que sugerissem outras travestis ou transexuais para

participarem da pesquisa. A partir do número telefônico indicado, entrava em contato com

outras possíveis participantes.

Porém, o procedimento de snowball não funcionou como o esperado. O contato via

telefone foi difícil, pois muitas vezes os números informados não eram mais das pessoas

procuradas, ou ninguém atendia as ligações ou estava permanentemente fora da área de

serviço. Consegui falar com duas pessoas indicadas. Apresentei-me como pesquisadora,

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disse quem havia me informado seu número, explicava os objetivos da pesquisa e

finalmente perguntava sobre a disposição e interesse de participar como informante dessa

investigação. Uma delas se mostrou resistente e disse que retornaria a ligação quando

tivesse disponibilidade de tempo. Esta nunca ligou. A outra, prontificou-se a participar,

porém, ela não compareceu nos dois encontros marcados. Procurando sempre respeitar as

questões éticas que indicam que a decisão de participar ou não do estudo cabe ao

participante, não voltei a procurá-la para uma terceira tentativa.

Esse processo foi sofrido, pois queria muito conhecer a vida dessas pessoas. E

passei a questionar o motivo de tantas faltas. Penso que o desencontro estava nos interesses

envolvidos. Para mim era fundamental ouvi-las, conhecer suas vidas, as dificuldades e

alegrias, a trajetória escolar etc. Mas, o que elas ganhavam com isso? Percebi que as

pessoas que aceitavam participar da pesquisa estavam engajadas no movimento LGBT e

viam na pesquisa um instrumento político, uma produção acadêmica que poderia ajudar na

visibilidade de seus estilos de vida e assim, na diminuição do preconceito que sofrem. Em

contrapartida, as que não iam aos encontros marcados, não estavam tão diretamente

vinculadas ou simplesmente ignoravam a existência de tal movimento, não percebendo

nenhuma vantagem em participar ou não do estudo.

Devido os problemas apresentados, optei por outras técnicas de aproximação com o

público-alvo da pesquisa diferentes do snowball. Assim, tentei me inserir nas reuniões

quinzenais do GRETTA, porém, iam sempre as mesmas pessoas. As organizadoras

ficavam se desculpando, dizendo que haviam chamado “as meninas” (como elas se referem

às travestis e transexuais do grupo), mas que as mesmas não compareciam. A presidente do

grupo chegou a dizer que sentia pena de mim, pois elas (incluindo ela mesma) eram muito

difíceis. Justifica a dificuldade em participar dos encontros principalmente em decorrência

do trabalho noturno na prostituição. Em algumas etnografias com travestis, tal como a

realizada por Larissa Pelúcio (2005), percebe-se o quanto elas não circulam livremente

pela cidade, restringindo-se aos espaços nos quais exercem sua profissão. Como nos fala o

dito popular: à noite todos os gatos são pardos. Ou seja, sem a luminosidade do dia, fica

mais fácil circular pelas ruas sem ser alvo de tantos olhares, preconceitos e até mesmo

violência.

Durante esse processo de procura por participantes, foi realizada em Belém a II

Conferência Estadual de Políticas Públicas e Direitos Humanos de Lésbicas, Gays,

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Bissexuais, Travestis e Transexuais11

. Laura, como uma das organizadoras da referida

Conferência, inscreveu meu nome como delegada no evento. Para mim, foi uma

excelente oportunidade para realizar entrevista com várias pessoas que antes não

conseguia acessar.

Neste ano, 2011, a pauta da referida conferência girava em torno da efetivação do

programa “Pará sem homofobia”, principalmente no que se refere ao combate à violência

contra a população LGBT, e de algumas propostas em direção ao que se convencionou

chamar de “Educação sem homofobia”. Apesar dessa discussão estar na pauta da

conferência, pouco se debateu sobre a efetivação do uso do nome social de travestis e

transexuais nas escolas públicas.

Antes de iniciar a conferência, Laura me apresentou para várias possíveis

participantes da pesquisa. Foi um evento importantíssimo para mim, pois pude conversar

com várias travestis e transexuais. Uma, ao saber do tema da pesquisa, foi à minha procura,

pois, segundo ela, tinha muito a dizer sobre a vida escolar de uma transexual.

No total, realizei seis entrevistas durante a Conferência. Porém, só utilizarei três por

considerá-las mais completas e relevantes para os objetivos dessa tese. As demais

ocorreram de forma mais rápida do que gostaria, durante os intervalos da programação do

evento, e acabaram enveredando por assuntos outros. As histórias selecionadas, portanto,

foram a de Raica, a já citada travesti que voltou a estudar após a vigência da Portaria do

Nome Social; a de Babete, uma transexual que chegou a estudar o ensino médio e a

trabalhar em um prostíbulo simultaneamente; e a de Valesca, uma jovem transexual que

faz graduação em Biologia no interior do Estado do Pará.

Interlúdio 1: O caso Soares

Até aqui, concentrei-me em apresentar o meu movimento em direção às

informantes para a pesquisa: as diversas investidas em conseguir contatos e

entrevistas. Pois agora, apresento o que chamei de “caso Soares”. Mais do

que um caso, foi fruto do acaso que a imersão no campo-tema potencializou. 11

As conferências estaduais e nacionais são espaços de diálogo com a sociedade visando a construção de

políticas públicas. Tal prática foi iniciada no governo Lula e continuada no governo Dilma. A conferência

realizada em Belém foi uma ação do Conselho Estadual da Diversidade Sexual e pela Coordenadoria de

Proteção à Livre Orientação Sexual (CLOS), da Secretaria de Estado de Justiça e Direitos Humanos

(SEJUDH).

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23 de setembro de 2011, final de tarde de uma sexta-feira. Estava a

caminho de uma loja para comprar uma cadeira de escritório mais confortável

para escrever esta tese. Passando por uma importante avenida de Belém,

fiquei parada no engarrafamento, típico desse horário, em frente a uma escola

da rede estadual de ensino. O que me chamou a atenção foi a presença de um

aluno (ou seria uma aluna?), aparentemente do “sexo masculino”, mas que

portava acessórios e características consideradas socialmente como

femininas: cabelos grandes, unhas pintadas, brincos e maquiagem.

Como relatado acima, sempre que eu perguntava às pessoas do

movimento LGBT, mais especificamente às integrantes do GRETTA, elas me

diziam que não conheciam travestis ou transexuais nas escolas. Já tinha quase

perdido as esperanças de conseguir entrevistar pessoas que ainda estivessem

cursando o ensino fundamental ou médio.

Mas estava ali, diante de mim, este/a estudante uniformizado/a em frente

à escola. Hesitei em descer do carro. “Como eu iria abordar essa pessoa? O

que vou dizer? Onde vou conseguir estacionar? Até achar uma vaga, com o

transito caótico dessa cidade, ele/ela já vai ter saído de lá!” Mas não podia

deixar escapar essa oportunidade. Desci do carro e fui ao encontro dele/a, que

já estava se deslocando, em companhia de uma amiga. Quando o/a alcancei,

apresentei-me como professora e pesquisadora. Perguntei seu nome, ao que

me respondeu apenas com seu sobrenome: Soares. Expliquei rapidamente os

objetivos da pesquisa, uma vez que estávamos no meio de uma calçada

rodeada de pessoas que andavam apressadas. Ele/a demonstrou interesse em

participar da pesquisa e prontamente me deu o seu telefone para marcamos

um encontro.

Estava muito feliz. Gostei de ter encontrado alguém que até então não

tinha tido acesso. Não sabia como defini-lo: travesti, transexual, gay

afeminado ou um rapaz com acessórios femininos? Pouco importava. O

importante de fato era a possibilidade de conversar com ele/a e entender como

funcionava sua vida escolar.

Na segunda-feira, como combinado, telefonei e marcamos um encontro.

Seria para o outro dia, em uma praça bem movimentada de Belém. Perto do

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horário agendado, liguei para confirmar a entrevista, porém ele/a não

atendeu. Mesmo assim fui ao local no horário acertado. Ele/a não apareceu.

Desde aí, retornei a ligação várias vezes e ele/a nunca estava em casa.

Presumi que me evitava e não liguei mais, respeitando seu direito de não

participar da pesquisa.

Porém, após quase dois meses de greve dos professores da rede estadual

de ensino, resolvi contatar Soares novamente. Ele/a se lembrava de mim e,

assim como no primeiro contato, se prontificou me encontrar. Foram vários

desencontros. Até que resolvi ir até a sua escola na tentativa de encontrá-lo/a.

Para entrar na escola, tive que me identificar e dizer qual o meu objetivo

ali. Encaminharam-me à sala da diretoria para que pudesse falar com alguém

responsável em dar informações dos/as estudantes. Quem me atendeu foi o

vice-diretor da escola, que se mostrou gentil e solícito. Perguntei sobre Soares,

mas ele não conseguia lembrar-se de ninguém com as características que

apresentei. Porém, enquanto conversávamos, ele chamou “dois alunos” (como

se referia a eles/as) que passavam por nós e perguntou se gostariam de

participar de uma pesquisa.

Tratava-se de uma moça e de um rapaz. Ela era travesti e ele, gay. O

vice-diretor não sabia como se referir a eles/as. Ora usava o pronome

feminino ora o masculino, esse prioritariamente. E ainda presumia que

ambos/as fossem travestis, sendo que o rapaz não tinha nenhum sinal de tal

categoria identitária. Era um rapaz de calça jeans, tênis, cabelos curtos e nem

usava brinco. Mas assumidamente gay. Portanto, era notória a confusão que o

vice-diretor tinha ao tratar de questões como identidade, gênero, orientação

sexual etc.

Depois do mal entendido ter sido resolvido, apenas a aluna ficou para

conversar comigo. Enquanto procurávamos uma sala reservada na qual

pudéssemos conversar, o vice-diretor trouxe outra aluna travesti interessada

em participar da pesquisa. Perguntei se elas não se incomodavam em perder o

restante do intervalo e me prontifiquei em esperar o término do horário de

aula para realizar a entrevista. Elas disseram que não teriam mais aulas

naquela tarde e assim que nos ofereceram uma sala na qual pudéssemos ter

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privacidade, começamos a conversar. Como eram amigas, decidimos realizar

a entrevista em dupla.

As histórias de Bianca e Nayara são de duas adolescentes que estão

passando pelo processo de transformação. Definem-se como travesti, levando

em consideração não ter realizado a cirurgia de transexualização12

. Os relatos

escolares que tanto queria no começo da pesquisa foram construídos ali.

Essa inserção na escola foi interessante por diversos motivos. Um deles

foi perceber a falta de informação da escola sobre a Portaria Estadual nº

016/2008-GS. O vice-diretor disse que “até tinha escutado falar sobre”, fez

uma busca na internet, mas nada achou sobre a regulamentação do uso do

nome social nas escolas públicas do Pará. Então, deixou de lado. Nessa

ocasião, entreguei uma cópia tanto da Portaria quanto do Decreto nº 1.675

que amplia tal permissão para todos os órgãos da administração pública do

Estado do Pará.

O outro elemento interessante nesse encontro com a escola foi a

possibilidade de falar com duas travestis adolescentes que não estão

vinculadas ao movimento LGBT. Elas nem mesmo tinham conhecimento de um

grupo de travestis e transexuais na cidade. Ou seja, por meio do GRETTA eu

só teria acesso àquelas que, de alguma forma, já haviam tido algum contato

com o grupo, seja através de suas ações de prevenção às DST/aids13

ou pela

aproximação ao movimento LGBT. Neste caso, as duas adolescentes

entrevistadas ainda não tinham tido acesso ou mesmo ainda não haviam se

deparado com a necessidade de entrar no movimento LGBT.

Conclusão do caso Soares: não consegui falar com o/a próprio/a Soares,

mas por meio dele/a, conheci duas travestis adolescentes. Esse encontro com

12

A cirurgia de transexaulização, chamada pelo SUS de “processo transexualizador”, compreende um

conjunto de técnicas envolvido no processo de transformação dos caracteres sexuais para aqueles/as que

desejam transitar entre os gêneros. Optou-se por utilizar a expressão “cirurgia de adequação sexual”, pois é a

forma como o movimento LGBT prefere denominar o procedimento. Trata-se de uma adequação do corpo à

identidade já vivida pelas/os candidatas/os ao procedimento. 13

Seguindo as recomendações da Coordenação Nacional de DST e Aids, utilizarei o termo aids em caixa

baixa. No Brasil, já se iniciou o processo de dicionarização do termo, em que AIDS deixa de ser uma sigla e

passa a ser grafada como substantivo comum: aids.

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Soares, ao acaso, em meio a um tráfego engarrafado, tornou-se um

acontecimento14

mesmo sem ter conseguido falar com ele/a.

1.2 Sobre as entrevistas

Como apresentado acima, a principal técnica empregada para obtenção das

informações foi a entrevista. A entrevista foi escolhida como recurso por propiciar uma

interação constantemente negociada entre a pesquisadora e as/os entrevistadas/os: é um

exercício de manter, transformar e desafiar os posicionamentos envolvidos.

Posicionamento é aqui entendido como as diferentes maneiras de se apresentar e se

colocar nas também diferentes situações vivenciadas. Os posicionamentos assumidos são

fluídos e contextuais. Fluídos porque dinâmicos, sendo, portanto, mais adequado falar em

jogos de posicionamentos. E contextuais porque se refere aos posicionamentos que uma

pessoa assume em uma interação social. Em uma entrevista, por exemplo, o que uma

pessoa diz posiciona a outra e vice-versa. São posicionamentos negociados durante a

interação, assumidos, portanto, como produções conjuntas (SPINK, M., 2004).

Além disso, os posicionamentos assumidos na entrevista não incluem apenas

alguém que fala e alguém que ouve, mas outros enunciados que atravessam a fala e a

escuta das pessoas envolvidas (PINHEIRO, 2000). Para responder às perguntas feitas, os

participantes recorrem às informações que circulam em seus meios, constituídas durante

suas experiências de vida e que, na relação da entrevista, são agrupadas, categorizadas e

ressignificadas. É um processo de negociação de posicionamentos, de pontos de vista, de

versões sobre os assuntos e acontecimentos tratados.

Assim, de modo a propiciar momentos de construção e transformação de sentidos,

as entrevistas realizadas foram feitas de forma semiestruturada, ou seja, a partir de um

roteiro preestabelecido (disponível no Apêndice A), mas aberto às interrogações que foram

surgindo no seu desenrolar. Essa estratégia para a obtenção de informações permitiu maior

flexibilidade, uma vez que se pôde alterar a ordem das perguntas e foi possível fazer outras

intervenções livremente, de acordo com o andamento do diálogo.

14

O acontecimento é o inesperado, o imprevisível, o singular. Segundo Foucault (2000b, p. 28): “é preciso

entender por acontecimento não uma decisão [...], mas uma relação de forças que se inverte, um poder

confiscado, um vocábulo retomado e voltado contra seus utilizadores, uma dominação que se enfraquece [...]

e uma outra que faz sua entrada, mascarada”.

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Como as perguntas iniciais eram muito abertas, os temas tendiam a reaparecer

durante a entrevista. Avalio esta situação como um ponto positivo, pois as participantes

podiam falar das mesmas questões a partir de pontos de vistas diferentes, apresentando

outras informações ainda não mencionadas ou mesmo ressignificando as afirmações

anteriores.

No total, foram realizadas catorze entrevistas: seis na primeira etapa, concernente

ao processo de elaboração da Portaria do Nome Social, e oito na segunda etapa, sobre os

efeitos da referida legislação na vida de travestis e transexuais. As entrevistas tiveram

duração entre uma e duas horas. Como recurso de visualização de algumas informações

relevantes das participantes da segunda etapa da pesquisa, apresento o quadro a seguir:

Nome Categoria

identitária

Idade Ocupação Escolaridade Indicação Local da

entrevista

Jenifer

Travesti 29 anos Prostituta Ensino médio

incompleto

GRETTA Escritório

“sede” do

GRETTA

Brenda

Transexual 24 anos Estudante de

Direito

Cursando

graduação de

Direito

GRETTA Faculdade

onde estuda

Leila

Transexual 30 anos Estudante de

Psicologia

Cursando

graduação de

Psicologia

Já a conhecia

do curso de

Psicologia

Faculdade

onde estuda

Valesca Transexual 22 anos Estudante de

Biologia

Cursando

graduação de

Biologia

Laura II Conferência

Estadual

LGBTT

Raica

Travesti 37 anos Autônoma Cursando o

ensino médio

GRETTA II Conferência

Estadual

LGBTT

Babete Transexual 40 anos Prostituta Ensino médio

completo

Laura II Conferência

Estadual

LGBTT

Nayara

Travesti 19 anos Estudante Cursando o

ensino médio

Vice-diretor

da escola onde

estuda

Escola onde

estuda

Bianca Travesti 16 anos Estudante Cursando o

ensino médio

Vice-diretor

da escola onde

estuda

Escola onde

estuda

1.3 Interação com os registros

Não houve uma separação bem demarcada das fases tradicionalmente nomeadas de

coleta de dados e a posterior análise, interpretação e relato desses supostos dados. Nada foi

dado “de mão beijada”, como se diz comumente, durante a pesquisa; mas sim produzido

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(SPINK, P., 2003). Todos os registros analisados foram produzidos nos encontros

ocorridos (assim como nos desencontros), a partir da interação de variados elementos: as

minhas teorias e concepções prévias, as questões problematizadas pela orientadora e

posteriormente pelas/os integrantes da banca de qualificação, as pessoas que participaram

das conversas e entrevistas, a função que tais pessoas projetavam na pesquisa, os locais

onde foram realizadas etc.

Apesar de os diferentes materiais que compuseram o campo-tema desta pesquisa –

tais como conversas, livros, artigos, meios de comunicação etc. – estarem presentes nas

análises, implícita ou explicitamente, detenho-me aqui a descrever a interação com os

registros produzidos a partir das principais fontes de informação do presente estudo, qual

seja, as oito entrevistas realizadas com as travestis e transexuais participantes.

A interação com as entrevistas foi um processo de aproximação crescente, visando

uma maior familiaridade com os registros. O processo ocorreu basicamente em cinco

etapas, assim definidas:

1. Escuta preliminar das entrevistas.

2. Uma segunda escuta com transcrição sequencial e temática das entrevistas.

Sequencial, pois obedeci à ordem dos acontecimentos da forma como foram

relatados. Temática, pois transcrevi apenas os conteúdos diretamente relacionados ao

tema da pesquisa.

3. Elaboração de um mapa temático, recurso de visualização do material da pesquisa,

cujo objetivo é sistematizar e orientar o processo de análise. Tal mapa contém três

colunas. A primeira comporta os trechos sequenciais das entrevistas; na segunda,

identifica-se a temática que está sendo abordada no trecho em questão; e a terceira

coluna serve para orientar sobre um provável capítulo para o qual aquela informação

seria relevante (Apêndice B).

4. Construção de uma tabela contendo os temas recorrentes, assim como relevantes, das

oito entrevistas feitas. A partir desse panorama, pude selecionar as histórias que

melhor apresentavam as temáticas a serem desenvolvidas.

5. Produção de uma narrativa para cada uma das histórias escolhidas. A produção das

histórias é um recurso para apresentar as participantes da pesquisa sem utilizar, pelo

menos de forma recorrente, as transcrições literais de suas falas. Com isso, pretende-

se evitar usar a literalidade como forma de comprovar as análises desenvolvidas,

como se essas fossem uma apreensão menos mediada, mais pura, das participantes.

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1.4 Considerações éticas

O projeto de pesquisa foi apresentado e aprovado pelo Comitê de Ética de Pesquisa

da PUC-SP (Protocolo de Pesquisa nº 099/2011). Ao iniciar cada entrevista, eu apresentava

para as/os participantes o documento que comprova a aprovação da pesquisa pelo referido

Comitê de Ética, assim como as informações contidas no Termo de Consentimento Livre e

Esclarecido (Apêndice C): que a participação era voluntária, podendo ser interrompida no

momento em que a entrevistada desejasse, sem ser em nada prejudicada; que a entrevista

seria gravada, mas que eu me comprometia em preservar o anonimato das/os informantes.

Todas as pessoas contatadas, nas duas fases da pesquisa, formalizaram sua aceitação em

participar da pesquisa assinando o referido termo.

Para me referir às/aos informantes da primeira etapa da pesquisa, remeto aos cargos

ocupados ou funções exercidas, uma vez que foi devido a tais posições que recorri a essas

pessoas. Já na segunda etapa, embora a maioria das entrevistadas tenha manifestado o

desejo de ser identificadas por seus nomes sociais, tão caros a elas, optei por utilizar

pseudônimos. Como é habitual nas pesquisas acadêmicas utilizar nomes fictícios para os/as

participantes, achei oportuno fazer o mesmo para que não se compreenda equivocadamente

que o nome social já seja um pseudônimo. Tentei, na medida do possível, criar nomes que

remetesse de alguma forma aos nomes sociais das entrevistadas. O nome civil não foi

inquirido em nenhum momento. O “nome de homem”, como elas chamam, remete a uma

identidade, a um passado que muitas lutam cotidianamente para esquecer.

Outra preocupação ética foi utilizar os pronomes, artigos e adjetivos coerentes com

a identidade que a pessoa entrevistada atribuía a si, qual seja, o feminino, uma vez que

todas as participantes se identificaram enquanto travestis ou mulheres transexuais15

. Esta

atitude, para além da perspectiva ética, foi um elemento importante para o sucesso das

entrevistas, pois as participantes ficavam mais à vontade para falar e compartilhar

informações de suas vidas. Meu respeito e simpatia eram sinceros e isso, de alguma

maneira, reverberou na fluidez das trocas efetuadas.

15

Infelizmente não tive acesso a nenhum transexual masculino. O único a participar da pesquisa foi o

assessor do Centro de Referência, que contribuiu com informações sobre a formulação da Portaria.

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CAPÍTULO 2

A INVENÇÃO DA TRAVESTILIDADE E DA TRANSEXUALIDADE

Tudo o que me caracteriza é apenas o modo como sou mais

facilmente visível aos outros e como termino sendo

superficialmente reconhecível por mim.

Clarice Lispector

Ao tomarem conhecimento do tema de minha pesquisa, a primeira coisa que me

perguntam, em tom de surpresa ou estranhamento, é sobre a diferença entre travestis e

transexuais. No começo tentava responder, mas ficava incomodada com as classificações,

sempre tão definitivas, tão prontas e tão pouco problematizadas. Caracterizar o que é ser

travesti ou transexual era, de certa forma, incoerente com a minha perspectiva teórica e

política. Se não há um conceito fundamental que caracterize o que é ser homem ou mulher,

por que haveria de ter uma definição clara e categórica do que é ser travesti ou transexual?

As múltiplas diferenças e particularidades vivenciadas pelas pessoas consideradas

travestis e transexuais não podem ser reduzidas a categorias unificadoras com intenção de

universalização. Nesse caso, a produção da subjetividade de travestis e transexuais obedece

às mesmas regras que produzem as demais subjetividades. Não há uma lei, uma essência

que oriente esses modos de ser. Até porque, aquilo que chamamos de “gênero” só existe na

prática: é a repetição de ações consideradas masculinas ou femininas que produz o efeito

homem ou mulher nos corpos. Nossas práticas fazem gêneros (BUTLER, 2003).

Em princípio, optei por utilizar o termo “transgênero” que aparentemente

açambarcava, sem especificar e aprisionar, as experiências identitárias de trânsito de

gênero. Entretanto, logo no início da pesquisa, esse termo mostrou seu aspecto

problemático. Utilizar tal terminologia, amplamente empregada nos estudos norte-

americanos (transgender) nada diz, pelo menos no contexto brasileiro, sobre as

especificidades das reivindicações das pessoas transexuais (BENTO, 2008) ou da

dimensão conflituosa de assumir-se travesti (BENEDETTI, 2005)16

. Ou seja, “transgênero”

16

Regina Facchini (2005) comenta que a adoção do termo “transgênero” teve uma reação bastante negativa

no Brasil por parte de travestis e transexuais. A frequente associação ao termo “transgênico” – produtos

modificados geneticamente e geralmente associados aos males à saúde – também foi um forte elemento que

inviabilizou a identificação de travestis e transexuais à nova terminologia.

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não é um termo com o qual travestis e transexuais brasileiros/as se identificam e se

definem. Tanto que nenhuma pessoa entrevistada se reconhece como “transgênero”. Trata-

se de um termo acadêmico e muitas vezes não reconhecido pelos movimentos LGBT.

Diversas pesquisas sobre travestis e transexuais trazem definições ou um eixo

norteador para apresentar a população da qual está se falando. Benedetti (2005), seguindo a

lógica do grupo estudado – qual seja, travestis que se prostituem nas ruas de Porto Alegre

(RS) – define travestis como pessoas que promovem modificações nas formas de seu corpo

visando deixá-lo o mais parecido possível com o das mulheres. Apesar de se vestirem e

viverem cotidianamente embasadas pelo que se reconhece socialmente como gênero

feminino, as travestis não demonstram desejo de realizar a cirurgia de transexualização17

,

aspecto supostamente fundamental para as pessoas transexuais. Eis, portanto, a diferença

mais notável, em termos médicos, entre travestis e transexuais. Porém, tal diferença é

relativizada, pois, como será visto, há transexuais que não desejam se submeter a nenhum

tipo de procedimento cirúrgico.

A tentativa de diferenciação entre travestis e transexuais não permeia apenas o

universo acadêmico. As/os próprias/os integrantes do movimento de travestis e transexuais

se veem questionando esses limites identitários. A presidente do GRETTA, em entrevista

para esta pesquisa, diverte-se ao lembrar uma tentativa de classificação do movimento, na

qual era estipulado que a transexual não podia falar alto ou ser escandalosa, pois tais

características eram específicas das travestis. Ela defendeu, então, que assim como há

vários tipos de mulheres, das comportadas às “barraqueiras”, há vários modos de ser uma

travesti ou mulher transexual.

Viver no processo de transformação de gênero não significa compartilhar os

mesmos valores, experimentar os mesmos sentimentos, conviver em ambientes

semelhantes ou ter práticas sociais análogas. Pelo contrário, as diferentes formas de viver e

construir o gênero são influenciados por fatores variados, tais como classe social, nível

educacional, fatores econômicos, sociais, familiares entre outros (BENEDETTI, 2005).

Parafraseando Clarice Lispector (fazendo uso de licença poética): Tudo o que caracteriza

travestis e transexuais é apenas o modo como são mais facilmente visíveis aos outros e

como terminam sendo superficialmente reconhecíveis por si mesmas.

17

O processo para conseguir esse procedimento cirúrgico de “mudança de sexo” será mais amplamente

abordado no final deste capítulo.

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38

Por isso, além de utilizar a definição pela qual o público entrevistado se reconhece

– travestis e transexuais, portanto – utilizarei também o termo guarda-chuva “pessoas

trans” para abarcar os vários modos de ser que transitam, resistem ou subvertem o

binarismo identitário fruto da heteronormatividade, ou seja, de um conjunto de instituições

tanto linguísticas quanto médicas ou domésticas que produzem constantemente corpos-

homem e corpos-mulher (PRECIADO, 2002). O uso de tal termo guarda-chuva surge do

incômodo com os rótulos que aprisionam os modos de ser, produzindo verdades e gerando

estratégias de poder e de controle. Portanto, “pessoas trans” se apresenta como definição

abrangente, quase imprecisa, que abre a possibilidade para uma pluralidade de modos de

ser e de identificações.

Deparo-me aqui com uma questão inquietante: por que as questões ligadas à

sexualidade são transformadas em categorias, identidades, tipos de pessoas? Por que o fato

de preferir ter relações sexuais com homens ou com mulheres se torna o cerne identitário

daquele/a que a pratica? Por que a sexualidade passa a ser um elemento fundamental na

caracterização do ser humano?

Michel Foucault (1999, 2003b, 2006a), em sua História da sexualidade, fornece

pistas importantes para tais questionamentos ao afirmar que os desejos sexuais são

constituídos no curso de práticas sociais específicas, produzidas historicamente. Foucault

(2003b) localiza no século XVIII a emergência da (ainda) atual concepção de que o sexo é

o reduto da individualidade humana. Nesse período histórico, surge um erotismo

discursivo generalizado, uma aparelhagem para produzir discursos sobre o sexo a tal ponto

que, a partir do século XIX, o sexo passou a conter a verdade última de nós mesmos.

Esse processo foi mobilizado por um interesse público diante da nova configuração

política em formação na Europa Ocidental: explosão demográfica, processo de

industrialização e emergência do capitalismo. Em resumo, esses são os elementos

fundamentais para a passagem de um poder soberano para o biopoder.

O biopoder se refere ao período histórico no qual a vida entra no campo das

técnicas políticas, “isto é, a entrada dos fenômenos próprios à vida da espécie humana na

ordem do saber e do poder” (FOUCAULT, 2003b, p. 133). Enquanto que o regime de

soberania se constituía no direito de se apropriar das coisas, do tempo, dos corpos, da vida

para a defesa da conservação de um Estado, o biopoder se apoia na incitação, no controle e

na vigilância para criar, otimizar e ordenar as coisas. O que está em jogo é a garantia da

sobrevivência de uma população.

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Os governantes percebem que não têm que lidar simplesmente com

sujeitos, nem mesmo com um “povo”, porém, com uma “população”,

com seus fenômenos específicos e suas variáveis próprias: natalidade,

morbidade, esperança de vida, fecundidade, estado de saúde, incidência

de doenças, formas de alimentação e hábitat (FOUCAULT, 2003b, p. 28).

Nesse contexto do biopoder, as questões relativas à sexualidade obtiveram uma

especial atenção entre os fenômenos da população, passando a ser objeto de análise e alvo

de intervenção. Faz-se necessário “analisar a taxa de natalidade, a idade do casamento, os

nascimentos legítimos e ilegítimos, a precocidade e a frequência das relações sexuais, a

maneira de torná-las fecundas ou estéreis [...]” (FOUCAULT, 2003b, p. 28). Tal

importância atribuída à sexualidade está na sua capacidade de abranger as duas tecnologias

de intervenção pelas quais o biopoder se desenvolveu: a disciplina e a biopolítica.

O poder disciplinar toma como objeto de ação o corpo-organismo dos indivíduos,

que precisam ser adestrados por meio de técnicas de vigilância, de sanções normalizadoras

e de uma organização panóptica18

do espaço das instituições: escolas, hospitais, fábricas,

prisões etc. A disciplina se exerce sobre corpos individuais, adestrando-os, ampliando suas

aptidões, extorquindo suas forças, e, ao mesmo tempo, fazendo crescer sua utilidade e

docilidade (FOUCAULT, 2003b).

Já a biopolítica é uma forma de governo que se destina à população e seus

fenômenos de massa com o propósito de governar sua vida. Portanto, a biopolítica se

ocupará da gestão da saúde, higiene pública, sexualidade e de todas as questões referentes

à população que se tornarem apostas políticas (CASTRO, 2009).

Desse modo, a sexualidade articula os dois eixos desse poder sobre a vida: a

disciplina do corpo individual e a regulação da espécie. A sexualidade abrange tanto os

desejos e atos do indivíduo, produzindo efeitos individualizantes, como as condutas

coletivas mais gerais da população, que, ao fazer uso das estatísticas, intervém para gerir a

vida e a morte com pretensão totalizante (FOUCAULT, 2003b).

Desse modo, a hipótese defendida no primeiro volume da História da Sexualidade

é que, ao invés de repressão, os discursos sobre o sexo foram incitados, incentivados,

18 Em Vigiar e Punir, Michel Foucault (2003a) utiliza a concepção arquitetural do Panóptico, de Jeremy

Bentham, como um princípio geral do poder disciplinar. Arquitetado em 1791, o Panóptico consistia em um

edifício em forma circular, no meio do qual havia um pátio com uma torre no centro. A parte circular se

dividia em pequenas celas, destinadas a abrigar um detento ou um operário ou mesmo uma criança, uma vez

que essa arquitetura poderia ser aplicada a uma prisão, fábrica, escola ou qualquer instituição que desejasse

manter sob vigilância um determinado grupo de pessoas. Tal vigilância era realizada a partir da torre central,

na qual se localizava um vigilante.

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proliferados durante a Idade Clássica. Se na era do biopoder gerir a sexualidade se tornara

algo fundamental, logo, devia-se falar dela, compulsiva e minuciosamente; é necessário

fazer circular os discursos para, assim, controlá-los. Dessa forma, insere-se a sexualidade

em sistemas de utilidade, fazendo-a funcionar a partir de um padrão ótimo: assegurando o

povoamento, reproduzindo forças de trabalho, formando uma sexualidade economicamente

útil e politicamente conservadora.

Foucault (2003b) apresenta o colégio do século XVIII como um exemplo de

instituição na qual o sexo é intensamente colocado em questão, apesar de aparentemente

ser um assunto proibido ou silenciado nesse espaço. A arquitetura dos colégios, os

regulamentos, a organização disciplinar, a disposição das carteiras, a distribuição dos

dormitórios... Em todos esses aspectos o sexo das crianças e adolescentes fora levado em

consideração.

A produção discursiva sobre o sexo faz da sexualidade um objeto de investigação

científica, alvo de controle administrativo e de preocupação social. Esse processo é

denominado por Foucault (2003b) de dispositivo da sexualidade. Por dispositivo, Foucault

(2000c, p. 244) entende

um conjunto decididamente heterogêneo que engloba discursos,

instituições, organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis,

medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas,

morais, filantrópicas. Em suma, o dito e o não dito são os elementos do

dispositivo. O dispositivo é a rede que se pode estabelecer entre estes

termos.

Já para explicar o significado do dispositivo de sexualidade, Foucault (2003b)

aborda quatro grandes conjuntos estratégicos de produção de sexualidades periféricas: a

histerização do corpo da mulher (análise exaustiva do corpo feminino e a consequente

expansão do discurso médico sobre o sexo), a pedagogização do sexo da criança (combate

rigoroso à masturbação infantil), a socialização das condutas de procriação (a decisão e

prática de reprodução deixa de ser da esfera privada do casal) e a psiquiatrização do prazer

perverso (distinção entre os instintos sexuais normais e os anômalos). Foi por meio desse

conjunto de práticas e saberes que a sexualidade se tornou um domínio coerente e uma

dimensão fundamental do ser humano. Portanto, a partir dessas quatro figuras, Foucault

mostra que a sexualidade não é algo essencial, mas sim, um dispositivo histórico, fruto da

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41

incitação ao discurso sobre o sexo, da estimulação dos corpos, da formação de

conhecimentos específicos etc. (FOUCAULT, 2003b)19

.

E mais, seguindo essa concepção, o sexo não é uma instância real, biológica,

autônoma que produz secundariamente os múltiplos efeitos da sexualidade. Ao contrário, o

sexo se encontra na dependência histórica da sexualidade, ou seja, o dispositivo da

sexualidade, que esmiuçou a sexualidade em seus mínimos detalhes, tanto inventou o sexo

quanto a crença de que no sexo reside a “essência” do ser humano (FOUCAULT, 2003b).

O dispositivo da sexualidade produz também um pareamento entre sexo e verdade a

partir da apropriação do sexo em termos médico-científicos. Principalmente a partir da

figura do perverso, inicia-se a produção de um discurso verdadeiro sobre o sexo. A

medicina, e posteriormente a psiquiatria, além de produzirem certas “irregularidades

sexuais”, passam a anexá-las ao domínio das doenças mentais. Entre os séculos XIX e XX

houve “[...] uma dispersão de sexualidades, um reforço de suas formas absurdas, uma

implantação múltipla das ‘perversões’. Nossa época foi iniciadora de heterogeneidades

sexuais” (FOUCAULT, 2003b, p. 38).

Considerando que as patologias sexuais não são imediatamente observáveis pelo

exame médico, era necessário fazer uso da confissão do paciente. E, como a partir da

formação do dispositivo da sexualidade do século XIX o sexo foi produzido como o

segredo individual por excelência, era preciso confessá-lo para ter acesso à verdade de si.

A vontade de saber a verdade sobre nós mesmos, própria à nossa cultura,

instiga-nos a falar a verdade; as confissões que se sucedem, confissões

que fazemos aos outros e a nós mesmos, e essa colocação em discurso

instauram uma rede de relações de poder entre aqueles que afirmaram ser

capazes de extrair a verdade dessas confissões, através da posse de

chaves de interpretação (DREYFUS; RABINOW, 2010, p. 229).

A confissão se torna, assim, uma técnica que liga o discurso científico às

tecnologias do eu, uma vez que instaura a crença de que é possível acessar a verdade sobre

si mesmo com a ajuda de um perito. A sexualidade, portanto, é performada pela crença de

que o sexo é a chave da individualidade humana, de que há sexualidades normais e outras

anormais, de que é preciso falar de sua sexualidade para conhecer a si mesmo.

19 Para dar um exemplo da abrangência do dispositivo da sexualidade, ter relações sexuais com pessoas do

mesmo sexo deixou de ser uma prática, um incidente, passando a ser o cerne identitário daquele/a que a

pratica. A partir do século XIX, nada do que o homossexual é escapa da sua sexualidade (FOUCAULT,

2003b). Portanto, percebe-se o quanto a sexualidade passa a ser um elemento fundamental na caracterização

do ser humano.

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A travestilidade e a transexualidade são fruto desse dispositivo. Só existem travestis

e transexuais – e as demais formas de categorizar as experiências de vida tendo como foco

a sexualidade – devido ao biopoder e sua ênfase na categorização populacional para

controlar a vida, devido a esse dispositivo da sexualidade que produziu a crença de que no

sexo reside a “essência” do ser humano e devido a tantos outros dispositivos que

inventaram essas experiências como “identidades de gênero”.

Portanto, travestis e transexuais, assim como toda experiência de si, são frutos de

um complexo histórico de fabricação no qual se entrecruzam os discursos que definem a

verdade do sujeito, as práticas que regulam comportamentos e formas de subjetividade.

Ian Hacking (2009), seguindo as proposições foucaultianas, chama a esse processo

de “inventando pessoas”. Segundo o autor, há dois vetores em disputa nessa “invenção” de

formas de vida. Há o vetor de rotulação que é orientado de cima para baixo, ou seja, é a

fabricação de categorias de pessoas feita por especialistas: médicos, psicólogos,

pedagogos, jornalistas, oficiais de todas as ordens etc. Mas há também o vetor que

pressiona por baixo, no qual as próprias pessoas rotuladas não aceitam de forma passiva os

rótulos recebidos. Há críticas, modificações, análises e transgressões diversas nesse

processo de rotulação. O nome, dado por alguém revestido de autoridade por um saber,

acaba por criar um tipo de existência. A rotulação promove um processo de identificação

da pessoa com a categoria a ela atribuída.

Nessa perspectiva, não são apenas travestis e transexuais que são inventados/as.

Todos os modos de ser são inventados. O que somos, desejamos, pensamos, é governado

por diversos dispositivos que agenciam nossos modos de pessoalidade contemporânea.

Dessa forma, não há “uma história geral a ser contada sobre inventar pessoas. Cada

categoria tem sua própria história” (HACKING, 2009, p. 128). Portanto, cabem muitas

versões no processo de invenção de pessoas.

Em se tratando das categorias travestis e transexuais, cabe destacar, pelo menos,

três dispositivos importantes nessa invenção: a medicina, a psicologia e o nome civil. A

medicina porque as experiências travestis e transexuais são capturadas e patologizadas pelo

discurso médico; a psicologia, porque é a ciência privilegiada de regulação das existências

pela determinação de condutas normais e anormais, e a imposição do nome na

documentação civil, porque a reivindicação do uso do nome social só existe devido à

dificuldade (quase impossibilidade) com que travestis e transexuais se deparam para alterar

o nome civil nos documentos de identidade.

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Dessa forma, tendo como foco esses três elementos, busco apresentar a invenção e

o governo da travestilidade e da transexualidade por meio de certo número de saberes,

jogos de verdade e práticas de poder. Esse percurso pela invenção dessas categorias é

importante, pois, só há políticas que visam à inclusão escolar de travestis e transexuais

porque tais formas de viver foram (e são) categorizadas e transformadas em um problema,

em identidades “diferentes”, “anormais”.

Interlúdio 2: Jenifer, Brenda e suas diferenciações identitárias

Jenifer, 29 anos, travesti e prostituta. Sua saída da escola coincidiu com

seu processo de transformação pessoal. A presença na escola se tornou

insustentável e a vida na rua, na pista, cada vez mais atrativa. Se na escola era

discriminada, na rua era desejada. Trabalhando pela noite adentro, ficou cada

vez mais difícil acordar cedo para estudar. Além disso, concluiu que seria

impossível conseguir um emprego formal com a nova identidade travesti. Não

valia mais estudar. Interrompeu os estudos no 2º ano, faltando apenas um ano

para terminar o ensino médio.

Diz que na época da escola não sabia que “era” travesti: “Eu achava

que eu era uma coisa assim, abstrata. Não sabia o que era. Não me

identificava ainda. Eu gostava de me vestir com roupa de mulher, mas nunca

pensava que isso era ser travesti”. Para ela, conhecer o movimento LGBT e as

categorias identitárias foi apaziguador. “Saber o que se é” e conhecer outras

pessoas que não aceitam estritamente as normas de gênero instituídas foi

importante para Jenifer. Não era mais “algo” abstrato.

Hoje, define-se como travesti porque vive da prostituição e sente prazer

com seu órgão sexual masculino, ou seja, não deseja fazer a cirurgia para uma

suposta “adequação sexual”, pois gosta de ser travesti, gosta da ambiguidade.

Brenda, 24 anos, transexual, estudante de Direito. Ela diz que só

encontrou seu “verdadeiro eu” quando passou a assumir uma identidade

feminina, a partir do momento em que começou a construir seu corpo, a se

vestir da forma que queria, a ter o relacionamento amoroso da forma que

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desejava. A identidade masculina foi apenas um estágio para a conquista de

Brenda.

Aos 20 anos decidiu começar a tomar hormônios femininos. Como a

situação em casa ficou insustentável, ela abandonou a faculdade de Direito e

foi tentar a sorte na Europa. Continuou o uso de hormônios, fez cirurgia para

inserir uma prótese de silicone nos seios, fez depilação a laser no rosto e

trabalhou como prostituta por um ano. Então, resolveu voltar ao Brasil. “Por

que toda travesti/transexual tem que ser puta?”, questiona-se Brenda. Voltou

para fazer diferente. Retomou o curso de direito e, em 2012, foi lançada como

candidata a vereadora em Belém.

Define-se enquanto transexual por não se reconhecer na figura de uma

travesti. Confessa ter horror da imagem de um homem simplesmente vestido de

mulher. Só conseguiu sair de casa como Brenda quando avaliou que podia

passar despercebida ou que pelo menos tivesse a seu favor o benefício da

dúvida. Convoca elementos tanto médicos quanto morais para justificar sua

identidade transexual. Diz que sua “personalidade é totalmente feminina”,

não tem comportamento sexual promíscuo e não sente prazer com seu órgão

sexual masculino. Além disso, almeja fazer a cirurgia para “adequar” sua

genitália ao seu corpo e sua subjetividade feminina.

2.1 “Precisamos verdadeiramente de um verdadeiro sexo?”: patologização da

travestilidade e da transexualidade

No curso Os anormais, ministrado em 1975, no Collège de France, Foucault (2001)

descreve com detalhes a universalização do desvio sexual e da entrada da sexualidade no

domínio da psiquiatria. Identificar, distribuir e patologizar as sexualidades consideradas

desviantes da norma até o extremo de nominá-las como anormais.

O filósofo analisa o aparecimento da anomalia, ou mais propriamente, do anormal,

por meio de três figuras: o monstro humano, o indivíduo incorrigível e a criança

masturbadora. Durante o século XIX esses três personagens, que já existiam desde longas

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épocas, vão se coadunar na figura do anormal, tornando-se um problema a ser tratado e não

simplesmente um objeto de curiosidade.

A primeira figura relatada por Foucault (2001) é o monstro humano. O monstro

humano combina o impossível com o proibido e, durante boa parte do medievo, serve

como o grande modelo de todas as pequenas discrepâncias. É o misto de dois reinos:

animal e humano. Trata-se de uma exceção na população que viola tanto as leis da

sociedade quanto as leis naturais.

Foucault (2001) considera o hermafrodita como uma figura privilegiada para a

análise do monstro humano durante a Idade Clássica. Por meio de vários exemplos

históricos, o autor mostra a mudança na concepção e, principalmente, modos de punição do

hermafrodita. Até o século XVI, o/a hermafrodita era condenado/a simplesmente por ser

hermafrodita. Já a partir do século XVII, pediam-lhe que escolhesse um sexo, e se usasse o

outro sexo, expresso por meio de roupas ou práticas sexuais, incorria nas leis penais e era

condenado por sodomia. Ou seja, não se condena mais a monstruosidade da natureza, mas

a de comportamento. A monstruosidade passa a ser alojada no plano moral.

A segunda figura, ou melhor, personagem importante para o aparecimento do

anormal, é o indivíduo incorrigível. Enquanto o monstro é sempre uma exceção e remonta

ao domínio dos estudos sobre as deformações ou monstruosidades orgânicas, a existência

do indivíduo a ser corrigido é um fenômeno normal. É um fenômeno corrente que nasce

dentro da família e mantém relações com instituições vizinhas. Como diz ironicamente

Foucault (2001, p. 72): “é regular na sua irregularidade”. Ele é espontaneamente

incorrigível, o que demanda a criação de tecnologias para a reeducação que lhe permita a

vida em sociedade20

.

Por fim, o terceiro personagem é o responsável pela universalização do desvio

sexual e da entrada da sexualidade no domínio da psiquiatria. Trata-se da criança e do

adolescente masturbador. Data da passagem do século XVIII para o XIX e envolve

exclusivamente a família burguesa. Esse era um personagem quase universal de tão

corrente que era o seu aparecimento na sociedade.

A prática do onanismo, segundo o ideário médico burguês vitoriano, é tida como a

causa de qualquer patologia corporal, nervosa, psíquica ou moral. Foucault salienta que no

20

É válido ressaltar que a exposição dessa segunda figura acabou por ser pouco explorada por Foucault

durante o curso de 1975.

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fim do século XVIII não há nenhuma doença que não esteja relacionada, de uma forma ou

de outra, à masturbação.

No século XVIII, inicia-se o que Foucault (2001) chama de campanha

antimasturbatória mobilizada pela crença de que a masturbação era a causa de uma série de

enfermidades, tanto físicas quanto mentais. Apareceram textos, panfletos, livros e até

manuais dirigidos aos pais sobre a masturbação infantil. Ainda não se trata de uma

psicopatologia sexual, pois a sexualidade está praticamente ausente. É a própria

masturbação, sem nenhum vínculo com a sexualidade, que é o problema a ser combatido,

ou seja, trata-se mais de uma patologização do que uma moralização da prática onanista.

O foco está na criança e no adolescente burguês e a origem desse “vício” está no

desejo dos adultos pelas crianças. Nesse contexto, a culpa vem do exterior, do adulto, mais

exatamente, da criadagem. Inicia-se uma empreitada contra a criadagem doméstica e a

responsabilização dos pais pela masturbação dos filhos. É a ausência de cuidados, a

preguiça e desatenção dos pais que estão envolvidos nesta prática.

Esse discurso exige uma nova configuração do espaço familiar e, de acordo com o

argumento defendido por Foucault (2001), foi esse controle da masturbação da criança que

possibilitou o surgimento da família nuclear, sólida e afetiva. Porém, esse controle

parental, interno à família, passa a ser subordinado à intervenção médica. É por meio da

família que se estabelece o encontro entre a medicina e a sexualidade.

Em suma, um movimento de intercâmbio que faz a medicina funcionar

como meio de controle ético, corporal, sexual, na moral familiar e que faz

surgir, por outro lado, como necessidade médica, os distúrbios internos

do corpo familiar, centrado no corpo da criança (FOUCAULT, 2001, p.

321).

Foi pela infância que a psiquiatria veio a se apropriar do adulto. Aumentou seu

campo de ingerência ao mostrar que o instinto sexual está no cerne de todas as doenças

mentais.

Ainda de acordo com Foucault, a partir de meados do século XIX, a psiquiatria

abandona aquilo que havia se constituído o essencial na justificação da medicina mental: a

doença. O que ela assume agora é o comportamento, seus desvios, suas anomalias a partir

de um desenvolvimento normativo já instituído. É o poder médico sobre o não patológico.

É a psiquiatria abrangendo em seu campo de ação uma população que não apresenta

nenhum sintoma de doença, mas que apresentam algumas características que passam a ser

analisadas enquanto anomalias. “Assiste-se assim, nessa segunda metade ou nesse último

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terço do século XIX, ao que poderíamos chamar de consolidação das excentricidades em

síndromes bem especificadas, autônomas e reconhecíveis” (FOUCAULT, 2001, p. 395).

Esse período, portanto, é marcado pelo aparecimento de vários tratados médicos

sobre os desvios sexuais. Em 1870, Westphal descreve sobre os “invertidos” no Arquive de

Neurologie. Segundo Foucault (2001), é a primeira vez que a homossexualidade aparece

como síndrome no interior do campo psiquiátrico, dando início, assim, ao que podemos

chamar de psiquiatrização da homossexualidade.

Nesta intensa procura da identidade na ordem sexual, Foucault (2001) dá ênfase à

análise da obra Psychopathia sexualis de Heinrich Kaan, publicada em 1844 e a sua

formulação da noção de instinto sexual. Porém, outra obra, também intitulada Psycopathia

sexualis, é particularmente interessante para a discussão sobre a invenção da travestilidade

e transexualidade. Trata-se do livro do psiquiatra alemão Richard Von Krafft-Ebing escrito

em 1886. Esta obra é destinada à categorização das patologias das funções sexuais, tais

como lesbianismo, delírio erótico, necrofilia, bestialidade, entre outros “desvios sexuais”.

Apresenta o diagnóstico de 238 casos coletados pelo próprio autor, assim como

comentários e observações finais sobre a patologia. De acordo com Leite-Júnior (2008),

este livro se tornou a bíblia sobre as perversões.

Entre os casos relatados em sua obra (principalmente os casos 129 e 133), Krafft-

Ebing (2001) traz dados significativos sobre as futuras (agora atuais) nomeações e

classificações do que é ser travesti ou transexual, como inicialmente apresentado pelas

autodefinições de Jenifer e Brenda. Portanto, o campo para a criação da travestilidade e

transexualidade estava em franco desenvolvimento, haja vista a dedicação médico-

científica à categorização das “anomalias sexuais”.

O livro Die Transvestiten, de 1910, traduzido para o inglês como Transvestites:

theerotic drive tocross-dress, do médico e psicólogo alemão Magnus Hirschfeld, é a

primeira publicação destinada a analisar especificamente a relação entre vestimenta e

sexualidade. Neste estudo, “travestismo”21

é definindo como um forte impulso para usar as

roupas do sexo que não pertence à estrutura relativa a seu corpo como um fim em si

mesmo (HIRSCHFELD, 1991).

Hirschfeld (1991) analisa o “travestismo” como uma variante da sexualidade

“normal”, uma vez que os/as travestis, mesmo vestindo esporadicamente ou

21

O sufixo “ismo” é usado, a partir do século XIX, para qualificar os supostos “transtornos de sexuais”. O

movimento LGBT efetua uma troca nas terminologias “travestismo” e “transexualismo” para “travestilidade”

e “transexualidade”, desvinculando, assim, o caráter patológico presente no sufixo “ismo”.

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cotidianamente vestimentas do “outro sexo”, tem consciência de não pertencem ao sexo ao

qual pertencem as roupas utilizadas.

Dessa sua primeira aparição para a atualidade, a travestilidade tem sido objeto de

estudo e intervenção de um saber que se orienta pela patologização e medicalização das

condutas. Tanto que, atualmente, é categorizada como uma patologia, seja pelo Manual

Diagnóstico e Estatístico de Doenças Mentais (DSM), produzido pela Associação

Psiquiátrica Americana (APA), seja pelo Código Internacional de Doenças (CID),

elaborado pela Organização Mundial de Saúde.

No DSM-IV, a travestilidade é definida no item “Fetichismo transvéstico”, tendo os

seguintes critérios diagnósticos:

A. Por um período de 6 meses, em um homem heterossexual, fantasias

sexualmente excitantes, recorrentes e intensas, impulsos sexuais ou

comportamentos envolvendo o uso de roupas femininas; B. As fantasias,

impulsos sexuais ou comportamentos causam sofrimento clinicamente

significativo ou prejuízo no funcionamento social ou ocupacional ou em

outras áreas importantes da vida do indivíduo (LEITE-JÚNIOR, 2008, p.

183).

No CID-10, o “travestismo” está contemplado no item “Transtornos da preferência

sexual”, sob a denominação de “travestismo fetichista”. Este é considerado uma parafilia –

termo contemporâneo para perversão – e descrito como o hábito de vestir roupas do sexo

oposto com o objetivo de obter excitação sexual e de criar a aparência do sexo oposto22

.

É interessante notar que as definições trazidas no DSM-IV e na CID-10 pouco se

referem às travestis brasileiras. Como destaca Leite-Júnior (2008), no Brasil, a categoria

que mais se enquadraria nas definições de travestismo fetichista da CID-10 ou de

fetichismo transvéstico do DSM-IV seria a de crossdresser. Trata-se de uma moderna

nomenclatura para se referir às pessoas que, independente de orientação sexual, gostam de

se vestir com roupas do sexo considerado oposto ao seu e que não promovem alterações

definitivas no corpo, contentando-se na “montagem”23

durante um período do dia ou da

semana.

Algumas pesquisas (SILVA, H., 1993; BENEDETTI, 2005; KULICK, 2008;

LIONÇO, 2009; PELÚCIO, 2009) apontam que, no Brasil, ser travesti é investir

22

Disponível em: http://www.datasus.gov.br/cid10/v2008/cid10.htm. Acesso em 19/maio/2011. 23

Termo que denomina o processo de se vestir, maquiar e usar de outras estratégias para se assemelhar ao

outro sexo.

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permanentemente na construção de um corpo a ser reconhecido como feminino, apesar de

não sentirem necessidade de “corrigir” a genitália cirurgicamente.

Além disso, no Brasil há um entrelaçamento forte entre a travestilidade e a

prostituição. Tal associação é tão intensa que até em 2008, como atesta a tese de Leite-

Júnior (2008), na Classificação Brasileira de Ocupações do Ministério do Trabalho e

Emprego havia, dentro da categoria 5198-05 - Profissionais do sexo, os seguintes títulos:

Garota de programa, Garoto de programa, Meretriz, Messalina, Michê, Mulher da vida,

Prostituta, Puta, Quenga, Rapariga, Trabalhador do sexo, Transexual (profissional do

sexo), Travesti (profissional do sexo) (grifos nossos). Atualmente, retiraram os termos

Puta, Quenga, Rapariga, Transexual e Travesti24

.

Apesar da forte vinculação entre travestilidade e prostituição, há pessoas que se

definem enquanto travesti e não estão na prostituição, tais como Bianca e Nayara, que se

dizem travestis por ainda não terem realizado a cirurgia de transexualização; há outras, no

entanto, que são prostitutas e se afirmam enquanto transexual. É o caso de Babete, que há

25 anos vive da prostituição e se define uma mulher transexual. Como dito anteriormente,

em nenhum momento dessa pesquisa há um julgamento de quem é travesti ou transexual.

Trata-se de uma autodefinição mobilizada por discursos diversos: a atuação na

prostituição, o desejo ou não de realizar a cirurgia de transexualização, sentir-se uma

mulher, vinculação com o movimento LGBT etc.

Um exemplo dessa complexidade de nomeações é trazido pelo cartunista Laerte

Coutinho. Desde 2009 ele se veste e utiliza acessórios considerados femininos, não tem

nenhuma relação com a prostituição, afirma-se bissexual e vive com sua namorada. Em

entrevista ao programa “Provocações” (TV Cultura), em 1º de março de 2011, Laerte

rejeita a nomenclatura crossdressing, pois para ele, é uma forma de denominar travesti de

classe média. Ou seja, pessoas que se travestem, mas que não estão na marginalidade ou

prostituição. Porém, como é difícil de concebê-lo como travesti, uma vez que ele foge dos

estereótipos que esse termo agrega, prefere dizer, então, que é uma pessoa que se traveste.

De qualquer forma, vê-se que a vinculação entre travestis e prostituição é patente.

Muito antes da discussão sobre crossdressing ou da polêmica lançada por Laerte, a

inserção de outras categorias que não a de travesti para definir aqueles/as em trânsito de

gênero começa a ser empreendida no Brasil a partir dos anos de 1980 com a aparição

24

Disponível em: http://www.mtecbo.gov.br/cbosite/pages/pesquisas/BuscaPorTituloResultado.jsf. Acesso

em 16/maio/2011.

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midiática e espetacularizada de Roberta Close. Ela transmitia os valores morais e estéticos

de feminilidade de uma mulher burguesa. Em nada se assemelhava com o estereótipo de

travesti que dominava na época. Não havia nenhuma associação da sua imagem com a

prostituição ou criminalidade. Ao contrário, foi considerada uma das mulheres mais

bonitas do Brasil, sendo matéria de reportagens e de programas de televisão voltados para

a classe média (BENTO, 2006; LEITE-JÚNIOR, 2008).

Não havia rótulo para enquadrar Roberta Close. Não era mulher, nem homem, nem

homossexual ou mesmo travesti. O que se percebe é que o campo estava propício para a

inserção de uma nova noção: transexualidade. Mais uma categoria para emoldurar as

experiências subjetivas de vivenciar gênero, sexualidade e desejo.

O termo “transexual” aparece pela primeira vez em 1949, usado pelo médico David

Oliver Cauldwell para se referir ao caso de uma mulher que apresentava o desejo de se

“masculinizar” (Cf. LEITE-JÚNIOR, 2008). Nesse trabalho são produzidas algumas

características que viriam a ser consideradas exclusivas dos/as transexuais, pois até aquele

momento não havia uma distinção conceitual entre as definições transexual, travesti e até

mesmo homossexual (BENTO, 2006).

Porém, de acordo com a pesquisa de Leite-Júnior (2008), a atenção à

transexualidade passa a ganhar notoriedade mundial em 1952, quando o jornal The New

York Daily News traz a reportagem de uma jovem americana de 26 anos que havia passado

por um tratamento hormonal e realizado cirurgias para remoção do pênis e testículos e

criado os lábios vaginais. Christine Jorgensen25

foi o primeiro caso tratado pelo médico

Christian Hamburger, na Dinamarca, com a cirurgia de transgenitalização.

Ao voltar aos Estados Unidos, Christine se torna uma celebridade, pois passa a ser

manchete de jornais e tema de revistas que divulgavam a incrível história do militar que se

transforma em mulher, sendo eleita, em 1954, a mulher do ano. Essa espetacularização do

caso Christine é um importante marco na história da transexualidade, pois milhares de

pessoas, em várias partes do mundo, passam a saber que era possível, cientificamente,

passar de um sexo para outro. O caso Christine Jorgensen torna a transexualidade um tema

popular, tal como ocorreria com o caso Roberta Close no Brasil. Isso provocou um

aumento significativo nas demandas por tratamento e assim contribuiu para a reflexão

sobre a identidade sexual e a construção da categoria de gênero.

25

A jovem adota o nome de Christine em homenagem a seu médico-cirurgião (LEITE-JÚNIOR, 2008).

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51

Porém, a especificação e definição categórica do que é a transexualidade se deve à

publicação, em 1966, do livro O fenômeno transexual, de autoria de Harry Benjamin,

médico alemão radicado nos Estados Unidos. Nele, além de teorizar sobre o chamado

“transexualismo”, lança as bases para a padronização de seu tratamento, utilizado até a

atualidade (BENTO, 2006; LEITE-JÚNIOR, 2008).

Benjamin elabora uma escala para classificar “o fenômeno transexual” em tipos que

vão desde o “pseudo-travesti” até o “transexual de intensidade alta”. Esse último é

considerado o/a transexual exemplar: “vive como o outro gênero, deseja alterar o corpo,

especialmente com cirurgia, considera-se uma ‘mulher em corpo de homem’ (ou vice-

versa), não possui libido e é extremamente infeliz” (LEITE-JÚNIOR, 2008, p. 147).

As pesquisas de Benjamin se transformaram em referência para o diagnóstico

daquilo que se considera “transexual verdadeiro” e, logo, para avaliar os discursos dos/das

candidatos/as à cirurgia. De acordo com Bento (2004), o trabalho de Benjamin, produziu

uma universalização do/a transexual, ou seja, a construção de um perfil do/a “transexual

verdadeiro/a”. Nas palavras da autora:

O/a verdadeiro/a transexual, para Benjamin, é fundamentalmente

assexuado e sonha em ter um corpo de homem/mulher que será obtido

pela intervenção cirúrgica. Essa cirurgia lhe possibilitaria desfrutar do

status social do gênero com o qual se identifica, ao mesmo tempo em que

lhe permitiria exercer a sexualidade apropriada, com o órgão apropriado.

Nesse sentido, a heterossexualidade é definida como a norma a partir da

qual se julga o que é um homem e uma mulher de verdade (BENTO,

2004, p. 163).

Atualmente o “transexualismo” é definido no CID-10, que entrou em vigor em

1993, como uma patologia que acomete aqueles que desejam viver como o outro gênero,

receber intervenções hormonais e cirúrgicas e nutrem um profundo mal-estar (ou aversão)

em relação a seu sexo anatômico. Já o DSM-IV, publicado em 1994, substitui o termo

“transexualismo” pelo “transtorno de identidade de gênero”. Para ser diagnosticado por

essa patologia

deve haver evidências de uma forte e persistente identificação com o

gênero oposto, que consiste do desejo de ser, ou a insistência do

indivíduo de que ele é do sexo oposto. (...) Também deve haver

evidências de um desconforto persistente com o próprio sexo atribuído ou

uma sensação de inadequação no papel de gênero deste sexo. Para que

este diagnóstico seja feito, deve haver evidências de sofrimento

clinicamente significativo ou prejuízo no funcionamento social ou

ocupacional ou em outras áreas importantes da vida do indivíduo

(BENTO, 2008, p. 81).

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52

É digno de nota que a 5ª versão do DSM, prevista para ser publicada em maio de

2013, substitui a definição “transtorno de identidade de gênero” por “disforia de gênero”,

visando descrever o estado de sofrimento emocional daqueles/as que vivem uma

incongruência entre sexo e gênero, ou seja, passa a ser uma condição e não mais um

transtorno. Por outro lado, o DSM-V mantém a travestilidade como um transtorno,

mudando apenas de nomenclatura: de “fetichismo transvéstico” para “distúrbio

transvéstico”. Essa alteração no DSM-V carrega os efeitos da Campanha Internacional

Stop Trans Pathologization. Segundo Berenice Bento e Larissa Pelúcio (2012), há mais de

100 organizações e quatro redes internacionais – na África, na Ásia, na Europa e nas

Américas do Norte e do Sul – engajadas na campanha pela retirada da transexualidade do

DSM e do CID26

.

O importante a se destacar é que tais documentos, DSM e CID, dão instruções e

apresentam indicadores para reconhecer e elaborar um veredicto sobre a travestilidade e

transexualidade. Para fazer o diagnóstico, deve ser encontrado um conjunto de

componentes que indique que se trata de uma ou de outra patologia. A tarefa do psiquiatra,

ou dos demais profissionais interessados na determinação identitária-patológica, consiste

em seguir as instruções destes manuais e coletar os sintomas e sinais suficientes para emitir

uma sentença (MARTÍNEZ-GUZMÁN; ÍÑIGUEZ-RUEDA, 2010).

Porém, para essas “patologias”, o saber médico não pode justificá-las por nenhuma

disfunção fisiológica. Todos os critérios diagnósticos são práticas ou comportamentos

regidos pelas normas de gênero criadas social e coletivamente. Como observam Martínez-

Guzmán e Íñiguez-Rueda (2010), esses manuais convertem práticas, preferências e desejos

em sintomas e critérios diagnósticos.

Nesse sentido, esses textos não representam a travestilidade e a transexualidade.

Eles são dispositivos que “inventam pessoas”, fabricam as experiências que dizem apenas

descrever. Travestis e transexuais, com seus inúmeros sintomas e características, estão

sendo produzidos por meio dessa escrita “científica”.

26 As reivindicações dessa campanha se organizam em torno de cinco pontos: 1) retirada do Transtorno de

Identidade de Gênero (TIG) do DSM-V e do CID-11; 2) retirada da menção de sexo nos documentos oficiais;

3) abolição dos tratamentos de normalização binária para pessoas intersexo; 4) livre acesso aos tratamentos

hormonais e às cirurgias (sem a tutela psiquiátrica); e 5) luta contra a transfobia, propiciando a educação e a

inserção social e laboral das pessoas transexuais (BENTO; PELÚCIO, 2012, p. 573).

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Em meio a esse processo de definições, “transexualismo” e “travestismo”, apesar

de constantemente confundidos, têm características diferenciais importantes. O

“travestismo” seria uma patologia daqueles que “parecem, mas não são”. Está associado ao

fetichismo, tendo como foco o prazer erótico. Trata-se de uma disfunção sexual, em

contraste com o “transexualismo”, caracterizado como um transtorno de identidade. Neste

segundo caso, o foco está em saber o quanto uma pessoa é transexual, saber o grau de

pertencimento ao “outro sexo”. Ou seja, tanto aqueles/as que têm prazer na transgressão

quanto aqueles/as que “desviam” das normas de gênero por sofrerem de uma “desconexão”

entre o psicológico e o corpo são definidos como “patológicos”. De um lado a perversão

sexual, de outro, uma doença mental (LEITE-JÚNIOR, 2008).

O que está em questão nessas definições e terminologias para caracterizar as formas

de viver travesti e transexual é a manutenção do caráter normativo de tais experiências

subjetivas e a apropriação médico-científica no que se refere ao trânsito de gênero.

Tamanha insistência na categorização, delimitação e patologização integram a tarefa do

biopoder em fazer da sexualidade a questão central de nossas vidas.

O que se percebe é o crescimento de uma ciência sexual que procura

incessantemente produzir verdades sobre o sexo (FOUCAULT, 2001, 2003b, 2010b).

Pergunta-se Foucault: “Precisamos verdadeiramente de um verdadeiro sexo? Com uma

constância que beira a teimosia, as sociedades do Ocidente moderno responderam

afirmativamente a essa pergunta” (FOUCAULT, 2010e, p. 82).

Interlúdio 3: O psicológico feminino de Nayara

Nayara, 19 anos, começou o seu trânsito de gênero aos 17 anos, quando

começou a se automedicar com anticoncepcionais para ingerir hormônios

femininos. Define-se como travesti, pois ainda não realizou a cirurgia de

transexualização, ou seja, ser travesti é um estágio para alcançar o que ela

deseja ser: uma mulher transexual. Relata que desde criança gostava de se

vestir com as roupas de suas mãe e irmã, usava seus assessórios e

maquiagens. Quando alguém chegava a casa, era preciso se “desmontar” com

rapidez, pois ao contrário levaria uma surra da mãe.

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Quando ela tinha 15 anos, sua mãe perguntou se “ele” era gay. Nayara

disse que não. Diz que não mentiu, pois nunca se sentiu gay. Havia alguma

coisa estranha nessa categoria. Sentia atração por homens, mas não se sentia

gay. Afirma que internamente sempre se sentira como uma menina. Por isso,

Nayara era sempre alvo de questionamentos e discussões familiares. Ninguém

entendia seu comportamento, seus gestos, seus mistérios. Ela usou roupas “de

homem” enquanto era obrigada a fazê-lo. Hoje, o seu guarda-roupa é

inteiramente feminino, havendo doado qualquer vestígio de vestimentas

masculinas.

Atualmente, ela cursa o 1º ano do ensino médio em uma escola pública

localizada em um dos bairros mais movimentados de Belém. Gosta da escola e

diz não sentir preconceito no ambiente escolar. O que realmente a incomoda é

a não aceitação de que ela use o banheiro feminino. “Eu, uma mulher assim,

no banheiro de homem? Nem combina”. E diz que sente mais preconceito por

parte dos professores do que dos alunos. Muitos professores não a chamam

pelo nome social, o que a deixa chateada. No mais, são as piadas ou

comentários maldosos de alguns colegas. Mas isso, ela nem considera

preconceito. Diz que adolescente é assim mesmo, vai “tirar sarro de tudo o

que é diferente”, ou seja, não se sente discriminada por ser travesti. Justifica a

suposta ausência de preconceito pelo fato de sua transformação ter sido

gradual. Começou usando calças jeans femininas, depois deixou o cabelo

crescer, passou a usar brincos, maquiagem, até que um dia foi à escola de

sutiã, momento em que se definiu de fato como travesti.

Sente-se lisonjeada quando a chamam de Nayara. Diz se sentir à

vontade, que o tratamento no feminino a conecta com seu “verdadeiro eu”.

“Eu sou afeminada, tô querendo me transformar em uma mulher, porque o

meu psicológico é de mulher, uso roupa de mulher, então, não fica legal uma

pessoa me chamar de Naldo”, protesta com um sorriso.

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2.2 A psicologia e a produção da norma: identidades e gêneros

A psicologia é outro forte agenciamento na invenção da travestilidade e da

transexualidade. Além de definir normalidades e anormalidades, comportamentos

apropriados e inapropriados, constrói tipos de pessoas: homens (ativos, viris, fortes...),

mulheres (recatadas, mães, delicadas...), crianças (em desenvolvimento, frágeis,

educáveis...), homossexuais (fruto de um complexo de Édipo mal resolvido?), travestis (se

prostituem e usam o órgão genital masculino), transexuais (desejam realizar a cirurgia de

transexualização) etc.

A psicologia é herdeira do dispositivo da sexualidade analisado por Foucault

(2003b), uma vez que foi por meio desse dispositivo que houve a associação da

sexualidade com o dizer verdadeiro. Por isso saber quem é Nayara – qual sua identidade, o

porquê de sua resistência em se conformar ao seu corpo masculino ou ao nome que fora

registrada ao nascer etc. – é sempre tão instigante. Olhares curiosos, suspeita frequente.

A psicologia e sua autoridade em regular as existências via determinação de

condutas é herdeira também de uma tecnologia de si, inaugurada pelo cristianismo, que

suspeita de que há um núcleo central do ser humano desconhecido por ele mesmo. Logo, é

necessário o auxílio de um guia, seja o padre ou o psicólogo, para conseguir decifrar-se.

Com efeito, o cristianismo retoma os temas do pastorado, que advém do Oriente

pré-cristão, caracterizado pela metáfora do pastor que guia cuidadosamente seu rebanho.

Trata-se de um tipo de relação fundamental existente entre Deus e seus súditos. É um tipo

de poder que se exerce sobre um rebanho em movimento, guiando seus deslocamentos. Ou

seja, é exercido sobre uma multiplicidade e não sobre um território delimitado. É um poder

benfazejo, de cuidado, de zelo e de dedicação. “Sendo o poder pastoral, a meu ver,

inteiramente definido por seu bem-fazer, ele não tem outra razão de ser senão fazer o bem.

É que, de fato, o objetivo essencial, para o poder pastoral, é a salvação do rebanho”

(FOUCAULT, 2008a, p.170).

O responsável pela salvação do rebanho é o pastor. Ele está a serviço do rebanho. É

ele quem zela para que tudo ocorra da melhor maneira possível. Para tanto, precisa

conhecer e vigiar cada uma de suas ovelhas. Deduz-se daí mais uma característica

apontada por Foucault (2008a) do poder pastoral: é um poder individualizante. O pastor

deve estar atento para que nenhuma ovelha se desgarre, tome um caminho diferente. A tal

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ponto que, para salvar uma ovelha, pode ser obrigado a descuidar de todo o rebanho. É

uma forma de poder que visa todos e cada um.

O cristianismo organiza esse poder pastoral em instituições e mecanismos,

transformando-o tanto em uma doutrina como em uma prática política no que diz respeito à

condução da vida de cada pessoa. O poder pastoral, implantado durante o Império

Romano, ganhando maior importância durante a Idade Média, desenvolveu uma arte de

conduzir, de guiar e de controlar a vida. Estabeleceu uma forma de direção da conduta

humana a partir de uma modulação cotidiana: observação, vigilância e condução das

“ovelhas”. Tal direção contínua da conduta através de um mecanismo que, se não é

propriamente novo, é estabelecido de forma diferente. Trata-se da direção de consciência.

A novidade da direção de consciência do cristianismo é seu caráter permanente,

obrigatório e interiorizado. Produz um modo específico de individualização ao produzir

uma verdade interior, secreta e oculta, ou seja, a verdade escondida da alma de cada

pessoa.

O pastorado cristão inaugura um saber decifratório de si mesmo, tendo confissão e

exame de consciência como as chaves para desvendar a verdade oculta acerca de si

mesmo. Portanto, é um poder que tem no conhecimento suas armas fundamentais: o

conhecimento de si e o conhecimento que o pastor deve ter de seu rebanho como um todo,

ao mesmo tempo em que deve conhecer cada ovelha em particular. “Essa forma de poder

não pode ser exercida sem o conhecimento da mente das pessoas, sem explorar suas almas,

sem fazer-lhes revelar os seus segredos mais íntimos” (FOUCAULT, 2010b, p. 280).

Em resumo, o poder pastoral cristão produz um modo específico de

individualização ao produzir uma verdade interior, secreta e oculta. O cristianismo, como

religião de salvação, pregaria que o indivíduo deve saber quem é, assumindo seus defeitos,

reconhecendo as tentações, identificando seus desejos etc. E para tal, precisaria da ajuda

(interpretação) do padre para purificar-se e livrar-se de seus pecados. Nesse processo, a

técnica mais valorizada para produzir a verdade sobre si mesmo passou a ser a confissão.

“Como reconhecer se um pensamento é bom? [...] Há apenas um único caminho: confessar

todos os nossos pensamentos ao nosso diretor, obedecer ao nosso mestre em todas as

circunstâncias, e engajarmo-nos na constante verbalização de nossos pensamentos”

(FOUCAULT, 2004, p. 358).

A confissão concede ao mestre um conhecimento e este, por sua sabedoria e

experiência, fornece conselhos que devem ser seguidos. Cria-se, dessa forma, uma nova

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tecnologia de si: a obediência ao mestre. Obediência que faz com que a pessoa renuncie à

sua vontade e assim, renuncie a si mesmo. Tem-se, então, uma correlação entre a revelação

de si e a renúncia de si.

A obediência incondicional, o exame ininterrupto e a confissão exaustiva

formam, portanto, um conjunto onde cada elemento implica os dois

outros; a manifestação verbal da verdade que se esconde no fundo de si

mesma aparece como uma peça indispensável ao governo dos homens

uns pelos outros [...]. Mas é preciso sublinhar que essa manifestação não

tem a finalidade de estabelecer o domínio soberano de si; o que se espera

dela, ao contrário, é a humildade e a mortificação, o distanciamento em

relação a si e a constituição de uma relação a si que tende à destruição da

forma do si (FOUCAULT, 1997, p. 105).

Nasce, assim, o sujeito moral cristão, sujeito cindido de si mesmo por um segredo.

Busca responder a inalcançável questão “quem é você?”. Para tanto, é persuadido de que é

possível acessar a verdade sobre si mesmo com a ajuda de um perito (GROS, 2006).

Inaugura-se uma tecnologia da obediência: o outro sabe de mim e, portanto, preciso dele.

Tal tecnologia, que suspeita de que a consciência que tenho de mim não coincide

com o que verdadeiramente sou, espraiou-se por diversas áreas, passando a ser “utilizada

em toda uma série de relações: crianças e pais, alunos e pedagogos, doentes e psiquiatras,

delinquentes e peritos” (FOUCAULT, 2003b, p. 62). É negado a Nayara, tal como a todos

nós, a autoridade de saber quem se é. Dessa forma, ela supostamente precisa do outro para

ajudá-la nessa decifração de si. Seja a medicina, psiquiatria, psicologia, religião, entre

tantos outros saberes que se arvoram no direito de regular as existências pela determinação

de condutas.

A psicologia surge no final do século XIX como uma disciplina científica

responsável em “falar a verdade” sobre os seres humanos. Reitera, assim, a concepção de

que há um domínio interior, psicológico, em cada pessoa (FIGUEIREDO; SANTI, 2004).

Portanto, as disciplinas psi têm um papel importante na criação das condições para a

emergência da capacidade de cada um se relacionar consigo mesmo. A psicologia tem

fornecido diversos modelos de eu e receitas praticáveis de condução da conduta a ponto de

ser “impossível conceber a pessoalidade, sentir a própria pessoalidade ou a alheia ou

governar a si ou aos outros sem as disciplinas ‘psi’” (ROSE, 2001a, p. 46).

Como nos diz Nikolas Rose (2001a, p. 51), “é característico de nosso presente

regime de eu refletir e agir sobre todos os diversos domínios, práticas e agenciamentos em

termos de uma personalidade ‘unificada’, de uma ‘identidade’ a ser revelada, descoberta ou

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trabalhada em cada um deles”. A psicologia assume um papel fundamental em nosso atual

regime de subjetivação ao fornecer perfis de identidades, gêneros ou ainda identidades de

gênero, categoria na qual posicionam travestis e transexuais. Dois representantes das

disciplinas “psi” exerceram especial influência na categorização identitária das pessoas

trans. Trata-se de Jonh Money e Robert Stoller.

Em 1955, o psicólogo John Money utiliza pela primeira vez o termo “gênero” para

se referir às diferenças sexuais entre as pessoas (BENTO, 2006; LEITE-JÚNIOR, 2008).

Após lidar com vários casos de crianças com sexualidade ambígua, os/as chamados/as

intersexuais, no famoso Hospital John Hopkins27

, Money conclui que o gênero e a

identidade sexual são moldados até os 18 meses de vida28

.

Money defendia a tese de que a educação era responsável pela instauração das

diferenças sexuais. Entretanto, o aparente teor revolucionário de afirmar que o gênero não

é algo inato ao organismo logo se mostra contestável, uma vez que não se tratava de uma

“determinação do social sobre o natural, mas como o social, mediante o uso da ciência e

das instituições, poderia assegurar a diferença entre os sexos” (BENTO, 2006, p. 41).

Dessa forma, Money mantinha e reafirmava a tradicional dicotomia de gênero.

Além disso, as intervenções nos corpos de crianças intersexuais tinham como

matriz de inteligibilidade a heterossexualidade como norma, ou seja, pessoas com pênis

deveriam ser masculinas, desejar e manter relações sexuais com mulheres. A cirurgia

dessas crianças geralmente fabricava “meninas”, devido à maior facilidade técnica de criar

genitais femininos do que masculinos. Portanto, era criada a vagina e posteriormente, na

adolescência, o canal vaginal, tendo como pressuposto a futura penetração de um pênis.

Consequentemente, está-se produzindo cirurgicamente uma mulher, que será educada

enquanto tal e deverá sentir atração sexual por homens. À cirurgia, segue-se uma

persistente e vigilante educação dos papéis sociais adequados ao sexo atribuído (LEITE-

JÚNIOR, 2008).

O “tratamento” realizado por Money ganhou um impressionante relato feito por

John Colapinto (2001). Este jornalista apresenta um dos casos mais famosos de Money.

Trata-se da história de David, um rapaz, gêmeo idêntico de Brian, que, devido a uma

27

Segundo Leite-Júnior (2008, p. 144), “foi nesta clínica que a temática transexual ficou indissociável do

nome deste psicólogo, que acompanhou vários pacientes, e onde foi realizada a primeira cirurgia de

transgenitalização dos Estados Unidos em 1965”. 28 Embora as teses de Money tivessem como foco bebês intersexuais, suas teorizações provocaram

ressonâncias importantes na constituição científica da transexualidade (BENTO, 2006).

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circuncisão mal feita quando ainda era bebê, teve seu pênis queimado e destruído pelo

aparelho do procedimento. Os pais, atônitos com a (não) possibilidade de criar um menino

sem pênis, confiaram na promessa do dr. Money de que por meio de cirurgia, tratamento

hormonal e educação adequada, reforçando os atributos e estereótipos considerados

femininos, poderiam transformar um bebê biologicamente masculino em uma menina.

O texto, apesar da forte ênfase biológica e essencialista, denuncia os absurdos que

permeavam o “tratamento” supostamente bem sucedido de Money. Colapinto (2001)

oferece um relato sobre os conflitos familiares vividos por Bruce, que se tornou Brenda e

aos 14 anos, se torna David. O desfecho trágico dessa história é o suicídio tanto de Brian, o

gêmeo criado como menino, quanto de David, dois anos depois da morte do irmão.

Paralelamente aos trabalhos de Money, o psiquiatra e psicanalista norte-americano

Robert Jesse Stoller cria, em 1964, o conceito de “identidade de gênero”. O conceito

referia-se à mescla de masculinidade e feminilidade que todas as pessoas possuem,

ocorrendo apenas uma diferença no grau em que essas características são apresentadas em

cada pessoa. É um tipo de identidade psicológica que pode se manifestar em “desacordo”

com o sexo fisiológico. Porém, em 1968, Stoller retifica seu conceito anterior ao formular

o conceito de “identidade de gênero nuclear”. Enfatiza, dessa forma, que há um gênero

nuclear que se desenvolve na primeira infância, tornando-se, assim, imutável.

Jorge Leite-Júnior (2008) conta a história de tal mudança conceitual. Agnes, uma

jovem de 19 anos, afirma-se como uma mulher intersexual e chega até à equipe de Stoller

reivindicando a cirurgia de transgenitalização. Agnes explica que apesar de ter pênis e

testículos, ela sempre se sentiu uma mulher e que na adolescência, sem nenhuma

explicação aparente, começa a desenvolver caracteres femininos, tais como seios, formas

corporais arredondadas etc. O relato de Garfinkel (1984) sobre o caso de Agnes apresenta

com detalhes as características femininas de Agnes. Ela impressiona a todos pela sua

feminilidade “natural”, muito diferente das figuras “caricatas” representadas pelas

travestis.

A cirurgia foi realizada e considerada bem sucedida. Entretanto, sete anos após o

procedimento, Agnes admite que mentiu para a equipe. Os caracteres femininos que

apresentava não apareceram naturalmente; foram provenientes de ingestão de estrogênios

desde os 12 anos de idade, além de uma intensa reeducação comportamental para adquirir

os trejeitos femininos. Apresentou-se como uma mulher intersexual, pois já tinha

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conhecimento de que com este diagnóstico era mais fácil conseguir a cirurgia de

transgenitalização do que se apresentasse como transexual.

Com essa revelação, o psicanalista passa a intensificar sua busca pelo “verdadeiro

sexo” e a desenvolver estratégias cada vez mais rígidas para identificar as/os falsas/os

transexuais demandantes de cirurgia. Com a nova terminologia, “identidade de gênero

nuclear”, o autor afirma que tal identidade é fixada entre os 2 e 3 anos de idade. A tese

defendida é que existe um gênero central, nuclear, desenvolvido na primeira infância e que,

então, torna-se imutável. Com este conceito, é possível detectar o “verdadeiro” transexual.

Em seu livro A experiência transexual, de 1975, Stoller conclui que o homem

transexual29

é alguém que possui um pai ausente e uma mãe superprotetora e

masculinizada. Para o autor, as mães de pessoas transexuais sentem “a mais poderosa

inveja do pênis e, quanto aos pais, não são apenas incapazes de tomar parte na família

como homens masculinos, mas seu relacionamento com as esposas é distante e mal-

humorado” (STOLLER, 1982, p. 68).

Como a identidade de gênero nuclear é construída na primeira infância, o

verdadeiro transexual é aquele no qual o gênero “errado” foi instalado. Para estes casos,

Stoller acreditava que um tratamento terapêutico seria capaz de induzir o complexo de

Édipo e, assim, fazer brotar a feminilidade ou masculinidade “normal”30

. O tratamento

terapêutico só é recomendado às crianças, pois dificilmente é possível tal efeito

normalizador em adultos. Dessa forma, a cirurgia de transexualização seria uma opção

(ainda que em último caso) no “tratamento” da transexualidade.

A partir desses estudos iniciais, uma série de experts “psi” passa a analisar e tratar,

a partir de diferentes perspectivas e motivações, aqueles que ousam transitar entre os ideais

de gêneros, identidades e binarismo de corpos (Cf. Jöel Dor (1991); Catherine Millot

(1992); Colette Chiland (1998); Paulo Roberto Ceccarelli (2008), entre outros).

29

Para Stoller, o homem transexual é a pessoa com genitais masculinos que deseja eliminá-los e obter os

genitais femininos. Porém, como dito anteriormente, denomino esta mesma pessoa de “mulher transexual”,

respeitando o gênero requerente e coadunando com a terminologia utilizada pelo movimento LGBT. 30

Stoller (1982) nomeia tal tratamento como “complexo de Édipo terapeuticamente induzido”. Para tanto,

deve-se ressaltar os elementos estruturantes do que é considerado hegemonicamente como masculino e,

assim, agregar novos e positivos significados a sua genitália. Destaca que um indicador do sucesso

terapêutico é o aparecimento de hostilidade em relação à mãe e às demais mulheres. Posteriormente, a

criança passa a ter comportamentos e atração por brincadeiras agressivas, o que para Stoller, é um sinal de

masculinidade.

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A partir deste breve percurso por algumas tecnologias psi31

que produzem a

travestilidade e transexualidade, pode-se verificar o quanto esses modos de viver estão

ancorados em um sistema de sexo e gênero que pretende estabelecer fronteiras e limites

entre “normais” e “anormais”. Há nas tecnologias psicológicas um afã de ordenação do

mundo, estabelecimento de normas, adequação das pessoas às normas instituídas. Há

normas para ser homem ou mulher, assim como há normas para ser travesti ou transexual.

Quer vir a ser um desses tipos de gente? Então, entre em uma dessas caixinhas identitárias!

Em contrapartida, não é justo generalizar a multiplicidade de práticas psicológicas

somente a partir de um viés patologizante. Há frentes de resistência contra a submissão da

psicologia à lógica binária orientada pela medicina, como exemplificado em várias

pesquisas produzidas por profissionais da psicologia (Cf. PERES, 2004; ARÁN, 2006;

LIONÇO, 2009; JESUS, 2010; MURTA, 2011; PORCHART, 2012).

Outro exemplo desse enfrentamento foi o evento promovido pelo Conselho

Regional de Psicologia de São Paulo (CRP 06), cujo objetivo era refletir sobre a prática

psicológica junto ao atendimento a pessoas trans32

. Entraram em discussão vários

posicionamentos da psicologia, desde os mais submetidos aos ditames médicos,

principalmente entre as psicólogas que atuam nos serviços que oferecem o processo

transexualizador, até os mais subversivos, que afirmam a travestilidade e transexualidade

como uma das maneiras de viver, sem nenhuma associação com a patologia. Prevaleceu,

portanto, o posicionamento da psicologia a favor da despatologização de tais experiências

identitárias e o seu compromisso em construir práticas que rompam o caráter inquisitivo de

descobrir se a pessoa é ou não um/a transexual verdadeiro/a.

Portanto, se as práticas psi produzem regimes de verdade que passam a fabricar

modos de ser (HÜNING, GUARESCHI, 2005), elas também podem ser ferramentas para

questionar o viés normalizador pela qual a sexualidade é analisada, provocando rupturas

nos rótulos patologizantes, e assim, evocar a potência que as múltiplas formas de viver

podem assumir.

31 É importante demarcar que tal produção de sujeitos não é exclusividade de psicólogos/as; é também fruto

da ação de assistentes sociais, gerenciadores pessoais, conselheiros, terapeutas e todo aquele/a que se intitula

capaz de compreender a subjetividade humana. Esses profissionais, chamados por Rose (1988) de

“engenheiros da alma”, agem por meio da persuasão de suas verdades, pela atração exercida pelas imagens

de vida e do eu que oferecem. 32

Evento Identidades trans e políticas públicas de saúde: contribuições da psicologia, realizado no dia 14 de

março de 2013, na sede do CRP 06, em São Paulo.

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Interlúdio 4: Leila e sua crítica à cidadania cirúrgica

“Eu não sou a favor de rótulos. Dá vontade de dizer que eu sou Leila e

pronto”. Foi dessa forma que Leila me respondeu quando perguntei como ela se

definia.

Leila é estudante do último ano de Psicologia, curso tão pleno de

categorias, identidades e patologias, mas também com algumas brechas críticas a

essas mesmas delimitações. Além disso, é militante do movimento LGBT e

participante no grupo de trabalho sobre diversidade sexual do Conselho Regional

de Psicologia (10ª Região). Tudo isso a faz uma pessoa crítica à patologização

das experiências identitárias divergentes das hegemônicas. Tanto que foi a única

a se mostrar avessa a definições e categorias. As demais participantes dessa

pesquisa responderam prontamente que eram travesti ou transexual e logo

justificavam suas respostas explicando as diferenças entre essas categorias,

muitas vezes utilizando com bastante propriedade o discurso científico.

Em nossas conversas, Leila relata, com perplexidade, um tema presente em

um fórum de discussão de uma das redes sociais das quais participa. Uma jovem

havia publicado em sua página de relacionamento que aquele era o dia mais feliz

de sua vida, pois acabara de receber o diagnóstico médico de “transexualismo”.

“Como uma pessoa pode ficar feliz com o diagnóstico de uma doença?”. Com

essa indignação, Leila se coloca em uma posição crítica frente à imposição de ter

que ser diagnosticada como transexual para poder ter acesso à cirurgia de

transexualização e a consequente troca do nome nos documentos de identidade.

Para ela, inclusive, a troca do nome é mais importante do que a cirurgia, uma vez

que, segundo ela, diferentemente dos órgãos sexuais, os documentos são

convocados e expostos a todo o momento.

Leila fala com tristeza que sua solicitação para a mudança do prenome nos

documentos de identidade tinha sido indeferida recentemente. O impedimento à

alteração do nome é devido Leila ainda ter os órgãos sexuais masculinos.

Segundo o juiz que analisou seu caso, é impossível ter um nome feminino sem

alteração do sexo. Leila critica a concepção que o sistema jurídico tem de que

mudança de gênero é mudança da genitália. Em suas palavras: “Gênero está

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ligado a apenas um órgão entre tantos que possuímos no nosso corpo? E se eu

não quiser fazer a cirurgia? Eu terei que me mutilar para ter o meu nome na

carteira de identidade?”.

2.3 Nomes e gêneros em trânsito: processos de normalização da existência

Os documentos de identificação são objetos indispensáveis na atualidade. Não basta

afirmar ser quem se é: faz-se necessário provar quem se é, ou seja, ter testemunhos

materiais que comprovem a veracidade da nossa “identidade". A concomitância dos

elementos básicos dos documentos de identificação – o nome, a foto e a assinatura – serve

para eliminar as ambiguidades na correspondência entre o documento e seu/sua portador/a

(PEIRANO, 2009).

Como nos diz Mary Jane Spink (2011), a história dos registros civis está associada

a estratégias biopolíticas, uma vez que os Estados-nação passam a depender de cálculos,

previsões e estimativas para analisar os nascimentos e mortes, a distribuição de doenças, as

migrações, a taxa de homens e mulheres etc. Tais informações passam a ser

imprescindíveis para o gerenciamento das populações. Dessa forma, seria necessário saber

quem são cada uma das pessoas que formam a população. Nasce, assim, o registro civil

como instrumento para o governo dos outros (SPINK, M., 2011).

Na maior parte dos países europeus, até o século XIX, os registros de nascimento

eram feitos pela Igreja: são os registros de batismos. No Brasil, foi em 07 de março de

1888 que os efeitos civis dos registros de batismos foram suspensos, surgindo o Registro

Civil. Atualmente, o recém-nascido passa por duplo processo de registro: a declaração de

nascidos vivos (emitida na maternidade) e o registro civil (emitido pelo cartório). Como

diz a Lei 9.053, de 25 de maio de 1995 (que altera a redação do artigo 50 da Lei de

Registros Públicos, Lei nº 6.015, de 31 de dezembro de 1973):

Todo nascimento que ocorrer no território nacional deverá ser dado a

registro, no lugar em que tiver ocorrido o parto ou no lugar da residência

dos pais, dentro do prazo de quinze dias, que será ampliado em até três

meses para os lugares distantes mais de trinta quilômetros da sede do

cartório33

.

33

Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9053.htm#art1. Acesso em: 7 dez. 2012.

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Seguindo a análise feita por Spink (2011), além dos dispositivos biopolíticos, o

registro civil aciona dispositivos de pessoalidade. A Certidão de Nascimento dá acesso ao

“direito da personalidade” que, juridicamente envolve “o direito à vida, à privacidade e ao

nome”. Destaca-se aqui o nome como um elemento fundamental para a produção da

pessoalidade.

Em termos jurídicos, quando se fala em nome se reporta a um direito

personalíssimo, ao da própria identificação pessoal (DINIZ, 2006). Além disso, o nome é o

carro-chefe dos dados que constam em qualquer documento. Tudo, do ponto de vista

social, começa pelo nome. Sem ele a pessoa não se faz reconhecer nem é reconhecida

(MARTINS, 1991).

De acordo com Francisco Martins (1991), o prenome34

funciona como um elemento

que diferencia a pessoa dos demais membros da família. Marca a diferença de sexo e a

própria individuação da pessoa em seu grupo familiar. Já o sobrenome, é o nome de

família. É uma marca simbólica que agrega a pessoa a uma determinada família,

diferenciando-a em relação aos outros grupos em termos de parentesco.

A escolha do nome é um momento no qual os pais (ou as pessoas responsáveis

pelo/a recém-nascido/a) podem manifestar seus desejos em relação ao filho ou à filha. O

nome é escolhido a partir dos mais variados temas e razões, desde a repetição de uma

tradição até o fato de um determinado nome estar na moda ou simplesmente por sua

sonoridade. “Voluntária ou involuntariamente, no entanto, o prenome é relacionado às

fantasias dos pais” (MARTINS, 1991, p. 125).

Considerando que muitas vezes há o registro de nomes vexatórios, o parágrafo

único do artigo 56 da Lei dos Registros Públicos assim orienta os oficiais de cartório:

Os oficiais do registro civil não registrarão prenomes suscetíveis de expor

ao ridículo os seus portadores. Quando os pais não se conformarem com a

recusa do oficial, este submeterá por escrito o caso, independente da

cobrança de quaisquer emolumentos, à decisão do Juiz competente35

.

O incômodo com o nome pode ter origens diversas. Pode ser determinado por um

acontecimento histórico traumático36

, ter significados vexatórios, dúbios ou ainda devido

ao fato de que o nome atribuído à pessoa quando do seu nascimento ser incompatível com

sua situação adulta, como no caso das pessoas travestis e transexuais.

34

Denominado neste trabalho simplesmente por “nome”. 35

Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L6015original.htm. Acesso em: 11 dez. 2012. 36

Como exemplo, várias pessoas no pós-II Guerra Mundial solicitaram a mudança do nome Hitler ou mesmo

Adolphe devido à alusão nazista.

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Com efeito, os pais escolhem o nome da criança recém-nascida e ela precisa se

tornar esse nome. Nome este que carrega uma série de características: bonito ou feio,

tradicional ou moderno, nativo ou estrangeiro, interessante ou estranho, e principalmente,

masculino ou feminino. Em nossa língua vernácula, os nomes próprios indicam com muita

clareza, exceto raras exceções, o sexo da pessoa a qual se refere. Por isso, travestis e

transexuais sofrem uma série de constrangimentos por permanecerem com um nome nos

documentos e outro na vida social. Vivem situações de angústias e de conflitos que lhes

dificultam exercer as mais simples atividades cotidianas (SZANIAWSKI, 1998;

ZAMBRANO, 2005).

Dessa forma, a alteração do nome civil é uma das reivindicações mais importantes

para aqueles/as que vivem no trânsito de gêneros, como apresentado pela história de Leila.

A mudança do nome nos documentos de identidade é de suma relevância para ela, pois o

uso de documentos adequados ao seu modo de viver pode ser um significativo instrumento

para minimizar as humilhações que vivencia diariamente.

Porém, mesmo sendo explícito que o nome próprio é fruto de uma escolha alheia à

vontade daquele que o/a carrega, este é considerado um bem inalienável e não é possível

renunciar a ele. A mudança de nome está condicionada à comprovação de que o mesmo

causa prejuízo à pessoa (DINIZ, 2006).

Seguindo Mário Carvalho (2011), atualmente há duas possibilidades de alteração de

nome ou de nome e sexo no registro civil para travestis e transexuais. A primeira é pleitear

judicialmente a inclusão do nome feminino como “apelido público notório”, previsto no

artigo 58 da referida Lei de Registros Públicos. Com este procedimento não se exclui os

outros nomes e, muito menos, altera o sexo nos documentos de identificação. Interessante

notar que todos/as entrevistados/as nessa pesquisa citaram o nome social de pessoas

famosas como uma forma aceita socialmente de utilização de um nome que não aquele

com o qual fora registrado/a ao nascer, tais como o caso do Lula, Xuxa, Pelé etc.

A segunda maneira é por meio de um processo judicial de alteração de nome ou de

nome e sexo, que na maioria dos casos só é possível após a realização da cirurgia de

transgenitalização (CARVALHO, 2011).

O Ministério da Saúde, por meio da Portaria GM nº 1.707, de 18 de agosto de 2008

(BRASIL, 2008), formalizou diretrizes técnicas e éticas para a atenção ao Processo

Transexualizador no Sistema Único de Saúde (SUS) em consonância aos critérios

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estipulados pelo Conselho Federal de Medicina37

. O Processo Transexualizador

compreende um conjunto de técnicas envolvido no processo de transformação dos

caracteres sexuais pelos quais passam pessoas transexuais. Refere-se ao estabelecimento de

diretrizes para as ações necessárias à garantia do direito à saúde exclusivamente

circunscrita ao trânsito de gênero (LIONÇO, 2009).

O acesso à cirurgia é condicionado ao diagnóstico de “transexualismo”. Este

diagnóstico é realizado a partir de uma série de exigências que o/a candidato/a à cirurgia

deve obrigatoriamente se submeter. Os protocolos para o processo transexualizador

envolvem, além da terapia hormonal, exames de rotina e teste de vida real – que consiste

na obrigatoriedade do/a candidato/a usar durante todo o dia as vestimentas do gênero

identificado –, a submissão por um determinado tempo de terapia, assim como de testes de

personalidade. Esse procedimento visa eliminar o diagnóstico de outros transtornos de

identidade e para que a equipe não tenha dúvida de que se trata de um/a “verdadeiro/a

transexual”. Dessa forma, pretende-se assegurar que não haverá arrependimento do/a

candidato/a.

Entretanto, passar por todos esses procedimentos não garante a aptidão à cirurgia.

Esta será concedida se a equipe responsável (médicos, psiquiatras, psicólogos etc.) for

convencida de que o/a candidato/a é realmente um/a transexual. Porém, além dos

procedimentos realizados pela equipe, o/a candidato/a constrói uma narrativa de vida capaz

de convencer a equipe hospitalar, durante os dois anos de acompanhamento, que se trata de

um homem/uma mulher em um corpo equivocado (BENTO, 2006).

A exemplo disso, o filme Transamérica traz uma cena interessante, na qual Bree,

personagem principal, está em uma das entrevistas para a obtenção da autorização para

realizar a cirurgia. Ela mede suas palavras e responde às perguntas do médico seguindo

aquilo que a encaixa no perfil de uma transexual “verdadeira”. Esta cena ilustra uma

prática bem comum, pois as/os candidatas/os à cirurgia já conhecem os protocolos e fazem

uso desse conhecimento para alcançar o que tanto almejam: a cirurgia para sanar a

ambiguidade sexo/gênero (BENTO, 2006).

Além disso, essa cena mostra que as pessoas candidatas à cirurgia não são vítimas

passivas de um diagnóstico friamente dado pela equipe médica. Elas são parte fundamental

na construção de seu diagnóstico, pois são as descrições de suas sensações que são

37 O Conselho Federal de Medicina estabelece os critérios de viabilidade do procedimento de

transgenitalização e demais intervenções sobre caracteres por meio da Resolução nº 1.652, de 2002.

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tomadas como material para o trabalho do diagnóstico clínico (BARONI; VARGAS;

CAPONI, 2010).

De maneira geral, o que se percebe é que todos esses protocolos estão orientados

por normas de gênero, de comportamentos e de desejos supostamente adequados para um

gênero ou para o outro. Portanto, espera-se que uma pessoa que reivindica a cirurgia para

se “transformar” em uma mulher, por exemplo, tenha os atributos considerados como

femininos: delicada, desejar casar-se, ter filhos (adotados), cuidar da casa e do marido etc.

O que se tem aí são normas comportamentais consideradas socialmente como femininas,

construções sociais forjadas coletivamente ao longo do tempo. Ou seja, não há nada

essencialmente feminino, uma vez que o próprio conceito de “feminino” é uma invenção.

Um instigante acontecimento durante um encontro intitulado “Transexualidade,

Travestilidade e Direito à Saúde”, promovido pela Comissão de Cidadania e Reprodução

(CCR) em março de 2010 em São Paulo, anima esse debate. Uma mulher transexual

perguntou ao público presente, a grande maioria composta por mulheres cisgênero38

, se

alguém, nascida biologicamente mulher, se encaixava na descrição do que é pertencer ao

sexo feminino presente nos protocolos para a autorização da cirurgia. O silêncio imperou,

mas foi posteriormente quebrado pelas risadas diante da constatação do quão obsoleto é o

padrão de mulher reconhecido. Ficou claro que não há uma maneira essencial de ser

mulher. Por que haveria, então, um verdadeiro modo de ser mulher transexual?

Esse padrão de mulher exigido de uma transexual contrasta com a intensa luta que

essas pessoas enfrentam para viver da maneira que elas desejam. Como exigir submissão a

essas mulheres que enfrentam a família, os seus valores religiosos, os preconceitos sociais

para viver da maneira que se identificam?

Além disso, o condicionamento da aplicabilidade da resolução 1.652/02, do

Conselho Federal de Medicina para alteração dos caracteres sexuais exclusivamente para

os casos diagnosticados como “transexualismo” excluem as travestis desse procedimento.

Como as travestis não demandam necessariamente a cirurgia de transgenitalização, elas são

excluídas do acesso aos recursos médicos para as transformações corporais, como a

hormonioterapia. A exclusão do acesso aos serviços de saúde submete as travestis à

automedicação ou à ação das "bombadeiras” – pessoas, geralmente travestis mais velhas,

que injetam silicone industrial para a modelagem dos corpos das travestis (LIONÇO,

38

Cisgênero (do latim cis = do mesmo lado) é um adjetivo usado para se referir a uma pessoa na qual sua

identidade de gênero está em concordância com o gênero que lhe foi atribuído ao nascer. Dessa forma, uma

pessoa cisgênero é alguém que está adequado ao sistema binário de gêneros.

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2009). Ou ainda, as travestis ficam refém dos parcelamentos e juros abusivos no

pagamento dos serviços de modificações corporais oferecidos por clínicas de estética para

essa população.

Lionço (2009) defende a ideia de que a aplicabilidade dos procedimentos médicos-

cirúrgicos aos casos de “transexualismo” está orientada por uma concepção corretiva dos

corpos. Faz-se necessário adequar o corpo à subjetividade identificada, sendo a cirurgia o

tratamento reparador do transtorno identitário apresentado.

A hipótese aqui sustentada é a de que a regulamentação da aplicabilidade

dos procedimentos médico-cirúrgicos sobre caracteres sexuais é restrita a

casos de transexualismo porque se compreende, mediante a reparação

cirúrgica, que uma certa normalidade poderia ser restituída. Como as

travestis não demandam essa correção, reafirmando a insuficiência da

lógica binária em dar conta das experiências subjetivas de

posicionamento diante da diferença sexual, são excluídas do acesso aos

serviços e aos recursos médicos em seus processos de transformação

corporais, não dispondo de iguais oportunidades no acesso aos serviços e

tecnologias disponíveis no campo médico (LIONÇO, 2009, p. 55).

Vê-se, então, a manutenção do binarismo identitário. O processo transexualizador

ofertado pelo SUS visa à reparação, a conformação dos corpos às normas de gênero que

associam sexo-corpo-gênero-desejo-identidade. Tal processo opera a partir da

normatização das condutas, na qual a travestilidade não tem inteligibilidade. De acordo

com a heteronormatividade, não há espaço para uma mulher com pênis, logo, não cabe à

medicina ou ao Estado alimentar à “anormalidade”. É visível, pois, o teor moral e

normativo que abrange as delimitações da vida travesti. Aqueles/as que apoiam sua

identidade na ambiguidade, que sustentem também os recursos para a sua vivência

supostamente não verdadeira, falsa, incoerente, anormal.

Já àqueles/as que desejam corrigir seus corpos equivocados, abrem-se os portões da

ciência médica. Essas pessoas são consideradas doentes, transtornadas psicologicamente e

para elas a única alternativa é a cirurgia para diminuir a ambiguidade e possibilitar uma

vida “normal”, ou seja, casar-se (com uma pessoa do outro sexo), ter filhos (adotivos),

constituir uma família... Entretanto, de acordo com relatos de várias transexuais operadas,

mesmo a realização da cirurgia não apaga a sombra da “anormalidade”. Vive-se sempre na

borda, no limite, na suspeita de “parecer ser o que não se é”.

Por tudo exposto, considera-se que a exigência de alteração de nome no registro

civil condicionada à cirurgia de transexualização se configura como uma “cidadania

cirúrgica”, ou seja, pessoas trans só têm acesso a direitos se cumprirem uma série de

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requisitos médicos e se submeter a um procedimento cirúrgico para apagar os incômodos

da ambiguidade no que se refere à suposta coerência entre corpo-gênero-sexualidade

(CABRAL, 2010)39

. Tal exigência para a mudança do nome exclui um grande número de

pessoas que se identificam com o sexo diferente daquele em que foram registradas ao

nascer, mas que não desejam se submeter à referida cirurgia. Essa situação é abordada por

Márcia Arán e Daniela Murta (2009, p. 21):

Assim, constatamos que alguns homens e mulheres transexuais podem

desejar a cirurgia de transgenitalização pela exclusiva necessidade de

reconhecimento social mais amplo, o que nos faz pensar que a cirurgia

não necessariamente seria indicada se vivêssemos num mundo onde a

diversidade de gênero fosse possível. Estas pessoas não apenas já têm

uma vida afetiva e sexual satisfatória, como também já são reconhecidas

pelo gênero a que dizem pertencer e em outras condições poderiam

permanecer como estão, desde que pudessem realizar a mudança do nome

civil.

Dois Projetos de Lei tentaram regulamentar a alteração do nome civil sem a

exigência da cirurgia de transexualização, porém sem resultados até o presente momento.

O primeiro é o Projeto de Lei nº 6.655, de 2006, de autoria do então deputado federal

Luciano Zica (PT-SP), que exclui a necessidade de realização da cirurgia para a alteração

de prenome, mas ainda requer um laudo médico que reconheça que se trata de um/a

transexual. Há ainda o Projeto de Lei nº 2.976, de 2008, cuja autoria é da então deputada

federal Cida Diogo (PT-RJ), que possibilita que pessoas com “orientação de gênero

travesti” possam acrescentar um prenome ao nome de registro, sem mencionar nenhuma

alteração de sexo (CARVALHO, 2011).

Como não houve continuidade das discussões sobre os projetos acima citados, a

falta de uma legislação clara a respeito do assunto serve de pretexto para o exercício de

posturas conservadoras e preconceituosas, uma vez que as decisões judiciais refletem os

valores trazidos pelos julgadores. Não são raros os casos de transexuais que, mesmo

operadas/os, tiveram negado o seu pedido de retificação do registro civil. Em

contrapartida, há casos de decisões favoráveis à retificação do registro civil por pessoas

transexuais ainda não operadas, mas já em tratamento para a cirurgia.

39 Como disse o ativista Mauro Cabral, no debate de uma das mesas redondas durante o seminário

“Transexualidade, Travestilidade e Direito à Saúde”, organizado pela Comissão de Cidadania e Reprodução

(CCR): “[...] e se a cirurgia marca o ingresso na cidadania, prefiro morrer sendo estrangeiro, não é porque

faço uma cirurgia que me transformo em cidadão. Com isso não quero dizer que as pessoas não tenham

direito a essas cirurgias, mas sim que a cidadania não pode depender dessas cirurgias. E se depender dessas

cirurgias, não é uma vitória e, sim, um problema” (CABRAL, 2010, p. 313).

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Porém, há pessoas com a Leila, que não têm a intenção de realizar a cirurgia de

transgenitalização, seja por criticar essa cidadania cirúrgica ou por não se sentir

incomodada por seus órgãos sexuais de nascença ou mesmo sentir prazer com eles, ou

porque não querem se submeter ao procedimento, que envolve riscos, como qualquer

intervenção cirúrgica de grande complexidade etc. Então, por que negar a alteração do

nome civil a pessoas que, mesmo não operadas, são reconhecidas socialmente por um

nome que não condiz com os presentes em seus documentos?

Percebe-se que a mudança do nome civil é alvo de muitas críticas e de receios por

parte do Estado. Trata-se de uma segurança jurídica que visa evitar fraudes, sobretudo,

impedindo o uso do novo nome por pessoas que tivessem a finalidade de buscar possível

isenção de responsabilidade civil ou penal. Entretanto, no caso de travestis e transexuais, a

alteração do nome se reveste de maior complexidade, uma vez que é enviesada pela

questão da sexualidade: preconceitos, discriminações, não complacência com as escolhas

de travestis, transexuais e demais seres abjetos (BUTLER, 2003).

Com a dificuldade em torno da alteração do nome, percebe-se também a

manutenção do binarismo identitário, a ênfase nos aspectos biológicos na produção dos

modos de ser. Alterar ou não o nome nos registros civis é uma forma de controle da

população, transformando alguns modos de ser viáveis e outros inviáveis; uns normais e

outros abjetos. É por meio dessa produção da abjeção que se autoriza que as pessoas

“normais” discriminem as “anormais”, aqui exemplificadas pelas travestis e pelas/os

transexuais.

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CAPÍTULO 3

A PORTARIA DO NOME SOCIAL COMO ESTRATÉGIA DE

GOVERNAMENTALIDADE

As leis não bastam. Os lírios não nascem da lei.

Carlos Drummond de Andrade

Em 10 de abril de 2008, o Governo do Estado do Pará, através da Secretaria de

Educação, promulga a Portaria Estadual nº 016/2008-GS, que estabelece que “a partir de

02 de janeiro de 2009, todas as Unidades Escolares da Rede Pública Estadual do Pará

passarão a registrar, no ato da matrícula dos alunos, o prenome social de Travestis e

Transexuais” (Diário Oficial nº 31148 de 14/04/2008, exposto no Anexo A). O prenome

social – o nome pelo qual a pessoa deseja ser identificada – deverá ser utilizado no registro

de chamada e adotado nas cadernetas escolares, históricos, declarações e demais registros

das instituições de ensino.

A Portaria do Nome Social é uma intervenção que visa à permanência ou retorno de

travestis e transexuais para as escolas. É uma estratégia que visa estruturar um possível

campo de ação, tanto de travestis e transexuais, quanto da escola em um sentido mais

amplo, uma vez que professores/as, estudantes, profissionais e regulamentações diversas

passam a ser envolvidos nessa ação. Nesse sentido, a portaria é uma estratégia de governo,

mais precisamente, de governamentalidade (FOUCAULT, 2008a).

O conceito de governamentalidade é o fio condutor que perpassa o argumento desta

pesquisa, uma vez que articula as duas esferas analíticas fundamentais para o

desenvolvimento da tese: as tecnologias de dominação dos outros e as tecnologias de si.

Portanto, em um primeiro momento farei uma discussão panorâmica acerca da

teorização sobre governamentalidade empreendida por Michel Foucault, uma vez que será

a chave analítica que dará base para as articulações posteriores. Apresentar a emergência

da progressiva governamentalização do Estado é útil para a discussão sobre o governo da

conduta, sobre os modos como somos governados. Em seguida, destaco algumas políticas

que visam à inserção sobre a diversidade sexual no âmbito educacional. Tais políticas

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formam as condições de possibilidades para a emergência de uma legislação que tem como

alvo de intervenção a vida de travestis e transexuais. Por fim, apresento o processo de

formulação da Portaria do Nome Social: emergência, obstáculos, efeitos e críticas.

Interlúdio 5: Raica: o que pode um nome na chamada?

Show de calouros no programa televisivo de Sílvio Santos. Em um

domingo qualquer, Raica, entre 7 e 8 anos de idade, foi apresentada a uma

forma de vida ainda não conhecida. Cores, brilhos, expressão de alegria e

uma pessoa que transgredia a fronteira aparentemente tão demarcada entre

homens e mulheres. Aquela apresentação de dublagem de música feita por

um/a transformista foi decisiva na vida de Raica. A partir daí ela soube o que

queria ser e fazer da vida: ir a São Paulo e viver para se produzir, fazer

shows, dançar, brilhar.

E começou prontamente a planejar a concretização desse sonho.

Perguntou a uma travesti que morava em sua rua o que ela fazia para “dá

peito”. Desvendado o mistério, passou a roubar os anticoncepcionais das suas

irmãs mais velhas e os tomava escondido. Depois, passou a usar o próprio

dinheiro, que sua mãe lhe dava esporadicamente, para comprar os hormônios.

Entre 15 e 16 anos, almejando ter a vida idealizada desde o fatídico dia

do programa Silvio Santos, partiu para São Paulo. Viajou de carona por três

dias e três noites até descer na Marginal Pinheiros. E como era de se esperar,

a nova vida foi bem diferente do brilho transmitido pela televisão. Começou a

vida na prostituição. Aplicou, de forma caseira, silicone no seio e nos glúteos.

Contraiu o vírus HIV. Foi presa por um ano e meio no Complexo Presidiário

do Carandiru. Sofreu um acidente de moto, quebrou a clavícula, teve o

pescoço rasgado, levou tiro, tornou-se viciada em drogas, mendigou pelas

ruas e seu silicone no seio estourou.

Diante de tanta violência, voltou para Belém, para sua casa, para sua

mãe. E quis voltar a estudar. Havia abandonado a escola quando os efeitos

dos hormônios se tornaram aparentes e a violência sofrida na escola

insuportável. Quis voltar para a escola para ter outras oportunidades de vida.

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Acreditava que, voltando para a escola, conheceria os seus direitos e teria

instrumentos para desmontar algumas barreiras que se formaram na sua

frente. Voltou para cursar a 3ª série do ensino fundamental, mas interrompeu

os estudos por diversas vezes. Reclamava do preconceito vivido, das greves, da

falta de apoio por parte dos/as professores/as e por não ser chamada por seu

nome social.

Somente retomou os estudos quando soube que a escola iria aceitar o

nome que ela desde garota havia adotado como seu: Raica. Foi o incentivo

que faltava para o retorno à sala de aula. Raica, durante a 1ª Conferência

GLBT do Estado do Pará, quando foi assinada a Portaria do Nome Social,

declarou: “O meu nome vai estar na chamada. Agora sim, tenho motivos para

voltar a estudar”40

.

3.1 A governamentalidade e as formas de conduzir a conduta

Como somos governados? Como nos governamos? Quais as estratégias utilizadas

para governar? Por que somos governados (e nos governamos) dessa forma e não de outra?

Eis as questões que orientam a discussão sobre a governamentalidade aqui apresentada.

Para compreensão da noção de governamentalidade – esse conjunto de técnicas

cujo objetivo é conduzir as condutas da população nas sociedades ocidentais –,

acompanharei o percurso traçado por Foucault (2008a) no curso Segurança, Território,

População, ministrado em 1978 no Collège de France. Nesse curso, o autor aponta três

principais formas de governamentalidade: uma proto-governamentalidade caracterizada

pelo poder pastoral; a governamentalidade presente na razão de Estado; e a

governamentalidade liberal41

.

Para Foucault (2008a), o poder pastoral, já apresentado no capítulo anterior, é um

esboço da governamentalidade, por isso, uma proto-governamentalidade. O destaque dado

ao poder pastoral durante o curso Segurança, Território, População tem como objetivo

40

Raica aparece em um vídeo institucional produzido pela Secretaria de Justiça e Direitos Humanos do Pará

sobre a 1ª Conferência GLBT do Estado do Pará afirmando que ia retorna aos estudos, pois sabia que seu

nome seria finalmente respeitado pela escola. 41

Para a discussão sobre a governamentalidade liberal será usado como base, além do curso de 1978, o curso

intitulado Nascimento da Biopolítica, de 1979, no qual Foucault (2008b) centraliza seus esforços analíticos

sobre o neoliberalismo.

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mostrar o processo pelo qual essa forma de poder deu lugar a uma arte de conduzir, de

controlar e manipular as pessoas. Dito de outro modo, o poder pastoral foi o pano de fundo

para a governamentalidade que será desenvolvida a partir do século XVI.

Desse modo, Foucault (2008a) analisa a passagem do pastorado para o governo

político das populações a partir das insurreições de conduta do século XVI, mais

especificamente, a Reforma e a Contrarreforma. Segundo o autor, as insurreições não

provocaram o desaparecimento do pastorado, mas sim, uma proliferação geral das técnicas

de conduta, uma vez que a Reforma e a Contrarreforma possibilitaram ainda mais controle

e influência na vida das pessoas.

Não houve, portanto, passagem do pastorado religioso a outras formas de

conduta, de condução, de direção. Houve uma verdadeira intensificação,

multiplicação, proliferação geral dessa questão e dessa técnica de

conduta. Com o século XVI, entramos na era das condutas, na era das

direções, na era dos governos (FOUCAULT, 2008a, p. 309).

Além da dissidência religiosa, esse período foi marcado pelo processo de

concentração estatal, uma vez que a estrutura política feudal foi gradualmente substituída

pela formação dos Estados e pela centralização do poder político. Esta instabilidade social,

provocada pelas mudanças históricas em desenvolvimento, tornou o problema de como ser

governado, por quem, de que forma, uma questão fundamental. Em que medida o poder

soberano deve encarregar-se do governo das pessoas? De acordo com que racionalidade o

soberano deve governar? A racionalidade pastoral deve ser substituída por uma

racionalidade de governo? Essas são algumas questões colocadas por Foucault no intuito

de mostrar que o século XVI é marcado pela busca de uma definição de governo que seja

específica ao exercício da soberania. Ou seja, “o governo deve buscar sua razão”

(FOUCAULT, 2008a, p. 318).

Tal razão de governo começa a ser arquitetada a partir do século XVI através de um

grande número de tratados que não se caracterizam como conselhos aos príncipes, comuns

na Idade Média, mas ainda não se assemelhavam com as teorizações do que vinha a se

tornar a ciência política dos séculos posteriores. Tais tratados, definidos por Foucault

(2008a) por “arte de governar”, constituíam-se em um conjunto de saberes que procuravam

encontrar uma razão de Estado.

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75

Na famosa aula de 1º de fevereiro de 197842

, Foucault se apoia no livro Le miroir

politique (1567), de Guillaume La Perrière, no qual há a seguinte definição de governo: “a

correta disposição das coisas, das quais alguém se encarrega para conduzi-las a um fim

adequado” (FOUCAULT, 2008a, p. 130). Desse modo, já se percebe uma diferença

fundamental entre essa forma de exercer o governo daquela encontrada na soberania. Se na

soberania a preocupação central do soberano era a de conservar seu território, nesta nova

“arte de governar” é a disposição de todas as coisas que compõe o poder. Por “coisas”, La

Perrière se referia à complexidade de “homens e coisas”, ou seja, a relação entre a

população e as riquezas, os recursos, o território, os costumes etc.

Ao longo do século XVII estas artes de governar43

irão se cristalizar em torno da

problemática de uma razão de Estado44

. Razão de Estado diz respeito à racionalidade

própria e particular da atuação estatal. Foucault (2008a) destaca o texto de Chemnitz que

data de 1647 no qual define razão de Estado como:

Certo cuidado político que se deve ter em todos os negócios públicos, em

todos os conselhos e em todos os desígnios, e que deve tender

unicamente à conservação, à ampliação e à felicidade do Estado, para o

que há que empregar os meios mais fáceis e mais prontos (FOUCAULT,

2008a, p. 343).

Trata-se, portanto, de outra maneira de pensar o poder, outro princípio de

inteligibilidade de governar cujo caráter conservatório tem no Estado sua finalidade última:

integridade, fortalecimento, ampliação.

O século XVII precisou desenvolver um conjunto de meios através dos quais o

Estado pudesse crescer e ao mesmo tempo manter sua ordem. Formaram-se, então, dois

conjuntos de tecnologias políticas: o dispositivo diplomático-militar e a polícia. O primeiro

possibilitou o processo denominado por Foucault (2008a) de equilíbrio europeu, ou seja,

uma limitação externa da mobilidade, da ambição, da ampliação dos Estados. Esse

equilíbrio se dava por meio de um cálculo de forças para que o incremento de cada Estado

42

Publicada anteriormente com o título “A governamentalidade”, último e enigmático capítulo da coletânea

de textos de Michel Foucault intitulada Microfísica do poder, publicada em 1979, sob organização e tradução

de Roberto Machado. 43

É digno de nota que tal “arte de governar” só conseguiu se exercer em sua plenitude a partir do século

XVIII e esteve ligada à expansão demográfica europeia, à abundância monetária oriunda do mercantilismo,

ao aumento da produção agrícola etc. Em síntese, Foucault (2008a) credita o que ele chama de “desbloqueio

da arte de governar” à emergência da população como um problema a ser governado, como finalidade última

do governo. 44

É importante ressaltar que a razão de Estado a que Foucault (2008a) se refere não é entendida na acepção

moderna do termo, ou seja, como aquilo que justifica o desrespeito às regras formais do jogo político em

nome de um interesse superior onde, em geral, está presente o arbítrio e a violência.

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não provocasse a ruptura do conjunto. Trata-se, então, de uma estratégia externa de

conservação do Estado.

A polícia, outra tecnologia política nesse período, era responsável pelo crescimento

ordenado das forças internas do Estado. Diferente do conceito atual, a polícia tinha a

função de dispor de um conjunto de mecanismos que visavam assegurar a ordem, o

crescimento das riquezas e as condições de manutenção da saúde da população. A polícia é

o conjunto das “leis e regulamentos que dizem respeito ao interior de um Estado e

procuram consolidar e aumentar o poderio desse Estado, que procuram fazer um bom uso

das suas forças” (FOUCAULT, 2008a, p. 422). Em resumo, o objetivo da polícia era a

garantia do bom uso das forças do Estado.

Portanto, a polícia visava todas as atividades da população que tivessem relação

com o Estado, uma vez que a atividade das pessoas era considerada um elemento

constitutivo das forças do Estado. Nesse sentido, a polícia era responsável em saber o

número de habitantes de uma população, os meios de subsistência e a saúde, assim como

da circulação das mercadorias, fruto das atividades das pessoas.

O que a polícia abrange assim é, no fundo, um imenso domínio que,

poderíamos dizer, vai do viver ao mais que viver. Quero dizer com isso: a

polícia deve assegurar-se de que eles tenham de que viver e, por

conseguinte, tenham de que não morrer muito, ou em não morrer em

quantidade demais (FOUCAULT, 2008a, p.438).

Para cumprir seu objetivo é fundamental que a polícia conheça a população em

todos os seus âmbitos. A população e suas regularidades, tais como taxa de natalidade,

mortalidade, longevidade etc., aparecem como um novo objeto de atuação do poder. É o

embrião do biopoder (FOUCAULT, 2003b): um investimento político sobre a vida. O

autor indica que o biopoder se desenvolveu a partir do século XVII apoiando-se em dois

polos: a disciplina e a biopolítica.

O Estado de polícia é um exemplo do poder disciplinar. Foucault (2008a) nos

descreve um Estado de polícia regido através do regulamento permanente e intensamente

detalhado da população, onde a disciplina era a estratégia política de controle.

Estamos no mundo do regulamento, estamos no mundo da disciplina. Ou

seja, é necessário ver que essa grande proliferação das disciplinas locais e

regionais a que pudemos assistir desde o fim do século XVI até o século

XVII nas fábricas, nas escolas, no exército, essa proliferação se destaca

sobre o fundo de uma tentativa de disciplinarização geral, de

regulamentação geral dos indivíduos e do território do reino, na forma de

uma polícia que teria um modelo essencialmente urbano (FOUCAULT,

2008a, p. 458).

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Porém, esse Estado de polícia do século XVII começa a se desarticular devido a

alguns problemas econômicos. Os economistas, particularmente os fisiocratas, criticavam a

prática regulatória da polícia, considerando-a inútil, pois há uma regulação espontânea do

curso das coisas. Seguindo essa concepção, a população teria uma naturalidade própria,

efeito do vínculo espontâneo entre os indivíduos, com mecanismos próprios de regulação e

transformação que independem do Estado (crescimento, decrescimento, deslocamentos).

O que se percebe é a emergência de uma nova racionalidade política, uma nova

governamentalidade praticamente oposta ao Estado de polícia disciplinar. Se com a

disciplina há uma divisão bem demarcada do que é proibido e do que é permitido – uma

vez que ela concentra, encerra, protege, regula até os menores detalhes –, no emergente

Estado de governo, também chamado de Estado de seguridade, não há proibições nem

prescrições; sua função é regular a realidade como esta se apresenta45

.

O campo está fértil para a emergência do liberalismo que, em linhas gerais, tem

como principal referência e instrumento da prática governamental o modelo econômico.

Foucault (2008b, p. 42) nos fala de uma “conexão da economia política à razão de Estado”,

na qual o Estado se beneficia ao interferir o mínimo possível nas práticas de mercado. Esse

novo exercício do governo “é atravessado pelo princípio: ‘sempre se governa demais’ – ou,

ao menos, é preciso sempre suspeitar que se governa demais” (FOUCAULT, 2008a, p.

433).

A função do Estado não é mais proibir, decretar, regulamentar, mas tão somente

regular os processos naturais da população. “Essa gestão terá essencialmente por objetivo,

não tanto impedir as coisas, mas fazer de modo que as regulações necessárias e naturais

atuem, ou também fazer regulações que possibilitem as regulações naturais”

(FOUCAULT, 2008a, p. 474).

Um dos traços mais importantes do liberalismo é o princípio de liberdade. Como

nos diz Foucault (2008b, p. 86), a sociedade liberal é consumidora de liberdade “na medida

em que só pode funcionar se existe efetivamente certo número de liberdades”: do mercado,

do vendedor e do comprador, de propriedade, de discussão etc.

45

É importante ressaltar que não há uma sucessão simples e linear entre a soberania, a disciplina e a

sociedade de segurança. Esta última abarca as velhas estruturas da lei, da soberania, como também incorpora

os mecanismos disciplinares (FOUCAULT, 2008a).

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Com efeito, se há o consumo de liberdades, faz-se necessário, de um lado, produzir

tais liberdades e de outro, organizá-las e controla-las. A governamentalidade liberal fará

uso, portanto, de dispositivos de segurança para determinar até que ponto as liberdades

individuais vão constituir um perigo para o interesse coletivo. Tal jogo entre liberdades e

segurança é central para a governamentalidade liberal que ora emergia (FOUCAULT,

2008a).

Foi a partir da emergência dos dispositivos de segurança – essas técnicas de

governo que se destinam aos fenômenos variáveis da população, tais como natalidades,

mortes, crescimentos, reprodução etc. – que a biopolítica, outro eixo do biopoder, pôde se

desenvolver. Pode-se perceber, então, a articulação fundamental entre o nascimento da

biopolítica e a governamentalidade liberal que tem nos dispositivos de segurança seu

instrumento técnico essencial. Nesse sentido, a biopolítica é imanente ao liberalismo, uma

vez que é preciso dispor de dispositivos de segurança para que a população não morra em

demasia, para que tenham empregos, para que se estabeleça o consumo e para manter o

mercado.

É interessante retomar a discussão sobre o pastorado, uma vez que Foucault

(2010b) afirma que o Estado de governo liberal herdou algumas características do poder

pastoral. Nessa nova configuração de governo, não se trata mais de conduzir o rebanho

para a salvação no plano pós-morte, mas de assegurá-la neste mundo. “E, nesse contexto, a

palavra salvação tem significados diversos: saúde, bem-estar (isto é, riqueza suficiente,

padrão de vida), segurança, proteção contra acidentes” (FOUCAULT, 2010b, p. 281).

A preocupação com tal “salvação” começa pela infância, oferecendo condições de

educação a todos; em seguida serão criadas políticas de emprego e seguridade social,

acesso à moradia, à saúde, entre outras ações. Tais políticas visam manter os padrões de

vida e de consumo das pessoas. Trata-se do Estado de Providência (EWALD, 1993) ou do

Estado de bem-estar social, que consolida uma nova face da biopolítica ao ratificar o pacto

de segurança entre as instituições políticas e os cidadãos.

A partir desse pacto, as instituições reguladas pelo Estado tentam garantir

que a vida está protegida diante das mais diversas incertezas, acidentes,

prejuízo e riscos. Se o indivíduo está doente, ele tem a seguridade social;

se ele não tiver trabalho, pode ser beneficiado pelo seguro desemprego, se

houver muitos delinquentes na sociedade, é garantida sua correção e uma

boa vigilância policial (CANDIOTTO, 2011, p. 92).

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Porém, não vivemos mais no liberalismo clássico caracterizado pelo Estado de

providência. Foucault (2008b) mostra como o liberalismo se transformou, a partir de

meados do século XX, para o que se convencionou chamar de neoliberalismo46

. Enquanto

no liberalismo a liberdade de mercado era considerada espontânea, devendo deixar livres

para que se estabeleça a ordem natural das coisas, no neoliberalismo, a liberdade não é

vista como natural e por isso deve ser continuamente governada.

No neoliberalismo, “a economia é essencialmente um jogo [...] e o Estado tem por

função essencial definir as regras econômicas do jogo e garantir que sejam efetivamente

bem aplicadas” (FOUCAULT, 2008b, p. 277). O jogo neoliberal tem como propósito

principal convocar a todos/as para participar de redes sociais e de mercado.

Seguindo a problematização foucaultiana, Maura Lopes (2009) fala das normas

neoliberais instituídas com a finalidade de criar e conservar o interesse de cada indivíduo

de entrar e se manter no jogo neoliberal. A primeira regra desse jogo é se manter sempre

em atividade. Não é permitido que ninguém fique fora das malhas que dão sustentação aos

jogos de mercado. O Estado e o mercado estão cada vez mais articulados e dependentes na

tarefa de educar a população para que ela viva em condições de sustentabilidade. A

segunda regra é a de que todos devem estar incluídos, mas em diferentes níveis de

participação. Não se admite que alguém perca tudo ou que fique sem jogar. É necessário

que se permaneça no jogo. A terceira regra é desejar permanecer no jogo. É o desejo que

faz com que ninguém fique de fora e para que isso aconteça, a capacidade de consumir

deve estar instalada.

No neoliberalismo, o ponto em comum entre o econômico e o social é a regra da

não exclusão. Portanto, a inclusão é um imperativo neoliberal para manutenção de todos/as

na rede do mercado (ROOS, 2009). Incluir para vigiar, governar, administrar. Como nos

diz Sílvio Gallo (2009, p. 9):

Parece ser necessário que a sociedade defenda-se das diferenças,

contenha-as num padrão de normalidade, para que possam ser

administradas, governadas, para que não fujam ao controle, uma vez que

não teríamos como saber as consequências de um acontecimento dessa

natureza.

46

O neoliberalismo do século XX, seja na forma do neoliberalismo alemão (chamado de ordoliberalismo) ou

do neoliberalismo norte-americano, emerge como resposta à “crise do liberalismo”, em síntese caracterizada

pelas ameaças à liberdade produzida pelo aumento do custo econômico do exercício da própria liberdade,

assim como pelo socialismo, nacional-socialismo e fascismo (FONSECA, 2012).

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É nesse cenário que a educação encarna um dos papéis fundamentais da biopolítica.

A educação e suas políticas de inclusão funcionam como um dispositivo biopolítico a

serviço da segurança das populações, assegurando um padrão de normalidade. Na

atualidade, a escola é um espaço fundamental para o gerenciamento do risco social, para o

controle do tempo dos “grupos sociais privados dos bens culturais e materiais” (BRASIL,

2004, p. 18).

A expansão do ensino fundamental para nove anos, implantação na escola de uma

série de projetos que envolvem questões como o trânsito, as drogas, saúde e prevenção nas

escolas, saúde dental, bullying, entre tantos outros que atravessam o currículo escolar,

atestam o fortalecimento da escola como lócus fundamental para o gerenciamento do risco

social. Talvez porque a escola seja a instituição que se estende de forma ampla e duradoura

a todos as pessoas desta sociedade (KLAUS, 2009).

Dessa forma, a convocação de travestis e transexuais para as escolas serve como

instrumento de controle do risco econômico que representaria a permanência desse

contingente da população fora de circulação. Não é produtivo que uma parcela

considerável da população – desde pessoas com deficiências até pessoas trans – fique

apartada, enclausurada ou na marginalidade.

Interlúdio 6: “Na minha época era bem pior”: Babete e suas indigestões escolares

Conversei com ela na véspera de seu aniversário. Estava apreensiva com

a nova idade e não queria revelá-la, mesmo eu garantindo o anonimato ao

contar a sua história. Depois de uma leve insistência, mas motivada por

curiosidade do que por exigências metodológicas, ela me disse: “amanhã faço

40 anos”. E riu.

Lembrou que tinha apenas 15 anos quando saiu de casa. Era

insustentável continuar vivendo com a família depois que passou a se vestir

com roupas femininas. Diante da rejeição de casa, o acolhimento na

prostituição. Passou a trabalhar em um prostíbulo e não parou de estudar.

Estava certa que iria terminar o ensino médio.

A vida no prostíbulo dava forças a Babete aguentar a escola. Gostava de

atender os clientes, beber, fumar, falar palavrão. Ao contrário de muitos

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relatos que afirmam a prostituição como algo penoso, feito somente pela

questão de sobrevivência, a festa de Babete era o seu dia no prostíbulo,

restando à escola apenas algumas horas de indigestão.

Se na atualidade a vida escolar de uma pessoa trans é permeada de

situações de preconceito e humilhação, pode-se deduzir que na década de

1980, período em que Babete cursava o ensino fundamental, era ainda pior.

Babete, rindo, diz que a vida escolar de uma travesti ou de um/a transexual

hoje é um conto de fadas perto do que vivera quando estudante. Não havia

nenhum documento oficial no Brasil sobre diversidade sexual na educação,

muito menos alguma legislação que se pretendia assegurar o reconhecimento

do nome social de travestis e transexuais nas escolas.

O que a fez continuar os estudos foi a determinação em provar para sua

mãe que ela, uma transexual, terminaria o ensino médio, feito que seus irmãos

heterossexuais, ou seja, “normais”, não haviam conseguido. Ela se define

como “carne de pescoço”; isto é, não se rende com facilidade. E assim, entre

o prostíbulo e a sala de aula, Babete completou o ensino médio.

3.2 Diversidade sexual e políticas educacionais de inclusão: um breve recorte

histórico

Uma das estratégias de governamentalidade atual se estabelece por meio do que se

convencionou chamar de políticas públicas. Tais políticas são fruto de relações de forças

diversas, poderes, intensidades, jogos de poder e de verdades que as produziram e não

simplesmente a imposição de uma lei protagonizada verticalmente por um suposto Estado

centralizador. Com a discussão sobre a governamentalidade, percebe-se que o Estado não é

uma fonte autônoma de poder. “O Estado não é nada mais que o efeito móvel de um

regime de governamentalidades múltiplas” (FOUCAULT, 2008b, p. 106).

Portanto, o que será apresentado a seguir é um recorte sobre o campo de

possibilidades para o surgimento de políticas públicas que têm como alvo a inserção da

temática sobre diversidade sexual no contexto educacional. Apesar da aparente linearidade

dos acontecimentos, estes foram produtos de relações de forças, de embates, de disputas

entre crenças, pressões de movimentos sociais, interesses políticos etc.

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Segundo Helena Altmann (2001), a sexualidade das crianças e dos adolescentes é

preocupação escolar desde o século XVIII, momento em que esta questão se torna um

problema público.

Porém, a inserção da educação sexual nas escolas brasileiras só se tornou possível a

partir de uma nova concepção sobre a sexualidade de crianças e adolescentes. Entre 1920 e

1930, os problemas de “desvios sexuais” deixam de ser percebidos como crime para ser

concebidos como doença. Nesse sentido, a escola se torna um espaço privilegiado para a

intervenção preventiva da medicina higiênica, devendo cuidar da sexualidade de criança e

adolescentes a fim de produzir comportamentos considerados normais (ALTMANN,

2001). Estratégias biopolíticas infiltrando-se na escola.

No Brasil, desde 1928 há leis que estipulam a educação sexual nas escolas. Tal

educação sexual, mesmo com teor higienista, enfrentou forte resistência por partes

conservadoras da sociedade, especialmente da Igreja Católica (NARDI, 2008). Com efeito,

o tema “educação sexual” nas escolas foi alvo de intensas discussões, enfrentando avanços

e retrocessos.

Um pouco da trajetória desse debate nos é apresentado por Fúlvia Rosemberg

(1985). De acordo com a autora, na segunda metade dos anos 1960, algumas escolas

públicas desenvolveram experiências de educação sexual. Porém, tal iniciativa sofre um

forte abalo em 1970 quando a Comissão Nacional de Moral e Civismo, uma criação da

ditadura militar, declarou-se contrária ao projeto de lei que propunha a inclusão obrigatória

da disciplina Educação Sexual nos currículos escolares. Tal resistência foi efeito da aliança

entre os militares e o grupo conservador da Igreja Católica que impôs um regime de

controle e moralização dos costumes (CÉSAR, 2009).

A posição oficial sobre essa questão data de 1976, quando a conselheira Edília

Coelho Garcia representou o Brasil no 1º Seminário Latino-Americano de Educação

Sexual. Em seu discurso, diz que o Brasil, de maneira geral, é contrário às aulas de

Educação Sexual. Este tema pode (ou não) ser inserido apenas nos programas gerais de

educação em saúde. Em síntese, repassa à família a responsabilidade pela educação sexual

de crianças e adolescentes (ROSENBERG, 1985).

O tema foi alvo de fervorosos debates ou mesmo de silenciamento durante a década

de 1970. Rosemberg (1985) destaca que o maior argumento utilizado contra a inserção

curricular da sexualidade na educação formal era o quesito “prioridade”, uma vez que tal

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debate era considerado menos importante frente aos demais (e realmente relevantes!)

problemas da educação brasileira.

Essa movimentação surgida na década de 1970 foi impulsionada pela ação do

movimento feminista que reivindicava uma educação não sexista nas escolas para, assim,

superar as desigualdades de gênero (LOURO, 2010). Tais discussões, apesar de

produzirem algumas experiências pontuais, não resultaram na incorporação das discussões

de gênero e sexualidade nos documentos de política educacional (HENRIQUES et. al.,

2007).

Somente a partir da segunda metade da década de 1980 que o tema sexualidade foi

abordado nos projetos pedagógicos. É importante reconhecer o advento da aids como um

acontecimento que impulsionou tais discussões. Vários organismos oficiais, tais como o

Ministério da Educação e o Ministério da Saúde, passaram a estimular projetos de

educação sexual visando prevenir a infecção do HIV via relações sexuais. Outro foco de

preocupação para o incentivo de uma “educação sexual” era a gravidez precoce ou

indesejada. O que se realizava, portanto, era uma abordagem biologizante do corpo e do

sexo, tendo como referência norteadora a ideia de risco (de infecção ou de gravidez). Com

efeito, a inclusão governamental dessa temática não contemplava a discussão da

construção social da sexualidade e sua inserção no campo dos direitos humanos (NARDI,

2008).

Além da reação estatal, o advento da aids provocou ações dos movimentos LGBT,

que, a partir do final da década de 1980, demonstrou sua capacidade estratégica na

prevenção da aids e reivindicou a questão da sexualidade nos debates públicos. Henrique

Nardi (2010, p. 82) enfatiza a importância dos movimentos sociais nesse processo:

Genealogicamente, as condições contemporâneas para a emergência da

inclusão de um debate em torno da diversidade sexual na educação (no

contexto brasileiro) estão associadas à ação dos movimentos sociais que

defendem os direitos sexuais e que nasceram ou renasceram no Brasil no

final da década de 1980 em relação direta ou indireta com a epidemia da

aids e com a redemocratização do país. Neste cenário social e político, a

reação dos movimentos sociais foi fundamental para reverter à lógica

estigmatizante dos chamados “grupos de risco” na primeira fase da

epidemia.

No mais, esse processo reverbera, de certa forma, o contexto internacional de

fortalecimento dos movimentos feministas e LGBT. No âmbito nacional, a Constituição

Brasileira de 1988 representa o marco institucional-legal mais relevante na história recente,

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pois provocou mudanças conceituais e deu ênfase ao campo dos direitos humanos

(HENRIQUES et al., 2007). A “Constituição Cidadã” eclode dos movimentos sociais e

marca o reconhecimento de transformar o processo discriminatório que marcava a

organização social hierárquica brasileira (NARDI, 2010).

Paralelamente, consolida-se a compreensão da escola, instituição cujo acesso se

democratizou durante o século XX, como um espaço privilegiado de formação cidadã e de

enfrentamento a toda forma de preconceitos. Com efeito, a escola foi adquirindo uma

importância fundamental na vida social. Segundo a Constituição de 1988, a educação é um

direito fundamental. O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), de 1990, também

ressalta que a escola é um direito da criança e um dever social e familiar. Esses

documentos se adiantaram à Declaração de Salamanca, que em 1994 prescreve que “todas

as escolas deveriam acomodar todas as crianças, independente de suas condições físicas,

intelectuais, sociais, emocionais, linguísticas ou outras”.

A Conferência Mundial sobre Necessidades Educativas Especiais em Salamanca,

1994, foi um evento decisivo para a reivindicação por uma escola inclusiva, capaz de

acolher a diversidade de características e necessidades dos/as mais diferentes estudantes,

sem segregação por classes “especiais” (QUARTIERO, 2009).

De acordo com Eliana Quartiero (2009), as políticas em relação à educação

inclusiva no Brasil tomam forma a partir do Programa de Educação Inclusiva: direito à

diversidade e do Projeto Educar na Diversidade, ambos formalizados pela Secretaria de

Educação Especial do MEC em 2003. Há nesses programas a concepção de que inclusão

não se refere exclusivamente a pessoas com deficiência, mas a todas as pessoas que sofrem

qualquer tipo de exclusão educacional. Com efeito, progressivamente a educação inclusiva

passa a ser um elemento de inclusão e controle de pessoas em situação de vulnerabilidade.

Portanto, a população LGBT, em especial travestis e transexuais, passa a ser alvo

em potencial de tais políticas, uma vez que vários estudos destacam que a essa população

sofre intenso preconceito e discriminação no ambiente escolar. Duas pesquisas realizadas

pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO)

dão uma dimensão do preconceito em relação às expressões da sexualidade diferentes da

heterossexual. Um dela é a pesquisa Perfil dos Professores Brasileiros, realizada entre abril

e maio de 2002, em todas as unidades da Federação brasileira, na qual foram entrevistados

5 mil professores das redes pública e privada. Tal pesquisa revelou, entre outras coisas, que

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para 59,7% dos/as entrevistados/as é inadmissível que uma pessoa tenha relações

homossexuais (UNESCO, 2004).

Na outra pesquisa, realizada em 13 capitais brasileiras e no Distrito Federal,

envolvendo 16.422 estudantes, 241 escolas, 4.532 pais e 3.099 professores e funcionários

de escolas, apresenta os efeitos da extensão da rejeição da homossexualidade. Os

resultados da pesquisa não são homogêneos: há variações significativas de acordo com a

região e o sexo do/a entrevistado/a. Por exemplo, o percentual de estudantes do sexo

masculino que não gostariam de ter colegas de classe homossexuais varia de 33,5% em

Belém a 44,9% em Vitória. A diferença de sexo também é significativa. Em Belém, 33,5%

dos jovens dizem não querer ter homossexuais como colegas de classe, contrastando com o

percentual de 15,0% das jovens entrevistadas frente a mesma pergunta (CASTRO;

ABRAMOVAY; SILVA, 2004).

Outras pesquisas também apresentam faces da difícil relação da diversidade sexual

e a escola. A investigação realizada por Sérgio Carrara e Sílvia Ramos (2004) na 9ª Parada

do Orgulho Gay do Rio de Janeiro, diz que, de um total de 629 entrevistados/as, 26,8%

relatou que foi marginalizado/a por professores/as ou colegas na escola ou faculdade.

Antes mesmo da estruturação dos programas de educação inclusiva citados acima, a

pressão dos movimentos LGBT mobilizou a criação de políticas destinadas à população

alvo de preconceito devido à orientação sexual no âmbito escolar. Em 1997 o Ministério da

Educação e do Desporto (MEC) cria os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) com o

objetivo de estabelecer uma referência curricular para as escolas integrantes dos sistemas

de ensino.

Dentre os conteúdos dos PCN há os chamados “temas transversais”, ou seja, temas

que não se inserem como disciplina autônoma, mas devem ser trabalhados de forma

integrada, contínua e sistemática, incorporados às áreas já existentes ao longo de todos os

ciclos de escolarização (PEREIRA; BAHIA, 2011). A orientação sexual, ao lado da ética,

meio ambiente, saúde, pluralidade cultural e trabalho e consumo são os temas considerados

transversais na educação formal. A fim de atingir os objetivos propostos pelos PCN, o

tema “orientação sexual” deve impregnar toda a área educativa do ensino fundamental e

ser tratado por diversas áreas do conhecimento (ALTMANN, 2001).

O fascículo sobre Orientação Sexual dos PCN provoca, ou pretende provocar, uma

explosão discursiva sobre a sexualidade, uma vez que “deve impregnar toda a área

educativa”. Com Foucault (2003b) podemos dizer que é por meio da incitação do discurso

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sobre o sexo que se instalam mecanismos de controle dos corpos e indivíduos,

principalmente no sentido de produzir a forma ideal de viver a sexualidade: heterossexual,

monogâmica e reprodutiva (CÉSAR, 2009).

Além disso, Helena Altmann (2001) critica a motivação principal do tema

Orientação Sexual nos PCN: crescimento de casos de gravidez indesejada entre

adolescentes e do risco de infecção pelo HIV. Nesse caso, não há necessariamente uma

preocupação ética orientada pela perspectiva dos direitos humanos. Portanto, os PCN ainda

trazem as marcas da abordagem biologizante da sexualidade, na qual a discussão sobre a

diversidade sexual é marginal (NARDI, 2010).

Outras críticas dirigidas aos PCN vão em direção aos aspectos de sua execução. A

pesquisa de Quartiero (2009) constata que as/os professoras/es não se sentem aptos a tratar

assuntos relativos à sexualidade no âmbito escolar ou simplesmente ignoram os conteúdos

dos PCN, isto é, a crítica recai na não incorporação da prática escolar dos conteúdos e

objetivos previstos nos PCN.

Ainda que os PCN sejam considerados um dos marcos mais consistente quanto às

políticas públicas educacionais sobre a sexualidade no Brasil, eles não se referem em

nenhum momento sobre as chamadas “identidades de gênero”. Neste caso, os PCN só

abordam a questão da orientação sexual e não contemplam uma discussão sobre as

experiências travestis e transexuais. Se a presença de alunos/as homossexuais na escola já é

problemática, travestis e transexuais são simplesmente ignoradas/os, silenciadas/os.

Para tentar suprir as lacunas existentes na atenção e respeito à diversidade sexual,

em 2002 o governo federal lançou a segunda versão do Programa Nacional de Direitos

Humanos (PNDH II)47

no qual há um capítulo específico sobre a população LGBT. Se na

primeira versão do documento só havia referência aos “homossexuais”, na segunda versão

já se fala em lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais. Tanto que no PNDH II

existe a proposta de regulamentar a cirurgia de transexualização e a alteração no registro

civil para os casos de transexualidade, algo que só se formalizou em 2008.

Em relação à educação, uma das medidas previstas é o apoio a programas de

capacitação de profissionais de educação e operadores do direto para promover a

compreensão sobre as diferenças individuais e a eliminação dos estereótipos depreciativos

com relação aos LGBT. Além disso, fala-se em incentivar programas de orientação

47

O primeiro Plano Nacional de Direitos Humanos (PNDH I) foi criado em 1996, durante o governo do

presidente Fernando Henrique Cardoso. É a primeira referência ao termo “homossexuais” em um documento

do governo federal (Cf. DANILIAUSKAS, 2011).

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familiar e escolar para a resolução de conflitos relacionados à orientação sexual, com o

objetivo de prevenir atitudes hostis e violentas (BRASIL, 2002).

Porém, o PCN sobre Orientação Sexual e o PNDH II, apesar de serem marcos

importantes para a inserção da temática sobre diversidade sexual na educação, poucas de

suas propostas e ações foram efetivadas. O XI Encontro Brasileiros de Gays, Lésbicas e

Transgêneros (EBGLT), realizado em 2003, em Manaus, foi um evento que marcou o

início da pressão do movimento social para a criação não só de cartilhas sobre os direitos

LGBT, mas principalmente de práticas, de políticas públicas efetivas (DANILIAUSKAS,

2011).

A partir de tais reivindicações, o governo federal lança, em 25 de maio de 2004, o

Programa Brasil sem Homofobia (BSH). O Programa, como consta na introdução do seu

documento-texto, tem o “objetivo de promover a cidadania de gays, lésbicas, travestis,

transgêneros e bissexuais, a partir da equiparação de direitos e do combate à violência e à

discriminação homofóbicas, respeitando a especificidade de cada um desses grupos

populacionais” (CONSELHO, 2004, p. 11). Percebe-se assim que o foco não está somente

na questão da violência e discriminação aos LGBT, mas também contempla a necessidade

de cidadania e problematiza a desigualdade de direitos.

O processo de elaboração do BSH foi protagonizado pela Secretaria Especial de

Direitos Humanos48

, como representante do governo, e pela Associação Brasileira de

Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (ABGLT), representante da sociedade

civil. Além da parceria governo e sociedade civil, o BSH contou com a participação de

onze ministérios, na qual cada um deles estabelece um compromisso de criar políticas que

viabilizem o programa49

.

No BSH há um item específico para a área da Educação, intitulado “Direito à

Educação: promovendo valores de respeito à paz e à não discriminação por orientação

sexual”. Porém, como destaca Marcelo Daniliauskas (2011), não há no texto do BSH um

detalhamento sobre o que se espera que a educação faça para superar a homofobia.

48

Durante o primeiro ano do governo Lula, foram criadas as secretarias especiais ligadas diretamente à

Presidência da República. Tais secretarias, como a Secretaria Especial de Direitos Humanos (atualmente

somente nomeada como Secretaria de Direitos Humanos), possuem status de ministério e visam um

acompanhamento mais próximo da Presidência às políticas e ações realizadas. 49

Assinaram o Programa Brasil sem Homofobia os Ministérios da Educação, da Justiça, Saúde, Cultura,

Trabalho e Emprego, Relações Exteriores, Ministério Público, Ministério Público do Trabalho, e as

Secretarias Especiais dos Direitos Humanos, Políticas para Mulheres e de Promoção da Igualdade Racial,

além da participação direta de representantes de diversos movimentos LGBT (CONSELHO, 2004).

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Para articular o BSH e as questões da educação, o Ministério da Educação designa

a Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (SECAD) como a

responsável pela tradução das diretrizes do programa em políticas educacionais

(DANILIAUSKAS, 2011).

Entre outras ações, a SECAD formulou, em 2008, o projeto Escola sem

Homofobia50

. Tal projeto tem dois focos principais de ação. Um primeiro voltado à

formulação e implementação de políticas públicas que enfoquem a questão da homofobia,

assim como a realização de seminários e pesquisas integrantes das comunidades escolares.

O outro campo de ação está centrado na criação de um kit de material educativo abordando

aspectos da homofobia no ambiente escolar, além da capacitação dos/as interessados/as

para a apropriada utilização do kit junto à comunidade escolar.

Este projeto foi causa de grande polêmica no início de 2011, principalmente no que

se refere à distribuição do chamado kit anti-homofobia. Trata-se de um material composto

por cartilhas e vídeos sobre diversidade sexual e identidade de gênero a serem distribuídos

nas escolas públicas. Um dos vídeos, intitulado Bianca, é sobre a vida escolar de uma

travesti. Os kits são ferramentas a serem utilizadas por professores/as ao tratar sobre

respeito à diferença sexual e combate à homofobia nas escolas.

De um lado, os opositores ao projeto alegam que o kit é uma propaganda que visa

induzir alunos e alunas ao “homossexualismo”. Do outro lado, os defensores afirmam que

este é um instrumento para combater o preconceito vinculado à orientação sexual ou

identidade de gênero e assim, favorece a permanência da população LGBT nas escolas.

A principal frente contra a distribuição do kit anti-homofobia é a chamada bancada

religiosa da Câmara dos Deputados Federais. Em contrapartida, diversos órgãos se

manifestaram em favor do projeto. Entidades integrantes do movimento LGBT, a

UNESCO, o Conselho Federal de Psicologia – entre tantas outras organizações –

elaboraram notas, pareceres ou manifestos favoráveis à distribuição do kit, considerando-o

um dispositivo qualificado e necessário para a discussão do preconceito contra LGBT no

ambiente escolar51

.

50

O Projeto foi planejado e executado em parceria entre a rede internacional Global Alliance for LGBT

Education – GALE; a organização não governamental Pathfinder do Brasil; a ECOS – Comunicação em

Sexualidade; a Reprolatina – Soluções Inovadoras em Saúde Sexual e Reprodutiva; e a ABGLT – Associação

Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais. 51

Essa discussão continua em andamento, sendo cotidianamente noticiada pela mídia e alvo de debates

acadêmicos, políticos, religiosos etc.

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O que se percebe com essa série de políticas direcionadas ao público LGBT é um

cenário progressivamente mais sensível às questões sobre a diversidade sexual. Porém, a

ampliação da discussão sobre a legitimidade de outras formas de exercício da sexualidade,

além da heterossexual, e de identidade de gênero, também gera um processo de obstinada

resistência na aceitação de modos de vida não hegemônicos. Desse modo, não é um

processo linear, mas cheio de idas e vindas, lutas políticas e reivindicações sociais,

conquistas e retrocessos.

E é nesse processo que a Portaria Estadual nº 016/2008-GS foi produzida, em um

cenário de discussão e formulação de políticas voltadas à atenção à diversidade sexual no

contexto educacional. É sobre o processo de formulação, efetivação e sobre alguns de seus

efeitos que é dedicado o item a seguir.

Interlúdio 7: A insistência pelo nome Bianca

Bianca tem 16 anos e cursa o 2º ano do ensino médio em uma escola

pública de Belém. Seu nome lhe foi dado por um grupo de colegas travestis

que estudavam nesse colégio em anos anteriores. Foi batizada por Bianca e

ela gostou. Hoje, fica constrangida quando a chamam pelo nome masculino.

Ao contrário, adora ser chamada de Bianca: “Me sinto uma mulher”.

Todos os dias, depois do almoço, começa a se arrumar para ir à escola.

Maquia-se, coloca um prendedor de flor vermelha nos cabelos cacheados,

calça jeans e a camiseta do uniforme escolar bastante justo ao corpo e sai

andando tranquilamente para a escola. Nesse trajeto, não é apontada ou alvo

de piadas homofóbicas, pois não é reconhecida como travesti.

Tal como apresentado no filme Tomboy, o maior obstáculo para Bianca

permanecer despercebida era a perseverante reiteração do nome promovida

pela escola. No filme, Laure, uma garota de 10 anos, apresenta-se aos/às

colegas da cidade onde é recém-chegada como um garoto. Durante as férias

sua “farsa” foi relativamente bem sucedida. Porém, o fim daquela deliciosa

vida como menino tinha data marcada: o início das aulas. Na lista dos/as

alunos/as matriculados/as estava inscrito o seu nome feminino, assim como

estaria nos demais documentos da escola. Todos descobririam que ele era ela.

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Por isso, Bianca passou a negociar com cada professor/a a possibilidade

de chamá-la por seu nome social. Nome que a acolhe ao gênero que deseja. A

maioria, mesmo considerando um pedido excêntrico, aceitou sua demanda.

Porém, uma professora recusou vivamente chamá-la por Bianca, alegando ser

uma prática “contra a lei”. Enquanto não tivesse em sua carteira de

identidade a comprovação que seu nome era Bianca, continuaria a chamá-la

por Pedro José. Se antes tal professora só a chamava de Pedro, depois desse

incidente, passou a acrescentar seu segundo prenome: José. Ratificava assim o

nome masculino que ela tanto queria esquecer.

Bianca não se incomoda de ser chamada por Pedro José no serviço de

saúde ou em qualquer outro lugar que frequenta esporadicamente e que

precisa apresentar um documento de identificação. Porém, na escola, seu

espaço cotidiano, ela exige ser chamada como se reconhece. Bianca, portanto.

Ela parte então a uma obstinada busca por um nome. Mas não o nome

de uma desconhecida, como o faz o personagem de José Saramago em Todos

os nomes. Ela procura o seu próprio nome. Ou melhor, que o seu nome

próprio seja respeitado. Assim, mesmo desconhecendo a portaria que desde

2009 autoriza o uso do nome social para travestis e transexuais nas escolas

públicas, foi até a diretora solicitar a mudança de seu nome na lista de

chamada. A diretora, porém, nada fez. Disse que é impossível fazer isso devido

ao programa de computador usado na escola etc. Além disso, temia estar

fazendo algo irregular. O curioso é que justamente ao não acolher a

solicitação da aluna é que a diretora estava indo de encontro a uma

regulamentação da Secretaria de Educação.

Bianca sofre uma série de constrangimentos por permanecer com uma

identidade nos documentos e outra na vida social. Pelo menos na escola, ela

pode exigir ser chamada de Bianca. Porém, foi somente naquela tarde em que

conversamos que Bianca soube da Portaria Estadual nº 016/2008-GS.

Entreguei a ela uma cópia da referida portaria, assim como a do Decreto nº

1.675 que amplia tal permissão para todos os órgãos da administração

pública do Estado do Pará. Talvez agora a insistência pelo nome Bianca seja

finalmente atendida pela escola.

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3.3 A formulação da Portaria do Nome Social

Segundo François Ewald (1993), Foucault não trabalha com a noção de direito. O

direito, propriamente dito, não existe, não designa nenhuma substância. O que existem são

práticas sociais de juízo. É no embate social, em meio a um jogo de forças, que certas

práticas de juízo são consideradas jurídicas e outras não (EWALD, 1993). Dessa forma,

compreender a noção de direito como prática é concebê-la indissociável do tipo de

racionalidade através da qual ela se reflete, se ordena, se finaliza.

O direito não preexiste às suas objetivações através das diferentes teorias

que se obstinam a abordá-lo. Pelo contrário, como prática sujeita a

incessantes transformações, matéria de relações de forças, vetor eminente

de permuta e de comunicações sociais, o direito tem necessidade de

refletir a sua sistematicidade, a sua deriva, tal como seu futuro (EWALD,

1993, p. 64).

Nesse sentido, leis, doutrinas, legislações, jurisprudências, são todas práticas de

juízo; isto é, o sistema jurídico está imenso na história, as leis têm uma história e estas

dizem de uma sociedade, de suas lutas, de seus jogos e relações de poder, de seus modos

de gestão e organização das práticas, das formas de governo e dos dispositivos

econômicos, políticos e culturais de uma dada época.

Portanto, a Portaria Estadual nº 016/2008-GS, que institui o uso do nome social

para travestis e transexuais nas escolas públicas no Pará, está imersa nessas redes de

relações, baseada em regimes de verdade imanentes às práticas sociais, pedagógicas,

médicas, econômicas, culturais e políticas. Isto é, está inserida em um processo histórico

que tem como mote de ação a visibilidade dos direitos sexuais como parte integrante dos

direitos humanos.

Para entender os mecanismos e as relações de forças que objetivaram a formulação

da legislação em questão, entrevistei algumas pessoas envolvidas direta e indiretamente

nesse processo, como apresentado no capítulo metodológico desta pesquisa.

Algumas questões se fazem presentes ao analisar a promulgação da Portaria do

Nome Social: Quais os motivos que culminaram no pioneirismo do Pará em uma

legislação dessa natureza? Como foi o processo de elaboração da Portaria? Como está

sendo efetivada tal política no cotidiano das escolas? Quais os seus efeitos na vida de

travestis e transexuais?

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Para iniciar a análise do processo de elaboração da Portaria do Nome Social, cabe

destacar que todas as políticas relatadas acima sobre a inserção da temática da sexualidade

no âmbito da educação – Programa Nacional de Direitos Humanos I, em 1996; o fascículo

sobre Orientação Sexual dos Parâmetros Curriculares Nacionais, em 1997; Programa

Nacional de Direitos Humanos II, em 2002; o Programa Brasil sem Homofobia, em 2004,

entre tantas outras – configuram-se como um campo de possibilidades para a criação de

uma política que tem como foco a inclusão de travestis e transexuais na escola. A Portaria

do Nome Social não surgiu do nada: é fruto de pressões diversas dos movimentos sociais

brasileiros, assim como de uma maior aceitação da diversidade sexual em âmbito mundial,

particularmente entre os países do Ocidente.

Além desse cenário aparentemente mais sensível às questões relativas à

sexualidade, é preciso destacar um acontecimento fundamental para o pioneirismo do Pará

em uma legislação dessa natureza: a presença de uma mulher transexual como assessora da

secretária de Educação do Estado do Pará. Trata-se de Cláudia Farias, funcionária

concursada da Universidade Federal do Pará (UFPA), formada em Psicologia e Sociologia

pela mesma instituição. Em 2008, a governadora do Pará convidou a então pró-reitora de

Administração da Universidade Federal do Pará para assumir a Secretaria de Educação do

Estado (Seduc). Ela aceitou e levou consigo sua assessora, Cláudia Farias. Dessa forma,

Cláudia exerceu o cargo de assessora e chefe de gabinete da secretária de educação do

Estado do Pará entre 2008 e 2009, quando a secretária fora exonerada.

Com exceção de um participante52

, todos/as os/as demais entrevistados/as na

primeira etapa dessa pesquisa ligaram a formulação da Portaria Estadual nº 016/2008-GS

ao nome de Cláudia Farias. Em entrevista para esta pesquisa, Cláudia relata como foi

simples e rápido o processo de elaboração da portaria:

Quando eu cheguei a Seduc, cheguei com a secretária e disse assim

mesmo: “Que tal nós instituirmos o nome social no Estado do Pará nas

nossas mais de mil e duzentas escolas?” Aí, ela disse: “Cláudia, elabora

uma minuta, apresenta à assessoria jurídica da Seduc”. Não houve

nenhuma barreira, não houve nenhum senão da secretária ou da

governadora. Foi impressionante. O pessoal da assessoria jurídica do

governo e também da Seduc se reuniu, leram a minuta e pronto. Isso

durou três dias. Um dia aprontamos a minuta, no outro dia mandamos

analisar e no terceiro dia estava aprovado. Em três dias!53

52

Para o assessor de articulação do Centro de Referência de Prevenção e Combate à Homofobia do Pará a

criação da Portaria do Nome Social foi um efeito da organização do movimento LGBT no Pará. 53

É digno de nota que o texto da portaria é curto e direto. Destacando os direitos constitucionais de todo

cidadão, conforme preceitua as Constituições Estadual e Federal, a Portaria nº 016/2008 –GS estabelece que

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É interessante destacar a receptividade que o tema obteve entre as autoridades em

questão: a secretária de Educação e a governadora do Estado do Pará. Em uma primeira

análise, pode-se dizer que a governadora da época, integrante do Partido dos Trabalhadores

(PT), teve sua gestão entre 2007 e 2010, ou seja, durante o segundo mandato do presidente

Lula. Por meio do recorte histórico realizado acima sobre a atenção à diversidade sexual na

educação, percebe-se que durante o governo Lula houve uma maior produção de

documentos, programas e planos que abordassem a diversidade sexual e os direitos

LGBT54

. Neste sentido, tratava-se de uma gestão aparentemente sensível a tais questões.

Além da receptividade por parte das autoridades locais, a Portaria do Nome Social

logo tomou proporções nacionais. Tal portaria, assinada pela secretária de Educação

durante a 1ª Conferência GLBT55

do Estado do Pará, no dia 10 de abril de 2008, foi a

primeira política que reconhece o nome social de travestis e transexuais no Brasil. Houve

ainda uma ampliação da abrangência do uso do nome social, através do Decreto Estadual

nº 1.675, assinado pela governadora do Estado no dia 21 de maio de 2009, que decreta o

respeito do nome social no atendimento de travestis e transexuais pelos órgãos da

administração pública do Estado.

A Portaria do Nome Social foi anunciada na I Conferência Nacional GLBT56

,

realizada entre 6 e 8 de junho de 2008 em Brasília, e o uso do nome social entre travestis e

transexuais se transformou em uma reivindicação nacional do movimento. Atualmente,

dezenove Estados brasileiros, além do Distrito Federal, já criaram legislações, em níveis

estaduais ou municipais, que autorizam o uso do nome social para a população em

questão57

.

Como efeito dessa mobilização em torno do nome social, desde 18 de maio de

2010, travestis e transexuais que trabalham como servidoras/es públicas/os federais têm o

“a partir de 02 de janeiro de 2009, todas as Unidades Escolares da Rede Pública Estadual do Pará passarão a

registrar, no ato da matrícula dos alunos, o prenome social de Travestis e Transexuais”. 54

Nesse período, além do Programa Brasil sem Homofobia, foram criadas as versões do Programa Nacional

de Educação em Direitos Humanos (2003, 2006 e 2007), nas quais há uma perspectiva de não discriminação

por orientação sexual no ambiente escolar, e o Plano Nacional de Promoção da Cidadania e Direitos

Humanos de LGBT (2009) (DANILIAUSKAS, 2011). 55

Até aquele momento, utilizava-se a sigla GLBT, sendo alterada para LGBT apenas na I Conferência

Nacional GLBT, realizada entre 6 e 8 de junho de 2008, em Brasília, para marcar o protagonismo do

segmento lésbico. 56

Foi nessa conferência que houve a alteração da sigla GLBT para LGBT, marcando a necessidade de

aumentar a visibilidade e protagonismo do segmento lésbico. 57

Conferir o site da Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais:

http://www.abglt.org.br/port/nomesocial.php. Acesso em: 11 de março de 2013.

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direito de utilizar o nome social nos crachás, endereço de e-mails, lista de ramais, sistemas

de informática e comunicações internas de uso social dos órgãos públicos, conforme a

Portaria nº 233 do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão.

Em maio de 2012, o governador do Rio Grande do Sul, Tarso Genro, assinou o

decreto que institui a Carteira de Nome Social para travestis e transexuais. Com a mesma

função de uma carteira de identidade, o documento permitirá que travestis e transexuais

sejam identificadas pelos nomes que desejam, porém, com validade exclusiva para o

Estado em questão. Consoante a esse projeto, o Conselho Estadual de Segurança Pública

do Pará aprovou, em novembro do mesmo ano, a implantação da Carteira de Identidade

Social para travestis e transexuais no Estado.

E, em 28 de janeiro de 2013, em apoio ao Dia da Visibilidade Trans (29/01), o

Ministério da Saúde anunciou que travestis e transexuais poderão usar o nome social no

Cartão Nacional de Saúde (Cartão SUS) no lugar do nome de batismo. Com tais

regulamentações, evidencia-se a proporção que a questão do uso do nome social teve em

nível nacional.

Além disso, a repercussão da aceitação do uso do nome social para travestis e

transexuais mostra a legitimação de um regime de verdade em relação às políticas de

inclusão da diferença. Nesse sentido, seria equivocado centralizar a formulação da Portaria

na figura de Cláudia Farias, como indica a maioria dos/as entrevistado/as e a própria

Cláudia. Sem dúvida, Cláudia é uma peça-chave na engrenagem que possibilitou a

construção da legislação em questão. Entretanto, ela não é a única peça responsável para

fazer com que a engrenagem se movimente. “Trata-se de romper com a tendência de

atribuição de causalidade única, para construir um ‘poliedro de inteligibilidade’, cujo

número de faces não está previamente definido e nunca pode ser concluído” (FONSECA et

al., 2006, p. 658).

Com efeito, a formulação da portaria em questão deve ser analisada a partir de uma

determinada correlação de práticas que simultaneamente concorreram para criar as

condições de sua emergência. Como afirma Foucault (2000d, p. 12):

Cada sociedade tem seu regime de verdade, sua “política geral” da

verdade, isto é, os tipos de discurso que ela aceita e faz funcionar como

verdadeiros; os mecanismos e as instâncias que permitem distinguir os

enunciados verdadeiros ou falsos, a maneira como se sancionam uns e

outros; as técnicas e os procedimentos que são valorizados para obtenção

da verdade; o estatuto daqueles que têm a função de dizer o que funciona

como verdadeiro.

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A exemplo, pode-se inferir que Cláudia não ocuparia a função de assessora de

gabinete de uma Secretaria de Educação há 30 anos atrás, quando a discussão sobre

diversidade sexual ainda era incipiente no Brasil. Se a homossexualidade era alvo de forte

preconceitos e desconfianças, a transexualidade era relegada à marginalidade e à

prostituição, o que ainda hoje é uma concepção arraigada no senso comum.

Portanto, a Portaria do Nome Social deve ser analisada a partir de uma

inteligibilidade das lutas, das estratégias, das táticas de poder que formam um solo de

possibilidades para a emergência dos acontecimentos (FOUCAULT, 2000a). Nesse

sentido, a portaria não demorou três dias para ser produzida, mas sim, anos e, por que

não?, séculos para ser pensada, para entrar no regime de verdade que a aciona na

atualidade.

Porém, tal regime de verdade não é absoluto, sem contradições ou resistências. A

política em questão deve ser analisada como um processo inter-relacional e instável,

apresentando-se em formas díspares, heterogêneas e em constante transformação. Não é

algo unitário e global. A exemplo disso, pode-se dizer que a política do nome social foi

mais aclamada do que efetivamente concretizada.

Com base nas entrevistas, conversas com integrantes dos movimentos LGBT,

travestis e transexuais, gestores/as, além de professores/as, diretores/as de escolas e

estudantes, pode-se afirmar que a implementação dessa política foi insuficiente para se

produzir os efeitos esperados: a aceitação do uso do nome social por parte de gestores/as e

professores/as e a consequente permanência ou retorno de travestis e transexuais para as

escolas.

Os diferentes segmentos entrevistados elencam os obstáculos encontrados para a

plena efetivação da Portaria do Nome Social. Um primeiro obstáculo é apontado pela

própria Cláudia. Ela relata que durante o período em que trabalhou na Seduc visitou várias

escolas, inclusive no interior do Estado, para informar sobre a Portaria do Nome Social.

Era um acompanhamento da implementação da política no seu destino final, ou seja, nas

escolas públicas. Porém, em 2009, houve uma mudança na gestão. A secretária de

Educação foi substituída e assim, Cláudia Farias, aparentemente a pessoa mais interessada

no sucesso dessa política, saiu da Seduc e esse processo de divulgação e sensibilização

sobre a portaria foi interrompido.

Neste caso, a descontinuidade da gestão é indicada por Cláudia como um grande

obstáculo para o sucesso da política em questão. Em quatro anos do governo de Ana Júlia

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Carepa (PT), houve cinco secretários/as da Seduc. Apesar de os/as secretário/as serem do

mesmo partido político, cada um/a tinha suas prioridades e perspectivas de ação.

Em entrevista para esta pesquisa, a coordenadora da Diretoria de Ensino para a

Diversidade, Inclusão e Cidadania (Dedic) da Seduc, ainda na gestão do PT, disse que não

houve continuidade no acompanhamento nas escolas sobre o nome social, pois não havia

sensibilidade da equipe atual a esse caso. As ações estavam mais voltadas à inclusão

escolar de negros, índios e ribeirinhos. Interessante notar a existência de uma diretoria

dentro da Seduc que traz em seu nome “Diversidade, Inclusão e Cidadania” e afirma não

haver sensibilidade com o tema da diversidade sexual nas escolas. Tal política foi

justamente empregada visando à inclusão da diversidade e à possibilidade de construção de

cidadania para a população travesti e transexual.

Em 2011, na gestão de outro governador (PSDB), fui novamente à Dedic pesquisar

sobre o acompanhamento da política do nome social. A informação foi semelhante à

anterior, uma vez que a atual diretora da Dedic disse que a discussão sobre a portaria

estava parada, uma vez que não havia nenhuma pessoa na Seduc mobilizada para realizar

esse trabalho.

Aproveitei a ocasião e pedi dados estatísticos sobre as requisições do nome social

nas matrículas escolares. No site da Seduc, no ambiente para matrícula e pré-matrícula de

novos e antigos alunos/as, há o espaço para inserção do nome social. Há inclusive um link

chamado “O que é o nome social?”, no qual consta a Portaria nº 016/2008-GS em formato

pdf. Depois de uma semana, fui informada que nenhuma pessoa solicitou o uso do nome

social via sistema da Seduc. Este dado, para a diretora do Dedic, indica que não há

travestis e transexuais nas escolas ou se há, eles/as não querem usar o nome social. Porém,

há travestis e transexuais nas escolas, mas de alguma maneira essas informações não

chegam à base de dados da Seduc.

A falta de interesse em dar prosseguimento ao acompanhamento da política do

nome social indica que a portaria foi um projeto isolado de Cláudia Farias dentro da Seduc.

Com efeito, a portaria saiu do gabinete da secretária de Educação e não da Dedic, órgão

responsável, como dito acima, por propor políticas em relação à diversidade sexual. Isto é,

parece ter sido uma política pouco debatida pelos demais órgãos da Seduc.

Tal isolamento também se observa em relação à participação do movimento LGBT

do Pará na elaboração dessa política. Interrogada sobre a participação do movimento

LGBT no processo de formulação da portaria, Cláudia é enfática:

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Teve participação do movimento LGBT na elaboração da portaria?

Não, não, não, não. Quando instituímos a portaria, eu não fiz questão de

chamar o movimento pra conversar, porque não acho que isso dependa de

conversa com o movimento. Era um papel a ser cumprido pela Seduc e

foi cumprido. Eu sou transexual e sei o que eu passei na escola. Eu não

preciso chamar o movimento pra saber o que eles acham. É uma questão

de direitos. Independente do que o movimento pense ou deixe de pensar,

a ação tem que ser efetivada. Então, tem que acabar com isso de toda

hora que for fazer alguma coisa tem que chamar o movimento pra

discutir. Eu acho isso um absurdo. Eu não concordo.

Apesar de o movimento LGBT não ter sido convocado para debater e mobilizar a

implementação de tal política, a portaria foi assinada e divulgada, como já mencionado,

durante a I Conferência Estadual GLBT em 2008. Desse modo, precisou dos aplausos, do

reconhecimento e da colaboração da plateia LGBT. Com a saída de Cláudia da Seduc,

os/as maiores interessados/as pelo sucesso da portaria se tornaram os/as integrantes dos

movimentos sociais LGBT, principalmente aqueles protagonizados por travestis e

transexuais. Dessa forma, o monitoramento do cumprimento ou não da portaria acabou

sendo delegado aos movimentos sociais. Nas palavras do assessor do Centro de

Referência:

Você sabe se teve uma política de acompanhamento da Secretaria de

Educação nas escolas?

Não teve, não teve. Quem fez isso foi o movimento. E tem mais, o

movimento não fez de forma organizada, foram algumas pessoas da

direção do movimento que acharam por bem de discutir naquela escola,

naquela outra.

Com efeito, coube ao movimento social o papel de polícia: fiscalizar, ainda que de

forma aleatória e assistemática, a implementação da política do nome social nas escolas

públicas. O exercício policial também pode se observado na prática de receber denúncias

sobre o não cumprimento da determinação estatal que legitima o uso do nome social. As

denúncias eram recebidas pelo Centro de Referência, assim como pelas demais

organizações que têm como mote a diversidade sexual, tais como o Grupo de Resistência

Travesti e Transexual da Amazônia (GRETTA), a Coordenadoria de Proteção à Livre

Orientação Sexual (CLOS) da Secretaria de Estado de Justiça e Direitos Humanos

(SEJUDH) e o Grupo Homossexual do Pará (GHP). Nessas organizações, sempre que

havia queixa de não cumprimento da portaria, entregava-se uma cópia do documento ao

reclamante e recomendava-se que as travestis e as/os transexuais reivindicassem a

matrícula com o nome social. Porém, a mera informação sobre a portaria nem sempre é

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suficiente para se garantir a matrícula com o nome social ou o seu respeito no cotidiano

escolar.

Nesse processo, ainda que precário de acompanhamento, os/as integrantes dessas

organizações colheram outras informações que os/as autorizaram a pontuar alguns

elementos que dificultaram o sucesso da Portaria do Nome Social nas escolas.

Um deles é a falta de informação sobre a portaria. Muitas travestis ou transexuais

que não estão vinculadas ao movimento social não sabem da existência da legislação em

questão. Isso porque há pouca mobilização das próprias pessoas trans no que tange às

questões de cidadania. Como exemplo, uma integrante do movimento LGBT entrevistada

cita algumas ações políticas que tinham como público-alvo travestis e transexuais que não

conseguiram atrair um número considerável de pessoas. Com isso, percebe-se uma falta de

mobilização das pessoas trans pelos seus direitos, justificada pela atuação na prostituição

por grande parte delas. O trabalho pela noite inviabiliza a ação coletiva durante o dia.

Porém, devem-se levantar outras questões que dificultam a permanência ou retorno

de travestis e transexuais nas escolas. Muitas acabam por ser expulsas de casa, como

Jenifer, Leila e Babete, e encontram na prostituição um espaço de sobrevivência e

aceitação. Diferente do que ocorre com as demais “minorias” sociais, travestis e

transexuais (e LGBT de maneira geral) geralmente não encontram na família um apoio à

discriminação que sofrem na sociedade. Neste caso, a família é um dos primeiros lugares

no qual se sente a opressão e a intolerância (MOTT, 2002).

De acordo com as falas das pessoas entrevistadas, muitas famílias, particularmente

as mais pobres, só aceitam uma travesti ou transexual de volta para a casa quando esta traz

consigo o dinheiro adquirido na prostituição. Como a história de Jenifer apresentou, o

trabalho na prostituição dificulta a permanência na escola. Não faz mais sentido, para

muitas delas, continuar a estudar. Até porque elas já pressupõem a impossibilidade de

conseguir um emprego formal após assumirem o modo de viver travesti ou transexual.

Então, qual é a razão de concluir os estudos se não for para conseguir posteriormente um

emprego? E mais, para que conseguir outro emprego quando já se tem um no qual, além de

retorno financeiro, elas são aceitas e desejadas?

Com efeito, essas pessoas que foram expulsas de casa, que são vistas como uma

abjeção, pois subvertem, em grande medida, a imposição corporal-biológica para o

exercício de si, que abandonam a escola e se desligam de uma série de vínculos sociais,

passam a criar e circular pelos espaços onde se sentem mais seguras e aceitas. Diante desse

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cenário, elas acabam por desacreditar que as questões como escolarização e direitos

humanos sejam direcionadas a elas.

Além disso, outra dificuldade para a implementação da Portaria do Nome Social é o

forte preconceito direcionado às travestis e transexuais. O coordenador da CLOS relatou

que um professor, quando pressionado a chamar uma aluna por seu nome social, disse

preferir ser exonerado a acatar a portaria, alegando que sua religião condena qualquer

manifestação da sexualidade divergente da heterossexual.

A presidente do GRETTA reclama que não houve um processo de sensibilização

nas escolas públicas sobre a importância dessa política no sentindo de diminuir o impacto

da discriminação de travestis e transexuais nas escolas. Em suas palavras:

Aí vem o problema: o Pará foi o primeiro Estado a criar essa portaria, o

pioneiro, que foi aplaudido pelo Brasil inteiro, e é o primeiro Estado onde

não consegue... Os professores não conseguem obedecer a lei. Muitos

professores, a maioria, não quer chamar nós [sic] pelo nome social. A

maioria chama pelo número ou nem chama. Dizem que a secretária [de

Educação] tinha coisa mais importante pra fazer do que se preocupar com

viado [sic].

O que se percebe é a homofobia entranhada nas práticas escolares. A homofobia,

tais quais outras formas de preconceito – xenofobia, racismo, antissemitismo – é uma

manifestação arbitrária de designar o outro como contrário, inferior ou anormal. Esse

processo é promovido pela hierarquização das sexualidades na sociedade contemporânea,

sendo a heterossexualidade como o padrão para avaliar todas as outras formas de exercer a

sexualidade (BORRILLO, 2010). Por isso, não é somente os homossexuais que sofrem

homofobia, mas todos aqueles que desafiam à norma corpo-sexo-gênero-sexualidade-

desejo: bissexuais, travestis, transexuais, crossdressing, drag queens, drag kings e tantas

outras formas divergentes da heteronormatividade58

.

A homofobia revela o medo de que as formas de exercício da sexualidade

“desviantes” sejam reconhecidas e legitimadas. É o medo de que a heterossexualidade

perca seu status de ser o exercício da sexualidade normal, de perder seu lugar privilegiado

na hierarquia das sexualidades, de seu monopólio de normalidade (BORRILLO, 2010).

Um exemplo disso é a iniciativa de criar uma campanha que mobilize o orgulho de ser

heterossexual. O vereador Carlos Apolinário (DEM-SP), propôs um projeto de lei que

58

Para exprimir a complexidade do fenômeno e especificar cada modo de vida que sofre preconceito em

decorrência da orientação sexual, seria mais correto utilizar os termos gayfobia, lesbofobia, bifobia e

transfobia. Porém, optou-se por utilizar o termo homofobia para designar o conjunto desses fenômenos.

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institui o Dia do Orgulho Heterossexual em São Paulo, que, nas palavras do vereador: "é

um protesto contra os privilégios dados aos gays"59

. O movimento LGBT considera tal

projeto, além de homofóbico, descabido, uma vez que nenhum heterossexual sente

preconceito ou é agredido devido a sua orientação sexual60

.

Figura 1: Charge do cartunista Arnaldo Branco que circulou pelas mídias sociais.

Armazenada em 07 de maio de 2012.

A homofobia é uma forma de preconceito tolerada e, às vezes, até incentivada.

Como nos fala Nilson Dinis (2011), na atualidade, poucas pessoas ousariam a expressar

publicamente o preconceito sexista contra mulheres ou racistas contra negros ou judeus.

Entretanto, ainda é “permitido” expressar repúdio contra homossexuais, haja vista as

declarações homofóbicas feitas pelo deputado federal Jair Bolsonaro (Partido Progressista-

RJ) em um programa televisivo de grande audiência nacional61

ou as pregações

midiatizadas do pastor Silas Malafaia, fundamentalista e assumidamente (e provavelmente

com orgulho) homofóbico. Como observa Dinis (2011, p. 41): “[...] dizer publicamente não

se simpatizar ou mesmo odiar pessoas homossexuais ainda é algo não só tolerado, como

constitui também uma forma bastante comum de afirmação e de constituição da

heterossexualidade masculina”.

59

Disponível em: http://www.estadao.com.br/noticias/cidades,veto-de-kassab-ao-dia-do-orgulho-hetero-e-

publicado-no-diario-oficial-,766572,0.htm. Acesso em: 2/maio/2012. 60

Em 2 de agosto de 2011 o projeto foi aprovado pela Câmara Municipal de São Paulo, mas foi vetado logo

em seguida pelo prefeito Gilberto Kassab. 61

Em 17 de maio de 2012, Dia Internacional de Luta contra a Homofobia, o deputado federal Jair Bolsonaro

declarou-se homofóbico e disse que quem não se posiciona contra os kits anti-homofobia está no armário.

“Se defender a família e as crianças é ser homofóbico, eu sou com todo prazer e vou acabar usando uma

camiseta nesse sentido”. Disponível em: http://noticias.r7.com/brasil/noticias/no-dia-contra-a-homofobia-

bolsonaro-provoca-deputados-quem-esta-quieto-esta-no-armario-20110517.html. Acesso em: 21/maio/2012.

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Dinis (2011) utiliza o conceito “amoladores de faca” elaborado por Luis Antonio

Baptista (1999) para falar de certos discursos que atuam como cúmplices da violência

dirigida a gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais.

O fio da faca que esquarteja, ou o tiro certeiro nos olhos, possui aliados,

agentes sem rostos que preparam o solo para esses sinistros atos. Sem

cara ou personalidade, podem ser encontrados em discursos, textos, falas,

modos de viver, modos de pensar que circulam entre famílias, jornalistas,

prefeitos, artistas, padres, psicanalistas etc. Destituídos de aparente

crueldade, tais aliados amolam a faca e enfraquecem a vítima, reduzindo-

a a pobre coitado, cúmplice do ato, carente de cuidado, fraco e estranho a

nós, estranho a uma condição humana plenamente viva (BAPTISTA,

1999, p. 46).

Educadores e educadoras fazem farte desses amoladores/as de faca, pois, embora

não empunhem a faca que ataca e mata diversas pessoas LGBT, eles/as produzem a

patologização desses modos de ser. Ao não aceitar o nome social de travesti e transexuais,

ao não permitir que um casal de garotas circule de mãos dadas no recreio (sendo o mesmo

ato permitido para casais heterossexuais), ao dizer que a sexualidade é algo pertinente à

vida privada, ao chamar os pais para uma reunião para expor o fato de um aluno gostar de

brincar com bonecas etc. Essas atitudes dizem que não há lugar para a diversidade sexuais

na escola, que esses/as estudantes são anormais, abjetos (BUTLER, 2003) e, portanto,

podem ser alvo de violência. Tais práticas “são genocidas porque retiram da vida o sentido

de experimentação e de criação coletiva. Retiram do ato de viver o caráter pleno de luta

política e o da afirmação de modos singulares de existir” (BAPTISTA, 1999, p. 49).

A homofobia, portanto, é o principal obstáculo para uma efetiva educação inclusiva

para as pessoas trans. Pode-se até convocar, aceitar e tolerar a presença de travestis e

transexuais nas escolas, porém, elas/es não são “o sujeito da pedagogia” (SKLIAR, 2001,

p. 17). Isto é, o sujeito da pedagogia continua sendo o/a heterossexual, aquele/a expresso/a

nos livros didáticos ou de literatura que apresentam exclusivamente casais heterossexuais;

nas aulas de ciências que abordam a sexualidade apenas pelo viés reprodutivo; nos cartazes

afixados nas paredes; nas cores adequadas para cada “gênero”; na separação do banheiro

entre meninos e meninas etc. Não há o reconhecimento dos modos de viver de travestis e

transexuais. As pessoas trans são observadas e tratadas tendo como ponto de partida a

suposta normalidade heterossexual.

Além da homofobia, percebe-se que muitos/as gestores/as escolares não sabem da

existência de tal legislação, como ilustrado com a história de Bianca. Ao falar com o vice-

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diretor da escola na qual Bianca estuda, ele me disse que já tinha ouvido alguma coisa (por

alto) sobre nome social de travestis e transexuais, que até procurou na internet maiores

informações, mas não achou a portaria ou orientações de como proceder. De modo geral, o

que se percebe é que o cumprimento da portaria está à mercê do interesse de gestores/as e

professores/as das escolas.

Com efeito, outro aspecto elencado pelas pessoas ouvidas nesta pesquisa como

obstáculo para o sucesso da portaria é justamente a não estipulação de uma punição para

aqueles que não a acatarem. Em uma sociedade em que o principal instrumento de controle

é a lei – na qual há a determinação prévia de uma penalidade àqueles que a infligirem –

uma portaria que não contém uma cláusula punitiva é vista como ineficaz. Todos/as

entrevistados na primeira etapa da pesquisa, exceto Cláudia Farias, apontaram a falta de

fiscalização e de punição aos/às professores/as e funcionários/as que não legitimam o uso

do nome social como um sério entrave para a efetiva concretização da portaria no cotidiano

das escolas.

O movimento social pede mais fiscalizações e punições. Trata-se de uma gestão

policial da vida efetivando uma biopolítica orientada pelo clamor de mais castigos

(SCHEINVAR, 2011). A base, portanto, é o sistema judiciário, o qual é repleno de

elementos punitivos. Assim, percebe-se um lamento de que a portaria não funciona como

uma lei, ou seja, não pune.

Porém, é preciso ratificar que as mudanças sociais não se efetuam simplesmente

por exigências de uma lei. Como exemplo, destaca-se que desde 1989 vigora uma lei que

classifica o racismo como crime inafiançável e punível com prisão de até cinco anos e

ainda assim é possível ver cenas de descriminação racial cotidianamente, haja vista o caso

de um psicanalista que agrediu uma funcionária negra de um cinema na capital do Brasil,

ou de um deputado federal que publica em uma rede social que os africanos (a população

negra) são um povo amaldiçoado por Deus.

O que quero ratificar é que mesmos as leis, com punições estipuladas, não

asseguram o cumprimento do comportamento desejado. A Lei Maria da Penha não

conseguiu, até o momento, acabar com os casos de violência contra a mulher. Apesar da

radicalização da Lei Seca no Brasil, cotidianamente há acidentes provocados por

condutores/as alcoolizados/as. Mesmo com a Lei da Reforma Psiquiátrica, de 2001, ainda

vemos a existência e criação de manicômios, hospitais de custódia, entre tantos outros

serviços proibidos por esta lei.

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Porém, mesmo com o questionamento sobre a eficácia das leis em seu potencial de

eliminar as condutas consideradas desviantes, verifica-se na atualidade uma multiplicação

de leis. Como as leis existentes são geralmente vistas como insuficientes, clama-se por

outras: lei contra a homofobia, contra a palmada, contra o bullying, a que criminaliza as

agressões de alunos contra professores etc. Tal inflação das legalidades se justifica pela

funcionalidade que a lei estabelece na era da biopolítica: é “a forma mais econômica, isto

é, menos onerosa e mais certeira, para obter a punição e a eliminação das condutas

consideradas nocivas à sociedade” (FOUCAULT, 2008b, p. 341). A celeuma que pede

cada vez mais leis é um efeito da sociedade de segurança, da governamentalidade

neoliberal de mercado e sua lógica mutante de curto prazo.

Há que se destacar uma especificidade do modo como muitas leis são formuladas

no Brasil. Criam-se as leis e somente depois há a participação social que vai acatar as

novas leis ou se utilizar dos direitos que elas oferecem. Ou seja, as leis que são feitas de

forma vertical, sem a participação social na discussão de suas propostas, provocam grande

resistência em sua efetivação. No caso da Portaria do Nome Social, não ouve participação

do movimento social, os/as agentes escolares não foram ouvidos/as e a maioria nem sequer

sabe da existência desta legislação. As leis são práticas discursivas e, portanto, apresentam

novos repertórios que não são absorvidos imediatamente; elas passam a ser apropriadas à

medida que circulam, criando-se uma base para sua concretização.

Por essa via é possível compreender as resistências que a Portaria do Nome Social

enfrenta na atualidade. O enunciado contido na legislação – aceitação do nome social de

travestis e transexuais nas escolas – entra em choque com uma norma social: a

heteronormatividade. Isto é, a heterossexualidade como norma, como forma normal e

universal de exercício da sexualidade.

Assim, pode-se afirmar que uma portaria, um decreto, uma lei, não produz

isoladamente mudança nas concepções, mentalidades. Ainda mais levando em

consideração que o tema da diversidade sexual encontra fortes resistências em vários

âmbitos sociais. Percebe-se, portanto, que a inclusão escolar da diversidade de modos de

viver (sexual, de gênero, racial, de pessoas com deficiência etc.) depende de múltiplos

fatores, sendo as políticas de inclusão existentes, entre as quais a do nome social, apenas

um dentre esses muitos aspectos.

Além disso, a crítica recai a uma esfera mais ampla que legislações desse tipo – que

autorizam o uso do nome social em escolas, universidades, departamentos públicos etc. –

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não conseguem abranger. Berenice Bento (2012)62

chama essas legislações de “gambiarras

legais”, ou seja, uma solução “à brasileira” que não altera substancialmente a vida de

travestis e transexuais. Fora da escola, travestis e transexuais continuam se submetendo a

situações vexatórias e humilhantes por apresentarem nomes nos documentos de

identificação incompatíveis com suas aparências.

De qualquer forma, a Portaria do Nome Social produziu efeitos políticos

importantes, uma vez que legitima o direito ao uso do nome que travestis e transexuais

escolheram para si e assim, produz o reconhecimento das experiências trans no cotidiano

escolar. Outro efeito desta legislação pioneira foi a reivindicação nacional do movimento

LGBT pelo direito ao nome social de travestis e transexuais. Dessa forma, a crítica não

está na formulação ou na intenção da portaria, mas sim, na sua (não) implementação e na

ainda incipiente produção de inclusão escolar de travestis e transexuais.

62

Disponível em: http://www.cartapotiguar.com.br/2012/05/29/identidade-de-genero-entre-a-gambiarra-e-o-

direito-pleno. Acesso em: 30/maio/2012.

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CAPÍTULO 4

EFEITOS DE SUBJETIVAÇÃO NO GOVERNO DE

TRAVESTIS E TRANSEXUAIS

Inventar aumenta o mundo.

Manoel de Barros

A Portaria do Nome Social, apesar dos modestos resultados obtidos no que se refere

ao retorno ou permanência de travestis e transexuais nas escolas, configura-se como um

elemento produtor de determinadas formas de ser: ser travesti ou transexual, ser estudante,

ser responsável por sua escolarização etc. Os efeitos de uma política de inclusão, tal como

a do nome social, não são encontrados apenas na almejada inserção do seu público-alvo

nas escolas, mas também no seu potencial em produzir modos de subjetivação.

Para seguir a concepção foucaultiana sobre a produção dos modos de subjetivação é

preciso adentrar o campo da ética. Foucault (2006a) define a ética como a própria relação

de si para consigo a partir de técnicas e de práticas a fim de se constituir como um sujeito

moral. O autor distingue, no entanto, três aspectos da moral: o código, o comportamento e

a constituição de si mesmo como um sujeito moral. Uma coisa é o código moral, com suas

prescrições de “valores e regras de ação propostas aos indivíduos e aos grupos por

intermédio de aparelhos prescritivos diversos” (FOUCAULT, 2006a, p. 26); outra coisa é o

comportamento moral, ou seja, a efetiva conduta adotada pela pessoa diante das

prescrições do código. Já a constituição de si como um sujeito moral é o que o autor chama

propriamente por ética, ou seja, as relações singulares por meio das quais os sujeitos

problematizam a experiência de si.

Em suma, para ser dita “moral” uma ação não deve se reduzir a um ato ou

a uma série de atos conformes a uma regra, lei ou valor. É verdade que

toda ação moral comporta uma relação ao real que se efetua, e uma

relação ao código a que se refere; mas ela implica também uma certa

relação a si; essa relação não é simplesmente “consciência de si”, mas

constituição de si enquanto “sujeito moral”, na qual o indivíduo

circunscreve a parte dele mesmo que constitui o objeto dessa prática

moral, define sua posição em relação ao preceito que respeita, estabelece

para si um certo modo de ser que valerá como realização moral dele

mesmo; e, para tal, age sobre si mesmo, procurando conhecer-se,

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controlar-se, põe-se à prova, aperfeiçoa-se, transforma-se (FOUCAULT,

2006a, p. 28).

Se nos trabalhos dos domínios da arqueologia e da genealogia, Foucault

preocupava-se em analisar como o sujeito era constituído, respectivamente, pelas técnicas

discursivas do saber e pelos mecanismos de poder normalizador, a partir do domínio da

ética, o problema privilegiado para Foucault será como o sujeito se constitui a si mesmo a

partir de tecnologias de si em suas relações com o saber e com o poder (FONSECA, 2012).

Há, dessa forma, um deslocamento em sua genealogia do sujeito moderno: da dupla

ontologia saber-poder para uma tripla ontologia saber-poder-subjetividade (ORTEGA,

1999).

Portanto, no domínio da ética, Foucault privilegia as tecnologias de si por meio das

quais um sujeito se conhece e se transforma, visando alcançar uma forma de vida que lhe

pareça mais aceitável (WEINMANN, 2006). Por tecnologia de si, Foucault (1997, p. 109)

compreende os procedimentos “pressupostos ou prescritos aos indivíduos para fixar sua

identidade, mantê-la ou transformá-la em função de determinados fins, e isso graças a

relações de domínio de si sobre si ou de conhecimento de si por si”. Portanto, somente no

domínio da ética é possível falar em subjetivação e não em assujeitamento, em governo de

si e não apenas em governo dos outros.

Com tal definição de tecnologias de si, rejeita-se a afirmação de um sujeito

universal ao “mostrar que as pessoas são muito mais livres do que pensam, que elas tomam

por verdadeiros, por evidentes certos temas fabricados em um momento particular da

história, e que essa pretensa evidência pode ser criticada e destruída” (FOUCAULT,

2010h, p. 295). O que se pretende destacar, portanto, é que a subjetividade não é algo

primeiro, pronto, acabado, essencial. Trata-se de um processo, uma conquista difícil, fruto

de múltiplos agenciamentos entre saberes, práticas, governo de si e dos outros nas tramas

históricas de sua constituição.

Com efeito, compreendem-se os modos de subjetivação como frutos de

experiências históricas, coletivas, relacionados a múltiplas práticas sociais tanto de

governo dos outros como de governo de si. A subjetivação é situada, assim, no campo das

condições históricas de sua produção, da tensão estabelecida nas relações de poder que

possibilita modalidades de existência (FOUCAULT, 1999; 2010b).

Os modos de subjetivação perguntam pelas condições de produção do ser humano,

ligadas a fatores heterogêneos que permitem o surgimento de determinados modos de ser.

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Percebe-se uma descentralização de qualquer interioridade psicológica em favor de uma

noção de subjetividade dotada de complexidade, uma vez que sua constituição leva em

consideração uma multiplicidade de elementos (linguísticos, institucionais, legais, sociais,

culturais, midiáticos). Sendo assim, os modos de subjetivação são frutos de múltiplos

agenciamentos sociais.

Um desses agenciamentos produtores de subjetivação é a educação escolarizada. As

teorias e práticas pedagógicas são operadores de tecnologias de si capazes de colocar em

funcionamento certas relações do sujeito consigo mesmo (LARROSA, 1994). Assim, as

práticas pedagógicas são operadoras de uma “experiência de si” ao produzirem e mediarem

alguma modalidade da relação consigo, como objetivo explícito de sua transformação.

O sujeito pedagógico ou, se quisermos, a produção pedagógica do sujeito,

já não é analisada apenas do ponto de vista da “objetivação”, mas

também e fundamentalmente do ponto de vista da “subjetivação”. Isto é,

do ponto de vista de como as práticas pedagógicas constituem e medeiam

certas relações determinadas da pessoa consigo mesma. Aqui os sujeitos

não são posicionados como objetos silenciosos, mas como sujeitos

falantes; não como objetos examinados, mas como sujeitos confessantes;

não em relação a uma verdade sobre si mesmos que lhes é imposta de

fora, mas em relação a uma verdade sobre si mesmos que eles mesmos

devem contribuir ativamente para produzir (LAROSA, 1994, p. 54).

Portanto, vê-se que a escola não é um mero espaço neutro para transmissão e

aquisição de conhecimento do “mundo exterior”, pois funciona como um aparato de

subjetivação a partir do qual o ser humano se fabrica (LARROSA, 1994). Daí pode-se

inferir a importância de uma legislação cuja intenção é atrair travestis e transexuais para a

educação formal. A escola é um dos elementos que compõem o dispositivo pedagógico,

uma tecnologia que produz governo de si.

Gerenciar o governo de si se reveste de importância devido a sua função na

governamentalidade atual. A partir da ideia de poder como governo, Foucault passa a

“considerar que relações de poder/governamentalidade/governo de si e dos outros/ relação

de si para consigo compõem uma cadeia, uma trama e que é em torno destas noções que se

pode articular a questão da política e a questão da ética” (FOUCAULT, 2011, p. 225).

Há, portanto, um entrelaçamento fundamental entre as tecnologias políticas de

dominação sobre os outros (por exemplo, as políticas públicas de regulação da vida, como

a Portaria do Nome Social) e as tecnologias de si. A relação entre o governo dos outros e o

governo de si é de tal forma estreita, que se pode afirmar que só é possível governar os

outros por meio das tecnologias de si. Nesse sentido, para se governar os outros, por meio

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de políticas e práticas diversas, faz-se necessário governar as subjetividades, produzir

determinados modos de ser mais favoráveis aos objetivos da governamentalidade em

questão.

A partir de tais problematizações, pode-se compreender a questão que anima este

capítulo: quais os efeitos de subjetivação produzidos pela Portaria do Nome Social entre

aqueles/as a que tal legislação se destina? Tal política é o disparador para se percorrer a

dobra analítica entre o governo de si e o governo dos outros no que se refere à vida de

travestis e transexuais. Pergunta-se, portanto, sobre os efeitos de normalização e sobre as

possíveis práticas de resistência produzidas a partir da ação de autorizar o uso do nome

social de travestis e transexuais nas escolas.

Interlúdio 8: Valesca, sua vida, sua identidade

Ela cursa Biologia no Instituto Federal de Educação, Ciência e

Tecnologia do Pará, no campus Tucuruí, município a 400 quilômetros de

distância da capital, Belém. Trabalha como secretária em um escritório de

contábeis e, como voluntária, ministra aulas de Biologia para turmas de 5ª a

8ª série em um projeto social. Além disso, é bolsista de iniciação científica e

pretende seguir a carreira acadêmica, ingressando no mestrado e

posteriormente no doutorado em Neurociências.

Mas não é só a atividade acadêmica que anima a sua vida. Nos finais de

semana trabalha em um salão de beleza como designer de sobrancelhas e

participa de um grupo de teatro e é backing vocal de uma banda regional. É

ainda ativista do movimento LGBT de Tucuruí, participando de reuniões,

encontros e conferências sobre diversidade sexual e direitos humanos.

Trata-se de Valesca, uma jovem transexual de 22 anos. A partir do

momento em que teve contato com os movimentos LGBT de Tucuruí e a

estudar sobre as “identidades de gênero” disponíveis, passou a se categorizar

como uma mulher transexual. Em suas palavras: “conversando com amigas

travestis, eu acabo não me reconhecendo naquele perfil, pelo fato de como elas

se relacionam sexualmente: se prostituem e ainda utilizam o genital masculino.

Isso é clássico das travestis”. Além disso, apoia sua transexualidade no fato de

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só se relacionar com homens heterossexuais, como as “mulheres de verdade”

fazem. “Nunca namorei com gay”, ressalta Valesca.

Para ela a transexualidade é “algo que vem de dentro para fora e não de

fora para dentro”. Afirma que seu psicológico é 100% feminino: é muito

emotiva, cuidadosa, estudiosa, comportada e nunca foi promíscua. Planeja se

submeter ao processo transexualizador para poder “adequar” seu corpo à sua

alma feminina, mesmo que tenha que pagar por isso, no Brasil ou no exterior.

Diz que não tem tempo para esperar a cirurgia pelo SUS. Quer estudar,

trabalhar para, assim, poder pagar pelo corpo que considera apropriado para

si.

Valesca passou por várias situações discriminatórias durante sua vida

escolar: por ser gordinha, por ser “afeminada”, por chorar com facilidade,

por ter assumido a transexualidade como modo de vida. Hoje, Valesca diz que

não sentir preconceito em sua faculdade ou nos demais espaços que frequenta

diariamente. Acredita que conseguiu o seu espaço e o reconhecimento de seu

trabalho devido à sua dedicação aos estudos e por sua postura comportada e

“recatada de mulher”. Segundo ela, “é muito como o gay, o transexual, se

porta. Na escola, por exemplo, o uniforme era só a camisa e a parte de baixo

era livre. Mas eu não ia de short. Eu ia sempre de calça. Eu sempre tive pudor.

Nunca fui de andar nua por aí. Se vou pra praia, tudo bem. Mas tem local e

hora pra tudo, né?”.

Por meio de um plebiscito entre o alunado do instituto onde estuda,

decidiu-se permitir que ela e a irmã, também transexual, utilizassem o

banheiro feminino. É chamada pelo seu nome social, porém, não pelo pronto

cumprimento da Portaria do Nome Social ou das demais legislações que

garantem esse direito em âmbito federal, mas sim, devido à intervenção do

movimento LGBT junto ao instituto no qual estuda. Para ela, o nome social é

de fundamental importância. Só usa o nome masculino no último caso: “Nos

cadastros, sempre tem que ter aquele nome. Como se fosse uma sombra que

me persegue”. Sonha em trocar oficialmente de nome. “Não quero ter nome

social. Quero ter um nome e ponto”. Mas tem receio que a alteração de nome

invalide os certificados acadêmicos que tanto se orgulha de colecionar.

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4.1 Efeitos de identidade

Quais os modos de subjetivação efetuados por Valesca? Quais as técnicas de si

propiciadas pelo uso do nome social? Essas técnicas de si são capturadas por tecnologias

de controle? Há espaço para a formação de resistentes modos de vida? Em que medida há

relação ética consigo e em que medida ela é gerida apenas pelo poder da norma?

Pode-se dizer que Valesca luta ativamente para ser chamada e identificada pelo

nome que escolheu para si e para usar o banheiro que considera apropriado para ela, ou

seja, nega-se a usar o nome com o qual fora registrada ao nascer, assim como a usar o

banheiro masculino. Recusa, dessa forma, a norma que liga de maneira coercitiva sexo-

gênero-desejo. Caso seguisse essa lógica, Valesca, nascida com um corpo “masculino”,

deveria ser um homem e desejar mulheres. Porém, ela se afirma como uma mulher e deseja

homens. Por que é tão inadmissível, seguindo a heteronormatividade, pensar a

possibilidade de existência de uma mulher com pênis?

Em uma primeira análise, pode-se dizer que o uso do nome social incita a uma

resistência nas práticas de Valesca. Usar o nome que ela escolheu, que ela acha mais

adequado para si, é uma prática de resistência, uma vez que ela não aceita um governo da

subjetividade que naturaliza a relação entre corpo, gênero e sexualidade orientada pela

heteronormatividade. Ou seja, a matriz de inteligibilidade que sustenta essa naturalização é

a heterossexualidade compulsória, a heterossexualidade como única possibilidade viável e

compreensível de ser e estar no mundo.

Dessa forma, Valesca recusa o sistema que localiza o centro das identidades nas

estruturas corporais. Ela, assim como outras pessoas trans, demonstra que não somos

predestinados a cumprir as normas impostas a partir de nossas estruturas corpóreas

(BENTO, 2008; MÉLLO, 2012). Até porque, tais estruturas corpóreas não indicam algo

substantivo, portador de características essenciais, idêntico a si mesmo. Tampouco gênero

é a expressão de uma “identidade” preexistente. Com efeito, tanto sexo quanto gênero em

nenhum sentido revelam uma ordem verdadeira das coisas (BUTLER, 2003).

A própria interpretação de que existem dois corpos diferentes, radicalmente

opostos, foi uma verdade que, para se estabelecer e se tornar hegemônica, empreendeu uma

luta contra outra interpretação sobre os corpos: o isomorfismo. A pesquisa de Thomas

Laqueur (2001) sugere que até o século XVIII imperava na Europa o modelo do sexo

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único. Esse modelo, inspirado na filosofia de Galeno (129-200 d.C.), descrevia o corpo da

mulher como idêntico ao do homem, porém invertido: os ovários e a vagina das mulheres

eram o negativo imperfeito do pênis e dos testículos dos homens.

Somente no final do século XVIII é que se modifica essa maneira de descrever os

sexos. A distinção entre o feminino e o masculino passa a ser explicada pela biologia, por

propriedades consideradas “naturais”, específicas de cada sexo. De acordo com essa

concepção, cuja hegemonia se perpetua na atualidade, a mulher e o homem são portadores

de diferenças que não possuem nada em comum. A engenharia da diferença sexual –

espessura da pele, tamanho do crânio etc. – esquadrinhou os corpos com o objetivo de

provar as intensas diferenças entre o feminino e o masculino. É como se existisse uma

essência própria, singular a cada corpo, inalcançável ao outro.

Porém, a discussão de gênero trazida pelo movimento feminista, principalmente a

partir de 1960, veio denunciar que o gênero não deriva de forma determinista de um sexo.

Sendo a palavra sexo tradicionalmente associada ao conceito biológico, a noção de gênero

veio opor-se a esse determinismo anatômico nas relações entre os sexos, atribuindo-lhes,

agora, um caráter prioritariamente social (SCOTT, 1995; LOURO, 1995).

Não demorou muito para que a dicotomia sexo-natural versus gênero-cultural

também fosse radicalmente criticada. Beatriz Preciado (2002) afirma que postular nesses

termos a discussão sobre gênero é se apoiar na crença de que o corpo tem uma

materialidade biológica previamente dada. Como salienta Denise Sant’Anna (2000), o

corpo é alvo de infinitas e permanentementes descobertas, em um processo no qual ele

nunca é definitivamente revelado. O corpo, portanto, é um acontecimento histórico,

“relacionado aos receios e sonhos de cada época, cultura e grupo social” (SANT’ANNA,

2000, p. 237). A própria pesquisa de Laqueur (2001), ao mostrar a historicidade da

concepção de existência de dois sexos separados, afirma que o sexo também é produzido

socialmente por meio de nossos discursos, ciências, crenças. Portanto, não há sexo anterior

à cultura.

Segundo Judith Butler (2003), os atributos de gênero não são expressivos de

alguma substância essencial do ser humano, mas sim performativos: é a reiteração

constante de atos de fala (performativos) que levam à impressão de que certos enunciados

são “naturais”.

Se os atributos e atos de gênero, as várias maneiras como o corpo mostra

ou produz sua significação cultural, são performativos, então não há

identidade preexistente pela qual um ato ou atributo possa ser medido;

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não haveria atos de gênero verdadeiros ou falsos, reais ou distorcidos, e a

postulação de uma identidade de gênero verdadeira se revelaria uma

ficção reguladora (BUTLER, 2003, p. 201).

A partir das reflexões de Butler (2003), é possível afirmar que não há uma essência

que embasa as performances que os sujeitos apresentam. Os elementos considerados de um

gênero ou de outro – masculino ou feminino – são frutos de uma produção histórica que

acabam por dar uma aparência de gênero nos corpos. As roupas, gestos, desejos expressam

uma identidade que, ao invés de essencial, é fabricada justamente pela utilização

performática desses elementos. Nesse sentido, o gênero não possui um status ontológico

separado dos vários atos que constituem sua realidade.

Em outras palavras, os atos e gestos, os desejos articulados e postos em

ato criam a ilusão de um núcleo interno e organizador do gênero, ilusão

mantida discursivamente com o propósito de regular a sexualidade nos

termos da estrutura obrigatória da heterossexualidade reprodutora

(BUTLER, 2003, p. 195).

Preciado (2002) propõe que, mais que performático, o gênero é protético, uma

prótese que não pode ser despregada da materialidade dos corpos. É nesse sentido que

Ricardo Méllo (2012) afirma que gênero não são performances, mas sim produtos

biopolíticos, pois não são os atos, as performances em si que interessam, mas o

governamento que produz gêneros. Os corpos não se separam da política e da

racionalidade produzidas sobre eles. O foco de análise não está no corpo, mas na rede que

o constitui.

Os corpos não contêm nenhum sexo e nenhuma performance definida,

mas se constituem no modo como são vividos em uma potencialização

política heterocentrada: medicalização, cirurgias, ornamentação, indústria

pornográfica, tecnologias jurídicas e midiáticas, congressos científicos

etc. Essas políticas mais que regular os corpos, os maquinizam. Corpo é

gerenciamento biopolítico, gestão (calculada) sobre os fluxos da vida.

Definiu-se que o corpo tem sexo e os usos diferenciados que se devem

fazer dele (MÉLLO, 2012, p. 202).

Tal controle político dos corpos se inicia mesmo antes de um corpo nascer. Antes

do nascimento, o corpo já está inscrito em um campo discursivo determinado, em um

conjunto de expectativas estruturadas em redes complexas de pressuposições sobre

comportamentos, interesses e subjetividades. Dizer o “sexo” do bebê (é menino ou

menina?) não revela simplesmente o sexo da criança, mas o produz. É uma tecnologia de

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gênero, ou seja, um conjunto de instituições e técnicas que produzem masculinidade ou

feminilidade condicionada ao órgão genital (PRECIADO, 2002).

Tais masculinidade e feminilidade são produzidas por investimentos biopolíticos

que vão desde a escolha de cores, brinquedos e roupas adequados para cada “sexo” até as

expectativas sobre o futuro dessa criança, previsão de seus gostos, comportamentos, modos

de ser. Por outro lado, os corpos que ameaçam essa coerência sexo/gênero são

sancionados, como é o caso dos bebês intersexo. Logo ao nascer, é aconselhável que essa

criança se submeta a uma série de exames e processos químicos e cirúrgicos para eliminar

a ambiguidade, para se tornar um corpo inteligível, ou seja: um menino ou uma menina.

Como se não houvesse outra possibilidade de existência fora desse binarismo “essencial”.

Figura 2: Ilustração do cartunista Laerte. Armazenada no dia 25 de setembro de 2011.

Desse modo, o corpo já nasce atravessado pela cultura, na qual o sexo é uma das

normas pelas quais alguém simplesmente se torna viável, que qualifica um corpo para a

vida inteligível63

. Como afirma Bento (2011, p. 551): “a suposta descrição do sexo do feto

funciona como um batismo que permite ao corpo adentrar na categoria ‘humanidade’”.

Preciado (2002) sugere que todas as pessoas já nascem operadas por tecnologias

sociais precisas, uma vez que não existe corpo livre de investimentos discursivos e

políticos. Tal tecnologia de diferenciação sexual funciona como uma “mesa de operação

abstrata” pela qual todas as pessoas são submetidas (PRECIADO, 2002, p.102). Com

efeito, a cirurgia de transexualização – tão desejada por Valesca e por outras pessoas trans

– é uma mesa de operação secundária, na qual se renegocia o trabalho realizado sobre as

63

Atualmente há um movimento de resistência a esse binarismo identitário, como por exemplo, a não

revelação do “sexo” do bebê por parte dos pais. Para os defensores dessa prática, as crianças crescem sem a

prisão identitária de pertencer a este ou aquele gênero.

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operações de gênero abstratas pela qual todas as pessoas passam, independentemente de

serem heterossexuais, homossexuais, bissexuais, transexuais ou travestis.

Os procedimentos médicos de “adequação sexual” asseguram a inclusão de todo

corpo em um dos dois sexos/gêneros reciprocamente excludentes. Percebe-se que no

interior dessa lógica dicotômica não há lugar para deslocamentos: o único lugar habitável

para o feminino é em corpos de mulheres, e para o masculino, em corpos de homens

(BENTO, 2008).

Como Valesca não se conforma às normas impostas culturalmente, ou seja, a

heteronormatividade, ela é analisada como uma falha, biológica ou moral, no

desenvolvimento. Nas palavras de Butler (2003, p. 39): “A matriz cultural por intermédio

da qual a identidade de gênero se torna inteligível exige que certos tipos de ‘identidade’

não possam ‘existir’ – isto é, aquelas em que o gênero não ‘decorre’ do sexo e aquelas que

as práticas do desejo não ‘decorrem’ nem do ‘sexo’ nem do ‘gênero’”.

Nesse sentido, Valesca é vista como um acidente sistemático produzido por uma

maquinaria heterossexual. Uma vez que o gênero não deriva (como se algum derivasse!)

do sexo biológico, o modo de ser de Valesca é estigmatizado como anormal, abjeto, em

benefício da estabilidade das práticas de produção do normal, natural (BUTLER, 2003).

Como nos diz Preciado (2002), diante da não existência de um “real masculino” ou “real

feminino”, toda aproximação imperfeita deve ser renaturalizada, normalizada, para

benefício do sistema sexo/gênero. Em contrapartida, todo distanciamento –

homossexualidade, transexualidade etc. – é considerado uma exceção perversa que

confirma a regularidade da suposta natureza sexual humana.

Porém, se entendemos a heterossexualidade como uma tecnologia biopolítica e não

como uma origem natural fundadora dos corpos e desejos, não há subversão em escapar da

maquinaria heteronormativa. A experiência identitária vivida por Valesca só é considerada

como uma subversão se levarmos em consideração um código sexual transcendental falso

(PRECIADO, 2002).

Além disso, é preciso relativizar a resistência à heteronormatividade vivida por

Valesca. Se resistir é antes de tudo inventar (FUGANTI, 2007), pode-se dizer que ela

resiste à heteronormatividade? Consegue resistir aos saberes e poderes que a constitui

enquanto mulher transexual? Ela cria formas de viver imprevisíveis às relações de poder

que visam cooptá-la? Há uma relação ética consigo ou ainda é orientada pelas normas

estabelecidas?

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A partir das relações que Valesca estabelece consigo mesma na produção de si

enquanto mulher transexual, percebe-se o quanto ela está capturada pelo jogo de

identidades binárias. Se por um lado Valesca resiste a se adequar a um dos gêneros

inteligíveis – ou seja, “aqueles que, em certo sentido, instituem e mantêm relações de

coerência e continuidade entre sexo, gênero, prática sexual e desejo” (BUTLER, 2003, p.

38) –, por outro, ela sucumbe a esta mesma matriz de inteligibilidade ao se fixar em uma

postura (bastante conservadora, diga-se de passagem) de “ser mulher”.

A “identidade transexual” apresentada por Valesca está diretamente relacionada ao

modo de viver que se espera socialmente de uma mulher: é carinhosa, atenciosa, estudiosa,

decente, bem-comportada. Comporta-se, portanto, a um perfil identitário. Inclusive, credita

o preconceito vivenciado por muitos homossexuais (e demais segmentos LGBT) ao modo

como eles se comportam: usam roupas inapropriadas para o ambiente em questão, são

promíscuos e não dão prioridade aos estudos.

Trata-se então, de uma captura a um tipo de “dever-ser” mulher, como se houvesse

uma identidade inerente àquelas que nascem com uma anatomia considerada feminina. Ela,

portanto, esforça-se para alcançar esse ideal. Em outros termos, ela resiste à coerência

heteronormativa que liga sexo-gênero-desejo por ser uma mulher com um corpo

masculino, porém, na tentativa de redimir esse “erro da natureza”, assume um modelo

hegemônico de ser mulher que acaba por ser capturada pela norma que aparentemente

subverte.

A Portaria do Nome Social contribui para essa vinculação identitária, uma vez que

é preciso “se assumir” como travesti ou transexual para poder ter o nome pelo qual se

identifica na lista de frequência e demais documentos escolares. Valesca precisa, portanto,

confessar seu sexo, seu gênero, sua identidade para conseguir aquilo que considera um

direito. Nesses termos, a Portaria do Nome Social passa a ser um dispositivo confessional,

levando Valesca – e demais pessoas que desejam ser chamadas por um nome diferente do

registrado em cartório – a assumir uma identidade trans.

Em resumo, para ser açambarcada pela política do nome social, ela precisa aderir a

uma identidade, no caso, transexual. A política do nome social vincula Valesca a uma

identidade e é por meio dela que se estabelece uma série de tecnologias de controle. É

preciso se vincular a alguma categoria identitária para vir a ser alguém: homem, mulher,

travesti, transexual... E para cada um desses segmentos há normas de condutas, estilos de

vida apropriados, desejos específicos. Há uma mensagem social que diz: “as mulheres são

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recatadas, sensíveis, carinhosas, cuidadoras etc. Desejam ser bonitas, poderosas e seduzir

homens. Logo, se você é uma mulher transexual, então, deve se adequar a esse perfil

identitário”.

Vale ressaltar que há um movimento que resiste a tais prescrições de gênero. Como

questiona Leonardo Tenório, presidente da Associação Brasileira de Homens Trans: “para

ser ‘diagnosticado’ como homem, eu tenho que ser bruto, cuspir no chão e ser

machista?”64

. Ou seja, se há tantas formas de homem ou mulher, por que haveria de ter

uma (e apenas uma) forma de ser trans?

Ainda hoje a referência para diagnosticar uma mulher transexual65

é a

categorização de Harry Benjamin, para a qual, para Valesca vir a ser considerada uma

verdadeira transexual, deve apresentar-se como uma pessoa assexuada, uma vez que

repudia seu órgão genital masculino. Por conta disso, deve sonhar em realizar a cirurgia

para adequar o seu corpo ao seu psicológico. Desse modo, há uma série de normas que

regulam o “dever-ser” transexual e Valesca acaba por ser capturada por tais prescrições.

Percebe-se, então, que o controle está na própria vinculação de um modo de vida a

um padrão de identidade. Neste caso, assumir uma identidade participa do dobramento do

poder, isto é, obedecer a essas construções identitárias de gênero e sexo é o próprio

operador do governo da alma:

O governo da alma depende de nos reconhecermos como, ideal e

potencialmente, certo tipo de pessoa, do desconforto gerado por um

julgamento normativo sobre a distância entre aquilo que somos e aquilo

que podemos nos tornar e do incitamento oferecido para superar essa

discrepância, desde que sigamos o conselho dos experts na administração

do eu (ROSE, 1988, p. 44).

Esse governo da alma – que busca governar as pessoas a partir das características

que as definem como “eu” – investe em identidades, diagnósticos e tratamentos, orientado

pela crença de que descobrir a “verdade de nós mesmos” tem um potencial de libertação,

uma vez que é um passo para a aceitação do que somos. Foucault (2003b, p. 149) finaliza o

primeiro volume de sua História da Sexualidade afirmando: “Ironia deste dispositivo: é

preciso acreditarmos que nisso está nossa ‘libertação’”.

64

Comunicação realizada durante o evento “Identidades trans e políticas públicas de saúde: contribuições da

psicologia”, promovido pelo Conselho Regional de Psicologia de São Paulo, no dia 14 de março de 2013. 65

Dou o exemplo feminino, pois, para Benjamin (2011), os casos de transexualidade em mulheres biológicas

(homens trans) são raros, sendo compreendidos como casos extremos de homossexualidade feminina.

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Porém, não há libertação em descobrir e assumir uma suposta identidade. Na

entrevista intitulada Da amizade como modo de vida, Foucault (2010f) critica a adesão a

uma identidade homossexual que pode facilmente ser estendida para a questão da

travestilidade e da transexualidade:

Outra coisa que constitui um desafio é a tendência de trazer a questão da

homossexualidade para o problema de “Quem sou eu? Qual o segredo do

meu desejo?”. Talvez fosse melhor perguntar: “Quais relações podem ser,

através da homossexualidade, estabelecidas, inventadas, multiplicadas,

moduladas?”. O problema não é descobrir em si a verdade de seu sexo,

mas antes usar sua sexualidade para chegar à multiplicidade de relações

(FOUCAULT, 2010f, p. 348).

Foucault (2010f) nos convoca a recusar uma determinada individualidade imposta e

a multiplicar as formas de vida. Eis por que tentar responder à questão “quem é você?” é

nossa maneira contemporânea de obedecer. “Quanto mais eu me procuro, tanto mais

obedeço ao Outro” (GROS, 2008, p. 137). E quanto mais eu obedeço ao clamor identitário,

mais eu renuncio a formas criativas de viver. Portanto, o que nos aprisiona é a própria

busca de uma identidade, pois nos fixa a um dispositivo de obediência a modos de ser já

estabelecidos.

O que se percebe com a vivência de Valesca é que a subjetividade se produz por

meio de um processo agonístico: é uma luta permanente. Há uma resistência frente à

heteronormatividade ao mesmo tempo em que há adesão à norma. Valesca mostra que não

há formas de vida completamente capturadas por relações de poder, assim como não há

vida totalmente livre das malhas do poder. As relações de poder têm fissuras, brechas, e é

justamente devido a essas falhas que o poder é tão eficaz. A vitalidade das relações de

poder está em seu inacabamento compulsório, uma vez que as tornam móveis, flexíveis,

tendo a reinvenção como sua característica constitutiva (AQUINO; RIBEIRO, 2009).

Dessa forma, a partir do momento que Valesca resiste à norma heterossexual ao se

assumir uma mulher transexual, as relações de poder são reinventadas e se oferecem de

outra forma: “Você não quer ser homem, então, que seja uma transexual. Mas perceba que

há várias características que precisam ser cumpridas para você adentrar a essa nova

categoria identitária”.

Tal controle também é feito pelas próprias travestis e transexuais. Em nossas

conversas, Leila reclama que Brenda, também entrevistada nesta pesquisa, não a considera

uma transexual, pois possui poucas modificações corporais. Brenda recrimina Leila

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dizendo que ela é um homem vestido de mulher e ponto. Ou seja, não a autoriza como

membro da categoria transexual.

Diante dessas considerações, não se pretende direcionar uma crítica pessoal a

Valesca por sua adesão identitária. A identidade transexual se apresentou para ela como

uma linha de fuga de um modo de vida que a fazia sofrer, uma vez que ela era obrigada a

viver como um menino, sendo que se sentia uma menina. A “descoberta” da

transexualidade, dessa forma categorizada de vida, foi um alívio, um conforto para suas

questões e incompreensões, pois soube que havia outras pessoas passando por situações

semelhantes. A crítica recai, então, a essa fome identitária produzida pelo dispositivo da

sexualidade, que vincula os modos de vida a um determinado exercício da sexualidade.

Nesse sentido, as políticas de identidade podem se tornar cúmplices do sistema contra o

qual ela pretende se insurgir, ou seja, a identidade sexual como uma forma de controle da

vida, de padrões normalizantes de condução de si. Foucault, em uma entrevista concedida

em 1984, afirma:

Embora do ponto de vista tático seja importante poder dizer, em dado

momento, “eu sou homossexual”, não se deve, em minha opinião, por um

tempo mais longo e no quadro de uma estratégia mais ampla, formular

questões sobre identidade sexual. Não se trata, portanto, nesse caso, de

confirmar sua identidade sexual, mas de recusar imposição de

identificação à sexualidade, às diferentes formas de sexualidade. É

preciso recusar satisfazer a obrigação de identificação pelo intermédio e

com auxílio de uma certa forma de sexualidade (FOUCAULT, 2006b, p.

338).

Como nos diz Luiz Fuganti (2007), o que tem que ser destruído não sou eu nem o

outro, mas uma maneira de ser que nos atravessa. Uma maneira de ser (moral) que se liga à

obediência, que liga a existência ao que ela deve fazer e não ao que pode fazer. A crítica se

direciona, portanto, às limitações que a adesão identitária estabelece aos modos de vida

possíveis. Por exemplo, se Valesca é uma mulher transexual, logo ela deve desejar

homens. E se ela um dia se apaixonasse por uma mulher? Há os que dirão que isto é um

sintoma do que ela “realmente é”, ou seja, um homem, pois, partindo-se da

heteronormatividade, só homens desejam mulheres. Por que é tão difícil aceitar uma

mulher transexual que deseja uma outra mulher?

Com efeito, quanto mais se satisfaz a fome identitária, mais se renuncia a

possibilidades outras de vida criativas. Quantas forças são esmagadas quando se diz que é

necessário encontrar a verdadeira identidade em si? (FUGANTI, 2007). Por isso, Foucault

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(2010g) nos convoca a recusar o que somos, a recusar o tipo de individualidade imposta e a

abrir as portas para as forças que nos atravessam. Ao invés de lutas identitárias, luta contra

a submissão da subjetividade, reinventando-se sem recorrer à identidade.

Interlúdio 9: Raica volta à escola

Raica, depois de tudo que passou durante sua vida na prostituição,

voltou a estudar. Com a notícia da Portaria do Nome Social, matriculou-se na

turma do EJA (Educação para Jovens e Adultos) em uma escola pública no

centro de Belém. Lá, pôde ter o prazer de ver o seu nome Raica Monteiro

Araújo na lista de frequência escolar. “Quando veio essa portaria, eu voltei a

estudar, mas na intenção de me politizar. Isso me motivou, porque eu sabia

que não ia ser chamada de Raimundo Nonato. Eu não ia ter que negociar com

professor, com diretor, com ninguém. Automaticamente, no ato da inscrição, o

meu nome já estava lá. Na minha escola foi respeitada a portaria. Eu não

posso te dizer das outras, porque eu não fiscalizei nas outras escolas”.

Antes da Portaria do Nome Social, Raica era alvo de uma série de

situações vexatórias na escola devido ao nome que carregava como um fardo.

Atualmente, apesar de ser chamada pelo nome Raica por professores e

colegas, sua presença na escola continua a provocar estranheza,

materializada nos olhares curiosos ou mesmo na insistente pergunta que os

mais audaciosos lhes dirigem: “Você é mulher de verdade?”. Quanto a isso

Raica é enfática: “Não quero ser mulher. As pessoas se enganam pensando

isso. É chato ser mulher. A mulher menstrua, sente dor de cólica, pra ter

neném. Eu sou travesti, um homem e uma mulher num corpo só. Não quero ser

mulher e nunca vou ser mulher. Eu sou travesti”.

A estratégia utilizada para se relacionar com as pessoas na escola é

fazer amizades. Gosta de agradar a todos. Assim, ela conquista o meio no qual

está inserida, sendo engraçada, divertida, estando sempre bem-humorada.

Acredita que adquire respeito das pessoas porque sabe se comportar. Por

exemplo, não usa roupas curtas ou provocantes para ir à escola.

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120

Voltou a estudar, porque, segundo ela, “estava sendo rejeitada pela

sociedade”. A educação é vista como uma via para ter mais oportunidades de

trabalho, para conhecer seus direitos e buscar outras possibilidades de vida.

Atualmente, seu desejo é terminar o ensino médio e se candidatar a vereadora.

Ela está desacreditada com a luta pelos direitos das travestis por meio da ação

da sociedade civil organizada. Anseia ser vereadora para ajudar as travestis

que estão na prostituição, as que cotidianamente são violentadas pelo seu

modo de viver.

Apesar de ter voltado a estudar incentivada pela portaria, Raica critica

o alcance da mesma: “Poucas travestis voltaram a estudar. Elas nem sabiam

da portaria. A mídia nem divulgou isso. O que é interessante é mostrar travesti

na prostituição, marginalizada; não é interessante mostrar travesti na escola”.

De acordo com Raica, a escola já é algo distante da vida de muitas travestis,

pois, diante de tanta exclusão social, elas não acreditam que qualquer questão

de cidadania, como a inclusão escolar, seja algo dirigido para elas.

4.2 Efeitos disciplinares e de regulação

A Portaria do Nome Social convoca travestis e transexuais para a escola e Raica é

uma das poucas pessoas em Belém, pelo menos até o momento, que diz sim a esse convite.

Cabe, porém, questionar: por que facilitar a vida escolar de travestis e transexuais? Quais

os interesses envolvidos nessa convocação? Por que promover inclusão escolar para

pessoas consideradas abjetas, marginais, imorais? Em suma, por que incluir travestis e

transexuais nas escolas?

A escola é um espaço orientado, entre outras coisas, à constituição e à

transformação da maneira pela qual as pessoas se descrevem, se narram, se julgam ou se

controlam a si mesmas. Configura-se, portanto, como um dos elementos que compõem o

dispositivo pedagógico, uma tecnologia que produz governo de si (LARROSA, 1994).

O dispositivo pedagógico evoca uma pedagogização de si66

por meio de operações

discursivas que produzem subjetivação. Tal pedagogização de si está relacionada a um

processo de educar o viver, no sentido de uma regulação de si: faça isso, não faça aquilo,

66

Termo utilizado pela Profa. Dra. Cintya Ribeiro durante o exame de qualificação dessa tese.

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respeite os mais velhos, use preservativo, cuide do seu corpo para não adoecer, tenha

precaução para não ser agredido etc.

Percebe-se então que a função da escola não é apenas ensinar; é também regular os

comportamentos, as emoções, a sexualidade, a vida. Resumindo, educar é controlar! E essa

pedagogização de si é operada tanto por dispositivos disciplinares como de regulação.

Como nos diz Julio Aquino e Cintya Ribeiro (2009, p. 61): “Trata-se de compatibilizar

dois níveis paralelos e complementares de gestão da vida social: o anátomo-político, por

meio do disciplinamento corpo-máquina, e o biopolítico, por meio da regulação do corpo-

espécie (previsões, estatísticas, medições globais etc.)”.

Cesar Candiotto (2011) reafirma essa compatibilidade ao dizer que seria

impossível, por exemplo, controlar as sexualidades dissidentes em termos de regulação

biopolítica se as instâncias disciplinares, como a escola, mas também a família, não

vigiasse o corpo a partir de um detalhamento espaço-temporal de suas atividades. Dessa

forma, percebe-se que a escola, apesar das intensas transformações contemporâneas,

continua mantendo um vínculo com a lógica disciplinar moderna.

Foucault (2003a) identifica a escola como uma das instituições disciplinares de

destaque na obra Vigiar e Punir. O autor cita diversas vezes a escola, ao lado da prisão,

hospital, manicômio, quartel, entre alguns outras, como uma instituição que tem por

objetivo direcionar a vida, o corpo, especialmente a partir de uma perspectiva individual.

Sendo a disciplina uma técnica para ordenar as multiplicidades humanas, a escola se

constitui como mecanismo de disciplinamento, serializando e conformando as pessoas a

partir de sanções, recompensas e exames.

A escola, entre outras instituições disciplinares, é considerada por Foucault (2005)

uma instituição de sequestro: sequestra as pessoas por um determinado tempo das suas

vidas na intenção de garantir que elas interiorizem determinadas normas. Se as instituições

de reclusão visam excluir as pessoas do círculo social do qual vivem, as instituições de

sequestro querem fixar tais pessoas em um aparelho de produção, correção, formação,

normalização. E o sucesso desses procedimentos está nos dispositivos de interiorização que

as instituições de sequestro lançam mão, ou seja, um olhar para si que não pode estar

desconectado da norma exigida. O novo objetivo das instituições de sequestro, emergente

no século XIX, não é excluir, mas sim, incluir as pessoas, porém, de acordo com a norma.

Desse modo, a escola quer incluir e normalizar. Incluir para normalizar. Incluir-

normalizando.

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A insistência da norma é operacionalizada na escola por meio dos olhares

direcionados a Raica desde o momento em que ela entra na instituição. É um olhar

vigilante que constitui Raica como um ser irregular. Para que esse sistema de vigilância

produza o comportamento desejado em Raica, ela é alvo de formas sutis de punição, que

objetivam reduzir seu “desvio”. Punição expressa quando o/a professor/a se nega a se

referir a Raica pelo nome que ela deseja ser identificada; quando esse/a mesmo/a

professor/a recorrentemente chama Raica por seu nome masculino, ridicularizando-a em

sala de aula; quando os/as colegas fazem piadas, dirigem insultos a ela simplesmente pelo

fato de ela não obedecer à norma hegemônica de se vestir e de se relacionar com o corpo.

Raica é punida pelo seu modo de viver, por sua transgressão impressa em seu

corpo. Não são as atitudes de Raica que são punidas; pune-se o que ela é. Uma vez

estabelecido o padrão de normalidade, tenta-se fazer com que Raica, a desviante,

conforme-se a ele. O que se pretende com tais punições é que ela corrija o seu modo de ser

interpretado como irregular. Com efeito, a punição é um instrumento para que a norma se

estabeleça.

Percebe-se assim, elementos da tecnologia disciplinar, na qual o ponto de onde

emerge o processo de normalização é a norma. Há um aspecto prescritivo que determina

aquele a ser considerado normal ou anormal. É a norma que padroniza, que define um

modelo prévio a partir do qual todos devem ser categorizados. Nas palavras de Foucault

(2008a, p. 75):

A normalização disciplinar consiste em primeiro colocar um modelo, um

modelo ótimo que é construído em função de certo resultado, e a

operação de normalização disciplinar consiste em procurar tornar as

pessoas, gestos, atos, conformes a esse modelo, sendo normal

precisamente quem é capaz de se conformar a essa norma e o anormal

quem não é capaz.

Porém, não se pode dizer que vivenciamos uma escola eminentemente disciplinar

na contemporaneidade. Talvez a tecnologia disciplinar nunca tenha se estabelecido no

Brasil tal como analisado por Foucault (2003a) no contexto europeu67

. De todo modo, o

que se percebe é que a escola não é regida unicamente pelo dispositivo disciplinar, ainda

que faça uso de seus mecanismos, como analisado acima no caso de Raica. O principal

objetivo da escola na atualidade é governar os corpos, regulá-los a partir das tecnologias

biopolítica de intervenção na população. Portanto, elementos dos dispositivos disciplinares

67

Consideração feita pela Profa. Dra. Denise Sant’Anna durante o exame de qualificação desta tese.

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e os de regulação atuam de forma sincrônica, em dosagens variadas dependendo do

contexto analisado, no atual cotidiano escolar.

Diferentemente da normalização disciplinar68

, a normalização da sociedade de

seguridade (neo)liberal (biopolítica) opera a partir do cálculo de um padrão normal para

cada grupo, fixando as pessoas em uma escala de normalidade e não na polaridade normal

versus anormal.

Com efeito, a norma não é tão rigidamente fixada na regulação biopolítica. Ao

contrário, a norma é moldável, dependente dos acontecimentos que a “realidade” apresenta

(FOUCAULT, 2008a). Neste caso, não se anseia a homogeneização das pessoas ou

comportamentos. O que ocorre é uma distribuição das diferentes normalidades com a

finalidade de reduzir as normalidades mais desfavoráveis, mais desviantes em relação à

curva normal, assim sendo, são as distribuições de normalidade que vão orientar a norma.

Assim, delimitam-se níveis aceitáveis de normalidade ao invés de impor uma norma e,

nesse sentido, a relação com a normalidade, ao invés de polarizada, torna-se pluralizada.

Há poucas esperanças, por exemplo, que travestis e transexuais retornem à norma

regulatória heterocentrada, uma vez que a maioria delas/es já se submeteu a intervenções

corporais para a fabricação de si (SANTOS, 2010). Objetiva-se, portanto, que elas/es se

enquadrarem em uma modulação normativa mais favorável: ao invés de viver na

prostituição e na marginalidade, que estudem e tenham empregos regulares, que paguem

impostos e entrem nos cálculos do Estado.

Portanto, há uma convocação da diversidade para a escola. “Persegue-se a

convocação à participação numa velocidade capaz de suprimir resistências, integrando a

todos” (PASSETI, 2004, p. 157). Reunidas, podem ser mapeadas e assim, tem-se um

panorama das multiplicidades de formas de ser possíveis. O objetivo é rastrear aquilo que

tende a escapar das modulações normativas mais prováveis e, dessa forma, ampliar a

modulação normativa para toda a parte (AQUINO; RIBEIRO, 2009). Não é uma

padronização, uma vez que é permitido experimentar diversos modos de vida, desde que

estejam, de algum modo, regulados por uma boa relação custo-benefício.

Não se trata simplesmente de vigiar e punir ou de expulsar a anormalidade na

atualidade escolar, mas de convertê-la em diversidade biopolítica. “Dito de outro modo, os

fazeres escolares visariam não apenas a exclusão dos diferentes, mas à adesão voluntária

68 Como é a partir da norma que se estipulam o normal e o anormal, Foucault (2008a) chama o processo de

normalização produzido pelo poder disciplinar de “normação”, diferenciando da “normalização” encontrada

na sociedade regida pelos dispositivos de segurança.

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de todos, não apenas à coerção do disciplinamento, mas à cooptação do controle [...]”

(AQUINO; RIBEIRO, 2009, p. 65).

Na atualidade, chamada por Gilles Deleuze (1992a) de sociedade de controle, a

escola não visa simplesmente à produção de corpos dóceis, úteis e produtivos: ela quer

produzir trabalhadoras/es conectadas/os, competitivos/as e motivados/as. Em um

importante ensaio – Post-scriptum sobre as sociedades de controle –, Deleuze (1992a)

aponta que o próprio Foucault (2008b) já havia anunciado o provável enfraquecimento da

disciplina como modelo de análise da contemporaneidade.

Em o Nascimento da Biopolítica, Foucault (2008b) analisou os deslocamentos

contemporâneos e as novas capturas do biopoder: desde os anos 1960 vê-se o crescimento

de uma sociedade empresarial, efeito indissociável da política neoliberal. A racionalidade

política do neoliberalismo, especialmente em sua versão americana, generaliza a política

de mercado para todo o corpo social. Nesse sentido, a economia passa a ser a racionalidade

para organizar o cotidiano das pessoas. Há uma conversão das relações sociais em relações

econômicas e a educação, claro, não ficou de fora desse processo.

Maria Rita César (2004) apresenta uma série de propostas de reformas educacionais

ocorridas na década de 1990 realizadas com patrocínio de instituições financeiras69

,

demonstrando que a educação é alvo de preocupação do mercado e da economia. A autora

destaca que nessa época as reformas educacionais entraram na ordem do dia, pois os

índices educacionais dos países “em desenvolvimento”, como o Brasil, passaram a ser um

indicativo de sua “saúde econômica”. Como nos apresenta César (2004, p. 95): “As

instituições financeiras, tendo como base a melhora social e econômica dos países em

desenvolvimento, passaram a orientar tais países para uma grande reforma educacional de

dimensões globais, na medida em que se instalava uma nova ordem econômica mundial”.

Portanto, a escola foi açambarcada pela política de mercado neoliberal. Cabe à

escola ensinar essas técnicas de gestão, capturando os corpos e tornando-os viáveis para a

produção e consumo. E cabe ao Estado gerenciar as políticas educacionais que promovam

inclusão e permanência de todos/as na escola. Tais políticas são direcionadas

principalmente àqueles/as que imprimem riscos e geram custos sociais ao Estado. Como

sugere o lema “escola para todos”, deseja-se a permanência na escola do máximo de

69

Exemplo disso foi a Conferência Mundial sobre a Educação para Todos, ocorrida na Tailândia, que contou

com o financiamento, entre outras instituições, do Banco Mundial.

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pessoas possível. Em uma sociedade neoliberal, não é interessante que uma parcela da

população fique excluída do mercado consumidor.

A normalização que almeja trazer os/as desviantes para níveis aceitáveis de

normalidade, objetiva também naturalizar a existência de tais desviantes no contexto onde

se inserem e, para tanto, criam-se estratégias que visam normalizar as irregularidades

presentes em uma população (LOPES, 2009). Dentre essas estratégias, destacam-se aqui as

de inclusão educacional desses “anormais”: pessoas com deficiências, com transtornos e

síndromes diversas, aqueles que não se conformam à matriz de inteligibilidade

heterocentrada, entre tantos outros.

Diversos estudos mostram que, no segmento LGBT, travestis e transexuais são

aquelas/es que têm maiores dificuldades de permanência nas escolas e de inserção no

mercado de trabalho, quer pelo preconceito quer pelo seu perfil socioeconômico

(PARKER, 2000; PERES, 2004). Raica, por exemplo, abandonou os estudos pela primeira

vez aos 15 anos, quando já eram visíveis as modificações corporais e assim, foram

intensificadas as situações de preconceito. Além disso, queria viver inteiramente como

travesti: a camuflagem necessária para o convívio escolar se tornara insustentável para ela.

A Portaria do Nome Social, apesar dos parcos efeitos obtidos, foi um incentivo a

Raica voltar à sala de aula. Ela retomou os estudos porque visualizou na escola uma

oportunidade de melhorar sua vida. Para ela, o conhecimento adquirido na escola lhe daria

maiores possibilidades de reivindicar seus direitos e assim, minimizar as adversidades que

a vida de uma travesti pobre lhe acarretou. Ao dizer sim ao governamento da inclusão,

Raica disse não a uma determinada forma de governo que delega a travestis e transexuais

ocuparem somente profissões e espaços marginalizados.

Além disso, parece estar claro para Raica que na atualidade o impedimento de

estudar não significa apenas não estar na escola; significa não ter valor (SANTOS, 2010).

Na lógica do “sou brasileiro, não desisto nunca”70

, ter interrompido os estudos diz que a

pessoa não se esforçou o bastante, é preguiçosa, não tem força de vontade ou capacidade

de resiliência, ou seja, de lidar com problemas que a escola e a vida apresentam, de superar

obstáculos ou resistir à pressão de situações adversas. Eis, a propósito, uma interpretação

que provoca a individualização do problema.

70

Campanha motivacional do governo federal brasileiro, iniciada durante o governo Lula, que mostrava

exemplos de superação de brasileiros/as que venceram diversos tipos de obstáculos para conseguirem

“crescer na vida”.

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Nessa nova configuração política, na qual o mercado econômico é eixo de

regulação social, Foucault (2008b) atenta para uma forma de gestão do comportamento da

população a partir do que ele denomina de teoria do capital humano, para a qual as

competências e habilidades de uma pessoa constituem seu capital, assim sendo, cada

pessoa é capital para si mesma.

A aptidão a trabalhar, a competência, o poder fazer alguma coisa, tudo

isso não pode ser separado de quem é competente e pode fazer essa coisa.

Em outras palavras, a competência do trabalhador é uma máquina, sim,

mas uma máquina que não se pode separar do próprio trabalhador [...]

(FOUCAULT, 2008b, p. 309).

Trata-se da transmutação do sujeito moderno em um homo oeconomicus, um

empresário de si mesmo (FOUCAULT, 2008b). E para formar esse “homem econômico”,

essa espécie de competência-máquina, são necessários investimentos diversos, inclusive

(ou principalmente) educacionais. Assim, a educação é um investimento cuja acumulação

permitiria a maximização crescente dos rendimentos ao longo da vida do/a trabalhador/a.

Nesse sentido, tudo o que era tomado como despesa em educação passa a ser convertido

em investimento para o futuro. O status da cada pessoa é determinado pela quantidade de

capital humano acumulado através da educação (GADELHA, 2009).

A partir dessa moldura de compreensão, pode-se entender a máxima

contemporânea de formação permanente, educação continuada, na qual nunca se termina

nada (DELEUZE, 1992a). No que tange à escola, Deleuze (1992a, p. 225) afirma que a

sociedade de controle se caracteriza pelas “formas de controle contínuo, avaliação contínua

e a ação da formação permanente sobre a escola, o abandono correspondente de qualquer

pesquisa na universidade, a introdução da empresa em todos os níveis de escolaridade”.

Eis um efeito de subjetivação incitado pelo uso do nome social: manter-se na escola

e ser empreendedor de si mesmo. Para Raica, estar na escola significa ser gestora de si,

empreendedora de si, sendo ela mesma a responsável por sua aprendizagem, portanto, do

seu capital humano. Assim, a escola cumpre seu papel como uma das instituições

envolvidas na produção de uma subjetividade flexível e cambiante, moldada e

continuamente transformada (DELEUZE, 1992a). O homo oeconomicus é, nesse sentido,

um elemento básico para a tecnologia neoliberal, pois é um sujeito governável em função

da lógica econômica. É governável por meio de uma forma sutil de controle, exercida por

meio das regras neoliberais da economia de mercado.

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A partir do momento em que as populações submetem sua conduta e seus

comportamentos cotidianos aos princípios do autoempreendedorismo da

teoria do capital humano, elas se tornam presas voluntárias de processos

de individuação e de subjetivação controlados flexivelmente pelo

mercado. Em suma, Foucault centrou sua análise das tecnologias

neoliberais de governamento a partir da discussão da seguinte questão: de

que maneiras o mercado pode se tornar um instrumento de governamento

da população, isto é, de que maneira o mercado econômico competitivo

pode atuar de maneira a regrar, a normalizar e a administrar a conduta da

população, estabelecendo-se assim padrões de normalidade e de

veridicção? (CÉSAR; DUARTE, 2009, p. 122).

Destarte, pode-se dizer que o “eu”, a identidade, as maneiras de pensar e agir de

cada pessoa, já não estão sendo produzidos apenas por uma normatividade “médico-psi”,

mas também, e cada vez mais, produzidos por uma normatividade econômico-empresarial

(GADELHA, 2009). Talvez por isso Raica insista em voltar à sala de aula. Talvez por isso

também seja possível que, na atualidade, travestis e transexuais terminem o ensino médio

ou mesmo concluam um curso superior tal como Valesca, Brenda e Leila. Tal

racionalidade econômica-empresarial demanda por políticas, leis, decretos, portarias,

reformas educacionais infindas, tendo como alvo de ação aqueles/as que não conseguem se

posicionar como homo oeconomicus, ou seja, que não conseguem acessar seus direitos por

meio de sua inserção no mercado econômico (GUARESCHI, LARA; ADEGAS, 2010).

Porém, mesmo com tal máxima contemporânea de empresariamento de si, a grande

maioria das pessoas trans acaba por sair da escola. Segundo as pessoas ouvidas nesta

pesquisa, não houve um retorno de travestis ou transexuais para a escola após a vigência da

portaria. Nem há registros na Seduc sobre a solicitação de uso do nome social. Apenas

Raica foi citada como alguém que retornou à escola incentivada pela portaria. Mesmo

assim, está há três anos tentando concluir o EJA do 1º e 2º ano do ensino médio. Ela

abandona anualmente os estudos devido aos elementos que a desestimulam: as frequentes

greves dos professores da rede pública de ensino, a não avaliação dos/as estudantes na

atual política de aprovação automática, e ainda seus estados de adoecimento devido ao

HIV.

Com isso, percebe-se que a intenção de inclusão escolar de travestis e transexuais,

materializada pela Portaria do Nome Social, acaba por não produzir os efeitos esperados na

vida das pessoas trans, isto é, chamar travestis e transexuais pelo nome que querem ser

reconhecidas/os não é capaz de garantir uma “educação inclusiva”.

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De outro lado, apesar de seus parcos efeitos no sentido de promover a inclusão

escolar de travestis e transexuais, a legislação em questão tem uma importância política ao

mostrar alguma preocupação com a escolarização das pessoas trans. Com efeito, ela pode

ser uma forma de resistência a uma produção da travestilidade e transexualidade como

patologia moral e, portanto, àqueles e àquelas acometidos/as por essa doença só caiba

ocupar lugares marginalizados, seja na prostituição ou subempregos. Em contrapartida,

pode produzir efeitos de poder normalizantes ao atrair essa população à convocação social

do “estudar-trabalhar-consumir”. Dessa forma, aceitam-se essas experiências subjetivas

conquanto que enquadradas em um determinado modelo menos perigoso à sociedade.

Nesse cenário, ao invés de tratar a questão do nome social como uma lei que

precisa ser cumprida, a legislação em questão deveria ser trabalhada como um analisador

na escola, como um acontecimento que traz à tona as tensões e força em transformação do

cotidiano escolar (ROCHA, 2008). Não se trata simplesmente de promover a

sensibilização dos/as agentes escolares para o direito que travestis e transexuais têm de

usar o nome que desejam ser identificadas/os. Mais do que isso, faz-se necessário nos

desfamiliarizarmos com instituições como a heterossexualidade e com isso, produzir novas

estratégias de ação. O uso do nome social poderia ser um elemento de análise para se

problematizar a lógica heteronormativa e acessar as potencialidades de outros modos de

ser, pois simplesmente colocar pessoas com diversidades de orientação sexual e

“identidade de gênero” em um mesmo espaço não afasta a sombra da exclusão (VEIGA-

NETO; LOPES, 2007). Não há sentido em falar em “escola para todos” se alguns desses

“todos” continuam habitando sua margem.

Trabalhar a Portaria do Nome Social como um analisador – potencializando, assim

as intervenções e produzindo estratégias que respondam a novos regimes de verdade –

afastaria a questão de uma mera ratificação de uma conduta moral submetida a um código,

que, caso não cumprida, pode incorrer em punições. Como conduta moral, devem-se

incluir travestis e transexuais nas escolas porque há um código (a Portaria do Nome Social)

que regulamenta essa ação. Porém, seguindo por um via ética – que não se refere a regras

coercitivas, mas sim, a regras facultativas que avaliam o que fazemos ou dizemos em

função do modo de existência que isso implica (DELEUZE, 2006a) – a inclusão de

travestis e transexuais se daria pela aceitação das maneiras singulares por meio das quais as

pessoas são subjetivadas. Com efeito, trata-se de lidar com a inclusão de travestis e

transexuais pelo respeito a seus modos criativos de existência e não pela via de uma

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inclusão necessária, regulamentada, que até abre as portas da escola para travestis e

transexuais, porém, pela rampa de deficientes71

.

Se a proposta é acolher a todos na escola, ou seja, a diversidade de modos de ser

possíveis, é preciso trabalhar pela diferença (ROCHA, 2008). De outro modo, os/as

“anormais” contemporâneos vão continuar a desconfiar de qualquer tentativa de inclusão,

pois não acreditam que temas como justiça e cidadania sejam dirigidos a eles/as.

Interlúdio 10: Histórias, resistências, diferenças...

Jenifer sente saudade da época da escola, do cheiro da lousa, do giz...

Mas não planeja voltar a estudar: a escola se tornou um lugar estranho para

Jenifer. Ou foi ela que se tornou estranha para a escola?

Leila se gradou em Psicologia, passou em um concurso público e planeja

fazer mestrado para continuar a questionar a patologização das experiências

trans.

Brenda desistiu da vida como prostituta na Europa e voltou para Belém

para fazer diferente: retomou a graduação em Direito e passou a atuar como

militante das causas trans.

Babete concluiu o ensino médio, mesmo vivendo em um prostíbulo.

Raica voltou a estudar quando o uso do seu nome foi assegurado pela

escola. Quer estudar para ter subsídios para lutar por situações de vida mais

justas às travestis.

Valesca quer ser doutora em neurociências.

Bianca, mesmo sem saber que ela tinha o direito em ser chamada pelo

nome que escolhera para si, foi à diretoria da escola e reivindicou o uso do

seu nome social na lista de frequência escolar.

Nayara utiliza o banheiro feminino na escola, e demais locais públicos,

mesmo com a forte vigilância e controle no uso do banheiro. Ela resiste e se

recusa a usar o banheiro que julga inadequado para si.

71

Metáfora utilizada pelo Prof. Dr. Ricardo Pimentel Méllo durante o exame da qualificação desta tese.

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4.3 A ser feito: formas de resistências aos mecanismos de normalização

Se, por um lado, a escola é denunciada como espaço de pedagogização da vida,

gerida por dispositivos disciplinares e de regulação, por outro, não se abre mão da

escolarização. Critico as políticas identitárias que restringem um modo de viver por meio

da imposição de características que supostamente definem o “eu” individual, ao mesmo

tempo em que defendo a inclusão escolar de determinadas categorias identitárias: travestis

e transexuais.

Isso porque a crítica dirigida à escola e à estratégia de inclusão de travestis e

transexuais não significa uma recusa à escola ou à inclusão. A escola, mesmo com toda sua

maquinaria de controle e de produção de indivíduos em série, ainda é um espaço

reivindicado, pois, se há estratégias de controle, há também possibilidades de resistência

no cotidiano escolar. Reivindica-se, portanto, a inclusão escolar de travestis e transexuais,

levando-se em consideração a possibilidade de resistência à vida normatizada presente na

escola. Ou seja, a escola pode ser uma ferramenta produtora de críticas às formas de

governo da vida.

Na conferência intitulada O que é a crítica?, proferida em 1978, Foucault (2000e)

destaca que o processo de governamentalização não pode ser dissociado da questão de

"como não ser governado". Eis as duas faces da governamentalidade: como ser governado

e como não ser governado.

Vou dizer que em torno dessa grande inquietude relativa às maneiras de

governar, na procura de maneiras de governar, pode-se relevar uma

questão permanente: “Como não ser governado desse modo, em nome

desses princípios, em vista de tais objetivos e por meio de tais

procedimentos, não desse modo, não para isto, não por essas pessoas”

(FOUCAULT, 2000e, 171).

O autor identifica a recusa em ser governado como uma “atitude crítica”, que se

constitui na medida em que se opõe à submissão das artes de governar apoiadas em

mecanismos de normalização. Trata-se, pois, de recusar as formas de subjetividade

impostas, lutando contras as sujeições, contra o governo da individualização, o qual liga

cada pessoa coercitivamente a uma identidade facilmente governável.

Segundo Márcio Fonseca (2012), a atitude crítica é a noção que melhor expressa a

forma de resistência ao poder normalizador na obra foucaultiana. E sua potência de

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131

resistência ao conjunto de mecanismos de condução da conduta está na medida em que a

atitude crítica remete ao domínio da ética.

O privilégio da ética nas últimas obras de Foucault está relacionado com o interesse

pela constituição do indivíduo em torno das técnicas de si vinculadas ao sexo (FONSECA,

2011). Na busca de compreender como o indivíduo ocidental se tornou um sujeito do

desejo, Foucault questiona quando o sexo se tornou objeto de uma preocupação moral.

Para tanto, o filósofo recorre à Antiguidade, porque, para ele, os gregos inventaram a

subjetivação, ou seja, a constituição ética de si (DELEUZE, 1992b).

Desse modo, Foucault (1999) parte do modelo helenístico de subjetivação, presente

na filosofia estoica e epicurista, para analisar a estruturação da relação ética consigo

mesmo a partir de um conjunto de práticas denominadas como “cuidado de si”.

Como nos diz Foucault (1997, p. 126), “em toda a filosofia antiga, o cuidado de si

foi considerado, ao mesmo tempo, como um dever e como uma técnica, uma obrigação

fundamental e um conjunto de procedimentos cuidadosamente elaborados”. Tais

procedimentos constitui aquilo que se poderia chamar de “serviço da alma”, que se realiza

através de múltiplas relações sociais, tais como a escuta, a escrita, a memorização daquilo

que foi aprendido, trocas de cartas, encontros para banquetes espirituais, exame de

consciência, acompanhamento de um mestre etc.

As práticas que constituem o cuidado de si variam de acordo com o período

histórico da Grécia ou Roma Antigas. Porém, o importante a se destacar é que o cuidado de

si era caracterizado como uma ética, ou seja, como dito no início do capítulo, por uma

relação consigo mesmo visando constituir-se como sujeito moral. São práticas de si que

visam o autoconhecimento, o controle, o aperfeiçoamento. Portanto,

... não se trata de descobrir uma verdade no sujeito, nem de fazer da alma

o lugar em que reside a verdade [...], não se trata tampouco de fazer da

alma o objeto de um discurso verdadeiro. Ainda estamos muito longe do

que seria uma hermenêutica do sujeito. Trata-se, ao contrário, de armar o

sujeito de uma verdade que não conhecia e que não residia nele; trata-se

de fazer dessa verdade aprendida, memorizada, progressivamente

aplicada, um quase-sujeito que reina soberano em nós mesmos

(FOUCAULT, 1997, p. 130).

Tais características da constituição ética do sujeito presentes no cuidado de si não

indicam, como uma análise prematura poderia supor, uma redenção de Foucault ao sujeito

que ele mesmo havia “matado” em As palavras e as coisas. Com a apresentação do

cuidado de si grego, Foucault mostra que esse “si” não remete a nenhuma substância,

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nenhuma interioridade, mas a uma reflexividade prática: uma maneira de se relacionar

consigo mesmo para se construir, se elaborar. “O eu de que se trata de cuidar não é um

dado primeiro e esquecido, mas uma conquista difícil” (GROS, 2006, p. 132, grifos do

autor).

Além disso, o cuidado de si não constitui um eu solitário, autossuficiente e

indiferente aos outros. Seguindo com a análise de Gros (2006), o que interessa a Foucault

no cuidado de si é como ele se constitui em uma ação política, pois traz uma relação

inseparável com o tecido social.

Foucault não deixa de insistir sobre esse ponto: o cuidado de si não é uma

atividade solitária, que cortaria do mundo aquele que se dedicasse a ele,

mas constitui, ao contrário, uma modulação intensificada da relação

social. Não se trata de renunciar ao mundo e aos outros, mas de modular

de outro modo esta relação com os outros pelo cuidado de si (GROS,

2008, p. 132).

Com efeito, não se cuida de si para fugir do mundo, mas para agir como se deve.

“Aquele que cuidasse adequadamente de si mesmo era, por isso mesmo, capaz de se

conduzir adequadamente em relação aos outros e para os outros” (FOUCAULT, 2010g, p.

271). Dessa forma, a atenção direcionada a si não é a de um hermeneuta desconfiado

(como vemos na atualidade), mas a de um administrador meticuloso, que cuida de si para

poder cuidar dos outros.

Eis, portanto, a diferença entre o cuidado de si e o princípio délfico “conhece-te a ti

mesmo”. Para Foucault (2004), se existe um enunciado constitutivo da subjetivação antiga

é o “cuida-te de ti mesmo”. Neste caso, conhecer a si mesmo era uma consequência do

cuidado de si. Para um efetivo cuidado de si era imprescindível conhecer a si mesmo.

Porém, o “conhece-te a ti mesmo” acabou por se sobrepor ao “cuida-te de ti

mesmo”. Para Foucault (2004), o cristianismo via o cuidado de si como uma imoralidade,

pois era interpretado como um culto à individualidade. O si deveria ser rejeitado em prol

da relação com os outros. Em suma, houve uma inversão da hierarquia do cuidar de si para

o conhecer a si mesmo. “‘Conhece-te a ti mesmo’ obscureceu o ‘cuidado de si mesmo’

porque nossa moralidade, a moralidade do asceticismo, insiste que o si é o que deve ser

rejeitado” (FOUCAULT, 2004, p. 328).

A ênfase concedida ao “conhece-te a ti mesmo” abre espaço para uma compreensão

do ser humano muito diferente daquela proclamada pelo “cuidado de si”, da constituição

ética de si. Tais enunciados oferecem caminhos distintos de subjetivação. A obrigação de

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conhecer a si mesmo liga o ser humano a uma suposta verdade de si que ele desconhece. E

na tentativa de conhecê-la, acaba por se vincular a dispositivos de confissão e obediência,

ou seja, o “conhece-te a ti mesmo” é a máxima que instaura o sujeito moderno, aquele

gerido por um suposto segredo essencial que está encravado em sua essência, em sua

identidade. Já o caminho proposto pelo cuidado de si, indica que o sujeito é fruto das

práticas de si efetuadas. Logo, não se trata de uma descoberta de si, mas sim, de uma

constituição de si mesmo de modo a conferir a sua vida certos valores (FOUCAULT,

2010c).

A genealogia do cuidado de si empreendida por Foucault (1999) é uma ferramenta

usada pelo autor para operar uma ontologia do presente. Foucault (1999; 2006a) remonta à

Antiguidade para ressaltar a marca fundamental da constituição do sujeito moderno, qual

seja, a ausência do cuidado ético. Portanto, o indivíduo moderno constituído pela norma,

difere do indivíduo antigo constituído pela ética. Tal diferença pode ser radicalizada e

entendida como uma oposição: o indivíduo moderno se opõe ao antigo da mesma forma

como a norma se opõe à ética, uma vez que “a ética é a relação consigo, enquanto o poder

da norma impede que tal relação se dê” (FONSECA, 2011, p. 132).

Entretanto, a ética do cuidado de si não se apresenta como uma alternativa para o

sujeito moderno normalizado. Com tal discussão, Foucault pretende “historicizar

completamente o eu profundo de modo a abrir a possibilidade de emergência de um novo

sujeito ético” (DREYFUS; RABINOW, 2010, p. 328). Portanto, a questão ética pode ser

compreendida como um convite a novas formas de subjetividade, recusando os tipos de

individualidade impostos por meio das tecnologias disciplinares e de normalização.

Neste sentido, pensar na questão da ética para Foucault é pensar no

sujeito moderno e em sua constituição normalizada, onde não há espaço

para a relação consigo. É pensar, em última instância, se há possibilidade

para que esse sujeito, voltando-se para a ética, possa opor-se ao poder da

norma que o institui, e possa, a partir daí, constituir-se de forma diversa

(FONSECA, 2011, p. 135).

Essa constituição ética de si é entendida por Foucault como o exercício de liberdade

(FOUCAULT, 2010g). Na entrevista A ética do cuidado de si como prática de liberdade, o

autor recusa o tema geral da libertação, contrapondo-a às práticas de liberdade. Segundo

Foucault (2010g, p. 265), é preciso ser prudente com o tema da libertação, uma vez que

[...] corre-se o risco de remeter à ideia de que existe uma natureza ou uma

essência humana que, após certo número de processos históricos,

econômicos e sociais, foi mascarada alienada ou aprisionada em

mecanismos, e por mecanismos de repressão. Segundo essa hipótese,

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basta romper esses ferrolhos repressivos para que o homem se reconcilie

consigo mesmo, reencontre sua natureza ou retome contato com sua

origem e restaure uma relação plena e positiva consigo mesmo.

Foucault (2010g, p. 267) segue dizendo que a “liberação abre um campo para novas

relações de poder, que devem ser controladas por práticas de liberdade”. O que se

estabelece, portanto, são relações de poder e, consequentemente, formas de resistência.

Poder não entendido como negativo e resistência como tentativa de libertação ao poder.

Não é fundamentalmente contra o poder que nascem as lutas, mas contra algum efeito de

verdade produzido por esse poder, contra algum estado de dominação provocado pelo

poder. Desse modo, só há poder porque há resistência a ele; ao contrário, seria

simplesmente uma questão de obediência.

Seguindo essa concepção foucaultiana, a resistência pode provocar novas relações

de poder, assim como o poder pode suscitar formas outras de resistência. Porém, não é uma

relação de causa e efeito. “Esta resistência de que falo não é uma substância. Ela não é

anterior ao poder que ela enfrenta. Ela é coextensiva a ele e absolutamente contemporânea”

(FOUCAULT, 2000f, p. 241). Com efeito, o ato de governar só é possível a partir do jogo

de provocação e retroalimentação mútua entre poder e resistência. Aqui, é irresistível

evocar novamente as palavras de Foucault:

Trata-se precisamente de ver que as relações de poder não são alguma

coisa má em si mesmas, das quais seria necessário se libertar; acredito

que não pode haver sociedade sem relações de poder, se elas forem

entendidas como estratégias através das quais os indivíduos tentam

conduzir, determinar a conduta dos outros. O problema não é, portanto,

tentar dissolvê-las na utopia de uma comunicação perfeitamente

transparente, mas se imporem regras de direito, técnicas de gestão e

também a moral, o êthos, a prática de si, que permitirão, nesses jogos de

poder, jogar com o mínimo possível de dominação (FOUCAULT, 2010g,

p. 284).

Uma via de luta contra os efeitos de normalização da subjetividade pode ser

identificada no movimento queer72. Tal movimento surge, no início da década de 1990, na

interface entre uma corrente dos estudos culturais norte-americanos com o pós-

72 Queer é um termo da língua inglesa que denota estranheza, anormalidade, excentricidade, perversão e

desvio. Mas também é utilizado para se referir de forma depreciativa a gays, lésbicas, travestis, transexuais e

demais formas de vida destoante da heterossexualidade. O movimento queer recupera o termo como forma

positiva para identificar sua oposição e contestação contra a normalização focada na sexualidade. “Através da

‘estranheza’, quer-se perturbar a tranquilidade da ‘normalidade’” (SILVA, T., 2010, p. 105).

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estruturalismo francês, herdando suas críticas às concepções clássicas de sujeito,

identidade, agência e identificação (LOURO, 2001; MISKOLCI, 2009).

Evoca-se o movimento queer devido a sua postura que vai na contramão de toda

normalização. Com efeito, a principal frente de luta queer é contra a normalização

existente em toda formação identitária. Com a nomeação queer, vários/as pesquisadores/as

oriundos/as dos próprios movimentos identitários passam a redefinir a luta e os limites do

sujeito político “feminista” e “homossexual”.

Por oposição às políticas “feministas” ou “homossexuais”, a política da

multidão queer não repousa sobre uma identidade natural

(homem/mulher) nem sobre uma definição pelas práticas

(heterossexual/homossexual), mas sobre uma multiplicidade de corpos

que se levantam contra os regimes que os constroem como “normais” ou

“anormais”: são os drag kings, as gouines garous, as mulheres de barba,

os transbichas sem paus, os deficientes ciborgues... O que está em jogo é

como resistir ou como desviar das formas de subjetivação sexopolíticas73

(PRECIADO, 2011, p. 16).

O movimento queer critica, portanto, toda ontologia do sujeito presente nas

políticas de identidades, uma vez que não há uma base natural da subjetividade (homem ou

mulher heterossexual, gay, lésbica, travesti, transexual...) que possa legitimar a ação

política. Dessa forma, “não existe diferença sexual, mas uma multidão de diferenças, uma

transversalidade de relações de poder, uma diversidade de potências de vida”

(PRECIADO, 2011, p. 18).

Tomaz Tadeu da Silva (2010) alerta que a perspectiva queer permite pensar não

apenas a multiplicidade e a fluidez das identidades sexuais e de gênero, mas também

sugere novas formas de pensar a cultura, o conhecimento, o poder e a educação:

Tal como o feminismo, a teoria queer efetua uma verdadeira reviravolta

epistemológica. (...) O queer se torna, assim, uma atitude epistemológica

que não se restringe à identidade e ao conhecimento sexuais, mas que se

estende para o conhecimento e a identidade de modo geral. Pensar queer

significa questionar, problematizar, contestar, todas as formas bem-

comportadas de conhecimento e de identidade. A epistemologia queer é,

neste sentido, perversa, subversiva, impertinente, irreverente, profana,

desrespeitosa (SILVA, T., 2010, p. 107).

73 Por sexopolítica, Beatriz Preciado (2011) se refere às ações biopolítica nas quais o sexo entra no cálculo do

poder e, dessa forma, estabelece um controle sobre a vida através das tecnologias de normalização das

identidades sexuais.

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A referida reviravolta epistemológica, que problematiza toda normalização,

configura-se como uma ferramenta importante para pensar, por uma via ética, a inclusão de

travestis e transexuais na escola. Isso porque, como nos diz Guacira Lopes Louro (2001),

uma pedagogia e um currículo queer abordariam a instabilidade e a precariedade de todas

as identidades. A diferença deixaria de estar localizada no outro, “no diferente”, na

travesti, por exemplo, passando a ser analisada como indispensável para a constituição de

toda e qualquer pessoa. Desse modo, não se refere exclusivamente às questões sexuais,

mas ao processo de produção de identidades de modo geral.

Nesse sentido, a denúncia e a luta contra práticas homofóbicas – apontadas no

capítulo anterior como o maior obstáculo para a inclusão escolar de pessoas trans – ainda é

um alvo importante, porém, insuficiente para produzir relações mais igualitárias entre as

pessoas. Para uma pedagogia e um currículo queer, ultrapassando o combate à homofobia,

caberia desconstruir o processo pelo qual alguns sujeitos se tornam normalizados e outros

marginalizados, ou seja, dar visibilidade à heteronormatividade e seus dispositivos, os

quais necessitam de uma reiteração permanente das normas sociais regulatórias a fim de

garantir a identidade sexual legitimada (LOURO, 2001).

Nessa perspectiva, não se trata de pedir por mais tolerância a travestis e transexuais

nas escolas. “Queer representa claramente a diferença que não quer ser assimilada ou

tolerada e, portanto, sua forma de ação é muito mais transgressiva e perturbadora”

(LOURO, 2001, p. 547). Ao se falar em tolerância ou mesmo em respeito, ignora-se a

relação de poder na qual aquele que tolera o “diferente” se coloca em uma posição de

poder pouco intercambiável, estabelecendo a hierarquia do “normal” que tolera o

“anormal” (QUARTIERO; NARDI, 2011). Ao invés de se falar em tolerância, deve-se

discutir as relações de poder que produzem as diferenças a serem “toleradas”.

A política da tolerância não faz mais do que maquiar políticas e sentimentos

racistas de todo tipo e não resolve, dessa forma, a desigualdade do/a “diferente”. Portanto,

as políticas de direitos humanos baseadas na tolerância frente às “minorias” só instalam

formas de tratamento que dificilmente são capazes de gerar a paridade política contra a

desigualdade existente (FERNÁNDEZ, 2009).

Sem subestimar a importância de promover políticas que visam aliviar a

discriminação daqueles/as que a vivenciam cotidianamente, como a Portaria do Nome

Social, é preciso estar atento/a para que não seja criada mais uma política baseada na

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tolerância, na qual o normal (heterossexual) tolera a presença dos desviantes (LGBT e

demais “anormais”) na escola.

Defende-se, então, a produção de diferenças, do diverso, da multiplicidade de

modos de viver na escola e na vida. Por essa via parece ser possível uma inclusão escolar

de travestis e transexuais que ultrapasse a mera tolerância, que deixa intocadas as relações

de poder, os processos e estruturas que definem a normalidade.

Se a genealogia da ética empreendida por Foucault (1999) através do cuidado de si

foi um convite à invenção de novas formas de viver, então, o movimento queer responde

afirmativamente a esse convite e tem na resistência à normalização suas tentativas de

despatologizar os modos de ser não hegemônicos e construir um outro projeto de

sociedade, articulada com outra proposta de mundo, de humanidade.

É um convite a seguir uma conduta ética, sem os códigos que produzem uma

recomendação moral para todos; mas sim, uma prática de liberdade, capaz de interromper a

previsibilidade dos modos de ser e instaurar o intempestivo, nas práticas escolares, nas

experiências de inclusão e nesse permanente ensaio que é viver.

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CONSIDERAÇÕES TRANSITÓRIAS

Um dos meus objetivos é mostrar às pessoas que um bom número

de coisas que fazem parte de sua paisagem familiar – que elas

consideram universais – são o produto de certas transformações

históricas bem precisas. Todas as minhas análises se contrapõem à

ideia de necessidades universais na existência humana. Elas

acentuam o caráter arbitrário das instituições e nos mostram de

que espaço de liberdade ainda dispomos, quais são as mudanças

que podem ainda se efetuar.

Michel Foucault (2010h, p. 296).

O objetivo desta tese foi analisar os efeitos da Portaria do Nome Social como

estratégia de inclusão escolar de travestis e transexuais. Tal política, apesar de bem

intencionada, não conseguiu, pelo menos até o momento, produzir a esperada “educação

inclusiva” para travestis e transexuais, pois a autorização do uso do nome social não foi

acompanhada de outros investimentos necessários. A tese defendida é que a inclusão

escolar da diversidade de modos de viver depende de múltiplos fatores, não se limitando às

políticas de inclusão existentes.

Há fatores externos à escola que dificultam a inclusão escolar de pessoas trans. A

maioria é expulsa de casa quando começa a assumir a travestilidade/transexualidade. Com

isso, muitas recorrem à prostituição como forma de sustentar a vida e não enxergam as

vantagens na escola para seus futuros, nem mesmo para conseguir um emprego

considerado melhor, mais rentável e menos perigoso, visto a dificuldade de uma travesti ou

transexual conseguir um emprego formal. Com isso, a escola se afasta cada vez mais do

horizonte de possibilidades de muitas pessoas trans.

De outro lado, há também os fatores vivenciados no cotidiano escolar que

inviabilizam o sucesso da Portaria do Nome Social como estratégia de inclusão. A

homofobia que atravessa os vários âmbitos escolares provoca a sensação de que a escola

não é lugar para travestis e transexuais: o não respeito ao nome social, a proibição de usar

o banheiro que corresponda ao gênero identificado, o não reconhecimento da travestilidade

e da transexualidade como formas possíveis de estar no mundo. Além disso, a Portaria do

Nome Social é pouco conhecida entre professores/as, diretores/as e até mesmo pelas

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pessoas trans. Esses, entre tanto outros elementos, não são atrativos para a permanência ou

retorno de travestis e transexuais para as salas de aula.

Um aspecto que perpassa todos os fatores acima elencados é o preconceito

direcionado a travestis e transexuais. Tal preconceito é fruto da patologização dessas

formas de viver. Atualmente, tudo é diagnosticado, haja vista o aumento das doenças

catalogadas no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM). Se em

1952, a primeira edição do DSM continha 106 categorias de desordens mentais,

organizadas em 130 páginas, na última edição, em 1994, o DSM-IV listou 297 transtornos

em 886 páginas. Quem duvida de que o DSM-V, a ser publicado em 2013, venha ainda

maior? Percebe-se, desse modo, que qualquer fenômeno, característica pessoal, gosto ou

preferências são observados pelas lentes da normalidade versus anormalidade, tendo como

referência e aval os saberes “médicos-psi”, que sequestram as experiências identitárias e as

reduzem a um transtorno.

E a escola precisa dar conta dos “anormais” produzidos por tais saberes. Por isso,

uma das máximas contemporâneas vivenciadas pela escola é a “educação inclusiva”, ou

seja, uma educação pretensamente capaz de incluir a todos os tipos de pessoas nas escolas.

Surgida no início da década de 1990, a “educação inclusiva” é uma proposta para substituir

a então vigente “educação especial” dedicada às pessoas com deficiência74

(SKLIAR,

2001; MENDES, 2006). Nesta última, a escolarização das pessoas com deficiência era

realizada em escolas ou salas específicas, separando as pessoas atendidas por categorias e

segregando-as das consideradas “normais”. A mudança trazida pela educação inclusiva

almejava superar a exclusão das pessoas com deficiência ao propor, entre outras ações, que

a escolarização ocorresse prioritariamente em salas regulares.

A partir de 2003, as políticas de educação inclusiva são alavancadas no Brasil com

projetos que preveem a inclusão não apenas para as pessoas com deficiência, mas para

todas as pessoas que sofrem alguma forma de exclusão educacional. Contudo, a inclusão

continua sendo um dos temas mais controversos na educação atual. Há leis (Constituição

de 1988, Lei de Diretrizes e Bases para a Educação Nacional de 1996 etc.), declarações

74 Segundo Sassaki (2003), na Convenção Internacional para Proteção e Promoção dos Direitos e Dignidade

das Pessoas com Deficiência, ficou decidido que o termo correto utilizado para se referir a essa população

seria “pessoas com deficiência”. Esse termo foi escolhido levando em consideração algumas questões, entre

elas: não esconder ou camuflar a deficiência, mostrar com dignidade a realidade e valorizar as diferenças e

necessidades decorrentes da deficiência. Tal termo já é utilizado amplamente no Brasil, tendo, inclusive, uma

Secretaria Nacional de Promoção dos Direitos da Pessoa com Deficiência.

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internacionais (Declaração de Mundial sobre Educação para Todos de 1990, Declaração de

Salamanca de 1994 etc.) e regulamentações diversas (Plano Nacional de Educação de

2001) sobre educação inclusiva, mas é visível que a escola não está preparada para acolher

a diversidade de formas de viver: capacitação profissional, salas e recursos especializados

etc. (SKLIAR, 2001; MENDES, 2006).

Porém, no caso de travestis e transexuais a questão da aprendizagem não depende

de recursos específicos, pois elas/es não são pessoas com deficiência, ainda que sejam

considerados/as, muitas vezes, como pessoas com deficiência moral. Para os primeiros, há

uma maior sensibilização para a temática da inclusão, pois são “vítimas” de uma doença

congênita, biológica ou adquirida; quanto ao segundo grupo, eles/as “escolheram” se tornar

anormais sexuais e, portanto, devem suportar as consequências de suas escolhas.

De todo modo, a inclusão é defendida considerando que a escola deve incluir “o/a

diferente”. No caso das pessoas com deficiência, elas são diferentes das pessoas sem

deficiência, ou seja, normais. No caso das pessoas trans, ela são diferentes das

heterossexuais, ou seja, normais. A heterossexualidade continua como parâmetro em

relação a qual as outras formas de viver são comparadas. É a condição de vida desejável,

normal, logo, todas as demais são vistas de modo negativo. Se, como dito acima, a Portaria

do Nome Social não conseguiu produzir a inclusão de travestis e transexuais, ao menos,

provoca alguma tensão no regime de verdade que nega às pessoas trans o direito ao nome e

à escola.

Dessa forma, dizer que os efeitos de inclusão escolar da Portaria do Nome Social

ainda se desenham como algo distante, não significa dizer que não houve efeitos. Por

exemplo, a partir dessa legislação pioneira no Estado do Pará, o uso do nome social se

tornou uma bandeira de reivindicação nacional do movimento LGBT, produzindo diversas

legislações nos âmbitos federal, estadual e municipal que regulamentam esse direito a

travestis e transexuais.

Além disso, destacam-se os diversos efeitos de subjetivação provocados por essa

portaria, gerando processos de capturas identitárias ao mesmo tempo em que ensaiam

possibilidades de resistência. Tais capturas se referem aos processos que vinculam o acesso

a um direito a uma identidade preestabelecida: é preciso “se assumir” como travesti ou

transexual para poder usar o nome social no cotidiano escolar. O problema em tal adesão

identitária reside nas tecnologias de controle que a ela são acopladas. Ao assumir uma

identidade, carrega-se o fardo de ter que seguir as prescrições adequadas para cada

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141

categoria: ser homem, ser mulher, ser travestis/transexual, ser adulto etc. Tais prescrições

funcionam como controle das formas de viver, assim sendo, a política em questão entra no

dobramento do poder, uma vez que força o sujeito a se voltar para si próprio e assim, o liga

à sua identidade de modo coercitivo (FOUCAULT, 2010b).

Essa forma de poder aplica-se à vida cotidiana imediata, que categoriza o

indivíduo, marca-o com sua própria individualidade, liga-o a sua própria

identidade, impõe uma lei de verdade, que devemos reconhecer e que os

outros têm de reconhecer nele. É uma forma de poder que faz dos

indivíduos sujeitos. Há dois significados para a palavra sujeito: sujeito ao

outro através do controle e da dependência, e ligado à sua própria

identidade através de uma consciência ou do autoconhecimento. Ambos

sugerem uma forma de poder que subjuga e sujeita (FOUCAULT, 2010b,

p. 278).

Outros efeitos de subjetivação produzidos pela política do nome social residem nos

processos disciplinares e normalizadores operados pela escola. Atualmente, pode-se dizer

que a identidade já não está sendo produzida apenas por uma normatividade “médico-psi”,

mas também, por uma normatividade econômico-empresarial. O neoliberalismo visa

construir a figura de um sujeito que adere voluntariamente às demandas do mercado

econômico e, dessa forma, se torna um empreendedor de si mesmo. Nesse cenário, a escola

é um espaço para ensinar as técnicas de gestão de si, capturando os corpos e tornando-os

viáveis para a produção e consumo. Por isso a máxima da inclusão escolar contemporânea:

não é interessante que uma parcela da população fique excluída do mercado consumidor.

Todavia, se de alguma forma a Portaria do Nome Social, ao convocar à

escolarização de travestis e transexuais, participa dessa produção de subjetividade

empresarial, governável em função da lógica econômica, por outro lado, identifico efeitos

da portaria que ensaiam possibilidades de resistência aos mecanismos de normalização.

A autorização de usar o nome social remete à luta pelo direito à diferença, de

efetivar os modos de viver que a pessoa considera conveniente. De algum modo, há o

reconhecimento de formas de viver diferentes da heterossexualidade. Há também o

reconhecimento de que travestis e transexuais sofrem uma série de constrangimentos no

cotidiano da escola por terem uma aparência incompatível com o nome do registro civil e,

para tentar minimizar a “expulsão escolar”75

dessa população, criou-se a legislação em

75

Bento (2011) afirma que é limitado dizer que há evasão escolar de travestis e transexuais da escola, uma

vez que há uma diferença gritante entre alguém que deixa de estudar porque precisa trabalhar para ajudar a

família daquele outro alguém que abandona os estudos porque é diferente, por não aguentar a reiteração

dessa diferença cotidianamente, por não suportar se submeter às constantes tecnologias que o/a produzem

como anormal perante os supostos normais.

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questão. E com tal tentativa de inclusão escolar, resiste-se também à produção da

travestilidade e da transexualidade como formas de vidas abjetas, que só são autorizadas a

viver na marginalidade e/ou prostituição.

Por isso, apesar de criticar a escola e seus mecanismos disciplinares e

normalizadores, defendo a escolarização de travestis e transexuais, pois na escola, como

espaço de complexidades, coexistem estratégias de controle com possibilidades de

resistência. É uma aposta na escola como um espaço ético, de produção de uma prática

refletida de liberdade, de incitação de uma atitude crítica. Desse modo, a escola pode ser

uma ferramenta produtora de críticas às formas de governamento da vida.

Em busca de construir esse cenário, como nos diz Foucault (2006c, p. 316):

“devemos começar por reinventar o futuro, mergulhando-o em um presente mais criativo”.

Nesse caso, só uma redescrição inédita das práticas escolares poderia ser um instrumento

contra a submissão da subjetividade e produção ética da vida.

Sílvio Gallo (2003), em um livro destinado ao diálogo entre a obra de Gilles

Deleuze e a educação, nos dá algumas pistas de como seria uma educação como resistência

aos procedimentos instituídos na escola. O autor realiza um deslocamento do conceito de

“literatura menor” – feita pelo filósofo em parceria com Félix Guattari na obra Kafka: por

uma literatura menor – para a área da educação. Gallo (2003) nos incita a pensar em uma

“educação menor” como enfrentamento à “educação maior”.

A educação maior é aquela materializada na macropolítica, nos planos

educacionais, nos parâmetros curriculares, das Leis de Diretrizes e Bases da Educação

Nacional, dos grandes mapas e projetos. Em contrapartida, a educação menor é um ato de

revolta e resistência:

Revolta contra os fluxos instituídos, resistência às políticas impostas; sala

de aula como trincheira, como a toca do rato, o buraco do cão. Sala de

aula como espaço a partir do qual traçamos nossas estratégias,

estabelecemos nossa militância, produzindo um presente e um futuro

aquém ou para além de qualquer política educacional. Uma educação

menor é um ato de singularização e de militância (GALLO, 2003, p. 78).

Para se efetivar a educação menor faz-se necessário desterritorializar os princípios e

normas da educação maior nas ações cotidianas, opondo-se aos mecanismos de controle e

criando possibilidades outras. Produzir diferenças ao impedir que a produção do mesmo se

estabeleça. Gallo (2003) compara tal ação com a dos grevistas em uma fábrica: o objetivo é

impedir a produção bem-planejada da educação maior. É uma aposta nos atos cotidianos,

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sem modelos a serem seguidos ou propostos; o objetivo da educação menor é estabelecer

conexões: entre professores/as e estudantes, dos/as estudantes entre si, dos/as

professores/as entre si.

Com efeito, a educação menor não tem espaço para atos solitários, posto que é um

exercício de produção de multiplicidades, no qual todo ato adquire valor coletivo. É uma

aposta nas multiplicidades conectadas: “não há sujeito, não há objeto, não há ações

centradas em um ou outro; há projetos, acontecimentos, individuações sem sujeito. Todo

projeto é coletivo. Todo valor é coletivo. Todo fracasso também” (GALLO, 2003, p. 84).

Nesse sentido, faz-se necessário uma intervenção coletiva para acionar outras forças na

atuação escolar. Frente à universalização da educação maior das políticas de inclusão, uma

educação menor, na invenção cotidiana de resistência.

Em relação à inclusão escolar de travestis e transexuais, um poderoso instrumento

de uma educação menor seria a desnaturalização das dualidades estanques produzidas pela

educação maior: o certo e o errado, o normal e o anormal (ROCHA, 2008). Para além de

qualquer política de inclusão, uma educação menor teria como instrumento a produção da

diferença nos fluxos cotidianos da ação.

A diferença aqui convocada é aquela entendida, sob inspiração deleuziana, como

diferença por si mesma e não aquela centrada no princípio de identidade, na qual, “se

dizemos que x é diferente, é porque ele é diferente de certa identidade previamente

definida, isto é, x é diferente de y” (GALLO, 2009, p. 8). Nesses termos, falar em diferença

pressupõe a referência a algo, um ser universal, do qual derivam as diferenças.

Homossexuais são diferentes? Travestis são diferentes? Diferentes de quem? Qual é o

referencial da diferença?

Seguindo essa lógica, não existe diferença de fato, mas uma simples variação do

mesmo. Como variação, a diferença não perturba a norma. Pelo contrário, ela reafirma a

norma, uma vez que, mesmo não estando “dentro” da norma, está sob a luz e interpretação

da norma. Travestis e transexuais são diferentes dos/as heterossexuais. Isto é, variam da

norma ao serem interpretados/as pelas lentes da heteronormatividade.

[...] a norma, ao mesmo tempo em que permite tirar, da exterioridade

selvagem, os perigosos, os desconhecidos, os bizarros – capturando-os e

tornando-os inteligíveis, familiares, acessíveis, controláveis –, ela permite

enquadrá-los a uma distância segura a ponto que eles não se incorporem

ao mesmo. Isso significa dizer que, ao fazer de um desconhecido um

conhecido anormal, a norma faz desse anormal mais um caso seu. Dessa

forma, também o anormal está na norma, está sob a norma, ao seu abrigo.

O anormal é mais um caso, sempre previsto pela norma. Ainda que o

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anormal se oponha ao normal, ambos estão na norma. É também isso que

faz dela um operador tão central para o governo dos outros; ninguém

escapa dela (VEIGA-NETO, 2001, p. 29).

Com efeito, ao serem considerados/as “diferentes”, travestis e transexuais apenas

confirmam a norma que tem no homem branco, ocidental, cristão, heterossexual,

proprietário e consumidor seu eixo de referência. Ana Maria Fernández (2009) nos fala que

o mesmo processo no qual se distingue a diferença, institui-se a desigualdade. Dessa

forma, a diferença também é tida como o negativo do idêntico, pois não se trata de uma

mera diferença, mas de uma diferença desigual, produzida no interior de relações de poder

por dispositivos biopolíticos. Travestis e transexuais não são apenas diferentes: são

inferiores e precisam de políticas para que retornem ou permaneçam na escola.

A diferença é materializada “no diferente”, que passa a ser diagnosticado a partir de

padrões da suposta normalidade que estabelecem o mérito dos bem-sucedidos na escola e

na vida (ROCHA, 2008). A partir de uma característica considerada “diferente”, constrói-

se uma totalidade, uma identidade. Distingue-se uma característica de toda uma

multiplicidade de outras características e totaliza o ser em uma identidade “diferente”,

inferior.

Partindo de outra perspectiva, Deleuze (2006b, p. 57) afirma: “[é preciso] tirar a

diferença de seu estado de maldição”. Ou seja, é preciso não relacionar a diferença a uma

suposta normalidade, mas tomar a diferença em si mesma. Portanto, pensar a diferença sem

referência à identidade, mas sim, diferenças de diferenças sem nenhum centro referencial.

“Diferenças, sempre no plural. Diferenças que não podem ser reduzidas ao mesmo, ao uno;

diferenças que não estão para ser toleradas, aceitas, normalizadas. Diferenças pelas

diferenças, numa política do diverso” (GALLO, 2009, p. 9).

A questão é fazer diferenças, o que não significa produzir “o/a diferente”. São

sempre diferenças de diferenças, que, ao invés de fixar identidades, geram intensidades

diferenciais (forças, fluxos, movimentos), convocando à invenção de novas formas de

existência. Desse modo, não se trata de perguntar o que uma coisa é, mas sim, com quantos

elementos ela se conecta. Portanto, a concepção deleuziana da diferença é um convite a

deslocar o referencial da unidade para a multiplicidade (DELEUZE, 2006b).

Por meio de uma educação menor é possível pensar em uma escola que tenha como

princípio norteador a suspeita: de suas verdades, das diretrizes, do currículo, da produção

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do certo e do errado. Em suma, uma escola que possa servir como instrumento de luta e

resistência aos processos de subjetivação que limitam a potência da própria vida.

Evoca-se aqui o papel que os/as agentes escolares podem (e devem) assumir nessa

educação menor, na reivindicação por práticas mais igualitárias no que tange a

escolarização das pessoas que fogem dos padrões heteronormativos. Agindo de modo a

desterritorializar as diretrizes da educação maior, o/a educador/a pode criar espaços

políticos no cotidiano de suas ações, nas relações que estabelece com as pessoas, tal como

ocorreu na luta pela inclusão de pessoas com deficiência ou mesmo na luta contra os

manicômios. O movimento de luta antimanicomial, por exemplo, não surgiu dos loucos

internados em condições precárias, mas sim dos trabalhadores/as da saúde mental. Com o

lema “por uma sociedade sem manicômios”, houve a ampliação do movimento de

trabalhadores da saúde mental para um movimento social pela reforma psiquiátrica e

cidadania dos doentes mentais, convocando o comprometimento da sociedade de maneira

geral para a atenção e desinstitucionalização da loucura (AMARANTE, 1996).

Com isso, quero destacar a ação que os/as agentes escolares podem desenvolver em

prol de uma efetiva inclusão escolar de travestis e transexuais. Professores/as, diretores/as,

psicólogos/as, assistentes sociais, funcionários/as de diversos setores da educação

poderiam formar uma frente de luta para as questões que envolvem a diversidade sexual.

Seria o começo para uma mobilização por práticas transformadoras e por reflexões críticas

sobre a presença da diversidade de formas de viver na escola.

Porém, os/as próprios profissionais trazem as marcas do preconceito contra pessoas

não heterossexuais em suas práticas. Não é difícil ouvir o discurso que diz: “eu não tenho

nada contra um homossexual, contanto que ele seja discreto”, ou seja, que não pareça ser

“o que é”. No caso das pessoas trans, é difícil essa discrição exigida: a diferença está

cravada na carne, visíveis nos atributos elegidos para compor sua forma de viver.

Contudo, não se pode culpabilizar isoladamente os/as educadores/as. O amor entre

pessoas do mesmo sexo, assim como a subversão dos gêneros inteligíveis, foi secularmente

considerado, dependendo do período histórico vivido, como crime hediondo ou pecado

abominável ou anormalidade sexual, provocando uma aversão quase generalizada aos não

heterossexuais (MOTT, 2002). Os/as profissionais de educação são também fruto dessa

socialização. Mas não é por isso que não são responsáveis em produzir rupturas nesse

regime de verdade. Eis, portanto, que um instrumento fundamental para a

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desfamiliarização da heteronormatividade reside na formação profissional de futuros e

atuais educadores/as.

De outro modo, irá se perpetuar o efeito perverso de todo esse processo que reitera

a heteronormatividade e homofobia: a expulsão de travestis e transexuais das escolas. Aí,

condenam-se travestis e transexuais de serem marginais e por viverem majoritariamente na

prostituição. Porém, pouco se fala das situações que provocaram a saída da escola. A

marginalidade e prostituição são sintomas de exclusões continuadas pelas quais passam

aquelas/es que ousam transitar os gêneros inteligíveis.

O que se percebe é que sem movimentos de rupturas e práticas de resistência, irá se

perpetuar essa inclusão transtornada na qual são submetidas as pessoas trans. Ao serem

consideradas com algum transtorno (transtorno de identidade de gênero, como diagnostica

o DSM-IV, ou simplesmente um transtorno de ordem moral, como diagnostica o senso

comum), travestis e transexuais causam transtorno na escola: perturbam a ordem,

desorganizam os saberes e práticas, reviram os valores, confundem as cores e banheiros,

alteram os nomes... O transtorno, portanto, não está nas pessoas trans, mas sim, na

incapacidade da escola em lidar com a multiplicidade de experiências de vida.

A Portaria do Nome Social, apesar de bem intencionada, acaba sendo partícipe

dessa inclusão transtornada. A falta de implementação, acompanhamento e informação da

portaria nas escolas, sem dúvida, são elementos a serem considerados. Assim como as

condições precárias de vida que grande parte de travestis e transexuais são submetidas, que

inviabilizam o retorno ou permanência dessa população na escola. Porém, o elemento mais

importante é a ainda incipiente influência, porque isolada e sem a participação dos

movimentos sociais e escolares, que a portaria provocou no que tange à crítica contra a

normalização pela qual é interpretada a vida das pessoas trans.

Na contramão dessa inclusão transtornada, uma inclusão que force os limites do

possível. Não há modelos a seguir, mas há possibilidades a serem criadas. Inclusão como

atitude crítica, que possibilite problematizar as formas de ser governado/a e as de não ser

governado/a. Uma nova forma de inclusão, que funcione a partir da resistência ao rotineiro,

previsível, ordinário.

Se no começo desta pesquisa eu disse que ela abordaria as transformações e as

manutenções das formas de viver, agora a finalizo com as duas palavras que podem servir

como contribuição desta tese: suspeita e possibilidade. Suspeita das nossas certezas sobre

sexo, gênero, formas de viver viáveis e inviáveis, normais e anormais, aceitáveis ou

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abjetas. Suspeitas que guiam as possibilidades de outras práticas no que diz respeito aos

modos de ser divergentes do “padrão” idealizado. Possibilidades de resistência às

normalizações que apequenam a vida e assim, possibilidades de novas práticas

pedagógicas que acolham as multiplicidades.

Mesmo que não possamos desinventar a nós mesmos,

possamos ao menos reforçar a questionabilidade das formas

de ser que têm sido inventadas para nós e começar a inventar

a nós mesmos de forma diferente.

Nikolas Rose (2001b, p. 198).

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APÊNDICE A

ROTEIRO DE ENTREVISTA

Como você se auto-define? Para que eu possa me remeter a você corretamente.

Gostaria que você me contasse um pouco sobre a sua vida. Quando você se percebeu

enquanto travesti ou transexual?

Conte-me sobre sua vida escolar? Você frequenta ou frequentou a escola? Até que série?

Quais as maiores dificuldades enfrentadas na escola? Você pode me contar um caso?

O que te faz permanecer na escola? Quais são seus planos?

Você teve interesse de retornar à escola? Por quê?

O que te afasta da escola?

O que te faria voltar à escola?

Você conhece a Portaria do Nome Social? O que você acha dela?

Qual é a importância do nome social para sua vida? Você pode me contar uma situação?

O que é inclusão escolar para você?

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APÊNDICE B

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dir

eto

res,

fu

nci

onár

ios

que

olh

avam

co

m c

ara

feia

. E

u s

em

pre

me e

squiv

ava,

sem

pre

fic

ava

no

meu

canti

nho

, não

pro

cura

va

fala

r co

m n

inguém

. U

ma

vid

a am

arga.

Ach

o q

ue

isso

faz

mu

ito

mal

. N

ão a

dia

nta

a g

ente

ser

am

arga,

iss

o a

trai

do

ença

. E

ra m

uit

o f

echad

a, t

ava

carr

egan

do

iss

o c

om

igo

Iso

lam

ento

co

mo

estr

atég

ia d

e so

bre

viv

ênci

a

na

esco

la

3

Tin

ha

29

ano

s e

tava

carr

egan

do

ess

a vid

a am

arga.

Não

, não

quer

o i

sso

pra

mim

. T

inha

qu

e se

r fe

liz,

sai

r, n

am

ora

r,

fica

r. T

eve

um

a co

nfe

renci

a em

Tucu

ruí

e e

u f

iz t

anta

am

izad

e, e

u n

ão s

abia

que

era

tão

quer

ida

assi

m.

Vo

ltei

de

outr

a p

esso

a. D

eixei

ess

a vid

a am

arga

pra

trá

s q

ue

eu n

ão q

uer

o m

ais

isso

.

Vid

a am

arga

2

eu o

pte

i p

ela

vid

a d

a no

ite,

po

rque

em

pre

go

é d

ifíc

il.

A f

am

ília

sem

pre

co

bra

va

em

pre

go

e c

om

o p

rocu

ro e

mp

rego

já v

esti

da

de

mu

lher

, já

tin

ha p

eito

, é

com

pli

cad

o.

eu i

a p

ra r

ua

e gan

hav

a d

inhei

ro f

áci

l. M

as t

ud

o q

ue

vem

fác

il,

vai

fác

il.

Ago

ra n

a ru

a é

assi

m:

a gen

te t

a al

i p

ra t

ud

o.

Pra

roub

ar,

pra

ser

ro

ub

ada,

pra

mat

ar.

Eu t

enho

que

sair

des

sa

vid

a, m

as n

ão t

em

co

mo

.

Pro

stit

uiç

ão c

om

o ú

nic

a

op

ção

de

vid

a

2

Eu s

into

mu

ita f

alta

des

sa c

ois

a d

e es

cola

, m

as h

oje

em

dia

não

quer

o m

ais

não

. N

ão t

enho

mai

s p

aciê

nci

a. H

oje

dev

e

ta t

ud

o m

ud

ado

. A

té l

íng

ua

po

rtug

ues

a d

eve

ter

mud

ado

. Is

so n

ão d

á ce

rto

. S

e eu

fo

r vo

ltar

a e

stud

ar,

vai

ser

a n

oit

e,

né.

chega

a se

xta

eu j

á vo

u e

men

dar

, já

vo

u p

arar

no

bar

e n

ão v

ai d

ar c

erto

.

O n

ão d

esej

o d

e vo

ltar

à

esco

la

3

Page 164: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … Lucia... · Interlúdio 2: Jenifer, Brenda e suas diferenciações identitárias 43 2.1 “Precisamos verdadeiramente de um verdadeiro

16

3

A

lgu

ma

co

isa

te

fari

a v

olt

ar

pra

esc

ola

?

Não

, nad

a.

Vo

cê c

onh

ecia

a p

ort

ari

a d

o n

om

e so

cia

l?

Já.

Mas

eu

q

uer

ia

conhec

er

isso

na

épo

ca

que

eu

estu

dav

a.

Tal

vez

eu

ti

nha

mud

ad

o,

tinha

term

inad

o.

Tin

ha

term

inad

o,

tava

com

em

pre

go

e t

ud

o.

Era

outr

a p

esso

a. U

ma

pes

soa

mai

s cult

a.

Po

rtar

ia c

om

o

po

ssib

ilid

ade

de

term

inar

os

estu

do

s

3

Qu

al

a i

mp

ort

ân

cia

do t

eu n

om

e p

ra t

i?

Eu m

e i

den

tifi

co,

me

sinto

mai

s m

ulh

er,

me s

into

mais

fem

inin

a. A

í eu

ten

ho

fo

rça

pra

luta

r. S

e m

e cham

arem

pel

o

no

me

de

ho

mem

eu n

ão v

ou o

lhar

de

jeit

o m

anei

ra.

Tal

vez

eu v

á at

é d

iscuti

co

m a

pes

soa,

bri

gar

.

O n

om

e fe

min

ino

2

Eu a

par

eci

com

um

a al

erg

ia n

o c

orp

o,

aí e

u e

ntr

ei n

a sa

la d

o m

édic

o e

a p

rim

eira

co

isa

que

ele

me

per

gu

nto

u f

oi

se

eu e

ra s

oro

po

siti

vo

. T

ava

eu e

min

ha

mãe

e e

le m

and

ou a

gen

te i

r em

bo

ra.

Na

rece

ita m

édic

a ta

va

pra

eu

pro

cura

r o

CO

AS

, não

me

rece

ito

u r

em

édio

nem

nad

a. M

and

ou e

u i

r em

bo

ra p

orq

ue

a al

ergia

dev

ia s

er p

or

causa

do

HIV

.

Ten

tei

faze

r a

den

únci

a, n

ão s

abia

quem

pro

cura

r, a

í hoje

ess

e m

édic

o t

a aí

...

Ten

ho

a r

ecit

a guar

dad

a at

e ho

je.

Mas

não

sei

se a

ind

a val

e a

pena,

faz

um

tem

pão

. N

ess

e m

esm

o d

ia t

ava u

ma

fila

eno

rme

e q

uan

do

cham

aram

meu

no

me

eu b

aixei

a c

abeç

a e

tod

o m

un

do

me

olh

ou.

Mas

a g

ente

tem

que

dar

o n

om

e d

e ho

mem

, n

é, n

ão t

em

jei

to.

Pre

conce

ito

na

área

da

saúd

e

2

E q

uan

do

ch

am

am

pel

o t

eu n

om

e, J

éssi

ca?

Na

ho

ra e

u r

esp

ond

o.

Pra

mim

é u

ma

feli

cid

ade,

um

a vit

óri

a. E

ssa

po

rtar

ia é

um

a vit

óri

a p

ra n

ós.

A g

ente

é t

ão

dis

crim

inad

a. D

entr

o d

o p

rópri

o m

ovim

ento

a g

ente

é d

iscr

imin

ada.

Gay n

ão s

e d

á m

uit

o c

om

tra

ves

ti,

né?

E t

raves

ti

é ra

ro s

e d

á co

m g

ay.

Ess

as b

rinca

dei

rin

has

del

es,

já é

pre

conce

ito

.

É l

egal

ser

cham

ada

pel

o n

om

e fe

min

ino

. É

co

mp

lica

do

ves

tid

a d

e m

ulh

er e

ser

cham

ada

pel

o n

om

e d

e ho

mem

. É

um

a vit

óri

a.

O n

om

e fe

min

ino

2

Ho

je e

m d

ia e

u j

á re

laxei

quan

do

me

cham

am

pel

o n

om

e d

e ho

mem

. A

nti

gam

ente

não

. E

u b

rigav

a m

uit

o c

om

a

pes

soa.

Dis

cuti

a m

uit

o.

Quer

ia m

ud

ar u

ma

cois

a q

ue

não

dav

a. H

oje

em

dia

eu r

esp

ond

o d

e q

ual

quer

jei

to.

Mas

na

esco

la e

ra m

ais

dif

ícil

.

O n

om

e m

asculi

no

2

Na

esco

la e

ra m

uit

o p

reco

nce

ito

. M

as d

a p

arte

do

s m

enin

os.

Eu n

ão p

od

ia u

sar

o b

anhei

ro f

em

inin

o e

no

masc

uli

no

eu e

ntr

ava,

mas

tin

ha

pia

din

ha.

Olh

a, j

á ta

va

com

fula

no

no

ban

hei

ro.

E n

o f

em

inin

o t

inha

men

ina

que

não

go

stav

a.

Co

mp

lica

do

. O

lha,

tin

ha

qu

e te

r tr

ês b

anhei

ros.

Na

épo

ca,

trav

esti

nes

sa e

sco

la s

ó e

ra e

u.

O b

anhei

ro d

a es

cola

3

Na

épo

ca e

u n

em

pensa

va

qu

e eu

era

tra

vest

i, n

é? E

u a

chava

que e

u e

ra u

ma

cois

a a

ssim

, ab

stra

ta.

Não

sab

ia o

que

era.

Não

me

identi

fica

va

ain

da.

Eu g

ost

ava d

e m

e ves

tir

com

ro

up

a d

e m

ulh

er,

mas

nunca

pen

sava

que

isso

era

trav

esti

. N

a ép

oca

, tr

aves

ti p

ra m

im e

ra q

uem

viv

ia n

a ru

a, t

ava

se p

rost

ituin

do

, q

ue

viv

ia s

em

i n

ua,

que

tin

ha

sili

cone.

De

uns

tem

po

s p

ra c

á, d

epo

is q

ue

conhec

i es

se m

ovim

ento

, eu

vi

que

trav

esti

não

é s

ó a

quel

a q

ue

tom

a

ho

rmô

nio

e t

al.

A n

ão d

efin

ição

do

que

se

é 2

Fal

ar d

a gen

te q

ue

vir

a tr

aves

ti é

mu

ito

co

mp

lica

do

. A

gen

te ta

na

po

nta

d

o ic

eber

g d

o pre

conce

ito

. T

u és

dis

crim

inad

a em

qual

quer

lu

gar

. O

nd

e tu

pas

sa é

pia

din

ha,

chav

equin

ho

...

Eu t

ento

me

cam

ufl

ar,

mas

a g

ente

cham

a

aten

ção

de

qual

quer

jei

to.

Mas

a g

ente

tem

que

enfr

enta

r a

soci

edad

e.

Pre

conce

ito

3

Page 165: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … Lucia... · Interlúdio 2: Jenifer, Brenda e suas diferenciações identitárias 43 2.1 “Precisamos verdadeiramente de um verdadeiro

16

4

B

ren

da

T

em

a

Ca

pít

ulo

s

Des

de

peq

uen

a m

e se

nti

a m

uit

o d

ifer

ente

. A

ind

a te

nte

i te

r nam

oro

s na

esco

la c

om

menin

as,

mas

nu

nca

tiv

e u

ma

rela

ção

sex

ual

co

m m

ulh

er.

É u

ma

imagem

aver

siva

par

a m

im.

Sen

tir-

se d

ifer

ente

des

de

cria

nça

2

Eu t

inha

pad

rões

cat

óli

cos

fort

e. M

inha

avó

fo

i cr

iad

a em

co

légio

de

frei

ras.

A r

elig

ião

ia

me

po

dan

do

, ia

rep

rim

ind

o

isso

.

Rel

igiã

o

2

Min

ha

mãe

é d

a tu

rma

do

Sar

tre,

bem

ex

iste

nci

alis

ta:

eu s

ou e

u e

mai

s as

min

has

circ

unst

ânci

as.

Se

as

min

has

circ

un

stân

cia

s sã

o e

ssas

, en

tão

ten

ho

que

acei

tá-l

as.

Ela

até

dis

se q

ue

eu f

iquei

mai

s b

onit

a d

e m

ulh

er d

o q

ue

de

ho

mem

.

Já m

eu p

ai,

é aq

uel

a q

ues

tão

da

tole

rânci

a: “

eu a

mo

meu f

ilh

o e

ten

ho

que

tole

rar”

. E

u s

ei q

ue

não

é f

ácil

pra

ele

. E

le

conti

nua

me

cham

and

o d

e m

eu f

ilho

, d

e B

runo

. N

a fr

ente

de p

esso

as q

ue

já t

enho

mai

s in

tim

idad

e, e

u n

ão m

e

imp

ort

o.

Mas

tem

alg

uns

loca

is q

ue

já a

vis

o:

“aq

ui

é B

rend

a, v

iu?”.

Rel

acio

nam

ento

co

m a

fam

ília

2

Alé

m d

isso

, te

nho

um

sen

so e

stét

ico

muit

o f

ort

e. S

ó i

ria

me

tran

sfo

rmar

em

mu

lher

quand

o s

aíss

e na

rua

e vis

se q

ue

dav

a, q

ue

não

cham

aria

tan

ta a

tençã

o.

vo

u s

air

de

casa

quan

do

eu t

iver

pel

o m

eno

s o

ben

efíc

io d

a d

úvid

a.

Ab

om

ino

a i

magem

de

trav

esti

est

ereo

tip

ada,

aquel

a im

agem

de

um

ho

mem

ves

tid

o d

e m

ulh

er.

Sen

so e

stét

ico

fo

rte

2

O m

eu p

ai t

eve

um

a in

fânci

a m

uit

o p

ob

re e

po

r is

so s

emp

re d

eu m

uit

o a

po

io a

min

ha

edu

caçã

o,

par

a q

ue

eu n

ão

pas

sass

e d

ific

uld

ade.

Ê

nfa

se n

a ed

uca

ção

3

Entã

o,

eu c

om

ecei

a f

azer

per

sonag

ens.

Na

facu

ldad

e só

me

rela

cio

nav

a co

m h

om

ens.

As

pes

soas

per

ceb

iam

que

eu

era

meio

est

ran

ho

, m

as n

ão s

ab

iam

se

era

gay o

u “

am

am

ãezad

o”.

Eu e

ra u

m g

ay q

ue

não

tin

ha

conta

tos

com

outr

os

gays.

Quand

o i

a p

ara

fest

as,

os

menin

os

fica

vam

co

m a

s m

enin

as

e vic

e-v

ersa

. E

eu n

ão f

icav

a co

m n

ing

uém

.

Faz

er p

erso

nag

ens

2

Quand

o c

om

ecei

a t

er a

mig

os

gays,

me

senti

mai

s li

vre

. M

as a

ind

a se

nti

a q

ue

aquel

e não

era

o m

eu l

ugar

. E

u n

ão

conse

guia

faz

er o

pap

el d

e gay

. G

ay n

ão q

uer

ser

mulh

er.

Gay é

gay e

pro

nto

. E

eu n

ão,

sem

pre

tiv

e vo

nta

de

de

ser

mu

lher

.

Per

sonag

em

gay

2

Até

que

com

ecei

a m

e re

laci

onar

co

m u

m a

mig

o.

Ele

nu

nca

hav

ia s

e se

nti

do

atr

aíd

o p

or

ho

mem

. É

ram

os

só a

mig

os

até

que

per

ceb

emo

s q

ue

est

ávam

os

go

stan

do

um

do

ou

tro

. C

om

eçam

os

a nam

ora

r. M

as a

í, q

uan

do

a g

ente

tava

jun

to

em

alg

um

lugar

, la

nch

onet

e, p

or

exem

plo

, e

alguém

se

refe

ria

a gen

te p

or

“ele

s” o

u “

senho

res”

etc

., i

sso

me

inco

mo

dav

a b

asta

nte

. P

erce

bi

que

quer

ia e

xig

ir u

m p

apel

de

mu

lher

, m

as a

ind

a não

tin

ha

um

co

rpo

par

a is

so.

Dis

par

ado

r p

ara

a

tran

sfo

rmaç

ão

2

O b

om

é q

ue

a m

inha

anat

om

ia a

jud

ou m

uit

o.

Da

cin

tura

pra

bai

xo

sem

pre

fo

i m

uit

o f

em

inin

o e

o r

ost

o t

amb

ém

. N

ão

tem

nen

hu

ma

ciru

rgia

no

ro

sto

. A

únic

a in

terv

ençã

o f

oi

a d

epil

ação

à l

aser

da

bar

ba.

E c

om

ecei

a t

om

ar h

orm

ônio

,

esco

nd

ido

do

s p

ais.

Anat

om

ia f

em

inin

a

2

O m

eu p

ai c

om

eço

u a

per

ceb

er e

a s

ituaç

ão e

m c

asa

fico

u i

nsu

sten

tável

. F

alta

va

apen

as

2 a

no

s p

ara

term

inar

o c

urs

o

de

dir

eito

na

outr

a fa

culd

ade,

mas

ab

and

onei

tud

o e

fui

par

a a

Euro

pa.

Pas

sei

1 a

no

pra

lá,

mas

vi

que

tam

bém

não

era

essa

vid

a q

ue

quer

ia p

ra m

im.

Ida

à E

uro

pa

2

Po

r q

ue

tod

a tr

aves

ti t

em

que

ser

puta

? E

ntã

o,

eu q

uis

faz

er o

dif

eren

cial

. Q

uand

o v

olt

ei,

ain

da

tente

i fa

zer

o B

runo

,

mas

dep

ois

de

6 m

ese

s não

ag

uen

tei

mai

s.

Não

quer

er s

er p

rost

ituta

2

Na

Euro

pa,

fui

a B

rend

a, m

e ves

tia,

viv

ia c

om

o m

ulh

er.

Eu j

á ti

nha

pro

vad

o c

om

o e

ra s

er

a B

rend

a. P

erce

bi

que

a

min

ha

feli

cid

ade

esta

va

ali.

Entã

o,

já n

ão d

ava

mai

s p

ara

ser

Bru

no

. E

u m

e re

laci

onava

mel

ho

r co

m a

Bre

nd

a. E

u

fiq

uei

mai

s b

onit

a d

e B

rend

a d

o q

ue

de

Bru

no

. E

ra m

ais

paq

uer

ada

com

o B

rend

a. E

ntã

o,

isso

mass

agei

a o

ego

e

mo

stra

que

a gente

no

cam

inho

cer

to.

Tra

nsf

orm

and

o-s

e em

Bre

nd

a 2

Page 166: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … Lucia... · Interlúdio 2: Jenifer, Brenda e suas diferenciações identitárias 43 2.1 “Precisamos verdadeiramente de um verdadeiro

16

5

E

ntã

o,

reso

lvi

faze

r a

Bre

nd

a e

a B

rend

a vin

go

u.

Fiz

sil

ico

ne

e al

gu

mas

mud

ança

s nec

essá

rias

. A

ind

a te

nho

muit

a

cois

a p

ara

mud

ar;

muit

as c

ois

as q

ue

aind

a q

uer

o f

azer

.

Tra

nsf

orm

açõ

es n

o c

orp

o

2

que

um

a tr

anse

xual

na

un

iver

sid

ade

é m

uit

o d

ifer

ente

. E

ain

da

no

curs

o d

e d

irei

to,

aind

a m

ais.

Fo

i aí

que

teve

tod

a aq

uel

a re

per

cuss

ão.

P

reco

nce

ito

na

facu

ldad

e

3

Não

sen

tia

pre

conce

ito

na

esco

la,

po

is c

riei

um

per

sonag

em

agre

ssiv

o.

No

ensi

no

fund

am

enta

l, e

u t

inha

um

a p

ost

ura

mai

s agre

ssiv

a,

era

aves

sa à

s p

esso

as.

Não

me

cham

avam

de

vea

do

,

po

rque

tinham

med

o n

o q

ue

aq

uil

o i

a d

ar.

Per

sonag

em

agre

ssiv

o p

ara

enfr

enta

r a

esco

la

3

No

ensi

no

méd

io n

ão t

ive

pro

ble

ma

tam

bém

, m

as

ago

ra p

orq

ue

eu e

ra u

ma

pes

soa

muit

o c

om

unic

ativ

a, o

po

pula

r.

Po

r m

ais

que

as p

esso

as a

chass

em

alg

um

a co

isa,

não

chegav

a at

é el

a.

Per

sonag

em

po

pula

r no

ensi

no

méd

io

3

Co

mo

ser

ia a

Bre

nd

a n

o e

nsi

no

fu

nda

men

tal?

Eu a

cho

que

não

ter

ia e

stru

tura

psi

coló

gic

a p

ra i

sso

na

épo

ca d

o e

nsi

no

fu

nd

am

enta

l o

u m

édio

. N

ão t

inha

cond

içõ

es

nen

hu

ma,

não

tin

ha

pre

par

o. P

ela

estr

utu

ra d

a es

cola

, não

havia

ess

a ca

ract

eriz

ação

de

bull

yin

g,

não

tin

ha

essa

defe

sa

do

s d

irei

tos

hu

man

os.

Ho

je c

onti

nuar

ia s

end

o d

ifíc

il.

Não

dim

inuiu

o p

reco

nce

ito

, m

as a

um

ento

u a

ace

itaç

ão.

A

pes

soa

é o

bri

gad

a a

acei

tar.

O p

reco

nce

ito

exis

te n

os

loca

is a

ond

e vo

cê n

ão é

ob

rigad

o a

ter

um

a p

ost

ura

de

tole

rânci

a. E

m a

lgu

ns

lugar

es e

u v

ejo

os

olh

ares

, as

cutu

cad

as,

mas

as

pes

soas

est

ão i

mp

oss

ibil

itad

as d

e d

izer

qual

quer

co

isa

de

pre

conce

ito

. E

les

têm

um

em

pre

go

em

ris

co

.

Imp

oss

ibil

idad

e d

e se

r a

Bre

nd

a no

ensi

no

méd

io

3

Não

sin

to p

reco

nce

ito

na

Unam

a p

orq

ue

eu p

asso

par

a as

pes

soas

, co

m m

eu j

eito

dec

idid

o d

e se

r, p

asso

um

a ce

rta

anti

pat

ia,

um

a ce

rta

arro

gân

cia.

D

o a

lunad

o e

u p

erce

bo

. Q

uan

do

cheg

o n

a ca

nti

na.

.. Q

uan

do

um

ho

mem

ta

sozi

nho

,

ele

vem

, te

fal

a u

mas

cois

as,

mas

quand

o t

a na

frente

do

s am

igo

s, é

o h

éter

o.

Per

sonag

em

arr

ogante

na

Univ

ersi

dad

e 3

Eu n

am

oro

e n

unca

tiv

e u

ma

po

stura

pro

mís

cua.

Entã

o,

mesm

o s

e ti

ves

se n

a sa

la o

ho

mem

mais

bo

nit

o d

o m

und

o e

le

nu

nca

ia

escuta

r nen

hu

m c

ort

ejo

meu

. E

u p

oss

o n

ão c

heg

ar a

um

a p

ost

ura

tão

par

ecid

a co

m u

ma

mu

lher

po

rque

eu

sou e

no

rme,

ger

alm

ente

mu

lher

é m

eno

r, m

as n

o m

eu c

om

po

rtam

ento

nin

guém

vai

ter

o q

ue

recl

am

ar.

Tan

to q

ue

eu

nu

nca

tiv

e p

rob

lem

a co

m n

am

ora

do

. S

ó m

e re

laci

ona

com

ho

men

s het

ero

ssex

uai

s, a

quele

s q

ue

nu

nca

tiv

eram

rela

cio

nam

ento

co

m h

om

em

. D

aquel

es q

ue

nu

nca

se

imagin

aram

co

m u

ma

traves

ti.

Isso

po

rque

eu t

enho

ess

a

cara

cter

ísti

ca d

e m

ulh

er m

esm

o,

dev

ido

ao m

eu c

om

po

rtam

ento

.

Ess

encia

lism

o d

e gên

ero

4

Se

eu e

sto

u e

m u

m s

up

erm

erca

do

e a

lguém

me

trat

a p

or

“ele

”, c

om

cer

teza

a m

inha

atit

ud

e nes

se “

ele”

vai

blo

quea

r

que

este

fu

nci

onár

io f

aça

a m

esm

a co

isa

com

outr

a q

ue

vie

r at

rás

de

mim

. U

ma

cois

a é

o n

ão s

aber

lid

ar c

om

a

situ

ação

. S

ó h

á tr

einam

ento

para

sab

er l

idar

co

m o

s d

efic

ien

tes,

po

r ex

emp

lo.

Mas

não

trei

nam

ento

par

a sa

ber

lid

ar c

om

as

ou

tras

min

ori

as.

Se

cheg

a u

m g

ay,

um

ho

mem

, q

ual

quer

pes

soas

, vest

ido

de

mu

lher

, é

lógic

o q

ue

ele

quer

ser

tra

tad

o c

om

o m

ulh

er.

Ati

tud

e d

iante

ao

trat

am

ento

no

masc

uli

no

4

Per

cebo

que

ho

je j

á m

elho

rou m

uit

o.

Mes

mo

quand

o m

ost

ro n

o d

ocu

men

to B

runo

, m

as m

e o

lham

, m

e tr

atam

po

r

“ela

”, “

sen

ho

ra”.

.. A

té m

esm

o p

orq

ue

a m

inha

apar

ênci

a fí

sica

aju

da.

O q

ue

queb

ra é

na

ho

ra q

ue

eu a

bro

a b

oca

. A

vo

z ai

nd

a te

m e

ssa

ento

naç

ão.

O q

ue

ajud

a é

que

quan

do

a p

esso

a m

e o

lha,

está

pre

par

ada

pra

me

trat

ar c

om

o

sen

ho

ra.

Entã

o,

mes

mo

dep

ois

que

essa

pes

soa

ver

o d

ocu

mento

co

m n

om

e m

asc

uli

no

, el

a co

nti

nua

com

o “

senho

ra”

po

rque

foi

a p

rim

eira

im

pre

ssão

que

ela

teve.

A v

oz

com

o u

m

den

unci

ado

r na

iden

tid

ade

tran

s

2

A m

ud

ança

de

no

me

é fu

nd

am

enta

l. N

ão m

e im

po

rta

se n

ão m

ud

a o

gêner

o.

Quem

vai

ver

o g

êner

o? M

as o

no

me,

isso

sim

é i

mp

ort

ante

. O

que

me

esp

anta

é q

ue

se u

ma

pes

soa

tem

o n

om

e d

e A

stro

gil

do

, p

od

e nat

ura

lmente

ir

lá e

mud

ar p

ra F

elip

e, p

or

que

um

a p

esso

a q

ue

tem

o n

om

e m

asc

uli

no

, m

as s

e ap

rese

nta

co

mo

mulh

er n

ão p

od

e m

ud

ar

Imp

ort

ânci

a em

mud

ar o

no

me

3

Page 167: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … Lucia... · Interlúdio 2: Jenifer, Brenda e suas diferenciações identitárias 43 2.1 “Precisamos verdadeiramente de um verdadeiro

16

6

p

ro n

om

e fe

min

ino

? É

um

a q

ues

tão

de

pre

conce

ito

. M

as j

á ac

eita

ram

até

o c

asam

ento

en

tre

gays

e não

ace

ita

a tr

oca

de

no

me?

O n

om

e é

o q

ue

mai

s ger

a d

esco

nfo

rto

pra

gen

te.

É c

om

pli

cad

o.

Quand

o e

u v

ou p

ra U

nim

ed c

om

o J

únio

r, m

eu n

am

ora

do

, el

e já

vai

na

fren

te e

diz

que

é p

ra m

e cham

ar d

e B

rend

a,

já v

ai o

rgan

izan

do

a s

ituaç

ão.

Mas

a f

icha

acab

a p

assa

nd

o p

ela

mão

de

tanta

gente

que

nem

to

do

s sã

o i

nfo

rmad

os.

Quand

o c

ham

am

de

Bru

no

, el

e se

lev

anta

co

mo

se

foss

e el

e a

ser

consu

ltad

o e

eu p

asso

por

aco

mp

anhante

. A

gente

acab

a cr

iand

o m

ecanis

mo

par

a d

rib

lar

essa

s si

tuaç

ões

.

Est

raté

gia

s p

ara

lid

ar c

om

o n

om

e m

asc

uli

no

3

Se

eu j

á ti

ves

se c

om

o n

om

e fe

min

ino

, ir

ia d

imin

uir

um

a gra

nd

e ca

rga

de

pre

conce

ito

. M

as d

eve

ter

crit

ério

s. N

ão d

á

pra

cheg

ar h

oje

e q

uer

er s

er J

oão

, am

anhã,

Mar

ia.

Tem

que

ter

crit

ério

.

No

me

fem

inin

o p

ara

dim

inuir

pre

conce

ito

3

O n

om

e no

ensi

no

fu

nd

am

enta

l, e

u a

cho

co

mp

lica

do

. P

ara

assu

mir

um

a p

ost

ura

tra

nse

xual,

tra

ves

ti,

tu t

ens

que

ter

um

gra

nd

e ar

cab

ouço

psi

coló

gic

o e

um

a ex

per

iênci

a d

e vid

a m

uit

o g

rand

e. É

um

pas

so q

ue n

ão s

e p

od

e vo

ltar

.

Co

mp

lica

ções

em

ass

um

ir

o n

om

e so

cial

na

ado

lesc

ênci

a

3

Entã

o,

mexe

na

no

ssa

cab

eça

do

po

nto

de

vis

ta r

elig

ioso

: se

rá q

ue

Deu

s ta

go

stan

do

dis

so? D

o p

onto

de

vis

ta

fam

ilia

r, d

e so

nho

s...

R

elig

ião

2

Se

tu q

uer

ser

pil

oto

de

fórm

ula

1 e

per

de

o m

ovim

ento

das

per

nas

, tu

tens

que

te a

dap

tar.

E n

em

sem

pre

as

pes

soas

estã

o p

rep

arad

as a

se

adap

tar.

Gay n

ão t

em

ob

stác

ulo

par

a g

algar

um

em

pre

go

, u

ma

pro

fiss

ão.

Ago

ra é

muit

o d

ifíc

il

enco

ntr

ar u

ma

trav

est

i co

m u

ma

pro

fiss

ão.

É c

onta

to t

ranse

xual

que

tem

funçã

o s

oci

al a

qui

em

Bel

ém

. A

gra

nd

e

mai

ori

a ta

na

pro

stit

uiç

ão.

É o

únic

o e

spaç

o s

oci

al p

ra t

raves

ti.

Dif

iculd

ade

em

co

nse

guir

em

pre

go

4

Mas

ach

o q

ue

um

a cr

iança

, u

ma

pes

soa

com

14

, q

uan

do

aca

ba

o e

nsi

no

fu

nd

am

enta

l, n

ão t

em

ain

da

um

pre

par

o

psi

coló

gic

o,

soci

al,

par

a se

consi

der

ar u

ma

mulh

er a

par

tir

dal

i. E

ntã

o,

essa

mud

ança

do

no

me

deve

aco

nte

cer,

no

mín

imo

, q

uand

o t

u c

hegar

à t

ua

mai

ori

dad

e le

gal

.

No

me

soci

al s

om

ente

a

par

tir

mai

ori

dad

e le

gal

3

A e

sco

la d

eve

pre

par

ar o

cid

adão

par

a co

nviv

er c

om

o d

ifer

ente

e s

aber

que

o d

ifer

ente

não

é a

no

rmal

. O

no

me

soci

al

ser

usa

do

, tu

do

bem

, m

as

não

co

nco

rdo

em

mud

ar o

no

me

civil

ness

a id

ade.

Tem

qu

e es

per

ar a

mai

ori

dad

e p

ara

ter

a

cert

eza

que

é aq

uil

o q

ue

ele

quer

. A

go

ra,

po

líti

cas

de

incl

usã

o d

o d

ifer

ente

é f

und

am

enta

l q

ue

se t

enha

na

esc

ola

.

Um

a p

esso

a se

m p

reco

nce

ito

é m

ais

soli

dár

ia,

mai

s am

oro

sa,

mais

ed

uca

da

no

trâ

nsi

to.

Entã

o,

essa

s p

olí

tica

s não

são

bo

as s

ó p

ro g

ay,

pro

tra

nse

xual,

é p

ara

tod

a a

soci

edad

e.

Po

líti

cas

de

incl

usã

o d

a

div

ersi

dad

e na

esco

la

4

Eu s

em

pre

so

u c

ham

ada

po

r B

rend

a na

faculd

ade.

Não

gra

nd

es q

ues

tões

em

rel

ação

a i

sso

. C

om

o g

eral

men

te s

ó

vo

lto

às

aula

s u

ma

sem

ana

dep

ois

do

iníc

io d

o s

emes

tre,

meus

cole

gas

já e

xp

lica

m p

ara

o p

rofe

sso

r o

u p

rofe

sso

ra q

ue

eu q

uer

o s

er c

ham

ada

po

r B

rend

a.

No

me

soci

al

3

Mas

tiv

e p

rob

lem

as c

om

do

is p

rofe

sso

res.

Fiq

uei

até

de

recu

per

ação

nes

sas

dis

cip

linas

. T

enho

cer

teza

que

foi

po

r

pre

conce

ito

. E

les

quer

iam

mo

stra

r q

ue

um

a tr

anse

xual

no

cu

rso

de

dir

eito

não

era

cer

to. E

star

curs

and

o d

irei

to n

ão é

um

mar

de

rosa

s. A

té p

orq

ue

mu

ito

s p

rofe

sso

res

quer

iam

ser

gay,

mas

não

tem

co

ragem

. U

ns

até

adm

iram

a m

inha

cora

gem

, m

as

outr

os

acab

am

sen

do

pre

co

nce

ituo

sos.

Aq

uil

o q

ue

ele

esco

lheu p

ra v

ida

del

e não

po

de

ser

des

val

ori

zad

o p

or

um

a p

esso

a q

ue

ta f

azend

o d

ifer

ente

. S

e el

e não

co

nse

gue

assu

mir

, el

e ac

aba

tend

o r

aiva

de

quem

tem

co

ragem

. A

í el

es d

ific

ult

am

pra

gen

te.

Saí

da

outr

a fa

culd

ade

dev

ido

ao

pre

conce

ito

de

um

pro

fess

or.

Tam

bém

sofr

o p

reco

nce

ito

aq

ui,

mas

é u

m p

reco

nce

ito

cín

ico

. N

ão é

um

a fa

lta

de

conce

ito

s, c

om

o d

as p

esso

as s

em

ed

uca

ção

.

Pre

conce

ito

do

s

pro

fess

ore

s 3

Page 168: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … Lucia... · Interlúdio 2: Jenifer, Brenda e suas diferenciações identitárias 43 2.1 “Precisamos verdadeiramente de um verdadeiro

16

7

L

eila

T

em

a

Ca

pít

ulo

s

Se

tiver

que

me

def

inir

, eu

so

u t

ranse

xual

. M

as n

a ver

dad

e, e

u n

ão s

ou a

favo

r d

e ró

tulo

s. D

á vo

nta

de

de

diz

er q

ue

eu

sou s

ó a

Lei

la e

pro

nto

.

Não

tulo

2

A t

raves

ti é

aq

uel

e fe

min

ino

que

se c

on

stró

i em

um

co

rpo

rec

onhec

ido

po

r el

as c

om

o m

asc

uli

no

. Q

uer

ser

reco

nhec

ida

atra

vés

da

am

big

üid

ade.

Até

po

rque

elas

usa

m o

órg

ão m

asculi

no

na

pro

stit

uiç

ão.

E e

las

se s

ente

m b

em

nes

sa f

unçã

o d

e se

r at

iva.

É o

mas

culi

no

e f

em

inin

o a

o m

esm

o t

em

po

.

Def

iniç

ão d

e tr

aves

ti

2

Já a

tra

nse

xual

não

tem

ess

a am

big

üid

ade.

Ela

co

nst

rói

um

fem

inin

o d

entr

o d

e u

m c

orp

o q

ue

ela

não

rec

onhec

e.

Muit

as

vez

es

é u

m c

orp

o q

ue

inco

mo

da.

Po

r is

so a

psi

quia

tria

cham

a d

e tr

anst

orn

o d

e id

enti

dad

e d

e gên

ero

, d

isfo

ria

de

gên

ero

. N

essa

vis

ão p

ato

lógic

a, a

med

icin

a ac

ha

que

tod

as q

uer

em

ter

um

co

rpo

co

mp

leta

men

te f

em

inin

o,

que

quer

tir

ar o

pên

is e

nem

sem

pre

é v

erd

ade.

Crí

tica

à d

efin

ição

méd

ica

de

tran

sex

ual

idad

e 2

Pra

mim

não

me

inco

mo

do

meu

órg

ão,

mas

far

ia a

cir

urg

ia s

im.

Até

po

rque

eu n

ão s

ou s

exual

mente

ati

va,

a m

aio

ria

das

tra

nse

xuai

s não

é.

Mas

a m

aio

r d

ifer

ença

é q

ue

s, t

ranse

xuais

, q

uer

em

os

ser

reco

nh

ecid

as c

om

o m

ulh

eres,

mes

mo

sab

end

o q

ue

não

so

mo

s genet

icam

ente

. M

as s

oci

alm

ente

so

mo

s.

Não

incô

mo

do

co

m o

órg

ão m

asc

uli

no

2

Par

a nó

s, a

mud

ança

de

no

me,

a a

deq

uaç

ão d

a id

enti

dad

e ci

vil

, já

é u

m d

em

arca

do

r fu

nd

am

enta

l. A

té p

ara

que

mu

itas

nem

quei

ram

faz

er a

cir

urg

ia.

Po

rque

a gen

te n

ão f

ica

mo

stra

do

a g

enit

ália

em

to

do

lugar

, m

as

o n

oss

o n

om

e

sim

. M

as a

id

enti

dad

e é

algo

que

def

ine

a t

ua

per

sonal

idad

e, e

ntã

o,

ela t

em

que s

er c

ond

izen

te c

om

teu

jei

to d

e se

r.

Um

a m

ud

ança

de

no

me

é m

ais

imp

ort

ante

do

que

a ci

rurg

ia d

e tr

anse

xual

izaç

ão.

Do

que

adia

nta

mu

dar

a g

enit

ália

se

está

co

mo

Ro

ber

to n

a id

enti

dad

e.

Mud

ança

de

no

me

com

o

mai

s im

po

rtan

te d

o q

ue

a

ciru

rgia

2

Rec

ebi

rece

nte

men

te q

ue

a m

inha

mud

ança

de

no

me

civil

fo

i in

def

erid

a. E

u h

avia

so

lici

tad

o a

mud

ança

do

pre

no

me.

Mas

eu n

ão p

edi

a m

ud

ança

de

gên

ero

po

rque

eu s

abia

que

ia s

er n

egad

o j

á q

ue

eu n

ão f

iz a

cir

urg

ia.

A j

ust

iça

ente

nd

e q

ue

mud

ança

de

gênero

é m

ud

ança

da

genit

ália

. E

fo

i in

def

erid

o.

Gên

ero

est

á li

gad

o a

um

órg

ão.

E s

e eu

não

quis

er f

azer

a c

irurg

ia? E

u t

erei

que

me

muti

lar

par

a te

r o

meu

no

me

na

cart

eira

de

iden

tid

ade?

Crí

tica

à d

eter

min

ação

de

mud

ança

de

no

me

vei

cula

da

à ci

rurg

ia

2

Min

ha

tran

sfo

rmaç

ão f

oi

um

pro

cess

o g

rad

ual

dura

nte

o c

urs

o d

e p

sico

logia

. E

ain

da

está

sen

do

. O

gên

ero

vai

sen

do

const

ruíd

o

coti

dia

nam

ente

. N

ão

a q

ues

tão

d

a ves

tim

entá

ria,

m

as

até

ideo

lógic

a,

de

atit

ud

es.

A

min

ha

tran

sexual

idad

e vai

muit

o a

lém

de

um

asp

ecto

mer

am

ente

sex

ual

. É

um

a q

uest

ão p

olí

tica

, d

e re

afir

maç

ão i

den

titá

ria,

tom

ada

de

po

siçã

o,

de

atit

ud

e. É

um

a re

afir

maç

ão d

e id

enti

dad

e. E

u c

om

ecei

a t

orn

á-l

a efe

tiva

a un

s 4

ano

s at

rás.

Ou

seja

, in

icie

i ao

s 2

6 a

no

s.

Tra

nse

xual

idad

e co

mo

ques

tão

po

líti

ca

2

Dura

nte

a i

nfâ

ncia

e a

ad

ole

scên

cia

eu s

abia

que

eu t

inha

algo

dif

eren

te,

mas

não

sab

ia i

den

tifi

car

o q

ue

era.

Eu s

abia

que

hav

ia p

esso

a q

ue

eram

id

enti

fica

do

s co

mo

gays,

lés

bic

as.

Fo

i aí

que

eu e

ntr

ei n

a u

niv

ersi

dad

e

Ind

efin

ição

do

que

se é

. 2

Eu n

ão t

inha

pro

ble

ma

com

o m

eu n

om

e ci

vil

po

rque

até

entã

o e

le e

ra l

igad

o a

o f

ato

r ex

tern

o d

o L

eonel

. E

u v

ia o

Leo

nel

ali

, m

as e

ra a

lgo

exte

rno

. E

u e

ra o

que

eu s

enti

a p

or

den

tro

, o

que

eu q

uer

ia q

ue

as p

esso

as v

isse

m.

Entã

o

cheg

ou u

m d

ado

mo

mento

na

min

ha

vid

a q

ue

eu n

ão t

ava

mai

s ag

üen

tand

o.

Iden

tid

ade

masc

uli

na

2

Fo

i aí

que

eu c

on

hec

i, j

á aq

ui

na

un

iver

sid

ade,

o m

ovim

ento

Orq

uíd

eas.

Fo

i u

m m

ovim

ento

de

gra

nd

e im

po

rtân

cia

par

a m

eu a

uto

con

hec

imento

, p

orq

ue

foi

a p

arti

r d

aí q

ue

com

ecei

a a

dentr

ar n

as

quest

ões

da

div

ersi

dad

e se

xual

, ta

nto

no

âm

bit

o ac

adêm

ico

q

uanto

nas

p

ráti

cas

coti

dia

nas.

C

om

es

sas

pes

soas

q

ue

com

ecei

a

ir a

bo

ates

L

GB

T,

a

freq

üen

tar

am

bie

nte

s co

m

pes

soas

ig

uai

s a

mim

, tã

o

min

ori

tári

as

soci

alm

ente

. A

entã

o

eu

and

ava

com

het

ero

ssexuais

e t

inha

que

me

hab

ituar

co

m a

s co

nver

sas,

me e

sco

nd

er.

Gru

po

LG

BT

: co

meç

and

o

a se

co

mp

reen

der

2

Co

nhec

er o

Orq

uíd

eas

foi

um

pro

cess

o d

e tr

ansf

orm

ação

tre

men

do

, fo

i u

ma

outr

a re

alid

ade

que

pas

sei

a co

nhec

er.

O a

po

io d

o O

rquíd

eas

2

Page 169: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … Lucia... · Interlúdio 2: Jenifer, Brenda e suas diferenciações identitárias 43 2.1 “Precisamos verdadeiramente de um verdadeiro

16

8

U

ma

quest

ão i

den

tifi

cató

ria

mes

mo

. U

m e

spaç

o n

o q

ual

era

ace

ita.

Co

nhec

i tr

aves

ti e

tra

nse

xuai

s e

pas

sei

a p

ensa

r

ond

e eu

me

enca

ixava

naq

uel

a so

pa

de

letr

inhas

. E

ra t

anta

div

ersi

dad

e, t

anta

co

isa.

Fo

i en

tão

que

eu p

asse

i a

me

assu

mir

a 4

ano

s at

rás

e o

gru

po

me

apo

iou b

asta

nte

. M

as s

ó o

gru

po

tam

bém

. E

u p

asse

i p

or

mu

itas

dif

icu

ldad

es a

qui

na

univ

ersi

dad

e, n

a fa

míl

ia.

Mas

ao

mes

mo

tem

po

em

que

tinha

gen

te j

ogan

do

ped

ra, o

utr

as f

azia

m o

s cu

rati

vo

s.

dura

nte

a t

ran

sex

ual

izaç

ão

Co

mec

ei a

est

ud

ar o

gêner

o a

cad

emic

am

ente

. A

í o

Leo

nel

da

min

ha c

arte

ira

de

identi

dad

e co

meç

ou

a s

e t

orn

ar a

lgo

estr

anho

par

a m

im.

Quand

o c

ham

avam

o L

eonel

, já

não

era

mais

o L

eonel

que

levanta

va.

Co

meç

ou a

hav

er u

ma

sep

araç

ão e

ntr

e a

iden

tid

ade

civil

e a

id

enti

dad

e so

cial

.

O n

om

e m

asculi

no

pas

sou

a so

ar e

stra

nho

2

Entã

o,

com

ecei

a a

ssu

mir

esc

anca

rad

am

ente

iss

o.

Pas

sei

a to

mar

ho

rmô

nio

s, i

nic

ialm

ente

de

form

a in

dis

crim

inad

a.

Dep

ois

fu

i a

um

méd

ico

par

ticu

lar.

Po

rque

outr

a co

isa

que

per

ceb

i é

a d

ific

uld

ade e

m t

er a

cess

o a

os

serv

iço

s d

e

saúd

e q

uan

do

se é

tra

ves

ti o

u t

ranse

xual.

Não

co

nse

gui

pel

o S

US

. S

e eu c

hegas

se n

um

clí

nic

o g

eral

ped

ind

o u

m

enca

min

ham

ento

p

ara

um

end

ócr

ino

p

orq

ue

eu

tava

pas

sand

o

po

r es

sa

tran

sfo

rmaç

ão,

ele

ia

me

dar

u

m

enca

min

ham

ento

par

a o

psi

quia

tra.

Entã

o,

fui

nu

m m

édic

o p

arti

cula

r m

esm

o.

Fo

i aí

que

com

ecei

a ver

as

pri

mei

ras

tran

sfo

rmaç

ões

no

meu

co

rpo

e e

u g

ost

ei.

Eu

est

ava

me

enco

ntr

and

o.

Pas

sei

a m

ud

ar a

s ro

up

as,

dei

xei

o c

abel

o

cres

cer,

usa

va

um

a m

aquia

gem

...

Tev

e u

ma

épo

ca q

ue

eu t

ava

bem

and

rógin

a m

esm

o,

não

se

sab

ia s

e er

a um

em

o,

se

era

isso

ou a

quil

o..

.

Co

meç

o d

a tr

ansf

orm

ação

2

Até

que

eu c

om

ecei

a v

ir d

e s

aia

pra

univ

ersi

dad

e, v

esti

do

, at

é d

e sa

lto

. A

í fu

i u

m e

scân

dal

o s

ó.

Um

a vez

um

pro

fess

or

cham

ou

Leo

nel

e e

u l

evanto

. E

le s

e e

spanto

u:

cham

ou u

m h

om

em

e s

urg

e e

u.

Ele

fic

ou c

om

um

a exp

ress

ão

esca

nd

aliz

ada.

eu p

asse

i a

ado

tar

o n

om

e L

eil

a.

Ida

trav

esti

da

à

univ

ersi

dad

e

3

Ess

e no

me

foi

o m

eu a

conchego

. N

om

e co

mo

aco

nch

ego

2

Saí

de

casa

. N

ão f

ui

exp

uls

a, m

as q

uas

e. É

que

a si

tuaç

ão e

m c

asa t

ava i

nsu

stentá

vel

. Q

uem

me d

eu f

orç

a fo

i m

eu

pai

. E

le m

e ac

eita

inco

nd

icio

nal

mente

. E

le q

ue

pag

a a

pen

são

que

mo

ro.

Um

a p

esso

a fo

rmid

ável

. O

mai

or

pro

ble

ma

foi

min

ha

mãe

. M

inha

mãe

tev

e m

edo

que

eu m

e to

rnass

e u

m s

aco

de

pan

cad

a d

a so

cied

ade.

Mas

eu q

uis

mo

stra

r p

ra

ela

que

se p

od

e viv

er c

om

o e

u q

uer

ia,

que

não

era

um

per

ver

são

ou a

lgo

par

ecid

o.

Sit

uaç

ão f

am

ilia

r 2

Saí

de

casa

e e

sto

u m

ora

nd

o h

á 2

ano

s em

um

pen

sio

nat

o.

É u

m l

ugar

bem

sim

ple

s, m

as f

oi

ali

que

a L

eila

nasc

eu,

com

min

has

roup

as,

saia

s, m

aq

uia

gens,

sap

ato

s...

Um

a b

on

eca

que

colo

cava n

a c

am

a. E

ntã

o,

foi

o m

eu n

asci

mento

.

Tan

to q

ue

eu n

em

lem

bro

do

Leo

nel

. F

oi

um

pro

cess

o d

e m

ud

ança

co

m m

uit

o c

ust

o,

muit

as d

ore

s...

O n

asci

mento

de

Lei

la

2

Eu c

heg

uei

um

dia

de

saia

aq

ui

na

Univ

ersi

dad

e. M

inha

turm

a er

a b

em é

tica

. P

or

mai

s q

ue

pen

sass

em

alg

um

a co

isa,

nin

guém

fal

ava

nad

a. E

nes

se d

ia f

oi

o p

rim

eiro

que

eu v

im d

e sa

ia.

Quan

do

eu e

ntr

ei n

a sa

la,

tod

o m

und

o o

lho

u p

ra

mim

, in

clusi

ve

o p

rofe

sso

r. T

od

os

vir

aram

e f

icar

am

olh

and

o p

ara

mim

. E

ntr

ei e

sente

i. E

sse

pro

fess

or

nunca

faz

ia

cham

ada,

mas

nes

se d

ia e

le f

ez;

a p

rim

eir

a vez

no

sem

est

re.

Acho

que

foi

no

in

tuit

o d

e m

e ex

po

r. M

as e

xp

or

a q

uê?

Quand

o e

le c

ham

ou m

eu n

om

e eu

fiz

est

end

er a

mão

. E

ele

dis

se;

“Leo

nel

, né?

Bel

a sa

ia”.

Deb

och

e d

o p

rofe

sso

r 3

Outr

a si

tuaç

ão f

oi

quan

do

eu f

ui

esco

rraç

ada

do

ban

hei

ro f

em

inin

o.

Eu

entr

ei n

o b

anheir

o e

um

a m

enin

a co

meç

ou a

gri

tar

diz

end

o q

ue

tin

ha

um

ho

mem

no

ban

hei

ro f

em

inin

o.

A s

egura

nça

vei

o,

me

tiro

u p

elo

bra

ço,

com

eço

u a

ench

er

de

gen

te.

Eu f

iquei

to

da

meli

nd

rad

a, m

e se

nti

mal

, ta

va

send

o e

xp

ost

a. F

izer

am

ques

tão

de

me

par

ar,

cham

aram

a

via

tura

, co

mo

se

ti

vess

e o

corr

ido

u

m ass

ass

inat

o.

Os

segura

nça

s,

tod

os

ho

men

s m

ais

vel

ho

s,

me

trat

avam

no

mas

culi

no

, d

izia

m p

ara

eu m

e d

á o

res

pei

to...

Ten

tei

faze

r um

a d

enú

nci

a na

ou

vid

ori

a d

a ufp

a, m

as

dis

sera

m q

ue

ia

dem

ora

r m

uit

o e

eu a

cab

ei d

eixan

do

pas

sar.

Fal

ei c

om

o p

esso

al d

o O

rquíd

eas,

mas

eles

tem

med

o d

e ir

pro

em

bat

e.

É m

ais

um

gru

po

de

dis

cuss

ão d

o q

ue

de

mo

vim

ento

. E

ntã

o,

eu m

e s

enti

des

am

par

ada.

me

rest

ou

o a

conch

ego

no

s

O c

aso

do

ban

hei

ro

3

Page 170: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … Lucia... · Interlúdio 2: Jenifer, Brenda e suas diferenciações identitárias 43 2.1 “Precisamos verdadeiramente de um verdadeiro

16

9

o

mb

ros

do

s m

eus

am

igo

s. F

iquei

co

m v

ergo

nha

de

pas

sar

pel

o b

loco

, as

pes

soas

fic

arem

me

olh

and

o,

taxan

do

-me

de

algu

ma

cois

a.

Em

cas

a ta

mb

ém

. A

vis

ei p

ra m

inha

mãe

que

assi

m q

ue

saís

se d

e ca

sa,

eu i

a an

dar

do

jei

to q

ue

eu q

uis

ess

e, q

ue

a v

ida

era

min

ha.

Mas

ho

je e

u j

á fa

lo c

om

a m

inha

mãe

. E

la j

á m

e vê,

mes

mo

não

ace

itand

o.

Ela

me

engo

le.

Mas

ain

da

pre

fere

que

eu f

ique

per

to d

ela.

Tal

vez

o m

aio

r m

edo

del

a é

que

eu s

ofr

a ag

ress

ão p

or

ser

assi

m.

Ela

não

sai

da

fren

te

da

TV

e a

dora

ess

es p

rogra

mas

sen

saci

onal

ista

s q

ue

pas

sam

tud

o i

sso

e t

em

med

o d

e q

ue

a p

róxim

a vít

ima

seja

eu.

Atu

al r

elaç

ão c

om

a m

ãe

2

Na

av.

Pre

sid

ente

Var

gas

, and

ava

de

dia

pel

a ca

lçad

a, q

uan

do

vár

ios

rap

azes

, q

ue

esta

vam

de

carr

o,

me

jogar

am

um

saco

de

uri

na,

até

esp

irro

u e

ntr

e as

pes

soas

que

est

avam

ao

meu

red

or.

Os

rap

azes

me

xin

gar

am

. T

ive

que

entr

ar e

m

um

banhei

ro d

e u

ma

loja

par

a m

e li

mp

ar.

Vio

lênci

a na

rua

2

As

pes

soas

m

e o

lhar

em

, eu

at

é en

tend

o.

Eu

pre

ciso

re

sig

nif

icar

es

sas

cois

as

pra

não

en

louq

uec

er.

Eu

ten

ho

consc

iênci

a q

ue

eu n

unca

vo

u p

assa

r d

esp

erce

bid

a, q

ue

mu

itas

pes

soas

vão

me

olh

ar d

e cab

o a

rab

o.

Mas

eu a

ind

a

não

co

nsi

go

to

lera

r a

vio

lênci

a d

irig

ida

a m

im.

Med

o d

e en

louq

uec

er

2

Pas

sar

po

r u

m p

roce

sso

sel

etiv

o e

m u

ma

em

pre

sa,

seja

par

a em

pre

go

ou p

ara

está

gio

em

psi

colo

gia

, se

mp

re é

a

mes

ma

cois

a: o

seu p

erfi

l n

ão é

ad

equad

o à

em

pre

sa.

Ger

alm

ente

é u

m p

reco

nce

ito

vel

ado

. A

pen

as e

m u

ma

em

pre

sa

me

dis

sera

m q

ue

o m

eio

mo

do

de

ser

iria

cau

sar

const

rangim

ento

ao

s o

utr

os

funci

onár

ios.

Eu s

ou u

m m

onst

ro.

i

mai

s o

pre

conce

ito

vel

ado

.

Dif

iculd

ade

em

co

nse

guir

está

gio

3

Atu

alm

ente

não

est

ou t

rab

alh

and

o.

O m

eu p

ai q

ue

me

um

a m

esa

da

e el

e é

que

ta m

e su

sten

tand

o.

Ten

ho

muit

a

dif

icu

ldad

e. E

u f

ui

a ú

nic

a p

ess

oa

na

min

ha

turm

a d

e p

sico

logia

do

tra

bal

ho

que

não

est

agio

u.

Ela

aca

bo

u t

end

o q

ue

me

pas

sar

um

tra

bal

ho

que

eu n

ão f

iz e

stág

io.

A s

ecre

tári

a d

a cl

ínic

a ch

ego

u c

om

igo

e d

isse

que

eu n

ão p

od

eria

ir

de

saia

curt

a, d

eco

te e

tc.

Mas

ela

não

cheg

ou

com

as

outr

as e

stag

iári

as e

dis

se i

sso

. S

ó c

om

igo

. S

ó p

elo

fat

o d

e eu

ser

tra

ns

ela

já p

arte

do

pre

ssup

ost

o q

ue

eu v

ou

dep

ravad

a.

Pre

conce

ito

3

Mas

eu f

ui

a ún

ica

pes

soa

da

turm

a q

ue

conse

guiu

man

ter

o m

esm

o c

liente

até

o f

inal

do

est

ágio

.

Fo

i u

m a

do

lesc

ente

de

17

ano

s e

que

tin

ha

pai

s ver

dad

eira

men

te h

om

ofó

bic

os.

A p

esso

a te

m u

m c

ho

que

no

pri

mei

ro

mo

mento

. L

ogo

no

iníc

io,

mesm

o e

u t

end

o m

e ap

rese

nta

do

co

mo

Lei

la,

ele

me

cham

ava

de

“ele

”. M

as c

om

o p

assa

r

do

tem

po

me

cham

ava

de “

ela”

. N

o 5

º o

u 6

º en

contr

o j

á es

távam

os

tod

os

fam

ilia

riza

do

s. E

le e

os

pai

s já

me

resp

eita

vam

mu

ito

.

Cli

ente

na

clít

ica

de

psi

colo

gia

3

No

mo

mento

est

ou c

om

min

has

ati

vid

ades

na m

ilit

ânci

a, c

uid

and

o d

a m

inha m

ãe q

ue

ta d

oen

te.

Pas

so a

mai

or

par

te

do

tem

po

na

casa

del

a: p

asso

, la

vo

, só

não

co

zinho

porq

ue

eu s

ou p

éssi

ma

na

cozi

nha.

Alé

m d

isso

, es

tou f

azend

o o

TC

C s

ob

re a

s tr

aves

tis

e fa

ço p

arte

da

com

issã

o d

e d

irei

tos

hu

mano

s d

o C

RP

.

Ati

vid

ades

atu

ais

2

Lo

go

no

iníc

io,

Leil

a ai

nd

a so

ava

estr

anho

par

a as

pes

soas

da m

inha

turm

a. E

les

me

co

nhec

eram

co

mo

Leo

nel

e

mud

ar a

ssim

dei

xo

u a

lgu

mas

pes

soas

mei

o p

erd

idas

. U

ma

só n

a sa

la m

e cham

ava

de

Leil

a.

Dif

ícil

ace

itaç

ão d

o n

om

e

Lei

la

2

Mas

quan

do

fu

i fa

zer

lice

nci

atu

ra,

aí a

s co

isas

co

mp

lica

ram

. E

m a

lgu

mas

dis

cip

linas

, as

turm

as

eram

fo

rmad

as c

om

vár

ias

lice

ncia

tura

s. U

ma

des

sas,

eu p

eguei

um

a t

urm

a s

ó c

om

ho

mens

da

físi

ca,

da m

ate

mát

ica.

.. E

u j

á p

rocu

rava

sab

er q

uem

era

o p

rofe

sso

r an

tes.

Mas

a m

aio

ria

das

vez

es n

ão c

onse

guia

. E

ntã

o,

levanta

va

na

frente

de

tod

o m

und

o

e ia

fala

r co

m e

le s

ob

re m

inha c

ond

ição

e q

ue

meu n

om

e s

oci

al é

ess

e. N

a cham

ada

eu q

uer

ia q

ue

vo

cê m

e c

ham

asse

po

r es

se n

om

e. C

laro

que

se f

or

par

a as

sinar

, eu

vo

u a

ssin

ar c

om

o n

om

e ci

vil

. T

eve

um

pro

fess

or

que

po

r d

uas

vez

es

Neg

oci

ação

do

no

me

soci

al e

m s

ala

de

aula

3

Page 171: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … Lucia... · Interlúdio 2: Jenifer, Brenda e suas diferenciações identitárias 43 2.1 “Precisamos verdadeiramente de um verdadeiro

17

0

se

engano

u e

cham

ou p

elo

no

me

civil

. U

ma

vez

eu m

e r

ecu

sei

a re

spo

nd

er e

não

o f

iz.

Co

m a

lgu

ns

pro

fess

ore

s d

ava

cert

o,

outr

os

não

.

É s

em

pre

um

pro

cess

o d

e neg

oci

ação

em

to

do

s o

s lu

gar

es q

ue

eu v

ou:

no

sis

tem

a d

e sa

úd

e, ó

rgão

s p

úb

lico

s...

É

chat

o,

é, m

as e

u m

esm

o q

ue

tenho

que

faze

r es

sa n

ego

ciaç

ão.

Neg

oci

ação

do

no

me

soci

al

3

Co

mo

ser

ia a

Lei

la n

o e

nsi

no

méd

io?

Lei

la n

o e

nsi

no

fund

am

enta

l at

é p

od

eria

ser

, m

as n

ão s

ei s

e ch

egar

ia a

o e

nsi

no

méd

io.

Po

rque

a p

róp

ria

educa

ção

é

rep

rod

uto

ra d

a het

ero

no

rmat

ivid

ade.

A L

eila

sofr

eria

na

cham

ada,

po

rque

não

tin

ha

a P

ort

aria

da

SE

DU

C.

Mes

mo

com

a p

ort

aria

, ai

nd

a si

m t

em

gen

te q

ue

pas

sa p

or

cim

a.

Lei

la n

o e

nsi

no

méd

io?

3

No

fu

nd

am

enta

l eu j

á não

ia

ser

resp

eita

da,

ia

sofr

er b

ull

yin

g,

não

sab

eria

se

entr

ava

no

ban

hei

ro m

asc

uli

no

ou

fem

inin

o.

A e

sco

la n

ão d

iscu

te e

as

tran

s fi

cam

a b

el p

raze

r d

as c

hac

ota

s d

os

outr

os.

Nós

tran

s, t

ransg

red

imo

s es

se

sist

em

a. A

id

éia

é não

dis

cuti

r es

sa q

ues

tão

, é

abaf

ar m

esm

o.

Esc

ola

co

mo

rep

rod

uto

ra

da

het

oro

no

rmat

ivid

ade

3

O n

om

e so

cial

é p

ara

incl

uir

as

pes

soas

tra

ns,

mas

quand

o e

la é

exig

ida.

Não

ad

ianta

ter

um

a le

i, u

ma p

ort

aria

se

de

fato

ela

não

é e

feti

vad

a. Q

uanto

s tr

aves

tis

e tr

anse

xuai

s es

tão

ten

do

seu

s no

mes

soci

ais

resp

eita

do

s nas

esc

ola

s?

Não

cu

mp

rim

ento

da

Po

rtar

ia

3

Ho

je e

u e

sto

u n

a u

niv

ersi

dad

e p

orq

ue

me

assu

mi

trans

aqui,

mas

se

eu t

ives

se f

eit

o i

sso

na

ado

lesc

ênci

a, s

e eu t

ives

se

viv

a a

go

ra,

eu e

star

ia n

a p

rost

ituiç

ão.

É o

mer

cad

o q

ue

mai

s ab

sorv

e. V

ocê

aca

ba

ind

o p

ara

o l

ugar

que

te a

ceit

a. S

e a

casa

te

reje

ita,

a e

sco

la t

amb

ém

, en

tão

vo

cê v

ai p

ara

ond

e é

aco

lhid

a: a

no

ite.

É s

e m

argin

aliz

and

o,

e às

vez

es

pag

and

o c

om

a p

róp

ria

vid

a.

Se

foss

e tr

ans

na

ado

lesc

ênci

a, j

á p

od

eria

esta

r na

pro

stit

uiç

ão

3

Eu n

ão c

onheç

o n

enh

um

a tr

aves

ti o

u t

ranse

xual

que

este

ja n

a es

cola

. Q

uan

do

vo

u f

azer

o t

rab

alho

de

pre

ven

ção

co

m

as q

ue

estã

o n

a p

rost

ituiç

ão,

eu p

ergu

nta

va

se e

stav

am

na

esc

ola

e p

ouq

uís

sim

as

diz

iam

que

sim

. A

s q

ue

est

ud

avam

,

diz

iam

que

iam

bem

dis

cret

as,

porq

ue

tinham

med

o d

e so

frer

rep

resá

lias

. M

as a

quel

as q

ue

já i

nte

rfer

iram

no

co

rpo

,

tem

mai

s d

ific

uld

ade

na

esco

la.

Aca

bam

ab

and

onand

o m

esm

o.

Dif

iculd

ade

de

esco

la p

ara

outr

as t

ran

s 3

A c

urt

o p

razo

, eu

quer

o m

e fo

rmar

em

psi

colo

gia

, p

assa

r em

um

co

ncurs

o p

úb

lico

e p

oder

atu

ar f

azen

do

pro

jeto

s no

cam

po

LG

BT

, d

entr

o d

a p

sico

logia

so

cial

, co

mu

nit

ária

, p

ara

atu

ar c

om

ess

e p

úb

lico

LG

BT

, m

ais

esp

ecif

icam

ente

com

as

trav

est

is e

tra

nse

xuai

s. A

go

ra q

uer

o m

e est

abil

izar

eco

no

mic

am

ente

, cu

idar

da

min

ha

mãe

...

Pla

no

s p

ara

o f

utu

ro

4

Page 172: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … Lucia... · Interlúdio 2: Jenifer, Brenda e suas diferenciações identitárias 43 2.1 “Precisamos verdadeiramente de um verdadeiro

17

1

V

ale

sca

T

em

a

Ca

pít

ulo

Eu s

ou u

ma

mulh

er t

ranse

xual

. A

par

tir

do

mo

mento

que

tiv

e co

nta

to c

om

a a

sso

ciaç

ão L

GB

T, co

m o

s es

tud

os

sob

re

iden

tid

ade

de

gên

ero

e o

s se

gm

ento

s q

ue

exis

tem

, eu

pas

sei

a m

e d

esco

bri

r d

entr

o d

a tr

anse

xual

idad

e. A

tran

sexual

idad

e é

de

den

tro

pra

fo

ra e

não

de

fora

par

a d

entr

o.

Tra

nse

xual

idad

e co

mo

algo

inte

rio

r 4

Co

nver

sand

o c

om

am

igas

tra

ves

tis,

eu a

cab

o n

ão m

e re

con

hec

end

o n

aquel

e p

erfi

l, p

elo

fat

o d

e co

mo

se

rela

cio

na

sex

ual

men

te:

se p

rost

itu

i e

ain

da

uti

liza

o g

enit

al m

asculi

no

. Is

so é

clá

ssic

o d

as t

ravest

i. A

té p

orq

ue

elas

so

bre

viv

em

dis

so.

Dif

eren

ça d

as t

raves

tis

2

Alé

m d

isso

, eu

sem

pre

me

env

olv

i co

m h

éte

ros.

Nu

nca

go

stei

de

gay.

É q

ue

a tr

anse

x é

aq

uel

a q

ue

tem

psi

coló

gic

o

10

0%

fem

inin

o.

En

tão

, não

tem

co

mo

go

star

de

gay.

É d

e h

om

em

mes

mo

. H

eter

ono

rmat

ivid

ade

4

Entr

e 1

0 e

11 a

no

s, e

u p

asse

i p

or

um

a p

ertu

rbaç

ão m

uit

o g

rand

e. T

ente

i se

r m

enin

o,

tente

i ar

ranja

r nam

ora

da,

mas

fo

i

inú

til.

ten

ho

rec

ord

açõ

es p

éssi

mas

da

min

ha

infâ

nci

a.

Ten

tou s

er m

enin

o

4

Pre

conce

ito

na

esco

la,

em c

asa

, na

soci

edad

e, f

ez c

om

que

eu m

e encu

bass

e, m

e esc

ond

esse

mes

mo

. M

as s

em

pre

me

achei

dif

erente

s d

os

outr

os

menin

os.

Não

tin

ha

o c

orp

o p

arec

ido

co

m o

del

es.

Já e

ra b

em a

fem

inad

a. E

ntã

o,

sem

pre

me

vo

ltei

muit

o p

ara

os

estu

do

s.

Pre

conce

ito

3

Aca

bei

vend

o q

ue

eu e

stav

a er

rad

o. T

ava

tenta

nd

o s

er q

uem

eu n

ão e

ra.

Ten

tava

nam

ora

r, a

pre

senta

r a

menin

a p

ra

fam

ília

. N

ão t

inha

sexo

, at

é p

orq

ue

foi

entr

e 1

0 e

13

ano

s. M

as a

os

14

ano

s, e

u d

esco

bri

que

não

tav

a se

nd

o f

eliz

. E

u

po

dia

ta

com

a m

inha

nam

ora

da,

mas

se p

assa

sse

um

menin

o b

onit

o e

u o

lhav

a e

me

atra

ia s

exual

men

te.

Ten

tand

o “

ser

ho

mem

2

A c

on

viv

ênci

a co

m o

utr

os

gays,

tra

ves

tis,

eu p

erce

bi

que

po

sso

ser

fel

iz m

esm

o m

e tr

aves

tind

o.

Eu a

cho

que

eu m

e

encu

bei

po

r m

uit

o t

em

po

. S

em

pre

go

stei

de

bri

nca

r d

e b

onec

a, n

a ép

oca

da

esco

la, q

uan

do

o p

rofe

sso

r d

ivid

ia a

quad

ra,

eu s

em

pre

ia

pro

lad

o d

as m

en

inas

. N

unca

bri

nca

va

com

os

car

rinho

s q

ue

a m

inha

mãe

co

mp

rava,

sem

pre

peg

ava

as

bo

nec

as d

a m

inha

irm

ã.

Iníc

io d

a tr

ansf

orm

ação

2

Par

a m

e tr

ansf

orm

ar,

eu p

reci

sei

ob

serv

ar e

ap

rend

er a

par

tir

da

exp

eriê

nci

a d

o o

utr

o.

Eu p

asse

i p

or

cim

a d

e tu

do

, at

é d

a

ques

tão

da

reli

giã

o,

que

na

min

ha

fam

ília

é m

uit

o f

ort

e. T

udo

iss

o p

orq

ue

eu n

ão t

ava

send

o f

eliz

. E

u c

om

ecei

a m

e

trav

esti

co

m 1

5 a

no

s e

me

senti

bem

. N

ão c

on

seg

ui

mai

s p

arar

. F

ui

me

des

cob

rind

o a

os

po

uco

s at

é m

e co

nsi

der

ar h

oje

tran

sexual

.

Ass

um

ir-s

e tr

anse

xual

4

O a

po

io d

a m

inha

fam

ília

fo

i fu

nd

am

enta

l. E

u e

min

ha

irm

ã co

meç

am

os

a no

s tr

avest

i ju

nta

s. M

inha

mãe

sem

pre

soub

e, m

as a

chav

a q

ue

ia p

assa

r. M

as c

om

o t

em

po

ela

fo

i v

end

o q

ue

não

tav

a p

assa

nd

o,

ao c

ontr

ário

, ta

va

“pio

rand

o”,

tava

se t

ravest

ind

o,

o t

emp

o t

od

o d

e fe

min

ino

. N

ão t

eve

aquele

pap

o d

e sa

ir d

o a

rmár

io.

Ho

je e

la m

e ch

am

a d

e V

ales

ca

e ch

am

a a

min

ha

irm

ã d

e Jé

ssic

a, n

orm

al.

E n

ão f

oi

fácil

pra

min

ha

mãe

. E

la t

eve

6 f

ilho

s: 3

menin

os

e 3

menin

as.

Mas

ago

ra t

em

5 m

enin

as e

um

men

ino

. E

u e

min

ha

irm

ã co

meç

am

os

o p

roce

sso

de

tran

sex

ual

izaç

ão j

unta

s.

Ap

oio

fam

ilia

r 4

A m

inha

mãe

sem

pre

me

deu

ap

oio

po

rque

eu s

em

pre

est

ud

ei.

Ho

je e

u s

ou u

niv

ersi

tári

a, s

ou t

écnic

a em

ed

ific

açõ

es,

to

faze

nd

o c

urs

o s

up

erio

r em

bio

logia

, q

uím

ica

e fí

sica

. T

enho

vár

ios

curs

os.

Tra

nq

uei

um

a g

rad

uaç

ão e

m e

ngen

har

ia

po

rque

não

era

o q

ue

eu q

uer

ia.

Entã

o,

eu j

á ti

nha

um

his

tóri

co p

ara

min

ha

fam

ília

.

Ho

je o

meu p

ai t

em

org

ulh

o d

e m

im.

Ele

era

sup

er h

om

ofó

bic

o.

Aq

uel

e q

ue

fala

va

que

pre

fere

ter

um

fil

ho

mo

rto

do

que

gay.

E h

oje

, q

uan

do

a g

ente

vai

pra

Min

as,

ele

contr

ata

até

ban

quet

e p

ra g

ente

. D

os

meu

s 3

5 i

rmão

s, s

om

os

as

únic

as

que

tem

os

curs

o s

up

erio

r. D

e to

do

s o

s fi

lho

s, e

le t

em

mai

s o

rgulh

o d

a gen

te.

Pel

as p

esso

as q

ue

a gente

co

nviv

e,

mes

tres,

do

uto

res.

.. E

stam

os

sem

pre

par

tici

pad

o d

e ev

ento

s, c

ongre

sso

s, c

onfe

rênci

as,

con

selh

o d

e sa

úd

e. J

á em

Turu

cuí

a gente

tem

um

res

pei

to m

uit

o g

rand

e. F

aço

par

te d

o c

onse

lho

est

ud

anti

l, d

o c

onse

lho

de

saúd

e, f

aço

par

te d

a

Car

reir

a ac

adêm

ica

4

Page 173: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … Lucia... · Interlúdio 2: Jenifer, Brenda e suas diferenciações identitárias 43 2.1 “Precisamos verdadeiramente de um verdadeiro

17

2

SE

DU

C,

po

rque

ago

ra e

u s

ou e

duca

do

ra..

.

E n

a m

inh

a fa

míl

ia s

em

pre

é m

uit

o a

mo

r, m

uit

o c

arin

ho

. A

fam

ília

é a

bas

e d

e tu

do

. A

s veze

s eu

era

ap

onta

da

na

esco

la,

cheg

ava

em

casa

cho

rand

o,

mas

a m

inha

mãe

tav

a al

i p

ra m

e ab

raça

r. S

em

pre

tin

ha

um

a p

alavra

am

iga.

Eu

quer

o s

er d

outo

ra e

m n

euro

ciênci

a p

ara

um

dia

cheg

ar c

om

a m

inha

mãe

e d

izer

par

a m

inh

a q

ue

ela

não

pre

cisa

mai

s

trab

alhar

. E

la j

á lu

tou m

uit

o p

ra n

os

sust

enta

r.

Ap

oio

fam

ilia

r 4

No

ensi

no

fund

am

enta

l eu

so

fri

muit

o,

cho

rei

mu

ito

. E

ra m

uit

o a

po

nta

do

, m

esm

o s

em

vest

ir r

oup

as f

em

inin

as.

Eu e

ra

afem

inad

o e

sem

pre

tava

com

as

menin

as.

Alé

m d

isso

, er

a g

ord

inho

. E

u s

ofr

i m

uit

o m

esm

o.

S

ofr

imento

na

esc

ola

3

Na

séri

e, q

ue

eu m

e en

cub

ei

mes

mo

pra

so

cied

ade,

até

nam

ora

da

eu t

ive,

mes

mo

ass

im e

u s

ofr

i m

uit

o.

Eu s

ofr

i

dem

ais

, ch

egava

em

casa

tra

nst

orn

ado

. M

as e

u a

cab

ava

me

entr

eten

do

co

m b

rinca

dei

ras

em

cas

a e

esq

uec

ia.

Mas

no

outr

o d

ia e

u f

icav

a co

m t

rau

ma

de

ir p

ara

esco

la,

sab

ia q

ue

ia s

er a

mesm

a co

isa.

Ten

tand

o s

er h

eter

oss

exual

3

a p

arti

r do

ensi

no

méd

io é

que

fui

enco

ntr

ar p

rofe

sso

res

que

conhec

iam

alg

um

a co

isa

e p

od

iam

me

ajud

ar.

Peq

uen

as

exce

ções

. A

mai

ori

a m

ulh

eres

. M

e d

avam

ap

oio

de

conver

sar,

de

me

trat

ar c

om

o u

ma

pes

soa

no

rmal,

po

is m

uit

os

não

me

consi

der

ava

no

rmal.

Entã

o,

essa

s p

rofe

sso

ras,

ain

da

que

po

uca

s, f

ora

m m

uit

o i

mp

ort

ante

pra

mim

. O

ed

uca

do

r fa

z

mu

ito

dif

eren

ça n

a vid

a d

o a

luno

.

Ap

oio

de

algu

mas

pro

fess

ora

s no

en

sino

méd

io

4

Eu n

unca

tiv

e m

uit

a d

ific

uld

ad

e em

me

rela

cio

nar

co

m a

s p

esso

as.

É m

uit

o c

om

o o

gay,

o t

ranse

xual

, se

po

rta.

Na

esco

la,

o u

nif

orm

e er

a só

a c

amis

a e

a p

arte

de

bai

xo

era

liv

re.

Mas

eu n

ão i

a d

e sh

ort

. E

u n

ão m

e se

nti

a b

em

, já

que

ali

eu t

ava

ind

o e

stud

ar.

Ia s

em

pre

de

calç

a. E

u s

em

pre

tiv

e p

ud

or.

Nunca

fui

de

and

ar n

ua

po

r aí

. S

e vo

u p

ra p

raia

, tu

do

bem

. M

as

tem

lo

cal

e ho

ra p

ra t

ud

o.

Nunca

tiv

e d

ific

uld

ade

nis

so.

Rec

ato

co

mo

est

raté

gia

par

a se

rel

acio

nar

co

m a

s

pes

soas

4

Tin

ha

chac

ota

de

aluno

, m

as e

u n

unca

lig

uei

. P

ra m

im i

sso

é d

e m

eno

s.

Chac

ota

do

s co

legas

3

Tev

e u

ma

vez

que

um

pro

fess

or.

Ele

tav

a co

m a

lis

ta d

e ch

am

ada

e ch

am

ou m

eu n

om

e d

e re

gis

tro

. A

s p

esso

as n

a tu

rma

dis

sera

m q

ue

eu g

ost

ava

de

ser

cham

ada

po

r V

ales

ca.

Ele

dis

se q

ue

eu n

ão e

ra m

enin

a. A

s co

legas

me

defe

nd

end

o,

diz

end

o q

ue

eu m

e vis

to d

e m

enin

a e

go

stava

de

ser

Val

esca

. E

eu c

alad

a, n

o c

anto

. E

le d

isse

: “o

pro

ble

ma

é d

ele

se

go

sta

de

se v

est

ir q

ue

nem

um

a p

alhaç

a”.

Eu n

ão f

alei

nad

a.

E a

go

ra,

eu j

á fu

i co

ord

enad

ora

del

e no

“P

roje

to e

sco

la d

e po

rtas

ab

erta

s”.

Se

é p

ra d

ar o

tro

co,

não

é b

aten

do

a b

oca

ou

dis

cuti

nd

o.

É d

essa

fo

rma,

mo

stra

r q

ue

s ta

mb

ém

so

mo

s cap

azes

. Q

ue

a p

alhaç

a, q

ue

o v

iad

inho

, ta

mb

ém

po

de

cheg

ar l

á.

Pro

fess

or

insi

stin

do

em

cham

á-l

a p

elo

no

me

de

regis

tro

3

Ho

je e

u f

aço

bio

logia

, co

m h

ab

ilid

ade

em q

uím

ica

e fí

sica

, n

o I

nst

itu

to F

eder

al n

o c

am

pu

s T

ucu

ruí.

Pas

sei

em

5

ves

tib

ula

res

de

um

a só

vez

. V

ou m

e fo

rmar

daq

ui

a 2

ano

s, t

o e

stag

iand

o,

quer

o s

er d

outo

ra e

m n

euro

ciên

cia.

Ain

da

trab

alho

co

mo

sec

retá

ria

em

um

esc

ritó

rio

de

contá

bei

s, f

aço

est

ágio

vo

luntá

rio

, d

and

o a

ula

par

a a

a 8

ª sé

rie.

E

sou b

ols

ista

de

inic

iaçã

o c

ientí

fica

.

Ah,

e no

s fi

nai

s d

e se

man

a ai

nd

a tr

abal

ho

em

um

sal

ão c

om

o d

esig

n d

e so

bra

nce

lha,

par

tici

po

de

um

gru

po

de

teat

ro,

e

sou b

ackin

g v

oca

l d

e u

m a

band

a re

gio

nal

e a

tivis

ta d

o m

ov

imento

LG

BT

. U

fa!

Ati

vid

ades

co

tid

ianas

3

So

u c

ham

ada

pel

o n

om

e so

cial

em

to

do

s o

s d

ocu

men

tos

do

Inst

ituto

. Is

so g

raça

s a

entr

ado

do

mo

vim

ento

na

inst

itu

ição

. E

u u

so o

ban

heir

o f

em

inin

o.

A e

sco

la p

asso

u p

or

um

ple

bis

cito

co

m o

s al

uno

s p

ara

sab

er q

ual

ban

hei

ro a

s

tran

sexuai

s ia

m u

sar.

Ou s

eja,

eu e

a m

inha

irm

ã, a

s únic

as

do

Inst

itu

to.

Quer

iam

que

o p

leb

isci

to f

oss

e fe

ito

co

m o

s

pai

s, m

as c

on

seg

uim

os

que

foss

e co

m o

s al

uno

s. E

fo

i u

nân

ime

a gente

usa

r o

fem

inin

o.

Os

menin

os

fica

vam

const

ran

gid

os

de

a gen

te v

er e

les

mij

and

o l

á.

Res

pei

to a

o n

om

e so

cial

e

uso

do

ban

hei

ro f

em

inin

o

na

IES

3

Eu t

enho

um

est

ágio

vo

lun

tári

o p

ra d

ar a

ula

par

a um

pro

jeto

so

cial

e t

enho

bo

lsa

de

inic

iação

cie

ntí

fica

. S

em

pre

uso

o

Uso

do

no

me

soci

al

3

Page 174: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … Lucia... · Interlúdio 2: Jenifer, Brenda e suas diferenciações identitárias 43 2.1 “Precisamos verdadeiramente de um verdadeiro

17

3

no

me

soci

al.

não

na

ho

ra d

e cr

iar

conta

ban

cári

a, e

ssas

co

isas

.

Eu n

ão s

into

pre

conce

ito

no

In

stit

uto

. N

inguém

fic

a m

e o

lhand

o.

Quan

do

tem

fes

ta,

eu l

evo

o m

eu n

am

ora

do

, an

do

de

mão

dad

a e

nin

guém

me

olh

a. E

u m

e si

nto

um

a p

esso

a no

rmal

. N

ão q

ue

eu n

ão s

eja,

mas

é q

ue

ante

s, e

u e

ntr

ava

na

sala

de

aula

ou n

o ô

nib

us,

to

do

mu

nd

o o

lhav

a, s

e es

panta

va.

Não

sen

te p

reco

nce

ito

na

IES

3

Tem

muit

as

tran

sex

uai

s e

trav

esti

s em

Tucu

ruí,

mas

pra

tica

men

te t

od

as e

stão

na

pro

stit

uiç

ão.

s (e

la e

a i

rmã)

so

mo

s

as ú

nic

as q

ue

est

ud

am

. É

po

rque

a es

cola

exp

uls

a m

esm

o.

Na

séri

e el

as j

á d

esis

tem

, se

a f

am

ília

não

tem

conhec

imento

, não

ap

óia

, ac

aba

exp

uls

and

o d

e ca

sa.

E a

í el

as v

ão p

ra r

ua,

se

pro

stit

uem

. E

las

são

em

purr

adas

pra

iss

o

mes

mo

. E

aca

ba

ger

and

o v

ário

s p

rob

lem

as s

oci

ais,

de

saúd

e p

úb

lica

. N

ão t

em p

revençã

o a

aid

s, a

dro

gas

. P

orq

ue

se

está

na

pro

stit

uiç

ão,

elas

est

ão s

uje

itas

a t

ud

o.

E c

om

eça

a r

oub

ar,

com

eter

ato

s il

ícit

os.

Evas

ão e

sco

lar

de

pes

soas

tran

s 3

A b

ase

dev

e se

r a

fam

ília

e a

esc

ola

, p

orq

ue

essa

s q

ue

estã

o e

mp

urr

and

o a

s tr

ans

par

a a

rua

e ac

arre

ta t

od

a u

ma

mar

gin

aliz

ação

: d

esd

e H

IV,

aid

s, c

heg

and

o a

o u

so d

e d

rogas

e f

urt

os.

E a

s tr

ans

são

as

mai

s af

etad

as p

ela

ho

mo

fob

ia,

po

rque

são

as

mai

s m

argin

aliz

adas

. E

as

pes

soas

gener

aliz

am

.

Mar

gin

aliz

ação

das

tra

ns

2

Ser

ia m

uit

o i

mp

ort

ante

se

eu t

ives

se s

ido

cham

ada

pel

o n

om

e so

cial

na e

sco

la.

Eu

não

cheg

uei

a t

er d

epre

ssão

, m

as

quas

e.

Se

vo

cê n

ão c

onse

gue s

e exp

ress

ar,

um

a ho

ra v

ai t

e d

ar a

lgu

m t

ran

sto

rno

. M

uit

as

tran

s fi

cam

lo

uca

s. É

mu

ito

sofr

imen

to.

Quem

não

teve

apo

io,

cai

na

dep

ress

ão,

na e

squ

izo

fren

ia,

em

outr

as d

oen

ças.

Po

r ca

usa

, d

esse

pre

conce

ito

,

incl

usi

ve

na

esc

ola

.

Tev

e d

ias

que

eu c

heg

ava

tran

sto

rnad

o.

Se

não

fo

sse

a m

inh

a fa

míl

ia..

. S

e eu

pas

sass

e no

co

rred

or

e um

gru

po

de

men

ino

s fi

zess

e u

ma

chac

ota

, is

so m

e d

oía

. E

ra c

om

o s

e eu f

oss

e u

ma

cois

a. S

em

pre

tin

ha

um

ris

o.

Pre

conce

ito

na

épo

ca d

a

esco

la

3

Eu s

ó i

a no

ban

hei

ro q

uan

do

to

do

mu

nd

o t

ava

em

sal

a d

e au

la.

No

inte

rval

o n

ão i

a. M

e d

eu v

onta

de

de

cho

rar

ago

ra:

Tev

e u

ma

vez

que

eu f

ui

fazer

um

a p

rova

de

sim

ula

do

e q

uas

e eu

me

uri

no

na

calç

a. N

ão d

eixar

am u

sar

o b

anhei

ro

fem

inin

o.

O m

asc

uli

no

tava

send

o u

sad

o,

tin

ham

uns

menin

os

do

to

rnei

o t

om

and

o b

anho

. E

u n

ão i

a ch

egar

no

ban

hei

ro c

hei

o d

e ho

mem

e u

sar

o l

atão

. T

od

a ves

tid

a d

e m

ulh

er e

cheg

ar l

á e

colo

car

o n

egó

cio

pra

fo

ra.

É

tão

const

ran

ged

or

pra

mim

quan

to p

ra e

les.

Entã

o e

u s

egure

i a

uri

na

po

r 6

ho

ras,

até

ter

min

ar a

pro

va

e ir

no

ban

hei

ro d

e

casa

. M

e d

oeu

muit

o e

sse

dia

. S

enti

que

não

tin

ha

nen

hu

m a

mp

aro

da

esco

la.

Não

tev

e nin

guém

nem

pra

diz

er q

ue

eu

po

dia

usa

r o

ban

hei

ro d

os

pro

fess

ore

s. N

ada.

Imp

oss

ibil

idad

e d

e usa

r o

ban

hei

ro f

em

inin

o n

a

épo

ca d

e es

cola

3

Po

r is

so q

ue

é bo

m e

stud

ar,

ente

nd

er s

eus

dir

eito

s, p

orq

ue

vo

cê p

assa

po

r um

a si

tuaç

ão d

ess

a e

se i

mp

õe.

As

que

não

conhec

em

, so

frem

co

mo

eu s

ofr

i.

Ed

uca

ção

co

mo

asc

ensã

o

aos

dir

eito

s hu

mano

s 4

Outr

a vez

na

esco

la e

u f

ui

ao b

anhei

ro f

em

inin

o e

um

a d

elas

dis

se q

ue

era

ban

hei

ro d

e m

enin

a. M

as

eu n

ão f

ui

lá b

ater

bo

ca.

Fui

engo

lind

o.

Ain

da

ho

je e

m a

lgu

ns

lugar

es n

os

imp

ed

e usa

r o

ban

hei

ro f

em

inin

o.

Na

pri

meir

a vez

que

fiz

ves

tib

ula

r d

a U

FP

A n

ão d

eixara

m e

u u

sar

o b

anhei

ro f

em

inin

o.

Eu c

ho

rei,

fal

ei d

os

meu

s d

irei

tos,

da

min

ha

identi

dad

e

de

gên

ero

, p

asse

i o

mai

or

const

rangim

ento

. Q

uand

o e

u v

olt

ei,

não

co

nse

gui

nem

co

mp

reen

der

qual

era

o t

ema

da

red

ação

. F

iquei

muit

o n

ervo

sa.

Ten

ho

cer

teza

que

isso

me

pre

jud

ico

u m

uit

o.

Imp

edim

ento

de

usa

r o

ban

hei

ro f

em

inin

o d

ura

nte

a p

rova

de

ves

tib

ula

r

3

Po

r is

so e

u n

ão d

iscu

to,

po

rque

tud

o m

e d

á vo

nta

de

de

cho

rar.

em

cas

a to

do

mund

o é

muit

o m

eigo

, tu

do

é c

om

mu

ito

am

or.

Se

eu c

heg

o e

m c

asa

e não

peç

o a

ben

ção

e d

igo

“te

am

o”,

aca

bo

u o

dia

. T

odo

ho

ra a

gen

te s

e ab

raç

a e

diz

que

se a

ma.

A f

am

ília

fo

i d

e to

tal

imp

ort

ânci

a na

no

ssa

const

ruçã

o d

e gên

ero

.

Car

inho

fam

ilia

r

Co

mo

a m

inha

fig

ura

é f

em

inin

a na

soci

edad

e, e

u j

á fi

co c

onst

ran

gid

a se

cham

a o

no

me

de

ho

mem

. O

no

me

fem

inin

o é

de

tota

l im

po

rtân

cia.

E o

meu n

om

e d

e ca

sinha

des

de

os

6 a

no

s é

Val

esca

. O

meu s

on

ho

é p

od

er f

azer

a t

roca

de

no

me.

Sei

que

ho

je é

am

par

ado

po

r le

i. T

em q

ue

pro

var

pro

juiz

. E

u t

ente

i, m

as

o s

iste

ma

é d

ifíc

il.

É m

uit

o c

om

pli

cad

o e

eu

Des

ejo

de

mud

ar o

no

me

civil

2

Page 175: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … Lucia... · Interlúdio 2: Jenifer, Brenda e suas diferenciações identitárias 43 2.1 “Precisamos verdadeiramente de um verdadeiro

17

4

não

ten

ho

ess

e te

mp

o d

e fi

car

em

fil

a, e

sper

and

o.

Já e

sto

u f

azen

do

o t

rata

mento

par

a co

nse

gui

a ci

rurg

ia.

Faç

o t

erap

ia h

á 6

mese

s. M

as p

elo

SU

S d

em

ora

muit

o.

Pra

quem

tem

pre

ssa,

não

dá.

Vo

u m

e fo

rmar

, guar

dar

din

heir

o e

faz

er p

arti

cula

r. N

em

que

seja

no

exte

rio

r. E

u p

reci

so

faze

r es

sa c

irurg

ia.

Eu q

uer

o m

uit

o f

azer

. E

u n

unca

use

i o

meu

genit

al m

asculi

no

. E

tem

a p

raia

, né?

É m

eio

const

ran

ged

or.

Pra

mim

, é

de

extr

em

a im

po

rtân

cia

a ci

rurg

ia.

Imp

ort

ânci

a d

a ci

rurg

ia

2

Ten

ho

med

o q

ue

com

a t

roca

de

no

me

eu p

erca

os

meus

cert

ific

ado

s. D

aqui

a d

ois

ano

s eu m

e fo

rmo

e o

meu d

iplo

ma

vai

vim

co

m o

no

me

mas

culi

no

. Q

uan

do

eu m

ud

ar,

será

que

aind

a vai

val

er? E

os

outr

os

cert

ific

ado

s q

ue

tenho

?

Med

o d

e m

ud

ar d

e no

me

2

Eu s

ó u

so o

no

me

masc

uli

no

no

últ

imo

cas

o.

No

s ca

das

tro

s se

mp

re t

em

que

ter

aquel

e no

me.

Co

mo

se

foss

e u

ma

som

bra

que

me

per

seg

ue.

E s

em

pre

ten

ho

que

usa

r es

se n

om

e d

iari

amente

, p

ra t

ud

o.

No

me

civil

co

mo

um

a

som

bra

2

Page 176: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … Lucia... · Interlúdio 2: Jenifer, Brenda e suas diferenciações identitárias 43 2.1 “Precisamos verdadeiramente de um verdadeiro

17

5

R

aic

a

Tem

a

Ca

pít

ulo

s

Co

m 7

ou 8

ano

s, e

u v

i u

m s

ho

w d

e te

levis

ão n

os

Síl

vio

San

tos.

foi

dec

isiv

o n

a m

inha

vid

a. U

m s

ho

w d

e ca

louro

s. A

í

eu t

ive

vo

nta

de

de

ir p

ra S

ão P

aulo

pra

ir

faze

r sh

ow

, d

ança

r, g

anhar

din

hei

ro.

Na

épo

ca,

eu t

inha

um

a am

iga

que

tin

ha

pei

to e

eu p

ergunte

i o

que

ela

tom

ava

pra

pei

to.

Entã

o,

eu p

asse

i a

roub

ar o

anti

conce

pci

onal

das

min

has

irm

ãs e

tom

ava

esc

ond

ido

. E

tin

ha

um

a se

nho

ra q

ue

apli

cava

em

mim

. A

í eu

co

mec

ei a

ganhar

din

hei

ro e

eu j

á b

anca

va.

O

din

hei

ro q

ue

a m

inha

mãe

me

dav

a eu

guar

dav

a e

com

pra

va.

foi

se d

esen

vo

lven

do

meu s

eio

e t

od

o o

pro

cess

o.

Co

meç

o d

a

tran

sfo

rmaç

ão

2

Eu s

em

pre

senti

atr

ação

po

r gar

oto

s. A

té n

as

bri

nca

dei

ras

de

casi

nha,

eu b

rigava

pra

fic

ar c

om

as

bo

nec

as.

Eu q

uer

ia s

er a

mãe

.

Sen

tia-s

e m

enin

a d

esd

e

cria

nça

2

Eu t

enho

10

irm

ãos,

5 m

ulh

eres

e 5

ho

men

s. E

u a

cred

ito

que

a gen

te n

ão v

ira,

não

op

ta,

a gen

te j

á nas

ce c

om

a o

rien

taçã

o

sex

ual

def

inid

a. M

as n

a m

aio

ria

das

vez

es v

ocê

nas

ce n

um

a fa

míl

ia p

reco

nce

ituo

sa,

ho

mo

fób

ica,

rel

igio

sa,

cois

a as

sim

.

Per

spec

tiva

bio

logiz

ante

de

ori

enta

ção

sex

ual

2

com

10

ano

s, e

u c

heg

uei

pra

min

ha

mãe

e d

isse

que

tava

apai

xo

nad

a p

elo

meu p

rofe

sso

r d

e fí

sica

. E

dis

se m

ais:

dis

se

que

quer

ia v

iaja

r p

ra S

ão P

aulo

. F

oi

um

cho

que

pra

ela

. R

elaç

ão f

am

ilia

r

E v

iaje

i co

m u

ns

15

ou 1

6 a

nos,

não

rec

ord

o a

go

ra. M

as c

heg

and

o l

á, e

u d

ei c

om

outr

a re

ali

dad

e. D

esci

na

Mar

gin

al

Pin

hei

ros

de

caro

na.

Via

jei

3 d

ias

e 3

no

ites

de

caro

na.

Eu t

ive

que

bo

tar

sili

cone,

tiv

e q

ue

me

pro

stit

uir

pra

so

bre

viv

er.

E

foi

lá q

ue

eu c

on

traí

o H

IV,

colo

cand

o s

ilic

on

e d

a b

und

a.

Via

gem

par

a S

P

2

Eu s

aí d

a p

rost

ituiç

ão e

não

teve

nin

guém

pra

me

ajud

ar.

Eu

me

met

i co

m d

roga

lá e

m S

ão

Pau

lo.

Fui

pre

sa n

o C

arand

iru.

Pas

sei

um

ano

e s

eis

mes

es

lá.

Eu c

onheç

o,

eu v

ivi

a si

tuaç

ão

da

rua,

ten

ho

seq

uel

as d

a p

rost

ituiç

ão.

Tiv

e u

m a

cid

ente

de

mo

to,

queb

rei

a cl

avíc

ula

, ra

sguei

o p

esco

ço,

esto

uro

u m

eu s

ilic

one,

tir

o..

. T

ud

o n

a ru

a.

Eu t

enho

mu

ito

s so

frim

ento

s.

Tud

o e

m S

ão P

aulo

. A

qui

eu n

unca

so

fri

nad

a.

Vid

a d

ifíc

il n

a

pro

stit

uiç

ão e

m S

P

2

Aí,

o P

auli

nho

faz

ia u

m t

rab

alho

de

pre

ven

ção

e s

em

pre

me

cham

ava

pra

par

tici

par

das

reu

niõ

es d

o m

ovim

ento

. A

í, u

m

dia

eu f

ui

e g

ost

ei p

orq

ue

a g

ente

est

ud

ava

sob

re e

ssas

cois

as.

Fo

i aí,

em

19

97

, q

ue

eu v

olt

ei a

est

ud

ar n

a 3

ª sé

rie.

Pas

sei

po

r vár

ios

colé

gio

s se

nd

o j

á tr

aves

ti.

Mas

an

tes

não

exis

tia e

ssa

po

rtar

ia.

Fo

i a

par

tir

daí

que

eu f

ui

cham

ada

pel

o m

eu

no

me

mes

mo

.

Vo

lto

u a

est

ud

ar

3

Ante

s d

isso

, eu

neg

oci

ava

com

pro

fess

or

po

r p

rofe

sso

r. P

edia

pra

me

cham

ar p

or

Rai

ca.

Alg

uns

não

ace

itav

am

, d

izia

m

que

esta

vam

infr

ingin

do

a l

ei.

E e

u n

ão c

onhec

ia,

né?

Ped

ia q

ue

pel

o m

eno

s m

e ch

am

asse

de

Rai

, já

que

meu n

om

e d

e

regis

tro

é R

aim

und

o.

Sem

pre

neg

oci

ava.

Neg

oci

ação

do

no

me

com

os/

as p

rofe

sso

res/

as

3

Mas

sem

pre

so

fria

muit

o b

ull

yin

g.

Sem

pre

fui

afe

min

ada

des

de

cria

nça

, só

quer

ia s

aber

bri

nca

de e

lást

ico

, q

uan

do

era

fute

bo

l eu

não

ia.

.. E

u s

ofr

ia m

uit

a ch

aco

ta.

P

reco

nce

ito

na

esco

la

3

Me

esp

anca

vam

e e

u e

span

cav

a. E

ra m

inha

auto

def

esa

. P

orq

ue

se e

u f

oss

e p

ra d

iret

ori

a não

dav

a em

nad

a.

Rea

ção

agre

ssiv

a

3

Fo

i no

Deo

do

ro d

e M

end

onça

que

eu t

ive

o p

raze

r d

e se

r ch

am

ada

de

Rai

ca,

que

eu t

ive

o p

raze

r d

e ver

o m

eu n

om

e

Rai

ca M

ota

do

Nas

cim

ento

na

list

a d

e ch

am

ada.

Aq

uil

o f

oi

tud

o.

Um

a exp

eriê

nci

a m

ara

vil

ho

sa.

Tin

ha

pro

fess

or

que

achav

a q

ue

eu e

ra m

ulh

er m

esm

o.

Até

as

outr

as p

esso

as n

ão s

abia

m.

Ser

cham

ada

pel

o n

om

e

soci

al

3

Po

rque

eu s

ei m

e co

mp

ort

ar.

Eu a

cho

ass

im:

bel

eza

é b

om

, m

as a

gen

te t

em

que

sab

er s

e co

mp

ort

ar.

Pra

vo

cê s

er

resp

eita

da,

vo

cê t

em

que

se r

esp

eita

r. A

s p

esso

as a

cab

am

au

tom

atic

am

ente

te

resp

eita

nd

o p

orq

ue

elas

não

têm

mo

tivo

par

a não

te

resp

eita

r. E

u n

ão i

a p

ra e

sco

la c

om

ro

up

a cu

rta,

pro

vo

cante

. C

ada

lugar

tem

um

jei

to p

ra s

e ves

tir,

né?

Rec

ato

co

mo

est

raté

gia

de

rela

cio

nam

ento

4

Não

quer

o s

er m

ulh

er.

As

pes

soas

se

enganam

pensa

nd

o i

sso

. É

chat

o s

er m

ulh

er.

A m

ulh

er m

en

stru

a, s

ente

do

r d

e có

lica

,

pra

ter

nen

ém

. E

u s

ou

tra

vest

i, u

m h

om

em

e u

ma m

ulh

er n

um

co

rpo

. E

u t

en

ho

pra

zer

com

meu

órg

ão s

ex

ual

. N

ão m

e

inco

mo

da

em

nad

a. O

que

é d

e m

ulh

er é

meu e

spír

ito

, q

ue

vei

o n

um

a m

até

ria

masc

uli

na.

Mas

o r

esto

tud

o é

fem

inin

o.

Def

iniç

ão d

e tr

aves

ti

2

Page 177: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … Lucia... · Interlúdio 2: Jenifer, Brenda e suas diferenciações identitárias 43 2.1 “Precisamos verdadeiramente de um verdadeiro

17

6

Não

quer

o s

er m

ulh

er e

nu

nca

vo

u s

er m

ulh

er.

Eu s

ou t

ravest

i. M

as t

em

tra

vest

i q

ue

se d

esco

bre

tra

nse

xual

. A

í já

é o

utr

a

cois

a e

eu n

ão p

oss

o f

alar

po

r el

as.

Eu q

uis

vo

ltar

pra

esc

ola

po

rque

eu t

ava

send

o r

ejei

tad

a p

ela

soci

edad

e. É

pra

ter

op

ort

unid

ade.

Eu a

chei

que

vo

ltand

o p

ra

esco

la,

tend

o e

scla

reci

mento

do

s m

eus

dir

eito

s, e

u i

a q

ueb

rar

esse

est

igm

a, e

ssas

bar

reir

as q

ue

se f

orm

aram

na

min

ha

fren

te.

Entã

o,

eu v

olt

ei a

est

ud

ar.

E e

ssa

po

rtar

ia m

e m

oti

vo

u m

ais

aind

a a

reto

rnar

. Q

uan

do

a p

ort

aria

vei

o,

eu t

inha

par

ado

, p

orq

ue

sem

pre

eu a

do

ecia

e a

í fi

cava

dif

ícil

vo

ltar

e a

cab

ava

per

den

do

o a

no

. A

í te

m q

ue

ter

forç

as p

ara

vo

ltar

no

outr

o a

no

, né?

Po

rtar

ia c

om

o u

m

ince

nti

vo

a v

olt

ar a

estu

dar

4

Quand

o v

eio

ess

a p

ort

aria

, eu

vo

ltei

a e

stud

ar,

mas

na

inte

nção

de

me

po

liti

zar.

Iss

o m

e m

oti

vo

u,

po

rque

eu s

abia

que

não

ia s

er c

ham

ada

de

Rai

mu

nd

o N

onat

o.

Eu n

ão i

a te

r q

ue

neg

oci

ar c

om

pro

fess

or,

co

m d

iret

or,

co

m n

inguém

.

Auto

mati

cam

ente

, no

ato

da

insc

riçã

o,

o m

eu n

om

e já

tav

a lá

. N

a m

inha

esco

la f

oi

resp

eita

da

a p

ort

aria

. E

u n

ão p

oss

o t

e

diz

er d

as o

utr

as,

po

rque

eu n

ão

fis

cali

zei

nas

ou

tras

esc

ola

s. M

as n

o D

eod

oro

de

Men

do

nça

eu s

em

pre

fui

trat

ada

po

r

Rai

ca.

Em

mo

mento

alg

um

eu

fui

des

resp

eita

da,

cham

ad

a d

e “e

le”,

“o

sen

ho

r”.

Sem

pre

fo

i no

fem

inin

o.

A p

ort

aria

sen

do

resp

eita

da

na

sua

esco

la

4

Vai

tud

o d

a p

esso

a. S

e vo

cê t

rata

em

as

pes

soas

, vo

cê t

am

bém

vai

ser

agra

dad

a. O

co

mp

ort

am

ento

aju

da

muit

o.

As

pes

soas

te

resp

eita

m s

e v

ocê

se

resp

eita

r ta

mb

ém

. E

ssa é

um

a e

stra

tégia

que

eu u

so:

sab

er e

ntr

ar,

sab

er f

azer

am

izad

e,

conq

uis

tar

aquel

e m

eio

. A

í d

epo

is e

u f

ico

mais

tra

nq

uil

a.

Bo

m r

elac

ionam

ento

com

os/

as c

ole

gas

4

O q

ue

me

afa

sta

da

esco

la s

ão d

uas

co

isas

: o

pro

ble

ma

de

saúd

e, d

o H

IV,

tenho

to

xo

pla

smo

se;

e es

sas

gre

ve,

que

dep

ois

fica

um

acú

mulo

de

info

rmaç

ões

. T

ud

o i

sso

ta

send

o o

bst

áculo

, q

ue

ta m

e fa

zend

o q

uer

er d

esis

tir

mai

s u

m a

no

. A

lém

dis

so,

o e

nsi

no

ban

aliz

ado

. N

ão t

em

aval

iaçã

o,

não

co

bra

m f

req

üênci

a. T

od

os

pas

sam

de

ano

. T

o f

azen

do

3 a

no

s o

EJA

do

e 2º

ano

. P

orq

ue

tod

o a

no

eu p

aro

, p

or

causa

do

pro

ble

ma

de

saúd

e. E

tam

bém

co

m e

ssas

gre

ves

.

Ob

stác

ulo

s à

esco

la

4

Não

sin

to h

om

ofo

bia

nes

sa e

sco

la.

Eu n

ão d

ou p

rete

xto

. E

u p

rocu

ro f

azer

am

izad

es e

ass

im a

s p

esso

as n

ão v

em

co

m

pre

conce

ito

co

mig

o.

Pel

o c

ontr

ário

, a

gen

te b

rinca

, eu

pro

curo

par

tici

par

das

aula

s, s

ou d

aquel

as q

ue

fala

, ti

po

1 d

a

clas

se.

Po

r aí

, eu

co

nsi

go

mais

co

isas

, m

ais

resp

eito

.

Não

sen

te h

om

ofo

bia

na

esco

la

4

Anti

gam

ente

eu t

inha

sonho

de

ser

dan

çari

na.

Dep

ois

, m

eu s

on

ho

fo

i fu

nd

ar u

ma

Ass

oci

ação

, q

ue

eu m

onte

i, q

ue

é a

AS

TR

AV

. T

á p

arad

a ag

ora

dev

ido

as

bri

gas

lo

cais

. A

í eu

canse

i d

e to

da

aquel

a co

nfu

são

. N

ão t

ava

me d

edic

and

o a

min

ha

mãe

, às

min

has

co

isas

, en

tão

eu p

arei

. M

as a

ind

a te

nho

ess

e so

nho

de

rees

trutu

rar

a A

ST

RA

P.

Mas

no

mo

mento

eu

pre

tend

o m

e ca

nd

idat

ar à

ver

ead

ora

e n

o f

utu

ro a

um

car

go

mel

ho

r. P

orq

ue

eu a

cred

ito

qu

e eu

vo

u c

ontr

ibuir

mu

ito

mai

s

do

que

se e

u t

ives

se n

a A

ST

RA

P.

Po

rque

aí e

u v

ou t

er q

ue

deb

ater

co

m a

ban

cad

a re

ligio

sa,

que

vai

ser

um

em

pec

ilho

no

no

sso

cam

inho

e n

ão v

ai

ser

fáci

l. P

orq

ue

a gen

te é

a c

lass

e m

ais

excl

uíd

a. A

mai

ori

a ta

na p

rost

ituiç

ão.

Pre

tend

o n

a

po

líti

ca a

jud

ar o

mo

vim

ento

LG

BT

co

mo

um

to

do

. V

ou c

ontr

ibuir

muit

o m

ais

do

que

eu f

icar

dan

do

cam

isin

ha

a no

ite

par

a as

tra

ves

ti.

É b

om

é,

mas

a ca

mis

inha

só p

revin

e d

a d

oen

ça,

não

pre

vin

e d

o f

utu

ro,

da

sua

vel

hic

e, d

o s

eu s

eguro

.

Tod

a tr

aves

ti v

ai f

icar

vel

ha

e q

uem

é q

ue

vai

quer

er u

ma

bic

ha

vel

ha

na

rua?

Entã

o,

eu p

enso

no

futu

ro d

elas

. U

ma

cois

a

prá

tica

mesm

o.

Des

eja

ser

ver

ead

ora

par

a aj

ud

ar a

mel

ho

rar

as

cond

içõ

es d

e vid

a d

as

trav

esti

s

4

A p

ort

aria

, p

ra q

uem

quer

est

ud

ar é

im

po

rtan

te,

mas

pra

quem

não

quer

, el

a s

e t

orn

a o

mes

mo

que

nad

a. L

ei t

em

, m

as

quem

não

ta

info

rmad

a não

co

nse

gue c

ob

rar.

Po

uca

s tr

avest

is v

olt

aram

a e

stud

ar p

orq

ue

não

tin

ha u

ma

míd

ia d

o s

eu l

ado

.

O q

ue

é in

tere

ssan

te é

mo

stra

r tr

aves

ti n

a p

rost

ituiç

ão,

mar

gin

aliz

ada;

não

é i

nte

ress

ante

mo

stra

r tr

aves

ti n

a esc

ola

.

Po

uca

s tr

aves

tis

vo

ltar

am

à es

cola

. C

ulp

a d

a m

ídia

4

Tam

bém

as

trav

est

is n

ão t

êm

inte

ress

e. M

as

não

tem

inte

ress

e p

orq

ue

elas

não

sab

em

, não

tem

info

rmaç

ão.

Se

alg

uém

qu

e

já p

asso

u p

or

tud

o i

sso

vai

e te

fala

, te

in

form

a, d

iz q

ue e

ssa

vid

a é

curt

a e

tal,

ela

s vão

ente

nd

er.

Mas

se

vem

alg

m

que

nu

nca

pas

sou p

or

isso

, el

as n

ão v

ão e

scuta

r. E

u s

irvo

de

esp

elho

pra

ela

s. P

orq

ue

eu f

ui

men

dig

a, e

ra v

icia

da,

fui

Vit

óri

a d

e te

r su

per

ado

a

pro

stit

uiç

ão e

dro

gas

4

Page 178: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … Lucia... · Interlúdio 2: Jenifer, Brenda e suas diferenciações identitárias 43 2.1 “Precisamos verdadeiramente de um verdadeiro

17

7

pre

sa.

Hoje

em

dia

eu t

o a

fre

nte

das

co

isas

. E

u m

e si

nto

um

a p

esso

a vit

ori

osa

po

r tu

do

o q

ue

eu j

á p

asse

i. E

ela

s m

e tê

m

com

o r

efer

ênci

a. E

ntã

o,

elas

vão

vo

ltar

pra

esc

ola

se

tiver

alg

uém

par

a re

educá

-las.

A t

raves

ti q

ue

ta n

a ru

a, j

á se

mar

gin

aliz

ou,

já m

e m

eteu c

om

dro

ga

e a

dro

ga

mud

a o

ser

hu

mano

, q

ual

quer

ser

hu

man

o.

Entã

o,

a tr

aves

ti c

om

eça

a ro

ub

ar,

a m

atar

, vai

pre

sa.

Porq

ue

não

tem

um

tra

bal

ho

co

m e

las

de

ress

oci

aliz

á-l

as.

Entã

o,

pra

luta

r co

ntr

a es

sas

cois

as,

pra

ser

ver

ead

ora

, eu

ten

ho

que

ter

pel

o m

eno

s o

en

sino

méd

io,

né?

Se

bem

que

ho

je e

m d

ia..

. O

Lula

fo

i p

resi

den

te,

o T

irir

ica

não

sei

nem

se

est

ud

ou a

lgu

ma

cois

a...

Ser

ver

ead

ora

par

a aj

ud

ar

as t

raves

tis

4

Ho

je e

m d

ia e

u v

ivo

de

faze

r b

ico

. Q

ual

quer

co

isa

que

me

man

dar

em

faz

er e

u f

aço

. S

ou m

uit

o v

irad

a. F

aço

um

as r

ifas

no

bai

rro

ond

e m

oro

e v

ou v

iven

do

. M

as f

aço

um

pro

gra

min

ha d

e vez

em

quan

do

. E

ten

ho

um

ben

efí

cio

do

Est

ado

porq

ue

eu

tenho

HIV

, né?

Mas

é t

ud

o m

uit

o d

ifíc

il.

Sit

uaç

ão e

conô

mic

a at

ual

Ess

e an

o e

u n

ão v

olt

o m

ais

a es

tud

ar,

nem

quand

o v

olt

ar a

gre

ve.

Ten

ho

mu

ito

s o

utr

os

pro

ble

mas

pra

res

olv

er.

Mas

ano

que

vem

vo

u f

azer

“d

esu”

e m

e fi

liar

em

um

par

tid

o.

Des

ejo

de

se f

ilia

r em

um

par

tid

o

4

Page 179: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … Lucia... · Interlúdio 2: Jenifer, Brenda e suas diferenciações identitárias 43 2.1 “Precisamos verdadeiramente de um verdadeiro

17

8

B

ab

ete

Tem

a

Ca

pít

ulo

s

Co

mo

vo

cê s

e d

efin

e en

qu

an

to i

den

tid

ad

e d

e g

êner

o?

Eu s

ou u

ma

mulh

er t

ranse

xual

.

Qu

al

é a

no

ssa

dif

eren

ça p

ara

os

ou

tro

s se

gm

ento

s d

o m

ovi

men

to L

GB

T?

Nas

cem

os

10

0%

co

m o

psi

coló

gic

o f

em

inin

o,

nasc

em

os

10

0%

rep

ud

iand

o a

gen

itáli

a q

ue

traz

em

os,

a g

ente

des

eja

real

izar

a ci

rurg

ia,

po

rque

a ad

equaç

ão d

o c

orp

o c

om

o p

sico

lógic

o é

muit

o i

mp

ort

ante

. U

ma

mulh

er q

ue

nas

ce p

resa

ao

co

rpo d

e

um

ho

mem

. A

í, c

om

o p

roce

sso

de

ho

rmo

nio

tera

pia

a g

ente

vai

se

adap

tand

o p

ara

min

imam

ente

viv

er e

m p

az,

con

viv

er n

a

soci

edad

e.

Def

iniç

ão m

édic

a d

a

tran

sexual

idad

e 2

O q

ue

seri

a v

iver

em

pa

z p

ra v

ocê

?

É c

onse

guir

a c

irurg

ia,

mas

é m

uit

o c

om

pli

cad

o.

Se

a gen

te n

ão c

onse

guir

faz

er p

elo

meno

s 2

ano

s o

bri

gat

óri

os,

a g

ente

entr

a n

um

est

ado

co

mo

se

foss

e a

TP

M d

a m

ulh

er “

hét

era”

.

A d

ific

uld

ade

de

conse

guir

a c

irurg

ia d

e

tran

sexual

izaç

ão

2

Co

nte

-me

um

po

uco

so

bre

su

a v

ida

.

Ao

s 1

5 a

no

s eu s

aí d

e ca

sa e

co

mec

ei

a d

ar u

m n

ovo

ru

mo

pra

min

ha

vid

a. A

ssu

mi

a m

inh

a id

enti

dad

e en

quan

to

tran

sexual

. F

ui

trab

alhar

nu

m p

rost

íbulo

pra

ten

tar

sob

reviv

er.

eu p

asse

i a

me

vir

ar d

e to

das

as

form

as

pra

ten

tar

concl

uir

o e

nsi

no

méd

io.

Pro

stit

uiç

ão c

om

o m

eio

de

sob

reviv

ênci

a

3

Na

min

ha

épo

ca e

ra u

ma

reje

ição

muit

o m

aio

r. H

oje

em

dia

, a

vid

a d

e u

ma

trav

a na

esco

la é

óti

ma,

um

co

nto

de

fad

a,

per

to d

o q

ue

foi

na

min

ha

épo

ca.

Eu n

ão m

ilit

ava.

O m

ovim

ento

era

mu

ito

dis

per

so,

ele

pra

tica

mente

não

exis

tia

em

Bel

ém

. N

ão e

xis

tia

pra

so

cied

ade.

Não

tin

ha

a vis

ibil

idad

e q

ue

tem

ho

je.

Eu n

em

sab

ia q

ue t

inha

um

gru

po

ou s

e não

. N

em

imagin

ava.

Mai

ore

s d

ific

uld

ade

no

pas

sad

o p

ara

se a

ssu

mir

trav

esti

3

Entã

o,

na

esco

la a

rej

eiçã

o e

ra m

uit

o g

rand

e. T

em o

s p

rob

lem

as d

a p

iad

a. M

as e

u s

em

pre

fu

i b

rigo

na,

des

de

cria

nça

. S

aia

queb

rand

o t

ud

o q

ue

via

pel

a fr

ente

. N

asci

um

a Jo

ana

D’A

rc.

Vio

lênci

a co

mo

estr

atég

ia d

e

sob

reviv

ênci

a na

esc

ola

3

Eu e

ra u

ma

pes

soa

sem

fo

rmaçã

o.

Eu m

e d

esco

bri

r en

quan

to m

ulh

er,

eu n

ão s

abia

que

era t

ranse

xual

, não

sab

ia d

esse

seg

mento

.

Nec

essi

dad

e d

e

cate

go

riza

ção

. 2

Até

po

rque

naq

uela

ép

oca

não

exis

tia

ess

a no

mencl

atura

. T

od

o m

und

o m

e cham

ava

de

traves

ti e

pro

nto

. A

go

ra s

ei q

ue

sou

um

a m

ulh

er t

ranse

xual

.

Rec

ente

in

ven

ção

da

tran

sexual

idad

e 2

Mas

quan

do

eu a

ssu

mi

a id

enti

dad

e fe

min

ina,

as

pes

soas

ao

s p

ouco

s co

meç

aram

a m

e cham

ar p

elo

no

me

fem

inin

o.

Os

am

igo

s, c

ole

gas

. M

as

os

ges

tore

s, p

or

exem

plo

, não

me

cham

avam

pel

o n

om

e so

cial

. N

om

e so

cial

3

Mas

quan

do

eu a

ssu

mi

a id

enti

dad

e fe

min

ina,

as

cois

as p

iora

ram

. O

s ap

elid

os,

os

xin

gam

ento

s.

Pre

conce

ito

na

esco

la

3

Já b

riguei

muit

o e

m s

ala

de

aula

po

r m

e ch

am

aram

de

via

do

e a

quel

as c

ois

as.

Ele

s se

mp

re q

uer

em

te

ofe

nd

er t

e ch

am

and

o

de

via

do

, co

mo

se

via

do

fo

sse

ofe

nsa

. A

cho

incr

ível

iss

o.

Mas

eu m

e ir

rita

va

mu

ito

e i

a lo

go

pra

cim

a. E

ntã

o,

essa

s ce

nas

eram

co

rriq

uei

ras

na

min

ha

vid

a, n

a ép

oca

de

esco

la.

Bri

gas

na

esco

la

3

A m

inha

vid

a d

e tr

abal

ho

na

pro

stit

uiç

ão s

em

pre

fo

i b

oa.

Entã

o,

eu m

e ab

atia

, m

as n

ão m

e d

eixav

a en

fraq

uec

er c

om

ess

as

cois

as.

O m

eu d

ia e

ra e

xp

lora

do

por

riso

s, e

xp

lora

do

s p

ela

feli

cid

ade

de

ta t

rab

alhan

do

no

pute

iro

, d

e at

end

er,

de

beb

er,

fum

ar..

. E

ntã

o i

sso

me

ajud

ava,

me

acal

mava

par

a eu

ter

fo

rças

pra

ir

a no

ite

pra

esc

ola

. O

meu

dia

co

nse

guia

sup

rir

as

do

res

da

no

ite.

E a

no

ite

era

só u

mas

3 h

ora

s q

ue

tu t

inha

que c

onviv

er a

li n

a es

cola

.

Pro

stit

uiç

ão c

om

o o

fíci

o

pra

zero

so

3

Po

r q

ue

você

per

ma

nec

eu n

a e

sco

la?

Eu s

ai d

e ca

sa p

ela

reje

ição

dos

meus

pai

s. A

únic

a vanta

gem

da

min

ha

mãe

fo

i se

mp

re q

uer

er q

ue

s es

tud

ásse

mo

s. E

D

esej

o d

e es

cola

4

Page 180: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … Lucia... · Interlúdio 2: Jenifer, Brenda e suas diferenciações identitárias 43 2.1 “Precisamos verdadeiramente de um verdadeiro

17

9

meu

s ir

mão

s to

do

s p

arar

am.

E e

u s

em

pre

fui

carn

e d

e p

esco

ço.

E e

u d

isse

que

mesm

o s

aind

o d

e ca

sa e

u i

a es

tud

ar,

eu i

a

pro

var

pra

ele

s q

ue

eu i

a es

tud

ar. T

odo

s d

izia

m q

ue

eu n

ão i

a se

r nad

a, n

ing

uém

, e

eu q

uis

pro

var

que

eles

est

avam

erra

do

s. E

u h

oje

eu s

ou.

Vo

cê t

eve

von

tad

e d

e fa

zer

facu

lda

de?

Eu t

ente

i, m

as n

ão d

eu.

O m

erca

do

de

trab

alho

ho

je é

muit

o d

ifíc

il.

Já é

co

nco

rrid

o p

elo

s hét

ero

s e

aind

a te

m n

ós,

entã

o,

fica

mai

s co

nco

rrid

o.

Eu t

inha

duas

op

ções

: o

u e

u t

rab

alhav

a p

ra s

ob

reviv

er o

u f

azia

fac

uld

ade.

Eu f

iz o

Enem

, p

asse

i, m

as

não

tiv

e co

mo

pag

ar.

Eu i

a fa

zer

psi

colo

gia

. E

u s

ou u

ma

bo

a co

nse

lhei

ra.

É a

po

rra

louca

, m

as q

ue

faz

um

aco

mp

anham

ento

leg

al n

o

psi

coló

gic

o d

as p

esso

as.

Entã

o,

eu o

pte

i p

or

trab

alhar

e s

ob

reviv

er.

Po

rque

a p

ista

não

mai

s o

que

dav

a anti

gam

ente

.

Des

ejo

de

faze

r

facu

ldad

e 4

Qu

al

é a

fun

ção

da

pro

stit

uiç

ão

na

vid

a d

e tr

ave

stis

e t

ran

sexu

ais

?

Muit

as

das

vez

es é

a ú

nic

a o

pçã

o.

Po

rque

o p

adrã

o q

ue

a so

cied

ade

quer

par

a u

ma

rece

pci

onis

ta n

ão é

o d

e um

a tr

aves

ti,

po

r m

ais

que

ela

ten

ha

form

ação

. N

ós

não

est

amo

s no

pad

rão

des

ejad

o p

ara

qual

quer

car

go

, q

ual

quer

em

pre

go

. E

nen

hu

m

ban

co v

ai l

iber

ar u

m e

mp

rést

imo

par

a q

ue

po

ssam

os

abri

r n

oss

o e

mp

reen

dim

ento

. E

ntã

o,

a únic

a o

pçã

o é

a p

rost

ituiç

ão.

A

gen

te é

rej

eita

da

soci

alm

ente

. M

as s

e vo

cê j

á é

dis

crim

inad

a, c

om

o é

que

vo

cê v

ai t

er u

ma

auto

esti

ma

pra

co

ncl

uir

seu

ensi

no

méd

io? E

ntã

o,

não

se

conse

gue

ter

um

a fo

rmaç

ão.

O j

eito

é a

pis

ta.

É p

ro m

ínim

o q

ue

vo

cê p

reci

sa q

ue

é o

seu

alim

ento

pra

to

do

s o

s d

ias.

Rel

ação

de

tran

s co

m a

pro

stit

uiç

ão

2

A g

ente

pen

a, p

ena,

mas

a gen

te d

á u

m j

eito

de

se d

iver

tir.

A g

ente

bri

nca

, no

s fi

nai

s d

e se

man

a vam

os

pra

fes

ta.

Entã

o,

faz

com

que

essa

vid

a se

ja s

up

ort

ável

.

Pro

stit

uiç

ão n

o s

eu

po

tenci

al d

iver

tid

o

2

Mas

que

é b

om

, não

é.

Quem

go

sta

de

dei

tar

com

vár

ios

ho

men

s n

um

a no

ite?

Ho

mens

qu

e vo

cê n

em

co

nhec

e, q

ue

a gente

é o

bri

gad

a a

faze

r tu

do

que

eles

quis

erem

. V

ocê

é u

ma

mer

cad

ori

a naq

uel

a ho

ra:

quem

co

mp

ra t

em d

irei

to d

e es

colh

er,

né?

A p

ista

é i

sso

: d

olo

rosa

, m

as t

am

bém

pra

zero

sa q

uan

do

a g

ente

faz

ela

ser

.

Pro

stit

uiç

ão c

om

o o

fíci

o

pen

oso

2

O q

ue

você

ach

a d

a p

ort

ari

a d

o n

om

e so

cia

l?

Eu a

cho

que

na

min

ha

épo

ca t

ives

se a

po

rtar

ia,

seri

a at

é p

ior.

Po

rque

ela

não

fo

i tu

do

iss

o q

ue

fala

ram

. Q

uanta

s tr

avest

is

estã

o n

a es

cola

? Q

uas

e nen

hu

ma.

Fo

i u

ma

luta

que

o m

ov

imen

to f

orç

ou q

ue

tives

se.

O g

over

no

da

épo

ca f

ez a

port

aria

,

mas

não

tra

bal

ho

u p

ara

que

a p

ort

aria

fo

sse

bem

im

pla

nta

da.

Eu a

com

pan

hei

cas

os

que

ch

egar

am

pra

mim

diz

end

o q

ue

quer

iam

se

mat

ricula

r co

m n

om

e so

cial

e a

s p

esso

as

diz

iam

: lá

vem

ess

es v

iad

os

quer

er s

er

cham

ado

de

mulh

er n

a esc

ola

.

Entã

o,

a p

ort

aria

sai

u p

ela

pre

ssão

do

mo

vim

ento

, m

as q

ue

o g

over

no

u n

ão t

rab

alho

u u

ma p

olí

tica

de

info

rmaç

ão p

ara

que

essa

po

rtar

ia f

oss

e b

em

im

ple

men

tad

a. E

ntã

o,

ela

não

fo

i o

que

a gen

te e

sper

ava.

Fo

i u

m a

van

ço,

mas

aind

a fa

lta

mu

ito

.

Inex

pre

ssiv

idad

e d

a

po

rtar

ia d

o n

om

e so

cial

3

e 4

Quand

o a

po

rtar

ia d

e fa

to f

or

imp

ost

a, a

í si

m n

ós

vam

os

tira

r m

uit

as p

esso

as

da

mar

gin

alid

ade.

Ela

é u

ma

ferr

am

enta

fund

am

enta

l p

ara

que

a gen

te p

oss

a m

ud

ar a

rea

lid

ade

de

muit

a gente

. U

ma

trav

est

i fo

rmad

a, e

la m

ais

conte

úd

o p

olí

tico

par

a p

assa

r nu

m c

oncu

rso

púb

lico

. D

epo

is q

ue

ela

pas

sa,

não

tem

quem

tir

e.

Esc

ola

co

mo

mel

ho

ria

na

vid

a d

e T

T

4

As

pes

soas

quer

em

ser

cham

ad

as e

res

pei

tad

as p

or

aquil

o q

ue

são

. C

om

o p

oss

o c

ham

ar u

ma

mulh

er p

or

um

no

me

mas

culi

no

. U

ma

Mar

ia s

er c

ham

ada

po

r Jo

ão.

Não

dá.

É c

onst

ran

ged

or.

É p

reci

so t

er r

esp

eito

.

Tod

o d

ia a

gen

te p

assa

po

r co

nst

rangim

ento

pel

o n

om

e. E

xem

plo

: ó

rgão

s p

úb

lico

s. T

u c

heg

as,

tem

que

dar

a i

den

tid

ade,

e

aí e

les

vão

te

anu

nci

ar c

om

o t

eu n

om

e ci

vil

. Is

so é

“co

tid

iari

am

ente

”.

No

me

soci

al p

ara

evit

ar

const

ran

gim

ento

s 3

Page 181: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … Lucia... · Interlúdio 2: Jenifer, Brenda e suas diferenciações identitárias 43 2.1 “Precisamos verdadeiramente de um verdadeiro

18

0

N

ay

ara

T

em

a

Ca

pít

ulo

s

Eu t

enho

19

ano

s e

esto

u n

o 1

º an

o d

o e

nsi

no

méd

io.

Idad

e e

situ

ação

esc

ola

r 1

So

u t

ravest

i ta

mb

ém

. M

as q

uero

vir

ar t

ranse

x u

m d

ia.

O q

ue

ser

tra

nse

x?

É q

uan

do

a t

rava

faz

a ci

rurg

ia.

já p

od

e se

r ch

amad

a d

e tr

anse

x.

Auto

def

iniç

ão

2

Fo

i d

ifíc

il m

inha

fam

ília

ace

itar

. T

inha

muit

o m

edo

que

min

ha

mãe

me

reje

itas

se.

A m

inha

mãe

que

chego

u c

om

igo

e

per

gun

tou s

e eu

era

ou n

ão (

gay)

e eu

menti

co

m m

edo

da

reje

ição

. M

as d

epo

is e

la p

ergun

tou d

e no

vo

e e

u c

onte

i a

ver

dad

e. M

as e

u n

em

sei

se

eu m

enti

na

pri

meir

a vez

que

ela

per

gu

nto

u.

É q

ue

eu n

ão e

ra b

em

um

gay,

nu

nca

me s

enti

com

o u

m g

ay,

ass

im,

sab

e? E

u m

e via

co

mo

mulh

er,

mesm

o n

ão s

end

o.

É d

ifíc

il e

nte

nd

er.

Def

iniç

ão e

med

o d

e

reje

ição

2

Eu t

inha

17

ano

s. H

oje

ele

s m

e o

rien

tam

pra

eu t

er c

uid

ado

na

rua.

Ho

je m

inha

fam

ília

acei

ta.

o a

não

ace

ita,

mas

isso

é o

de

men

os.

Pra

mim

iss

o f

oi

mu

ito

bo

m,

po

rque

ago

ra e

u t

enho

a m

inha

lib

erd

ade.

A

ceit

ação

fam

ilia

r 2

Peg

ava

suti

ã d

a m

inha

irm

ã, m

aquia

gem

, se

mp

re e

sco

nd

ido

. Q

uan

do

alg

uém

vin

ha,

eu t

irav

a ra

pid

inho

co

m m

edo

de

peg

ar

po

rrad

a. U

sava

roup

a d

e ho

mem

po

rque

era

ob

rigad

a.

Ago

ra a

min

ha r

oup

a é t

od

a fe

min

ina.

A m

asc

uli

na e

u j

á d

eu

tud

inho

.

Bri

nca

nd

o d

e se

r m

ulh

er

2

Co

meç

ou m

esm

o q

uand

o e

u t

inha

17

ano

s. M

as s

ó p

asse

i a

usa

r su

tiã

aos

18

, d

epo

is q

ue

apar

eceu

um

po

uco

de

pei

to,

dep

ois

de

um

tem

po

to

mand

o h

orm

ônio

.

Co

meç

o d

a

tran

sfo

rmaç

ão

2

Não

pro

cure

i m

édic

o.

Tam

bém

co

mec

ei a

to

mar

po

r in

dic

ação

de

amig

as.

Já q

uis

ir

ao m

édic

o,

mas

ten

ho

med

o q

ue

o

méd

ico

me

assu

ste,

diz

end

o q

ue

vai

faz

er m

al p

ra m

inha

saú

de

futu

ram

ente

.

Med

o d

e ir

ao

méd

ico

2

Não

sin

to p

reco

nce

ito

aq

ui

na e

sco

la,

só n

as b

rinca

dei

ras

de

mal

go

sto

do

s co

legas

. E

u n

ão

do

u i

mp

ort

ânci

a p

ra e

les.

Ess

e

pes

soal

é a

ssim

mesm

o,

tira

sar

ro d

e tu

do

o q

ue

é d

ifer

ente

. S

e eu

der

bo

la v

ai s

er p

ior.

Fic

o c

alad

a, n

a m

inha,

e n

ão d

ou

mo

tivo

pra

nin

guém

mex

er c

om

igo

.

Não

se

imp

ort

a co

m o

s

xin

gam

ento

s na

esc

ola

3

Mas

tam

bém

tev

e aq

uel

es q

ue g

ost

aram

de

me

ver

de

mulh

er.

Hoje

, to

do

mund

o m

e cham

a d

e N

ayar

a na

sala

de

aula

. O

s/as

co

legas

a c

ham

am

de

Nay

ara

3

Po

r q

ue

você

est

á n

a e

sco

la?

Eu t

o n

a e

sco

la p

orq

ue,

se

a g

ente

não

co

ncl

uir

o e

nsi

no

méd

io a

gen

te n

ão c

on

seg

ue

em

pre

go

, é

muit

o d

ifíc

il h

oje

. A

ind

a

mai

s q

ue

a gente

é t

raves

ti.

Fic

a m

uit

o m

ais

dif

ícil

po

r ca

usa

do

pre

conce

ito

. E

u p

enso

em

ter

min

ar m

eus

estu

do

s p

ara

isso

,

pra

ter

meu

em

pre

go

e s

er i

nd

epen

den

te.

Quer

o s

er c

abel

eire

ira.

Esc

ola

par

a co

nse

guir

em

pre

go

futu

ram

ente

4

Não

ten

ho

vo

nta

de

de

faze

r fa

culd

ade.

Quer

o t

erm

inar

os

estu

do

s e

pro

cura

r u

m t

rab

alho

na

área

de

esté

tica

mesm

o.

N

ão t

em

vo

nta

de

de

faze

r fa

culd

ade

4

Po

rque

a g

ente

co

m u

m e

mp

rego

bo

m,

send

o i

nd

epen

den

te,

a gen

te v

ai s

er r

esp

eita

da.

Co

mo

as

pes

soas

diz

em

: é

um

via

do

chic

, te

m d

inheir

o.

Mas

via

do

burr

o,

que

não

tem

nad

a na

vid

a, a

í p

iora

o l

ado

del

e.

Quer

ser

res

pei

tad

a p

or

ter

um

em

pre

go

4

Quer

o t

er d

inhei

ro p

ra c

om

pra

r as

min

has

cois

as,

um

a te

levis

ão,

cois

a as

sim

. V

ou t

erm

inar

de

faze

r m

eu q

uar

to.

E o

din

hei

ro q

ue

eu g

uar

dar

é p

ra c

olo

car

sili

cone

e co

isa

assi

m.

Que

eu t

enho

iss

o c

om

igo

, o

des

ejo

de

colo

car

sili

cone.

Des

ejo

de

colo

car

sili

cone

2

Mas

não

quer

tra

bal

har

me

pro

stit

uin

do

. N

ão a

cho

leg

al.

Quer

o t

rab

alhar

, m

as n

ão c

om

o c

orp

o,

suan

do

de

outr

a fo

rma.

O

din

hei

ro q

ue a

gen

te g

an

ha

fáci

l, v

ai f

ácil

tam

bém

. O

din

heir

o d

ifíc

il d

e a g

ente

ganha d

emo

ra m

ais

a s

air.

Nem

o g

lam

our

da

pis

ta n

ão e

nch

e m

eus

olh

os.

Não

quer

tra

bal

har

na

pro

stit

uiç

ão

2

Não

sin

to t

anto

pre

conce

ito

na

esco

la.

Acho

que

é p

orq

ue

a no

ssa

tran

sfo

rmaç

ão f

oi

gra

dual.

Mas

tem

pro

fess

ore

s q

ue s

e re

cusa

m a

cham

á-l

a p

elo

no

me s

oci

al.

Acho

que

tem

mais

pre

conce

ito

do

s p

rofe

sso

res

do

que

Sen

te m

ais

pre

conce

ito

do

s p

rofe

sso

res

do

que

3

Page 182: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … Lucia... · Interlúdio 2: Jenifer, Brenda e suas diferenciações identitárias 43 2.1 “Precisamos verdadeiramente de um verdadeiro

18

1

d

os

aluno

s.

do

s al

uno

s.

Eu s

ou a

fem

inad

a, t

o q

uer

end

o m

e t

ran

sfo

rmar

em

um

a m

ulh

er,

po

rque

o m

eu p

sico

lógic

o é

de

mulh

er,

uso

ro

up

a d

e

mu

lher

, en

tão

, não

fic

a le

gal

um

a p

esso

a m

e cham

ar d

e N

ald

o.

Os

cole

gas

me

cham

am

de

Nay

ara,

os

pro

fess

ore

s q

ue

não

.

Ser

psi

coló

gic

o

2

Não

do

s p

rofe

sso

res,

mas

da

sup

ervis

ora

tam

bém

. Q

uan

do

a s

up

ervis

ora

a gente

no

ban

hei

ro f

em

inin

o,

ela

man

da

sair

. E

la d

iz q

ue

as m

enin

as

não

rec

lam

am

co

m a

gen

te,

mas

vão

e re

clam

am

co

m e

la.

Mas

eu n

unca

vi

nenh

um

a m

enin

a

recl

am

and

o.

Na

no

ssa

frente

não

. E

las

cheg

am

no

ban

hei

ro e

não

se

imp

ort

am

co

m a

gente

. M

as s

e a

sup

erv

iso

ra v

ê, e

la

tira

a g

ente

de

lá.

Tev

e u

ma

vez

que

ela

me

arra

sto

u p

elo

bra

ço m

esm

o.

Sup

ervis

ora

im

ped

e uso

ban

hei

ro f

em

inin

o

3

E e

u n

ão g

ost

o d

e usa

r o

ban

hei

ro d

os

ho

mens.

Eu m

e si

nto

co

nst

ran

gid

a. E

u,

um

a m

ulh

er a

ssim

, no

ban

hei

ro d

e ho

mem

?

Nem

co

mb

ina.

E q

uan

do

eu i

a n

o b

anhei

ro d

e ho

mem

, lo

go

que

cheg

uei

na

esco

la,

era

lá q

ue

eles

mai

s d

ebo

cham

da

gen

te.

Diz

em

: “v

em

cá,

vem

não

sei

o q

uê.

..”

Co

nst

ran

gim

ento

em

usa

r o

ban

hei

ro

mas

culi

no

2

Co

mo

ano

pas

sad

o t

inha

mu

ita

trav

esti

, nó

s no

s un

imo

s e

ped

imo

s p

ra d

iret

ora

pra

ela

faz

er u

m b

anhei

ro s

ó n

oss

o,

das

trav

esti

s. M

as e

la n

ão f

ez.

E o

lha

que

tem

um

ban

hei

ro p

erto

do

ref

eitó

rio

que

nin

guém

usa

e e

la b

em q

ue

po

dia

faz

er n

oss

o

ban

hei

ro l

á. M

as e

la n

ão f

ez n

ada.

Ban

hei

ro s

ó p

ara

trav

esti

s 3

Eu n

ão m

e si

nto

excl

uíd

a. T

odo

mu

nd

o m

e cu

mp

rim

enta

, fa

lam

co

mig

o n

orm

al.

Não

sin

to n

enh

um

tip

o d

e re

jeiç

ão.

Não

se

sente

excl

uíd

a 3

Page 183: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … Lucia... · Interlúdio 2: Jenifer, Brenda e suas diferenciações identitárias 43 2.1 “Precisamos verdadeiramente de um verdadeiro

18

2

B

ian

ca

Tem

as

Ca

pít

ulo

s

Eu t

enho

16

ano

s e

faço

o 2

º an

o d

o e

nsi

no

méd

io.

Idad

e e

situ

ação

esc

ola

r 1

Eu s

ou t

raves

ti.

po

de

ser

tran

sex

dep

ois

da

ciru

rgia

. A

nte

s é

só t

raves

ti.

Mas

um

dia

eu

faç

o a

cir

urg

ia e

vir

o t

ranse

xual

.

A m

inha

fam

ília

sem

pre

so

ub

e q

ue

eu e

ra g

ay.

Desd

e cr

iança

go

stav

a d

e u

sar

saia

, d

e b

rinca

r d

e bo

nec

a. G

ost

ava

de

dan

ça o

“tc

han”.

Acho

que

eu s

em

pre

fui

mu

lher

.

Auto

def

iniç

ão

2

Não

ho

uve

um

mo

mento

par

a co

nta

r p

ara

a fa

míl

ia.

Acho

que

eles

sem

pre

so

ub

eram

. M

inha

mãe

sem

pre

so

ub

e e

co

m o

pas

sar

do

tem

po

ela

fo

i ac

eita

nd

o.

Min

ha

mãe

me a

ia c

om

ple

tam

ente

. A

té c

om

pra

ro

up

a d

e m

ulh

er p

ra m

im,

com

pra

maq

uia

gem

.

Rel

ação

fam

ilia

r 2

o m

eu t

io q

ue

não

ace

ita,

ele

não

go

sta,

ele

me

hu

mil

ha

às

vez

es,

mas

eu n

em

lig

o.

Rej

eiçã

o

2

Eu m

oro

co

m a

min

ha

mãe

, m

eu t

io,

irm

ão,

duas

irm

ãs d

e cr

iaçã

o e

meu p

adra

sto

.

Eu a

do

ro o

meu p

adra

sto

. E

le a

cham

a d

e B

ianca

, d

e fi

lha.

.. E

u a

té t

om

o a

ben

ção

. Já

o m

eu i

rmão

“ac

eit

a não

ace

itand

o”,

mas

me

cham

a d

e ir

mã,

de

Bia

nca

, m

esm

o n

ão g

ost

and

o m

uit

o.

Sit

uaç

ão f

am

ilia

r 1

Co

mec

ei d

eixar

o c

abel

o c

resc

er a

os

15

ano

s. A

í p

asse

i a u

sar

maq

uia

gem

e a

to

mar

ho

rmô

nio

s. T

om

ei p

or

conta

pró

pri

a

mes

mo

. U

mas

am

igas

tra

vest

is q

ue

me

ind

icar

am

. N

ão p

rocu

rei

o m

édic

o c

om

rec

eio

que

ele

dig

a p

ra p

arar

de

tom

ar.

E

tenho

med

o q

ue

o m

édic

o m

e tr

ate

mal

, m

e h

um

ilhe,

sei

lá.

Tra

nsf

orm

ação

2

Min

ha

mãe

fic

ou p

reo

cup

ada

quan

do

o p

eito

co

meç

ou a

cre

scer

. E

la d

isse

que

po

dia

usa

r ro

up

as f

em

inin

as,

mas

que

eu n

ão

mud

ass

e m

eu c

orp

o. T

inha

med

o d

e ca

usa

r p

rob

lem

as d

e sa

úd

e. M

as h

oje

acei

ta.

Não

tem

jei

to m

esm

o.

Pre

ocu

paç

ão c

om

a

saúd

e

2

Muit

os

cole

gas

mex

em

co

mig

o.

Diz

em

: “e

aí,

bo

nec

a, e

aí,

via

do

, vir

a ho

mem

”!

Nin

guém

go

sta

de

ser

apel

idad

o.

Hoje

, p

or

exem

plo

, u

m m

enin

o d

a sa

la a

o l

ado

dis

se a

ssim

pra

mim

: “n

ão s

ei p

orq

ue

esse

s via

do

s vir

am

gay.

Tem

tanta

mulh

er

bo

nit

a...

” N

ão d

ou i

bo

pe

pra

ele

s p

orq

ue

aí q

ue

ele

s vão

fal

ar m

ais.

Fic

o c

alad

a e

aí e

les

vão

em

bo

ra.

Mas

sem

pre

tem

e

sem

pre

vai

ter

.

Pre

conce

ito

na

esco

la

3

Ano

pas

sad

o t

inham

muit

as

trav

esti

s na

esco

la,

um

as d

ez.

Mas

ela

s re

pet

iram

de

ano

e p

arar

am d

e es

tud

ar.

Um

a eu s

ei

que

foi

pra

São

Pau

lo s

e pro

stit

uir

. Q

uer

ia d

inhei

ro p

ara

colo

car

sili

cone.

Outr

a d

isq

ue

vir

ou h

om

em

, vir

ou e

van

gél

ico

e t

eve

que

vir

ar h

om

em

de

no

vo

.

Mas

eu n

ão a

cho

que

elas

saír

am

po

r p

reco

nce

ito

. E

las

eram

que

nem

a g

ente

, nem

lig

avam

pra

quand

o a

lguém

tir

ava

confi

ança

. E

las

saír

am

po

r m

oti

vo

s d

elas

: re

pet

iram

, ess

as c

ois

as..

.

Evas

ão e

sco

lar

3

É d

ifíc

il p

ra g

ente

que

é tr

avest

i co

nse

guir

em

pre

go

. Q

uer

o t

erm

inar

meu e

nsi

no

méd

io,

mas

ain

da

não

sei

no

que

eu q

uer

o

trab

alhar

. Q

uer

o s

er i

nd

epen

den

te.

Meu

tio

fic

a jo

gand

o n

a m

inha

cara

: “v

ai t

rab

alhar

, vai

atr

ás d

o p

rim

eiro

em

pre

go

”. M

as

é d

ifíc

il p

ra g

ente

. Q

uem

quer

emp

regar

um

a tr

aves

ti? N

inguém

vai

ace

itar

. Q

uer

o t

erm

inar

meus

estu

do

s, c

onse

gu

ir u

m

bo

m e

mp

rego

.

Dif

iculd

ade

em

conse

guir

em

pre

go

4

Eu n

ão v

ou d

izer

que

nu

nca

vo

u m

e p

rost

ituir

. E

u j

á fu

i p

ra p

ista

co

m u

mas

am

igas

que

são

pro

stit

uta

s. M

as e

u n

ão q

uer

o

levar

ess

a vid

a. É

um

a b

atal

ha.

Tem

gente

que t

e jo

ga

ovo

, te

ped

rad

a, t

e jo

ga

saco

de

mij

o.

Mas

é b

om

po

rque

tu g

anh

a

din

hei

ro m

uit

o f

ácil

. N

um

a n

oit

e tu

gan

has

R$

20

0,0

0.

Tem

um

a am

iga

que

um

a vez

fo

i p

ra p

ista

e v

olt

ou c

om

R$

50

0,0

0.

Um

a b

icha

ela

gan

han

do

din

hei

ro f

ácil

, vai

quer

er t

am

bém

. M

as e

u n

ão q

uer

o l

evar

ess

a vid

a não

.

Pro

stit

uiç

ão

2

O q

ue

me

cham

a at

ençã

o n

a p

ista

é o

gla

mo

ur.

A b

icha q

uan

do

vai

pra

pis

ta,

par

ece

que

vai

pra

um

a fe

sta:

co

loca

um

a ro

up

a

curt

a, f

az m

aquia

gem

fo

rte,

salt

o a

lto

. Q

uan

to m

ais

enfe

itad

a tu

tiv

er m

elho

r, m

as t

u s

e d

esta

ca n

a p

ista

. G

lam

our

na

pis

ta

2

Eu f

ui

com

a d

iret

ora

par

a m

ud

ar o

meu

no

me

na

list

a d

e ch

am

ada

par

a B

ianca

, só

que

ela

não

ace

ito

u.

Dis

se q

ue

é ir

reg

ula

r,

que

tari

a fa

zend

o a

lgo

err

ado

. E

mes

mo

se

ela

quis

ess

e não

dar

ia,

po

is o

sis

tem

a d

o c

om

puta

do

r, s

ei l

á, n

ão p

erm

ite.

Mas

Rei

vin

dic

ou o

no

me

soci

al n

a es

cola

3

Page 184: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … Lucia... · Interlúdio 2: Jenifer, Brenda e suas diferenciações identitárias 43 2.1 “Precisamos verdadeiramente de um verdadeiro

18

3

m

esm

o a

ssim

eu p

edi

pra

to

dos

os

pro

fess

ore

s co

loca

r m

eu n

om

e d

e B

ianca

. S

ó t

eve

um

a p

rofe

sso

ra q

ue

não

ace

ito

u d

e je

ito

nen

hu

m.

Dis

se q

ue

ia m

e cham

ar d

e P

edro

Jo

sé n

a fr

ente

de t

od

o m

und

o.

Sen

ti u

m c

erto

pre

conce

ito

del

a. E

la d

isse

que

meu

no

me

é P

edro

Jo

sé O

livei

ra,

entã

o,

ela

ia m

e cham

ar a

ssim

. E

nq

uan

to n

ão t

iver

na

min

ha

iden

tid

ade,

pro

van

do

que

é

legal

o m

eu n

om

e, e

la n

ão i

a m

e ch

am

ar p

or

Bia

nca

. A

mai

ori

a d

os

pro

fess

ore

s m

e cham

a p

or

Bia

nca

, m

as t

em

alg

uns

que

se n

egam

.

Eu n

ão s

abia

que

tinha

ess

a p

ort

aria

do

no

me

soci

al.

Tin

ha

ped

ido

par

a a

dir

eto

ra,

pro

fess

ore

s, m

as n

ão t

ava

sab

end

o q

ue e

ra

um

dir

eito

meu

. N

ão c

onhec

ia a

Po

rtar

ia

3

O m

eu n

om

e fo

i d

ado

pel

as o

utr

as t

raves

tis

que

estu

dav

am

aq

ui.

Ela

s q

ue

dav

am

o n

om

e d

e b

atis

mo

e e

u g

ost

ei e

ace

itei

. E

fico

u a

té h

oje

. E

u a

do

ro q

uan

do

me

cham

am

de

Bia

nca

, eu

me

sinto

um

a m

ulh

er.

Eu s

into

que

eles

não

têm

pre

conce

ito

.

Fic

o m

uit

o c

onst

rangid

a q

uan

do

me

cham

am

de

Ped

ro.

O n

om

e B

ianca

3

Se

eu v

ou n

um

po

sto

de

saúd

e, n

em

me

imp

ort

o q

ue

me

cham

em

pel

o n

om

e d

e ho

mem

. E

les

não

me

con

hec

em

lá,

né?

Aí,

tud

o b

em.

Mas

na

esco

la,

tod

o m

und

o m

e co

nhec

e, s

abem

que

eu q

uer

o s

er c

ham

ada

de

Bia

nca

. A

í, n

ão d

á p

ra a

ceit

ar.

Faz

em

de

pir

raça

mesm

o.

No

me

soci

al X

civ

il

3

Os

am

igo

s não

mud

aram

dep

ois

da

min

ha

transf

orm

ação

, p

ois

fo

i gra

dual

mesm

o,

com

o a

Nayar

a fa

lou.

Eu j

á ch

eguei

na

esco

la b

asta

nte

afe

min

ada.

Não

fo

i u

m c

ho

que.

Ten

ho

até

am

igo

s het

ero

s ta

mb

ém

. A

miz

ades

2

E n

a ru

a, e

u n

unca

so

u x

ingad

a, e

ssas

co

isas

. A

cham

que e

u s

ou m

ulh

er m

esm

o.

quem

me

con

hec

e d

e anti

gam

ente

é q

ue

sab

e q

ue

eu n

ão s

ou m

ulh

er d

e ver

dad

e.

É p

erce

bid

a co

mo

mu

lher

2

Eu n

ão s

ei s

e ia

co

nse

guir

gu

ard

ar m

eu d

inhei

ro.

Ia q

uer

er l

ogo

gas

tar:

co

mp

rar

roup

a, s

apat

o.

E i

a d

ar u

ma

bo

a p

arte

do

din

hei

ro p

ra m

inha

mãe

, p

orq

ue

ela

me

ajud

ou m

uit

o.

Mas

ia

quer

er g

uar

dar

um

a p

arte

no

ban

co p

ra e

u c

olo

car

sili

cone.

P

lano

s fi

nan

ceir

os

3

Ain

da

não

dec

idi

a p

rofi

ssão

. M

as t

enho

vo

nta

de

de

faze

r fa

culd

ade,

me

form

ar,

com

pra

r m

eu c

arro

, m

inha

casa

. A

lmej

a fa

zer

faculd

ade

3

Mas

ain

da

não

dec

idi.

Ten

ho

um

a am

iga

trav

esti

que

faz

enfe

rmagem

e e

la d

iz q

ue

lá e

les

a ac

eita

m n

orm

alm

ente

. E

ntã

o,

acho

que

vo

u f

azer

en

ferm

agem

po

rque

não

tem

tanto

pre

conce

ito

co

mo

no

s o

utr

os

curs

os.

F

azer

enfe

rmagem

, p

ois

meno

s p

reco

nce

ito

3

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184

APÊNDICE C

TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO

Título do estudo: O uso do nome social entre travestis e transexuais como estratégia

de inclusão da diferença

Declaro que fui informado/a sobre os objetivos da pesquisa. Entendo que esta

pesquisa visa investigar o uso do prenome social entre travestis e transexuais, utilizando-

se para isso de entrevistas com formuladores do decreto, além de funcionários/as,

professores/as, gestores/as e alunos/as da escola investigada.

Estou ciente de que as entrevistas serão gravadas em áudio, sendo que a

pesquisadora se comprometeu a utilizar os dados obtidos de forma a preservar o

anonimato, não divulgando minha voz ou revelando dados que permitam que eu seja

identificado/a e que possam me ocasionar prejuízos de qualquer natureza.

Entendo que minha participação é totalmente voluntária e que, durante a realização

da entrevista, poderei interrompê-la no momento em que desejar sem ser em nada

prejudicado/a.

Desse modo, concordo em participar do estudo e cooperar com a pesquisadora.

Entrevistado/a:

Nome: RG:

Data: ___/___/20___. Assinatura:

Testemunha:

Nome: RG:

Data: ___/___/20___. Assinatura:

Testemunha:

Nome: RG:

Data: ___/___/20___. Assinatura:

Pesquisadora:

Nome: Maria Lúcia Chaves Lima RG: 258020

Data: ____/___/20___. Assinatura:

Page 186: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … Lucia... · Interlúdio 2: Jenifer, Brenda e suas diferenciações identitárias 43 2.1 “Precisamos verdadeiramente de um verdadeiro

185

ANEXO A