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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais Henrique Tavares Furtado OS LIMITES DO PÓS-ESTRUTURALISMO Belo Horizonte 2012

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS

Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais

Henrique Tavares Furtado

OS LIMITES DO PÓS-ESTRUTURALISMO

Belo Horizonte

2012

Tavares Furtado

Henrique Tavares Furtado

OS LIMITES DO PÓS-ESTRUTURALISMO

Dissertação apresentada ao programa de Pós-

Graduação em Relações Internacionais da Pontifícia

Universidade Católica de Minas Gerais, como

requisito parcial para obtenção do título de Mestre

em Relações Internacionais.

Orientador: Cristiano Garcia Mendes

Belo Horizonte

2012

Henrique Tavares Furtado

OS LIMITES DO PÓS-ESTRUTURALISMO

Dissertação apresentada ao programa de Pós-

Graduação em Relações Internacionais da Pontifícia

Universidade Católica de Minas Gerais, como

requisito parcial para obtenção do título de Mestre

em Relações Internacionais.

________________________________________________________

Cristiano Garcia Mendes (Orientador) - PUC Minas

________________________________________________________

Silvana Seabra Hooper - PUC Minas

________________________________________________________

Diego Santos Vieira de Jesus - PUC Rio

Belo Horizonte, 09 de Março de 2012

Ao Dr. Henrique e à Dra. Alda,

AGRADECIMENTOS

Agradeço aos meus pais, Henrique Silva Furtado e Alda Lúcia Libanio Tavares

Furtado que sempre acreditaram em mim, e me deram a mais importante das ferramentas para

que este trabalho viesse a existir: a criatividade. A razão não liberta o homem, a criatividade o

faz. Por meio dela nos recusamos a viver no “no mundo como ele é” e viajamos por mundos

possíveis, sonhamos. Sem vocês, definitivamente não haveria autor.

Agradeço a Roberta Cerqueira Reis, pelo amor, carinho, paciência e compreensão nos

momentos mais difíceis. Sem o seu apoio eu não teria conseguido finalizar esse projeto. A

Ground Star Ushi, meu cãopanheirinho, pela simplicidade e alegria com a qual me

acompanhou durante todo o processo de escrita. Quando eu estava mais nervoso e angustiado,

você me mostrou que as coisas realmente importantes na vida são a soneca, o papá e as

brincadeiras. Sem vocês dois não haveria contexto.

Agradeço a Silvana Seabra Hooper, que, lá no começo, lá quando ainda pensava com a

paixão ingênua de quem desconhece as amarguras do saber, me introduziu, assim, meio sem

querer, à tese da incomensurabilidade. Essa linda idéia que se opõe a todo e qualquer tipo de

exclusão ou opressão, que respeita a alteridade e a trata com dignidade. Essa tão linda idéia

que nos faz sonhar um dia com uma era da “polifonia”, na qual a única coisa intolerável seja a

“violência metafísica”. Por fim, gostaria de agradecer a Cristiano Garcia Mendes, meu

orientador, que me apresentou o tema do presente trabalho. Desde o primeiro momento em

que pisei na universidade, você esteve, com o perdão da ironia, presente. Agradeço ao homem

que me introduziu a Teoria das Relações Internacionais, e que orientou o processo de

construção desse trabalho com respeito às minhas escolhas e confiança em minha capacidade.

Vocês, meus dois professores; sem vocês não haveria texto.

O único querer-dizer que importa é o meu querer dizer agradecido.

Tempo — definição da angústia. Pudesse ao menos eu agrilhoar-te ao coração

pulsátil dum poema! Era o devir eterno em harmonia. Mas foges das vogais, como a

frescura da tinta com que escrevo. Fica apenas a tua negra sombra: — O passado,

Amargura maior, fotografada (HERRERO; TORGA, 1979, p.93).

RESUMO

O Pós-Estruturalismo das Relações Internacionais – influenciado pelo movimento filosófico

francês das décadas de 1960 e 1970 – teve por objetivo, em sua primeira geração de trabalhos

publicados, desafiar as condições de possibilidade da disciplina enquanto um saber científico.

Walker, Bartelson, Campbell, Thomson, Hansen e Weber elegeram o “conceito de soberania”,

tão problemático quanto superficialmente abordado pelo main stream, como foco de suas

críticas. Compreendendo tal princípio através de uma lógica histórica os autores pós-

estruturalistas contrapõem a pretensão universalista do Realismo estrutural. Para Walker et al.

a condição historicamente situada do conceito de soberania, e sua natureza conformadora do

internacional, impediriam quaisquer conclusões de cunho universalista, que generalizassem e

pressupusessem a transcendentalidade de resultados temporalmente circunscritos. Entretanto,

o objetivo pós-estruturalista de desnaturalização do que se pensava ser mais natural exige a

preservação de algumas premissas inquestionáveis, tidas enquanto, paradoxalmente, naturais.

O presente trabalho visa identificar os limites da crítica pós-estruturalista, bem como

desconstruir a compreensão de tempo histórico que lhe sustenta logicamente, baseada na

oposição metafísica presente/passado.

Palavras-Chave: Pós-Estruturalismo. Teoria das Relações Internacionais. Historicismo

Crítico. Desconstrução. Presente/Passado.

ABSTRACT

The Poststructuralism in International Relations - influenced by the French philosophical

movement of the late 1960's - aimed, in its first generation of published academic works, to

defy the conditions of possibility of the discipline as a scientific knowledge. Walker,

Bartelson, Campbell, Thomson, Hansen and Weber elected “the concept of sovereignty”,

extremely problematic, although superficially treated by the main stream, as the focus of its

critics. Comprehending such principle through a historical perspective the poststructuralists

oppose themselves to Structural Realism's universalist pretension. For Walker et al. the

historical condition of sovereignty, and its constructive nature towards the international,

should prevent any generalist conclusions that presuppose its temporal conscript’s outcomes

transcendence. Nevertheless, Post-Structuralism's denaturalization-of-what-seems-most-

natural demands the preservation of some assumptions untouched, believed to be,

paradoxically, natural. The present work aims to identify the limits of poststructuralist's critic

as well as to deconstruct the comprehension of historical time that supports its rationale,

based on the metaphysical opposition present/past.

Keywords: Poststructuralism. Theory of International Relations. Historicism. Genealogy.

Deconstruction. Present/Past.

SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ................................................................................................................... 11

2 DA ESTRUTURA À DIFERENÇA ................................................................................... 21

2.1 A Filosofia da Diferença ................................................................................................... 37

2.2 O Pós-Estruturalismo Nas Relações Internacionais ...................................................... 53

2.2.1 Walker ............................................................................................................................. 53

2.2.2 Thomson .......................................................................................................................... 57

2.2.3 Weber .............................................................................................................................. 59

2.2.4 Bartelson ......................................................................................................................... 61

2.2.5 Campbell ......................................................................................................................... 64

2.2.6 Hansen ............................................................................................................................ 68

3 O IMPERATIVO CONTEXTUALISTA .......................................................................... 73

3.1 O Contexto em “Inside/Outside” .................................................................................... 80

3.2 O Contexto em “Writing Security” ................................................................................. 86

3.3 O Contexto em “A Genealogy of Sovereignty” .............................................................. 95

4 A DESCONSTRUÇÃO DO TEMPO .............................................................................. 102

4.1 Passado/Presente como Dualidade Historicamente Situada ....................................... 102

4.2 Presente/Passado como Oposição Metafísica ............................................................... 119

5 CONCLUSÃO .................................................................................................................... 139

REFERÊNCIAS ................................................................................................................... 143

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1 INTRODUÇÃO

When liberty comes with hands dabbled in blood it is hard to shake hands with her.

(WILDE apud KILLEEN, 2007, p.89)

Existem inúmeras formas de se contar a história das Relações Internacionais (RI)

enquanto campo do conhecimento humano (WIGHT, 1966; NEUMANN; WÆVER, 1997). A

maior parte delas faz referência ao chamado Neo-Realismo, ou Realismo estrutural, como

uma abordagem marcante. A teoria de Kenneth Waltz (1979) auxiliara a estabelecer os limites

da disciplina de RI, bem como provê-la de legitimidade, enquanto um saber autônomo. Sua

concepção de anarquia sistêmica confirmava a necessidade de uma ciência outra, que não a

ciência política, que se voltasse para os fenômenos inter-estatais.

As repercussões foram enormes. O Neo-Realismo prometia ao jovem e

desarticulado saber um espaço que lhe fosse reservado por direito, uma ferramenta

parcimoniosa com alto grau de previsibilidade e uma agenda restrita, que lhe fosse específica.

Acima de tudo ele prometia o status de conhecimento científico, a seriedade e o respeito que

dele advinham.

Mas nada é assim tão fácil. Após a euforia inicial as críticas à teoria waltziana

começaram a aparecer. Primeiro vieram os liberal-institucionalistas (KEOHANE; NYE, 2001;

KEOHANE, 2005) argumentando que os efeitos da chamada “interdependência complexa”

mitigariam um dos mais importantes princípios da doutrina realista: a busca estatal pela

sobrevivência. Em um mundo no qual os laços econômicos se tornavam cada vez mais fortes

a tendência seria a política de poder se tornar cada vez mais rara, ou ao menos mais custosa.

Os Estados, antes de buscarem a estratégia do self-help, da auto-ajuda, se ajudariam,

cooperariam, talvez a ponto de se estabelecer uma espécie de “divisão do trabalho”, ainda que

incipiente. A cooperação, em um primeiro momento técnica, tenderia a se desdobrar para a

política (HAAS; SCHMITTER, 1964).

O Institucionalismo e o Realismo eventualmente chegaram a um “mínimo

denominador comum”, no processo chamado de “síntese neo-neo” por Neuman et al (1997).

Os seguidores das duas teorias perceberam que mantinham mais pontos em comum do que

propriamente divergências, como admitiria Keohane (1988).

Mas tão logo se dera a trégua tão logo surgiria uma nova ameaça. Na década de 1990

aparecia para as RI a “meta-teoria” construtivista (KRATOCHWIL, 1989; ONUF, 1989;

RUGGIE, 1993; KUBÁLKOVÁ; ONUF et al., 1998; WENDT, 1999). Baseado num misto de

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teoria social weberiana (2004) e guiddensiana (2009), o Construtivismo visava analisar as

chamadas “variáveis ideais” ausentes nas análises excessivamente “materialistas” do

Realismo e do Institucionalismo. Em suas vertentes “fraca” e “forte” (HASENCLEVER;

MAYER et al., 1997) a abordagem contemplava aspectos da realidade intersubjetiva, como

normas, regras, valores, identidades e aprendizado, relacionando-os ao processo de tomada de

decisão. Ademais, o Construtivismo retomava o problema agência-estrutura anunciado por

Waltz (WALTZ, 1959) trazendo novas questões – equacionando tanto estrutura (sistema)

quanto agentes (unidades) em uma ferramenta de co-constituição (WENDT, 1987;

DESSLER, 1989; WIGHT, 2006) - que contrapunha a redução dos fenômenos políticos às

explicações de “terceira imagem” realistas.

O Construtivismo, embora introduza uma preocupação relevante quanto à questão

identitária, incorreria no erro de tratá-la superficialmente. Sem a devida atenção à virada

lingüística, autores como Wendt (1999) teriam jogado de lado a oportunidade de desconstruir

axiomas presentes no pensamento realista – como, por exemplo, a idéia do estado enquanto

um ator unitário - e, ao contrário, os teriam reificados (ZEHFUSS, 2002). A incapacidade em

perceber a arbitrariedade da distinção entre uma realidade material e outra ideal, ou

discursiva, também seria um problema dessa abordagem, que trata o mundo objetivo como

uma espécie de limite às construções sociais. A despeito de seu caráter crítico, a meta-teoria

construtivista não parecer ter ido satisfatoriamente longe em sua contestação. Uma espécie de

“ortodoxia” disciplinar manteria sub-otimizado o potencial de sua “heterodoxia” teórica

(GUZZINI; LEANDER, 2001).

À margem da disputa entre a síntese neo-neo e os construtivistas emergia um grupo

heterogêneo de pensadores que, influenciados pela Filosofia Francesa Contemporânea,

rejeitavam algumas das mais importantes premissas realistas, liberais e construtivistas. Esse

grupo de autores, absolutamente ignorado pela tradição da disciplina (CAMPBELL, 1995) foi

chamado de Pós-Estruturalismo, ou Pós-Modernismo, por sua postura crítica em relação aos

conceitos de “verdade” e “ciência”, particulares à rationale moderna (BEST; KELLNER,

1991). Para os pós-estruturalistas, as Relações Internacionais estariam completamente

emaranhadas em axiomas e conceitos não problematizados, que, tido enquanto naturais

(verdadeiros), disfarçavam a natureza histórica da disciplina.

Simplificadamente, o Pós-Estruturalismo das RI é um movimento de re-introdução do

estudo histórico no pensamento sincrônico-estrutural. A fim de problematizar as dicotomias

fundamentais ao estudo metafísico-científico do internacional, os “pós-modernos” se valem

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de dois teóricos em especial: Michel Foucault1 (1987; 1997; 2008) e Jacques Derrida (1994;

2008; 2009). O projeto pós-estruturalista poderia, sem grandes problemas, ser articulado

como uma tentativa de desconstrução - o processo de evidenciar as aporias inerentes à

rationale de uma determinada teoria ou saber- por meio de uma metodologia genealógica -

uma forma de história do presente (BARTELSON, 1995) que demonstra a construção de

grandes narrativas, a transcendentalização do que seria histórico por natureza.

O conceito de soberania tornou-se o foco principal da crítica pós-estruturalista por ser,

de acordo com Walker (1993) Thomson (1994), Weber (1995) Bartelson (1995), Campbell

(1998) e Hansen (2006), aquilo que definiria o internacional enquanto campo específico de

estudo, a verdadeira fonte de heterogeneidade entre os domínios “doméstico” e “externo”.

Como sua condição de possibilidade, pois, as RI precisariam separar qualitativamente os

fenômenos que acontecem na dimensão internacional, daqueles que acontecem na dimensão

doméstica. Dever-se-ia seccionar a realidade política entre o espaço para dentro do estado, o

inside, e ao espaço para fora deste, o outside.

Essa divisão basilar, na medida em que provê a justificativa para o estabelecimento de

um campo do conhecimento, por definição, não poderia ser problematizada. De maneira

análoga, os conceitos de estado enquanto unidade monopolística do uso da força

(THOMSON, 1994) e possuidora de uma identidade essencial, anterior à prática e exterior ao

discurso (CAMPBELL, 1998; HANSEN, 2006) serviriam como premissas que possibilitariam

os estudos sobre o internacional. Ora, uma vez que se visa construir uma ciência do

comportamento entre Estados, um saber que se pretenda parcimonioso, objetivo e

universalizante, é imperativo que se assuma uma existência quase auto-evidente destes. Para a

crítica pós-estruturalista, todavia, esse tipo de assunção é prejudicial a uma compreensão da

realidade histórica. Ao universalizar, e atribuir uma espécie de essência ou natureza imutável

a fenômenos tanto social quanto historicamente construídos, mascara-se o caráter arbitrário de

suas construções, bem como sua reprodução dinâmica, não linear e por vezes contraditória ao

longo do tempo. Em outras palavras, é deixado de lado o fato de que as coisas nem sempre

foram como são hoje.

Mas, novamente, nada é assim tão fácil. Enquanto objetivamente visem desconstruir

aquilo que julgam “não-problematizado” pela literatura da disciplina – ou às vezes, a própria

idéia de disciplina - o movimento pós-estruturalista em sua prática histórico-genealógica

vislumbra uma dificuldade fundamental: como não incorrer nos anacronismos estruturalistas?

1 Optou-se por classificar Foucault, no presente trabalho, como um autor pós-estruturalista a despeito das

polêmicas sobre este assunto (Harland, 1987; Dosse, 1993; Best; Kellner, 1991; Best, 1995).

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Como é possível escrever a história sem deixar nada de fora dela? Com respeito à ciência

política, de acordo com Bartelson (1995), sempre que se deseja estudar a história de um

determinado conceito começa-se por conceituá-lo. Todavia, ao conceituar algo, o observador

congela seu entendimento no tempo, e agrega fenômenos com infinitas possibilidades de

significação - não concebidas no presente - sob um mesmo termo. Ao fazê-lo, ao construir

uma “história do conceito” automaticamente se retira toda historicidade conceitual que se

desejava buscar.

A resposta de Bartelson é complexa: “ao abordar a ciência política como um modo de

escrita ao invés de um modo de existência, nós podemos nos situar enquanto observadores

separados na história, e podemos impedir que nossa separação dependa de algo fora dela”

(BARTELSON, 1995, p.5, tradução nossa).2 Infelizmente, talvez não seja esse o caso. O Pós-

Estruturalismo, mesmo como abordagem crítica que se entende enquanto historicamente

situada, faz sua “separação” dependente de algo fora da história.

A genealogia como um método de análise faz parte da tradição moderna

historiográfica (FASOLT, 2004). Em sua essência - se é possível falar em uma essência

genealógica - esse tipo de fazer histórico visa demonstrar o caráter artificial do processo de

conceitualização, evidenciando modificações semânticas ao longo do tempo. Isso é dizer que,

resumidamente, o que entendemos hoje por x não necessariamente era entendido como x em

outros períodos históricos. Através de uma concepção diacrônica da langue, excluída por

Saussure do movimento estruturalista, (HARLAND, 1987; DOSSE, 1993) a genealogia busca

mostrar as descontinuidades históricas de determinados conceitos/fenômenos. A genealogia se

coloca em oposição a uma história de caráter científico, documental, e positivista, contra

qualquer visão anacrônica do passado.

E a história da teoria das RI, pelo caráter cientificista de seu main stream, é repleta de

anacronismos. A principal unidade de análise do campo, por exemplo, o estado-nacional em

sua forma monopolista do uso da força, é algo relativamente recente (THOMSON, 1994) e a

presumida anarquia internacional, princípio regulador dos constrangimentos sistêmicos, viu-

se por vezes superada por relações hierárquicas entre as unidades políticas (KAUFMAN;

LITTLE et al., 2007). Ademais, a própria lógica da balança de poder e da realpolitik -

pensadas enquanto princípios a-históricos de funcionamento do sistema internacional - são

também idéias que foram forçadas a extrapolar as fronteiras da era na qual foram concebidas.

2 By approaching political science as modes of writing rather as modes of being, we can situate ourselves as

detached spectators within history, and can avoid making our detachment dependent on something outside it.

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A arqueologia/genealogia pressupõe o estudo dos fenômenos político-sociais enquanto

fenômenos históricos, isto é, concebidos à luz de um tempo que lhe sejam específicos. Tal

especificidade do contexto com relação aos fenômenos que nele ocorrem, não obstante,

necessita de uma clara diferenciação entre passado, presente e futuro.

Uma diferenciação que em si mesma, não é natural, mas também fruto de seu tempo.

Nem sempre os homens lidaram com a temporalidade da forma como a historiografia o faz.

Das civilizações pagãs às revoluções científicas, a passagem do tempo transformou o sentido

atribuído ao próprio tempo. A História, como tudo, é histórica em sua essência, embora tal

característica lhe seja constantemente negada. No fim, isso levanta um paradoxo lógico do

Pós-Estruturalismo: o movimento incorre no mesmo “problema” que supõe “resolver”.

Isso abre espaço para críticas mais fortes. Não seria implausível questionar os autores

pós-estruturalistas sobre a validade de seu projeto de desconstrução. Obviamente, não se trata

de questionar a idoneidade dos mesmos, mas apenas de atentar para as condições de

existência de suas “teorias”, que revelam na natureza incoerente do pensamento, as limitações

próprias ao exercício metafísico.

Nesse sentido poder-se-ia questionar essa espécie de “desconstrução conveniente”, ou

ao menos arbitrária feita por Walker, Bartelson, Campbell et al. Ora, por que se deve manter a

história intocada quando o objetivo explicitado é a desnaturalização daquilo que nos parece

mais natural? O que há na história que a faz diferente de todo o resto? Não parece fazer

sentido algum manter a fonte de toda a historicidade do mundo, ela mesma, a-histórica. Mas,

talvez faça. Afinal, não se poderia pensar numa genealogia que se voltasse contra si mesma,

concebendo o esforço contextualista como um simples meio entre outros possíveis.

O presente trabalho, pois, pretende explorar esse aparente paradoxo pós-estruturalista

de modo a desconstruir a oposição metafísica que norteia seu estudo histórico genealógico. A

saber, a divisão da dimensão temporal em passado, presente e futuro reporta à história do

pensamento metafísico ocidental, que fora construído - a partir do princípio de não-

contradição- através do privilégio da presença (ser) sobre a ausência (não-ser).

A desconstrução, termo que vem sendo freqüentemente usado, mas raramente

explicado de maneira clara, diz respeito ao método, ou não-método, criado pelo filósofo

francês Jacques Derrida (HARLAND, 1987; DERRIDA, 1994; CULLER, 1997; STOCKER,

2006; DERRIDA, 2008; 2009). O propósito de sua utilização é semelhante ao da história

foucaultiana: evidenciar, através das vicissitudes e contingências de um tempo fluido,

inapreensível no instante, a ilusão logocêntrica da essência/estrutura/ontologia.

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Existem algumas maneiras diferentes de se desconstruir uma oposição metafísica.

Duas delas, que nos são particularmente interessantes, serão utilizadas aqui: através de um

esforço historiográfico genealógico, e da inversão axiológico-epistemológica dos termos da

oposição. De acordo com Culler:

Desconstruir a filosofia é trabalhar através da genealogia estruturada de seus

conceitos, da maneira mais escrupulosa e imanente, mas ao mesmo tempo

determinar, de uma certa perspectiva externa que não pode descrever ou nomear, o

que essa história pode ter ocultado ou excluído, constituíndo-se como história

através dessa repressão. (CULLER, 1997, p.100).

Ou, a desconstrução pode ser utilizada:

Como uma estratégia dentro da filosofia e uma estratégia para lidar com a filosofia

[...] Em uma tradicional oposição filosófica, não temos uma pacífica coexistência de

termos contrapostos, mas uma violenta hierarquia. Um dos termos domina o outro

(axiologicamente, logicamente, etc.), ocupa a posição de comando. Desconstruir a

oposição é, acima de tudo, reverter a hierarquia em determinado momento.

(CULLER, 1997, p.99).

A desconstrução se faz necessária na medida em que as oposições metafísicas

fornecem estruturas de hierarquização valorativa. Tomemos como exemplo a oposição entre

presente/passado3, fundamental às bases do pensamento histórico (FASOLT, 2004; HOOPER,

2007) bem como do movimento pós-estruturalista. Enquanto uma oposição pertencente à

história da metafísica, ela valoriza o primeiro termo como superior, no caso o presente, em

detrimento do segundo termo, o passado. Esta simples e aparentemente inofensiva hierarquia

movimenta o saber histórico historicista no sentido de buscar um presente (passado) que não

se tem acesso dada sua ausência. Em outras palavras a dicotomia gera a prática do imperativo

contextualista, uma prática disciplinar que serve à definição daquilo que é ou não é uma “boa

história”.

A metafísica é pura política. Ela diz responsável, em seu exercício de definição dos

conceitos, pelo estabelecimento de relações de alteridade e superioridade axiológica que

norteiam práticas discursivas de dominação. Culler (1997) e Hansen (2006) identificam

alguns exemplos das perversas conseqüências institucionais da oposição homem/mulher. Da

mesma forma Derrida (2008) identifica a valorização da escrita fonética sobre a hieroglífica,

catalisadora de um etnocentrismo ancorado na oposição fala/escritura e Hooper (2007) analisa

a separação entre História e Literatura, fruto da oposição fato/ficção.

3 As razões da exclusão do tempo futuro da oposição passado/presente serão elucidadas mais adiante.

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Portanto, a partir do momento em que os autores pós-estruturalistas se utilizam de uma

oposição metafísica para desacreditar o conhecimento construído por abordagens estruturais,

eles cometem uma ação política, um gesto que evidencia mecanismos de “dominação”. Um

gesto de negação das possibilidades apresentadas pelo “outro”, um “outro” totalitário, é

verdade, mas ainda assim um “outro”. Negando a verdade a um saber, ao mesmo tempo em

que festeja a diferença (1998). Identificando a opressão de outrem, no mesmo instante em que

lhe oprime.

A arbitrariedade das oposições metafísicas, e a conseqüente opressão injustificável que

delas se segue, é fruto da incomensurabilidade entre suas possibilidades. Não é possível aferir,

por exemplo, se a escritura fonética é melhor do que a hieroglífica, ou se a verdade é melhor

do que a ficção. Isso simplesmente porque não existam critérios comuns – uma espécie de

linguagem neutra e objetiva – através da qual diferentes conjuntos lexicais seriam traduzidos

(KUHN, 2007). A única forma de definição é através da violência, da imposição “unilateral”.

Ouvimos sem qualquer justificativa que o primeiro termo da oposição é superior ao segundo,

e mesmo quando se dão ao trabalho de justificar, fazem-no segundo critérios que são

estranhos a este. Se a verdade é melhor e nos faz melhores, é porque nos diz a verdade.

Quando muito, as justificativas adotam a estratégia de sobreposição das oposições. A verdade

é boa porque nos dá os fatos. Os fatos são melhores porque nos levam à verdade. Que isso

seja tautológico é o mínimo que se possa dizer.

Poder-se-ia, e é comum observá-lo em autores Neo-Marxistas como Cox (1987)4,

justificar essa “violência metafísica”, essa opressão, com base no projeto político adotado

pelo opressor. Assim, aqueles que possuíssem um projeto político cujos resultados

melhorassem de alguma forma o status quo, ou a condição social daqueles por ele atingidos

teriam seus gestos de violência justificados. Com relação aos pós-estruturalistas das RI, que,

de acordo com alguns (NEUMANN; WÆVER, 1997; NOGUEIRA; MESSARI, 2005)

sofreram uma espécie de preconceito, dada sua filiação teórica por parte do main stream – do

Neo-Realismo opressor – a violência do imperativo contextualista sobre as análises

sincrônicas seria justificável. A rigor, desconstruir o princípio da soberania e as bases de

legitimação da disciplina de RI, sem desconstruir a idéia da passagem do tempo enquanto

variável significativa seria justificável se desse fim à opressão, ou a reduzisse a níveis

menores do que os apresentados pelo projeto científico realista.

4 Agradeço ao professor Dr. Leonardo Ramos por me advertir desse fato.

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Parece-nos que essa postura não resolve a questão, mas a realoca. Ora, o princípio de

legitimação da violência passa da “verdade”, um princípio epistemológico, para o “projeto

político” um princípio axiológico. Certo, mas a incomensurabilidade em si não é contornada.

Ainda que julgássemos entre projetos políticos não haveria critérios objetivos para que

pudéssemos definir o melhor. Mesmo se pensássemos em termos quantitativos, associando o

sentido de “melhor” a um menor grau de opressão – entendida enquanto discordância – ou a

um menor número de pessoas oprimidas, por exemplo, ainda nos depararíamos com o

incomensurável. Ainda estaríamos frente à questão impossível de ser respondida, à violência

irredutível do pensamento: por que um e não outro?

O que faz da presença do contexto preferível à ausência? E o que faz daqueles que a

empregam mais certos que outros? (In)justiça seja feita, ao longo das obras aqui analisadas,

em momento algum os respectivos autores afirmam sua superioridade em relação aos

estruturalistas. Contudo, por suas retóricas, pela estrutura de seus argumentos e, no limite,

pela existência das próprias obras, não seria implausível interpretá-los dessa maneira. O que

eles querem realmente dizer? Não podemos e – espera-se ao final do texto que fique claro o

porquê- não precisamos saber, não nos faz diferença alguma. O hedonismo já serve ao Pós-

Estruturalismo como uma justificativa válida.

Assim, partimos para a desconstrução do contexto enquanto variável metodológica

indispensável na compreensão dos fenômenos político-internacionais. Se não há lógica capaz

de justificar a escolha entre incomensuráveis que não incorra em imposição e violência, então

não há razão para se sustentar o imperativo contextualista da historiografia, frente à análise

sincrônica estrutural.

No primeiro capítulo do presente trabalho - Da Estrutura à Diferença - é exposta a

origem histórica do Pós-Estruturalismo das RI. Descrevem-se as teorias que deram início ao

movimento estruturalista da década de 1950, bem como aquelas que fizeram surgir o Pós-

Estruturalismo na França de 1968. São apresentadas as diferenças espacialmente concebidas

na lingüística geral de Saussure - uma espécie de introdução do estudo diacrônico das ciências

sociais - e suas conseqüências para a antropologia estrutural de Lévi-Strauss, a psicologia de

Lacan, a semiótica de Barthes, o novo Marxismo de Althusser e até o Neo-Realismo de

Waltz. Quanto ao Pós-Estruturalismo, são apresentadas as contribuições históricas de

Foucault, Lyotard, Baudrillard, Deleuze e Guatarri. Ao longo de todo o processo é

evidenciada a forma como tanto estruturalistas quanto pós-estruturalistas se opõe ao

pensamento individualista anglo saxão, e constroem o que Harland (1987) chama de

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“Superestruturalismo”. No fim, vislumbram-se, ainda, as influências da “filosofia da

diferença” para a Teoria das Relações Internacionais, através do trabalho de Walker,

Campbell, Bartelson, Thomsom, Weber e Hansen, pensado em oposição ao Estruturalismo de

Waltz.

No segundo capítulo – O Imperativo Contextualista - é abordada a história do

estabelecimento da História enquanto disciplina científica, e da construção de seu “outro”,

outrora indissociável, a Literatura. Por meio da oposição fato/ficção. Introduz-se as diferentes

formas do fazer histórico contemporâneo: o modelo documental positivista, a hermenêutica e

a genealogia. Faz-se, também, uma análise das obras Inside/Outside, de Walker (1993);

Writing Security, de Campbell (1998) e A Genealogy of Sovereignty, de Bartelson (1995).

Tenta-se, sobretudo, revelar a utilização do imperativo contextualista por parte desses autores,

identificando afirmações que derivem o sentido pleno, o significado dos fenômenos

estudados, do contexto no qual ocorrera. Assim, visa-se convencer o leitor do atrelamento das

obras à tradição da historiografia, mais especificamente do historicismo crítico.

No terceiro e último capítulo – A Desconstrução do Tempo – são colocadas em prática

as duas formas de desconstrução descritas por Culler (1997): a genealogia e a inversão dos

termos da oposição. Em um primeiro momento, discorre-se sobre as mudanças semânticas

ocorridas ao longo do tempo acerca da compreensão do que seja o tempo. Evoca-se o conceito

de Koselleck (2006) de “tempo histórico” a fim de demonstrar como o tratamento dado à

história pelo homem mudou, e como a libertação do lastro entre “expectativas” e

“experiências” é algo relativamente recente. Desse modo, pretende-se argumentar a favor da

historicidade do próprio método contextualista, voltando o exercício genealógico contra si

mesmo, entendendo-o enquanto temporalmente circunscrito. Na segunda parte é descrita a

desconstrução derridiana do “solilóquio” de Husserl. Discorre-se sobre a história da

supervalorização da fala no pensamento ocidental, bem como do modo pelo qual a categoria

tempo desafia todo o esforço de conceitualização metafísico e de superação da multiplicidade

das diferenças na unicidade do mesmo. Pela lógica da différance, argumenta-se que, contrário

à conclusão de Zenão, é a presença, e não o movimento, a “verdadeira” ilusão.

Ao final, conclui-se que o “imperativo” contextualista pode, dado o processo de

desconstrução da metafísica da presença, não ser nada necessário, ou ao menos, não tão

imperativo assim. A desnaturalização do conceito de tempo enquanto uma seqüência de

momentos presentes, de instantes, mina logicamente o argumento diacrônico Pós-

Estruturalista contra a análise transcendental das abordagens sistêmicas. Uma vez que parece

20

não fazer sentido a idéia de “meia presença”, estar pouco ou demasiado longe do contexto é,

no limite, indiferente ao analista. O contexto é inapreensível. A presença, o presente é uma

ilusão macroscópica, fruto da abstração metafísica que mascara a constante fluidez do que

chamamos de tempo.

21

2 DA ESTRUTURA À DIFERENÇA

Entre os anos de 1950 e 1960 um evento singular modificou o cenário das ciências

humanas no mundo, e em especial na França. O chamado paradigma estruturalista emergia

então como o oriente de pesquisa para economistas, historiadores, sociólogos mas, sobretudo,

antropólogos, psicanalistas e semiologistas, as “ciências piloto” do movimento. O êxodo

sistemático de filósofos para a linha de frente da vanguarda estruturalista evidenciou uma de

suas principais características, um tipo de “fuga à metafísica” próxima daquela atribuída às

abordagens behavioristas das RI, ocorrida praticamente no mesmo período (NEUMANN;

WÆVER, 1997). Para tornar o campo das humanidades mais científico, provê-lo de

ferramentas próprias de sistematização e mensuração e, por fim, atribuir-lhe um status

equivalente ao das ciências da natureza, se fazia necessário abandonar o existencialismo

sartreano, a História evolucionista, o cogito cartesiano e, como conseqüência, o sujeito em si.

A noção anglo-saxã de self auto-determinado, possuidor de desejos que lhe são inatos,

naturais, que preexiste à sociedade e quem, no limite, a constrói contratualmente não

sobrevive sob a lógica estrutural.

Quanto ao conceito de “natureza”, seu fim é similar. O paradigma estruturalista não o

concebe, novamente como a tradição anglo-saxã o faz, enquanto um fator determinante,

condicionante sobre as formas de expressão culturais. A relação de causalidade exercida pela

dimensão biológica que suplantaria quaisquer comportamentos, crenças ou valores

supostamente superficiais é terminantemente negada pelo movimento dos anos 1950. O

homem, ou melhor, a sociedade antes concebida tão-só como fruto orgânico de necessidades

instintivas individuais passa a ser vista, ao contrário, como negação das mesmas. Para o

Estruturalismo a cultura não é formada pela natureza ou pelo instinto. Ela os conforma,

moldando-os em prol de sua auto reprodução. Lévi-Strauss elucida esse processo através dos

tabus, dos mitos e da culinária; Durkheim através do totemismo; Lacan pelo desejo do

desejado; Barthes pela mitologia cotidiana e Althusser pela ideologia. É nesse sentido também

que o Estruturalismo se edifica como revolucionário, pois inverte a relação causal

estabelecida pela tradição individualista. Em suas mais diversas variações, a abordagem

estrutural faz prevalecer sobre a natureza e o indivíduo respectivamente as categorias de

cultura e sociedade (HARLAND, 1987). O homo socius é concebido não como um produto de

seu tempo, nem de si mesmo (Self made man), mas do lugar que ocupa na cadeia universal de

22

interações sincrônicas. Este é, ou ao menos parece ser, na efervescente década de 60, o ponto

de convergência entre as ciências humanas, provido pelo então promissor paradigma.

Paradigma porque, de certo modo, o Estruturalismo representou na França, e depois no

restante da Europa e América, a verdadeira possibilidade de unificação do campo das

humanidades. Os trabalhos de Saussure, Lévi-Strauss, Althusser, Lacan e Barthes, e talvez

disso derive o estrondoso sucesso do movimento, poderiam sem maiores problemas serem

classificados como “realizações científicas universalmente conhecidas que, durante algum

tempo, fornecem problemas e soluções modelares para uma comunidade de praticantes de

uma ciência” (KUHN, 2007, p.13), a própria definição kuhniana do termo paradigma. Nesse

caso específico, de praticantes de uma não-ciência, que almejavam vigorosamente o

reconhecimento da academia. Esses proto-cientistas enxergaram sobretudo em Lévi-Strauss o

caminho para fora do segundo plano ao qual eram relegados, e do ocultismo com o qual eram

muitas vezes identificados (DOSSE, 1993). Em outras palavras os humanistas desejavam, de

modo ironicamente lacaniano, o respeito que as ciências duras tinham. No que se constituiria

como sua ciência normal, a abordagem estrutural instigava seus adeptos a buscarem as

relações subjacentes às coisas, invisíveis à experiência empírica, mas que teriam por função

ordená-las, condicioná-las ou determiná-las, dotando-as de sentido.

Estruturalista, porque dizia respeito ao modo como unidades5 que compõe um todo,

que lhes é maior, se organizam. No exemplo da química, a estrutura molecular representa a

maneira pela qual os átomos de determinado tipo estão dispostos uns em relação aos outros. O

que estabelece as propriedades desse emaranhado de partículas que é a matéria não são os

átomos individualmente, mas essa estrutura, essa inter-relação. A analogia estruturalista passa

por essa lógica. Tal como o carbono se torna irrelevante na definição das diferentes

propriedades do diamante e do grafite, o conteúdo do significado se torna irrelevante na

transmissão de sentido. Ambos são exauridos, restando às análises do químico e do

semiólogo, apenas a forma, o molde que, desde o princípio foram exteriores ao carbono e ao

significado. O exemplo é mais frutífero do que possa parecer. Lévi-Strauss, quando indagado

sobre o papel da liberdade individual e do dinamismo coletivo em sua teoria respondera: “O

problema da liberdade não tem mais sentido, no nível da observação em que me situo, do que

tem para aquele que estuda o homem do nível da química orgânica” (DOSSE, 1993, p.209).

Para compreender essa “morte do sujeito da liberdade”, é indispensável adentrar nas

principais correntes teóricas do movimento. Igualmente indispensável é a menção primeira

5 Sob a concepção mais abrangente de Estruturalismo formulada por Piaget (HARLAND, 1987).

23

àquele a quem é atribuído o título de seu pai fundador, Ferdinand de Saussure. A lingüística

de Saussure se contrapõe à tradição individualista das correntes do atomismo e positivismo

lógicos. Conforme já explicitado, tais teorias concentravam seus estudos (enquanto

individualistas) na relação que se tomava por existente entre as palavras (subjetivas) e as

coisas (objetivas) dispersas pela realidade mundana. Em seu entendimento, quando o “homem

primitivo” viu as primeiras faíscas de fogo, por exemplo, o resultado de um material em

combustão, ele criou um som físico e (ou) uma forma visual que o representasse. Essa

conexão entre o signo audiovisual e o objeto exterior seria fundamental para a compreensão

da língua. Sem ela, toda sua razão de ser perderia sentido (SASSURE apud HARLAND,

1987).

A questão é posta de maneira semelhante por Platão em Crátilos (DOSSE, 1993). O

filósofo grego descreve duas concepções contrárias acerca da relação entre cultura e natureza,

que como visto é o ponto em questão da revolução estruturalista. Para Hermógenes, todos os

nomes que por ventura são conectados às coisas físicas são produtos da simples

arbitrariedade; poderiam simplesmente ter sido diferentes. Crátilos, ao contrário, toma para si

que os nomes atribuídos às coisas pelos seres humanos são em verdade símbolos do mundo

natural. Para Crátilos as palavras se situam para as coisas numa relação de naturalidade, o que

mais tarde será interpretado pela episteme clássica (FOUCAULT, 1987) na forma de signos,

de propriedades do mundo a serem descobertas pelos humanos. Para Saussure, Hermógenes

está certo, a linguagem humana é, em si mesmo, um ato de arbitrariedade6.

A partir dai Saussure constrói a lógica de seu Cours de Linguistique Générale. Sua

escolha pela teoria da arbitrariedade da língua o compele a definir uma abordagem lingüística

na qual a figura do referente (a coisa objetiva a qual os signos se remetem) se encontra

excluída. Para Saussure, a langue é um fenômeno que se fecha em si mesmo, e para a

obtenção de resultados cientificamente satisfatórios, seu estudo deve respeitar essa

característica, deve examiná-la em separado. O sentido dessa afirmação se torna claro na

medida em que se compreende a estrutura tradicional do estudo dos signos lingüísticos. Para o

individualismo atomista, um signo é composto de um significado, um significante e um

referente (HARLAND, 1987). O significado é um conceito, uma definição de um referente,

6 Por que as coisas possuem o nome que tem? Porque são os que lhes foram dados. As palavras cadeira, cavalo,

cachorro e cinzas não possuem relação física alguma com os objetos que representam. Elas são simples

combinações fonéticas escolhidas em detrimento de um sem numero de possibilidades. As palavras são

construtos humanos, não signos naturais a serem encontrados. Afinal, se a relação entre os signos e aquilo que

representam fosse natural e objetiva como advoga Crátilos, não haveriam problemas de tradução lexical. Ora,

todos os homens vivem em um mesmo mundo.

24

um objetivo mundano qualquer. No processo de expressar esse significado os homens se

valeriam dos significantes, de formas audiovisuais, como uma letra, um desenho ou um som,

que se refeririam ao significado que, por sua vez, se referiria ao objeto físico. A palavra ou o

som “grama” (significante), por exemplo, teria por significado uma espécie de vegetal

comumente encontrada nos campos, que em última instância, se conectaria ao vegetal em si,

seu referente e sua razão de ser.

Para a lingüística Saussuriana, essa não é a maneira própria de acessar o sentido da

língua. O referente, a realidade exterior é de pouca utilidade para a substância da linguagem,

tampouco sua razão de ser. O sentido só pode ser acessado através da relação entre

significado e significante, e somente por meio dela. Mas é o significante realmente objetivo

como o pensamento atomista entende? Uma expressão da mente ou do bom senso cartesiano?

Se assim fosse, a transferência de sentido e a comunicação significativas em si mesmas seriam

impossíveis, por duas razões principais: cada ser humano estabeleceria um significante

diferente a um significado e, ainda que se compartilhasse de uma mesma linguagem, as

diferenças nos desempenhos individuais dos sons significantes impossibilitariam a

transmissão e apreensão de sentido. Cada ser humano pronuncia as palavras que tem

conhecimento de uma maneira singular, que lhe é única. Entretanto, a despeito do falar baixo,

do gritar, do murmurar, das inúmeras diferenças de sotaque em um determinado grupo

lingüístico e das mais diversas patologias que comprometem parcialmente a fala, ainda é

empiricamente possível dizer e ser compreendido. Por quê? Porque a linguagem independe de

sua expressão física, porque langue (língua) é bem diferente de parole (fala), e a correlação

significativa que envolve significados e significantes naquela independe desta. Diferenças na

fala são apenas turbulências superficiais que, contanto que não prejudiquem a estrutura de

posicionamento dos significantes na langue, não comprometem a transmissão de sentido.

Para aquilo que Saussure denominou como teoria do valor (HARLAND, 1987;

DOSSE, 1993) o sentido dos signos lingüísticos não é atribuído por seu significado, este esta

ausente, tal como o átomo de carbono, se encontra exaurido na determinação das propriedades

do significante (diamante). Para compreender o sentido das palavras, não se pode tomá-las

individualmente, não querem dizer nada. Há de se vislumbrar a estrutura da língua, a cadeia

de significação que une significantes e que os dota de utilidade na medida em que estão

dispostos uns para com os outros. Vide o exemplo da palavra aborto. É possível compreendê-

la em toda sua magnitude simplesmente tendo aprendido seu significado? De nada adianta

saber que conceitualmente diz respeito à expulsão forçada de um feto da cavidade intra-

25

uterina. Que significância isso poderia ter? Essa descrição biológica da palavra? Nenhuma. O

sentido de aborto aparece quando relacionado a outros significantes como cristianismo, vida,

morte e família. É somente por essa inter-relação profunda, essa cadeia de significação que é

atribuído sentido ao significado. É isso que se denominaria mais tarde por estrutura da língua.

Essa prática de ontologização da estrutura (DOSSE, 1993), de atribuir alguma

materialidade, algum nível de existência a algo imperceptível é chave indispensável do

pensamento estruturalista, razão pela qual Saussure passa a se tornar referência para todos os

adeptos do movimento. E a ponta de lança dessa difusão é Claude Lévi-Strauss, que adapta a

ferramenta relacional da lingüística sistêmica ao estudo dos povos “não civilizados”.

A Antropologia Estrutural de Lévi-Strauss se baseia principalmente nas obras de

Emile Durkheim acerca da constituição do pensamento religiosos nas comunidades humanas e

de Marcel Mauss, sobre o caráter econômico, proto-mercadológico do sistema de

compensação de presentes nas primeiras aglomerações humanas. Da juventude marxista, o

antropólogo francês aprendeu que a ciência não deveria ser construída em torno de questões

superficiais, super-estruturais, que não fossem capazes de acessarem o âmago dos fenômenos

estudados (DOSSE, 1993). Outra importante contribuição seria feita ainda pelo lingüista russo

Jakobson, que levaria o trabalho de Lévi-Strauss na direção da lingüística estrutural de

Saussure.

A inspiração em Durkheim se dá através de seu estudo das razões do advento da

religião pelo homem primitivo. Ao contrário da lógica individualista, Durkheim não considera

a cosmogonia, os mitos e as definições religiosas como formas de compreensão errônea,

ingênuas e mal concebidas da realidade concreta que as rodeia. O esforço de concepção

místico dessa realidade, sob a lógica da tradição anglo-saxã, nada mais seria que meras

analogias mal concebidas, pré-científicas, que responderiam por explicações de fenômenos

observados pelo homem. Ao andar pela savana num dia tempestuoso, por exemplo, o

indivíduo ancestral avistaria um raio que incidisse sobre um arbusto qualquer, incendiando-o.

Em sua mente pouco desenvolvida, poderia significar o presente de uma entidade que lhe

fosse superior, para que pudesse se aquecer e se secar. Automaticamente, associaria à

entidade as características de majestosidade (pelo estrondo do raio) e benevolência, pela

preocupação para consigo.

De modo similar, outro homem primitivo poderia atribuir à mesma entidade a

característica de vingativa, por tentar quebrar uma pedra e perceber que sua mão começara a

sangrar. A vingança se faria presente na dor e no ferimento infringido pela tentativa de

26

destruir parte de sua criação. Para o individualismo, tais exemplos não passariam de

evidências da incapacidade do homem primitivo em conceber as relações causais dos

processos de combustão iniciado pela grande descarga elétrica sobre o arbusto e de reação

pela força inicial exercida sobre pedra. Incapacidades que o homem moderno, “civilizado”

fora capaz de superar.

Mas esse não é o modo como Durkheim enxergar a vida primitiva. Em primeiro lugar,

os exemplos acima se tratam ambos de casos de observações empíricas seguidas por

analogias, pela interpretação. Isto é simplesmente incompatível com a concepção

estruturalista durkheiminiana, de um todo que excede as propriedades individuais das partes.

Em primeiro lugar, não pode haver observação isenta de interpretação. Se os humanos

possuem a capacidade de interpretação e de abstração é porque lhes foram introjetadas por sua

própria comunidade lingüística. No limite, não conseguiríamos sequer pensar sem uma língua

primeira. Tendo isso em vista, não seria possível que um indivíduo sozinho, primordial

provesse significado a fenômenos naturais observados, pois:

[…] o homem não cria a língua, ele a fala mas ela lhe foi ensinada por seu grupo; ele

não inventa seus métodos de trabalho, ele os aplica, mas os utiliza presentes na era

na qual emergem; ele não inventa sua própria religião, mas professa uma pré-

existente, simplificadamente, ele deve ajustar seu modo de pensar, sentir e agir de

acordo com o socialmente aceito. (DURKHEIM apud WIGHT, 2006, p.66, tradução

nossa).7

Em outras palavras, nunca existiu esse homem primordial, esse indivíduo autônomo

senhor de suas vontades, pai de sua própria interpretação. E mesmo que de alguma maneira

ele tenha existido certamente foi a criatura mais vulnerável da natureza: um homem sozinho

(HARLAND, 1987). Os fenômenos religiosos devem ser entendidos em função da verdadeira

fonte de sua interpretação, da sociedade que o constitui em seu favor. É nesse sentido que

Durkheim discorre sobre a divisão do mundo em duas esferas distintas e contrárias, o sagrado

e o profano, presentes nos mais diversos fenômenos míticos. Com essa divisão a sociedade

(representação coletiva), seria capaz de constituir duas classes opositivas, compostas por todas

as coisas que existem, estando uma valorada em detrimento da outra. A partir dessa dicotomia

o reino do sagrado deveria ser blindado, protegido do reino do profano através de uma série

de tabus e restrições. Essa fronteira estabelecida, esse território conscrito em abstrato

7 […] (wo)man does not create the language (s)he speaks, but learns it from his/her group/society; (s)he does not

invent the methods of work (s)he applies, but uses those present in the era in which (s)he emerges; (s)he does not

invent his/her own religion, but professes one of those which already exist. Put simply, (s)he must adjust his/her

ways of thinking, feeling and acting to the ways accepted by society.

27

chamado de sagrado delimitaria duas classes distintas de seres humanos: aqueles que estão

dentro, que pertencem a ele, e os que estão fora, excluídos.

Essa imposição arbitrária de diferenças em seres biologicamente semelhantes e entre

espaços naturalmente homogêneos serviria a um propósito fundamental. Sua razão? Coesão

Social. Estabelecer um domínio e práticas que sejam compartilhadas por um grupo gera a

sensação de pertencimento, de possuir algo em comum. A particularidade do sistema de

totemismo seria justamente fornecer tais componentes de agregação para os vários clãs de

uma tribo qualquer. Tomando os exemplos do homem primitivo descritos acima, poder-se-ia

dividi-los em dois clãs, sob o signo de dois elementos que os representariam, que proveriam

analogias sobre seu modus vivendi, que lhes dariam um papel específico a ser exercido: Os

clãs do “fogo” e da “pedra”, por exemplo.

Aos integrantes do primeiro clã, caberia o cuidado ao fogo, à dádiva primorosa de sua

divindade mãe. Ao segundo, restaria proteger a criação, o solo, as rochas, as árvores, como

punição talvez a heresia primeira de seu membro ancestral: a tentativa de destruir o que seu

deus fizera. Esses homens deveriam se certificar que mais ninguém além deles, guardas de

seu deus impiedoso, quebrassem pedras, cortassem árvores, arassem o solo. As diferenças de

tabus e funções delimitariam o espaço sob o qual os integrantes dos dois grupos se

identificariam. A religião não era uma resposta ingênua a fenômenos naturais, era uma

resposta engenhosa às demandas sociais.

Mas há uma questão não respondida por Durkheim8. Em meio a tantos fatores de

diferenciação, o que seria capaz de, uma vez tendo os clãs se unificado, unificar também a

tribo como um todo? A partir dessa incógnita Lévi-Strauss trabalharia a questão da

comunicação, de um tabu universal em especial que seria o verdadeiro responsável pela

organização humana na forma de sociedade. Um tabu que até então não havia sido tratado de

maneira satisfatória, ora por explicações atomistas, ora por estudos por demais focados no

fenômeno em si, e não na cadeia de significação subjacente. O primeiro objeto de analise da

antropologia estrutural, de Lévi-Strauss, foi a prática da proibição dos casamentos

consangüíneos, o tabu do incesto.

As explicações mais comuns para a proibição do incesto nas sociedades humanas se

utilizavam de razões biológicas. Parecia claro como água que se tratava de uma defesa

instintiva do homo sapiens contra as horrendas conseqüências do casamento consangüíneo

8 Ou de acordo com Harland (1987) respondida insatisfatoriamente.

28

(DOSSE, 1993). Somava-se a isso, a crença9 na prática do casamento como tendo por única

finalidade a reprodução da espécie. A lógica fechava perfeitamente. Ao final tudo faria

sentido ao funcionalismo teleológico.

Isso, todavia, era exatamente o contrário daquilo que orientava o movimento

estruturalista. Essas explicações focam a observação no fenômeno em isolado, em seu

epicentro. Tenta-se apreender seu sentido em si mesmo, em sua essência. Contudo, sob a

lógica estruturalista, esse esforço é tão em vão quanto tentar acessar as propriedades de um

átomo de carbono, ou compreender uma palavra por sua definição conceitual. O sentido do

tabu do incesto não reside no fato, mas em seu posicionamento relativo na cadeia de

significação, particularmente às práticas do casamento e do totemismo. O sentido desses

termos só se mostra quando são contrapostos. É através da proibição dos casamentos

consangüíneos que a tribo, divida em inúmeros clãs com alto grau de coesão interna, em vista

da dicotomia sagrado/profano, mas com fracos vínculos entre si (não possuem razões para se

perceberem como iguais), torna-se una. É pela proibição do incesto que a sociedade emerge.

A lógica do totemismo, ainda que artificial e arbitrária, implica invariavelmente na

diferenciação entre os clãs de determinada tribo. Esse tipo de disparidade cria por si só um

nível de interdependência entre os clãs na exata contramão da maneira pela qual a

indiferenciação das unidades sistêmicas em Waltz (1979) leva à política do self-help.

Voltando ao caso fictício, por serem proibidos de cortarem árvores e moldarem pedras, os

homens do clã do Fogo tornam-se dependentes dos homens do clã da Pedra para a construção

de suas moradias e seu armamento (arcos, flechas e lanças). De modo semelhante, os homens

do clã da Pedra tornam-se dependentes dos homens do clã do fogo para se aquecerem e

cozinharem sua caça. Nesse sentido é imperativo que ambos criem laços de fraternidade e

confianças, ou pelo menos cultivem um bom relacionamento. A melhor forma de fazê-lo?

Trocando suas mulheres.

O clã do Fogo então oferece algumas de suas preciosas filhas aos clãs da Pedra e

talvez outras ao clã da Água e ao dos Animais. Ao fazerem isso, e aqui Lévi-Strauss recorre a

Mauss, o Fogo estabelece uma relação que, de certa forma, obriga os demais clãs à

reciprocidade. Dar um presente, no caso uma mulher, é um gesto merecedor de gratidão e,

portanto, demanda retribuição. Os demais integrantes da tribo que receberam as mulheres do

Fogo, então se vêem na obrigação moral de oferecer suas mulheres ao mesmo Fogo. Esse

costume modela uma rede de confiança e uma interconexão que percorrem toda a tribo. “O

9 Toma-se a liberdade para utilizar a palavra crença pois, a depender do conceito de ciência a ser empregado, é

ele quem, em ultima instância, define a filiação paradigmática.

29

casamento portanto não só conecta um homem e uma mulher mas também um homem que dá

uma mulher e um homem que a recebe” (HARLAND, 1987, p. 26, tradução nossa).10

Nada

disso seria possível se as mulheres da tribo não fossem obrigadas a se casarem fora de seus

respectivos clãs. Essa é a importância social do tabu do incesto. Impedindo com que os

homens se casem com suas próprias primas, irmãs e mães a proibição do casamento

consangüíneo automaticamente as deixa disponíveis para se transformarem em veículos de

solidariedade tribal, peças de uma estrutura mercadológico-comunicativa com a função de

aumentar a coesão social. Sem essa relação em mente, os significados do incesto e do não-

incesto simplesmente se esgotam.

É assim que Les Structures Élémentaires de la Parenté influenciaria toda uma geração

de humanistas a se filiarem à empreitada estruturalista e o brilhantismo de Lévi-Strauss o

levaria ao posto de intelectual mais influente da França (DOSSE, 1993). Um dos tantos

teóricos influenciados pelo trabalho de Lévi-Strauss foi o médico psiquiatra Jacques Lacan.

Com o sucesso do paradigma estruturalista, Lacan adere ao movimento na tentativa de fazer

da psicanálise mais do que uma sub-área da psiquiatria, subordinada a tratamentos

farmacológicos e a uma visão que propunha a causa última das patologias na dimensão

químico-biológica. Em outras palavras, Lacan almejava a criação de uma ciência super-

estrutural, que tal como a lingüística saussuriana, se fechasse em si mesmo, sem referências a

uma base biológica, a uma realidade material que lhe fosse anterior. Acima de tudo, almejava

uma contra-proposta à psicanálise behaviorista norte-americana de Sullivan, Erich Fromm e

Ana Freud, centrada no indivíduo e em suas inaptidões para se adequar à sociedade.

Essa vertente anglo-saxã tomava como ponto de partida a distinção freudiana entre os

diferentes níveis da consciência humana: id/ego/super ego. Na constituição dos indivíduos

enquanto sujeito de suas vontades essas três níveis exerceriam papeis de diferentes

intensidades e importâncias, que variavam do mais fundamental ao menos significativo. O

chamado id representaria o inconsciente biológico. Base de fundamentação do indivíduo, seria

o responsável pela construção das necessidades primárias do homem, de seus desejos, simples

instintos configurados em uma roupagem social. No extremo oposto estaria o super ego, a

verdadeira metáfora da sociedade, aquilo de artificial que havia sido criado pelos seres

humanos sobre a base primeira da realidade. O poder constitutivo do super ego não poderia

jamais ser igualado ao do id pelo psicanalista, era por demais inferior, superficial a ele. Para

essa teoria de matriz individualista, a sociedade deveria ser contemplada como apenas

10

Marriage thus binds together not just a man and a woman, but a man who gives a woman and another man

who receives her.

30

exercendo uma influência secundária na psique do sujeito, um complemento, subordinada a

mais significativa camada instintiva. Esta seria, sem sombra de dúvida, a responsável pelos

fenômenos observados no inconsciente. Ao fim e ao cabo, esse inconsciente funcionaria como

a mente de um animal (HARLAND, 1987).

Para Lacan esse tipo de construção analítica que via a sociedade como secundária na

formação subjetiva e subjugada a uma dimensão biológica, primordial, basilar, servia

unicamente para evidenciar que Sullivan, Ana Freud e Fromm, junto a outros behavioristas,

não haviam compreendido absolutamente nada do que Freud dissera. Em seus primeiros

trabalhos Freud concebia um inconsciente que talvez fugisse à ordem dos instintos. Em Die

Traumdeutung a experiência sensorial denominada sonho deveria ser entendida à luz da

experiência prática da leitura de um livro. Em ambos, as palavras precedem o observado e,

através delas, este se apresenta nas mais diversas configurações e magnitudes, não como o ato

de andar (uma necessidade básica comum a todos os homens), mas como um fenômeno

compartilhado com variações subjetivas.

Para se compreender com mais clareza o inconsciente da primeira fase do pensamento

freudiano, vale ressaltar um de seus objetos de maior admiração: o método hipnótico. A

prática da hipnose era capaz de acessar os níveis mais profundos do inconsciente de

determinado indivíduo enquanto este, mesmo que permanecesse num estado de aparente

consciência, não tomaria conhecimento do processo. Esse método possibilitava trazer à tona

lembranças já esquecidas pela expressão consciente do sujeito, apenas com estímulos verbais

por parte do hipnotizador. Era possível descobrir correlações inconscientes que

fundamentavam as patologias observadas. Tome-se por exemplo um neurótico x, que

apresentava distúrbios de fala ao simples contato de sua pele com determinada substância (ex.

algodão ou linho) associadas à cor preta. Obviamente formalidades seriam por demais

constrangedoras a um homem incapaz de pronunciar corretamente as palavras. Seria essa

uma doença que lhe fosse inata? Intrínseca? Dificilmente. A hipnose possibilitava descobrir

que tipo de relação havia sido imputada na mente do indivíduo entre o linho, o algodão, a cor

preta e a ansiedade, e de que modo isso havia acontecido. Ademais, existia a chance de retirar

essa correlação ou substituí-la por outra que, caso não resolvesse o problema, ao menos o

tornaria suportável. Tudo isso a partir do mero som das palavras pronunciadas pelo

hipnotizador.

Ora, esse inconsciente em nada se parece com a mente de um animal, muito pelo

contrário, era um inconsciente que respondia à linguagem (HARLAND, 1987). Mais ainda, de

31

acordo com Lacan, ele era “estruturado como uma linguagem” (LACAN apud DOSSE, 1993,

p.130). As relações apresentadas pela neurose funcionavam de maneira análoga à dualidade

significante/significado da lingüística saussuriana. De modo geral, o que seria a conexão entre

o preto, o linho e a ansiedade, coisas materiais que não apresentavam a menor semelhança

física, se não uma imposição arbitrária de sentido? A partir dessa lógica Lacan entrara

plenamente no movimento estruturalista, orientando sua atenção para a forma em detrimento

do conteúdo. Para demonstrar a dinâmica do inconsciente e sua semelhança para com a

estrutura da língua, Lacan se utilizou de duas figuras de linguagem, a metáfora e a metonímia,

que funcionariam pelo inovador sistema de deslizamento dos significantes. Vide, a princípio,

o exemplo da frase: “Victor é um touro”. Tem-se a princípio dois significantes, “Victor” (S1),

o nome próprio de um indivíduo da espécie humana (s1), e “touro” (S2), um quadrúpede

ruminante com chifres (s2). No momento exato da fala S2 desliza sobre seu significado s2

para cima de S1, transformando este em seu novo significado. A figura touro passa a remeter

não ao animal, mas a Victor (FIG. 1).

Figura 1- Deslizamento do significante na metáfora

Fonte: DOSSE, 1993, p. 130

Quanto à metonímia (FIG. 2), a relação encontrada era ligeiramente diferente, mas

igualmente erigida sob a lógica do deslizamento de significantes. Na frase “gosto de ler

Camões”, o significante Camões (S2) é destituído de seu significado enquanto pessoa (s2) e

deslizado até o locus ocupado pelo significante livro (S1) sem, no entanto, substituir o

significado de texto escrito por um ser humano (s1).

De acordo com Lacan, a “psicopatologia” da neurose possui a rigor a exata dinâmica

dessas figuras de linguagem. O que o inconsciente de um neurótico, e no geral de todos os

homens, faz é justamente deslizar o significante de um termo e atrelar seu significado a um

outro termo.

32

Figura 2- Deslizamento do significante na metonímia

Fonte: DOSSE, 1993, p. 131

Quanto ao papel do id, da expressão da realidade, da dimensão instintiva na

conformação do sujeito, Lacan recorre à teoria de Wallon do processo pelo qual a criança

humana constrói a noção de si. Wallon observara que por volta dos seis meses de vida os

recém nascidos tomavam consciência da própria unidade corporal. Quando postos frente a um

espelho percebiam que a figura que viam se tratava de uma imagem, a imagem de si mesmos.

Automaticamente, assim como no mito de Narciso (HARLAND, 1987) as crianças se

apaixonavam por esta imagem no espelho, una, completa, absolutamente dissociada do

mundo no qual existe, bem diferente de seu eu fragmentado.

O indivíduo, então, aprende o que é ser indivíduo por um estímulo externo. Ele não

nasce com essa concepção, ela lhe é apresentada por seu reflexo. Com aproximadamente oito

meses se iniciaria uma segunda etapa, a introjeção da linguagem. Para começar a falar, a

criança humana deve subjugar seu eu, a imagem do espelho pela qual se apaixonara, ao

“discurso do outro”, a uma expressão de uma existência que ameaça suplantá-la (HARLAND,

1987). Para Lacan, esse processo muda toda a estrutura de desejos individuais. A criança

passa a temer, dentre todas as coisas, a perda de sua individualidade que lhe é tão cara. Inicia-

se, pois, a busca inalcançável por auto-afirmação pelo ponto de vista do outro. As causas da

neurose se invertem. Não mais se encontram num distanciamento entre sujeito e sociedade,

mas na socialização perfeita.

Se Lacan retorna à Freud, outro influente ícone do pensamento estruturalista, Louis

Althusser retorna à Marx. O período no qual Althusser escreve, entretanto, não é muito

propício ao Marxismo. Em verdade, grande parte da intelectualidade francesa repudiava a

imagem do intelectual engajado (DOSSE, 1993) e aqueles que se aventuravam no Partido

Comunista Francês foram tomados por um sentimento de vergonha frente aos horrores do

stalinismo soviético. O Partido Comunista enfrentava uma espécie de crise vocacional, algo

que talvez o paradigma estruturalista e o seu comprometimento para com o estudo científico

da sociedade o auxiliasse a superar. Foi exatamente isso que Althusser fizera. Conectara a

teoria marxista, tida como ultrapassada, à vanguarda intelectual de seu tempo. Mais ainda,

33

num processo de dupla influência, levou ao Estruturalismo a importância da idéia da atuação

política.

Em um primeiro momento, Althusser se esforça para mostrar que o anti-humanismo,

comum ao paradigma estrutural, no qual o sujeito se encontra totalmente extirpado da análise,

também pode ser encontrado na teoria marxista tradicional. Marx, afinal de contas, criticara

os economistas clássicos como Smith e Ricardo por acreditarem na causa de todo fenômeno

econômico como derivada das necessidades isoladas do homo economicus (HARLAND,

1987). Tradicionalmente, a gênese do livre mercado se daria através do encontro das

demandas de dois indivíduos que existissem dissociados um do outro. O mercado seria então

simplesmente uma conseqüência natural da interação egoísta entre os homens. Se (x) um

fazendeiro qualquer precisasse de madeira, poderia oferecer a lã de suas ovelhas a um

lenhador (y), que porventura estivesse em busca disso. Do encontro das utilidades individuais,

bem como da capacidade humana em maximizá-las nasceria toda a lógica econômica

moderna.

Para ambos Marx e Althusser isso se tratava de um mais completo absurdo. De

maneira alguma se poderia supor que existisse algo como um indivíduo cuja existência

independesse de outro. O próprio ato de nascer, no limite, demandaria algum arranjo social

mínimo, por mas simples que fosse (HARLAND, 1987). Não obstante, a teoria de Mauss, a

mesma que influenciara Lévi-Strauss, contrapunha essa versão individualista da história do

empreendimento econômico. Para o antropólogo as trocas de “bens” entre os homens

primitivos eram muito menos função das necessidades individuais de cada um do que de um

sistema cultural do ato de presentear. Tanto nas antigas tribos indígenas quanto na Europa dos

bárbaros germânicos, o presente era tido como um objeto que representava um favor, que

demandava retribuição. Nessas sociedades não civilizadas, muitas vezes o poder de um

homem era determinado pela força e quantidade dos laços sociais que estabelecera. Num

ambiente onde não haveria um Leviatã a quem recorrer quando necessário, estabelecer uma

cadeia de retribuição de favores se fazia imperativo. Nessa lógica, os bens que um homem

“trocava” com outro, eram menos objeto de sua necessidade do que a troca em si. O sentido

dessa “construção mercadológica” residia não no indivíduo, mas na dinâmica social.

Mas do século XVIII em diante, esse tipo de motivação não se fazia mais presente.

Para todos os fins, o estado territorial moderno ocupou o vácuo que outrora existia na figura

do Leviatã, e tal como um juiz, como um poder soberano, começara a presidir os conflitos que

lhe diziam respeito, isso é, para dentro de seu território. Em outras palavras, a sociedade

34

internalizara o conflito, o separando do mundo da competição econômica. (HARLAND,

1987). A relevância do costume de presentear foi reduzida a quase nula para a manutenção

das possessões individuais. Mas essa não foi a única mudança. Em concomitância com essa

reorganização político-espacial, se deu a ascensão da classe burguesa. Com ela, a categoria

fundamental da teoria althusseriana: a ideologia.

Enquanto Marx subordinava qualquer expressão superestrutural (religião, cultura, arte,

ideologia) ao modo de produção histórico, às bases infra-estruturais de determinada

sociedade, Althusser os dissociava. Os fenômenos ideais não precisariam necessariamente

estar conectados à esfera produtiva e, sob a lógica inversa, poderiam inclusive exercer algum

nível de causalidade sobre ela. Essa dissociação das dimensões infra-estrutural e super-

estrutural possibilitava ao “Marxismo Estruturalista” explicar uma série de fenômenos que

antes não conseguira. Talvez o mais importante tenha sido o sucesso da revolução socialista

em um país atrasado, rural, sobre um regime czarista e sem qualquer proletariado significativo

como a União Soviética. A superestrutura parecia merecer mais importância do que Marx

devidamente lhe dera e essa importância veio por meio da ideologia.

Marx concebia a ideologia como sendo uma expressão falaciosa do pensamento

burguês. Resumidamente, ele a tratava como um mecanismo da classe dominante que visava

perpetuar a estrutura de dominação entre patrões e operários. Sua função de anestesiar o

proletariado, transfigurada na metáfora do ópio, serviria para assegurar que este continuasse

alienado do produto de seu trabalho, e que o status quo permanecesse imutável. Dever-se-ia

entender tal processo como uma verdadeira maquinação, um ato pensado, consciente, fruto do

calculo estratégico burguês.

Com o Marxismo althusseriano o papel da ideologia se tornaria tão mais complexo

quanto seus resultados mais nefastos. Toda a superestrutura da ordem capitalista não mais

poderia ser atribuída a um exercício maquiavélico da burguesia industrial, mas à suas crenças

mais profundas. Não se constituía um falso discurso, mas a expressão verdadeira do que se

acreditava. O processo de ascensão burguesa levou ao poder não só uma classe social, mas

também as premissas, pressupostos e a visão de mundo que ela carregava. O estado moderno

se constituíra sob as bases da ideologia individualista burguesa. Não aquilo que estava

presente e explícito, como era para Marx, mas o que estava ausente e implícito. Embebido no

arcabouço jurídico legal do estado estava o valor ao indivíduo, à sua propriedade, liberdade e

escolha. essa ideologia alimentada por Rousseau, Locke e Hobbes estava profundamente

enraizada na mente de patrões e, terrivelmente, proletários. Ela representava aquilo que era

35

entendido como realidade, e contra a realidade não se pode argumentar (ZEHFUSS, 2002).

De acordo com essa ideologia, as eleições seriam a verdadeira expressão da soma total das

vontades individuais, tal como a desigualdade entre os homens seria a evidencia das

diferentes capacidades. O individualismo faria da liberdade ovacionada e da igualdade uma

aberração. E os trabalhadores jamais conseguiriam inverter a ordem vigente enquanto

acreditassem nela.

Essa superestrutura burguesa, com o advento da cultura de massa, criaria ainda toda

uma mitologia ao redor da vida moderna. Dessa forma se apresentava o trabalho de Roland

Barthes, o novo empreendimento da semiologia, do estudo dos signos enquanto qualquer

coisa que fosse revestida de significado (DOSSE, 1993). Barthes tomaria por objeto os novos

“totens” da sociedade de consumo, ícones de uma estrutura de significação que suplantaria

suas substâncias individuais, concebendo-os como artifícios de coesão social. Como alvos de

seu ataque a essa nova forma de mitologia estariam o entendimento atomista dos desejos

(contrário à teoria lacaniana) e as banalidades do cotidiano, como a carne, o vinho, o

automóvel, o espaguete, a margarina e a lingerie. Todas essas coisas, comuns à realidade da

sociedade pós-industrial, estariam sob um invólucro significativo, sob uma “aura” que lhes

conferissem algo maior que seus significados individuais. A essa “aura” Harland (1987) dá o

nome de “glamour”.

A figura da propaganda é recorrente na análise semiológica11

, sempre analisada como

a tentativa de atribuir significados outros que os usualmente concebidos a determinados

significantes, ou de intensificar os já comumente aceitos. Tal como a langue saussuriana, ou

poder-se-ia dizer, o inconsciente lacaniano, a prática da publicidade consiste em associar dois

objetos distintos que, a princípio não possuiriam quaisquer semelhanças físicas entre si. Nesse

sentido, seu esforço consiste em atrelar determinados valores a objetos do cotidiano, de

deslizar seus significados até que se tornem desejados, por serem exatamente objetos do

desejo do outro. No geral, propagandas se utilizam, segundo Barthes, de imagens de grupos

de pessoas felizes, juntas, que associariam determinado produto à aceitação e ao convívio

social.

Vale ilustrar a lógica semiótica pelo exemplo hipotético de um comercial qualquer de

Maionese. Usualmente, é mostrada uma mesa repleta de pessoas, numa das práticas

cotidianas, possivelmente ausentes à vida do espectador, do jantar em família, do almoço ou

de um café da manha tranqüilo e alegre. Nesse cenário específico a maionese seria

11

Semiótica, Semiologia, psico-sociológia e psicologia social são todas possíveis denominações para a corrente

de Barthes. Serão, portanto, tratados aqui como termos equivalentes.

36

responsável por trazer a felicidade e coesão ao núcleo familiar, sendo isso reforçado no

transcorrer da propaganda pela utilização de frases tais como “A maionese x não pode faltar

em seu jantar”, ou “x faz a sua família mais feliz”. Ao final, o indivíduo senhor de suas

vontades (segundo a lógica anglo-saxã) acabaria por comprar o bem que lhe é oferecido,

muito menos por sua necessidade em si, por seu gosto, ou por uma vontade irresistível de

saborear a maionese. O gosto torna-se irrelevante frente aos novos desejos que lhe foram

imputados socialmente. O que se compra não é só a maionese, mas toda a “maionesidade”,

toda a aura artificialmente revestida de sentido. O que se compra é a família feliz e o jantar

tranqüilo, desejos de um ego por terem sido mostrados enquanto desejos de um outro.

Vide o exemplo fortuito das propagandas de sabão em pó. Tradicionalmente o sabão

era retratado tão somente como possuidor de um poder de limpeza extraordinário, exagerado

na medida em que seria capaz de pulverizar as partículas de sujeira, mas ainda assim,

condizente com sua funcionalidade. Com o passar dos anos, foi-lhe atrelado uma idéia de

profunda brancura, pureza, luxuosidade e assepsia que em nada diziam respeito à sua função

prática (HARLAND, 1987), mas que se caracterizavam como desejos últimos para uma

sociedade altamente “esterilizada”. De um modo mais primordial, a carne e o vinho eram

também “glamourizados” da mesma maneira. O ato de beber uma taça de vinho, pouco teria a

ver com a sede experimentada por quem a desejasse. Sob a perspectiva dessa psicologia

social, o ato deveria ser entendido como um ritual em si mesmo, um fim último da ação.

Bebê-lo representaria, mais do que degustá-lo, vivê-lo no sentido pleno da palavra. Os rituais

que obrigatoriamente acompanhavam a ingestão de vinho remetiam todos a uma vida luxuosa,

às grandes comemorações, à elegância e ao poder, associados à imagem do líquido vermelho

vivo. De modo similar, o Uísque seria menos uma bebida em si, e mais um “passaporte” a

determinado estrato da sociedade, um “recibo” de seu pertencimento. Isso não era diferente

com a carne, o grande e suculento bife malpassado desejado por todos os homens. Comê-lo

seria mais do que suprir qualquer necessidade protéica à vida, trazer para esta plenitude e

vivacidade.

Na visão semiológica, nada disso tinha alguma fundamentação instintiva, ou biológica.

Nada disso remetia aos desejos subjetivos de um indivíduo “dono de si”. Novamente, como

observado em todas as abordagens estruturalistas, a cultura era tomada como dissociada da

natureza, a sociedade anterior ao indivíduo. Em certo sentido esse movimento de predileção

pela dinâmica super-estrutural em detrimento de uma base que lhe forneceria sustentáculo é a

marca de todo o movimento estruturalista, ou nas palavras de Harland (1987),

37

“Superestruturalismo”. Na busca pela cientificidade, pela unificação em torno de um objeto

comum as humanidades precisaram se sobrepor ao naturalismo simplista. O paradigma

superestruturalista operou uma verdadeira fissão com as correntes evolucionistas.

2.1 A Filosofia da Diferença

O movimento do Estruturalismo francês de Lévi-Strauss, Barthes, Lacan e Althusser,

como antes mencionado, poderia ser compreendido fundamentalmente como uma crítica ao

humanismo e ao historicismo evolucionista característicos ao período de ascensão do

pensamento iluminista. Lévi-Strauss e Durkheim demonstram a falaciosa idéia de evolução ao

tratar o conjunto de signos do homem primitivo e seus esforços de compreensão da realidade,

não como ingenuidade pré-científicas, mas como apenas diferentes das quais a sociedade

contemporânea pressupõe, daquelas que julga mais naturais. Lacan proclama a alteridade do

desejo, outrora concebido como representação instintiva, enquanto Althusser expõe a

ideologia individualista na qual a classe burguesa piamente acredita, retirando a vontade da

exploração do próprio corpo físico do explorador. O desafio imposto ao iluminismo pelos

teóricos estruturalistas, entretanto, não fora extremamente radical, ou completo. Em seu cerne,

ainda residia uma característica fundamentalmente moderna: a crença na ciência.

De modo geral, o Estruturalismo representou a possibilidade de construção de uma

ferramenta científica rigorosa para análise dos fenômenos socioculturais, a verdadeira

promoção das humanidades ao campo das “ciências maduras”, no qual hipóteses, teorias e

suposições demandam algum tipo de fundamentação, algum rigor ou nível de valor-verdade.

Talvez não haja nada mais moderno, e compatível com a “era das luzes”, pois, que esse tipo

de pensamento. Essencialmente, o iluminismo defende a ciência, a racionalidade e o

conhecimento como formas pelas quais o ser humano transforma a condição na qual se

encontra, com efeito, a melhora. O progresso seria, portanto, a conseqüência quasi natural da

iluminação, da utilização do método, e do rigor para guiar a razão até a verdadeira realidade.

Embora o paradigma estruturalista objetive a negação do iluminismo, ele o faz usando das

“mesmas armas” deste, ao assumir o discurso do método científico, do universalismo e da

sistematização. Ainda que rejeitem o sujeito, estruturalistas concebem uma natureza da mente

humana, uma semiologia e uma estrutura dos mitos, todos imutáveis, sobre a forma de

processos sincrônicos, a-históricos. Em suma, o Estruturalismo aceitava e reproduzia o

38

discurso totalizante da modernidade, algo que a sociedade pós “Maio de 68” não mais

comportava.

As mudanças que ocorreram na França na década de 1950 e 1960, que transformaram

um país praticamente agrário em uma forte economia industrial, bem como a revolta dos

estudantes que politizara o ensino universitário em 1968, taxando-o como forma de

dominação (BEST; KELLNER, 1991) faziam de Paris um ambiente propício a proliferação de

pensamentos mais extremos, mais radicais. Isto de fato não se restringia à política ou às

formas de contra-cultura, mas também à dimensão das ciências sociais, economia e filosofia.

Ao certo, era também uma época prolífica às contestações de toda sorte, inclusive teóricas,

das quais boa parte fora direcionada ao paradigma estrutural. Antes de adentrar na rationale

desse movimento crítico, do chamado Pós-Estruturalismo, contudo, é preciso definir

claramente à que o termo se refere.

Com freqüência, ao menos na literatura das RI, o Pós-Estruturalismo é entendido

como sinônimo de Pós-Modernidade, ou Pós-Positivismo e contraposto ao Estruturalismo e

(ou) à Modernidade, também assumidos, por vezes como iguais (MANSBACH;

FERGUNSON, 1986; HOFFMAN, 1987; GEORGE, 1989; LAPID, 1989; LINKLATER,

1992; BROWN, 1994; VASQUEZ, 1995; NEUMANN; WÆVER, 1997; WENDT, 1999). De

acordo com Best e Kellner (1991), isto decorreria de um mal entendimento dos quatro termos,

que de fato carecem de uma sistematização/taxonomia padronizada, mas que, não obstante,

deveriam ser entendidos em separado, como quatro fenômenos distintos. Por Modernidade, a

despeito dos demais aspectos socioculturais, seria entendida a época de ascensão do

iluminismo, do triunfo da razão por sobre todas as outras formas inferiores de conhecimento,

do progresso afirmado enquanto telos último da história, do ser humano livre, liberto de Deus

e separado da natureza. Estariam ainda associados a esse determinado período/epistemologia

pensadores como Descartes, Kant, Marx, Weber e Comte (BEST; KELLNER, 1991). Com

diferentes variações, todos apresentariam um mesmo padrão de crença na racionalidade, na

neutralidade do conhecimento e na possibilidade de formulações generalistas12

.

O Estruturalismo, como visto anteriormente, não pode ser igualado às demais teorias

da modernidade, quando em verdade desafia suas premissas centrais como a subjetividade, o

progresso e o evolucionismo, priorizando a sociedade e a cultura ao indivíduo e o instinto. O

Pós-Estruturalismo, “nascido” em meio às revoltas intelectuais, sociais e políticas da década

12

Weber (2004) talvez seja o menos moderno dos pensadores modernos. Ao passo que sua concepção de “tipo

ideal”, caso levada às últimas conseqüências, diminuiria o teor de universalidade de sua teoria, sua crença na

neutralidade axiológica ainda o distanciaria da pós-modernidade.

39

de 1970, embora tenha levantado severas críticas a seu antecessor, pode não ser entendido

como uma negação completa deste. Por mais que autores pós-estruturalistas rejeitem o

discurso científico totalizante, o método único do saber e suas suposições universais, ainda

presentes no projeto estrutural, em sua maioria compartilham da “morte do sujeito”, da

exaustão de seu significado, da negação à racionalidade como meio para o progresso e da

concepção histórica teleológica/evolucionista comum ao século XIX. A rigor, as teorias pós-

estruturalistas se constroem também em torno do conceito de estrutura, conseqüência lógica

da exaustão do sujeito.

A diferença reside na rigidez com a qual a estrutura é tratada em Saussure e Lévi-

Strauss, contestada pelos teóricos chamados pós-estruturalistas por sua análise semiológica

sincrônica. Como alternativa estes concebiam uma análise estrutural diacrônica que

compreende a flexibilidade, volatilidade e instabilidade da cadeia de significação estrutural.

Ao priorizar o significante sobre o significado o Pós-Estruturalismo elevava a interpretação ao

infinito (DERRIDA apud BEST; KELLNER, 1991) num movimento semelhante ao

empreendido pela psicologia lacaniana, do deslizamento do significante. A nova forma de

Estruturalismo assumia a langue não mais como estática, mas em todo o seu

desenvolvimento13

histórico.

Em certo sentido, portanto, o “movimento” pós-estruturalista reintroduz a história no

exercício de compreensão sociocultural. Essa perspectiva histórica, contudo, difere em larga

medida daquela rechaçada por Lévi-Strauss e Lacan, do entendimento evolucionista ou

teleológico da passagem das eras. Argumenta-se, contra a estática estruturalista, que as coisas

mudam, que seu significado, sua razão de ser e seu sentido dependem do momento histórico

no qual se encontra o observador. Retira-se o significante “história” de suas relações

anteriormente concebidas com os termos progresso, avanço e finalidade, transportando-o para

junto de pluralidade, diferença e incomensurabilidade. Essa “manobra” tem raízes na crítica

da filosofia ocidental nietzscheo-heideggeriana (DOSSE, 1993) grande fonte de inspiração

pós-estruturalista. Ambos Nietzsche e Heidegger enxergavam a idéia da racionalidade

emancipatória, libertária e provedora do progresso humano como uma falaciosa ingenuidade.

Enquanto Nietzsche via a unidade do povo alemão ser atingida à custa de uma Prússia

totalitária e militarizada, Heidegger lamentava o progressivo esquecimento do ser advindo dos

processos de racionalização. Ambos são considerados expoentes do pensamento anti-

iluminista (DOSSE, 1993).

13

A palavra desenvolvimento deve somente ser considerada em seu teor de mudança. Intenciona-se dizer que a

estrutura muda, nada mais.

40

Dessa maneira, contra as formas de saber totalizantes da modernidade, o Pós-

Estruturalismo recorre ao perspectivismo nietzschiano, segundo o qual a realidade deveria ser

compreendida em sua natureza multifacetada. Não existem, a princípio, fatos exteriores

(BEST; KELLNER, 1991), tão-só varias interpretações diferentes, vários ângulos de

percepção um “suposto” mesmo evento. Para se enriquecer, posições teóricas deveriam

agregar o máximo de percepções possíveis, de perspectivas que somadas, constituem o todo o

qual se denomina realidade. Seguindo essa lógica, a história progressiva é substituída pelo

conceito de genealogia, que visa, sob última instância, promover esse sem número de

perspectivas. O esforço genealógico não reside na narrativa histórico-seqüencial das grandes

idéias, mas da problematização dela. A genealogia foca no pensamento marginalizado, na

pluralidade e na diferença, os principais slogans do Pós-Estruturalismo e da Pós-

Modernidade14

.

E talvez ninguém tenha dado mais atenção à marginalidade do que Michel Foucault.

Estudioso de temas estranhos à ciência moderna, Foucault busca na sexualidade, da história

dos modos de pensamento, na criminologia e no nascimento da loucura os discursos que

foram silenciados pela forma discursiva totalizante e absoluta que a ciência toma no final do

século XIX. Sua busca é motivada, não porque esses discursos marginalizados seriam mais

verdadeiros ou objetivos do que o científico, mas porque este os classificam enquanto

inferiores a ele (HARLAND, 1987). A ciência empírica estabelece sua distinção e

legitimidade com base na sistematização, observação e comprovação de suas proposições

formuladas. Esse tipo de saber particular dos Séculos XIX, XX e XXI se pretende

hierarquicamente mais elevado em relação a seus pares (a religião, ocultismo, alquimia, por

exemplo) com base numa suposta superioridade de seu método em acessar a realidade

exterior. A ciência, seria pois, o único conhecimento que levaria a verdade até o homem, que

os libertariam da ignorância pré-científica.

A busca pela verdade sempre foi uma preocupação da filosofia ocidental. A

“ansiedade cartesiana” (CAMPBELL, 1998), a necessidade de ancorar as formulações

abstratas em algo maior do que a simples subjetividade, algo que se estendesse para além

daquele que a defende, implica na constante busca pela verdade. Entre duas propostas, qual se

14

A teoria pós-estruturalista é definida por Best e Kellner (1991) como sendo um componente de um conjunto

maior chamado de pós-modernidade, que não só vislumbra o campo da epistemologia e meta-teoria como

também da arte, da economia, da propaganda e do modus vivendi. A chamada pós-modernidade seria então um

fenômeno de muito maior abrangência do que o pós-estruturalismo francês, embora ainda compartilhasse dos

preceitos de pluralidade, marginalidade, critica à razão e diferença. No geral valeria a regra: todo pós-

estruturalista é um pós-moderno, mas nem todo pós-moderno é um pós-estruturalista.

41

poderia dizer ser a correta? A que realmente fosse coerente com o observado, com o que

existe lá fora? A resposta, segundo Foucault poderia variar. Para estabelecer o que está

correto, o que é de fato objetivo, o que é belo ou o que é normal, é necessário ter noção dos

critérios segundo os quais o julgamento será realizado. Ora, acontece que de modo

semelhante à filosofia kuhniana, esses critérios não existem fora da própria dimensão

discursiva, eles são, ao contrário, estabelecidos por ela. O julgamento neutro, a aferição do

valor-verdade se transforma em uma ilusão da modernidade quando se presume a inexistência

de critérios neutros. Tomando-se como exemplo o nascimento de um ser humano. Ao sair do

ventre da mãe, em seu primeiro dia, talvez mês de vida, a criança não sabe o que é ou o que

não é real. A concepção da realidade não é biológica e, portanto, natural, ela é construída.

Com o passar dos anos o aprendizado da linguagem faz com que o recém nascido compreenda

finalmente aquilo que o conceito de realidade quer dizer. O que é real, os componentes do que

se tem por realidade são definidos pelo saber dominante, bem como também o são, e mais

importante para a filosofia foucaultiana, os componentes deixados de lado, excluídos. O

discurso, ao delimitar o que faz parte do real, necessariamente atribui um caráter ficcional à

dimensão exterior aquilo que foi delimitado, ao mundo extra-real, o irreal.

A ontologia, pois, não é vista como uma propriedade intrínseca ao homem ou passível

de apreensão pela aesthesis. O ser, o que há, depende arbitrariamente da delimitação de um

saber específico, passando de uma realidade imutável a um fluxo diacrônico constante. A

realidade muda, respeitando as mudanças a priori que a definem. Em sua fase arqueológica,

Foucault entende essas mudanças discursivas a priori como transformações naquilo que

concebe por episteme, o conjunto de pressupostos que determinado saber histórico estipula

sobre o mundo. Em Les Mots et les Choses - As Palavras e as coisas (FOUCAULT, 1987) -

entendido por Best e Kellner (1991) como a mais completa história da transição entre as

episteme dos últimos cinco séculos, Foucault descreve as descontinuidades epistemológicas

entre os períodos que define por Renascimento (do medievo a 1660), a era Clássica (até 1800)

e a era Moderna (até os anos 1950). Embora essencialmente incomensuráveis, as bases sob as

quais se estruturavam os saberes nesses diferentes períodos históricos se constituíam a partir

de seus antecessores, tendo, pois, algo de comum para com eles. No Renascimento, o

conhecimento era estruturado ao redor das quatro principais figuras de similitude: a

convenientia, aemulatio, analogia e a simpatia (FOUCAULT, 1987).

A convenientia reportaria a todas as formas de similitude que se conectassem através

do espaço. Desse modo, os animais marinhos seriam semelhantes na medida em que

42

dividissem o mesmo habitat. A aemulatio é a conveniência extirpada de seu caráter espacial

(FOUCAULT, 1987), a partir da qual os termos se assemelham independente às suas

distâncias relativas, como o homem é a “imagem e semelhança de Deus” ou o céu é a fronte

do universo. A analogia é a semelhança levada às últimas conseqüências, tornando todas as

coisas do mundo passíveis de inter-relação. A simpatia, a última figura de similitude, não

respeitaria nenhuma das outras, sendo totalmente imprevisível. Nela, um fio de cabelo seria

capaz de carregar os sentimentos da pessoa da qual foi tirado, bem como a alegria e frescor

trazidos pela posse de um girassol. Nesse mundo, nessa episteme, a verdade foi escondida por

Deus na forma de sinais, que devem ser desvendados pelo ser humano através das figuras de

semelhanças. Sob essa lógica da autoridade, a observação empírica não é mais válida que a

palavra (HARLAND, 1987). A verdade está escrita na bíblia e a linguagem assume um

caráter ontológico fundamental.

Através dessas semelhanças a cadeia de significação do mudo se estendia ao infinito,

transformando o conhecimento total da humanidade na soma de sinais já descobertos pelos

homens (FOUCAULT, 1987). Com a chegada da era Clássica, esse tipo de conhecimento,

esse saber embasado na semelhança, passa a ser definido como irracional, como uma

insanidade de tempos antigos. O homem que via a semelhança em todos os lugares, como no

romance Don Quixote (FOUCAULT, 1987), passa e ser taxado como louco. O saber, que se

estruturava ao redor da semelhança a transformará em um problema. A episteme clássica se

ancorará não mais nas figuras de similitude, mas sob a forma da sistematização racional da

mathesis. O saber passará a ser entendido como ordenamento, e serão erguidas as diferentes

taxonomias do século XIX. Será quase como se “ao acordar no mundo clássico, o gigante

adormecido da razão encontrasse o caos e a desordem em todo lugar, e embarcasse num

ordenamento racional do mundo social” (BEST; KELNER, 1991, p.38, tradução nossa).15

Conhecer será quantificar os termos, aferir suas diferenças, e calcular aquilo que seria

necessário para superá-las. Sobre esse saber, a linguagem é sobrepujada pela observação

(HARLAND, 1987), tornando-se meramente um instrumento taxonômico, de designação de

nomes às coisas. No geral, a era Clássica estabelece a distinção entre um sujeito da

observação e a natureza, seu objeto a ser observado por excelência.

A era Moderna encontra nos fenômenos do calor, da eletricidade e no magnetismo um

empecilho à concepção da natureza enquanto objetivamente coisa em si kantiana (BEST;

KELNER, 1991). Os efeitos desses fenômenos físicos são passíveis de apreensão sensorial,

15

Awakening in the classical world like a sleeping Giant, reason finds chaos and disorder everywhere and

embarks on a rational ordering of the social world

43

mas seu entendimento pleno, das forças que ditam seu funcionamento, demanda um nível de

abstração maior do que o permitido pela episteme clássica. O mundo passa a ser enxergado

como regido por forças invisíveis. A biologia começa a ver nos animais mais do que um

projeto taxonômico, uma dinâmica de seleção natural conduzida pela evolução (HARLAND,

1987). A medicina se volta àquilo que não estava aparente, adentrando o interior do corpo

humano, tornando-o objeto de sua pesquisa, compreendendo como funciona em seu interior

imperceptível à superfície. (BEST; KELNER, 1991). A dicotomia clássica entre sujeito e

objeto se torna mais nebulosa e o homem deixa o controle do mundo para tornar-se

controlado. Mas o século XIX também foi responsável pela criação de um espaço do sujeito,

interiorizado no indivíduo, no qual seria capaz de fugir a essas forças externas, encontrando

sua privacidade. O sujeito só seria destituído de suas capacidades, e para todos os fins

objetivizado completamente com a era Estruturalista, definida por Foucault como iniciada

pelo movimento francês dos anos 1950 e 1960.

Se a arqueologia é a dimensão ideal, “puramente” discursiva da análise foucaultiana

do saber então o projeto genealógico, aprendido em Nietzsche, é a congregação de discurso e

prática nos chamados aparatos (HARLAND, 1987; BEST; KELLNER, 1991). Além de

conceber o papel da episteme na definição da realidade e na criação da esfera do sujeito,

Foucault parte para o estudo das práticas de conformação e normalização destes. A genealogia

- essa forma de historicismo crítico (VIGHI; FELDNER, 2007; BEVIR, 2008) - se torna sua

ferramenta na revelação da marginalização de grupos tidos como “anormais” ao longo dos

séculos por diversas instituições tais como a prisão, o hospital psiquiátrico e a escola. Essa

historiografia anti-científica (HARLAND, 1987; BEST; KELNER, 1991) explora a já

mencionada característica do discurso enquanto delimitador de um espaço ao qual confere

legitimidade, enquanto exclui tudo o que não faz parte dele. Quando a lógica da episteme se

transpõe à práxis, a exclusão das outras formas de saberes se transforma na exclusão das

outras formas de comportamento. A dimensão discursiva delimita aquilo que entende por

normal e aquilo que entende por patológico. As práticas institucionais que objetivam a

conformação do sujeito foram ao longo do tempo, ao longo do processo de racionalização, se

constituindo sob a forma de aparatos de dominação cada vez mais sofisticados. Em Surveiller

et Punir Foucault demonstra como as eras clássicas e modernas transformaram as punições

brutais medievais em modos supostamente mais humanas de “penalização”, embasados na

vigilância e educação. Observa-se, contudo, que antes de qualquer preocupação com a

reinserção dos criminosos na sociedade, com o seu aprimoramento pessoal, as prisões têm por

44

fim a vigilância e a normalização em si mesmas. Tendo isso em mente é fácil compreender

por que, nos moldes como as concebemos, as penitenciárias são extremamente ineficientes na

diminuição do índice de reincidência criminal (FOUCAULT apud HARLAND, 1987).

Da mesma forma que o real precisa do irreal para que sua existência seja dotada de

algum sentido, o normal é dependente do patológico, do desviante. Enquanto instância de

normalização, não interessa à prisão o fim da criminalidade. Ao contrário, é importante que

seja bem sucedida em perpetuá-la, para que o exemplo do mau cidadão, “daquilo a ser

evitado” continue lhe servindo como fonte de legitimação, a partir da qual o bom cidadão

deve ser construído. Se o crime por ventura fosse extinto, as penitenciarias e a criminologia

perderiam sua razão de ser. De modo semelhante, a Histoire de la Sexualité traz o exemplo do

atrelamento da masturbação à perversão. No geral, o discurso contra essa determinada prática

comum aos jovens do sexo masculino serviria menos ao propósito de erradicá-la do que

propriamente instigar sua continuação (HARLAND, 1987). Para o projeto de formatação do

sujeito sadio era essencial a figura do pervertido, criada e reproduzida por todo um aparato de

dominação.

É em meio à análise genealógica que a relação entre poder e verdade, cerne da crítica

foucaultiana às teorias do iluminismo, se mostra mais perceptível. O poder não vem da posse

do saber, mas lhe é intrínseco. As dimensões discursivas da vida social, ao delimitarem o

campo do real/irreal, normal/anormal, belo/feio, sadio/patológico exercem poder por sobre o

indivíduo que visam normalizar, na medida em que estabelecem aquilo que ele deve ser, e por

sobre seus opostos, na medida em que os excluem. Isto é, a rigor, desconsiderado pelas

ciências modernas. Embora a psiquiatria se legitimasse ao redor de uma objetividade da

loucura, do comportamento desviante à razão, o louco, seu objeto, é pelo próprio saber

psiquiátrico objetificado. É a esse respeito que a loucura, a sexualidade e o crime, que podem

parecer instâncias imutáveis da realidade, são historicamente/discursivamente construídos.

Esses construtos possuem um teor político assombroso, muito distante da neutralidade

pretendida pelo saber científico. Ao contrário das teorias totalizantes, o poder em Foucault é

difuso, não se situa nos macro fenômenos do estado ou das classes, mas em cada relação

humana. Não estando especificamente em nenhum lugar, ele está em todos os lugares. Na

família, no sexo, no trabalho, na escola, o poder está em tudo. O sujeito continua um mito16

.

Objetificado por um saber que o pretendia enquanto objeto ele representa tão-somente um

16

Com respeito às primeiras fases de Foucault segundo Best e Kellner (1991).

45

ponto na estrutura microfísica de poder e dominação, onde diversos aparatos se intersectam,

criando a ilusão de uma subjetividade una.

A esse ente unificado Gilles Deleuze associa, dos modos totalizantes do pensamento

moderno, em especial, a dialética hegeliana. Para Deleuze, a lógica dialética - a superação das

diferencias na síntese - não passaria de uma tentativa de “territorializar” os fluxos diversos do

pensamento em uma teoria totalizante. Contrário a esse movimento, estaria o perspectivismo

nietzschiano, um ode às pluralidades contidas pela filosofia ocidental repressiva. Em

Nietzsche et La Pilosophie Deleuze mantém uma interpretação de Nietzsche na qual o filósofo

compreende o mundo “como consistindo de diferentes quantidades de forças, um fenômeno

dinâmico que constitui o mundo, dirigido por uma vontade interior” (BEST; KELLNER,

1991, p.81, tradução nossa).17

Rejeitando o reducionismo dialético, Deleuze busca em

Nietzsche uma forma de compreensão das diferenças, das multiplicidades que não são

consumidas na idéia de síntese. Tal teoria se encontra no conceito de realidade mosaica, da

negação do fato enquanto acontecimento fora da interpretação e do perspectivismo.

A realidade para o Nietzsche de Deleuze é uma soma das perspectivas totais do

mundo. Seria, pois, impossível tentar compreender um “fato” sem o agrupamento de todas as

perspectivas acerca dele. O criador de Zaratrusta se volta à “corrente sofista” silenciada por

Platão, quando da criação do que seria ser um filósofo, para conferir esse grau de

multiplicidade, quase cético à sua obra. Segundo uma de suas mais importantes influências,

Górgias “articulou essa visão, argumentando que nada realmente existia, e caso existisse não

se saberia, e caso se soubesse, não poderíamos comunicá-lo” (WIGHT, 2006, p.232, tradução

nossa).18

Decorre dessa simples seqüência de proposições a negação da filosofia de

Parmênides, Platão e Aristóteles, e por conseqüência de grande parte da filosofia ocidental.

Quando o ser não é automaticamente associado ao pensar, tem-se o problema da existência,

quando a resposta deixa de ser óbvia ao cidadão comum e volta no cogito cartesiano. O que é,

de fato passa a não ter uma resposta fora dos atos individuais do pensamento19

. Os Fatos não

podem mais ser concebidos fora das interpretações individuais de cada um porque, ao final,

são o que verdadeiramente os constroem. Não que Nietzsche e, por conseguinte, Deleuze

assumam uma postura própria ao psicologismo do objeto individualizado. O que é, num

17

Reality consists of differing quantities of forces, the dynamic phenomena that constitute the world, driven by

an inner will. 18

Articulated this view, arguing that nothing really exists, and if anything did exist it could not be known, and

that if knowledge were possible, it could not be communicated. 19

Resumindo para os fins do presente trabalho todo um problema característico ao saber da ontologia dos sec.

XVIII e XIX, quando, de acordo com Foucault (1987) a relação entre sujeito e objeto é reestruturada a partir da

descoberta de forças imateriais.

46

sentido mais foucaultiano, não se define a priori no sujeito, mas é socialmente construído.

Mesmo assim, essa construção depende da apreensão individual dos códigos e significados,

que variam de ser a ser (BEST; KELLNER, 1991).

Após definir a epistemologia pós-moderna que guiará o restante de seu trabalho,

Deleuze se encontra com Pierre-Félix Guattari com o qual construirá a proposta da

esquizoanálise, a apologia ao modus vivendi nômade e a lógica rizomática. Em L'Anti-Oedipe

Deleuze e Guattari criticam a psicanálise Lacaniana, naquilo que permanece acrítica a alguns

conceitos freudianos, o pensamento moderno e o sujeito unificado, partindo de uma adaptação

da teoria marxista, numa analise da sociedade capitalista. O conceito fundamental dessa

empreitada é o desejo. Concebido não como falta, como fizeram Lacan, Freud e toda tradição

psicanalítica, Deleuze e Guattari o entendem de uma ótica produtiva, explosiva, criacional.

Em sua espécie de “fenomenologia” o desejo é uma força libertária do homem, um fluxo

libidinal essencial, constantemente reprimido por estruturas e instituições de dominação. Sua

teoria materialista substitui a idéia de modo de produção marxista pela máquina (literalmente)

produtiva dos desejos, e a estrutura de produção pelos fluxos sociais. Eles colocam o desejo

enquanto uma força que destrói a dicotomia sujeito e objeto, sendo capaz de criar tudo o que

concebemos por realidade através de seu locus na infra-estrutura social.

A análise do capitalismo parte de seu princípio mestre de desterritorialização. Ao

contrário das eras que lhe antecederam, o período capitalista prima pela desintegração de

todos os códigos, valores, sentidos e definições de seus períodos antecessores. A moeda não é

mais particular de um feudo, a cerveja não mais obedece às diferenças de sua origem, é

transformada em um commodities, e os códigos são todos esfacelados e reteritorializados sob

a lógica quantitativa do valor de mercado. Essa lógica, contudo, também produz aquilo que se

tornará o “anjo assassino” do capitalismo e de seu modo de vida, a esquizofrenia.(DELEUZE;

GUATTARI apud BEST; KELLNER, 1991). De maneira análoga à Marx, o capital produz,

em sua essência, aquilo que o sobrepujará. Ao contrário de qualquer contradição inerente, no

entanto, a esquizofrenia diz respeito aos efeitos inconscientes da empreitada capitalista. Sua

lógica de desterritorialização extrema através da qual tudo o que era sólido era desmanchado

no ar (MARX; ENGELS, 2005) implicou na condição libertária por excelência do sujeito

esquizofrênico. A desterritorialização, a volatilidade de sentido, o esfacelamento dos códigos,

o desrespeito pelas fronteiras, e a infindável transposição entre o eu e o outro presentes

naquilo que Deleuze e Guattari denominaram por esquizo-sujeito deveriam ser tomadas como

armas contra as instituições repressoras capitalistas. O processo de desterritorialização

47

iniciado por ele contra ele se voltaria promovendo a explosão infindável dos fluxos de desejos

libidinais.

O processo de esquizofrenia remontaria à condição natural do ser humano

(HARLAND, 1987), à essência não significante e não referente da máquina de produção dos

desejos (BEST; KELLNER, 1991). De acordo com Deleuze e Guattari, os significados e

referentes são atrelados aos desejos individuais ao longo de processos históricos de repressão.

O esquizo-sujeito subverteria essa lógica da dominação através da re-significação contínua e

imprevisível, uma espécie de deslizamento do significante levado à sua conseqüência

extrema. A esquizofrenia é o extremo oposto à identificação de uma subjetividade una. O

esquizofrênico enquanto objeto da análise psiquiátrica, enquanto um mal a ser curado, vê, na

realidade, não mais que um amálgama de sentidos impossíveis de serem fixados (HARLAND,

1987). Com isso ele se recusa a construir-se em torno de um “eu”, o que muitas vezes

repercute no fenômeno das identidades múltiplas, ou da “identificação” com algum

personagem histórico. Em última instância, ele reconhece a diferença entre o eu e o outro,

mas a desconsidera no seu livre transpassar das fronteiras e dos limites da realidade

dicotômica.

Em Mille Plateaux Deleuze e Guattari passam a criticar também a lógica do

pensamento ocidental per se, criando a rizomática, uma nova condição de saber compatível

com a epistemologia pós-moderna. No texto, todo conhecimento ocidental é entendido como

pautado pela metáfora da árvore. Teorias, pressupostos, opiniões e premissas são

hierarquicamente estabelecidos como ramos em uma árvore, sob a necessidade de se

fundamentarem em uma sólida raiz (o valor verdade obtido da empiria ou da lógica). Contra

esse modo totalizante e verticalizado, base da própria organização social capitalista, é

proposta a rizomática, a horizontalização anárquica completa. Para Deleuze e Guattari, assim

como a não-fixação de sentido no esquizo-sujeito, a rizomatica é a forma de composição

encontrada na natureza. Formigas, matilhas de lobos, gangues de motociclistas e até o

perspectivismo de Nietzsche são rizomas exemplares, funcionando de maneira fluida na

desterritorialização completa. Nesse sentido, no pensamento de Deleuze e Guattari, da mesma

fora que a “árvore vertical do conhecimento” deve ser substituída pela “raiz horizontal da

multiplicidade” e o sujeito fascista pelo esquizo-sujeito, o modus vivendi capitalista deve ser

completamente sobrepujado em prol do nomadismo, da vida desterritorializado do fluxo

constante. As lutas contra a opressão não poderiam, pois, estruturarem-se na figura do partido

político, como gostariam os marxistas, mas na micro-política da não delimitação e da

48

explosão libidinal. Afinal, os partidos e as organizações “moleculares” da sociedade carregam

em si mesmos aparatos hierarquizados de submissão dos desejos. Enquanto continuar

respeitando esse formato, a luta de libertação política estará fadada ao fracasso (BEST;

KELLNER, 1991).

Outro importante e controverso teórico pós-estruturalista foi Jean Baudrillard. Ele foi

aquele que mais sofisticadamente elaborou, ao lado de Jan-François Lyotard, uma teoria da

pós-modernidade no campo da filosofia. O pensamento de Baudrillard leva o projeto de

“superestruturalização” do Marxismo, começado por Althusser, ao seu extremo (HARLAND,

1987). A lógica do economicismo é desafiada através de sua natureza socialmente construída

e, portanto, arbitrária. Marx erguera sua teoria por sobre uma diferença entre o valor de uso e

o valor de troca que lhe era fundamental. De acordo com sua lógica, o capitalismo subverteria

a relação do homem para com o produto de seu trabalho, alienando-o através da superposição

do valor de troca ao seu oposto mais natural, infra-estrutural: o valor de uso. Esse valor de uso

de determinada coisa seria dado mediante sua relação para com o mundo exterior e objetivo,

sua capacidade de suprir as necessidades humanas inerentes. Uma lança, por exemplo, teria

por valor objetivo a sua capacidade em auxiliar nas caçadas e nas batalhas, ambas

necessidades de um ser mortal, que independente ao período histórico no qual existe, é um

ente que precisa se alimentar e se proteger. Com efeito, embora as forças do capital possam

distorcer essa relação infra-estrutural, o real valor dos objetos ainda poderia ser acessado, algo

que não ocorre em Baudrillard.

O sociólogo francês advoga, dentre outras questões, pela verdadeira autonomia do

valor de troca enquanto expressão da sociedade. Ora, decorre que o mundo exterior pelo qual

Marx sugere mensurar o valor de uso não existe fora do discurso burguês da realidade

(HARLAND, 1987). Admitir que o trabalho seja aquilo que faz do homem humano, como

Marx definitivamente conclui, é enxergar o mundo através da ótica capitalista. Para

Baudrillard essa é a grande estratégia/falácia das sociedades modernas. Atrelar algo à esfera

da natureza é, como dito, sempre uma ação política valiosíssima. Isto posto, a lógica

baudrillardiana divide a história das sociedades humanas em dois períodos diferentes,

separados por uma brusca ruptura. O primeiro é o que denomina por período das sociedades

simbólicas e o segundo é o das sociedades de produção. Baudrillard concebe uma diferença

significativa na natureza dessas duas formas de organização social na medida em que se

organizam ao redor de símbolos e signos respectivamente. Sociedades simbólicas se

estruturam através da troca simbólica, na qual o valor do objeto a ser trocado jamais é

49

separado da troca em si, do processo. Símbolos, ao contrário dos signos e códigos das

sociedades modernas, não teriam um sentido fixo, mensurável e quantificável, mas uma

cadeia de significação fluida, em constante modificação, como as próprias trocas simbólicas

das quais fariam parte, nas quais ser o receptor ou o doador de presentes é apenas um ponto

no tempo, uma questão passageira. Harland (1987) prove o exemplo do Sol, que perdera toda

a ambigüidade simbólica que lhe fora atribuída pelas sociedades primitivas (enquanto fonte de

vida e morte, terror e admiração) para ser enquadrado nas sociedades de produção (modernas)

sob as dicotomias alegria/tristeza, vivacidade/morte, nas quais é contrastado e validado aos

seus opostos: noite, chuva ou mau tempo.

Mas a revolução não para por ai. No final dos anos 1970 e início dos anos 1980

Baudrillard assume a virada à pós-modernidade, um termo que até então não havia utilizado.

De acordo com o autor, as incríveis transformações tecnológicas e comunicativas levaram a

uma sociedade de simulação, sem quaisquer vínculos referenciais com a realidade. Os

modelos cibernéticos, a tecnologia da informação e a simulação dos códigos substituiriam a

produção bruta enquanto princípio de organização societal. No final do século XX cada vez

mais os modelos e as simulações se aperfeiçoariam, tomando o lugar da coisa real per se. Na

mídia um movimento que mesclava jornalismo e entretenimento introduziria elementos

dramáticos nos noticiários e telejornais, e também formatos jornalísticos (associados à

transmissão da verdade e de acontecimentos factuais) às programações que a priori não teriam

preocupações com essa pretensão, como programas de auditório (os Talk Shows) ou vinhetas

do canal Music Television (BEST; KELLNER, 1991). Nesse sentido, a realidade, tão cara ao

pensamento marxista, se transformaria em algo absolutamente irrelevante, talvez subjugada

ao próprio modelo, à simulação. Ainda com respeito à mídia pós-moderna, anúncios

mostrariam corpos humanos magníficos, jantares ideais, famílias perfeitas, habilidades

invejáveis e tudo o mais que permeasse o cotidiano em um grau de perfeição totalmente

incoerente com o mundo real. Os corpos esbeltos que as pessoas não têm e os jantares

perfeitos que a rápida vida moderna não possibilita, além de outras simulações como as

descritas acima, criariam juntas uma espécie de domínio do não-real, no qual os papéis da

vida e do virtual se inverteriam, exercendo a arte, um feitiço sobre a vida, que a imitaria a

qualquer custo.

Nesse ponto chega-se ao conceito de hiper-realidade. Os simulacros da pós-

modernidade tornar-se-iam mais reais do que o próprio real. Num exemplo particularmente

interessante, Best e Kellner (1991) citam a história de um artista norte americano que

50

interpretara um medico em determinado seriado/tele-novela. Com o passar dos anos o artista

em questão acumulara centenas de cartas de fãs da série que desejavam algum tipo de auxílio

médico, ou opinião profissional. Mais tarde, o mesmo ator ainda apareceria em anúncios de

café, nos quais discorreria sobre os benefícios do café descafeinado para a saúde. No geral,

não é incomum que artistas sejam confundidos pelo grande público com os personagens que

interpretam na televisão ou no cinema. Com relativa freqüência aqueles que passam por vilões

precisam contratar seguranças para escapar da “justiça popular” (BEST; KELLNER, 1991).

Nesse sentido a fronteira entre a ilusão e a realidade é completamente implodida. Essa

implosão, todavia, levaria também a um estágio de entropia social, no qual as “massas se

tornariam aborrecidas e ressentidas do constante bombardeamento de mensagens e das

constantes tentativas para convidá-las a comprar, consumir, trabalhar, votar, registrar uma

opinião, ou participar na vida social” (BEST; KELLNER, 1991, p. 121, tradução nossa).20

Ao longo dos anos 1980 Baudrillard ainda se voltaria ao estudo da “metafísica” pós-

moderna, mais especificamente as transformações que a hiper-realidade, a implosão e o

simulacro trariam à relação entre sujeito e objeto. Mais do que negar a subjetividade como os

outros superestruturalistas21

Baudrillard a transfere de lugar, passando todas as suas

características marcantes ao reino dos objetos. Para ele, objetos possuem intencionalidade e

estratégias, tendo vencido a batalha do pensamento ocidental e sobrepujado os sujeitos sob

sua dominação. A filosofia moderna do Ocidente sempre lutara em vão pelo predomínio do

sujeito observador sobre o objeto da observação, com efeito, a natureza. Essa luta terminou e

os objetos ganharam. Agora, são eles que dominam a vida social, estando a dimensão

subjetiva amplamente subjugada a eles. De acordo com o sociólogo francês só haveria uma

solução possível para superar essa “coisificação invertida” iniciada pela lógica capitalista. Em

Les Stratégies Fatales é proposto um caminho político para a implosão do sistema corrente.

As massas levariam o sistema de signos à sua auto-destruição fazendo exatamente aquilo que

ele demanda. Se a sociedade do consumo deseja o consumismo desenfreado, fora de qualquer

significação social, de forma contrária ao mundo primitivo, então é exatamente isso que deve

ser feito. Um sistema é implodido quando levado às últimas conseqüências. O radical

Baudrillard, então, clama pelo consumismo desenfreado.

Jean-François Lyotard, por sua vez, retoma a lógica da micro-política dos desejos

trabalhada por Deleuze e Guattari. Em sua versão, a superação aos modos de pensamento

20

Masses become bored and resentful of their constant bombardment with messages and the constant attempts to

solicit them to buy, consume, work, vote, register an opinion, or participate in social life. 21

Termo empregado por Harland (1987) para denominar ambos estruturalistas e pós-estruturalistas entendidos

como pertencentes a um só grande fenômeno, o superestruturalismo.

51

totalizantes e opressivos se da pela luta estética das artes e da figura como fontes de

intensidade libidinal. Influenciado pela filosofia de Jacques Derrida (1994; 2008; 2009),

Lyotard crítica a forma pela qual o Ocidente toma a realidade como constituída por um sem

número de oposições binárias, nas quais um termo é valorado em relação ao outro. Sua

epistemologia pós-moderna, assim como a genealogia foucaultiana, objetiva fazer ouvir os

termos marginalizados das dicotomias, aqueles deslegitimados pelo pensamento moderno.

Desde Platão (2008), e sua famosa crítica à tragédia enquanto paideia, o Ocidente virou as

costas à arte em prol da ciência, primeiro no sentido de saber e depois no sentido moderno do

termo. O discurso, o logos é valorizado em detrimento da experiência sensível. Para Lyotard

isso é algo a ser mudado, pois só a figura, o sensível, é capaz de libertar o desejo em sua força

explosiva e subverter o discurso político científico em suas bases.

Nesse sentido, o filósofo de Versailles advoga pela ferramenta estética (aesthetics) na

luta por espaço aos saberes, grupos, termos ou posições desvalorizadas. Essa batalha deveria

tomar a forma do vanguardismo, única prática capaz de liberar a intensidade última dos

desejos e desafiar a forma unificada com a qual a realidade é retratada. Em Économie

Libidinale é esclarecido como o desejo é preso sob diversos modos de dominação e tem sua

intensidade atenuada (BEST; KELLNER, 1991). Lyotard então reclama o livre fluxo das

energias vitais, tomando por base uma perspectiva nietzschiana que confronta ambos Marx e

Freud (BEST; KELLNER, 1991). Deixando o desejo e adentrando o campo do saber, o autor

constrói uma série de críticas à modernidade enquanto modo unificado de pensamento e

método. Para ele, o conhecimento não é construído através da unidade e do consenso, mas por

meio da proliferação das diferenças, da convivência incomensurável. Novamente, vê-se o

tema pós-moderno da pluralidade se repetir, dessa vez sob a rationale das “pequenas

narrativas”.

O pensamento moderno, em sua busca pela verdade e por fundações sólidas sempre se

escorara em grandes narrativas e metanarrativas através das quais se fazia parecer legítimo.

Um exemplo fortuito diz respeito à ciência. Quando do iluminismo, esse saber específico

aproveitou-se de um discurso sobre as capacidades emancipatórias da razão e de uma

teleologia de progresso histórico, já criticada pelo movimento estruturalista dos anos 1950. De

maneira semelhante, o saber ocidental sempre validara suas proposições pelo embasamento da

correspondência empírica, numa suposta relação referencial para com a realidade, sem a qual

qualquer conhecimento era taxado de ingênuo e supersticioso. Essas foram as armas de uma

epistemologia moderna, preocupada com uma verdade fundamental incapaz de ser outra coisa

52

que não una. Os saberes pós-modernos, em contrapartida, desafiariam essa visão sintética da

realidade reclamando a heterogeneidade, usualmente reprimida por consensos não tão

consensuais. Fazer algo único seria, para Lyotard e sua epistemologia pós-moderna, uma

violência à pluralidade inerente à sua visão de mundo, conseqüência imediata de sua

perspectiva nietzschiana. Desse modo, dever-se-ia quebrar com os modos totalizantes de

pensamento, a fim de provocar uma explosão de “pequenas narrativas” locais, devidamente

situadas, que de maneira alguma teriam a pretensão “universalizante” da ciência moderna e de

seu método único.

O filósofo ainda conceberia uma diferença conceitual entre descrição e prescrição,

entre o reino irremediavelmente incomensurável do ser e do dever ser. Lyotard passaria a

analisar as conseqüências de uma epistemologia pós-moderna para a questão da justiça, que,

ao menos sob a ótica kantiana, demandaria um alto grau de generalidade. Em Au juste Lyotard

e Thébaud discorrem acerca das possibilidades de julgamento sem critérios que sejam

universais, prescrições que digam respeito a uma regra geral. Para que a justiça possa ser

vislumbrada, contemplando-se o objetivo da pós-modernidade de proliferação das diferenças,

é elaborado o conceito de justiça enquanto respeito às regras. Tais regras, diriam respeito às

prescrições estabelecidas em um jogo específico, em comum acordo entre os participantes. Só

se poderia afirmar que uma ação é justa se ela estivesse de acordo com um conjunto de

prescrições locais, que lhe fossem anteriores, capazes de lhe conferir justiça ou injustiça. Não

se poderia, seguindo essa lógica, definir qualquer teor de justiça/injustiça de uma ação sem

levar em conta o contexto sob o qual ela acontece. Isso posto, a episteme pós-moderna de

Lyotard edifica o que será denominado por “multiplicidade de justiças”, o conceito que

confere à análise ad hoc das ações contextualizadas prioridade sobre generalizações e

prescrições universais. Só se pode pensar a justiça local, provisional e sujeita à mudanças

(BEST; KELLNER, 1991). Esse conceito do que seria um ato “justo” confere voz à

pluralidade de diferenças que compõe a realidade pós-moderna.

Mais tarde o termo jogo seria extirpado do discurso de Lyotard. Sua idéia remeteria a

um arrogante antropocentrismo comum ao Ocidente, segundo o qual indivíduos fariam uso

(possivelmente instrumental) das regras do jogo de acordo com seu bel prazer e sua

intencionalidade (LYOTARD apud BEST; KELLNER, 1991). Coerente com a retirada de

sentido da esfera subjetiva, prática comum aos mais diversos pensadores superestruturalistas,

a categoria jogo é substituída pela noção de “frases lingüísticas”, que, ao não demandar

nenhum grau de subjetividade, passa a ser o mínimo objeto de análise da teoria de Lyotard.

53

2.2 O Pós-Estruturalismo Nas Relações Internacionais

Enquanto um ramo das Ciências Sociais, a teoria das RI também sofreu influências de

ambos os movimentos estruturalista e pós-estruturalista. Cabe aqui discorrer sobre as

implicações da filosofia de Foucault, Derrida, Lyotard, Deleuze e Baudrillard para a

disciplina, que apresentaram uma oportunidade de formação de uma teoria “crítica”,

consciente de sua própria temporalidade histórica (COX, 1986), bem como de sua condição

essencialmente arbitrária. No geral, o pensamento francês das décadas de 1970 e 1980 foi

fundamental para a construção de uma comunidade “científica” que contestasse as bases

fundacionais, as “condições de possibilidade” do discurso teórico do main stream. Walker

(1993), Thomsom (1994), Weber (1995), Bartelson (1995), Campbell (1998) e Hansen

(2006), dentre outros, passaram a atacar os conceitos assumidos como dados, não

problematizados e supostamente imutáveis para o estudo do internacional, advogando pela

natureza histórica de cada um. Os ataques se concentraram em torno das categorias soberania,

Estado e identidade.

2.2.1 Walker

O mundo contemporâneo é cada vez mais compreendido como um fluxo constante de

informações, transações, bens, pessoas, animais, tal seja, um mundo em que o espaço torna-se

gradativamente irrelevante frente às descobertas da ciência moderna. De certo sentido, esse

mesmo espaço é também aos poucos substituído pela virtualidade, por um não-local, onde a

não-existência, ou a existência virtual permitiria o envio imediato de montantes gigantescos

de divisas a qualquer lugar do globo. A condição contemporânea é percebida essencialmente

como uma condição de mutabilidade, onde a sempre presente figura da mudança, seja ela qual

for, desmancharia tudo o mais que fosse sólido no ar (WALKER, 1993). Não obstante, apesar

do teor quase auto evidente de volatilidade que a era contemporânea exerce no homem, as

teorias de RI, ao menos um parte delas22

, ainda argumentam no sentido de uma imutabilidade

natural de uma esfera particular do mundo: do internacional. As questões e os dilemas

enfrentados pelos Estados Nacionais no processo de interação entre eles não seriam, a

princípio, diferentes daqueles enfrentados pelos primeiros macabeus do período bíblico

(WALTZ, 1979), pelo Império Assírio, Roma, China Antiga, Astecas (KAUFMAN; LITTLE

22

Como, por exemplo, o Realismo Estrutural (WALTZ, 1979) e suas abordagens correlatas (COPELAND, 2000;

(KAUFMAN; LITTLE et al., 2007).

54

et al., 2007) Esparta, Atenas ou ainda pelos senhores feudais do medievo (COPELAND,

2000). A rigor, essas teorias definiriam o internacional como o reino do recorrente, como o

ambiente no qual a mudança é impensável e as propostas de progresso da modernidade são,

ao final, impossíveis. Essas teorias entenderiam o internacional como qualitativamente

diferente do ambiente doméstico.

Mas o que seria responsável por essa diferenciação qualitativa entre dois ambientes

aparentemente indiferenciados? Qual a condição sobre a qual é possível afirmar que a política

internacional possui uma natureza diferenciada da doméstica? Ora, a própria criação da

disciplina das RI precisa que essa diferença seja afirmada para que seja entendida como

legítima. Afinal, o que definiria um saber como ciência, dentre outras característica, seria um

sujeito específico sobre o qual esta predicaria (ARISTÓTELES, 2002). Não há de haver

Enologia sem o vinho, Física sem a matéria, tampouco Matemática sem o número. O que

atribui às RI a qualidade de disciplina, ou de ciência no sentido aristotélico do termo, seria

exatamente o internacional como sujeito de predicação, como objeto de análise, proveniente

da política entre os Estados pensada em separado da doméstica.

Esse tipo de configuração adviria de uma resposta particular ao problema da

concepção do locus da comunidade política. Ao contrário de algo auto-evidente, objetivo, ou

independente à cognição humana, essa diferenciação entre um espaço doméstico e um espaço

internacional seria antes conseqüência da resposta provida pela modernidade ao

questionamento acerca de um “nós” (WALKER, 1993). A idéia responsável pela demarcação

de um domínio interno, um inside, e um domínio externo um outside, seria justamente o

conceito moderno de soberania forjado na revolução histórica (FASOLT, 2004). Através da

soberania, seria possível responder à questão de um “nós”, delimitando-o espacial e

temporalmente enquanto diferente do “nós” pensado pela cristandade. Essa identidade antes

universal, passaria a ser concebida sob a lógica particularista do conceito de soberania. Antes

da humanidade, a comunidade política moderna se estruturaria a partir da cidadania. A

modernidade em si forjou a diferença pressuposta pelo Realismo político, construindo um

espaço onde suas promessas poderiam ser efetivadas, onde de fato haveria o progresso, o

direito, a lei, a ordem, e um vácuo político no qual só se daria a infinita recorrência da

realpolitik, de uma política puramente utilitarista. A modernidade criara o internacional como

a não-política, provendo as RI de sua razão de ser.

Assim sendo, a disciplina de RI, deveria ser vista, na ótica pós-estruturalista, mais

como expressão dos limites da concepção moderna de espaço político do que propriamente

55

uma explicação de uma realidade imutável, que lhes fosse exterior (WALKER, 1993). Dessa

forma, mais do que conseguir acessar um internacional de fato, o Realismo poderia ser

entendido como um dos discursos da modernidade por meio do qual esse internacional é

concebido. Seria antes que uma ferramenta preditiva de um comportamento imutável em uma

esfera dada, conseqüência da particularização do “nós”, da submissão moderna do universal

ao local, do privilégio à existência política do estado em detrimento do mundo.

Mas esta não é uma maneira eficiente, muito menos convincente de legitimar um

campo do conhecimento. Para que o Realismo e, conseqüentemente as RI, sejam levados a

sério é necessário que essa expressão histórica de um saber socialmente construído seja

camuflada pela criação de uma grande tradição do pensamento político internacional. Uma

tradição a-histórica, que desrespeitasse as particularidades socio-temporais de seus membros.

Nesse sentido o discurso realista estabelece uma origem, uma fundação, um ponto de partida

em um autor como Tucídites, e transforma sua descrição da guerra do Peloponeso, travada

entre duas cidades-estado separadas da contemporaneidade por mais de dois mil anos, em

uma proveitosa analogia da Guerra Fria. E como uma tradição não pode se constituir de um só

pensador, são adicionados autores diversos e complexos como Rousseau, Maquiavel, Hobbes

- e seu estado de natureza absurdamente “condizente” com a realidade internacional - Carr e

Morgenthau (WALKER, 1993). Todos sintetizados através de uma estratégia discursiva do

apagar das diferenças, do silenciar das inconsistências e do ressaltar das semelhanças. Ao

final, de acordo com Walker (1993), é estabelecida uma proto-identidade do que o Realismo,

e nesse sentido toda a disciplina de RI, viria a ser com Theory of International Politics (1979).

Todavia, independente da forma tomada pelas grand narratives23

, as inconsistências

silenciadas que lhe são inerentes não resistiriam a um rigoroso estudo histórico, que

evidenciasse e demonstrasse a arbitrariedade daquilo que é tomado por natural. A missão pós-

estruturalista seria fazer vir à tona tais inconsistências. Uma maneira particularmente

interessante de fazê-lo é contrastar o que é dito dos clássicos que compõe a tradição do

Realismo político. Em seu processo de desconstrução, Walker analisa o texto de Maquiavel, o

denominado pai da política de poder e da raison d'etat. Maquiavel atentara para o problema

em sustentar a ação do príncipe em sólidas fundações, na metáfora dos fortes (MAQUIAVEL

23

Seria possível conceber três grandes narrativas sobre a tradição das RI segundo Walker (1993). Primeiramente,

uma eterna disputa entre realistas e idealistas, entre teóricos preocupados com a natureza real do mundo, com

aquilo que ele realmente é, e teóricos preocupados com aquilo que ele poderia ser, com uma normatividade. Em

segundo lugar, um longo monólogo realista sem a presença de qualquer paradigma opositor. Em terceiro, da

forma como M. Wight a concebe, como a negação do conhecimento postulado pela ciência política, transcrita na

problemática da “analogia domestica”. (WIGHT, 1960).

56

apud WALKER, 1993). Por mais rígidos e seguros que parecessem, eles não teriam a

maleabilidade necessária, a virtuosa astúcia, embora possuíssem elementos da virilidade,

capaz de domar a deusa da fortuna. O príncipe não deveria se embasar em soluções anteriores,

pois estas poderiam não dar certo novamente. A imprevisibilidade da sorte fazia da virtú uma

espécie de sagacidade em adaptar-se ao contexto, às especificidades das necessidades

momentâneas, ao contrário de uma postura política imutável.

Ademais, Maquiavel não falara sobre o internacional, categoria que muito

provavelmente não lhe faria sentido algum, mas sobre a importância de instituições para a

existência e perseverança de determinado arranjo social. Sem a construção de Diques, de um

exército profissional, de homens guerreiros sempre prontos à luta, de um líder a ser seguido e

respeitado, mas que saiba medir o uso do poder, seria impossível controlar a deusa da sorte

(WALKER, 1993). Poder-se-ia argumentar ainda, que a concepção de tempo própria à Itália

na qual vivera Maquiavel, impossibilitaria qualquer associação de seu pensamento às formas

de racionalidade instrumentais concebidas pela contemporaneidade. Com essência, o rio pela

qual Maquiavel metaforicamente trata do tempo não é um rio de trajetória especificada, linear,

como no caso hobbesiano, mas uma força imprevisível do acaso e da fortuna, que promoveria

inundações ao bel prazer (WALKER, 1993).

Não obstante, a construção da tradição serviria ao propósito de reificar a distinção

inside/outside, entre o espaço ocupado pela possibilidade de existência de uma comunidade

política e seu contrário, sua negação completa. Uma vez, pois, naturalizada, essa dicotomia

faria crer, por exemplo, que a ética e as RI seriam saberes inerentemente opostos. Ora, o

conceito de ética para Walker pressupõe um nível de universalidade mitigado pela solução

particularista do conceito de soberania. Só pode haver ética para dentro dos Estados, para fora

destes, somente a “ética dos fins” weberiana. Isso se torna um problema na medida em que o

intolerável, aquilo que não pode ser, se transforma, e cada vez mais toma força, na percepção

da “comunidade internacional”. Depois de Auschwitz, Bósnia e Ruanda, tornou-se mais

difícil fechar aos olhos ao que acontece para além da dimensão doméstica, e assumi-la como

simplesmente um espaço fora de questionamentos éticos. Essa talvez seja uma medida

significativa de um descontentamento da resposta provida pelo conceito de soberania. Talvez

questões como a formulação dos direitos humanos ou as pressões políticas de diversas

sociedades civis ao redor do globo por soluções a problemas que a priori não lhes diriam

respeito representem isso. Uma forte percepção de que o “nós” deve ser repensado, de que o

respeito ao particular talvez não baste mais. Há uma pressão para que a ética, o progresso, a

57

democracia e o tempo deixem de ser qualidades exclusivas do inside, e tornem o internacional

cada vez menos apolítico.

2.2.2 Thomson

Janice Thomson (1994) assume o pressuposto “crítico” de que o conceito de soberania

seria constituidor da dicotomia inside/outside e questiona outro elemento fundamental às

teorias de RI, seu objeto de análise por excelência, o estado. Em primeiro lugar, a autora

expõe problemas e lacunas advindas das concepções weberiana e giddensiana daquilo que

constituiria a soberania estatal, do que atribuiria aos Estados a condição de atores mais

importantes no ambiente internacional. Sua argumentação perpassa o estudo histórico do

estado como uma entidade política que deteria o monopólio do uso (legítimo) da força, ou da

violência e suas implicações para além da dimensão da política doméstica. A rigor, Thomson

(1994) demonstra que, nos períodos anteriores à época moderna - mais especificamente até

1900) - o estado não era o único detentor de meios coercitivos no ambiente externo e

tampouco reivindicava sê-lo (THOMSON, 1994). Em linhas gerais, a violência era tratada

como uma espécie de commodities e sua existência e continuação eram encorajadas por

unidades políticas que possuíam meios restritos de projeção de poder. A força de trabalho

militar, a mão de obra guerreira foram durante grande parte da história ocidental uma fator

“internacionalizado”. O recrutamento e a “contratação” de mercenários, corsários e

companhias de comércio eram um meio economicamente interessante aos Estados, para

alcançarem determinados objetivos sem o dispêndio de quantias desnecessárias de recursos.

Era comum, pois, delegar certas missões a esse agentes privados da violência sob a promessa

de que poderiam tomar para si metade dos espólios de guerra, ou como no caso do rei inglês

Henrique VIII em um decreto de 1544 , todo ele.

Tal era a dependência dos Estados europeus para com forças mercenárias, que

originariamente não haviam nascido, tampouco se naturalizado cidadãos do estado pelo qual

lutavam, que, em 1700 a 1770 os componentes estrangeiros dos exércitos europeus chegavam

a mais da metade do total das tropas (THOMSON, 1994). Em 1751 cerca de 25% do

contingente militar espanhol eram estrangeiros. Na França pré-revolucionária o número era da

ordem de um terço, e a marinha era composta inteiramente de corsários. Em 1701 a Grã

Bretanha contava com 54% de estrangeiros em suas tropas e em 1743, no caso mais

impressionante, o exército da Prússia era composto por cerca de 66% de não prussianos. Nos

58

anos de 1807 mais de 6 mil norte americanos se alistariam na real marinha britânica, enquanto

em 1878 60% dos marinheiros estadunidenses havia nascido fora do território americano

(THOMSON, 1994). Em termos gerais, a nacionalidade e a naturalidade não eram critérios

fundamentais para o serviço militar. O que regia os recursos disponíveis às potências e aos

demais Estados era uma espécie de lei da oferta e demanda internacional da violência. Para

lutar pela França, por exemplo, bastava que se estivesse disposto a fazê-lo e, portanto, ariscar

a própria vida em nome de outros, e que se cobrasse um preço razoável, no limite, dentro das

condições do contratante. A prática que Maquiavel (1996) via como prejudicial à república, a

dependência em relação a exércitos mercenários, era em verdade mais comum do que o

pensamento moderno permite pensar.

Uma das razões para isto residiria na lógica feudal da obrigação militar (THOMSON,

1994). No medievo, os nobres cavaleiros se viam coagidos, dada a relação de vassalagem, a

um serviço militar muito curto, de cerca de 40 dias no ano, que dizia respeito tão-somente à

defesa do território de determinado suserano. A conseqüência, portanto, era uma

impossibilidade física, material, talvez contratual, de contar com aquilo que se entenderia em

termos contemporâneos por um exército regular para quaisquer excursões militares ou

projeções de poder. Isso apresentava em decorrência lógica, um vácuo mercadológico que

viria a ser ocupado por esses mesmos nobres que, por definição, estariam livres para

“venderem” sua força de trabalho pela maior parte de suas vidas. Ademais, era interessante

aos senhores que assim o fizessem, caso contrário não conseguiriam atacar outros territórios e,

como conseqüência, aumentar seu poder econômico e político, cujas configurações medievais

eram territoriais.

Mas, por mais que em um primeiro momento a guerra de corso e os exércitos

mercenários fossem interessantes, quiçá essenciais aos feudos/Estados, com o passar do

tempo e o fortalecimento desses atores privados, as unidades políticas que deles se utilizavam

tiveram de tomar uma decisão. Ou o aumento gradativo do poder dos atores privados, em

especial as companhias de comércio, cresceria a ponto de desafiar o predomínio estatal, como

fora o caso de quando um gigantesco corpo de corsários tomou a capitania do Rio de Janeiro

das mãos da coroa portuguesa (THOMSON, 1994), ou a violência internacional deveria sofrer

alguma forma de regulação, ou mesmo restrição. Isto posto, ao longo dos anos a violência

privada exercida no mar, por exemplo, fora ora taxada de pirataria (uma ato ilegal pelo qual o

estado não se responsabilizaria), ora taxada de guerra de corso (uma iniciativa privada

autorizada pelo monarca ou parlamento).

59

Para uma satisfatória compreensão do processo de exclusão da violência não estatal do

mercado internacional é necessário entender, acima de tudo, a mudança na concepção de

soberania no período das revoluções do século XVIII. Esse tipo de critério, categoricamente

desconsiderado pela tradição realista das RI, foi o que deu início ao fim da violência privada

internacional24

. Quando das primeiras utilizações desta, provavelmente durante a guerra dos

100 anos (THOMSON, 1994), o fator de legitimidade das formas existentes de domínio

estava atrelada ao próprio monarca, a figura sacralizada do rei. Era relativamente fácil,

portanto, permitir com que atores privados se valessem de meios coercitivos para alcançarem

seus objetivos no exterior, sem que houvessem maiores conseqüências para o reino. O

motivo? O monarca poderia simplesmente negar qualquer autorização prévia, algo até então

necessário, a tal ato, ou mesmo acentuar seu caráter privado. Ao fazê-lo ele estaria protegendo

a esfera pública, o reino, de qualquer sorte de retaliação. Afinal, não é razoável pensar que um

homem ou grupos de homens sejam punidos pelos atos de outro.

Com as revoluções, a soberania fora transplantada da figura do rei e introjetada

diretamente em seus “súditos”, seu povo. Num mundo consciente de uma volonté generale,

tornou-se impraticável para as unidades políticas não arcar com as conseqüências dos atos de

violência, quaisquer que fossem, que emanassem de seu território. O exercício privado da

violência, ao qual outrora o governante pudera facilmente negar autorização prévia, era então

entendido sob pena de retaliação imediata, retaliação ao todo, do qual tal parte pertencera.

Ora, uma vez que a legitimidade estatal, sua própria razão de ser, passou a emanar do cidadão,

era inevitável que o estado fosse responsabilizado pelas ações deste. A partir desse ponto, o

recurso à violência não estatal tornou-se impraticável. O que de início fora economicamente

proveitoso, transformara-se em algo por demais ariscado.

2.2.3 Weber

Seguindo a crítica às premissas fundamentais das RI, Weber (1995) problematiza a

relação entre os conceitos de soberania e estado (statehood). Para o main stream da disciplina

ambos são tratados enquanto auto-referentes, servindo um de significação ao outro. O estado é

usualmente explicado como um ente soberano, e a soberania é concebida como tão-somente

uma propriedade estatal. A questão que persiste a qualquer resposta acerca da relação entre

esses dois conceitos tão caros às RI é, em concordância com o pensamento de Walker, a

24

Como efetivo recurso estratégico dos estados. Obviamente, casos de violência privada não autorizados, por

sua própria natureza, independem de tais considerações.

60

necessidade vislumbrada por aqueles que se pretendem estudiosos do internacional em reificá-

los. Independente a posicionamentos realistas ou idealistas - uma taxonomia “tradicional”

recuperada por Weber - a análise dos fenômenos internacionais perpassam a não

problematização do estado enquanto ator dotado de agência, bem como da soberania como o

ponto de partida da pesquisa. Para (neo)realistas, o sistema internacional advém da interação

de um número qualquer de unidades políticas autônomas, e portanto soberanas, que respeitam

relações tipo-lei probabilísticas transhistóricas. Essa corrente teórica, que concebe o locus da

comunidade política como algo particularizado, quase pulverizado, se sustenta sobre uma

concepção de soberania que não pode ser, não só questionada, como também sofisticada.

Qualquer tipo de aferição mais profunda sobre o que seria a soberania, o que ela representaria,

sobre sua verdadeira essência, impediria a continuação do raciocínio realista. Afinal, toda

ciência deve partir de algo que lhe sirva como sujeito de predicação (ARISTÓTELES, 2002),

um sujeito que ela mesma se recusa a contestar, uma vez que, caso o fizesse, colocaria em

cheque sua própria razão de ser. Não se vai a lugar algum se não se parte de algum lugar, e o

Realismo é explícito quanto à pretensão positivista de chegar a algum lugar (WALTZ, 1979).

Essa lógica, embora o hábito da contraposição absoluta nos leve a pensar o contrário,

cabe também à corrente idealista. Para argumentar em prol da existência de uma comunidade

internacional (BULL, 2002) que atribua a qualidade de soberanos aos diferentes Estados , e

cujas regras e normas (institucionalizadas, ou não) funcionem como condições primeiras à

interação, deve-se ter também um ponto de partida qualquer. Nesse caso, a premissa tido

como incontestável é a existência de uma comunidade interpretativa que justifique o

conhecimento intersubjetivo necessário à formação de normas e regras. No limite, a idéia de

um direito internacional (entendido mais enquanto um quadro normativo comum aos Estados)

que atribui às unidades aquilo que as torna Estados : a soberania, implica igualmente reificar a

soberania como propriedade do estado. No fim, nada foi dito sobre a natureza de ambos,

apenas foram feitas elucubrações acerca de seu funcionamento (WEBER, 1995).

O grande problema dessa prática de reificação das premissas teóricas, desse apego a

uma ontologia incontestável de determinados conceitos, é a decorrente exclusão de suas

variações históricas de sentido. Dizer que a soberania é uma qualidade do estado (aquilo que o

constitui enquanto tal) ou mesmo dizer que o estado é um ente, ou um ator soberano,

geralmente uma afirmação traduzida como uma autoridade máxima sobre um povo ou

território (WEBER, 1995) implica invariavelmente no congelamento de ambos os conceitos.

61

Ora, conceituar25

é em si mesmo uma prática que abstrai de uma singularidade aquilo que dela

pode ser transposto ao universal. Nesse sentido, portanto, Weber critica a prática, inerente às

pretensões generalizantes de certas abordagens das RI, de estabilização de conceitos como

soberania e o estado, conceitos que, em verdade, são constantemente construídos e

reconstruídos socialmente. Dada essa condição, termos como soberania e estado não possuem

uma essência, uma ontologia, um sentido que independem do contexto histórico no qual são

empregados, aqueles são, ao contrário, fruto deste.

Para evidenciar esse congelamento artificial, essa prática com a qual o teórico delimita

de ante mão o sentido de seu objeto de observação, tentando posteriormente encontrá-lo no

que considera como o “mundo lá fora”, buscando como fim último um sentido que seja

“verdadeiro”, Weber analisa a problemática da intervenção. Ao fazê-lo, ela introduz a noção,

com base nos escritos de Baudrillard, da impossibilidade de representação, ou da

representação não de um significante a um significado, mas da redução do próprio sentido ao

significante: o simulacros. Além disso, nos termos propostos por Walker (1993), Weber

contesta uma espécie de metafísica do ser, em prol de uma metafísica do tornar-se, não da

“congelada” permanência ontológica de determinados conceitos, mas de sua mudança

contínua. De fato, a autora trata do “fazer” enquanto anterior e constituinte ao “ser”. Ela o faz

através de evidências históricas que demonstram, a rigor, como sentido de soberania (o

significado ao qual o significante “intervenção” remete) variou ao longo do tempo. No geral,

a fonte de legitimidade, bem como as atribuições - que Thomson formula como parte da

dimensão funcional da soberania - nem sempre foram as mesmas. O ano de 1700

aproximadamente, marcaria uma espécie de passagem da fonte de legitimação da autoridade

política de Deus e, portanto, do corpo físico do monarca, para o povo e, portanto, a estrutura

“física” do estado (WEBER, 1995).

2.2.4 Bartelson

Bartelson (1995) constrói uma crítica às pretensões universais das abordagens

estruturalistas através de um estudo histórico do conceito de soberania. Para o autor, qualquer

25

Essa delimitação do que seria conceituar, esse exercício de conceituar o conceituar é algo que, ironicamente,

abstrai da prática de conceituar algo que a partir dela possa ser universalizado. Ademais, por delimitar o espaço

do que seria o ato do conceituar, invariavelmente cria-se o espaço do não - conceituar. Admitindo um alto grau

de incomensurabilidade entre esses “espaços” comuns ao pensamento dualista ocidental, faz-se necessário

afirmar que sob hipótese alguma essa definição de conceituar exclui todas as outras possibilidades por ela não

compreendidas. Ela não exauri o significado do termo, porque este afinal, assumindo a lógica saussuriana, não

esta no termo (HARLAND, 1987; DOSSE, 1993).

62

tentativa de transpor o comportamento dos Estados -nacionais do século XX em termos de

regras gerais que valeriam para qualquer unidade política, independente de seu tempo

histórico, incorreria num grotesco anacronismo. A soberania, enquanto um conceito, ou idéia,

esta intimamente ligada às bases epistemológicas de seu tempo, àquilo que possibilita ao

homem pensar da forma como este pensa. Nesse sentido, imaginar que o que hoje é entendido

por soberania teria o mesmo valor semântico em outros tempos, cujas bases epistemológicas

diferem em muito do conhecimento arquitetado ao redor do homem, da episteme moderna,

seria no mínimo ingenuidade. Dessa forma Bartelson tenta demonstrar como as bases do que

se entendia por conhecimento e o conceito de soberania mudaram, em concomitância, com

passar do tempo, e como isso se refletiu nas relações de identidade e alteridade da vida

política. Assim, assumindo a demarcação foucaultiana, A Genealogy of Sovereignty perpassa

as épocas históricas da alta Idade Média, do período clássico e da modernidade, analisando as

respectivas formas de concepção do conhecimento, a ontologia e sua relação com o conceito

de “soberania”.

Durante a alta Idade Média, ou o período que Foucault (1987) e Bartelson (1995)

chamam de Renascença, o conhecimento era construído através das figuras de similitude.

Saber era desvendar as relações de semelhança, analogia e simpatia entre entes separados no

espaço e tempo que haviam sido primeiramente estabelecidas pelo ato criador de Deus,

quando da junção entre as palavras e as coisas. Conhecer estava, pois, intimamente ligado à

identificação das semelhanças, na construção de uma série de interconexões analógicas

virtualmente infinitas entre as coisas. Num mundo no qual a identidade dita o que se conhece

e, por conseguinte, “o que é” o externo, o outside da comunidade política que se poderia

chamar, assumindo algum grau de anacronismo, de “Estado”, era na realidade ocupado por

um outro inside sobreposto, a cristandade. O conceito de tempo fora, com a introdução dos

escritos aristotélicos, transformado da efêmera contingência subjetiva de Agostinho – oposto

à eternidade divina – para o simples movimento no espaço – que agrega tanto nosso conceito

de movimento físico como as relações de geração e corrupção em geral. O tempo se tornara

eterno, e a mudança, embora possível, não traria mais do que a recorrência. O horizonte de

possibilidades era limitado: o mundo sempre fora e sempre seria da forma como ele é. Nesse

ambiente nasceu a Teoria Geral do Estado, que associava monarca, Deus e a lei de modo a

proteger o “estado”, o domínio da eternidade, de seu outro, entendido vagamente enquanto

contingência e a fortuna, os infiéis e os sentimento que tirassem da razão as rédeas da vida.

63

A era Clássica substituiria as relações de similitude medievais transformando-as em

delírios de mentes doentias, ou atrasadas, como na figura de Don Quixote de la Mancha

(FOUCAULT, 1987). O princípio regulador da episteme clássica, ao contrário de sua

antecessora, seria a diferença e não mais a identidade. Saber, na época da mathesis cartesiana

era identificar não mais aquilo que fosse semelhante entre as coisas, mas seus respectivos

graus de diferenças, qualitativas ou quantitativas de modo a construir uma grade de

ordenamento, uma taxonomia que as descrevesse em exaustão. Conhecer era buscar uma

partícula indivisível a partir da qual toda a ordem taxonômica se daria com base nas

diferenças. No mundo político, também sujeito às leis da mathesis, essa partícula fora

identificada na soberania, que, outrora imersa na confusa sobreposição jurídica medieval

agora se tornara indivisível.

Esse cenário se aproxima mais da conjuntura em que vivemos, mas não havia nada

próximo de um sistema internacional que sobrepujasse as partes que o compunha, somente

um conjunto de Estados ordenáveis. O que fazia destas unidades políticas objetos do

conhecimento era a partícula indivisível da soberania - um dualismo auto-referente entre Rei e

corpo político – que se tornava cognoscível através da análise de interesses. A cada estado,

com base em seus atributos econômicos, geográficos e sociais, era atribuída uma máxima

atemporal, que conectasse passado, presente e futuro constituindo sua essência. Através do

ordenamento desses interesses particulares era possível identificar um ordenamento

hierárquico valorativo entre os diversos Estados absolutistas. Para além da taxonomia de

Estados , não havia possibilidade de conhecimento. A alteridade se configurara por sobre as

porções territoriais, mas o teor universalistsa da mathesis permitia pressupor que cada

partícula se comportasse de maneira igual, assimilando, pois, a possibilidade de previsão do

comportamento.

É só através da episteme moderna que a soberania se configura na relação dialética

entre doméstico e internacional, como uma membrana que ao mesmo tempo separa e confere

existência a esses dois reinos políticos. A partir dos séculos XVII e XVIII a humanidade

concebe a existência de forças para além da simples observação do conhecimento clássico. Ao

invés de simplesmente construir o conhecimento por meio do ordenamento diferencial entre

as coisas mundanas, passa a ser preciso compreender as forças ocultas que gerem esses

mesmas coisas, muitas vezes fora de sua compreensão imediata. Ao mesmo tempo, o homem

passa a ser duplamente sujeito de cognição e objeto cognoscível, trazendo para si a soberania

que uma vez residira sobre Deus, e posteriormente no monarca. Através do conceito de

64

vontade geral, a justificativa para a existência do estado é transportada à noção de nação,

configurando o estado-nacional soberano, cujo outro é o domínio “entre as nações” do qual,

dada natureza reflexiva da soberania, aquele necessita para existir. No seu outro as promessas

da modernidade não podem ser cumpridas.

A mais impressionante característica da base epistemológica moderna, no entanto, é a

historicidade com a qual todas as coisas mundanas são vislumbradas. Tudo possui uma

história, e essa história permite a construção das grandes narrativas. O passado deixa de ser

um reservatório de exemplos empíricos, o conjunto de todas as coisas possíveis e o presente

se emancipa rumo a um futuro indeterminado. Natureza e sociedade são divididas em torno da

história: da inação à capacidade de construção e reconstrução das coisas pelo homem, sujeito

que se torna ator do conhecimento através da crítica Kantiana da razão pura. Nesse contexto, é

possível finalmente conceber o sistema internacional: o conjunto de leis e relações

subjacentes que determina ou compele as unidades; o todo orgânico-funcional maior que a

soma de suas partes. Assim, restam ao homem moderno duas possibilidades: ou continuar

vivendo no conflito criado pela dialética da soberania – a possibilidade de progresso e da

vontade geral espacialmente delimitadas por sua ausência num internacional anárquico – ou

utilizar de sua capacidade criadora no tempo para fazer valer o conceito universal de

humanidade, fruto da ascensão do homem ao centro do universo.

2.2.5 Campbell

Campbell (1998) analisa o papel da ameaça na formação e reprodução de uma

categoria que, com a virada construtivista, tornou-se prolífera nas RI: a identidade estatal. Em

particular, seu estudo perpassa a construção de uma identidade “americana”, um construto

talvez mais abstrato do que qualquer outro26

, ao longo da história. Para Campbell, essa

concepção arbitrária do que seria o “ser americano”, essa delimitação espacial de uma

comunidade política específica dependeria de uma ameaça a qual seria contraposta, de um

risco frente ao qual seria necessário. Em sua “natureza”, o estado enquanto forma de

organização política precisaria justificar sua razão de ser, afinal, o processo fictício de cessão

de soberania individual quando do contrato social hobbesiano não poderia ter sido em vão.

Essa justificativa se daria através de um mecanismo muito eficaz: o medo.

26

Campbell embasa seu argumento de maior arbitrariedade da identidade americana por não haver uma América,

sob a figura de um estado, à qual esta representaria, em contraposição à identidade francesa, inglesa ou

espanhola que diriam respeito à França, Inglaterra e Espanha respectivamente.

65

Dizer que o estado se legitima pelo medo não é de maneira alguma traduzir o

pensamento maquiavélico de um príncipe que devesse ser temido (MACHIAVELLI, 2002)

mas ao contrário, remeta à construção do medo em si, de um algo a ser temido em razão do

qual o estado teria se erguido, em sua função máxima de proteção. Se não houvesse nada a

temer, não haveria por quê para tamanho dispêndio de recursos na construção do aparato

estatal. Portanto, a lógica dessa instituição que, assume-se, deseja perdurar no tempo é a de

construção e constante reafirmação de seu contraposto, do perigo do qual defende sua

população, seu “povo”. Tradicionalmente, esse perigo, essa ameaça poderia parecer não mais

do que uma obviedade, algo que sempre esteve presente, independente da mente humana ou

da época histórica. Poder-se-ia argumentar que o convívio social sempre houve, que o ser

humano sempre se organizara para se defender do que o ameaçava, desde animais a outros

grupamentos humanos. Nesse sentido, a “comunidade” seria quase que uma necessidade

biológica de um ser que sozinho na natureza seria ridiculamente frágil (HARLAND, 1987).

Essa rationale, todavia, se baseia numa distinção negada pelo Pós-Estruturalismo.

Dizer que o perigo é exterior, que é de fato objetivo, é, pois, conceber uma dimensão que seja

puramente exterior e objetiva. Embora Campbell vislumbre perigos que assim o sejam, como

doenças, por exemplo, nem mesmo estas escapam à construção social e à interpretação. A

dimensão dada a problemas aparentemente naturais, por exemplo, por ventura foge

completamente à realidade objetiva. Nos Estados Unidos da América, por exemplo, a AIDS, a

imunodeficiência transmitida pelo vírus HIV, é compreendida como o maior problema de

saúde pública pela população. Essa percepção parece ser indiferente, ao fato de que a gripe, o

alcoolismo e o suicídio matem mais em termos absolutos (cada um deles) do que o HIV. A

definição do que é perigoso pode sempre ser arbitrário.

Essa definição, esse exercício arbitrário de definição de um algo que se deve temer,

não é dissociado da própria definição de quem deve temê-lo. Em outras palavras, a criação do

perigo é parte fundamental da dinâmica da construção da identidade estatal. Ao longo de

Writing Security (1998), Campbell evidencia uma América não pelo que ela é, mas pelo que

aprendera a temer ao longo de sua existência. Nativos, súditos da coroa britânica, espanhóis,

mexicanos, comunistas e usuários e traficantes de drogas foram todos fundamentais para a

continuidade do ser americano ideal, de sua identidade normativa. Por diferentes períodos

históricos serviram de pontos de contraposição a partir dos quais se fazia possível pensar uma

América branca, livre, puritana, democrática e sadia. Naturalmente, isso nada tinha de natural.

66

Todos as comunidades listadas, e outras mais, foram construídas enquanto um “outro” e

relegadas para fora do espaço identitário americano.

A essas comunidades construídas como o “outro” americano foi justamente atribuído a

função da ameaça, do perigo ao qual a América deveria se precaver, resistir, e jamais

sucumbir. Ilustrativa, nesse sentido, é a figura do “forte Apache”, uma fortaleza para dentro

da qual o modo de vida WASP estaria protegido da selvageria dos nativos pagãos não

civilizados. Transpondo por analogia o “forte apache” ao período de 1960 a 1980,a famosa

Guerra Fria, é possível observar um fenômeno semelhante na doutrina da deterrence nuclear

entre as super potências. O estado norte americano altamente militarizado teria se construído

enquanto uma espécie de fortaleza contra o perigo iminente do comunismo sino-soviético.

Que esse perigo era real, não havia dúvidas. E como usualmente acontece com aquilo ao qual

são atribuídas as características de real, exterior e objetivo, a ameaça soviética foi tomada

como dada, tida como indiscutível, inclusive para a teoria das RI. A idéia de guerra fria foi

cristalizada nas interpretações de um embate entre o Ocidente e Oriente, entre capitalismo e

socialismo. Comuns a essas interpretações é a não dissociação da dimensão discursiva e não-

discursiva, da teoria e da prática.

David Campbell, através de uma perspectiva foucaultiana, propõe uma nova

interpretação da Guerra Fria, não como período particular sem precedentes, mas como um

ponto num contínuo de reprodução de uma identidade americana. Sob esse ângulo, a história

dos EUA transcorreria pela constante oposição de um “nós” unificado a um “outro”

radicalmente oposto. A guerra fria, assim concebida, não acabou nem poderia acabar. A

oposição a uma ameaça externa, fator constitutivo do “nós” americano, seria sua própria

condição de possibilidade, sem a qual perderia seu sentido. A queda da União Soviética não

significaria mais do que a necessidade de encontrar uma nova ameaça, um novo inimigo.

Necessidade esta talvez satisfeita com o discurso da “guerra contra as drogas” do governo G.

H. Bush. (CAMPBELL, 1998).

Ao questionar o conceito de identidade estatal como anterior à prática, como algo que

de alguma forma a orientasse, o Pós-Estruturalismo das RI desafia as bases sob as quais a

política externa é pensada na disciplina. De modo geral, para que se tenham identidades

fixadas que orientem o comportamento, e mais importante, que sejam exteriores ao discurso, é

preciso assimilar completamente a distinção entre inside/outside. Essa distinção advêm da

prática comum ao main stream em atribuir prioridade temporal ao ambiente doméstico frente

o internacional (WALKER, 1993; CAMPBELL, 1998). Isso quer dizer que, tradicionalmente,

67

as RI pensam o outside como uma junção de diferentes insides plenamente dissociáveis e

independentes. Nesse puro exemplo de lógica individualista, as unidades comporiam o todo

por meio de um processo de interação contínua. Assim sendo, a política externa não poderia

ser outra coisa que não a criação de “pontes” entre Estados distintos, sem quaisquer conexões

a priori. A construção discursiva da identidade, introduzida pela chamada abordagem

interpretativista, impossibilitaria esse tipo de conclusão. No geral, porque trabalha com uma

filosofia da história completamente distinta.

Compreender a política externa como o esforço de conexão entre domínios separados,

ou como a resposta à estímulos externos ao estado depende necessariamente de uma

interpretação histórica particular: A plena superação da igreja pelo aparato burocrático secular

do Estado. (CAMPBELL, 1998). É fácil entender o porquê da Europa, antes um continente

unificado sobre a cristandade, ser vislumbrado como um mosaico de Estados particulares, de

domésticos dissociáveis. Ora, a resposta jaz na queda dessa cristandade, na completa

secularização da política que reorganizaria o espaço europeu no pós-westfalia. A dominação

romana havia acabado e o que lhe seguira, antes de qualquer continuação, era sua total

negação. Com os processos de racionalização e de secularização, a “morte de deus”

propriamente dita, espaços que não existiam passaram a existir, como algo denominado

Espanha, Rússia, Inglaterra, Itália e Alemanha. Onde só existia o Império Romano, foram

criados diferentes insides que, a rigor, possuíam pouco, ou nada em comum, e não se poderia

esperar o contrário. Assim seria criado o ambiente internacional, com uma forte ruptura com a

ordem que lhe antecedera. Restaria, então, à política externa, criar “pontes” entre aquilo que a

modernidade seccionara.

Esta interpretação, todavia, representaria uma mera caricatura do que realmente

aconteceu (CAMPBELL, 1998). Ao invés da superação plena da ordem religiosa, o processo

de instituição do estado se deu através da cristandade, em concomitância com a secularização

gradual dos assuntos concernentes à Santa Sé. No geral, as alegorias do inferno e dos

demônios foram substituídas pelas alegorias da anarquia, da guerra, da morte e da barbárie,

permanecendo a prática do “evangelismo do medo”. A coesão social de um mundo sem Deus

viria majoritariamente da periculosidade desse mundo. Os Estados , dessa forma, delimitariam

suas identidades internas, seus insides através de um discurso do medo, para o qual o “mundo

lá fora”, inacabado, seria caótico e ameaçador.

Esse tipo de construção identitária, una, homogênea e absoluta, tal como as epistemes

foucaultianas, pressupõe necessariamente uma política de exclusão. Novamente, delimitar

68

algo é delimitar aquilo que esse algo não é. Em termos da construção de uma identidade

coletiva, isso transcorre por um processo de dupla exclusão. O passo que é definido um

inside, em oposição a um outside, elementos conflitantes do inside, da própria concepção de

“nós” são conectados ao outside, ao perigo externo que ameaça a identidade. Na história

americana, grupos marginalizados como negros, homossexuais, trabalhadores e mulheres

foram associados ao comunismo e às drogas. Durante a guerra fria, o homossexualismo e a

feminilidade foram atrelados ao comunismo. A América precisaria ser uma nação forte e viril,

caso contrário sucumbiria às mazelas socialistas. (CAMPBELL, 1998). Planos de saúde e

medidas de assistência social eram taxados de “aberrações comunistas”. De forma

semelhante, acreditava-se, no período da “cruzada” contra as drogas de George H. Bush, que

jovens negros de baixa renda seriam mais propensos ao uso de cocaína, embora as estatísticas

apontassem exatamente o contrário.

Ainda, de acordo com a abordagem “interpretivista”, existiriam dois tipos de política

externa. O primeiro, denominado foreing policy, corresponderia à própria prática de formação

das identidades. nesse sentido mais sociológico, a política externa representaria a delimitação

de um “nós” em contraposição a um “eles”, conectando elementos “subversivos” a identidade

específica que se pretende delimitar, à ameaça externa. Ela compreenderia, pois, toda a

dinâmica da dupla exclusão. O segundo tipo de política externa seria a Foreing Policy , a

prática de pronunciamentos oficiais e execuções governamentais, uma política pública

formulada em nome de um público que nunca está presente. O que na visão tradicional

responderia pela interconexão entre ambientes domésticos distintos, funcionaria mais como

ferramenta de (re)construção das fissuras que ela mesmo pressupõem. A política externa

oficial serviria à reafirmação das foreing policies previamente estabelecidas, assegurando com

sua continuidade no tempo. O que supostamente deveria construir “pontes” entre os povos,

seria aquilo que sistematicamente os manteria afastados. Ao final, faria com que uma

arbitrariedade parecesse natural, fixando em um determinado ontos a fluida construção das

identidades.

2.2.6 Hansen

Hansen (2006) aprofunda a análise da formação indentitária de grupos políticos e sua

relação com as práticas da política externa estatal. Em primeiro lugar, a autora define o caráter

relacional do estabelecimento e da reprodução da identidade ao longo do tempo. Dizer o que

69

alguma coisa é, que características possui, é, automaticamente, dizer o que ela não é, negar-

lhe um sem número de outras características. Simplificadamente, um “eu” que existisse

sozinho, sem qualquer “outro”, um “não-eu” ao qual aquele se referiria, faria pouco, se não

nenhum sentido. Definir a identidade é mais uma prática de delimitar um terreno (sob o

perdão da metáfora territorial moderna) e diferenciar aquilo que está dentro do que esta fora.

O ser algo necessariamente remete ao seu oposto, ao que não se é. Ao tomar parte na virada

lingüística saussuriana, Hansen concebe a identidade como algo relacional, formada por uma

série de conexões e superposições entre diferentes signos (FIG. 3).

Figura 3- Conexão e diferenciação da identidade

Fonte: adaptado de HANSEN, 2006, p.20

Ao contrário de Alexander Wendt (1999) e outros teóricos ditos racionalistas, Lene

Hansen (2006) e Campbell (1998) não entendem a identidade como algo passível de posse.

70

Para construtivistas e liberais os Estados teriam certas características identitárias que seriam

anteriores à interação per se. Em Social Theory of International Politics (1999) Wendt

descreve um suposto primeiro encontro entre ego e alter, entes completamente distintos, cujas

existências até então independiam uma da outra. Esse exercício de abstração através do qual,

segundo o autor, a intersujetividade é criada e o mundo social é dotado de sentido

(ZEHFUSS, 2002), ilustra a separação entre o eu e do outro concebida pelo main stream de

RI. No fim, ego e alter só começariam a se relacionar depois de já terem se constituído

enquanto eu e outro num processo tanto anterior quanto necessário à interação. Não há a

construção relacional da identidade nos moldes pós-estruturalistas, só possíveis relações de

causalidade exercidas por uma qualidade inerente aos atores (suas identidades) sobre seu

comportamento. Para esse pensamento tradicional, o comportamento democrático de

determinado ator não construiria sua identidade enquanto democrata, mas seria antes causada

por ela. O objetivo da pesquisa passaria a ser a descoberta dos fatores ideacionais que

exercessem alguma influência sobre padrões comportamentais.

O Pós-Estruturalismo nas RI, como visto, transforma essa relação. O self passa a

depender do outro, na medida em que a própria construção da identidade é compreendida à

luz daquilo que é negado. Hansen exemplifica os processos de conexão e superposição dos

signos no exemplo do que fora considerado ser uma mulher até muito recentemente no século

XX. Com efeito, a feminilidade era associada às características de fragilidade, emotividade,

maternidade e inferioridade intelectual. Essa correlação de termos era contraposta, e dai

retirava seu sentido, ao atrelamento da masculinidade para com a força, a racionalidade, a

paternidade (pater familias) e superioridade intelectual. Essa superposição de signos fazia do

homem um ser naturalmente excelente para a política, enquanto a mulher era considerada

incapaz. Nesse sentido, o feminino seria construído como oposto ao masculino, seu contrário

extremo, e ao mesmo tempo desvalorizado perante este.

Transpondo o raciocínio para o universo dos Estados, essa construção antagônica teria

ocorrido de maneira semelhante nos casos de Milosevic e da segunda guerra do golfo. Na

Guerra da Bósnia, a comunidade de Estados do oeste europeu freqüentemente se valia do

termo “Bálcãs” para designar o conflito na região. Implícita, e por vezes explícita na idéia de

Bálcãs estavam uma série de qualidades diretamente opostas ao que era entendida como a

identidade européia. Ao povo balcânico eram associados termos como sub-desenvolvidos,

bárbaros, violentos e passionais, enquanto aos europeus era atribuídas as características

opostas de desenvolvimento, civilidade, pacifismo e racionalidade. No geral, essa construção

71

identitária servia para caracterizar a guerra como algo além de qualquer solução política27

passível de ser realidade pela Europa ocidental. Ela era fruto de um ódio irracional acumulado

pela população local ao longo de mais de meio milênio (HANSEN, 2006). Nesse sentido, o

construto “identidade” também possuiria considerável valor político, apresentando a guerra

como única maneira viável de dar fim ao genocídio.

Mas o chamado “outro radical” não e a única possibilidade sob a qual se edificaria a

identidade de ego. Os processos de correlação e diferenciação poderiam tomar, a princípio,

um amálgama de alters como pontos de partida, possuindo cada um deles diferentes graus de

oposição às qualidades atribuídas ao self. Não seria necessário a construção do “eu”, em

abstrato, uma oposição radical, total para com o “outro”. Hansen apresenta a possibilidade de

um “espectro de alteridade” no qual as qualidades do outro28

poderiam inclusive se

assemelhar às de ego. Um exemplo frutífero dessa relação é a construção da identidade

iraquiana pela política externa americana quando da Segunda Guerra do Golfo. O Governo

Bush se valeu de três identidades diferenciadas para a legitimação da invasão: os Americanos,

o Iraque opressor e o Iraque oprimido. A América congregaria os valores de liberdade,

democracia de maneira análoga à experiência européia. Ao Iraque opressor, personificado na

figura do ditador Saddan Hussein, foram associados os signos contrários de tirania,

aprisionamento, tortura enquanto ao Iraque oprimido, o povo iraquiano, foi atribuída uma

identidade mais próxima à americana.

Não é somente possível a construção identidade sobre um outro mais brando, como

este não necessariamente precisa ser espacialmente situado. De acordo com Wæver (WÆVER

apud HANSEN, 2006) A União Européia (UE) teve sua identidade constituída não em relação

a um “outro” físico, mas a um self temporal que lhe era contrário. Uma Europa unida fora

pensada a partir dos horrores da desunião das primeira e segunda grandes guerras. No geral,

Hansen sistematiza a análise de discurso pós-estruturalista nas RI, sofisticando a abordagem

da construção identitária apresentada por Campbell.

No próximo capítulo serão analisados os trabalhos de Walker, Campbell e Bartelson à

luz do historicismo-crítico com o qual tais autores operam suas críticas. Walker, porque

trabalha puramente no campo da reflexão teórica, tornando o exercício de evidenciar seu

conservadorismo histórico mais difícil do que o normal. Campbell, porque se utiliza da

perspectiva histórica na teorização das relações entre identidade e política externa, um tema

27

Entendendo o exercício da guerra como o cessar da política. 28

No fim, alter, o outro nem sequer precisaria dizer respeito a alguma coletividade humana. Animais, Deuses,

Espíritos ou demônios funcionariam igualmente enquanto pontos de oposição para a construção de um ego

unificado.

72

comum ao main stream teórico das RI que o Pós-Estruturalismo visa desconstruir. Bartelson,

por fim, por ser aquele que expôs explicitamente uma proposta genealógica, não poderia ser

deixado de fora da desconstrução das condições de possibilidade dessa forma de saber

histórico.

73

3 O IMPERATIVO CONTEXTUALISTA

Distance in time prompts a mental illusion just as distance in space prompts a

sensory illusion. The contemporary does not see the necessity of that which comes

into existence, but when century lies between the coming into existence and the

viewer – then he sees the necessity, just as the person who at a distance sees

something square as round. (KIERKEGAARD, 1985, p. 79)

Nos capítulos anteriores discorreu-se acerca das diferenças entre a perspectiva

sincrônica (estática) do movimento estruturalista das ciências sociais e a perspectiva

diacrônica (mutável) do movimento pós-estruturalista. No que tange à disciplina de RI, é

possível vislumbrar essa diferença por meio da contraposição de estudos “estruturalistas” a

estudos “pós-estruturalistas”. Ao contrário de Walker, Weber, Campbell e outros pós-

estruturalistas, que entendem os fenômenos internacionais enquanto historicamente situados e

passíveis de mudança, o chamado Realismo Estrutural de Waltz advoga por um sistema

internacional que, a rigor, geraria na época contemporânea os mesmos condicionantes à ação

política do que nos tempos bíblicos (WALTZ, 1979).

Esse pressuposto de imutabilidade sistêmica do Realismo estrutural, de “eterna

recorrência”, seria tão forte que justificaria a aplicação dos princípios de funcionamento do

sistema internacional a qualquer época histórica, do antigo Império Assírio ao Ocidente dos

séculos XIX e XX, da China Antiga ao Império Maia e à Grécia Antiga (KAUFMAN;

LITTLE et al., 2007). A “estrutura da política internacional permanece altamente constante,

padrões recorrentes e eventos se repetindo indefinidamente”(WALTZ, 1979, p.67-68,

tradução nossa).29

Aos princípios ordenadores dessa estrutura, sobretudo à distribuição de

capabilities, é atribuída, pois, uma característica que transcende a história, tornando a

passagem do tempo uma variável pouco frutífera para os fins da análise.

Nesse sentido não seria absurdo compreender o movimento pós-estruturalista nas RI

como um movimento de volta ao estudo histórico, de volta à utilização da reflexão histórica,

outrora abandonada pela “síntese neo-neo” e pela “revolução behaviorista” (NEUMANN;

WÆVER, 1997). Para o Pós-Estruturalismo não é suficiente que se façam análises lógicas de

diferenças espacialmente condicionadas, é preciso que se identifiquem descontinuidades

temporais, diferenças semântico-epistemológicas entre o contexto histórico no qual o

fenômeno ocorre e o presente. Diferenças que uma análise sincrônica não seria capaz de

vislumbrar. Essa (re)introdução do perspectivismo histórico, contudo, traz em si mesma, uma

29

The texture o International politics remains rightly constant, patterns recur, and events repeat themselves

endlessly.

74

série de pressupostos e assunções “não problematizadas”, próprias à historiografia que devem

ser esclarecidas. Se o Realismo Estrutural trata o conceito de “soberania” enquanto

inquestionáveis, como os pós-estruturalistas apontam, estes também desconsideram qualquer

teor problemático quanto a um conceito em particular: o conceito de história.

Em seus primórdios30

o saber histórico era considerado essencialmente uma arte de

erudição. Num tempo anterior ao século das luzes, a então considerada arte de conexão dos

homens com seu passado era levada a cabo majoritariamente por antiquários, que buscavam

vestígios arqueológicos ou/e textuais de eras antigas. Desse aparentemente supérfluo

exercício, considerado enquanto tal por razões discutidas mais adiante, fora extraído um

conceito fundamental ao fazer histórico dos séculos XIX e XX, o conceito de “fato histórico”.

(HOOPER, 2007). Em seu âmago, essa ferramenta conceitual diria respeito aos

acontecimentos da ordem de um real, de um verdadeiramente acontecido. Por mais incrível

que possa parecer a um(a) homem/mulher contemporâneo(a), no tempo em que “aquilo que

mais poderia se aproximar do que entendemos por verdade” era delegada aos eruditos

responsáveis por antiquários, o homônimo do moderno conceito de história tinha por maiores

preocupações questões retóricas à questões epistemológicas (HOOPER, 2007). Em outras

palavras, a separação que gradualmente aprendemos entre história e literatura, separação

cunhada sobre aquilo que chamamos de “realidade” em oposição a uma suposta “ficção”, era

sob todos os aspectos inexistente. Histórias eram simplesmente estórias.

Não obstante, essa comunhão inicial fora gradativamente se dissolvendo na medida em

que o então “gênero histórico”, como o compreendia Voltaire (BARROS, 2011c), se deparava

com as demandas de cientificidade da razão iluminista. A logocracia ocidental, em sua busca

por formas de conhecimento absolutas que sobrepujassem saberes inferiores, transformara a

questão do real em algo efetivamente problemático31

. O que seria real e o que seria ficcional,

a oposição que nos permite distinguir entre literatura e história hoje, a partir de definições

simplistas de ambas, estava longe de ser claro quando da época de uma arte histórica. Quando

a faculdade do pensar era ditada pelos chamados universais escolásticos, a verdade não era

“feita de objetos específicos que podem ser acessados através dos nossos sentidos”

(HOOPER, 2007), ao contrário, ela era fruto de um processo sistemático de abstração. Nas

30

Ou ao menos naquilo que historiadores consideram como sendo a “origem” pré-científica da história

(HOOPER, 2007). 31

Não que o problema do real, do “verdadeiro”, segundo Barros (2011c) fosse algo particular à historiografia -

no sentido de fazer histórico estritamente moderno. Desde Heródoto, supostamente haveria uma preocupação

com as coisas como elas realmente aconteceram. Essa preocupação, todavia, se relacionava mais com a

idoneidade da pessoa do “historiador” do que propriamente da forma epistemológica como a concebemos.

75

palavras de Tomás de Aquino (1999) “aquilo do que o intelecto adquire certeza é certamente

mais inteligível”. Nesse mundo as figuras de “anjos”, ou de “Deus”, entes maximamente

inteligíveis e, por conseguinte, maximamente separados dessa matéria que provê a certeza

positivista seriam o que haveria de mais real ou verdadeiro. Algo não mais possível num

mundo pautado pela racionalidade empírica, para o qual o valor de verdade de proposições se

iguala a sua referência para com um mundo exterior e objetivo.

Essa nova “realidade”, ou nos termos kuhnianos, “paradigma” que se inicia com as

Grandes Revoluções32

influencia na formação e institucionalização da disciplina moderna da

história. Nesse processo de definições das fronteiras disciplinares a história se separa da

literatura e da filosofia da história subjetiva de Kant e Hegel (BARROS, 2011c) e busca, para

reforçar tal separação, reivindicar seu caráter científico nos conceitos de arquivo, fato

histórico e evidência (HOOPER, 2007). Assim, os Século XIX e XX retrocedem ao fazer

histórico dos antiquários, primando em sua “ciência normal” (KUHN, 1970) no afazer diário

do historiador, pela verdade acima de tudo, pelo passado como este realmente aconteceu.

A instituição do chamado modelo documental, ou positivista (BARROS, 2011b) não

foi nada fácil. Assumir as pretensões científicas do século das luzes representou, à agora

disciplina da história, a assimilação de tensões paradoxais de difícil resolução. O caráter

científico ao qual o modelo documental se atrelara demandava necessariamente a formulação

de leis gerais. Ora, se há uma razão de ser da “ciência” como a concebemos, esta só pode ser a

possibilidade que lhe é intrínseca de previsão dos fenômenos ao qual o homem/mulher este

sujeito(a), e por definição, não controla (ainda). Tal característica se transfigura num

“paradoxo”, ou ao menos num incomodo significativo, quando somos lembrados de que a

história é um saber baseado no particular. Desse modo, a discussão geral de

institucionalização da história como disciplina acadêmica “desafiava o conhecimento

histórico - que se pautava no particular- a formular leis e regras gerais” (HOOPER, 2007,

p.49).

Embora de fato o paradigma do “modelo documental” e do “arquivo”, para o qual o

metier do historiador consistiria, de acordo com Dilthey (apud HOOPER, 2007), em uma

espécie de “dupla transparência” 33

, tenha se constituído enquanto paradigmático através dos

trabalhos de Burkle, Taine, Renan e Condorcet (BARROS, 2011b), nem toda comunidade

científica se satisfizera com ele. Imaginar que ambas as fontes primárias e secundárias

32

Para Fasolt (2004), A Revolução Histórica e as Revoluções Burguesas do sec. XVIII. 33

Na “dupla transparência” assumida pelo modelo documental positivista ambas as relações entre texto-verdade

e historiador-texto se dão automaticamente sem nenhuma perda de sentido para além de anacronismos e

deficiências.

76

possuiriam uma espécie de relação de transparência para com a “realidade” não agradara à

chamada escola historicista de Chladenius, Dilthey, Herder, Droysen e Humboldt (HOOPER,

2007; BARROS, 2011b). Para esses pensadores, denominados historicistas - ou no caso de

Chladenius, proto-historicista ou romancista - entre o texto e a “verdade” haveria um hiato

passível de superação a partir de uma lógica interpretativa, da lógica hermenêutica. Tal

metodologia interpretativista trabalha com a máxima de que o historiador, para compreender a

verdade por trás do texto, deveria tentar ao máximo mirar seu olhar para aquele/aquilo que

observa, do observado-observador. Esse método responderia por uma forma de compreensão

dos fenômenos vividos que, a rigor, significaria “colocar-se na posição do outro” (HOOPER,

2007, p.63), uma posição verdadeiramente cômoda para aquele que estivesse buscando a

verdade. É através de algo próximo à essa lógica historicista que Gatterer estipulou os

critérios segundo os quais qualquer de seus contemporâneos poderia compreender a

verdadeira visão possuída por Tito Lívio da Roma antiga. Para o autor, era necessário que se

fosse algo como um professor universitário que vivesse sob uma espécie de regime político

misto para que se escrevesse corretamente a história do verdadeiro Lívio (KOSELLECK,

2006). História, nesse sentido, se assemelharia ao máximo esforço para se vivenciar o vivido

que se desejasse contar. Dever-se-ia, para a tradição historicista, experienciar o “presente” de

um passado que se desejasse trazer de volta ao presente.

Embora o modelo documental positivista nunca tenha sido capaz de resolver o

problema do lugar reservado ao historiador na obra histórica, a tensão

subjetividade/objetividade que simultaneamente responderia pelas condições de possibilidade

e impossibilidade de uma história científica, o “arquivo” aparentemente possui maior apelo

sobre a comunidade científica do que a interpretação. O “gosto dos historiadores pelo

empírico” (HOOPER, 2007, p.71) talvez tenha feito da proposta historicista um método

marginal no interior da disciplina. Contudo, mesmo que marginalmente utilizado, por mais

que não tenha alcançado status de ferramenta “paradigmática”, a vertente hermenêutica trouxe

de fato contribuições para a historiografia contemporânea34

. A mais importante das

contribuições talvez tenha sido a crítica documental (BARROS, 2011b), a introdução de

preocupações semânticas, a pressuposição, ainda que “conservadora”, da possibilidade de

mudanças temporais de sentido, movimento sem o qual não se desafiaria o caráter universal e

teleológico da historiografia científica. Na medida em que propunha a maior singularização

34

De acordo com Hooper (2007, p.70) “Um estudo de filiação historiográfica mostra que a hermenêutica está

embutida nos principais autores e correntes da historiografia contemporânea. Sendo afirmada ou recusada, a

hermenêutica marca a sua presença.”

77

dos eventos históricos, a hermenêutica se desfazia do “véu” que encobria e maquiava a

presença de um homem em uma obra. Para a tradição historicista, o historiador, uma

existência incômoda ao modelo documental, é compreendido como um criador em si, que

através do processo de interpretação (re)constrói uma história a ser contada. A hermenêutica,

aproxima arte e ciência, literatura e história (HOOPER, 2007).

Seria possível continuar descrevendo as diferenças que fazem do modelo positivista e

da hermenêutica/historicismo formas antagônicas de construção do conhecimento histórico.

No entanto, tal estratégia não seria, em nada, interessante aos objetivos do presente trabalho.

Por mais que haja diferenças significativas entre a busca por leis gerais objetivas e sua

assumida impossibilidade (conseqüências imediatas da vinculação aos modelos documentais e

hermenêutico, respectivamente), elas não passam de diferenças específicas. Estas, dado sua

condição, não impedem o ordenamento da história documental e historicista a um só gênero: o

gênero histórico. Subordinadas ao “grande paradigma” da história, positivistas e historicistas

compartilham de um mesmo axioma.

Ambos têm como condição comum de possibilidade a distinção entre passado e

presente (FASOLT, 2004; HOOPER, 2007), fruto da compreensão vetorial de uma

temporalidade progressiva (BARROS, 2011c). Por mais óbvia que possa parecer, tal distinção

é imprescindível a toda forma de conhecimento histórico. A noção de tempo subjacente à essa

dicotomia pressupõe duas dimensões diferentes: o “ontem” e o “hoje”, o “antes” e o “agora”.

A história - moderna, sempre moderna - divide a realidade em duas porções: um passado que

se esta ausente e um presente do aqui vivo. A história inscreve na experiência um corte: entre

a forma como as coisas eram e a forma como as coisas são (FASOLT, 2004). Tanto a

abordagem historicista quanto a positivista necessitam de um passado ausente, diferente do

presente do qual falam, que seja efetivamente falado. Ausente, para que se justifique buscá-lo.

Diferente, para que não seja redundante dizê-lo.

Falar da História, pois, é falar de uma maneira particular de lidar para com esse

passado. De acordo com Fasolt:

Nossa atitude para com o passado é governada por três princípios:

1. O passado se foi para sempre;

2. Para entender o sentido de um texto, deve-se primeiro colocar esse texto no

contexto de seu tempo e espaço;

3. Não podes dizer aonde vais se não sabes de onde vens.

78

[...] Tão óbvios que não são sujeitos à dúvida, mas se fundamentam em pressupostos

sobre o tempo e a eternidade, a verdade e o sentido, liberdade e responsabilidade que

não são nem um pouco óbvios. (FASOLT, 2004, p. ix, tradução nossa).35

Dentre as três principais maneiras pela qual lidamos com aquilo que entendemos por

passado nos são particularmente interessantes as duas primeiras. O passado se foi para

sempre, e, portanto, é o reino da ausência, daquilo que, como dito, não está presente. Não se

pode vivenciá-lo ou experimentá-lo, ele se foi. O que quer que tenha “passado”, não está mais

aqui. Ora, a segunda proposição: “Para entender o sentido de um texto, deve-se primeiro

colocar esse texto no contexto de seu tempo e espaço.” (FASOLT, 2004, p. 9) poderia ser

entendida como uma decorrência lógica da primeira. O sentido, como tudo o mais pertencente

ao passado, pode igualmente estar ausente. Para verdadeiramente compreender um texto, é

imperativo que ele seja “colocado” em seu contexto, naquilo que o provê de sentido.

Esse imperativo metodológico: “Colocarás tudo no contexto de seu tempo” (FASOLT,

2004, p. 6, tradução livre)36

é o mais importante “mandamento” da historiografia (BARROS,

2011a), seu verdadeiro modus operandi (HOOPER, 2007). Aos que não se conformam à esse

princípio, advindo da característica “ausência do passado”, resta o perigo do anacronismo, do

desentendimento, da falha na obtenção da verdade, do passado como ele realmente foi. Esse

“imperativo contextualista” previne o historiador, ou qualquer estudioso que faça uso da

história, do risco de compreender o passado nos termos do presente (BARTELSON, 1995).

Um risco ao qual estão sujeitas ferramentas teóricas sincrônicas, tais como as do movimento

estruturalista. Nesse sentido até mesmo os conceitos que porventura possam parecer os mais

“puros”, os mais desprovidos de manipulação humana, mais “naturais”, correm o risco de

apresentarem sentidos temporalmente divergentes.

Mas em que o imperativo da contextualização diz respeito ao modelo positivista de

história? Tudo o que foi dito até aqui sobre a força do contexto assume o pressuposto

interpretativista da mudança de sentido ao longo do tempo. A mudança de sentido só se torna

um problema para aqueles que a entendem enquanto significativa. É difícil vislumbrar uma

ciência, preocupada com leis gerais e padrões macro-estruturais, como se pretende a história

positivista, estipulando de maneira hermenêutica que cada história deva ser entendida em seu

35

Our attitude toward the past is governed by three principles: 1. the past is gone forever; 2. To understand the

meaning of a text, you must first put in the context of its time and place; 3. you cannot tell where you are going

unless you know where you are coming from [...] So obvious that they are subject to no doubt. But they rest on

assumptions about time and eternity, truth and meaning, freedom and responsibility that are neither simple nor

obvious at all. 36

Thou shalt place everything in the context of its time.

79

determinado contexto. Uma dificuldade que elucida o paradoxo ao qual se sujeita o modelo

documental, a tensão da “generalização” a partir do particular.

A expressão “contextualizar”, todavia, diferente do que se possa ter dado a entender,

não serve somente aos propósitos de uma história que se preocupa com a interpretação do real

sentido dos textos com os quais trabalha. O que se denomina por contexto, pode igualmente

ser visto como aquilo que faz da história a história, aquilo que nos permite falar de uma só

história. Colocar em contexto é também prover de sentido eventos aparentemente desconexos

(HOOPER, 2007), é unificar múltiplas histórias sob o nome de História (KOSELLECK,

2006). O contexto também torna inteligível a unidade em meio ao caos, e como qualquer

exercício de abstração, faz o pensamento viável (STOCKER, 2006).

Talvez não seja em vão lançar mão de um exemplo. O objetivo científico da

formulação de leis gerais, ou em termos históricos, padrões de comportamento só se torna

possível quando existe algo uno sobre o qual estipular tais padrões. Dizer que algo é comum,

ou esperado de um conjunto de coisas x só é possível, invariavelmente, tendo sido observado

ou construído, o conjunto em si37

. Desse modo, da mesma forma que a tradição hermenêutica,

com Weber, se utiliza da contextualização para falar de um “sentido da modernidade”, sendo

a modernidade, no caso, nosso conjunto de experiências x, também o positivismo o faz, com a

diferença de sê-lo em uma escala mais abrangente, para poder falar de uma História com H

maiúsculo. A diferença entre múltiplas histórias e uma só História será esclarecida mais

adiante, no próximo capítulo. Nesse momento, basta que fique bem claro que, para os fins do

presente trabalho, todo conhecimento histórico moderno se utiliza da contextualização, seja

para mostrar diferenças e apontar anacronismos, seja para fazer da multiplicidade caótica algo

significativo.

Em suma, para ambas as abordagens da historiografia, se o objetivo é contar uma

história de maneira satisfatória, é preciso contextualizá-la. Mas esse caráter dualista do

contexto - capaz de ser invocado tanto para particularizações quanto para generalizações - que

possibilita afirmar que as abordagens estruturalistas, cuja análise se dá de forma sincrônica,

também levam em conta o “contexto” dos fenômenos analisados, parece incoerente com o uso

do termo na disciplina de RI. Como será visto logo abaixo, “colocar as coisas em seu devido

contexto”, para os estudiosos da política internacional38

, significa levar em conta sua devida

37

A construção de conjuntos ou gêneros taxonômicos pode ser compreendida através de um processo de

apagamento das diferenças específicas, como foi feito aqui no presente capítulo acerca dos dois modelos do

saber histórico, e pelo realçar das semelhanças. Aqui, onde anteriormente existiam dois tipos muito diferentes de

história, agora ha um grande conjunto História. 38

Ao menos para os chamados pós-estruturalistas.

80

historicidade. Sendo assim, por mais que historicizar não corresponda automaticamente a

contextualizar (HOOPER, 2007) o termo “contexto” será aqui significado dessa exata

maneira. Toda a vez em que nos referirmos à prática de colocar as coisas em seu devido

contexto, isso deverá ser lido como a compreensão de que tais coisas são históricas em sua

essência e, portanto, devem ser compreendidas à luz de seu tempo específico39

.

3.1 O Contexto em “Inside/Outside”

A sensação de que a vida e o pensamento político são severamente constrangidos

por horizontes intelectuais herdados é amplamente difundida. Essa sensação de

constrangimento é sentida no ceticismo popular para com ideologias políticas

estabelecidas. Ela caracteriza correntes influentes do pensamento social e político

contemporâneo. Ela encontra uma articulação particularmente interessante e

importante nas teorias modernas de relações internacionais.

Nesse contexto, as teorias de relações internacionais aparecem menos como

variações acerca da política de poder - indubitavelmente sua máscara mais popular -

do que como uma celebração de uma concepção historicamente especifica da

natureza, localização e possibilidade da identidade e comunidade política.

(WALKER, 1993, p.15, grifo nosso, tradução nossa).40

Esta é, a rigor, a razão de ser de Inside/Outside: International Relations as Political

Theory. Ao longo do restante do livro Walker busca de diferentes formas aquilo que propôs

nas primeiras quinze páginas, entender a disciplina de Relações Internacionais a luz do

contexto histórico no qual foi estabelecida.

Há maneiras distintas de se contar a estória das RI. É possível pensar em um eterno

debate entre realistas, aqueles que consideram o mundo como é, e idealistas, aqueles que

imaginam mundos possíveis. Pode-se contar a grande trajetória de uma tradição trans-

39

Esse movimento de igualação dos termos “contextualizar” e “historicizar” leva a um problema de definição

daquilo que chamamos de historiografia. Se o contextualismo é entendido enquanto a prática de compreensão

dos fenômenos a luz de seu tempo histórico específico, e se, igualmente, é a característica mais marcante daquilo

que entendemos como sendo a historiografia, então se configura um problema: a historia positivista, uma

abordagem que busca leis gerais e indiferente à passagem do tempo, não faria parte, a rigor, da Modernidade. Tal

afirmação poderia parecer absurda, uma vez que a “Modernidade” é usualmente (BEST; KELLNER, 1991;

BEST, 1995) associada às características da busca da verdade e objetividade, bem como de uma postura

científica positivista. Como então excluir da modernidade aquilo que alguns dizem ser uma de suas principais

características? Ora, uma forma particularmente elegante de fazê-lo seria considerar a modernidade não como

uma época, mas como um substrato epistemológico, como uma postura (BEST, 1995). Se a época moderna for

então subdividida nas eras clássica e moderna, então é possível pensar no historicismo como algo que aparece

somente com o advento da Modernidade. A análise sincrônica particular às abordagens estruturalistas seria,

talvez, vestígio de uma prática discursiva pré-moderna (BEST, 1995). Infelizmente, não cabe aqui discutir isso. 40

The sense that modern political life and thought is severely constrained within inherited intellectual horizons is

fairly widespread. This sense of constraint is felt in popular skepticism towards established political ideologies.

It characterizes influential currents of contemporary social and political theory. It finds a particular interesting

and important articulation in modern theories of international relations. In this context, theories of international

relations appear less as a set of variations on the theme of power politics - undoubtedly their most popular guise -

than as a celebration of an historically specific account of the nature, location and possibilities of political

identity and community.

81

histórica de pensamento realista, de pensadores que vão de Tucídides a Weber em busca da

compreensão da lógica da política de poder. É, por fim, provável que ao se falar das RI

enquanto saber autônomo, a fala tome como oposto a ciência política. Esta é a concepção de

Martin Wight uma concepção particularmente interessante aos propósitos de Walker. Wight,

em Why is there no International Theory?(1966) atenta para os perigos daquilo que denomina

a “analogia doméstica”, a não diferenciação entre os fenômenos domésticos e internacionais.

Todas as estórias, contudo, partem de um mesmo ponto, de um pressuposto em comum: a

existência de uma tradição das RI. Tradição que, na maioria das vezes envolve o nome de

Nicolau Maquiavel.

O trabalho de Maquiavel é constantemente citado como um clássico do pensamento

“realista” das RI (WALKER, 1993). Sua descrição do homem político, do governante é

geralmente idealizada como aquele que busca a política de poder ou o recurso a força em

detrimento de uma moral universalista. O Príncipe é tomado como um exemplo de

pensamento a-histórico, uma obra que revela as verdades do comportamento inter-estatal, as

relações tipo-lei de um ambiente internacional imutável. Em certos sentido, Maquiavel é

transformado em um dos “pontos arquimedianos” das RI, a partir do qual é possível legitimar

todo o status de disciplina autônoma. A busca pela generalidade científica do Realismo

Estrutural encontra na política maquiavélica uma espécie de evidência, de que, independente

aos nossos esforços, o internacional será sempre o domínio da recorrência (WALTZ, 1979).

Mas dizer que o pensamento de Maquiavel se reduz a isso nada mais é que uma

caricatura (WALKER, 1993). O “fundador” da ciência política (GOODIN; KLINGEMANN

et al., 1998) construiu um pensamento muito mais complexo do que qualquer tentativa de

defini-lo como uma espécie de “proto-Realismo” faria transparecer. Maquiavel não é

simplesmente um teórico da política de poder, “ele propõe questões sobre a comunidade

política e a prática que podem ser ainda perseguidas, embora suas respostas exponham suas

próprias limitações históricas e conceituais” (WALKER, 1993, p.31, tradução livre).41

Em

cima dessas limitações históricas Walker inverte magistralmente o argumento main stream.

De “ponto arquimediano”, de um dos mitos fundadores da disciplina, de evidência de padrões

de comportamento recorrentes, Maquiavel é discursivamente transformado num pensador

muito mais relativista, num autor que desconfia de todo e qualquer tipo de fundação rígida.

Ao invés de evidenciar leis universais de comportamento, “o príncipe” de Walker glorifica a

41

Machiavelli poses questions about political community and practice that may still be pursued even though his

answers expose his own limited historical and conceptual horizons

82

maleabilidade: “O homem que adapta seu curso de ação à natureza dos tempos [...] terá

sucesso” (WALKER, 1993, p.44, tradução livre).42

A desconstrução da “caricatura” realista se dá por um processo de contextualização.

Walker retira Maquiavel de seu posto trans-histórico de “legislador” universal do

comportamento estatal, e o coloca em um lugar do tempo muito específico:

Maquiavel escreve no contexto de condições muito particulares, de modo que é

alguém que tem de ser entendido dentro do contexto geral da vida e cultura

renascentista. Longe de ser alguém em contato com alguma essência atemporal da

vida política, Maquiavel era alguém tentado fazer com que circunstâncias históricas

específicas fizessem sentido, através de categorias discursivas que lhe estivessem

disponíveis (WALKER, 1993, p.35, tradção nossa).43

O Príncipe, longe de constituir um manual a todo e qualquer governante, de toda e

qualquer época, é um trabalho destinado a prover uma diferente forma de estruturação da

comunidade política, uma forma contrária à universalidade cristã de uma política da

eternidade, do “fora do tempo”. Ao invés da complicada organização de jurisdições

sobrepostas e do império universal, do dominus mundi (WALKER, 1993; FASOLT, 2004),

Maquiavel reivindicava ao stato, a uma delimitação espacial, a função de proteção dos

indivíduos frente aos infortúnios da fortuna, dos problemas temporais.

Tal como as enchentes que assolavam a Florença do século XVI, o imaginário

temporal da renascença ilustrava a sorte (fortuna) com a metáfora de um rio. Um rio, que ao

invés de correr linearmente para um destino definido de antemão, transbordava ciclicamente

ao bel prazer. Assim, para salvar o stato um Maquiavel não mais realista, mas republicano,

clamava pelos homens de virtú. Sua resposta ao manejo político envolvia sim a construção de

um corpo armado, capaz de defender a república contra ameaças externas, mas não mais do

que de um espírito cívico e de instituições sólidas, capazes de defendê-la contra sua própria

sorte (WALKER, 1993).

O conceito de virtú invoca não só qualidades militares de um guerreiro e as

qualidades cíveis necessárias à cidadania, mas também as qualidades pelas quais o

herói viril seria capaz de seduzir a Fortuna, de preparar as margens e os diques

42

The man who adapts his course of action to the nature of the times [...] will succeed. 43

Machiavelli writes in the context of some very particular circumstances, that he is someone who has to be

understood within the broader context of Renaissance life and culture. Far from being someone in touch with

some timeless essence of political life, Machiavelli was someone trying to make sense of historically specific

circumstances, and trying to do so in the discursive categories then available to him

83

contra as enchentes iminentes. Em uma linguagem humanista especificamente

renascentista. (WALKER, 1993, p.39, tradução nossa).44

A obra de Maquiavel, sua tentativa de reconfiguração das relações de espaço e tempo,

ilustra claramente, segundo Walker, o horizonte de possibilidades de localização da

comunidade política no contexto das teorias de RI. A divisão entre interno e externo, entre

uma comunidade doméstica da virtude política e das instituições, contrastaria com o ambiente

anárquico da política de poder. O problema da “caricatura” realista de um teórico da

realpolitik, ou de um cientista político buscando padrões de comportamento recorrentes, é o

esquecimento da historicidade do pensamento Maquiavélico. Tentar transformá-lo em

universal é, no mínimo, uma ironia. Se Maquiavel possuía alguma relação com o

universalismo, esta era a de oposição, advogando uma política do tempo terreno, do agora, da

contingência. Walker desafia, assim, toda e qualquer tentativa de “atualizar” Maquiavel, de

fazê-lo parecer um realista, um cientista político, um autor contemporâneo. Todas essas

tentativas estão fadadas à contradição. Afinal, “A teoria positiva de Maquiavel faz pouco

sentido a não ser que seja lida no contexto do significado clássico da vida em uma

comunidade política.” (WALKER, 1993, p.41, tradução nossa).45

De acordo com Walker, a mesma máxima “nada pode ser compreendido fora de seu

contexto” valeria também para as abordagens daqueles que constroem essa caricatura de

Maquiavel. As teorias de RI, no que diz respeito a sua própria compreensão das possibilidades

de localização da comunidade política, devem ser analisadas pela lente de uma concepção

espaço-temporal própria aos séculos XVII e XVIII (WALKER, 1993).

Um dos principais pontos de divergência entre realistas e “idealistas”, compreendidos

num sentido mais amplo como “não-realistas”, é a temática da importância dos Estados

enquanto atores internacionais. Para a corrente realista, supostamente, o estado permaneceria

ad aeternun, como o ator de maior preponderância no sistema internacional, os verdadeiros

entes dotados de “agência”. A passagem do tempo na forma de aprendizado,

institucionalização, normalização e interdependência não seria capaz de minar tal

importância, como advogariam os não-realistas, mas ao contrário, só poderia reafirmá-la cada

vez mais. Novamente, como recorrente em Walker, a temática importa menos do que as

condições de possibilidade que a suportam. Saber o que acontecerá com o estado não é o

44

The concept of virtù invokes not only the military qualities of the warrior and the civic qualities necessary for

citizenship but also the qualities through which the virile hero is able to seduce Fortuna, to prepare the banks and

dikes against the oncoming flood. In a specifically renaissance humanist language 45

Machiavelli's positive political theory makes little sense unless read in the context of the classical account of

life within a political community

84

ponto. É preciso procurar aquilo que leva realistas e não-realistas a responderem da forma

pela qual respondem.

Entre afirmações acerca da inevitabilidade de um estado mundial (WENDT, 2003), da

criação de uma federação de Estados que reproduza a lógica doméstica da liberdade

individual (KANT apud WALKER, 1993) e da continuação da lógica da balança de poder

reinando sobre a anarquia internacional subjaze uma compreensão particular de espaço. Um

dos problemas das teorias modernas de RI que repercute, dentre outras conseqüências, na

confluência acrítica entre as categorias de “estado” e “nação” é a espacialização do conceito

de soberania. As RI, condicionadas pelo ordenamento político europeu pré-moderno,

compreendem a possibilidade de comunidade política enquanto geograficamente circunscrita,

espacialmente delimitada. Ser soberano segundo a famosa perspectiva weberiana, lembra

Walker, é deter o monopólio legítimo do uso da força dentro de um determinado território.

A história da soberania, daquilo que definiria uma espécie de alter ego político do indivíduo,

no caso, cidadão, é construída através de uma série de metáforas espaciais tais como a descrita

acima. E o Ocidente, através do que Walker - seguindo Derrida - chama de metafísica da

presença foi condicionado a pensar na dicotomia dentro/fora.

O mapa político ocidental convencional é altamente linear, incrivelmente preciso (ao

menos em aparência) seccionado em distintas parcelas e contínuo, no sentido em

que, com apenas algumas exceções (geralmente envolvendo áreas não povoadas) ele

é inteiramente 'preenchido'. O mundo se transforma, no imaginário popular do

Ocidente, em um rígido mosaico não só lembrando padrões de propriedade privada

locais, mas sugerindo o que é entendido como células bem defendidas e claramente

demarcadas identificadas em alguns estudos de territorialidade animal. (WALKER,

1993, p.130, tradução nossa).46

Embora geralmente “não problematizado” o condicionante espacial das relações

internacionais modernas não é, sob hipótese alguma, algo de ordem natural. Ele advêm das

considerações acerca do espaço homogêneo euclidiano – co-extensivo ao conceito de espaço

absoluto newtoniano – constituinte da organização política européia no século XVIII que

culminou no princípio da soberania como o conhecemos.

A concepção de espaço da geometria de Euclides assume uma série de cinco

postulados que convergem para a homogeneidade espacial. O primeiro postulado assume a

possibilidade de se desenhar uma linha reta no espaço entre dois pontos quaisquer. Aqui já é

46

The conventional Western political map is highly linear, incredibly precise (at least in appearance), partitioned

into distinct parcels, and continuous in the sense that, with only a few exception (generally involving

unpopulated areas). It is entirely 'filed'. The world become, in the popular western image, a rigid mosaic

resembling not only local property patterns but suggesting what are understood to be the well-defended and

clearly demarcated cells identified in some studies of animal territoriality.

85

possível perceber que o que se entende por espaço deve possuir propriedades tais que

mantenham as leis da geometria constantes por toda sua extensão. Caso o espaço euclidiano

não se comportasse dessa maneira, “homogênea”, e porventura possuísse bolsões de

heterogeneidade, tal seja, espaços que possuíssem diferentes propriedades geométricas dentro

de um mesmo “espaço”, não seria possível traçar uma linha entre dois pontos quaisquer,

tampouco estendê-la indefinidamente – o segundo postulado de Euclides. O terceiro e o

quinto postulados, a inexistência de restrições ao tamanho de um círculo e a possibilidade da

criação de figuras idênticas independente à escala, respectivamente, reforçam a infinitude e

continuidade espacial (WALKER, 1993).

Essa compreensão historicamente situada sustenta, por exemplo, as respostas de Hertz,

Wendt, Kant e Claude acerca das possibilidades de criação de um estado/federação global

(WALKER, 1993). Ora, tal construto, entendido como uma cópia idêntica a seu homônimo do

ambiente doméstico em escala de magnitude diferente tem por condição de possibilidade a

pressuposição da homogeneidade espacial euclidiana. Se os “espaços” doméstico e

internacional fossem tão heterogêneos quanto suas propriedades “geométricas” seria

impossível supor a reprodução de uma “figura” doméstica em “escala” internacional.

Imaginar que a anarquia internacional será sobrepujada invariavelmente por uma hierarquia

internacional nos moldes do estado contemporâneo difere muito pouco, Walker enfatiza, da

crença renascentista de que o embrião, aquilo que prove a forma, o eidos humano, se

assemelharia a um homem adulto em escala microscópica (WALKER, 1993). Menos do que

verdades absolutas, tais argumentos evidenciam uma temática de pensamento historicamente

condicionada, à qual Walker nomeia “temática de Gulliver”.

Lilliput se parece com nosso mundo humano em tudo exceto por sua escala menor;

Brobdingnag da mesma forma é meramente maior. Esse tema reflete a concepção de

um mundo microfísico que veio com a mecânica clássica, juntamente com sua

concepção associada de espaço euclidiana-newtoniana-kantiana. Assumia-se que o

espaço microfísico era exatamente como o mundo do senso comum, meramente

reduzido em sua magnitude. (WALKER, 1993, p.131, tradução nossa).47

Essa concepção da política transcrita em termos espaciais, bem como as resposta ao

problema da anarquia internacional baseadas na “temática de Gulliver” fazem parte da tensão

do pensamento contemporâneo entre a universalização e a particularização das práticas

47

Lilliput resembles our human world in everything but its smaller size; Brobdingnag likewise is merely bigger.

This theme reflects the conception of the microphysical world which came with classical mechanics, together

with its associated Euclidean-Newtonian-Kantian conceptions of space. Microphysical space was assumed to be

just like the space of the commonsense world, merely reduced in magnitude.

86

políticas. Se o princípio da soberania estatal circunscreveu a possibilidade da existência de

uma comunidade política interna ao estado, delimitando-a espacialmente, ele também o fez

com a possibilidade de progresso, igualdade, liberdade, e todas as outras promessas de

“iluminação” da modernidade. Se convivemos em um mundo cada vez mais globalizado e

conectado, é a supremacia da particularização territorial das possibilidades de universalização

que continua a ditar as práticas políticas. Só pode haver o universal e, portanto, a lei, a ética e

a identidade de um “nós” político para dento do estado nacional, para dentro de uma unidade

particular. Para que haja uma comunidade na esfera doméstica é preciso que a realpolitik

perdure sem fim no internacional. “A anarquia das relações internacionais deve então ser lida

como a condição tácita que torna todas as reivindicações pela universalidade para dentro do

estado possíveis” (WALKER, 1993, p.151, tradução nossa).48

Como conseqüência, a democracia, aquilo que supostamente deveria resolver as

incongruências da política atual, se vê impotente, construída por sobre as mesmas bases que

deveria derrubar. Como a política em geral, a prática democrática também se restringe ao

domínio do particular, à dimensão interna do estado. A despeito das pressões por direitos

humanos de um mundo cada dia mais interligado, demandante por uma reorganização dos

procedimentos de governança tradicionais, o cidadão e o estado continuam como as principais

categorias pensadas por teoria e prática política. Novamente, sem o contexto histórico (as

relações espaço-temporais modernas), não há compreensão satisfatória dos fenômenos (as

tensões contemporâneas da prática democrática).

3.2 O Contexto em “Writing Security”

O sentido da Guerra Fria irá sem dúvida mudar, mas se nos lembrarmos que a

expressão “guerra fria” foi cunhada por um escritor espanhol do século quatorze

para representar a rivalidade persistente entre cristãos e árabes, então reconhecemos

que esse tipo de guerra que a expressão denota é uma guerra pela identidade: uma

guerra que não é específica de um contexto, e portanto, não é enraizada na

existência de um tipo particular de União Soviética. (CAMPBELL, 1998, p.33,

grifo nosso, tradução nossa).49

A leitura desse parágrafo extraído de Writting Security demonstra uma tensão no

argumento de Campbell que se mantém constante por todo o livro. Ao primeiro olhar a 48

The anarchy of international relations might then be read as the tacit condition that makes all the claims to

universality within states possible. 49

The Cold War's meaning will undoubtedly change, but if we recall that the phrase cold war was coined by a

fourteenth-century Spanish writer to represent the persistent rivalry between Christians and Arabs, we come to

recognize that the sort of struggle the phrase denotes is a struggle over identity: a struggle that is not context-

specific and thus not rooted in the existence of a particular kind of Soviet Union.

87

afirmação de que a luta pela identidade não seria uma luta contextual, poderia nos levar a

questionar a filiação dessa obra “pós-estruturalista” aos pressupostos da historiografia

historicista. Contudo, na primeira linha, a asserção de que o “o sentido da Guerra Fria

certamente se transformará” coaduna com as preocupações das abordagens pós-estruturais

com relação às mudanças diacrônicas de sentido. Compelido a tornar o conceito de Guerra

Fria independente de um dos seus participantes - a União Soviética - e transformá-lo num

resultado da história Norte Americana, Campbell confere à formulação identitária nos moldes

da alteridade o benefício da trans-historicidade.50

Ao comparar a relação entre EUA e URSS -

ainda que de maneira superficial - com a tensão entre Cristãos e Árabes em uma Europa

medieval, Writing Security se aproxima mais de uma análise sincrônica particular às teorias

estruturalistas do que se poderia esperar.

O caráter trans-histórico da identidade não significa, contudo, sua constância no

tempo, ou imutabilidade. A identidade estatal para Campbell não é algo a ser possuído pelos

atores, tampouco uma categoria essencial que os tornaria aquilo que são. Identidade é uma

construção imaginária formada através de práticas discursivas. Identidade seria, então, uma

categoria fluida, passível de mudanças ao longo do tempo. O que deve ser entendido por

trans-historicidade das lutas identitárias não é o congelamento atemporal das formas pelas

quais as “nações” se percebem enquanto “nações”, mas sim a prática da construção per se.

Em outras palavras, o que é constante e aparentemente universal para Campbell - ao menos no

que diz respeito aos EUA - é a busca pela delimitação discursiva de um “nós”, do povo

americano, baseada na ameaça que um “outro”, o “não-americano” representa pelo simples

fato de existir. São admitidas variações qualitativas quanto à identidade americana, como será

descrito adiante, sem deixar a transcendentalidade do trato com a diferença.

O que permite as variações qualitativas da identidade “americana” é exatamente aquilo

que conecta o pensamento de Campbell à lógica historiográfica moderna: os efeitos

semântico-epistemológicos da passagem do tempo. Ao assumir com veemência que o sentido 50

Para que sejamos justos, na verdade, Campbell de fato situa a dinâmica da busca pela identidade com relação à

diferença na experiência histórica do ocidente. Entretanto, essa característica ocidental parece indiferente à

passagem do tempo, permanecendo uma constante. Writing Security nos permite imaginar que, ao invés de uma

prática historicamente situada, a formação da identidade por meio da alteridade seja uma característica social, ou

essencial ao mundo ocidental e, portanto, espacialmente delimitada.

Em outras passagens Campbell afirma: “ As with all republics, America has constantly confronted the dilemma

of securing legitimacy and establishing authority in a culture that renders ontological guarantees suspect.”

(CAMPBELL, p.131) e ainda: “Each and every republic faces a similar structural requirement, for no matter how

powerful or plausible are the claims of nations upon states, in no state are temporality and spatiality perfectly

aligned . Each state thus confronts and aporia in its identity which - just as Derrida argued with regard to

language and all acts of founding - cannot be overcome.” (CAMPBELL, p. 131). Não fica claro se tais

argumentos são temporalmente situados - o que não parece ser o caso - socialmente delimitados ou ainda

relacionados a uma espécie de “essência” da vida política republicana.

88

do termo Guerra Fria irá mudar e, não obstante, mostrar que de fato isso já ocorreu outras

vezes, Writing Security assume a oposição passado/presente enquanto significativa. O que

buscaremos demonstrar é que a universalidade conferida à luta identitária não é suficiente

para ofuscar o exercício historiográfico presente na obra. O contexto ainda é fundamental para

Campbell, embora, como visto, algumas categorias o escapem.

O primeiro sinal disso jaz no título do segundo capítulo: Provocations of our time

(Provocações de nosso tempo). Quais seriam as provocações da época em que vivemos? E

mais importante, porque começar um livro falando do contexto no qual ele é escrito? O que

faria de nosso tempo uma variável importante para a análise senão o fato de que, a rigor, ele é

único e, portanto, diferente daqueles que o precederam e os que o sucederão? Ora, o mais

significativo movimento de contextualização de Campbell é um movimento reflexivo, no qual

o autor contextualiza a si mesmo. Sua função introdutória, como primeiro capítulo, talvez

possa ser lida como um aviso, um lembrete de que o texto não passa de uma resposta ao

contexto, de que seu tempo lhe resguardou provocações com as quais ele agora tenta lidar.

Visto desse ângulo, Writing Security é um perfeito exemplo do movimento pós-estruturalista,

de (re)introdução do pensamento e reflexão histórica na disciplina.

A provocação reside na incompatibilidade, já identificada por Walker, entre uma

comunidade política cada vez mais universalizada e o espaço particular reservado à política: o

Estado. Essa inconsistência poderia ser percebida nas práticas de dupla exclusão mencionadas

no primeiro capítulo. Uma vez que as fronteiras espaciais e abstratas são fruto de uma

economia discursiva, em um processo de constante re-construção histórico-social, a

delimitação identitária inevitavelmente encontrará desafios tanto internos quanto externos. Na

busca para circunscrever o espaço de uma comunidade imaginária (ANDERSON, 2008), as

estratégias discursivas precisam identificar os perigos internos - aqueles que discordam da

identidade sendo construída - e os conectar a perigos externos, como se, ao invés de

participantes de uma determinada comunidade que discordam da forma como ela é

representada, tais “desafiantes” fossem agentes externos que visam o fim da comunidade em

que vivem. Posto em termos empíricos, a estratégia de dupla exclusão transforma os

“americanos” que discordam da “Postura espiritual, material e moral dos Estados Unidos da

América” (NSC 5602/1 apud CAMPBELL, 1998, p.29, tradução nossa)51

em “inimigos da

América”, “comunistas” ou “traidores”.

51

The spiritual, moral and material posture of the United States of America.

89

A estratégia de descontextualizar o termo “Guerra Fria”52

e torná-lo um fenômeno

particular subordinado à luta pela formação da identidade liberal/Americana perpassa a

contraposição à asserção realista do fenômeno Guerra Fria como resultado de um arranjo de

poder bipolar. Para o Realismo estrutural, independente a quaisquer que fossem as unidades

políticas participantes, a distribuição de recursos e capacidades militares presentes no período

de 1945 a 1990 invariavelmente levaria ao clima de tensão e à perspectiva de um conflito

entre os dois pólos. Sendo o interesse um dado que, para fins analíticos, é exógeno às

unidades sistêmicas, mudanças qualitativas nas mesmas unidades não acarretariam mudanças

nos resultados previstos. Se o Realismo descontextualiza o fenômeno Guerra Fria tornando-o

um mero resultado da distribuição material das capabilities sistêmicas, a análise de Campbell

contextualiza o fenômeno mostrando que tal distribuição pouco ou nada teve a ver com a

política de defesa americana.

Em verdade, a maneira pela qual a Guerra Fria é tratada como um fenômeno universal

pelas teorias tradicionais de RI tem raízes na maneira pela qual a temática da política externa

é vislumbrada pela disciplina. Tome-se por exemplo o argumento de Alexander Wendt quanto

à formação intersubjetiva entre os atores no sistema internacional. Para Wendt (WENDT,

1999; ZEHFUSS, 2002) a atribuição de sentido por parte dos Estados e suas conseqüências

para a conformação da identidade obedecem a três fases distintas. Em um primeiro momento,

um ator x e outro ator y, cujas existências individuais independem uma da outra, que jamais

haviam se encontrado de repente se vêem face a face. Como nenhum dos dois sabe

exatamente o que esperar do outro, o resultado do encontro é definido por duas subseqüentes

fases de interpretação mútua. Primeiro, y interpreta os gestos que x por ventura fizer -

inclusive o silêncio e a inação - gesticulando depois de acordo com o sentido atribuído ao

primeiro gesto. Em seguida, x interpreta a interpretação de y contida em seu gesto e,

novamente gesticulando, dá seqüência ao processo de significação, que, virtualmente,

prossegue ao infinito.

O interessante dessa transcrição da interação estatal é que ela constrói uma imagem

das unidades do sistema internacional como reinos completamente separados uns dos outros.

Nessa representação particular os Estados x e y sequer haviam tomado conhecimento da

existência de seus outros, antes do primeiro encontro. A despeito dos problemas relacionados

52

Deve-se atentar para as diferenças entre o “termo” Guerra Fria e o “fenômeno” Guerra Fria. Campbell visa

descontextualizar o termo Guerra Fria (ainda que aceite possíveis mudanças em seu sentido), mantendo o

fenômeno guerra fria como um episódio historicamente situado dentro da luta pela conformação da identidade

liberal/americana. De fato, a “verdadeira” descontextualizarão, no sentido de proteção à passagem do tempo ou

indiferença à temporalidade enquanto fluxo, só é construída no nível da luta pela identidade americana.

90

à ausência da linguagem falada (ZEHFUSS, 2002), essa interpretação do internacional

evidencia o quanto o mains tream das RI se baseia na abordagem individualista hobbesiana. A

interação entre os Estados é entendida da mesma maneira como a interação entre os

indivíduos quando da criação do contrato, de modo a conectá-los. Se x e y interagem - de

modo não conflituoso - tal como os indivíduos no estado de natureza, é tão-somente para que

haja algo em comum que possibilite a criação e manutenção da vida em sociedade. A

estrutura de sentidos intersubjetiva de Wendt é aquilo que liga um estado ao outro, uma arena

doméstica a outra.

De forma similar:

A análise de política externa [...] toma como seu foco de estudo as pontes que

sistemas completos chamados de Estados constroem para se conectarem, conectarem

seus subsistemas e até mesmo o mais abrangente sistema internacional do qual

fazem parte [...] Esses sistemas e subsistemas existem independente de, e

anteriormente à, qualquer relação que resulta da junção dessas “pontes” de política

externa. Essa ponte é conscientemente construída pelo estado em um esforço de se

fazer parte do grande sistema, e lidar com as incertezas e perigos que o grande

sistema reserva à sua própria segurança. Como um fenômeno julgado comum para

todos os Estados, falamos de uma política externa de um estado “x” ou estado “y”,

desse modo indicando que o estado é anterior à política. (CAMPBELL, 1998, p.38,

tradução nossa).53

Essa é a visão que a disciplina possui das práticas de política externa: como uma

forma de conectar reinos separados, de interligar dimensões independentes. Essa é a visão que

faz com que a Guerra Fria seja entendida como uma mera resposta norte-americana a um

estímulo externo chamado União Soviética. Essa é a visão responsável por extirpar toda

historicidade do conflito e transformá-lo num simples exemplo de funcionamento da lógica

bipolar. Essa é a visão que Campbell “desconstrói”.

Em primeiro lugar, o entendimento de que as unidades políticas que chamamos de

Estados são entidades separadas umas das outras e que a política externa, pois, é aquilo que as

conecta tem por condição de possibilidade uma narrativa histórica em especial, geralmente

não evidenciada, com respeito à transição do confuso sistema de lealdade medieval para a

lógica da soberania moderna. Ora as comunidades políticas particulares instituídas pelo

princípio da soberania, só podem ser pensadas enquanto entidades completamente separadas

53

Foreign policy analysis [..] takes as its focus of study the bridges that whole systems called states build to link

themselves and their subsystems to the even more encompassing international systems of which they are part [...]

These systems and subsystems exist independently of, and prior to, any relationship that results from their

joining by the “bridge” of foreign policy. That bridge is consciously constructed by the state in a effort to make

itself part of the larger system and to deal with the dangers and uncertainties that larger system holds for its own

security. As a phenomenon tough to be common to all states, we speak about the foreign policy of state “x” or

state “y”, thereby indicating that the state is prior to the policy.

91

umas das outras se a transição entre a cristandade e o moderno sistema de Estados for

entendida enquanto completa e abrupta. Só faria sentido falar de Estados que nunca tomaram

conhecimento uns dos outros - ao menos no que tange ao sistema europeu - se a comunidade

política universal da cristandade houvesse sido completamente destruída com a passagem para

a modernidade. Só é possível pensar na interação entre Estados como a construção de pontes,

se aceitarmos que tudo aquilo que era mais sólido entre esses mesmos Estados, a fé cristã,

simplesmente se dissolvera no ar.

Campbell tenta demonstrar que esse não foi bem o caso. O “evangelismo do medo” e a

“política do corpo”, foram ambas práticas que não só sobreviveram à transição do medievo

para a modernidade - contrariando a idéia de um processo de secularização que negasse

totalmente aquilo que o precedera - como também foram fundamentais para o estabelecimento

e manutenção do estado-nacional. A utilização do corpo como uma alegoria político/religiosa

por teólogos e juristas do período medieval, por exemplo, culminou com o conceito

fundamental à prática política contemporânea de “corporação”. Tradicionalmente, durante a

história da fé cristã, a igreja e os fiéis foram concebidos como o corpo físico de Deus na

Terra, cuja cabeça, o controle, seria atribuído a Cristo. Por volta do século XII, todavia,

teólogos carolíngios começaram a denominar a hóstia sagrada como corpus mysticum,

exatamente o termo utilizado por São Paulo para definir a cristandade (KANTOROWICZ

apud CAMPBELL, 1998). Esta polêmica dualidade do corpo de Cristo (cristandade e hóstia)

permearia o trabalho de teólogos medievais até que Tomás de Aquino reivindicasse a

substituição da definição corpus mysticum por persona mystica. Segundo o Aristotélico, a

cabeça (cristo) e os membros (os fiéis) jamais seriam capazes de constituir um corpo, mas

ainda sim formariam uma espécie de “pessoa mística” (CAMPBELL, 1998). Com o passar do

tempo e com o estabelecimento da teoria da consubstanciação, a hóstia sagrada seria

definitivamente chamada de corpus christi, o verdadeiro corpo de Cristo, e a igreja passaria a

ser pensada como uma representação: um Corpus Repraesentatum.

Essa concepção de corpus repraesentatum, ou corpus imaginatum enquanto

fundamental para a compreensão e funcionamento das “corporações” modernas é

particularmente esclarecedora quanto aos pressupostos historiográficos encontrados em

Writing Security. De acordo com Campbell, parte considerável da vida política

contemporânea é explicada através das condições de possibilidade sobre as quais ela fora

estabelecida. Isto é, pelo seu contexto histórico-social. O contexto de transformações

semânticas que culminaram com a idéia de corporação, de representação daquilo que não está

92

presente, na Idade Média é tão importante para o entendimento da política moderna quanto a

ideologia puritana o é para a foreign policy norte-americana. Ignorar essa peça fundamental, o

contexto, incorreria muito provavelmente para Campbell, em alguma falta de compreensão

dos fenômenos descritos. Ou será que seria possível compreender satisfatoriamente “a caça às

bruxas” do século XIX sem menções ao radicalismo protestante de alguns colonos?

Outro exemplo no decorrer do texto que demonstra o comprometimento

“contextualista” do autor é sua explicação para a insistente negação das evidência empíricas

por parte de Cristóvão Colombo quando da descoberta do que viria a ser a América. De 1442

a 1500, Colombo aportara em terras as quais, estava convencido, pertenceriam a uma

península oriental das Índias (nomeando, pois, os nativos de índios). Nem o fato de que

navegações posteriores ao redor da península não encontrassem passagens nos extremos norte

e sul, nem a descoberta de uma fonte de água – ambas evidências empíricas de que Colombo

se encontrava em um diferente continente - convenceram o navegador a abandonar a

convicção de que havia de fato chegado às Índias. Sua fé era tão grande, que até em encontros

com os ameríndios, Colombo presenciava aquilo que corroborasse sua “teoria”, ou melhor,

sua verdade. Uma vez, durante um desses encontros, ele imaginou ter ouvido da boca de um

nativo a palavra Caniba - quando este pronunciara Cariba - em alusão ao Grande Khan

asiático. Em outro momento, julgou que os nativos haviam pronunciado palavras em

espanhol, algo absurdamente impossível, dado que aquele era seu primeiro contato com a

língua.

Tais fatos nos soam como desatinos. Não parece ser possível que alguém em sã

consciência desconsidere evidências empíricas tão certas, tão claras quanto a luz do sol, fonte

infinita de razão, inteligibilidade e inteligência. Não nos parece ser possível negar a

experiência. Permanecemos perplexos até o momento em que percebemos o óbvio: “Colombo

não permitia com que [a verdade bíblica] fosse contradita pela evidência experiencial.”

(CAMPBELL, 1998, p.94, tradução nossa).54

Isto porque:

Longe de ser um empirista moderno, para Colombo o argumento decisivo é um

argumento de autoridade, não de experiência. Ele já sabe com antecedência o que irá

encontrar; a experiência concreta está presente para ilustrar uma verdade desde já

possuída, não para que seja interrogada de acordo com regras pré-estabelecidas

visando a obtenção da verdade. (CAMPBELL, 1998, p.92, tradução nossa).55

54

Columbus did not allow it to be contradicted by experiential evidence. 55

Far from being a modern empiricist, for Columbus “the decisive argument is an argument of authority, not of

experience. He knows in advance what he will find; the concrete experience is there to illustrate a truth already

possessed, not to be interrogated according to preestablished rules in order to seek the truth.

93

Uma verdade que só poderia ser revelada pela verdade das verdades: a palavra de

Deus. Para o imaginário cristão medieval, do qual fazia parte Colombo, todas as massas de

terra maiores do que uma ilha estariam conectadas numa só grande ilha-mundo. A bíblia, mais

especificamente o livro de Esdras, descrevia ainda que a exata proporção dos corpos de terra

para os de água seria de seis para um. Portanto, não havendo continentes ao sul Colombo

estaria em algum lugar da ilha-mundo. Admitir o contrário - que a experiência pudesse negar

a palavra de Deus - seria tão absurdo quanto pensar que uma marionete pudesse desafiar seu

titereio.

Novamente, é virtualmente impossível compreender a posição de Colombo quanto à

“descoberta” de um novo continente - a não ser recorrendo à caricaturas e simplificações

anacrônicas - senão pela compreensão do pensamento corrente, da base epistemológica pela

qual o navegador pensava o que pensava. Ao longo do texto, Campbell ainda provê mais um

exemplo de como a apreensão do valor-verdade das proposições no medievo era indiferente à

lógica empirista. O caso concerne às opiniões antagônicas de Gines de Sepúlveda e

Bartolomeu de Las Casas quanto à natureza indígena. Frente à questão da forma de tratamento

que o império espanhol deveria reservar aos ameríndios, Sepúlveda e de Las Casas

elaboraram visões tão diferentes do “nativo” que, para Campbell, fica claro a inexpressividade

da dimensão empírica na escolha entre uma das duas. Sepúlveda julgava que os

conquistadores deveriam escravizar os indígenas, que não conheciam as artes, a moeda, a

religião, os bons costumes. Para Sepúlveda, os nativos tendiam naturalmente ao trabalho

bruto, dada sua essência bestial. Era possível vê-los transportando cargas nas costas por

longas distâncias assim como cavalos, e devorar uns aos outros assim como insetos. Ademais,

os homens e as mulheres caminhavam nus, como toda e qualquer besta.

De Las Casas, em contrapartida, ao invés de tratar os nativo-americanos enquanto

bárbaros, bestas ou incivilizados, “decidiu” por enxergá-los como pagãos, não-cristãos. A

diferença, por mais sutil que possa parecer, transforma radicalmente a política que se segue ao

posicionamento ontológico. Ao invés de transportá-los para Europa como animais, os cristãos

deveriam catequizá-los, trazê-los para o lado da fé e dos bons costumes. Esse movimento era

absolutamente plausível na visão de Las Casas, para a qual os “selvagens” eram, na realidade,

seres dóceis, amigáveis, puros, bondosos, misericordiosos e inocentes, virtudes de verdadeiros

cristãos. Nesse sentido, os ameríndios seriam “folhas em branco” à espera do correto

direcionamento para a vida da fé em Cristo. Embora a idéia de uma hierarquia temporal ainda

estivesse presente na dicotomia cristão/pagão empregada por de Las Casas - o europeu como

94

sendo uma forma mais amadurecida dos povos primitivos - a semelhança essencial entre

espanhóis e indígenas era fruto de um conceito mais abrangente e igualitário de humanidade.

Assim como um adulto tem a mesma forma, o mesmo eidos, que uma criança (o que os torna

igualmente homens) também o nativo e os conquistados possuem a mesma natureza. Quando

a diferença se torna sujeita ao tempo, torna-se uma questão de tempo até não haver diferença.

Mas de todos os exemplos do poder explicativo do contexto histórico talvez o mais

importante ao argumento de Campbell seja a relação entre a concepção de política externa

como conexão entre “reinos” separados e o pensamento particular à modernidade.

Embora a fundação, a base, ou o ponto arquimediano que provê a referência ao

discurso moderno varie de local para local, uma fundação em particular pode ser

considerada essencial: tal seja a presença soberana do “homem racional”. Uma

instância do paradigma da soberania, ele toma forma em um locus histórico

identificável. Por volta do final do século dezoito, o discurso moderno toma uma

nova guinada e invoca a figura do “homem racional” como a origem da linguagem,

o criador da história, e a fonte de sentido e significado [...] Pela primeira vez o

“homem” é duplamente objeto de conhecimento e sujeito cognoscente [...]

Aparecem conceitos tais como “população” e “sociedade” no final do século dezoito

e início do século dezenove. Embora ambos sejam hoje tratados como termos

naturalizados descrevendo uma realidade não-problemática, sua emergência se deu

em um específico (e recente) contexto histórico enquanto instâncias de um projeto

normalizador que tinha em seu núcleo o “homem racional”. (CAMPBELL, 1998,

p.66, tradução nossa).56

O “homem racional” e a dualidade cartesiana que este assume - ser ao mesmo

tempo objeto cognoscível e sujeito cognoscente - são fundamentais àquilo que Campbell

chama de “paradigma da soberania”. Assim como uma consciência separa do mundo no qual

habita mantém relações de interioridade e exterioridade para com este, também o “self”

doméstico mantém as mesmas relações com a dimensão internacional. O “paradigma da

soberania” define a separação entre duas dimensões, o doméstico e o internacional, mas tal

separação jamais poderia acontecer se não fosse uma anterior entre mente e corpo. Assim, da

mesma forma que só é possível pensar numa relação entre coisas que estejam desde já

separadas, só se pode pensar em relações internacionais e na política externa enquanto

conexão, na medida em que se assume que as mais variadas nações, os mais variados

56

Although the foundation, fixed ground, or Archimedean point that provides the point of reference for modern

discourse varies from site to site, one particular foundation can be considered pivotal: that is the sovereign

presence of “reasoning man”. An instance of the paradigm of sovereign , it takes its form in an identifiable

historical location. Around the end of the eighteenth century, modern discourse took a novel turn and invoked

the figure of “reasoning man” as the origin of language, the maker of history, and the source of meaning [...] For

the first time “man” was both an object of knowledge and a subject who knows [...] the appearance of the

concepts of “population” and “society” in the late eighteenth and early nineteenth centuries. Although both are

now treated as naturalized terms describing an unproblematic reality, they emerged in a specific (and recent)

historical context as instances of a normalizing project that has “reasoning man” at its core.

95

ambientes domésticos estão separados tanto uns dos outros, quanto do ambiente no qual as

relações entre eles se dão, o internacional. Ora, se aceitamos que a soberania depende do

“homem racional”, então assumimos necessariamente que a concepção que possuímos de

política externa, bem como da dualidade doméstico/internacional são, na realidade,

específicas a um contexto histórico particular. Como dito, o que é específico ao tempo, é

também sujeito às suas ações. Não pode haver ontologia, onde não há permanência.

3.3 O Contexto em “A Genealogy of Sovereignty”

O que é a soberania? Se existem questões que a Ciência Política deveria ser capaz de

responder, está certamente é uma. Ainda assim, a ciência política moderna

freqüentemente atesta sua própria incapacidade quando tenta lidar com o conceito e

a realidade da soberania; parece que não conseguimos fazer por nossa

contemporaneidade aquilo que Bodin, Hobbes e Rousseau fizeram por suas [...]

Alguém poderia dizer que a questão da soberania é para a ciência política o que a

questão da substância é para a filosofia; uma questão que tacitamente implica na

prática do questionamento (BARTELSON, 1995, p.1, tradução nossa).57

O objetivo principal de A Genealogy of Sovereignty é responder à pergunta posta por

Bartelson na primeira página da obra: O que vem a ser soberania? Surpreende o autor que

algo tão fundamental à teoria política, a ponto de ser comparado à substância (ousia) para a

filosofia, não consiga ser satisfatoriamente explicada por ela. Em verdade, ao invés de buscar

explicações para o fenômeno que, a rigor, cria o saber político, esse campo disciplinar vem

evitando, numa espécie de “fuga à metafísica”, pensar acerca de suas próprias bases

fundacionais. Todavia, a surpresa se esvaece quando lembramos que uma “ciência” que

atingiu um grau significativo de maturidade, não deveria se debruçar sobre reflexões e

dúvidas vãs que não levassem a lugar algum. Afinal de contas, a modernidade estabelece um

local e uma data de chegada para tudo e todos.

Infelizmente, para Bartelson, parece que não somos capazes de fazer, para nossa

contemporaneidade, para tudo o que nos é presente no momento de nossa existência, de nossa

presença, aquilo que Bodin, Hobbes e Rousseau fizeram por seu próprio presente. Mais

interessante do que as respostas individuais desses autores para os dilemas da localização e/ou

forma da comunidade política, bem como de seu outro, a anarquia, contudo, é o fato de tais

respostas não transcenderem, no entendimento genealógico de Bartelson, o horizonte

57

What is sovereignty? If there are questions political Science ought to be able to answer, this is certainly one.

Yet modern political science often testifies to its own inability when it tries to come to terms with the concept

and reality of sovereignty; it is as if we cannot do to our contemporaneity what Bodin, Hobbes and Rousseau did

to theirs […] One could say that the question of sovereignty is to political science what the question of substance

is to philosophy; a question tacitly implied in the very practice of questioning

96

temporal de seu nascimento, de sua própria época histórica. Os trabalhos de Bodin, Hobbes e

Rousseau sobre a soberania, longe de se constituírem como instâncias da mesma verdade

eterna, são entendidos como respostas historicamente situadas e incomensuráveis. Em sua

produção da história da soberania, Bartelson encontra um dilema: como escrever a história do

que não pode ser definido, uma vez que só se pode definir o que não tem história?

(NIETZSCHE apud BARTELSON, 1995)

Certamente não se pode fazê-lo – escrever a história de um conceito tão conectado

com as bases epistemológicas que o legitimam e são legitimadas por ele – através de uma

história que trate o presente como uma projeção do passado. Esse tipo de história, nomeada

história finalista, simplesmente identifica no passado eventos embrionários de realizações

futuras, e traça uma linha evolutiva na direção do presente. Como só é possível apreender a

verdadeira capacidade e o significado dos eventos históricos com sua plena maturação, o

historiador finalista trabalha sempre a posteriori. Um exemplo de fazer histórico finalista é

encontrado na obra de Jaeger (1995), que vislumbram, de algum modo, o embrião da

sociedade moderna alemã, entendida como verdadeira sucessora da cultura helênica, na polis

da Grécia antiga. Nessa lógica, o que começa lá, num tempo ausente, abraça no presente seu

real significado, seu real destino.

Se a história finalista não resolve a questão, tampouco o faz aquilo que é denominado

por história presentista. Se o erro de autores finalistas é localizar o ponto arquimediano de sua

compreensão da realidade no passado, o ponto a partir do qual tal a compreensão se torna

possível, o presentismo incorre num erro semelhante. Ao tentar estabelecer critérios neutros e

objetivos a partir dos quais conceitos possam ser analisados em seu percurso histórico, o que

o historiador presentista faz é olhar para o passado com os olhos do presente. Ora, para que a

história de determinado conceito seja estudada, é preciso que se estabeleça desde já o

significado, a conceituação daquilo que se deseja perceber ao longo do tempo. Mas, se o

conhecimento é de fato historicamente contingente (FOUCAULT, 1987; BARTELSON,

1995), o resultado do esforço presentista é a mera “presentificação refletida do passado”

(KOSELLECK, 2006). Nesses termos, se buscamos a história de um conceito - que

invariavelmente possui uma carga semântica a ele atribuída pelo tempo presente – no passado,

então não estamos fazendo mais do que a mais pura ficção, imaginando por ficção o ato de

criar algo que não estivesse presente na realidade. O presentismo introduz conceitos nossos

em um tempo que não nos pertence. Ele eleva o presente à eternidade agostiniana, como se

97

aqueles que nos antecederam devessem, por algum motivo, coadunar com nossas

preocupações e aceitar nossas respostas.

Ambos finalismo e presentismo constroem suas análises em topoi transcendentais. Se

o historiador finalista toma o passado como o tempo histórico relevante para os fins de seu

trabalho, ao inverter a lógica, o presentista, ainda que não tenha consciência plena disso, eleva

hierarquicamente o tempo presente enquanto construtor de verdades para além de suas

fronteiras. Pelo finalismo, a história é escrita em termos de um destino a ser cumprido, em

termos de uma missão já escrita num passado originário. Pelo presentismo, a história é escrita

em termos de idéais que são maravilhosamente e milagrosamente antecipadas. Da mesma

forma que só se pode atingir um destino que tenha sido escrito fora da história, só se pode

antecipar uma idéia que já tenha se emancipado do tempo. Ambos finalismo e presentismo

não servem a Bartelson, portanto, porque não respeitam o critério que lhe é mais caro: a

pressuposição de que “somos seres históricos até o âmago” (BARTELSON, 1995, p.78,

tradução nossa).58

Essa falta de historicidade apresentada por presentistas e finalistas, a falta da noção de

que as coisas devem ser compreendidas em seu devido contexto histórico, seria supostamente

superado pela proposta hermenêutica da busca por uma verdade passada, obscurecida pelos

anacronismos da prática histórica não-contextualista. Quentin Skinner, o exemplo de adepto

da prática hermenêutica, entende que a verdade, aquilo que realmente aconteceu, não deve

sofrer influências anacrônicas, tendo o historiador que levar em conta somente a intenção de

um “eu” presente em um determinado instante. Skinner, em suma, diferencia entre a fala

(speech) e o enunciado (statement), uma espécie de diferença entre o conteúdo de uma

proposição, aquilo que é efetivamente dito, e a forma pela qual aquele que diz o faz

(FASOLT, 2004; BARTELSON, 2009). A esta divisão inicial se adiciona a diferença entre –

assumindo a teoria dos atos de fala - atos locutórios e ilocutórios, tal seja, aquilo que

queremos dizer quando pronunciamos uma sentença, e aquilo que está para além do nosso

“querer dizer”, mas que pode ser assumido dos mesmos vocábulos utilizados na produção do

ato locutório. Em linhas gerais, a história hermenêutica busca acessar os atos locutórios dos

atores envolvidos nos fenômenos estudados, na tentativa de compreender o sentido atribuído a

estes por aqueles. A fonte da verdade hermenêutica reside em uma espécie de “querer dizer”

fenomenológico, na consciência de um self racional capaz de dotar o mundo à sua volta de

58

we are historical beings all the way down

98

sentido. Compreender esse sentido demanda a imersão nesse mundo, no contexto que não nos

permite compreendê-lo justamente por sua ausência.

A hermenêutica é assim sintetizada por Bartelson (1995) como um esforço que se

pauta pela idéia reguladora da verdade, e que transfere o fardo de encontrá-la para o contexto.

Mas a aparente resolução proposta por Skinner para seu problema de escrever uma história

por dentro da história se mostra problemática a um olhar mais sofisticado. Na verdade, com o

perdão da ironia, o projeto contextualista hermenêutico é traído por sua busca incessante por

uma verdade. Consideremos, por exemplo, essa passagem de A Genealogy of Sovereignty:

Em um de seus muitos exemplos, Skinner traz à tona o fato de que Bodin escreveu

um pequeno tratado sobre bruxaria. Como Skinner julga a crença em bruxas falsa e

bizarra, ele se esforça para explicar por que seria racional, e não meramente

psicologicamente inteligível, afirmar a existência de bruxas no contexto particular

do conhecimento da Alta Renascença. Embora as bruxas nunca tenham existido, era

melhor discuti-las como se fossem reais, uma vez que fazer o contrário representaria

uma afronta à autoridade teológica corrente. Com a ida aos calabouços como maior

recompensa a tamanho ceticismo, dever-se-ia permanecer ontologicamente correto.

(BARTELSON, 1995, p.66, tradução nossa). 59

Nesse trecho particular do texto, não é possível identificar, em uma primeira

observação, um problema relevante que justifica o recurso ao exemplo. Qual é o problema? A

interpretação de Skinner parece absolutamente razoável. Ela leva em conta o ato locutório da

afirmação da existência de bruxas, o que pode nos levar a crer que Bodin realmente acreditava

em bruxas, e o ato ilocutório de permanecer fiel à autoridade religiosa numa época em que a

deserção não era bem vista e à discordância era reservada a pena capital. Em verdade, a

explicação parece absolutamente racional. No limite, se adequar às exigências de uma

instituição poderosa para não ir aos calabouços medievais soa tão obvio, tão natural que

parece algo que nós mesmos faríamos se estivéssemos no lugar de Bodin. Bem, esse é o

problema:

Agora, um ferrenho relativista conceitual tomaria as freqüentes descrições de

bruxas, sereias e demônios como uma indicação de que de fato eles existiram; que a

abertura ontológica propiciada pelo conhecimento renascentista provia livre acesso a

tais entidades enquanto átomos, forças produtivas e sistemas internacionais eram

59

In one of his many examples, Skinner brings up for discussion the fact that Bodin wrote a short treatise on

witchcraft. As Skinner finds belief in witches both false and bizarre, he is at pains to explain why it was rational,

and not merely psychologically intelligible to speak of witches in the particular context of late renaissance

thought. Though witches never have existed, to discuss upon them as if they were real, since denial of their

existence would have presented a challenge to the theological authority of the day. With a sojourn in the

dangerous as the ultimate reward for undue skepticism, you better stay ontologically correct

99

excluídos. O que é que, além da arrogância liberal, impede com que Skinner admita

a existência de bruxas? (BARTELSON, 1995p.66, tradução nossa).60

Não estamos no lugar de Bodin, e ele certamente não estaria no lugar no qual tentamos

colocá-lo. Talvez seja também uma espécie de arrogância liberal pensar que ele deveria agir

da forma como agiríamos se fossemo-lo. Mas há mais do que arrogância no exemplo de

Skiner. Bartelson em momento algum crítica a idoneidade do historiador, não se trata de um

vício particular ou coletivo. A crítica é direcionada à capacidade de compreensão da verdade

enquanto algo historicamente construído. O problema é que “se permite que critérios para

distinguir a aparência da realidade que são nossos, não de Bodin, guiem a interpretação, como

se fossem em si mesmos sem história.” (BARTELSON, 1995p.67, tradução nossa).61

Aqui aparece um dos pontos decisivos desse capítulo. O apego hermenêutico à uma

verdade transcendental implica na escolha de Bartelson por um fazer histórico que até então

não fora analisado. Discorreu-se sobre os diferentes modos de se pensar a história, bem como

os principais pressupostos do historicismo. Até esse ponto a palavra genealogia pode ter

aparecido uma ou outra vez, mas isenta de qualquer esclarecimento substancial foi mantida

em suspensão à espera de um momento propício. O momento chega com a escolha de

Bartelson.

A genealogia, como brevemente descrito no primeiro capítulo, é um projeto

nietzscheo-foucaultiano de construção de uma “história efetiva” (FOUCAULT, 2008). Por

história efetiva, Foucault compreende o estudo histórico que não se deixe levar pelo “mito da

origem”, que não seja guiado pelo princípio metafísico da busca da essência. Ao contrário do

fazer histórico positivista e historicista - em sua vertente mais conservadora (BARROS,

2011b) - a genealogia deve ser anti-científica, pois não se pretende um saber totalizante, e

não-ontológica, pois não busca demonstrar a verdadeira face das coisas como elas realmente

são, mas ao contrário, mostrar através da história que tal face não existe. A genealogia ensina

“que atrás das coisas há 'algo inteiramente diferente': não seu segredo essencial e sem data,

mas o segredo que elas são sem essência.” (FOUCAULT, 2008, p.18).

Para a “história efetiva” tudo o que presenciamos, tudo aquilo que faz parte de nosso

tempo histórico tem, em si mesmo, uma história. Ao contrário da certeza dos pontos

60

Now a diehard conceptual relativist would take the frequented occurrence and coexistence of statements about

witches, mermaids and demons as an indication that they did exist; that the ontological space opened by

Renaissance knowledge gave free access to those entities while excluding atoms, productive forces and

international systems, so what is it besides liberal arrogance that keeps skinner from admitting the existence of

witches? 61

Criteria for distinguishing appearance from reality that are ours, not Bodin’s, are allowed to guide

interpretation, as if they themselves were without history.

100

arquimedianos da qual se valem finalismo, presentismo e hermenêutica - cujas análises são

respectivamente ancoradas no passado, presente e verdade - a genealogia descarta qualquer

apoio transcendental, buscando na contingência e na particularidade as armas contra a

sujeição do sujeito às práticas discursivas que lhe parecem mais naturais. A história, para a

genealogia, não é composta de continuidades, destinos, evoluções lineares, mas,

assemelhando-se a um campo de batalha, é escrita em meio à luta entre diferentes

interpretações e perspectivas. Eventualmente há um vencedor, e um perdedor a ser dominado,

sobrepujado, coisificado. Ao vencedor é reservada a escrita da história, como descrevera

Willian Benjamin (BARROS, 2011a), e somente através da genealogia, do estudo histórico-

crítico daquilo que há de mais marginal é que se torna possível contestar a grande narrativa da

vitória. A uma história efetiva não cabe legitimar, mas contestar as bases institucionais

vigentes. A genealogia trata do exercício do poder em um mundo no qual a política é a

continuação da guerra por outros meios (FOUCAULT, 2008).

A genealogia se opõe à hermenêutica, e aos demais tipos de fazer histórico, porque:

Onde a interpretação hermenêutica buscaria revelar realidades passadas por traz das

aparências do passado, a genealogia busca explicar a mobilidade histórica entre

aparência e realidade; por traz do véu das aparências a história genealógica não

encontra a realidade, mas somente outra interpretação da diferença entre aparência e

realidade. Para a genealogia, o existente é uma questão de como essa dicotomia é

organizada e re-organizada através da história. (BARTELSON, 1995, p.75, tradução

nossa).62

Nesse sentido, uma “história efetiva” compreende a verdade - aquilo que nos permite

distinguir entre fato, ficção, realidade e ilusão - não como um monólito independente à

história, mas como o resultado de um conjunto de regras tanto social quanto historicamente

construídas. “Do ponto de vista genealógico, o presente é inteiramente história, no sentido de

que tudo nele possui uma história, incluindo aquilo que é julgado atemporal, imutável, dado

ou original, tendo sido elevado à metanarrativa.” (BARTELSON, 1995, p.74, tradução

nossa).63

A hermenêutica falha ao desconsiderar o caráter histórico das bases epistemológicas

de apreensão do valor verdade. Embora o hermeneuta compreenda o sentido lingüístico

62

Where a hermeneutic interpretation would seek to uncover past realities behind past appearances, genealogy

seeks to account for the historical mobility of appearances and realities; behind the veil of appearance, a

genealogical history does not find reality, but only another interpretation of the difference between appearance

and reality. To genealogy, what happens to exist is a matter of how this divide is arranged and rearranged

throughout history. 63

From a genealogical point of view, the present is all history, in the sense that everything in it has a history,

including that which is thought to be timeless, unchanging, given or original, and has been elevated into

metanarrative

101

atribuído a determinadas afirmações, bem como caráter ilocutório de algumas proposições

enquanto dependentes de um contexto histórico, ele insiste em julgá-los com base em um

conhecimento situado fora do tempo. Ora, se tudo o mais é histórico em sua natureza, porque

também não seriam o princípio metafísico de não-contradição e a racionalidade? O que nos

faz pensar, novamente, para além de uma “arrogância liberal”, que a maneira pela qual

julgamos o valor de verdade das proposições no presente seria igual à dos tempos passados?

Portanto a genealogia põe em prática uma espécie de expansão da “historicidade das

coisas” - que numa história hermenêutica não engloba o conceito de verdade - para além dos

sentidos e das afirmações, chegando até as bases de sustentação do conhecimento. Assim, ao

invés de buscar a verdade dos acontecimentos, a genealogia demonstra que a verdade nada

mais é do que uma “espécie de erro que tem a seu favor o fato de não poder ser refutado.”

(FOUCAULT, 2008, p.19). A verdade foi alocada em diferentes lugares ao longo da história

humana, como Bartelson e Foucault sugerem: nas sagradas escrituras, nos signos dispersos

por Deus pela terra, no rei e na reflexão do espelho da mente e, por fim, no homem, o sujeito

transcendental. Mas não há razão alguma, em uma época na qual a razão é o que há de mais

relevante, para julgar a episteme moderna como melhor, mais válida ou axiologicamente

superior às demais.

Ironicamente, Bartelson crítica a “história contextualista” por não levar em conta

justamente aquilo que a definiria: o contexto histórico.64

A hermenêutica parece não servir a

seus propósitos por deixar de levar ao máximo a idéia moderna de que passado e presente são

“dimensões” profundamente diferentes (BEST, 1995; FASOLT, 2004; KOSELLECK, 2006).

O historicista “erra” ao não compreender que tal diferença comporta, inclusive, uma

heterogeneidade quanto as faculdades do próprio pensar. Voltando mais uma vez ao exemplo

de Bodin, Skinner se engana ao tentar escrever a história por antecipação (BARTELSON,

1995), sabendo a priori, o a priori histórico que deveria buscar.

64

As diferenças entre a hermenêutica e a genealogia no que tange ao processo de contextualização são, na

realidade, mais complexas do que a forma como foram descritas pode sugerir. Para a hermenêutica o termo

contexto abarca a situação na qual se encontra o sujeito, ou mesmo as intenções que este possuía, quando da

expressão de determinado enunciado. Assim é possível conceber que a expressão, por exemplo, “bom dia”,

possua sentidos diferentes se proferida em diferentes situações. Para a genealogia, todavia, nem a situação, nem

a intenção e o sujeito são categorias significativas. O estudo genealógico procede à nível das práticas

discursivas, que funcionam como contextos epistemológicos que condicionam a emergência de determinados

enunciados (FOUCAULT, 1997). Além disso, a natureza dos enunciados genealógicos (discursos) é distinta à

dos enunciados hermeneutas.

102

4 A DESCONSTRUÇÃO DO TEMPO

Como descrito na introdução, o exercício da desconstrução pode ser dividido em duas

diferentes fases: a genealogia do conceito a ser desconstruído e a inversão axiológico-

epistemológica dos termos da oposição metafísica que o sustenta (CULLER, 1997).

Na genealogia o processo de desconstrução é exercido através do estudo histórico do

conceito que se objetiva desconstruir. Por meio da genealogia é possível identificar ao longo

do tempo descontinuidades nas estruturas de práticas discursivas65

que condicionam a

emergência dos enunciados e discursos66

(FOUCAULT, 1997). Assim é possível evidenciar

transformações semântico-epistemológicas nos objetos de análise que descartem sua

naturalidade e (ou) imutabilidade e tragam à tona seu caráter político de dominação.

Em sua segunda fase, a fim de revelar a arbitrariedade de uma oposição metafísica, a

desconstrução promove a inversão entre o primeiro termo (privilegiado) e o segundo

(decaído). Isso significa demonstrar logicamente que, desde o início, as características do

termo desvalorizado se fazem presente no termo valorizado.

No presente capítulo, serão realizadas as duas etapas do exercício de desconstrução do

historicismo pós-estruturalista identificado em Walker, Campbell e Bartelson. Em primeiro

lugar será demonstrada a historicidade da divisão entre passado, presente e futuro trabalhada

pelos referidos autores. Em segundo lugar, far-se-á a inversão dos termos “presente” e

“passado”, componentes da oposição que sustenta o historicismo, à luz da filosofia derridiana.

4.1 Passado/Presente como Dualidade Historicamente Situada

Se a proposta das abordagens diacrônicas de compreensão dos fenômenos à luz de seu

contexto específico for aceita, então o conhecimento do tempo histórico desses fenômenos

passa naturalmente de mera erudição, ou saber supérfluo, para ponto fundamental da análise.

Mas o que é um tempo histórico? Para além de uma série de acontecimentos conjunturais que

denominamos por contexto específico, ou mesmo pelas bases epistemológicas de uma

determinada era, o que é aquilo que faz de um fenômeno historicamente peculiar?

65

Práticas discursivas são para Foucault (1997) um conjunto de regras históricas que condicionam a formação e

dispersão dos discursos. 66

Segundo Dreyfus e Rabinow (1995) uma formação discursiva ou um discurso é um conjunto de enunciados

estabelecidos a partir de determinada posição (sujeito da enunciação), dentro de um determinado domínio e

através de procedimentos reconhecidamente válidos. São exemplos de discursos a história natural do século XII

e XIII, a medicina moderna e a geometria euclidiana. Todos esses saberes se constituem através de um

amálgama de enunciados (como proposições, axiomas ou equações) estabelecidos a partir de posições

privilegiadas (o naturalista, o médico, o geômetra) seguindo determinados procedimentos.

103

Esse tipo de questionamento leva a um aparente paradoxo. Se absolutamente tudo é

histórico em sua essência e se só pode haver conceito daquilo que não tem história, então

conceituar a história, ou tempo histórico, o ponto chave que norteia toda análise diacrônica

parece no mínimo incoerente. De fato, essa incoerência será mantida, não só porque não

possua solução - estando no lugar aporético da indecisão - mas porque o objetivo aqui é

descrevê-la, explorá-la, reforçá-la. A inconsistência de negar à história exatamente aquilo que

ela provê a todo o resto do universo, supostamente superada pela genealogia, é o gatilho da

lógica diacrônica. Por isso, tratar-se-á aqui de aceitar, por hora, a conceitualização de tempo

histórico.

De acordo com Koselleck (2006), um “tempo histórico” se configuraria pela diferença

entre passado e futuro nos termos de experiência e expectativa. A especificidade da forma

como os homens, ao longo do tempo, tratam a diferença entre aquilo que se poderia esperar,

no que concerne à experiência (futuro), daquilo que eles mesmos e seus antepassados já

experimentaram (passado) ditaria a relação que tais homens tem para com a história. Isso

pode parecer estranho para um tempo no qual, em meio a um processo de aceleração espaço-

temporal, um horizonte de cinqüenta anos, talvez menos, já é suficiente para apontar

mudanças significativas. O que se poderia esperar do futuro senão o inesperado? Qual relação

seria possível com um futuro que é, por definição, diferente do presente e (muito diferente) do

passado pelo simples fato de não existir?

Para o imaginário moderno a relação com um futuro é tão simples quanto naturalizada.

O futuro é para a “era das oportunidades” (CAMPBELL, 1998) não só o reino do inesperado,

como também o do “ainda não”. No amanhã residem as respostas que ainda não temos,

realizações para promessas que ainda não cumprimos, construções que sequer somos capazes

de imaginar. No amanhã jaz destruição como jamais vimos, respostas que não queríamos, e

realizações que temos medo de imaginar. De qualquer maneira, esperançoso ou desesperador,

a certeza é de que o futuro será diferente. Mas isso nem sempre foi assim

A Figura 4 é uma reprodução de um quadro encomendado pelo duque Guilherme IV

da Baviera ao artista Albert Altdorfer no ano de 1528. Sua intenção era compor uma coleção

de obras com temáticas históricas. “A Batalha de Alexandre”, magistralmente pintada por

Altdorfer, é talvez a mais famosa peça dessa coleção (KOSELLECK, 2006). Nela, a intenção

do autor era representar a famosa batalha de Alexandre Magno em Issus, ocorrida em 333 A.

C. na qual o famoso imperador derrotara as tropas persas de Dario III. A despeito das técnicas

104

de desenho, ilustração e pintura, a obra apresenta características marcantes da relação de sua

época quanto à diferença entre futuro e passado.

Figura 4 – A Batalha de Alexandre de Albert Altdorfer

Fonte: (WOOD; ALTDORFER, 1993, p.20)

A Batalha de Alexandre possui uma beleza incrível. É impressionante a maneira pela

qual Altdorfer conseguiu construir a impressão de exércitos compactos e ao mesmo tempo

105

criados por indivíduos que dão a sensação de autonomia (KOSELLECK, 2006). O movimento

de fuga dos persas é igualmente impressionante. A paisagem funciona como indício tanto de

profundidade quanto de, utilizando de um anacronismo moderno, “ideologia”. No canto

superior direito, ao lado da escrita em latim no quadro central, vemos o sol - figura metafísica

e sacra da iluminação e do bem - que nasce sob as tropas de Alexandre, tomar o espaço do

crescente - figura símbolo do mundo islâmico - que parece fugir junto com as hordas de

Dário.

De acordo com Koselleck (2006), Altdorfer desejava tornar sua obra o mais

historicamente precisa e, tendo isso em mente, buscou informações tais como o número de

participantes mortos e prisioneiros de Issus em Curtius Rufus, - “historiador” romano do

século I A.C.. Esses números podem ser vislumbrados nos estandartes carregados pelos

soldados ainda vivos, como o estandarte vermelho no canto inferior direito, ou o negro, em

seu oposto horizontal. Essa preocupação para com a precisão é fundamental para os

desdobramentos de uma leitura mais “profunda” e temporalmente crítica da obra em questão.

Uma coisa que salta aos olhos: uma vez esclarecida as intenções de veracidade e

verossimilhança do autor, é quase cômico para uma mente moderna, a maneira com a qual

Alexandre o Grande, Dário e suas respectivas tropas são retratados. A pintura, ao contrário de

retratar guerreiros macedônios ou gregos do século III A.C., mostra cavaleiros usando

armaduras completas e adornos característicos ao período medieval (FIG. 5), montando

cavalos e empunhando uma lanças pesadas também características ao medievo

(KOSELLECK, 2006).

Figura 5- "Cavaleiro" Macedônio

Fonte: adaptado de WOOD; ALTDORFER, 1993, p.20

106

Do lado de Dário (FIG. 6), de acordo com Koselleck “a maioria dos persas assemelha-

se, dos pés ao turbante, aos turcos que, no mesmo ano de composição do quadro (1529),

sitiaram Viena, sem resultado.” (2006, p. 22). Quanto a Issus, é possível vislumbrar alguns

traços arquitetônicos da “Idade das Trevas”, principalmente quanto à muralha que a rodeia,

bem como o castelo central, cujo formato lembra as construções góticas (KOSELLECK,

2006). Enfim, parece haver mais anacronismos na “Batalha de Alexandre” do que uma

representação preocupada com a fidelidade deveria aceitar.

Figura 6- "Turcos" Persas

Fonte: adaptado de WOOD; ALTDORFER, 1993, p.20

Isso certamente nos tenta a afirmar que o autor alemão incorreu em “erros de

representação histórica”. Parece óbvio o suficiente que, se a intenção era a precisão, então sua

empreitada não é mais que um imenso fracasso. O quadro claramente não mostra o contexto

histórico de Alexandre, mas sim o daquele que o cria. Tal como na interpretação foucaultiana

de Velásquez, a obra parece representar aquele que representa, mostrando a realidade do

observador que - obedecendo à dinâmica reflexiva de um espelho - se transforma em objeto

de observação (FOUCAULT, 1987). Altdorfer nos mostra mais de seu próprio tempo, mais

especificamente de seu “tempo histórico”, do que de qualquer coisa relacionada a Alexandre.

A Batalha de Alexandre é pintada em um dos três tempos históricos que são passíveis

de identificação em Koselleck. Para o esclarecimento, e conseqüente diferenciação dos três

tempos, optou-se por denominar este primeiro de “tempo histórico teológico”. Neste tempo

sacralizado a relação entre futuro e passado era ditada pela escatologia das sagradas

escrituras. Em termos de expectativa, não se podia esperar outra coisa senão a chegada do

107

apocalipse e o juízo final. O futuro era o fim do tempo, essa contingência mundana que

afastava os homens da eternidade de Deus.

A história segundo a cristandade era, pois, uma história de espera. Concebendo o

mundo enquanto uma criação divina, com data marcada para sua destruição, a doutrina

judaico-cristã fixou a arquê e o télos sob os quais se constituiria o contexto de todos aqueles

que passassem pela terra. Não é que Altdorfer não tenha compreendido as diferenças

temporais entre ele e Alexandre, tais diferenças simplesmente não existiam, não eram

manifestadas (KOSELLECK, 2006). Em verdade, de acordo com a fé cristã, tanto os

medievais quanto os antigos deveriam ser entendidos como contemporâneos. Sob a sombra da

possibilidade do fim do mundo, não haveria evento que fosse significativo o suficiente para

separar os povos historicamente (FASOLT, 2004). Dito com outras palavras, a história jamais

fora temporalizada para o tempo histórico teológico. A expectativa que se poderia cultivar

para o futuro independia do tempo cronológico em que se estivesse, sendo sempre

escatológica.

Nesse sentido a Figura 4 deve ser lida como uma representação atemporal da luta

contra o bem e o mal (KOSELLECK, 2006). A tela representa um símbolo das verdades

contidas nas sagradas escrituras - imunes aos efeitos da temporalidade mundana. Para a

mentalidade, ou imaginário medieval, a batalha de Issus representava um importante

momento rumo ao apocalipse. A vitória de Alexandre significara a passagem da segunda para

a terceira das monarquias universais, anterior à quarta e última: o Sacro Império Romano

(FASOLT, 2004; KOSELLECK, 2006). O objetivo de Roma, enquanto monarquia universal,

era manter o fim dos tempos sobre a suspensão atemporal desejada pela igreja. Seu dever era

postergar o destino escatológico da terra. Enquanto Roma existisse, o mundo continuaria

existindo.

Com a eterna espera cristã pelo Juízo Final, o horizonte das possibilidades de

acontecimentos, como dito, era muito reduzido. A rigor, não poderia haver nada de novo que

fosse realmente significante, ou então, que já não tivesse sido previsto. O futuro era o tempo

de realização das profecias e verdades de um passado, que por natureza, não poderia ser

localizado no tempo. O medievo, ao invés de período de conexão entre a Idade Antiga e a

Modernidade, uma espécie de “Idade Média”, era considerada a vanguarda da experiência

humana, vivenciando a última das quatro monarquias. Para Altdorfer, o duque da Bavária e

seus contemporâneos, futuro e passado, expectativa e experiência se mesclavam de tal

maneira que, talvez seja possível afirmar, tornava a própria diferenciação um gesto sem

108

sentido. O futuro era passado desde o início (KOSELLECK, 2006), o tempo uma ilusão que

denunciava a humanidade e imperfeição daquele que o experimentava.

Com a Paz de Augsburgo, em resposta a Guerra dos trinta anos, entretanto, ascende o

segundo tempo histórico do qual fala Koselleck. Em 1555, e no século seguinte, a parcial

secularização dos assuntos “políticos” desmanchava a igualdade semântica entre unidade

religiosa e Paz. Veio a compreensão, obtida ao longo de sangrentas batalhas, de que a defesa

da unidade cristã não salvaria a Europa do apocalipse, mas ao contrário, parecia levá-la cada

vez mais próxima ao fim. O locus da soberania passaria então dos cargos religiosos, paras

senhores de terras. Tal processo não representou tão-somente uma reorganização das

lealdades e (ou) identidades, mas uma profunda mudança na concepção de tempo histórico.

Com o fim dos tempos cada vez mais postergado - “os cálculos astrológicos deslocavam as

expectativas escatológicas para um futuro cada vez mais distante” (KOSELLECK, 2006,

p.28) - bem como a dissociação entre religião e paz, o Império Romano perdeu seu lugar

enquanto mantenedor do status quo. Essa função foi tomada pelos então Estados, ou pelas

unidades políticas seculares que acabaram de surgir.

No exercício de sua recém autorgada função, lordes, nobres e príncipes faziam uso -

além das conhecidas realpolitik e do conceito da balança de poder - de uma ferramenta que

tomara o lugar das antigas profecias escatológicas: o prognóstico. A arte do prognóstico

político só se tornou possível com aquilo que chamaremos de tempo histórico “secular-

exemplar”. O princípio norteador dessa forma peculiar de temporalidade deixa de ser a

presumida finitude de um mundo criado para se tornar seu extremo oposto, a infinitude de um

mundo que sempre esteve presente. Influenciado pela temporalidade pagã - baseada nos

eternos ciclos naturais - e no conceito de tempo aristotélico - que compreendia o mundo como

imutável - o “modelo” secular-exemplar se vale da razão e cálculo probabilístico, bem como

da experiência, para projetar no futuro expectativas plausíveis.

Em essência, e em consonância com a lógica do exempla comum à rationale

renascentista (FOUCAULT, 1987; BARTELSON, 1995), essa então nova forma de

temporalidade possibilitava o prognóstico através da possibilidade de repetição dos

fenômenos. Em um mundo virtualmente infinito, movido pelos ciclos maquiavélicos da

fortuna (WALKER, 1993), no qual passado, presente e futuro se conectavam em uma só

identidade nas máximas da análise dos interesses estatais (BARTELSON, 1995) o futuro não

reservaria nada que já não tivesse acontecido. “Nil novum sob sole (nada novo sob o sol), essa

era a máxima válida tanto para a antiguidade clássica quanto para os cristãos, no horizonte da

109

expectativa do juízo final.” (KOSELLECK, 2006, p.167). Para a Europa do pós

Renascimento, que manteve essa característica de um futuro passado, o amanhã era uma

questão de probabilidade.

É claro que a possibilidade de mudança existia, mas essa mudança só poderia ser

concebida, a rigor, em termos de uma reorganização. Portanto, era possível falar da mudança

nas formas de governo republicano, mas tal mudança, nos moldes de um ciclo sem fim,

respeitava princípios lógico-racionais. O termo “revolução”, por exemplo, longe de significar

a ruptura completa com a antiga ordem - sentido adquirido com a modernidade - dizia respeito

aos ciclos de mudanças constitucionais. Para Luis Leroy, inspirado nas doutrinas antigas das

mudanças nos regimes políticos, as monarquias tenderiam naturalmente a se transformar em

tiranias e, por fim, se dissolverem em aristocracias. Daí em diante, estas se transformariam em

oligarquias, superadas por democracias, que se degenerariam em olocracias, regime no qual

não há governo de fato, só a dominação caótica das massas. Isso abriria um vácuo de poder a

ser preenchido por um indivíduo, que reiniciaria o ciclo anterior. Essa é a mudança enquanto

metabolé tôn politeiôn, a “reviravolta de regimes.” (KOSELLECK, 2006, p.63).

Essa característica exemplar do tempo histórico secular, ou neo-pagão, evidencia um

conceito que se manteve presente e forte durante cerca de 2 mil anos. Embora tenha

representado a secularização de uma temporalidade clássica, a “proto-modernidade” não havia

conseguido destituir o papel didático do passado. Continuava plausível, como de fato o fora

para a antiguidade e a Europa cristã, buscar na experiência “histórica” respostas para

acontecimentos contemporâneos. A história [Historie], entendida como um caldeirão de

exemplos passados passíveis de reutilização, ainda detinha uma função professoral. A

Antiguidade, a Cristandade e a “proto-Modernidade” - aquilo que Foucault (1987) chamaria

de transição entre a Renascença e a Era Clássica - embora cada qual com sua maneira

particular, mantiveram-se fiéis à Historia Magistra Vitae, à experiência histórica enquanto

“mestre da vida”(KOSELLECK, 2006).

Contudo, a partir do século XVIII, essa realidade irrevogável “passou” a ser

contestada. Durante esse período é possível identificar a gradual, e de acordo com Koselleck

(2006) estatisticamente impressionante, substituição do conceito de Historie, pelo coletivo

singular de Geschichte, que inicialmente significava algo como narrativa. Tal mudança,

embora possa parecer uma simples troca de termos, teve enquanto repercussão a erosão da

antiga concepção de temporalidade. O mundo dos ciclos e das experiências passadas que se

repetiam indefinidamente perdia força ante uma concepção da História, agora passível de

110

compreensão enquanto um todo, que, dada sua natural especificidade, não poderia ensinar

nada mais do que a si mesmo (KOSELLECK, 2006). Em outras palavras, cada acontecimento

era vislumbrado como fechado em si mesmo, individualizado e específico pela verdadeira

razão de existir. Assim, o lugar de “mestra da vida” que a Historie ou as histórias, ocuparam

por cerca de dois milênios se via “arruinado”. “A história (Geschichte) como acontecimento

(Begebenheit) único ou como complexo de acontecimento (Ereigniszuasamenhang) não seria

capaz de instruir da mesma forma que uma história compreendida como relato exemplar.”

(KOSELLECK, 2006, p. 48-49).

Este é o prólogo do terceiro e, até agora, último tempo histórico identificado por

Koselleck. A dissolução do topos da Historia Magistra Vitae marca o início da Modernidade,

época de expectativas infinitas quanto à novidade, época de um futuro que não se sente

obrigado a repetir seu passado. No tempo histórico moderno, a expectativa se dissocia

completamente da experiência, não mais precisando ser “lastreada” por esta. O que esperamos

do futuro, como dito anteriormente, não é nada menos que o inesperado. Isto,

conseqüentemente, atribui à passagem do tempo algo de significativo. Se as coisas podem ser

mudadas a ponto de se emancipar o futuro da experiência histórica, então o tempo, no limite,

dissolve, ou ao menos desafia, a certeza ontológica das essências. Na Modernidade, os

eventos passam a ser particularizados exatamente porque eles se dão no tempo, e assim, estão

num fluxo constante. O futuro só é dissociado do passado na medida em que a história é

temporalizada.

O conceito de Geschichte, ou história enquanto narrativa, foi levado ao extremo e

trazido a tona para o resto do Ocidente com os acontecimentos de 1789. A emancipação do

futuro para com o passado se dava através da Revolução Francesa. Um “golpe de estado”

executado por determinado estamento para deliberadamente modificar o status quo , tomando

o poder para si, era algo absolutamente impensável dentro da lógica aristotélica da “mudança

de regimes”. As doutrinas da construção de um futuro sem classes, guerras ou quaisquer tipos

de mazelas, exigia não só a crítica kantiana, mas acima de tudo, um desprendimento para com

a experiência histórica sem precedentes nos modelos cíclico e escatológico. A singularidade

da Revolução era tamanha, que as tentativas de analisá-la através da lógica do exempla

estavam fadadas ao fracasso, o que minara a credibilidade do modelo. Os franceses bradaram

ao mundo muito mais do que o ideal de “igualdade, liberdade e fraternidade”. Eles afirmaram,

em alto e bom tom, que o amanhã poderia ser diferente.

111

Figura 7- Colônia Espacial

Fonte: CORN; HORRIGAN et al., 1996

A Figura 7 foi criada no final da década de 1970. Nela, há ao menos três informações

que a associam à época moderna, e que a diferenciam da “Batalha de Alexandre” de

Altdorfer. Em um primeiro momento, é perceptível, ao contrário do amálgama de

anacronismos empregados pelo artista medieval, há heterogeneidade entre a representação e o

contexto histórico na qual foi feita. A ilustração nos mostra um futuro amplamente diferente

de seu presente. Ambientada numa espécie de colônia espacial (é possível perceber o reflexo

de um planeta no que talvez seja um vidro na parte superior da ilustração) a “cidade do

futuro” é permeada por construções flutuantes cuja arquitetura lembra muito vagamente os

arranha céus de hoje. Tudo é tecnológico ao extremo e os indivíduos desfrutam amplamente

dessa tecnologia, com a satisfação - talvez por finalmente terem realizado o que a

modernidade lhes prometera - estampada em um sorriso largo. Mas acima de tudo, através da

metáfora da possibilidade do voar, a figura demonstra a liberdade. Ser capaz de voar, de se

movimentar por todos os eixos dimensionais, significaria transgredir a última fronteira.

É essa liberdade que separa a temporalidade moderna de suas antecessoras. Com a re-

significação das revoluções, a ascensão do “homem racional” (CAMPBELL, 1998) e a

temporalização da história, o futuro deixava de ser passado e o amanhã se emancipava do

ontem. Em termos de possibilidade, o tempo histórico moderno dissolve o limite na

capacidade imaginativa humana. Tudo parece ser possível e o único elemento necessário para

consegui-lo é o tempo. Um tempo que o homem agora tem em suas mãos.

112

A emancipação do futuro (expectativa) em relação ao passado (experiência) tem como

conseqüência imediata a maior necessidade de dissociação entre essas duas dimensões do

tempo: o antes e o depois. Se acredita-se que o futuro pode realmente ser diferente de seu

passado, algo improvável para os tempos históricos teológico e secular-exemplar, então,

juntamente com o esfacelamento da Historia Magistra Vitae tem-se o rompimento de uma

seqüência cronológica que outrora se daria de forma contínua. Na medida em que aceita que

as coisas podem não mais ser como sempre foram, o tempo histórico moderno introduz uma

heterogeneidade em um tempo que parecia, naturalmente, transcorrer de forma homogênea. É

por isso que, voltando ao quadro de Altdorfer, Koselleck (2006) sugere que parece ter passado

mais tempo nos 100 anos do século XVIII do que nos aproximadamente 1500 anos que ligam

a batalha de Issus à renascença. Uma vez que a passagem do tempo se torna significativa, as

dimensões temporais do “ontem” e do “hoje” são bruscamente seccionadas.

Usa-se a palavra “hoje” porque, a rigor, o futuro enquanto existente é uma função do

tempo presente (FASOLT, 2004). Mesmo se for pensado em termos de expectativas, nos

moldes daquilo que Koselleck propõe, o ato de manter expectativas depende de um ponto

referencial do qual estas são mantidas, de um determinado locus temporal a partir do qual se

pensa adiante. Esse ponto é que nos é dado como presente no exato momento em que

esperamos algo. Expectativas são mantidas no presente, o futuro depende deste. Nesse caso,

para que verdadeiramente se emancipe do passado, e experimente a liberdade moderna, o

futuro necessita de um presente desde já liberto. Portanto, a relação mais importante para a

definição do tratamento dado à temporalidade não é entre futuro e passado, ou presente e

futuro, mas sim entre passado e presente.

A diferenciação moderna entre o passado e o presente, que liberta a expectativa do

lastro da experiência, não nos é estranha. Ela é a condição de possibilidade do que foi

chamado de historicismo-crítico, ou historiografia descontinua no segundo capítulo. Na

medida em que a homogeneidade cronológica é interrompida pelo tempo histórico moderno,

fazendo da passagem do tempo de algo insignificante à fonte do sentido, o contextualismo se

transforma no método historiográfico. Quando o passado é visto como diferente do presente,

seu acesso se torna condição de sua compreensão. Se as coisas não são mais “hoje” como elas

foram “ontem”, então para compreender como elas eram, se faz necessário compreender esse

“ontem”. Não em termos de um presente vivo, que nos é imediatamente acessível, mas em

termos de um passado que já se foi. O contextualismo, esse mandamento historiográfico

113

(FASOLT, 2004; HOOPER, 2007), tem por função tornar o passado, agora uma dimensão

temporal heterogênea, em algo inteligível.

A mudança na percepção temporal de um “futuro passado” para a temporalidade

moderna historicista não possui implicações tão-somente epistemológicas,67

da ordem de uma

“história dos conceitos”, mas também política, relevante à uma “história social”. A rigor, a

história é política, não no sentido que possa ser manipulada em prol de interesses particulares,

tampouco na questão ideológica. A história é política em sua essência pelas conseqüências

com respeito à verdade, liberdade e significado que o posicionamento frente a ela implica.

Para demonstrar essa relação de poder advinda de uma quebra epistemológica, como a

genealogia deve de fato fazer (FOUCAULT, 2008), vale lembrar uma controvérsia dos

séculos XV a XVII quanto a uma unidade política que influenciava diretamente na vida

cotidiana: O Sacro Império Romano Germânico.

Em meados de 1643, um livrete revolucionário chegou às mãos da alta sociedade

européia letrada. Tinha por título Discursos Novus de Imperatore Romano-Germanico e

proclamava uma verdade estarrecedora. O Discursos Novus decretava o fim do Império

Romano, a última das quatro monarquias universais, a responsável pela postergação do dia do

juízo final. Em sua capa, enquanto autor, constava o nome de um professor e médico da

Universidade de Helmstedt, Herman Conring. Conring poderia ser considerado um homem no

mínimo corajoso, porque em menos de 50 páginas conseguira desafiar todo um conhecimento

tradicional enraizado, bem como a palavra de Deus em si.

Durante séculos a Europa medieval conheceu uma verdade intocável. A história do

mundo transcorreria pelo surgimento e “corrupção” de quatro grandes impérios antes de

terminar no armagedom. “Todos estavam familiarizados com as antigas verdades [...] você as

aprendia na escola.” (FASOLT, 2004, p.133, tradução nossa).68

A última e contemporânea das

quatro monarquias seria o Império Romano, representante legítimo das forças do bem na luta

contra o mal. A existência do Império era tida como uma simples obviedade, bem como o

papel do imperador como senhor de tudo o que há no mundo. Essas verdades irrevogáveis

provinham de dois dos textos mais importantes da sociedade medieval: a Bíblia Sagrada e o

Direito Romano. Ambos, longe de serem compreendidos enquanto criações humanas, como

evidências de um conhecimento histórico específico, reproduziam a vontade e intenção de um

mesmo autor: Deus, o criador do mundo e de tudo o que existe.

67

Em verdade, a diferenciação entre epistemologia e política, idéia e matéria, ou discurso e prática é

problemática. Como visto em Campbell (1998) e Foucault (1987) é o discurso que disciplina e possibilita a

prática, sendo indissociável desta. 68

Everyone was familiar with the old verities [...] You learned those things in school.

114

Na bíblia, mais precisamente no evangelho de Lucas, há uma frase em particular que

reforça a idéia de dominação universal. No decorrer do texto, Lucas informa que um

determinado decreto de Cesar Augusto exigia que o mundo inteiro fosse taxado pelos fiscais

imperiais (FASOLT, 2004). O conhecimento de tal decreto tornava razoável a afirmação de

que Roma possuiria direitos por sobre toda a criação divina. Ora, só se podem coletar

impostos nas terras sobre as quais se possui controle. Se Cesar desejou a tributação de todo o

mundo, então era mais do que plausível pensar que este era seu domínio. Como não se

permitia pensar a possibilidade de que Lucas estivesse mentido, tampouco a de uma

interpretação não-literal das escrituras sagradas - um argumento que seria utilizado mais a

frente por Conring - o assunto se dava por encerrado. Dentre os ensinamentos bíblicos estava

o de que o Cesar era o senhor do mundo.

Quanto ao direito romano, a questão se dava de forma igualmente clara. O Corpus

Iuris da cidade de Roman, centro da quarta monarquia universal, estabelecia que o imperador

fosse o dominus mundi. O termo dominus era derivado de dominium que, sem maiores

problemas, poderia ser traduzido para o português contemporâneo em algo como

“propriedade”. Possuir dominium sobre alguma coisa era ser seu proprietário, seu dono.

Dominium, assim como seu correlato contemporâneo, era um direito em sua essência

indivisível. Se alguém detinha dominium sobre algo, somente esse alguém haveria de detê-lo.

De acordo com o direito romano, portanto, o imperador, e somente o imperador era o

proprietário do que se entendia por mundo. Em um mundo no qual a divisão entre as esferas

do público e do privado, se é que se pode dizer que de fato existia, era incipiente, isso

significava que o Imperador era o senhor, o lorde de tudo.

Para Conring69

, todavia, isso não passava de uma superstição velha e tola. O

imperador romano não poderia ser chamado de dominus mundi pelo simples inconveniente

factual de jamais ter dominado o mundo. Seu argumento se estrutura em duas partes: uma

histórico-factual e a outra de ordem legal. Apelando aos fatos, Conring demonstra que, na 69

Assume-se aqui, e de certa maneira Fasolt (2004) também o faz, que a posição expressa pelo Discursos Novus

é a real posição de Conring. É necessário dizê-lo porque, após a publicação do mesmo, Conring se revoltou. O

suposto autor não gostou de ver seu nome atrelado a um trabalho que, segundo Fasolt, possuía um teor

revolucionário maior do que Conring poderia suportar em público. Isso traz uma polêmica quanto a autoria do

texto e quanto à sua atribuição a Conring. No entanto, o Discursos Novus se baseara completamente numa

dissertação – ou o equivalente medieval: dissertatio - de um ex aluno da universidade de Helmsted, Otto Von

Bogislaus, cuja defesa fora orquestrada por Conring, seu “orientador” na época. Na medida em que as

dissertatio, disputatio ou exercitatio do Século XVII poderiam ser em parte ou integralmente escrita pelo

professor, tendo o aluno a única obrigação de defendê-la em uma argüição pública, é razoável pensar que o texto

do Exercitatio de Imperatore Romano Germanico – o nome do trabalho – ao menos coaduna com as principais

opiniões de Conring. Ademais, caso fosse o contrário, ela poderia não ter sido aprovada quando de sua defesa.

Para mais informações sobre a autenticidade do Discursos Novus ver: FASOLT, C. The limits of history.

Chicago: University of Chicago Press, 2004. xxi, 326 p.

115

realidade, Roma sequer se estendera pela maior parte do globo, a despeito da significância de

suas conquistas, e detinha, em sua época áurea, uma parte ínfima do total da Terra. O

Imperador Romano não poderia ser senhor do mundo. Ora, mesmo que tivesse conquistado

todo o mundo conhecido ainda não poderia estender seu dominium sobre as terras do novo

mundo, supostamente fora do conhecimento geográfico antigo e medieval. Quanto ao Direito

Romano, Conring julgava absurdo que a lei positiva de uma cidade em particular atribuísse

direitos sobre todo o mundo. Tal fato lhe parecia tamanha ingenuidade que o fazia argumentar

que até uma criança saberia os limites da jurisdição romana (FASOLT, 2004). Quanto à

Bíblia, como dito, ele enfatizava a necessidade de interpretá-la num sentido menos literal. Por

mais que Lucas tivesse dito “o mundo inteiro”, isso deveria ser entendido como uma

expressão, ou talvez uma metáfora.

Em suma, segundo Conring - tendemos a concordar com ele por motivos explicitados

mais adiante - o Império Romano nunca foi universal de fato, e em parte como conseqüência,

nem de direito. Historicamente, só um tolo, ou louco afirmaria o contrário. Roma não só não

tinha conhecimento da existência da América como não conseguira conquistar algumas partes

da velha Europa. Ademais, já no século XVII os Reinos da França, Inglaterra, Veneza, Grécia

e os Otomanos, dentre outros, ignoravam deliberadamente os direitos que o suposto lorde do

mundo deveria ter sob seus territórios. O argumento parece claro como água: de que adianta

possuir dominium, ou direito de propriedade, se não é possível exercê-lo?

Isso levara a uma conclusão política substancial. Os reis alemães deveriam parar de

despender preciosos recursos para receberem o título (inútil) de imperadores romanos. A

prática de marchar à Itália central, comum desde a nomeação de Otto III, exauria o escasso

tesouro germânico e, além de vã, aumentava as possibilidades de guerra e destruição em um

mundo político instável, pós-reforma protestante. Acreditar que o Império Romano não existia

mais, no sentido de monarquia universal, e que se existisse, só poderia ser no sentido de

“cidade de Roma e seu entorno”, que então eram controlados pelo papado, significava poupar

gastos, vidas e sofrimento.

Durante seu estudo histórico-político – talvez um termo pleonástico – de

desmistificação da qualidade do imperador romano de dominus mundi, Conring visa um autor

contra o qual e a partir do qual constrói sua crítica. Conring faz de “bode expiatório” da

mentalidade medieval-renascentista o jurista Bartolo de Sassoferato, por ter defendido

ferrenhamente a universalidade e veracidade do dominium romano. Para Conring, Bartolo era

ingênuo o suficiente, menos sagaz que uma criança, a ponto de advogar em favor de uma

116

interpretação literal do evangelho de Lucas e do Direito Romano. Bartolo era tolo o

suficiente, louco o suficiente para afirmar que o Império Romano havia sobrevivido à

passagem do tempo. Em sua defesa, restava apenas sua ignorância. De acordo com Conring,

os fatos históricos que o fizeram questionar a validade do título de imperador romano para os

alemães, eram desconhecidos por Bartolo.

Esse argumento é por demais tentador. Simples, fácil e satisfatório, transformaria

nossa relação com o passado em uma questão de descobertas. Conring revogou os direitos de

propriedade do imperador romano, pois descobria novos fatos sobre seu passado que não os

sustentavam. Simples assim, caminhamos linearmente na medida em que acumulamos

conhecimento. Simples assim, a diferença entre Conring e Bartolus se transforma no resultado

de uma equação numérica, um resultado puramente quantitativo. Todavia, se aprendemos algo

com os debates da filosofia da ciência das décadas de 1960 e 1970, é que as coisas não são

assim tão simples (WALKER, 1993). Felizmente, podemos ser mais sofisticados do que isso,

e afirmar um veemente não. Podemos recusar essa caricatura que Conring nos apresenta de

Bartolo (FASOLT, 2004), podemos respeitá-lo. Bartolo não era louco nem ingênuo, era

apenas diferente. E se há algo que devemos fazer, é não tratar tal diferença com a “arrogância

liberal” (BARTELSON, 1995) moderna.

Sassoferato escrevia tendo em mente não o tempo secular ou moderno dos fatos, mas o

tempo eterno de Deus. Se Conring se embasava no conhecimento histórico, Bartolo via a

verdade nas palavras das sagradas escrituras. Isso incluía o Direito Romano, cuja menção na

bíblia, dentre as quais se destaca a passagem de Lucas, transformava em direito divino aquilo

que Conring julgava ser positivo, humano, contingente. Escrevendo suas obras em pleno

século XVI, Bartolo não poderia ignorar a verdade transcendental do criador. Não porque

tivesse medo de ser rechaçado pela mais importante instituição da época, ou ainda porque

precisasse de argumentos convincentes para a atribuição do status de hostis70

. Deus não era

um meio para ele, era a mais pura verdade. Tal como os fatos históricos para Conring as

verdades transcendentais de Bartolo são aquilo que sustentam seu argumento, que moldam

sua faculdade de pensar (FASOLT, 2004). Essa diferença epistêmica, como é de se esperar,

70

Durante o período medieval, aproximadamente em meados do Sec. XII, um dos principais desafios dos

Juristas era esclarecer o conceito de “povo romano”. Isto se fazia necessário porque a legislação romana, sendo

um dos mais importantes livros do medievo, previa sérias conseqüências para aqueles que, independente à razão,

haviam sido feitos prisioneiros por “estrangeiros”. O código previa que a captura de um cidadão de Roma por

outro cidadão de Roma constituía um crime, mas não tornava o malfeitor um inimigo de Roma. Assim, se um

indivíduo fosse capturado por um romano, seus bens não eram “expropriados”, seu casamento não era anulado e

ele não perderia sua cidadania. Mas se, ao contrário, o mesmo indivíduo fosse capturado por hostis, os não-

romanos, tais conseqüências automaticamente se aplicavam (FASOLT, 2004). Numa Europa medieval, afligida

por conflitos constantes, essa era uma questão da mais alta importância.

117

implicava em projetos políticos diametralmente opostos. Se para Conring o Império Romano

estava absolutamente morto, circunscrito ao entorno de Roma, para Bartolo ele continuava

vivo e, por direito, detinha o mundo.

Mas como era possível ser lorde de tudo, sendo de fato desobedecido por tantos, como

Conring tão claramente mostrara? Como era possível que o imperador fosse senhor de todo o

mundo se os reis da França, Veneza, Itália Lombarda Inglaterra e Grécia permaneciam

senhores em seus respectivos territórios? Como era possível dividir o dominium, que pelo

Direito Romano era indivisível? Bartolo sabia de um jeito, e era tão brilhante quanto

inconcebível à mentalidade moderna. De fato, para a antiguidade, o direito de propriedade, ou

dominium, era virtualmente indivisível. Caso contrário, bem, não faria sentido algum a idéia

de “propriedade privada”, excluindo-se todos os anacronismos que tal expressão possa por

ventura levantar. Assim, quando a lei de Roma estabelecia as terras sobre as quais o

imperador possuía dominium, ela estava de fato indicando que ele, e somente ele, exerceria

imperium71

sobre aqueles que por elas passassem.

Durante o medievo, contudo, isso mudou drasticamente. Para o mundo pré-cartesiano

da similitude, a essência das coisas não estava exatamente nas coisas, mas nas relações

possíveis entre elas (FOUCAULT, 1987; FASOLT, 2004). Nesse contexto, para o qual a

analogia importava mais do que a substância, um dos afazeres prediletos dos juristas

medievais, segundo Fasolt (2004), era o desmembramento e a divisão do dominium de

diferentes formas, a depender do relacionamento da coisa em questão - sobre a qual se possui

propriedade - para com as partes em disputa. Citando um exemplo particularmente

interessante, era possível pensar um pastor, proprietário de um rebanho de ovelhas, que a

rigor, não possuísse dominium sobre nenhuma delas individualmente. Transpondo o

raciocínio ao mundo político, na ausência de uma partícula indivisível que conferisse a

qualidade de “mínima unidade política” e organizasse o mundo estatal - em outras palavras,

na ausência da soberania (BARTELSON, 1995) - era possível reivindicar direitos de

propriedade sobre o mundo, sem qualquer pretensão quanto às partes que o compõe. O todo

era, no limite, diferente da soma de suas partes. O conjunto em si formava um algo sobre o

qual era possível possuir dominium. A afirmação de Bartolo, de que o imperador romano era

de fato e de direito o dominus mundi, quando vista a luz de seu próprio tempo histórico, nada

tem de insana. Em nada importa a “independência” factual da França, Inglaterra ou Grécia

para com o Império Romano. De nada interessa a existência oculta das Américas. Mesmo que

71

Quanto à diferença entre dominium e imperium ver : FASOLT, C. The limits of history. Chicago: University

of Chicago Press, 2004. xxi, 326 p.

118

o Ocidente inteiro, mesmo que o mundo por completo o desobedecesse, ou ignorasse seu

poder, sua iuris dictio, suas leis, o imperador ainda seria o seu senhor. Não havia partícula

indivisível que o impedisse, não havia soberania e não era clara a divisão entre

público/privado.

Da discordância entre Conring e Bartolo surge a conclusão mais importante de Fasolt

para os fins do presente trabalho. Não é possível transcrever - de forma minimamente

satisfatória - os termos utilizados por Conring de acordo com o léxico de Bartolo, e vice

versa. Os dois argumentos, o de Bartolo tendo em vista a eternidade e o de Conring a história,

são incomensuráveis (FASOLT, 2004). Isso significa dizer que não existe uma linguagem

neutra através da qual se poderia traduzi-los objetivamente (KUHN, 2007), sendo então

impossível julgar qual dos dois é o melhor. Isso não só diz respeito à polêmica do século

XVII, mas também a todos os tempos históricos aqui descritos, bem como à metodologia da

contextualização.

Conring contestara a tradição ao levar em conta o conhecimento histórico. Por mais

que em determinado momento o imperador romano tivesse de fato merecido o título de

dominus mundi, o que o Discursus Novus mostrava não ser o caso, a história havia

transformado tal situação. Agora, em 1643, o poderoso “Império” se restringia a uma cidade

controlada pelo papado. Por mais banal que possa parecer, essa atribuição de significado à

passagem do tempo permitira a afirmação da independência do presente de Conring para com

seu passado, ela viabilizara sua autonomia. Além disso, a perspectiva histórica do Discursus

Novus o tornava incomensurável em relação à obra de Bartolo. Sassoferato, preocupado não

em contestar a tradição, mas em reforçá-la, trabalhando sob uma temporalidade medieval-

cristã, não via o fim de Roma como uma oportunidade de se emancipar de seus antepassados,

mas como o prólogo do apocalipse. Para Bartolo, ou o futuro repetia o passado, ou não

haveria mais futuro.

Mas é no exato instante em que percebemos e aceitamos a incomensurabilidade entre

ambos que a ironia se revela. Compreender que Bartolo não estava errado é, ao final, afirmar

com todas as letras que Conring estava certo. Quando o anacronismo é deixado de lado e

julgamos Bartolo segundo suas próprias regras, seu próprio contexto, estamos no mínimo nos

colocando do lado de Conring, do lado da história. Ao entender o sentido atribuído por um

jurista influenciado pelo tempo histórico de Deus, faz-se uso de um imperativo historicista

que é em muito estranho àquele que nos propomos a compreender. Colocam-se as idéias de

Bartolo em seu devido contexto histórico, sob o pretexto de que, ao fazê-lo, seria mais

119

respeitosos para com ele, mas no fim, contextualizamos e particularizamos o transcendental e

absoluto no qual tal homem acreditava. Não precisamos dizer abertamente, como Conring,

que Bartolo era ingênuo ou tolo por não olhar o mundo através da história (FASOLT, 2004).

Nosso método já o faz de maneira velada.

Existiram diversas formas de lidar com o tempo histórico ao longo do tempo. Foram

citados aqui as temporalidades Sacra, Secular-exemplar e Moderna. Através dessa espécie de

genealogia do conceito de história a historicidade é finalmente devolvida ao lugar de onde tão

somente emanara. Mas o processo nos levou à incomensurabilidade, à aporia, ao não-lugar.

Descobriu-se que a prática de conferir historicidade à história acabava por hierarquizar e

“congelar” temporalmente uma maneira (moderna) de lidar com a temporalidade sobre as

demais. Afinal, porque deveríamos supor que o método da contextualização, que a

diferenciação entre o passado e o presente do qual ela depende, que, em essência é fruto de

um tempo histórico específico, deveria valer para além de suas fronteiras cronológicas? Não

continuaríamos a julgar Bodin, relembrando o exemplo de Bartelson (1995), de acordo com

nossos critérios e não os seus, se analisássemos suas idéias à luz de seu contexto específico?

Como demonstrado no capítulo dois, o contextualismo parece ser o meio pelo qual as

obras pós-estruturalistas de Walker (1993), Campbell (1998) e Bartelson (1995) atacam a

violência72

ontológica do Realismo estrutural, quando este “congela” o sentido da soberania

para a formação das unidades políticas de um sistema internacional presumidamente imutável.

Acontece que tal contextualismo, quando analisado a luz de seu próprio contexto histórico,

não se mostra menos “violento”. Colocar as coisas em seu devido contexto, assumir sua

relação com seu respectivo tempo histórico dissociando, pois, um passado que já se foi de um

presente vivo, é violar desde já, todas as outras formas possíveis de lidar com o tempo, formas

que não necessariamente respeitam tais axiomas. O método contextualista, tal como a

oposição passado/presente é uma ferramenta da modernidade.

4.2 Presente/Passado como Oposição Metafísica

Essa violência presente no imperativo contextualista evidencia não só um ato isolado,

uma violência particular, mas talvez, uma expressão de todo um conjunto, toda uma “era” de

72

Violência no sentido utilizado por Emanuel Levínas, quando descreve a supressão do outro, da diferença e do

tempo, na ontologia, no mesmo e na ousia (ουσία). Para Levínas (DERRIDA, 2009, p. 130): “Incapazes de

respeitar o outro em seu ser e em seu sentido, fenomenologia e ontologia seriam, pois, filosofias da violência.

Através delas, toda tradição filosófica seria cúmplice, em seu sentido e em profundidade, da opressão e do

totalitarismo do mesmo”.

120

violência chamada “logocentrismo” (DERRIDA, 1994; CULLER, 1997; STOCKER, 2006;

DERRIDA, 2008; 2009). Para Derrida (2008), o logocentrismo é pelo menos tão antigo

quanto a história do que é compreendido hoje como Ocidente, tão antigo quanto a metafísica.

A despeito das diferentes interpretações para o termo metafísica, o sentido que lhe é

atribuído por Derrida é algo próximo a uma transcendentalização, que consiste na redução das

diferenças empíricas, que constituem o fluxo caótico do tempo, sob uma forma a temporal

(DERRIDA, 2009). De uma forma ou de outra o logocentrismo da tradição metafísica, em

busca de uma verdade absoluta, “eternizada” na metáfora da luz e do sol, incorreu ao longo da

história na supressão das diferenças que “ameaçavam” a unidade do Ser, de Deus, da essência

e do que é imutável.

Dizer que o logocentrismo subordina a força à forma, que ele apaga as diferenças da

realidade empírica caótica em prol da unidade do ser é, dentro da lógica derridiana, acusá-lo

do exercício de abstração (STOCKER, 2006). Toda a vez que uma característica determinada

é abstraída de um todo, o que ocorre, invariavelmente, é o apagamento das multiplicidades de

outras características presentes no todo para que se dê à consciência, apenas o alvo da

abstração. Quando se deseja abstrair, por exemplo, o formato de uma laranja, ou de outra

fruta qualquer, é inevitável percorrer um processo por meio do qual todas as outras

características da fruta, tais como a cor, o cheiro e a textura são desconsideradas, deixadas de

lado, para que ao final só reste seu formato, no caso da laranja, a circunferência. Mas

nenhuma laranja tem como formato uma circunferência perfeita. Quando abstraímos o

formato das laranjas, num problema particularmente caro à metafísica, que consiste no

equacionamento do um e do múltiplo (TOMAS; NASCIMENTO, 1999; ARISTÓTELES,

2006; PLATÃO, 2008), desconsideramos também, por meio do apagamento das diferenças,

tanto as imperfeições de laranjas individuais, bem como as diferenças de formato entre todas

as laranjas existentes. Aliais, o próprio exercício de pensar o que vem a ser uma laranja, em si

mesmo, necessita desse apagamento das diferenças. A rigor, cada existente individual, cada ti

esti é diferente um do outro, tornando a abstração generalizante algo impossível, a não ser

pela supressão das desigualdades. Essas diferenças suprimidas são o que Derrida chama de

força, de realidade caótica, de empiria.

A forma (eidos) abstraída, portanto, é aquilo que sobrevém às vicissitudes desta força

e do caos, representando a essência fora-do-tempo dos existentes particulares. Ela se constitui

enquanto atemporal porque, em termos aristotélicos, não sofre as ações de geração e

corrupção, ou seja, as ações da mudança às quais estão sujeitos todos os seres mortais, todas

121

as coisas que se dão no tempo. O eidos é aquilo que permanece a despeito do fim dos

particulares que o carregam. O gênero73

é aquilo que não deixa de existir caso um de seus

“participantes” definhe. Ao contrário, ele é o que dita os particulares, aquilo que faz com que

suas diferenças desapareçam frente a uma unidade abstrata.Tendo em vista todos os homens

que já passaram sobre a terra, a “humanidade”, sua forma, é o que os definiu enquanto tal.

Esse é o papel da ousia, o papel da identificação de uma presença essencial, abstraída em

meio ao caos empírico, que dita a natureza do ser.

A lógica logocêntrica funciona através das chamadas oposições binárias, ou oposições

metafísicas (DERRIDA, 1994; 2008; 2009). Uma oposição binária é construída quando dois

termos são sobrepostos de modo a criar uma hierarquia axiológica ou de qualquer outra

natureza (CULLER, 1997). O primeiro termo é geralmente valorizado em detrimento de um

segundo termo que representaria, de alguma forma, uma privação de seu oposto,

caracterizando-se enquanto sua forma decaída. São exemplos de oposições metafísicas as

dicotomias verdade/mentira, justiça/injustiça, certo/errado, homem/mulher,

entendimento/desentendimento e sentido/ausência de sentido. Em todas as oposições existe

uma valorização da presença frente à ausência, o que justifica o nome dado por Derrida à era

logocêntrica de “metafísica da presença” (DERRIDA, 2008). O problema dos segundos

termos, a privação que eles representam, é ausência do que é logicamente privilegiado. A

mentira é ausência de verdade, o erro é a ausência de acerto, o desentendimento é a ausência

de entendimento e a mulher representa a ausência de tantas características (masculinas) que

não caberiam no limitado espaço do presente trabalho.

É nesse exato contexto - da metafísica da presença - que o imperativo contextualista se

mostra parte da história da metafísica. Ora, o que significa colocar as coisas em seu devido

contexto histórico? Por que devemos compreendê-las à luz de seu tempo? Segundo a

rationale historicista, ou, de acordo com Fasolt (2004), toda a historiografia, a compreensão

dos fenômenos históricos acontece mediante a contextualização dos mesmos em seus

respectivos períodos. Nesse modelo de metodologia histórica está implicado o mesmo

mecanismo logocêntrico de valorização da presença. Compreender os fenômenos à luz de seu

respectivo tempo histórico é compreendê-los tendo em vista os acontecimentos74

presentes ao

seu próprio acontecimento.

7373

Estamos plenamente conscientes de que o Ser, para Aristóteles, não é uma espécie de Gênero, e sim um algo

que pode ser predicado de diversas formas (DERRIDA, 1994; ARISTÓTELES, 2006). O exemplo acima é tão

somente utilizado para ilustrar a transcendentalidade da ousia. 74

Tanto factuais quanto epistemológicos.

122

O que é o contexto senão o presente? O que é o contexto histórico senão o presente de

um passado ausente no presente que o busca? A metafísica da presença opera, com respeito à

historiografia descontínua e ao historicismo-crítico de modo a valorizar a presença do

presente (passado) em detrimento de sua ausência (presente). O historicismo em geral nos diz

que não é possível compreender o por que de determinados acontecimentos históricos cujo

presente, o contexto, não nos é presente em nosso tempo. Dessa forma, ele igualmente

hierarquiza a presença de um passado ausente à ausência de um presente vivo, trabalhando

sobre uma oposição basilar de presente/passado75

. Presente como termo privilegiado porque é

nele que se encontra a chave para a compreensão histórica. Passado como termo decaído

porque, de acordo com Fasolt (2004), ele está ausente, para sempre longe de nosso alcance

pleno. Um outrora presente vivo que já se foi e decaiu à forma de um passado morto.

Como toda oposição hierárquica, a dicotomia presente/passado pode, ou melhor deve,

ser desconstruída. Mas antes de fazê-lo, antes de descrever a desconstrução do conceito

tradicional de tempo derridiana se faz necessário conhecer o pensamento contra qual e à partir

do qual a desconstrução é pensada. Um pensamento que se baseia numa faceta ainda não

explorada da metafísica: o logocentrismo como “fonocentrismo”:

O privilégio da phoné não depende de uma escolha que teria sido possível evitar.

Responde a um momento da economia (digamos da “vida” da “história” ou do “ser

como relação a si”). O sistema do “ouvir-se-falar” através da substancia fônica – que

se dá como significante não-exterior, não mundano, portanto não empírico ou não

contingente – teve de dominar durante toda uma época a história do mundo, até

mesmo produzir a idéia de mundo, a idéia de origem do mundo a partir da diferença

entre o mundano e o não-mundano, o fora e o dentro, a idealidade e a não-

idealidade, o universal e o não-universal, o transcendental e o empírico (DERRIDA,

2008, p.9).

A história da metafísica apresenta ainda uma dicotomia particular, aquela proveniente

da relação entre significado e significante, as duas faces do signo saussuriano. Para a filosofia

primeira, o significado (a descrição ideal de algo) diria respeito à uma presença presente a si

na consciência no momento da fala, enquanto o significante (a imagem acústica) representaria

o meio material através do qual significado seria expresso no mundo.

Para a lógica fonocêntrica, o sentido de um determinado signo lingüístico está presente

em seu significado, de modo que ao significante, o meio material a partir do qual do qual o

sentido é transmitido, seria tão-somente uma espécie de suplemento, uma adição

desnecessária e perigosa que poderia comprometer a verdade, pela ausência do significado

75

123

que carrega em si. Em outras palavras, o significante, a imagem acústica que possibilita a

representação seria perigosa na medida em que abriria para a possibilidade do

desentendimento. No significado, a presença plena do sentido e da intenção impossibilitariam

quaisquer falta de entendimento, enquanto que, em sua morte, na ausência do significado

carregada pela existência do significante, a privação de um sentido pleno, original, que é

então re-presentado76

, abre espaço para o erro. O significante, ao carregar a ausência do

significado, “infesta” o sentido pleno com a diferença caótica do fluxo empírico.

Mas o que isso quer dizer? Em termos práticos, a valorização axiológica e

epistemológica do significado (presença) sobre o significante (ausência) incorreu diretamente

na valorização da fala sobre a escritura. Pensemos o processo de representação lingüística da

forma como Foucault (1987) o faz, no qual uma idéia é representada em um “índice” que é

então representado em sua exteriorização, numa espécie de dupla representação. Ora, o índice

estaria mais próximo da idéia representada do que de fato a exteriorização do índice que,

nesse contexto, já seria uma representação da representação inicial. A lógica do

fonocentrismo, apesar de ligeiramente diferente, funciona de maneira análoga.

A metafísica sobrepuja a escritura à presença da fala desde seus primórdios. Para

Aristóteles: “Os sons emitidos pela voz [...] são os símbolos dos Estados da alma[...] e as

palavras escritas, os símbolos das palavras emitidas pela voz” (DERRIDA, 2008, p.13).

Utilizando a lógica do exemplo foucaultiano acima, os sons emitidos pela voz, a fala, estariam

mais próximos dos Estados da alma do que as palavras escritas, meros símbolos dos símbolos

que constituem a voz. Nessa série entre alma e matéria, entre interioridade e exterioridade,

cada movimento em direção à escritura é um movimento que se afasta, tanto lógico quanto

espacialmente, do sentido presente no estado da alma. De acordo com Platão (STOCKER,

2006), é uma questão simples. Como estou presente no momento em que falo, posso corrigir

meu interlocutor de qualquer desvio que porventura aconteça na apreensão do sentido daquilo

que digo. Quando em minha ausência, quando a expressão do meu estado da alma é

representada por palavras mortas, isso já não é mais possível. Não posso corrigir os

desentendimentos alheios porque não estou lá, não estou presente para fazê-lo. A escritura é a

minha ausência, leva em si a minha morte. É o pharmakón, o veneno platônico que abre a

possibilidade do erro.

76

A forma escrita “re-presentação” é um artifício utilizado por Derrida para reforçar o sentido da presença plena

na cadeia de significação. Portanto, algo é re-presentado quando se busca de alguma forma suplementar a

ausência de sua presença originária perdida.

124

Por vezes, contestou-se que a fala fosse uma vestimenta para o pensamento [...] Mas,

alguma vez duvidou-se que a escritura fosse uma vestimenta da fala? Para Saussure

chega a ser uma vestimenta de perversão, de desarranjo, hábito de corrupção e de

disfarce, máscara de festa que deve ser exorcizada, ou seja, conjurada pela boa fala.

Já se lança suspeição que, se a escritura é “imagem” e “figuração” exterior, esta

“representação” não é inocente. O fora mantém com o dentro uma relação que, como

sempre, não é nada menos do que simples exterioridade. O sentido do fora sempre

foi no dentro, prisioneiro fora do fora, e reciprocamente [...] Segundo os

pressupostos histórico-metafísicos que evocamos mais acima, haveria aí,

primeiramente, um liame natural do sentido aos sentidos e é o que passa do sentido

ao som: “liame natural, diz Saussure, o único verdadeiro, o do som” (p.35). Este

liame natural do significado (conceito ou sentido) ao significante fônico

condicionaria a relação natural subordinando a escritura (imagem visível, diz-se) à

fala. (DERRIDA, 2008, p.42-43).

É essa relação natural da fala para com o pensamento que justifica a exclusão da

escritura no modelo saussuriano, que em um segundo momento, dada sua característica

sincrônica, excluiria também a fala (parole) da análise das diferenças. Aqui a degradação

axiológica da escrita como segundo termo da oposição é perceptível: ela é tratada como uma

máscara, um disfarce uma perversão exterior, algo que quebra com o liame natural entre

mente e fala. Para a contemporaneidade, fortemente influenciada pelo pensamento

logocêntrico, o sentido das proposições é geralmente atribuído às intenções daqueles que as

proferem. Ora, se um indivíduo x afirma que, por exemplo, não existem círculos quadrados,

mas não quer dizer necessariamente isso porque o faz em tom de ironia, entendê-lo seria

errado. Nessa lógica, sentido e intenção são quase idênticos e a verdade jaz na consciência.

Assim, parece ser mais importante o que se “quis dizer” do que o que de fato se disse.

Isso trás a tona uma função não esclarecida da escritura, a de meio. A escrita, o signo

lingüístico em sua face material inscrita, sempre fora percebido pelo fonocentrismo como um

mero mecanismo de representação exata de sua contraparte, a voz. Isto porque, de acordo com

a lógica da suplementaridade (DERRIDA, 2008) a inscrição vem adicionar a possibilidade da

iteração. A voz, que possui uma relação de representação natural para com a alma, tem, como

efeito dessa mesma naturalidade, que se apagar no momento em que foi proferida. A voz, a

presença quase plena de um significado na psyché, não podendo se repetir no tempo,

representa a morte. É a escritura, sua adição artificial, sua “máscara perversa” que inscreve o

fonema e possibilita sua re-presentação ao infinito, mesmo na ausência, na morte de quem o

proferiu.

A escritura então, a inscrição do fonema em uma superfície material que permite a

repetição ao infinito é igualmente condição de possibilidade e impossibilidade - conceito

comum ao pensamento de Derrida (CULLER, 1997; STOCKER, 2006) - da transferência de

sentido entre uma consciência e seu outro. Sem a imortalidade virtual da inscrição, o sentido

125

não pode ser re-presentado para além do horizonte temporal da vida da consciência que o

possui, para longe de sua presença. Minha fala, esta ligação natural com minha alma, só

funciona como mecanismo de comunicação se eu sou, tal seja, se eu estou vivo (DERRIDA,

2008). Minha morte, nesse sentido, põe fim à possibilidade de que minhas intenções sejam

expressas a um mundo exterior. É preciso que haja (arqui)escritura para fazê-lo. Mas isso não

é tão simples. A mesma escritura, que abre a possibilidade para o meu entendimento ante

minha morte, também traz em si a possibilidade, descrita acima, do desentendimento sem a

minha correção.

Aquilo mesmo que permite com que minhas “palavras” sejam imortais, impossibilita

com que elas sejam plenamente compreendidas, podendo até, permitir seu completo

desvirtuamento. Quando escrevo algo eu “me ausento”, no sentido rousseauniano da

expressão (DERRIDA, 2008), me escondo em minha morte para então compreender o que

possuía com minha presença.

Essa concepção de escritura enquanto meio, enquanto artifício de uma fala que deseja

prolongar sua “vida” está intimamente ligada à percepção da escritura fonética enquanto um

tipo mais elaborado, mais sofisticado de inscrição material. A oposição metafísica entre

significado/significante estabelece outra hierarquia, a escritura fonética/escritura hieroglífica.

A escritura fonética seria uma escritura própria à civilizações mais avançadas, a povos cujo

grau de sofisticação intelectual sobrepujou o estágio metafórico inicial da linguagem. Os

fonemas inscritos reproduzem de maneira satisfatoriamente fidedigna - com algumas

imperfeições ou adições desnecessárias77

- os sons emitidos pela fala, as verdades presentes

nos Estados da alma. A escritura hieroglífica, por falta de uma definição mais apropriada aos

símbolos utilizados pelos homens primitivos, é em contrapartida compreendida como um

vestígio dos estágios primários da comunicação humana. Seu formato é o formato da

metáfora, um movimento de transporte de sentido, um artifício conotativo, que demanda um

alto grau de interpretação para sua compreensão, alto demais para os padrões metafísicos.

Enquanto a escrita fonética prontamente atende ao objetivo quase mecânico - que lhe

fora atribuído pelo fonocentrismo - de expressar o sentido da alma, das intenções, o mais

objetivo e diretamente possível, isto é, sem percalços desnecessários que incorram no perigo

do desentendimento e desvirtuação dos vocábulos, a escritura hieroglífica tem nos seus

símbolos uma metáfora que resguarda centenas de interpretações diferentes. Ademais, é uma

77

Derrida utiliza o exemplo da palavra Lefrèvre, um nome de família que sofreu alterações com o tempo e

passou a ser pronunciado Lefebure “com um b que jamais existiu realmente na palavra, e um u proveniente de

um equívoco” (DESCARTES apud DERRIDA, 2008, p.50)

126

escritura apaixonada (DERRIDA, 2008), algo não muito de valorizado na história metafísica

da busca pelo controle racional sobre as emoções78

. Se na escritura fonética (ocidental) as

intenções são “claramente” expressas, evidenciando o avanço das civilizações que a utilizam,

os hieróglifos remetem a um tempo das cavernas, cujas formas de inscrição espacial do

homem não eram mais sofisticadas que um mero desenho, uma figura, uma imagem.

Não importa em que forma, ou modelo, a escritura é uma adição desnecessária à

plenitude de um estado de natureza originário. Um supostamente supérfluo suplemento que

introduz a possibilidade do erro, desvirtuando o simples jogo da naturalidade e sinceridade de

uma fala que transporta imediatamente o sentido presente na alma (DERRIDA, 2008).

A oposição fala/escritura também traz a tona outra espécie de oposição metafísica,

trabalhada nas obras de Rousseau e Lévi-Strauss, a dicotomia natureza/cultura. Uma relação

bem conhecida da filosofia entre physis e nomos (GILSON, 2004), entre o que é natural aos

homens e aquilo que é por eles instituído. A oposição natureza/cultura é sobreposta pela

lógica fono-logocêntrica à oposição entre fala e escritura. A fala, o liame imediato que

conecta a alma ao mundo exterior seria algo de ordem natural. A escritura, o signo inscrito

que traz a morte do significante, um artifício criado pela cultura. A hierarquia axiológica

persiste. O natural é valorizado frente à artificialidade de uma cultura que, na condição de

suplemento, de adição, não teria razão nenhuma para existir. Para Rousseau, não há o que

suplementar em uma natureza completa em si mesmo. A cultura, em sua função aditiva seria

desnecessária, supérflua e viciosa.

De acordo com Derrida (2008) a lógica de Lévi-Strauss é singular. Compreendendo a

relação entre natureza e cultura nos termos do universal e do particular, respectivamente,

Lévi-Strauss abandona uma preocupação estritamente ontológica frente ao tabu do incesto,

em prol de supostos benefícios práticos. Ora, se o “natural” corresponde ao domínio do

universal, a tudo aquilo que é comum a todos os homens, independente de variações nas

estruturas de significação locais e o “cultural” conseqüentemente, ao domínio das instituições

artificiais que causariam tais variações, então o incesto é uma aporia, um não-lugar. Tal como

algo proveniente da natureza, ele é universal – podendo ser observado em todas as

comunidades humanas do globo – contudo, também é uma regra social (DERRIDA, 2008).

E tal como o homem é naturalmente bom, ele aprende naturalmente aquilo que

também o é como, por exemplo, a fala. O homem começa primeiro a falar, ainda em terna

idade, e só depois, quando o convívio em sociedade, a vida em meio às instituições artificiais

78

Ver a crítica platônica aos mitólogos e poetas no que tange à educação em: PLATÃO. A República. Lisboa:

Fundação Calouste Gulbenkian, 2008.

127

da cultura o corrompe é que ele aprende a escrever. Ou ainda, não seria esse (o aprendizado

da escritura) um primeiro passo rumo à corrupção? Não seria através do ensino da escrita que

a ordem natural seria violada e desfigurada pela vida em sociedade? Em relação a isso Lévi-

Strauss é assertivo: “A escritura, exploração do homem pelo homem.”(DERRIDA, 2008,

p.147). Em uma experiência etnológica peculiar a afirmação é explicada:

Ora, mal havia ele reunido todo o seu pessoal, tirou de um cesto um papel coberto de

linhas tortas, que fingiu ler, e onde procurava, com uma hesitação afetada, a lista dos

objetos que eu devia dar em troca dos presentes oferecidos: a este, contra um arco e

flechas, um facão de mato” a outro, contas! para os seus colares... Essa comédia se

prolongou durantes duas horas. Que esperava ele? Enganar-se a si próprio, talvez;

mas, antes, surpreender os companheiros, persuadi-los de que as mercadorias

passavam por seu intermédio, que ele obtivera a aliança do branco e participava dos

seus segredos (LÉVI-STRAUSS apud DERRIDA, 2008, p.155).

O trecho acima trata de um grupo de índios Nhambiquara, uma população nativa da

América do sul, que segundo Lévi-Strauss, não conheciam a arte da escritura. Uma das ações

do etnólogo quando em contato com os indígenas, foi distribuir papeis e lápis entre eles,

observando sua reação. Para sua surpresa, embora acanhados de início, os índios começaram a

imitá-lo, construindo linhas que, nada significavam, no papel em branco. Para Lévi-Strauss,

contudo, o chefe da população Nhambiquara entendeu muito bem o significado daquela

prática estranha. Ele parece, como indica o exemplo, ter compreendido a função dissociadora

da escritura, que divide os homens entre aqueles que a dominam e os que não. O chefe,

fazendo-se passar por entendido, fingindo ser o único a tomar parte naquele código,

inacessível aos demais, percebeu uma forma de ludibriá-los, de exercer dominação sobre eles.

A conclusão de Lévi-Strauss é impactante. A outrora boa, gentil, simples e igualitária

comunidade Nhambiquara havia - através de seu contato com a escritura - se tornado uma

comunidade divida entre dominados e dominantes.

É em virtude dessa exterioridade - sentido presente em suplemento - viciosa da

escritura que opera um pensamento contra o qual Derrida (1994) talvez tenha exercido sua

crítica mais ferrenha: a redução fenomenológica de Husserl. O que a história da metafísica

enquanto fonocentrismo nos mostra, como visto, é a constante hierarquização da fala sobre a

escritura, baseado numa “proximidade” lógico-espacial desta para com a consciência, o estado

da alma. Este distanciamento do significante “substancial” (a escritura) em relação ao

significante acústico (a fala) representaria a abertura ao erro e ao desentendimento, advindos

da morte, da ausência (mais significativa) de um significado presente no signo inscrito. Ora, a

ausência de uma consciência que esclareça qualquer dúvida que possa existir para os que lêem

128

sua expressão inscrita tem grande possibilidade de se traduzir na não-compreensão. A

conseqüência lógica é que a verdade, a presença plena de um significado, só pode ser

acessada na consciência, no interior de um cogito vivo àquele que pensa, no ponto de

proximidade total à própria alma. Husserl entende, em sua fenomenologia, que para alcançar

esse ponto do sentido absoluto, um estado de interioridade plena, bastaria excluir toda a

exterioridade e ausência da re-presentação.

Husserl primeiramente divide as possibilidades de significação do termo signo

(zeichen) entre índice (anczeichen) e expressão (ausdruck) (DERRIDA, 1994). No sentido de

índice, o signo teria por função a indicação pura e simples, diferindo da expressão, pela

ausência de intenção vinculadas no seu processo de significação. Um índice pode ser natural -

como os sulcos observados na superfície do planeta Marte - ou artificial - como no caso de

uma seta inscrita na casa de uma árvore (DERRIDA, 1994). Independente ao tipo, a função

indicativa do signo responde por apontar ou sugerir a presença anterior de algo que, ao vir-a-

ser, deixara sua marca. As marcas na superfície de Marte podem atestar a passagem de um

cometa ou um evento qualquer que as tenham feito - inclusive a existência prévia de vida

inteligente (DERRIDA, 1994) - ao passo que sinais grafados em árvores podem indicar a

existência (passada ou presente) de uma população humana no entorno. Acima de tudo, é

preciso compreender que a indicação não necessita de nenhuma intenção específica para

funcionar. Independente da intenção primeira do homem que cravou a seta, após a sua morte,

ela indica tão somente a sua existência e, sobretudo, não intenciona nada ao fazê-lo.

O signo expressivo, em contrapartida, se caracterizaria pela transmissão de uma

intenção, um conteúdo discursivo expressivo quando de sua significação. Essa expressividade

(bedeutung) presente na expressão transmite um “querer-dizer” (bedeuten), algo que se

intencionara compartilhar à outrem através do processo de comunicação. O querer-dizer

husserliano, o signo em sua função expressiva, responderia a uma necessidade do transporte

do significado dos fenômenos experimentados por uma existência subjetiva, uma consciência,

a uma outra existência subjetiva. Tais fenômenos, denominados “vividos” por Husserl

(DERRIDA, 1994) precisariam da função significante do signo para serem compartilhados

entre consciências particulares. Na mente, na interioridade da alma, na conjunção de um “eu”

consigo mesmo, os vividos não precisariam da função significativa, de acordo com a

interpretação derridiana (1994) da fenomenologia, pois se dariam no exato momento em que

acontecem. Isto quer dizer que os fenômenos experimentados pela consciência são

significados de imediato, ou melhor, não precisam ser significados porque adquirem sentido

129

àqueles à quem afligem automaticamente quando acontecidos. Uma sensação, por exemplo,

seja de medo, dor, felicidade ou ansiedade, quando acomete um ser consciente, já possui um

sentido automaticamente ao acometê-lo, “significando” prontamente o medo, a dor, a

felicidade e a ansiedade experimentados. Em nossa consciência, na absoluta interioridade

atemporal da mente, não se faz necessária a função significativa, diante da plenitude do

sentido presente a si. O que vivencio já se traduz imediatamente a mim.

Então, o primeiro passo da fenomenologia seria separar, através da dissociação entre

“expressão” e “índice” a experiência - de um modo característico à metafísica - em duas

dimensões opostas: uma interioridade e uma exterioridade. Na dimensão interior estariam os

vividos e seus respectivos sentidos plenamente presente à consciência. Na parte exterior,

estaria o signo indicativo e sua função absolutamente ausente de expressividade. A conclusão

que se segue em Husserl, dada essa primeira clivagem, é a impossibilidade da existência, no

mundo, de um signo unicamente expressivo, de uma bedeutung pura. Para Husserl, “o

querer-dizer, está sempre emaranhado, agregado a um sistema indicativo” (DERRIDA, 1994,

p.28) de modo que a face material do signo, seja um grafema ou fonema, está sempre

associada à indicação. Para que se queira dizer algo, é preciso também indicar. Embora haja

exemplos de pura indicação na natureza, é impossível que haja exemplos de pura

expressividade, ao menos no que tange à exterioridade mundana.

Desse modo, “por um estranho paradoxo, o querer dizer só isolaria a pureza

concentrada da sua expressividade no momento em que ficasse suspensa a relação com um

certo exterior” (DERRIDA, 1994, p.30). Ou seja, para acessar a expressão pura, em sua

plenitude de sentido, seria necessário incorrer na dissociação de tudo aquilo que fosse

indicativo, e portanto físico, exterior. A pura expressão, o querer-dizer husserliano só pode ser

alcançado através da presença a si na consciência, quando (supostamente) a relação com outro

é cortada por completo.

Esse gesto, a redução fenomenológica, é paradoxal se admitirmos, como Husserl o faz

(DERRIDA, 1994), que a função primeira de um querer-dizer é a bedeutung, a expressão de

algo que se quer dizer efetivamente na comunicação. Ora, a razão do meu querer-dizer parece

ser a existência de um outro incapaz de tomar parte em meus vividos presentes plenamente

em minha consciência. Se não há um outro, se não há o mundo exterior com o qual

efetivamente queira me comunicar, minha intenção de fazê-lo parece perder o sentido. A

expressão embora construída em minha mente, não parece ser de muito uso na interioridade

da relação de mim comigo mesmo. Por definição, nada posso me dizer que desde já não saiba.

130

Nada posso comunicar que já não tenha sentido. O “solilóquio”, este diálogo interno, não

precisa da significação. Quando ela ocorre, quando falo comigo mesmo, quando me escuto

falar à consciência, isto não é mais que uma fantasia, uma desnecessidade, um teatro. Husserl

estabelece a verdade, o sentido mais puro e pleno das expressões discursivas lá, onde o

discurso não se faz necessário. A redução parece paradoxal, mas não por isso é incoerente:

O que acabamos de chamar de paradoxo, na verdade é apenas o projeto

fenomenológico em sua essência Além da oposição, do “idealismo” ou do

“Realismo”, do “subjetivismo” e do “objetivismo” etc., o idealismo transcendental

fenomenológico responde à necessidade de descrever a objetividade do objeto

(Gegenstand) e a presença do presente (Geeenwart) — e a objetividade na presença

— a partir de uma “interioridade”, ou antes, de uma proximidade a si, de um próprio

(Eigenheit) que não, é um simples dentro, mas a íntima possibilidade da relação com

um lá e com um fora, em geral. É por isso que a essência da consciência intencional

só se revelará (por exemplo, em Idées I, § 49) na redução da totalidade do mundo

existente em geral. (DERRIDA, 1994, p.30-31).

Husserl põe em prática os princípios da metafísica - apesar de, dada sua associação à

tradição cartesiana, desejar extirpá-la de seu pensamento - em todos os passos da redução

fenomenológica. O querer-dizer é a expressão de um sentido presente à consciência. Cuja

forma decaída é aquela que, emaranhada com a indicação, traz em sua re-presentação, a

ausência da “presentação” original. Husserl admite que o signo indicativo, sendo a escritura

claramente um exemplo deste (DERRIDA, 1994), é hierarquicamente inferior à expressão, no

que diz respeito à veracidade e plenitude do sentido. Seria plausível dizer então que a

fenomenologia husserliana é uma forte expressão da metafísica da presença. O fono-

logocêntrismo em sua história, como se pretendeu mostrar, é o privilégio sob qualquer forma,

da presença, interioridade, significado fala e, segundo o presente trabalho, “contexto” frente a

ausência, exterioridade, significante, escritura e ausência de contexto. Um pensamento tão

velho quanto o Ocidente que define o ser, desde Parmênides (WEIZSÄCKER, 1968) na forma

da permanência, e que o impede, seguindo o princípio basilar da não contradição

(ARISTÓTELES, 2006) de “não ser”.

Mas o saber metafísico não é isento de contradições, e é esse ponto que Derrida

explora em sua filosofia. Para desconstruir, isto é, desnaturalizar a oposição presença/ausência

(sob a qual todas as outras oposições convergem) é preciso evidenciar essa incoerências, as

aporias presentes no discurso logocêntrico, e mostrar como estas exercem um papel, ao

mesmo tempo, de suas condições de possibilidade e impossibilidade.

Seria interessante começar a desconstrução do logocentrismo através do ilustrativo

paradoxo de Zenão (CULLER, 1997; ZEHFUSS, 2002; STOCKER, 2006). Imagine um

131

arqueiro, portando um arco e flecha. Uma flecha é retirada da aljava e equilibrada em paralelo

ao arco fazendo com que este, em uma espécie de prontidão, mantenha sua corda

maximamente tensionada, à espera do comando do arqueiro, que se soltar a flecha a dispara

no ar. Imagine agora que o comando é dado. O arqueiro solta a flecha e esta então voa pelo ar

percorrendo um movimento parabólico até acertar seu alvo.

Onde estava a flecha durante o movimento? Ora, é quase natural admitir que a flecha

é. Ela é empunhada, é manipulada, é emparelhada e, por fim, é solta. Ela é capaz de voar, é

feita de maneira e é eficiente em sua função de acertar o alvo. Ela pode ser leve ou pesada, a

depender do que é feita, mas sem duvida alguma a flecha é. Seria, talvez todos concordemos,

tolice afirmar o contrário.

Mas o que significa “ser” (το ον) de acordo com a metafísica/ontologia/filosofia

primeira? Ser, em qualquer um dos múltiplos sentidos que possui, significa estar presente.

“Eu sou” quer dizer eu estou aqui presente. “Eu sou” quer dizer também que eu sou “aquele

que não mais estará presente”, que há de se ausentar quando do momento da minha morte.

“Eu sou” quer dizer, afinal, que eu sou mortal (DERRIDA, 1994).

Tendo em vista o sentido de ser enquanto presença, voltamos a pergunta inicial: onde

estava (presente) a flecha durante o movimento? Para respondê-lo, é preciso pensar o

movimento espacial temporalmente, e considerar o vôo da flecha como uma sucessão de

pequenos instantes nos quais esta esteve presente em determinado lugar. Num instante a é

possível dizer que a flecha se encontra, está efetivamente presente no ponto x¹. Num instante

b ela passa a estar presente num outro ponto x². No instante c em um ponto x³ e assim por

diante.

Existem ao menos duas maneiras possíveis de responder a esse paradoxo. A primeira

seria concluir que o movimento é uma ilusão advinda da sucessão de “presenças pontuais” da

flecha em diferentes pontos do espaço. Mas isso seria simplesmente corroborar a noção de

“ser como presença” própria à metafísica. Não é o caso de Derrida (DERRIDA, 1994; 2008;

2009). Para ele, não é o movimento que se mostra ilusório através do paradoxo de Zenão, mas

sim a noção de ser enquanto presença (CULLER, 1997; ZEHFUSS, 2002). Invertendo a

lógica da primeira resposta, a resposta metafísica, é possível pensar que a presença é uma

ilusão “macroscópica” de um infindável fluxo temporal, de um constante movimento

interminável. Ora, o que vem a ser um instante? Certamente ele não é uma espécie de unidade

indivisível que ordenaria o tempo. Melhor seria indagar: quanto dura um instante? Um

segundo? Meio segundo? Um milésimo de segundo? Seria possível definir as fronteiras

132

temporais do instante, quando o presente efetivamente se torna passado? Seria, no mínimo,

absurdamente complicá-lo dizê-lo. Afinal, o tempo é uma convenção, o que faz do instante

uma mera ilusão. O passado e o presente, de fato não se dissociam, são partes de um mesmo

fluxo (FASOLT, 2004).

A desconstrução explora esse elo frágil do logocentrismo, essa impossibilidade de se

pensar o ser enquanto presença numa realidade que se dê no tempo. A ontologia, a noção de

que os existentes possuem uma essência, uma natureza, é incompatível com uma noção de

tempo fluido, inapreensível pelo instante. Ao conceber a possibilidade da

natureza/estrutura/ontologia/identidade ignora-se o fato, aceito inclusive por Husserl

(DERRIDA, 1994) de que os vividos acontecem no e ao longo do tempo. “O ser é assim

oposto a toda temporalidade. Segundo Parmênides, o ser 'não foi' e 'não será' porque isso

implicaria mudança.”(WEIZSÄCKER, 1968, p.55, tradução nossa).79

Ora, o que seria da

essência se fosse sujeita à mudança? O que seria da identidade se fosse um mero acidente?

Para lidar com esse duplo movimento de vir-a-ser-tempo no espaço e vir-a-ser-espaço

no tempo Derrida (1994; 2008; 2009) cria o conceito de différance. A différance é um

neologismo que associa o termo francês différence (diferença) ao sufixo “ance”, que denota

uma ação (CULLER, 1997). Significando ao mesmo tempo diferir, diferença e diferimento, a

différance é talvez mais facilmente compreendida como uma conjunção, uma fusão dos

conceitos de diferença saussuriana e da ação diferida (nachträglich) pensada em Freud.

A lógica da lingüística de Saussure - que para ser geral - exclui a parole, o âmbito da

contingência, de uma análise estruturalmente fechada, impede o pensamento do

funcionamento da língua no tempo. Sua análise, como vislumbrado no primeiro capítulo,

estabelece uma série de diferenças espaciais, tal seja, sincronicamente pensadas que atribuem,

dada uma determinada configuração, sentido ao significado esvaziado (HARLAND, 1987;

DOSSE, 1993; DERRIDA, 2008). Nesses termos, a estrutura do sistema lingüístico é mais

importante do ponto de vista significativo do que suas próprias unidades (os termos). Essa

diferença sincrônica, pensada não enquanto um decaimento da presença metafísica no mesmo,

mas enquanto uma fonte sistêmica de sentido, já é, em princípio, um desafio ao

logocentrismo. Se pensamos que a oposição do sentido aos termos que a constituem, e não o

contrário, a idéia de uma natureza originária, como em Rousseau e Lévi-Strauss, da intenção

primeira em Husserl e Aristóteles, ou de uma fala que fosse originalmente anterior à todo e

qualquer tipo de escritura - como em toda tradição metafísica - cai por terra. Pensado na ótica

79

El ser es así opuesto a toda temporalidad. Según Parménides, el ser “no fue” y “no será”, porque eso implicaría

cambio.

133

da diferença aplicada às oposições binárias, o primeiro termo, o

axiologicamente/logicamente/epistemologicamente valorizado não faria sentido algum se não

fosse “contemporâneo”, no sentido de existência em um mesmo horizonte temporal, ao seu

outro, o termo decaído. Em outras palavras, a presença não teria um sentido presente à si, mas

compartilhado pela contraposição à ausência.

A conseqüência mais impressionante da diferença saussuriana aparece quando esta é

introduzida numa perspectiva temporal. Até então pensada de maneira sincrônica, Derrida

transporta a atribuição de sentido pela oposição, pela diferença a uma espécie de linha

temporal que contempla a desconstrução da origem. Ele pensa o movimento e a diferença

como conceitos emaranhados que desafiam a ingênua concepção do transcendental. E seu

alvo principal é o querer-dizer husserliano que se escora na presença à consciência.

Freud serve de meio para essa introdução da diferença sincrônico-espacial no tempo.

De que modo? Através da descrição de um brinquedo. Em meados de 1987 a psiquiatria tinha

em vista um problema considerável: descrever o mecanismo da memória (DERRIDA, 2009).

O problema consiste na aparente inconsistência que a memória, ou melhor, que a mente

humana demonstra quanto ao armazenamento e recepção de informações. Somos capazes de

armazenar na memória fatos que aconteceram há décadas e ainda assim permanecermos de

algum modo virgens a novas informações. A memória parece funcionar igualmente bem tanto

para a assimilação quanto para a recepção, e não apresenta limites aparentes. Dever-se-ia,

então, contemplar um modelo que explicasse essa dupla-função mental. Usualmente, tal tarefa

era feita por meio dos conceitos provenientes das ciências naturais. Freud concebeu, em um

primeiro momento, que o mecanismo de retenção da memória e o mecanismo de recepção de

informações novas estariam situados em diferentes células do sistema nervoso, o chamado

mecanismo das “grades de retenção” (DERRIDA, 2009). Existiria um tipo de célula, digamos,

w responsável pela memória passiva, e outra z responsável pela percepção ativa. Essa teoria se

provaria problemática na medida em que as células, por definição, apresentavam limites

físicos incongruentes com a ilimitada capacidade apresentada pela mneme.

Essa idéia de retenção que permaneceria capaz de apreensão, todavia, encontraria a

metáfora perfeita trinta anos mais tarde, ao se deparar com um pequeno aparelho que havia

sido recentemente lançado no mercado, o bloco mágico:

O bloco mágico é uma tabuinha de cera ou de resina, de cor marrom escuro, rodeada

de papel. Por cima, uma folha fina e transparente, solidamente presa à tabuinha no

seu bordo superior, enquanto o seu bordo inferior está nela livremente sobreposto.

Esta folha é a parte mais interessante do pequeno dispositivo. Ela própria se compõe

134

de duas camadas que podem ser separadas uma da outra, exceto nos dois bordos

transversais. A camada superior é uma folha de celulóide transparente; a camada

inferior é uma folha de cera fina, portanto transparente [...] não precisamos de lápis

nem giz, pois a escrita não depende, aqui, da intervenção do material sobre a

superfície receptora [...] Uma ponta aguçada risca a superfície cujas depressões

produzem o “escrito”. No bloco mágico, esta incisão não se produz diretamente mas

por intermédio da folha de cobertura superior. A ponta pressiona, nos lugares que

toca, a superfície inferior do papel de cera sobre a tabuinha de cera, e estes sulcos

tornam-se visíveis como uma escrita escura na superfície do celulóide que é liso e

cinza esbranquiçado. Se quisermos destruir a inscrição, basta destacar da tabuinha de

cera, com um gesto leve, pelo seu bordo inferior livre, a folha de cobertura

composta. O contato íntimo entre a folha de cera e a tabuinha de cera, nos lugares

riscados dos quais depende o devir-visível da escrita, é deste modo interrompido e já

não se reproduz quando as duas folhas repousam de novo uma sobre a outra. O

bloco mágico fica então virgem de escrita e pronto para receber novas inscrições.

(FREUD apud DERRIDA, 2009, p.327-328).

O fantástico mecanismo que incorpora as funções de retenção e apreensão

virtualmente ilimitadas traz uma inversão surpreendente do funcionamento da consciência.

Em pleno Século XIV, Freud propõe uma teoria segundo a qual nós não estamos no controle,

ao menos não no sentido tradicional. Ele afirma que ao invés de chegar primeiramente à

consciência (a superfície de celulóide superior) as informações percebidas passam

diretamente por ela, como se fosse literalmente transparente, e se inscrevem no inconsciente

(a camada de cera inferior). Só então, pelo contato entre inconsciente e consciente, tal como

no bloco mágico, os sulcos, os traços gravados no camada inferior se fazem aparecer na

camada superior. O que acreditamos ser nossa consciência, se torna consciente pelos rastros

de um inconsciente que lhe é - conscientemente - inacessível.

Isso muda tudo. Esse simples e magnífico gesto muda absolutamente tudo. A partir

daí, as oposições presença/ausência, natureza/cultura, fala/escritura e - insistimos em

adicionar –contexto/ausência de contexto - caem por terra, são desmanteladas.

“Tudo começa pela reprodução”, admitira Freud, “sempre já, isto é, depósitos de um

sentido que nunca esteve presente, cujo presente significado é sempre reconstituído mais

tarde, nachträglich, posteriormente.” (DERRIDA, 2009, grifo nosso, p.311). Não há presença

viva - justificativa das oposições metafísicas - que não seja desde já uma reprodução, um

rastro originário. Só o que há é a reprodução: a indicação no inconsciente de que em algum

momento passado nele algo se inscrevera, e a presença à consciência, que já se da de início

como “re-presentação”, se dissolvendo tão logo é percebida, e retornando à sua ausência

originária.

O nachträglich é mais bem ilustrado pelo exemplo da prática psicanalítica de Freud.

Lembremos o chamado caso de “Ema” (CULLER, 1997). Ema, nome fictício da paciente, era

uma garota que apresentava um estranho medo de lojas. Ela acreditava que isso se dava em

135

função de um episódio que acontecera por volta de seus treze anos. Ema se lembrava de ter

entrado em um estabelecimento e, ao ver dois homens rindo, fugira com medo. Freud,

todavia, conseguira alcançar mais da memória da garota do que ela própria. Ele seguira esse

trauma até a idade de oito anos, quando Ema, ao entrar numa loja, vira um empregado local

bolinar seus genitais (CULLER, 1997).

Quando se originou o medo? Quando se deu o trauma? É impossível dizer. Ver um

homem tocar sua genitália seria algo dificilmente significativo para uma garotinha de oito

anos. É somente com a chegada da puberdade, e a abertura para a sexualidade que o trauma,

silenciosamente preservado no inconsciente como uma lembrança qualquer se manifesta. O

trauma em si nunca aconteceu, jamais esteve presente como um “vivido husserliano”. Ele se

constituiu pela ação diferida, não possuindo origem exata, senão uma não-origem.

A différance então, a diferença ativa, serve à desconstrução da idéia de origem, de

uma presença anterior a tudo, antes da qual nada de fato seria. Ela revela a “ilusão ontológica”

do exercício de abstração atemporal que suprime, mascara uma importante “verdade” do

processo de significação. “Algo pode ser uma seqüência significante somente se é iterável,

somente se pode ser repetido em vários contextos.” (CULLER, 1997, p.138). O sentido de

uma coisa, só pode existir, se houver a possibilidade de sua repetição ao infinito, mantendo-se

semelhante.

Figura 8- Iterabilidade e Significação

Fonte: elaborada pelo autor

A significação é uma função da possibilidade de repetição/iteração com a continuação

do sentido. Na origem da cadeia de significação, onde (E¹ = x), é impossível saber ao certo o

sentido do significante E, sem vislumbrar a seqüência da cadeia. A única forma de conceber

(E = x) é construir uma estrutura sincrônica que desconsidere a variável T, a temporalidade.

Tão logo essa estrutura é inserida no tempo a igualdade se desfaz enquanto essência e se

transforma numa função da repetição. Como mostra a Figura 8, o significante E¹ só é

136

associado ao significado x na medida em que se repete em um momento T² como E²,

mantendo-se x constante. Se, hipoteticamente, o significado do significante E variasse com o

passar do tempo T, E, ao final nada significaria. Se em T², E² significasse, suponhamos, y ao

invés de x e em T³, E³ significasse z então não seria possível identificar em T¹ o que E¹

significa. A conseqüência lógica é impossibilidade da presença plena (e ao mesmo tempo

significativa) na origem. Aquilo que acreditamos ser a identidade, ou a essência de E, é na

realidade fruto da repetição, uma “ilusão ontológica” do processo de iteração. O que

entendemos por natureza significativa de E é fruto de sua permanência de sentido no tempo,

conseguida através da repetição. Se tentássemos retroceder na cadeia de significação ao

máximo jamais alcançaríamos a origem. Só a partir do momento T² é que se torna possível

aferir o significado x de E - assumindo que, ao longo da cadeia, ele continuará o mesmo.

O que entendemos enquanto o significado de E é o efeito diferido de T¹, a mesma

nachträglich da relação consciente-inconsciente. Assumindo o significado como fruto de sua

permanência em meio à repetição, tem-se que o E só efetivamente significa posteriormente

em T². A significação se da na diferença entre T² e T¹ , uma diferença espaço-temporal, que

repercute no sentido estando ausente em T¹.

No entanto, ainda observamos a existência em um tempo T¹ de um significante E¹ cujo

significado é x. Como afinal E¹ chegou a significar x? Sabemos que o processo de

significação, a identidade de um significante para com seu significado é uma atribuição da

permanência no tempo, através da repetição, mas isso não resolve nosso problema. Sabemos

que a ilusão ontológica de (E = x) só se torna inteligível, só é construída, a partir de T², mas

também sabemos que na origem T¹, E¹ significa x. Uma solução seria pensar que (E = x)

estaria de fato presente no momento T¹, e que os instantes que se seguem, a re-presentariam.

Mas a lógica da différance não nos permite fazê-lo. Ela admite que tudo é em si mesmo

repetição e, portanto, que a “origem” T¹ é igualmente uma ilusão. Na origem, não há

presença, somente o rastro originário.

A relação do significante E¹ com x, no instante T¹ só nos é dada enquanto significativa

porque, a rigor, ela já se da como repetição. Repetição, rastro, adição originária de uma

origem que nunca esteve presente. Retroceder mais ainda na cadeia não adiantaria, o sentido

pleno nunca é encontrado. A suplementação originária é uma relação ao infinito. Como disse

Freud, “tudo começa pela reprodução” (DERRIDA, 2009, p.311).

137

Figura 9 - O rastro/Suplemento originário

Fonte: elaborada pelo autor

Isso traz conseqüências devastadoras para a metafísica da presença. Não é possível

mais pensar numa natureza primeira, no sentido em que o fazem Rousseau e Lévi-Strauss, que

fosse simplesmente suplementada, adicionada pelas instituições culturais. Lá na origem, lá na

natureza antes entendida enquanto plena, já residia a possibilidade da complementação.

Afinal, só se adiciona um algo a alguma coisa na medida em que nela esse algo falta. E se a

natureza plena, em sua constituição, já concebe uma ausência que permita o suplemento,

então sua plenitude há de ser revista. A escritura, essa artificialidade que as instituições

adicionam - desnecessariamente, devemos frisar - à naturalidade da fala, é na realidade,

condição de possibilidade desta. Ora, só a escritura é virtualmente atemporal, só ela abre

espaço à repetição no infinito. Desde a primeira palavra, desde que o homem pronunciou seu

primeiro fonema, a escritura sempre esteve presente, na forma do rastro originário e do

mecanismo de significação (iteração). Não a escritura como a conhecemos, mas a “arqui-

escritura”, a inscrição originária da qual fala e escrita são diferentes subtipos.

Quanto à função de bedeutung, o querer-dizer husserliano que seria fonte de verdade e

sentido das proposições enunciadas, há uma inversão substancial. A intenção, o quere-dizer só

se faz possível mediante a iterabilidade proporcionada pela função indicativa (exterior) que

Husserl condena. Não posso querer dizer nada se nada se repete no processo de significação

exterior. Quando, por exemplo, afirmo que “o cachorro late” só posso fazê-lo porque, antes de

tudo, “o”, “cachorro” e “late” possuem um sentido que poderia ser compreendido, isto é,

repetido com algum grau de permanência, na ausência do cachorro, do latido e de minha

consciência. A minha expressão se da em função da indicação da qual faz uso, e não o

contrário80

.

Quanto ao imperativo contextualista, a compreensão dos fenômenos históricos à luz de

seu tempo, a conclusão é igualmente surpreendente. Se não há presença plena presente à

80

Assumindo, é claro, que não existe pensamento fora da linguagem (DERRIDA, 2008), o que nos parece

perfeitamente plausível.

138

consciência, não há razão de haver na história. O que tomamos como “contexto” no sentido

particularista a ele atribuído pela tradição historicista, se compreendido enquanto um

presente-passado de um tempo que nos é ausente é, desde já, a ausência de contexto. Pensar a

história - assim como Derrida (2008) a pensa ao afirmar que “não há nada fora do texto”-

enquanto uma seqüência de eventos significativos que poderiam ser lidos do mesmo modo

que qualquer outro significante, o “texto mundo” (STOCKER, 2006), é pensá-la a partir do

rastro originário. O presente, para que faça sentido, para que se constitua como um evento

histórico, precisa ser, desde já um passado, um suplemento, uma repetição.

Não importa, pois, que vislumbremos os fenômenos à luz de seu devido contexto, seu

presente-passado, porque tal coisa não existe. Pensar o contrário é deixar-se iludir pela

metafísica.

139

5 CONCLUSÃO

Chega-se ao final do presente trabalho, cujo principal objetivo era demonstrar os

limites do Pós-Estruturalismo em Relações Internacionais, através da desconstrução da

oposição metafísica na qual este se baseia, a saber, a dualidade presente/passado. Um

processo que evidencia as inconsistências do projeto político pós-estruturalista, que contrapõe

a violência metafísica do Estruturalismo com outra violência: a imposição de uma concepção

de temporalidade para além de suas fronteiras históricas. O uso do imperativo contextualista

por parte de Walker (1993), Campbell (1998) e Bartelson (1995), por fim, os associa à

tradição metafísica ocidental, que funciona através da valorização axiológico-epistemológica

da presença em relação à ausência. O movimento que prega a diferença e pluralidade, por um

lado, ainda faz parte de uma tradição que a suprime na unicidade do mesmo.

Assim, a condição de possibilidade do movimento pós-estruturalista é, também, sua

condição de impossibilidade. O imperativo contextualista, o entendimento de que todo

fenômeno histórico deve ser compreendido à luz de seu contexto específico, se ancora, tal

como a lógica das capabilities waltzianas, num pensamento que, sendo historicamente

específico, se pretende, ou se “mascara” de universal.

A historiografia (FASOLT, 2004) e o historicismo-crítico (HOOPER, 2007; VIGHI;

FELDNER, 2007; BEVIR, 2008), espécies de base metodológica do Pós-Estruturalismo nas

RI, possuem sua “razão de ser” na oposição entre passado/presente ou, pela lógica da

metafísica da presença, dada a hierarquização axiológico-epistemológica do primeiro sobre o

segundo termo: presente/passado. O “passado” é a dimensão da ausência, ele se foi para

sempre. Nossa esperança de compreendê-lo jaz nas evidências arqueológicas que restaram,

sugestivas de sua existência outrora presente. Mas não podemos compreender o passado de

acordo com a mentalidade presente, uma mentalidade que não lhe diz respeito. Para

compreendê-lo satisfatoriamente é preciso buscar seu contexto, seu “presente”, que passado,

se faz ausente no presente que o procura. Essa é a lógica que sustenta o esforço

arqueológico/genealógico de desnaturalização do presente. Uma lógica que contesta o

congelamento de sentido presente no modelo estrutural. Afinal, definir leis probabilísticas que

funcionariam desde os tempos bíblicos até hoje (WALTZ, 1979), não é mais que a

“presentificação” (KOSELLECK, 2006) de um passado que em pouco, ou nada se assemelha

ao presente nele refletido.

140

Mas ao atribuir uma essência histórica a tudo o que se pensa ser transcendental a

arqueologia/genealogia deixa intocada a própria história. O “tempo histórico”, o modo como

os homens tratam a relação entre passado e futuro, entre suas experiências e suas expectativas

(KOSELLECK, 2006) é também uma prática historicamente constituída. Atribuir significado

à passagem do tempo é algo particular à Modernidade (FASOLT, 2004). A rationale

historicista pode, portanto, voltar-se contra o próprio contextualismo.

Afinal, por qual razão deveríamos vislumbrar fenômenos - que sequer eram

compreendidos como históricos - à luz de seus respectivos contextos? Fazê-lo não seria,

julgar nossos antepassados com critérios que não são seus, mas nossos? Não é esse o “crime”

do qual fora acusado o movimento estruturalista?

Fasolt (2004) brilhantemente identifica esse contra-senso na disputa entre os

pensadores medievais Herman Conring e Bartolo de Sassoferato. Se aceitarmos a caricatura

de Conring nos situamos ao seu lado, em oposição à Bartolo. Se a rejeitarmos, continuaremos

ao seu lado, contra Bartolo, vislumbrando a passagem do tempo como algo significativo. Em

suma, qualquer que seja a opção escolhida, o resultado permanece. Jamais acessamos Bartolo

de dentro de próprio mundo, em primeiro lugar, por acreditarmos que exista algo como seu

“próprio mundo”. Sassoferato escreveu de uma época que não compreendia a idéia de

contexto histórico, tampouco a separação significativa entre o passado e o presente. Seu

pensamento é incomensurável com o de Conring e de toda a Modernidade. Tal

incomensurabilidade torna virtualmente impossível alcançá-lo sem incorrer em violência, sem

lhe impor idéias que nunca verdadeiramente aceitara. No fim, não se pode compreender

Bartolo, sem desde já, posicionar-se contra ele: “toda história é história moderna.” (FASOLT,

2004, p. 228, tradução nossa).81

Mas suponhamos que isso não fosse um problema, que a chave para a “verdade” sobre

Bartolo estivesse em seu “presente” e que buscá-la não incorresse em violência alguma. Só

seria preciso reconstruir o tempo presente à Bartolo, os fenômenos sócio-político-

epistemológicos que o constituíram, para finalmente nos situarmos ao seu lado, entendê-lo de

seu “próprio mundo”. Ainda que a violência fossa extirpada do estudo historicista, a proposta

pós-estruturalista continuaria enfrentando um empecilho substancial à sua realização: a

inexistência do presente.

A differánce destrói a esperança de uma presença originária de sentido, seja no

significado ao qual reporta o significante, na consciência ao qual reporta a fala ou mesmo no

81

All history is modern history.

141

passado ao qual reporta a evidência. Se “não há fora do texto” (DERRIDA, 2008, p.194) a

economia de significação opera em todo lugar, inclusive na história. As evidências não

correspondem à verdade dos acontecimentos passados, mas à “significantes” sujeitos à

interpretação e ao erro (FASOLT, 2004). Significantes que nunca reportam exatamente a seus

significados, mas somente a outros significantes. Na origem não há a presença, mas a

ausência trazida pelo suplemento originário.

Se não há a presença originária, se não existe sentido pleno que seja imediatamente

presente, então como julgar as análises sincrônicas estruturalistas? Qual o critério, para além

do hedonismo, que justifique o esforço historicista do Pós-Estruturalismo? O presente-

passado que se pretende re-presentar já é, desde sempre, uma representação de uma ausência

originária, de um tempo que, supostamente presente, sempre estivera ausente. A

irredutibilidade do tempo em um instante indivisível, em uma categoria que excluísse a

economia da significação transforma, no limite, o “imperativo” contextualista em não mais

que uma sugestão.

Se as abordagens estruturalistas das RI, como o Neo-Realismo, incorrem em

anacronismos, estudando eventos e fenômenos fora de seus respectivos contextos históricos, o

Pós-Estruturalismo não faz diferente. Walker (1993), Campbell (1998) e Bartelson (1995)

situam suas análises tão fora do contexto – das práticas discursivas e não discursivas que

possibilitaram a emergência dos fenômenos estudados - quanto Waltz (1979).82

Nenhuma das

obras aqui vislumbradas é capaz de acessar a presença plena do passado - do contexto - que

pretendem contrapor à sua ausência completa no transcendentalismo realista. Elas criticam o

congelamento temporal das abordagens anacrônicas, ao mesmo tempo em que congelam o

tratamento dado à temporalidade. Que fique bem claro: isso não é uma falha dos autores, mas

uma simples impossibilidade ontológica.

Não se quer dizer aqui, tal como não se quis dizer em Fasolt (2004), que o Pós-

Estruturalismo, a pesquisa histórica e a genealogia devem ser abandonados. Tampouco se

quer dizer que as obras analisadas não têm nenhum valor. Não se trata de defender ou atacar

essa ou aquela abordagem, essa ou aquela opção metodológica. O que a desconstrução faz não

é rejeitar o presente, mas única e exclusivamente sua superioridade hierárquica com relação

ao passado. A categoria de arqui-passado, introduzida na oposição metafísica como forma de

superá-la, não diz respeito à completa inutilidade do contexto histórico (presente) como

construção teórica, mas tampouco a valoriza como uma alternativa superior às demais. O

82

Admitindo a impossibilidade, ou ao menos dificuldade, de se pensar em um gradiente de “presença” ou

“ausência”. Não parece haver grau de presença ou ausência. Algo está ou não está.

142

arqui-passado representa a completa incapacidade em se fazer escolhas. A indecisão

derridiana em sua forma máxima, uma espécie de incomensurabilidade que não se restrinja às

diferenças semânticas que separam as alternativas.

Assim, o (não)método desconstrutivista não inviabiliza o Pós-Estruturalismo e seu

estudo histórico-político do internacional. Ao contrário, ele o reforça em suas condições de

existência. Se o presente fosse objetivamente alcançável, então o sentido de determinado

evento histórico poderia ser des-historicizado, tal seja, congelado no tempo: fechado. É a

impossibilidade de acesso pleno ao a priori histórico de formações discursivas, e conseqüente

fechamento do sentido, que permitem a existência de algo como o imperativo contextualista

em primeiro lugar (VAUGHAN-WILLIAMS, 2005).

Portanto, a questão é aplicar a lógica desconstrutivista ao limite. É preciso prover de

historicidade absolutamente tudo que se imaginar, inclusive à própria história. Fazer da

temporalidade moderna também sujeita ao tempo que dela emana. Mostrar, que se devemos

levar os conceitos de pluralidade e polifonia a sério, a “desconstrução conveniente” que

contrapõe a “violência metafísica” com uma “violência historicista” não é uma solução

satisfatória. A história é uma poderosa ferramenta política. O fluxo temporal é inapreensível

na violência do conceito e, por conseguinte, serve ao propósito de contestá-la. Contudo,

quando reduz as diferenças entre temporalidades na unidade de um mesmo historicismo, a

história se faz metafísica. Talvez, parafraseando Bartelson, o imperativo contextualista seja

mera “arrogância moderna”. O Pós-Estruturalismo se afasta do passado no momento em que

se propõe buscá-lo.

143

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