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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS
Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais
Henrique Tavares Furtado
OS LIMITES DO PÓS-ESTRUTURALISMO
Belo Horizonte
2012
Tavares Furtado
Henrique Tavares Furtado
OS LIMITES DO PÓS-ESTRUTURALISMO
Dissertação apresentada ao programa de Pós-
Graduação em Relações Internacionais da Pontifícia
Universidade Católica de Minas Gerais, como
requisito parcial para obtenção do título de Mestre
em Relações Internacionais.
Orientador: Cristiano Garcia Mendes
Belo Horizonte
2012
Henrique Tavares Furtado
OS LIMITES DO PÓS-ESTRUTURALISMO
Dissertação apresentada ao programa de Pós-
Graduação em Relações Internacionais da Pontifícia
Universidade Católica de Minas Gerais, como
requisito parcial para obtenção do título de Mestre
em Relações Internacionais.
________________________________________________________
Cristiano Garcia Mendes (Orientador) - PUC Minas
________________________________________________________
Silvana Seabra Hooper - PUC Minas
________________________________________________________
Diego Santos Vieira de Jesus - PUC Rio
Belo Horizonte, 09 de Março de 2012
AGRADECIMENTOS
Agradeço aos meus pais, Henrique Silva Furtado e Alda Lúcia Libanio Tavares
Furtado que sempre acreditaram em mim, e me deram a mais importante das ferramentas para
que este trabalho viesse a existir: a criatividade. A razão não liberta o homem, a criatividade o
faz. Por meio dela nos recusamos a viver no “no mundo como ele é” e viajamos por mundos
possíveis, sonhamos. Sem vocês, definitivamente não haveria autor.
Agradeço a Roberta Cerqueira Reis, pelo amor, carinho, paciência e compreensão nos
momentos mais difíceis. Sem o seu apoio eu não teria conseguido finalizar esse projeto. A
Ground Star Ushi, meu cãopanheirinho, pela simplicidade e alegria com a qual me
acompanhou durante todo o processo de escrita. Quando eu estava mais nervoso e angustiado,
você me mostrou que as coisas realmente importantes na vida são a soneca, o papá e as
brincadeiras. Sem vocês dois não haveria contexto.
Agradeço a Silvana Seabra Hooper, que, lá no começo, lá quando ainda pensava com a
paixão ingênua de quem desconhece as amarguras do saber, me introduziu, assim, meio sem
querer, à tese da incomensurabilidade. Essa linda idéia que se opõe a todo e qualquer tipo de
exclusão ou opressão, que respeita a alteridade e a trata com dignidade. Essa tão linda idéia
que nos faz sonhar um dia com uma era da “polifonia”, na qual a única coisa intolerável seja a
“violência metafísica”. Por fim, gostaria de agradecer a Cristiano Garcia Mendes, meu
orientador, que me apresentou o tema do presente trabalho. Desde o primeiro momento em
que pisei na universidade, você esteve, com o perdão da ironia, presente. Agradeço ao homem
que me introduziu a Teoria das Relações Internacionais, e que orientou o processo de
construção desse trabalho com respeito às minhas escolhas e confiança em minha capacidade.
Vocês, meus dois professores; sem vocês não haveria texto.
O único querer-dizer que importa é o meu querer dizer agradecido.
Tempo — definição da angústia. Pudesse ao menos eu agrilhoar-te ao coração
pulsátil dum poema! Era o devir eterno em harmonia. Mas foges das vogais, como a
frescura da tinta com que escrevo. Fica apenas a tua negra sombra: — O passado,
Amargura maior, fotografada (HERRERO; TORGA, 1979, p.93).
RESUMO
O Pós-Estruturalismo das Relações Internacionais – influenciado pelo movimento filosófico
francês das décadas de 1960 e 1970 – teve por objetivo, em sua primeira geração de trabalhos
publicados, desafiar as condições de possibilidade da disciplina enquanto um saber científico.
Walker, Bartelson, Campbell, Thomson, Hansen e Weber elegeram o “conceito de soberania”,
tão problemático quanto superficialmente abordado pelo main stream, como foco de suas
críticas. Compreendendo tal princípio através de uma lógica histórica os autores pós-
estruturalistas contrapõem a pretensão universalista do Realismo estrutural. Para Walker et al.
a condição historicamente situada do conceito de soberania, e sua natureza conformadora do
internacional, impediriam quaisquer conclusões de cunho universalista, que generalizassem e
pressupusessem a transcendentalidade de resultados temporalmente circunscritos. Entretanto,
o objetivo pós-estruturalista de desnaturalização do que se pensava ser mais natural exige a
preservação de algumas premissas inquestionáveis, tidas enquanto, paradoxalmente, naturais.
O presente trabalho visa identificar os limites da crítica pós-estruturalista, bem como
desconstruir a compreensão de tempo histórico que lhe sustenta logicamente, baseada na
oposição metafísica presente/passado.
Palavras-Chave: Pós-Estruturalismo. Teoria das Relações Internacionais. Historicismo
Crítico. Desconstrução. Presente/Passado.
ABSTRACT
The Poststructuralism in International Relations - influenced by the French philosophical
movement of the late 1960's - aimed, in its first generation of published academic works, to
defy the conditions of possibility of the discipline as a scientific knowledge. Walker,
Bartelson, Campbell, Thomson, Hansen and Weber elected “the concept of sovereignty”,
extremely problematic, although superficially treated by the main stream, as the focus of its
critics. Comprehending such principle through a historical perspective the poststructuralists
oppose themselves to Structural Realism's universalist pretension. For Walker et al. the
historical condition of sovereignty, and its constructive nature towards the international,
should prevent any generalist conclusions that presuppose its temporal conscript’s outcomes
transcendence. Nevertheless, Post-Structuralism's denaturalization-of-what-seems-most-
natural demands the preservation of some assumptions untouched, believed to be,
paradoxically, natural. The present work aims to identify the limits of poststructuralist's critic
as well as to deconstruct the comprehension of historical time that supports its rationale,
based on the metaphysical opposition present/past.
Keywords: Poststructuralism. Theory of International Relations. Historicism. Genealogy.
Deconstruction. Present/Past.
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO ................................................................................................................... 11
2 DA ESTRUTURA À DIFERENÇA ................................................................................... 21
2.1 A Filosofia da Diferença ................................................................................................... 37
2.2 O Pós-Estruturalismo Nas Relações Internacionais ...................................................... 53
2.2.1 Walker ............................................................................................................................. 53
2.2.2 Thomson .......................................................................................................................... 57
2.2.3 Weber .............................................................................................................................. 59
2.2.4 Bartelson ......................................................................................................................... 61
2.2.5 Campbell ......................................................................................................................... 64
2.2.6 Hansen ............................................................................................................................ 68
3 O IMPERATIVO CONTEXTUALISTA .......................................................................... 73
3.1 O Contexto em “Inside/Outside” .................................................................................... 80
3.2 O Contexto em “Writing Security” ................................................................................. 86
3.3 O Contexto em “A Genealogy of Sovereignty” .............................................................. 95
4 A DESCONSTRUÇÃO DO TEMPO .............................................................................. 102
4.1 Passado/Presente como Dualidade Historicamente Situada ....................................... 102
4.2 Presente/Passado como Oposição Metafísica ............................................................... 119
5 CONCLUSÃO .................................................................................................................... 139
REFERÊNCIAS ................................................................................................................... 143
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1 INTRODUÇÃO
When liberty comes with hands dabbled in blood it is hard to shake hands with her.
(WILDE apud KILLEEN, 2007, p.89)
Existem inúmeras formas de se contar a história das Relações Internacionais (RI)
enquanto campo do conhecimento humano (WIGHT, 1966; NEUMANN; WÆVER, 1997). A
maior parte delas faz referência ao chamado Neo-Realismo, ou Realismo estrutural, como
uma abordagem marcante. A teoria de Kenneth Waltz (1979) auxiliara a estabelecer os limites
da disciplina de RI, bem como provê-la de legitimidade, enquanto um saber autônomo. Sua
concepção de anarquia sistêmica confirmava a necessidade de uma ciência outra, que não a
ciência política, que se voltasse para os fenômenos inter-estatais.
As repercussões foram enormes. O Neo-Realismo prometia ao jovem e
desarticulado saber um espaço que lhe fosse reservado por direito, uma ferramenta
parcimoniosa com alto grau de previsibilidade e uma agenda restrita, que lhe fosse específica.
Acima de tudo ele prometia o status de conhecimento científico, a seriedade e o respeito que
dele advinham.
Mas nada é assim tão fácil. Após a euforia inicial as críticas à teoria waltziana
começaram a aparecer. Primeiro vieram os liberal-institucionalistas (KEOHANE; NYE, 2001;
KEOHANE, 2005) argumentando que os efeitos da chamada “interdependência complexa”
mitigariam um dos mais importantes princípios da doutrina realista: a busca estatal pela
sobrevivência. Em um mundo no qual os laços econômicos se tornavam cada vez mais fortes
a tendência seria a política de poder se tornar cada vez mais rara, ou ao menos mais custosa.
Os Estados, antes de buscarem a estratégia do self-help, da auto-ajuda, se ajudariam,
cooperariam, talvez a ponto de se estabelecer uma espécie de “divisão do trabalho”, ainda que
incipiente. A cooperação, em um primeiro momento técnica, tenderia a se desdobrar para a
política (HAAS; SCHMITTER, 1964).
O Institucionalismo e o Realismo eventualmente chegaram a um “mínimo
denominador comum”, no processo chamado de “síntese neo-neo” por Neuman et al (1997).
Os seguidores das duas teorias perceberam que mantinham mais pontos em comum do que
propriamente divergências, como admitiria Keohane (1988).
Mas tão logo se dera a trégua tão logo surgiria uma nova ameaça. Na década de 1990
aparecia para as RI a “meta-teoria” construtivista (KRATOCHWIL, 1989; ONUF, 1989;
RUGGIE, 1993; KUBÁLKOVÁ; ONUF et al., 1998; WENDT, 1999). Baseado num misto de
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teoria social weberiana (2004) e guiddensiana (2009), o Construtivismo visava analisar as
chamadas “variáveis ideais” ausentes nas análises excessivamente “materialistas” do
Realismo e do Institucionalismo. Em suas vertentes “fraca” e “forte” (HASENCLEVER;
MAYER et al., 1997) a abordagem contemplava aspectos da realidade intersubjetiva, como
normas, regras, valores, identidades e aprendizado, relacionando-os ao processo de tomada de
decisão. Ademais, o Construtivismo retomava o problema agência-estrutura anunciado por
Waltz (WALTZ, 1959) trazendo novas questões – equacionando tanto estrutura (sistema)
quanto agentes (unidades) em uma ferramenta de co-constituição (WENDT, 1987;
DESSLER, 1989; WIGHT, 2006) - que contrapunha a redução dos fenômenos políticos às
explicações de “terceira imagem” realistas.
O Construtivismo, embora introduza uma preocupação relevante quanto à questão
identitária, incorreria no erro de tratá-la superficialmente. Sem a devida atenção à virada
lingüística, autores como Wendt (1999) teriam jogado de lado a oportunidade de desconstruir
axiomas presentes no pensamento realista – como, por exemplo, a idéia do estado enquanto
um ator unitário - e, ao contrário, os teriam reificados (ZEHFUSS, 2002). A incapacidade em
perceber a arbitrariedade da distinção entre uma realidade material e outra ideal, ou
discursiva, também seria um problema dessa abordagem, que trata o mundo objetivo como
uma espécie de limite às construções sociais. A despeito de seu caráter crítico, a meta-teoria
construtivista não parecer ter ido satisfatoriamente longe em sua contestação. Uma espécie de
“ortodoxia” disciplinar manteria sub-otimizado o potencial de sua “heterodoxia” teórica
(GUZZINI; LEANDER, 2001).
À margem da disputa entre a síntese neo-neo e os construtivistas emergia um grupo
heterogêneo de pensadores que, influenciados pela Filosofia Francesa Contemporânea,
rejeitavam algumas das mais importantes premissas realistas, liberais e construtivistas. Esse
grupo de autores, absolutamente ignorado pela tradição da disciplina (CAMPBELL, 1995) foi
chamado de Pós-Estruturalismo, ou Pós-Modernismo, por sua postura crítica em relação aos
conceitos de “verdade” e “ciência”, particulares à rationale moderna (BEST; KELLNER,
1991). Para os pós-estruturalistas, as Relações Internacionais estariam completamente
emaranhadas em axiomas e conceitos não problematizados, que, tido enquanto naturais
(verdadeiros), disfarçavam a natureza histórica da disciplina.
Simplificadamente, o Pós-Estruturalismo das RI é um movimento de re-introdução do
estudo histórico no pensamento sincrônico-estrutural. A fim de problematizar as dicotomias
fundamentais ao estudo metafísico-científico do internacional, os “pós-modernos” se valem
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de dois teóricos em especial: Michel Foucault1 (1987; 1997; 2008) e Jacques Derrida (1994;
2008; 2009). O projeto pós-estruturalista poderia, sem grandes problemas, ser articulado
como uma tentativa de desconstrução - o processo de evidenciar as aporias inerentes à
rationale de uma determinada teoria ou saber- por meio de uma metodologia genealógica -
uma forma de história do presente (BARTELSON, 1995) que demonstra a construção de
grandes narrativas, a transcendentalização do que seria histórico por natureza.
O conceito de soberania tornou-se o foco principal da crítica pós-estruturalista por ser,
de acordo com Walker (1993) Thomson (1994), Weber (1995) Bartelson (1995), Campbell
(1998) e Hansen (2006), aquilo que definiria o internacional enquanto campo específico de
estudo, a verdadeira fonte de heterogeneidade entre os domínios “doméstico” e “externo”.
Como sua condição de possibilidade, pois, as RI precisariam separar qualitativamente os
fenômenos que acontecem na dimensão internacional, daqueles que acontecem na dimensão
doméstica. Dever-se-ia seccionar a realidade política entre o espaço para dentro do estado, o
inside, e ao espaço para fora deste, o outside.
Essa divisão basilar, na medida em que provê a justificativa para o estabelecimento de
um campo do conhecimento, por definição, não poderia ser problematizada. De maneira
análoga, os conceitos de estado enquanto unidade monopolística do uso da força
(THOMSON, 1994) e possuidora de uma identidade essencial, anterior à prática e exterior ao
discurso (CAMPBELL, 1998; HANSEN, 2006) serviriam como premissas que possibilitariam
os estudos sobre o internacional. Ora, uma vez que se visa construir uma ciência do
comportamento entre Estados, um saber que se pretenda parcimonioso, objetivo e
universalizante, é imperativo que se assuma uma existência quase auto-evidente destes. Para a
crítica pós-estruturalista, todavia, esse tipo de assunção é prejudicial a uma compreensão da
realidade histórica. Ao universalizar, e atribuir uma espécie de essência ou natureza imutável
a fenômenos tanto social quanto historicamente construídos, mascara-se o caráter arbitrário de
suas construções, bem como sua reprodução dinâmica, não linear e por vezes contraditória ao
longo do tempo. Em outras palavras, é deixado de lado o fato de que as coisas nem sempre
foram como são hoje.
Mas, novamente, nada é assim tão fácil. Enquanto objetivamente visem desconstruir
aquilo que julgam “não-problematizado” pela literatura da disciplina – ou às vezes, a própria
idéia de disciplina - o movimento pós-estruturalista em sua prática histórico-genealógica
vislumbra uma dificuldade fundamental: como não incorrer nos anacronismos estruturalistas?
1 Optou-se por classificar Foucault, no presente trabalho, como um autor pós-estruturalista a despeito das
polêmicas sobre este assunto (Harland, 1987; Dosse, 1993; Best; Kellner, 1991; Best, 1995).
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Como é possível escrever a história sem deixar nada de fora dela? Com respeito à ciência
política, de acordo com Bartelson (1995), sempre que se deseja estudar a história de um
determinado conceito começa-se por conceituá-lo. Todavia, ao conceituar algo, o observador
congela seu entendimento no tempo, e agrega fenômenos com infinitas possibilidades de
significação - não concebidas no presente - sob um mesmo termo. Ao fazê-lo, ao construir
uma “história do conceito” automaticamente se retira toda historicidade conceitual que se
desejava buscar.
A resposta de Bartelson é complexa: “ao abordar a ciência política como um modo de
escrita ao invés de um modo de existência, nós podemos nos situar enquanto observadores
separados na história, e podemos impedir que nossa separação dependa de algo fora dela”
(BARTELSON, 1995, p.5, tradução nossa).2 Infelizmente, talvez não seja esse o caso. O Pós-
Estruturalismo, mesmo como abordagem crítica que se entende enquanto historicamente
situada, faz sua “separação” dependente de algo fora da história.
A genealogia como um método de análise faz parte da tradição moderna
historiográfica (FASOLT, 2004). Em sua essência - se é possível falar em uma essência
genealógica - esse tipo de fazer histórico visa demonstrar o caráter artificial do processo de
conceitualização, evidenciando modificações semânticas ao longo do tempo. Isso é dizer que,
resumidamente, o que entendemos hoje por x não necessariamente era entendido como x em
outros períodos históricos. Através de uma concepção diacrônica da langue, excluída por
Saussure do movimento estruturalista, (HARLAND, 1987; DOSSE, 1993) a genealogia busca
mostrar as descontinuidades históricas de determinados conceitos/fenômenos. A genealogia se
coloca em oposição a uma história de caráter científico, documental, e positivista, contra
qualquer visão anacrônica do passado.
E a história da teoria das RI, pelo caráter cientificista de seu main stream, é repleta de
anacronismos. A principal unidade de análise do campo, por exemplo, o estado-nacional em
sua forma monopolista do uso da força, é algo relativamente recente (THOMSON, 1994) e a
presumida anarquia internacional, princípio regulador dos constrangimentos sistêmicos, viu-
se por vezes superada por relações hierárquicas entre as unidades políticas (KAUFMAN;
LITTLE et al., 2007). Ademais, a própria lógica da balança de poder e da realpolitik -
pensadas enquanto princípios a-históricos de funcionamento do sistema internacional - são
também idéias que foram forçadas a extrapolar as fronteiras da era na qual foram concebidas.
2 By approaching political science as modes of writing rather as modes of being, we can situate ourselves as
detached spectators within history, and can avoid making our detachment dependent on something outside it.
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A arqueologia/genealogia pressupõe o estudo dos fenômenos político-sociais enquanto
fenômenos históricos, isto é, concebidos à luz de um tempo que lhe sejam específicos. Tal
especificidade do contexto com relação aos fenômenos que nele ocorrem, não obstante,
necessita de uma clara diferenciação entre passado, presente e futuro.
Uma diferenciação que em si mesma, não é natural, mas também fruto de seu tempo.
Nem sempre os homens lidaram com a temporalidade da forma como a historiografia o faz.
Das civilizações pagãs às revoluções científicas, a passagem do tempo transformou o sentido
atribuído ao próprio tempo. A História, como tudo, é histórica em sua essência, embora tal
característica lhe seja constantemente negada. No fim, isso levanta um paradoxo lógico do
Pós-Estruturalismo: o movimento incorre no mesmo “problema” que supõe “resolver”.
Isso abre espaço para críticas mais fortes. Não seria implausível questionar os autores
pós-estruturalistas sobre a validade de seu projeto de desconstrução. Obviamente, não se trata
de questionar a idoneidade dos mesmos, mas apenas de atentar para as condições de
existência de suas “teorias”, que revelam na natureza incoerente do pensamento, as limitações
próprias ao exercício metafísico.
Nesse sentido poder-se-ia questionar essa espécie de “desconstrução conveniente”, ou
ao menos arbitrária feita por Walker, Bartelson, Campbell et al. Ora, por que se deve manter a
história intocada quando o objetivo explicitado é a desnaturalização daquilo que nos parece
mais natural? O que há na história que a faz diferente de todo o resto? Não parece fazer
sentido algum manter a fonte de toda a historicidade do mundo, ela mesma, a-histórica. Mas,
talvez faça. Afinal, não se poderia pensar numa genealogia que se voltasse contra si mesma,
concebendo o esforço contextualista como um simples meio entre outros possíveis.
O presente trabalho, pois, pretende explorar esse aparente paradoxo pós-estruturalista
de modo a desconstruir a oposição metafísica que norteia seu estudo histórico genealógico. A
saber, a divisão da dimensão temporal em passado, presente e futuro reporta à história do
pensamento metafísico ocidental, que fora construído - a partir do princípio de não-
contradição- através do privilégio da presença (ser) sobre a ausência (não-ser).
A desconstrução, termo que vem sendo freqüentemente usado, mas raramente
explicado de maneira clara, diz respeito ao método, ou não-método, criado pelo filósofo
francês Jacques Derrida (HARLAND, 1987; DERRIDA, 1994; CULLER, 1997; STOCKER,
2006; DERRIDA, 2008; 2009). O propósito de sua utilização é semelhante ao da história
foucaultiana: evidenciar, através das vicissitudes e contingências de um tempo fluido,
inapreensível no instante, a ilusão logocêntrica da essência/estrutura/ontologia.
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Existem algumas maneiras diferentes de se desconstruir uma oposição metafísica.
Duas delas, que nos são particularmente interessantes, serão utilizadas aqui: através de um
esforço historiográfico genealógico, e da inversão axiológico-epistemológica dos termos da
oposição. De acordo com Culler:
Desconstruir a filosofia é trabalhar através da genealogia estruturada de seus
conceitos, da maneira mais escrupulosa e imanente, mas ao mesmo tempo
determinar, de uma certa perspectiva externa que não pode descrever ou nomear, o
que essa história pode ter ocultado ou excluído, constituíndo-se como história
através dessa repressão. (CULLER, 1997, p.100).
Ou, a desconstrução pode ser utilizada:
Como uma estratégia dentro da filosofia e uma estratégia para lidar com a filosofia
[...] Em uma tradicional oposição filosófica, não temos uma pacífica coexistência de
termos contrapostos, mas uma violenta hierarquia. Um dos termos domina o outro
(axiologicamente, logicamente, etc.), ocupa a posição de comando. Desconstruir a
oposição é, acima de tudo, reverter a hierarquia em determinado momento.
(CULLER, 1997, p.99).
A desconstrução se faz necessária na medida em que as oposições metafísicas
fornecem estruturas de hierarquização valorativa. Tomemos como exemplo a oposição entre
presente/passado3, fundamental às bases do pensamento histórico (FASOLT, 2004; HOOPER,
2007) bem como do movimento pós-estruturalista. Enquanto uma oposição pertencente à
história da metafísica, ela valoriza o primeiro termo como superior, no caso o presente, em
detrimento do segundo termo, o passado. Esta simples e aparentemente inofensiva hierarquia
movimenta o saber histórico historicista no sentido de buscar um presente (passado) que não
se tem acesso dada sua ausência. Em outras palavras a dicotomia gera a prática do imperativo
contextualista, uma prática disciplinar que serve à definição daquilo que é ou não é uma “boa
história”.
A metafísica é pura política. Ela diz responsável, em seu exercício de definição dos
conceitos, pelo estabelecimento de relações de alteridade e superioridade axiológica que
norteiam práticas discursivas de dominação. Culler (1997) e Hansen (2006) identificam
alguns exemplos das perversas conseqüências institucionais da oposição homem/mulher. Da
mesma forma Derrida (2008) identifica a valorização da escrita fonética sobre a hieroglífica,
catalisadora de um etnocentrismo ancorado na oposição fala/escritura e Hooper (2007) analisa
a separação entre História e Literatura, fruto da oposição fato/ficção.
3 As razões da exclusão do tempo futuro da oposição passado/presente serão elucidadas mais adiante.
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Portanto, a partir do momento em que os autores pós-estruturalistas se utilizam de uma
oposição metafísica para desacreditar o conhecimento construído por abordagens estruturais,
eles cometem uma ação política, um gesto que evidencia mecanismos de “dominação”. Um
gesto de negação das possibilidades apresentadas pelo “outro”, um “outro” totalitário, é
verdade, mas ainda assim um “outro”. Negando a verdade a um saber, ao mesmo tempo em
que festeja a diferença (1998). Identificando a opressão de outrem, no mesmo instante em que
lhe oprime.
A arbitrariedade das oposições metafísicas, e a conseqüente opressão injustificável que
delas se segue, é fruto da incomensurabilidade entre suas possibilidades. Não é possível aferir,
por exemplo, se a escritura fonética é melhor do que a hieroglífica, ou se a verdade é melhor
do que a ficção. Isso simplesmente porque não existam critérios comuns – uma espécie de
linguagem neutra e objetiva – através da qual diferentes conjuntos lexicais seriam traduzidos
(KUHN, 2007). A única forma de definição é através da violência, da imposição “unilateral”.
Ouvimos sem qualquer justificativa que o primeiro termo da oposição é superior ao segundo,
e mesmo quando se dão ao trabalho de justificar, fazem-no segundo critérios que são
estranhos a este. Se a verdade é melhor e nos faz melhores, é porque nos diz a verdade.
Quando muito, as justificativas adotam a estratégia de sobreposição das oposições. A verdade
é boa porque nos dá os fatos. Os fatos são melhores porque nos levam à verdade. Que isso
seja tautológico é o mínimo que se possa dizer.
Poder-se-ia, e é comum observá-lo em autores Neo-Marxistas como Cox (1987)4,
justificar essa “violência metafísica”, essa opressão, com base no projeto político adotado
pelo opressor. Assim, aqueles que possuíssem um projeto político cujos resultados
melhorassem de alguma forma o status quo, ou a condição social daqueles por ele atingidos
teriam seus gestos de violência justificados. Com relação aos pós-estruturalistas das RI, que,
de acordo com alguns (NEUMANN; WÆVER, 1997; NOGUEIRA; MESSARI, 2005)
sofreram uma espécie de preconceito, dada sua filiação teórica por parte do main stream – do
Neo-Realismo opressor – a violência do imperativo contextualista sobre as análises
sincrônicas seria justificável. A rigor, desconstruir o princípio da soberania e as bases de
legitimação da disciplina de RI, sem desconstruir a idéia da passagem do tempo enquanto
variável significativa seria justificável se desse fim à opressão, ou a reduzisse a níveis
menores do que os apresentados pelo projeto científico realista.
4 Agradeço ao professor Dr. Leonardo Ramos por me advertir desse fato.
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Parece-nos que essa postura não resolve a questão, mas a realoca. Ora, o princípio de
legitimação da violência passa da “verdade”, um princípio epistemológico, para o “projeto
político” um princípio axiológico. Certo, mas a incomensurabilidade em si não é contornada.
Ainda que julgássemos entre projetos políticos não haveria critérios objetivos para que
pudéssemos definir o melhor. Mesmo se pensássemos em termos quantitativos, associando o
sentido de “melhor” a um menor grau de opressão – entendida enquanto discordância – ou a
um menor número de pessoas oprimidas, por exemplo, ainda nos depararíamos com o
incomensurável. Ainda estaríamos frente à questão impossível de ser respondida, à violência
irredutível do pensamento: por que um e não outro?
O que faz da presença do contexto preferível à ausência? E o que faz daqueles que a
empregam mais certos que outros? (In)justiça seja feita, ao longo das obras aqui analisadas,
em momento algum os respectivos autores afirmam sua superioridade em relação aos
estruturalistas. Contudo, por suas retóricas, pela estrutura de seus argumentos e, no limite,
pela existência das próprias obras, não seria implausível interpretá-los dessa maneira. O que
eles querem realmente dizer? Não podemos e – espera-se ao final do texto que fique claro o
porquê- não precisamos saber, não nos faz diferença alguma. O hedonismo já serve ao Pós-
Estruturalismo como uma justificativa válida.
Assim, partimos para a desconstrução do contexto enquanto variável metodológica
indispensável na compreensão dos fenômenos político-internacionais. Se não há lógica capaz
de justificar a escolha entre incomensuráveis que não incorra em imposição e violência, então
não há razão para se sustentar o imperativo contextualista da historiografia, frente à análise
sincrônica estrutural.
No primeiro capítulo do presente trabalho - Da Estrutura à Diferença - é exposta a
origem histórica do Pós-Estruturalismo das RI. Descrevem-se as teorias que deram início ao
movimento estruturalista da década de 1950, bem como aquelas que fizeram surgir o Pós-
Estruturalismo na França de 1968. São apresentadas as diferenças espacialmente concebidas
na lingüística geral de Saussure - uma espécie de introdução do estudo diacrônico das ciências
sociais - e suas conseqüências para a antropologia estrutural de Lévi-Strauss, a psicologia de
Lacan, a semiótica de Barthes, o novo Marxismo de Althusser e até o Neo-Realismo de
Waltz. Quanto ao Pós-Estruturalismo, são apresentadas as contribuições históricas de
Foucault, Lyotard, Baudrillard, Deleuze e Guatarri. Ao longo de todo o processo é
evidenciada a forma como tanto estruturalistas quanto pós-estruturalistas se opõe ao
pensamento individualista anglo saxão, e constroem o que Harland (1987) chama de
19
“Superestruturalismo”. No fim, vislumbram-se, ainda, as influências da “filosofia da
diferença” para a Teoria das Relações Internacionais, através do trabalho de Walker,
Campbell, Bartelson, Thomsom, Weber e Hansen, pensado em oposição ao Estruturalismo de
Waltz.
No segundo capítulo – O Imperativo Contextualista - é abordada a história do
estabelecimento da História enquanto disciplina científica, e da construção de seu “outro”,
outrora indissociável, a Literatura. Por meio da oposição fato/ficção. Introduz-se as diferentes
formas do fazer histórico contemporâneo: o modelo documental positivista, a hermenêutica e
a genealogia. Faz-se, também, uma análise das obras Inside/Outside, de Walker (1993);
Writing Security, de Campbell (1998) e A Genealogy of Sovereignty, de Bartelson (1995).
Tenta-se, sobretudo, revelar a utilização do imperativo contextualista por parte desses autores,
identificando afirmações que derivem o sentido pleno, o significado dos fenômenos
estudados, do contexto no qual ocorrera. Assim, visa-se convencer o leitor do atrelamento das
obras à tradição da historiografia, mais especificamente do historicismo crítico.
No terceiro e último capítulo – A Desconstrução do Tempo – são colocadas em prática
as duas formas de desconstrução descritas por Culler (1997): a genealogia e a inversão dos
termos da oposição. Em um primeiro momento, discorre-se sobre as mudanças semânticas
ocorridas ao longo do tempo acerca da compreensão do que seja o tempo. Evoca-se o conceito
de Koselleck (2006) de “tempo histórico” a fim de demonstrar como o tratamento dado à
história pelo homem mudou, e como a libertação do lastro entre “expectativas” e
“experiências” é algo relativamente recente. Desse modo, pretende-se argumentar a favor da
historicidade do próprio método contextualista, voltando o exercício genealógico contra si
mesmo, entendendo-o enquanto temporalmente circunscrito. Na segunda parte é descrita a
desconstrução derridiana do “solilóquio” de Husserl. Discorre-se sobre a história da
supervalorização da fala no pensamento ocidental, bem como do modo pelo qual a categoria
tempo desafia todo o esforço de conceitualização metafísico e de superação da multiplicidade
das diferenças na unicidade do mesmo. Pela lógica da différance, argumenta-se que, contrário
à conclusão de Zenão, é a presença, e não o movimento, a “verdadeira” ilusão.
Ao final, conclui-se que o “imperativo” contextualista pode, dado o processo de
desconstrução da metafísica da presença, não ser nada necessário, ou ao menos, não tão
imperativo assim. A desnaturalização do conceito de tempo enquanto uma seqüência de
momentos presentes, de instantes, mina logicamente o argumento diacrônico Pós-
Estruturalista contra a análise transcendental das abordagens sistêmicas. Uma vez que parece
20
não fazer sentido a idéia de “meia presença”, estar pouco ou demasiado longe do contexto é,
no limite, indiferente ao analista. O contexto é inapreensível. A presença, o presente é uma
ilusão macroscópica, fruto da abstração metafísica que mascara a constante fluidez do que
chamamos de tempo.
21
2 DA ESTRUTURA À DIFERENÇA
Entre os anos de 1950 e 1960 um evento singular modificou o cenário das ciências
humanas no mundo, e em especial na França. O chamado paradigma estruturalista emergia
então como o oriente de pesquisa para economistas, historiadores, sociólogos mas, sobretudo,
antropólogos, psicanalistas e semiologistas, as “ciências piloto” do movimento. O êxodo
sistemático de filósofos para a linha de frente da vanguarda estruturalista evidenciou uma de
suas principais características, um tipo de “fuga à metafísica” próxima daquela atribuída às
abordagens behavioristas das RI, ocorrida praticamente no mesmo período (NEUMANN;
WÆVER, 1997). Para tornar o campo das humanidades mais científico, provê-lo de
ferramentas próprias de sistematização e mensuração e, por fim, atribuir-lhe um status
equivalente ao das ciências da natureza, se fazia necessário abandonar o existencialismo
sartreano, a História evolucionista, o cogito cartesiano e, como conseqüência, o sujeito em si.
A noção anglo-saxã de self auto-determinado, possuidor de desejos que lhe são inatos,
naturais, que preexiste à sociedade e quem, no limite, a constrói contratualmente não
sobrevive sob a lógica estrutural.
Quanto ao conceito de “natureza”, seu fim é similar. O paradigma estruturalista não o
concebe, novamente como a tradição anglo-saxã o faz, enquanto um fator determinante,
condicionante sobre as formas de expressão culturais. A relação de causalidade exercida pela
dimensão biológica que suplantaria quaisquer comportamentos, crenças ou valores
supostamente superficiais é terminantemente negada pelo movimento dos anos 1950. O
homem, ou melhor, a sociedade antes concebida tão-só como fruto orgânico de necessidades
instintivas individuais passa a ser vista, ao contrário, como negação das mesmas. Para o
Estruturalismo a cultura não é formada pela natureza ou pelo instinto. Ela os conforma,
moldando-os em prol de sua auto reprodução. Lévi-Strauss elucida esse processo através dos
tabus, dos mitos e da culinária; Durkheim através do totemismo; Lacan pelo desejo do
desejado; Barthes pela mitologia cotidiana e Althusser pela ideologia. É nesse sentido também
que o Estruturalismo se edifica como revolucionário, pois inverte a relação causal
estabelecida pela tradição individualista. Em suas mais diversas variações, a abordagem
estrutural faz prevalecer sobre a natureza e o indivíduo respectivamente as categorias de
cultura e sociedade (HARLAND, 1987). O homo socius é concebido não como um produto de
seu tempo, nem de si mesmo (Self made man), mas do lugar que ocupa na cadeia universal de
22
interações sincrônicas. Este é, ou ao menos parece ser, na efervescente década de 60, o ponto
de convergência entre as ciências humanas, provido pelo então promissor paradigma.
Paradigma porque, de certo modo, o Estruturalismo representou na França, e depois no
restante da Europa e América, a verdadeira possibilidade de unificação do campo das
humanidades. Os trabalhos de Saussure, Lévi-Strauss, Althusser, Lacan e Barthes, e talvez
disso derive o estrondoso sucesso do movimento, poderiam sem maiores problemas serem
classificados como “realizações científicas universalmente conhecidas que, durante algum
tempo, fornecem problemas e soluções modelares para uma comunidade de praticantes de
uma ciência” (KUHN, 2007, p.13), a própria definição kuhniana do termo paradigma. Nesse
caso específico, de praticantes de uma não-ciência, que almejavam vigorosamente o
reconhecimento da academia. Esses proto-cientistas enxergaram sobretudo em Lévi-Strauss o
caminho para fora do segundo plano ao qual eram relegados, e do ocultismo com o qual eram
muitas vezes identificados (DOSSE, 1993). Em outras palavras os humanistas desejavam, de
modo ironicamente lacaniano, o respeito que as ciências duras tinham. No que se constituiria
como sua ciência normal, a abordagem estrutural instigava seus adeptos a buscarem as
relações subjacentes às coisas, invisíveis à experiência empírica, mas que teriam por função
ordená-las, condicioná-las ou determiná-las, dotando-as de sentido.
Estruturalista, porque dizia respeito ao modo como unidades5 que compõe um todo,
que lhes é maior, se organizam. No exemplo da química, a estrutura molecular representa a
maneira pela qual os átomos de determinado tipo estão dispostos uns em relação aos outros. O
que estabelece as propriedades desse emaranhado de partículas que é a matéria não são os
átomos individualmente, mas essa estrutura, essa inter-relação. A analogia estruturalista passa
por essa lógica. Tal como o carbono se torna irrelevante na definição das diferentes
propriedades do diamante e do grafite, o conteúdo do significado se torna irrelevante na
transmissão de sentido. Ambos são exauridos, restando às análises do químico e do
semiólogo, apenas a forma, o molde que, desde o princípio foram exteriores ao carbono e ao
significado. O exemplo é mais frutífero do que possa parecer. Lévi-Strauss, quando indagado
sobre o papel da liberdade individual e do dinamismo coletivo em sua teoria respondera: “O
problema da liberdade não tem mais sentido, no nível da observação em que me situo, do que
tem para aquele que estuda o homem do nível da química orgânica” (DOSSE, 1993, p.209).
Para compreender essa “morte do sujeito da liberdade”, é indispensável adentrar nas
principais correntes teóricas do movimento. Igualmente indispensável é a menção primeira
5 Sob a concepção mais abrangente de Estruturalismo formulada por Piaget (HARLAND, 1987).
23
àquele a quem é atribuído o título de seu pai fundador, Ferdinand de Saussure. A lingüística
de Saussure se contrapõe à tradição individualista das correntes do atomismo e positivismo
lógicos. Conforme já explicitado, tais teorias concentravam seus estudos (enquanto
individualistas) na relação que se tomava por existente entre as palavras (subjetivas) e as
coisas (objetivas) dispersas pela realidade mundana. Em seu entendimento, quando o “homem
primitivo” viu as primeiras faíscas de fogo, por exemplo, o resultado de um material em
combustão, ele criou um som físico e (ou) uma forma visual que o representasse. Essa
conexão entre o signo audiovisual e o objeto exterior seria fundamental para a compreensão
da língua. Sem ela, toda sua razão de ser perderia sentido (SASSURE apud HARLAND,
1987).
A questão é posta de maneira semelhante por Platão em Crátilos (DOSSE, 1993). O
filósofo grego descreve duas concepções contrárias acerca da relação entre cultura e natureza,
que como visto é o ponto em questão da revolução estruturalista. Para Hermógenes, todos os
nomes que por ventura são conectados às coisas físicas são produtos da simples
arbitrariedade; poderiam simplesmente ter sido diferentes. Crátilos, ao contrário, toma para si
que os nomes atribuídos às coisas pelos seres humanos são em verdade símbolos do mundo
natural. Para Crátilos as palavras se situam para as coisas numa relação de naturalidade, o que
mais tarde será interpretado pela episteme clássica (FOUCAULT, 1987) na forma de signos,
de propriedades do mundo a serem descobertas pelos humanos. Para Saussure, Hermógenes
está certo, a linguagem humana é, em si mesmo, um ato de arbitrariedade6.
A partir dai Saussure constrói a lógica de seu Cours de Linguistique Générale. Sua
escolha pela teoria da arbitrariedade da língua o compele a definir uma abordagem lingüística
na qual a figura do referente (a coisa objetiva a qual os signos se remetem) se encontra
excluída. Para Saussure, a langue é um fenômeno que se fecha em si mesmo, e para a
obtenção de resultados cientificamente satisfatórios, seu estudo deve respeitar essa
característica, deve examiná-la em separado. O sentido dessa afirmação se torna claro na
medida em que se compreende a estrutura tradicional do estudo dos signos lingüísticos. Para o
individualismo atomista, um signo é composto de um significado, um significante e um
referente (HARLAND, 1987). O significado é um conceito, uma definição de um referente,
6 Por que as coisas possuem o nome que tem? Porque são os que lhes foram dados. As palavras cadeira, cavalo,
cachorro e cinzas não possuem relação física alguma com os objetos que representam. Elas são simples
combinações fonéticas escolhidas em detrimento de um sem numero de possibilidades. As palavras são
construtos humanos, não signos naturais a serem encontrados. Afinal, se a relação entre os signos e aquilo que
representam fosse natural e objetiva como advoga Crátilos, não haveriam problemas de tradução lexical. Ora,
todos os homens vivem em um mesmo mundo.
24
um objetivo mundano qualquer. No processo de expressar esse significado os homens se
valeriam dos significantes, de formas audiovisuais, como uma letra, um desenho ou um som,
que se refeririam ao significado que, por sua vez, se referiria ao objeto físico. A palavra ou o
som “grama” (significante), por exemplo, teria por significado uma espécie de vegetal
comumente encontrada nos campos, que em última instância, se conectaria ao vegetal em si,
seu referente e sua razão de ser.
Para a lingüística Saussuriana, essa não é a maneira própria de acessar o sentido da
língua. O referente, a realidade exterior é de pouca utilidade para a substância da linguagem,
tampouco sua razão de ser. O sentido só pode ser acessado através da relação entre
significado e significante, e somente por meio dela. Mas é o significante realmente objetivo
como o pensamento atomista entende? Uma expressão da mente ou do bom senso cartesiano?
Se assim fosse, a transferência de sentido e a comunicação significativas em si mesmas seriam
impossíveis, por duas razões principais: cada ser humano estabeleceria um significante
diferente a um significado e, ainda que se compartilhasse de uma mesma linguagem, as
diferenças nos desempenhos individuais dos sons significantes impossibilitariam a
transmissão e apreensão de sentido. Cada ser humano pronuncia as palavras que tem
conhecimento de uma maneira singular, que lhe é única. Entretanto, a despeito do falar baixo,
do gritar, do murmurar, das inúmeras diferenças de sotaque em um determinado grupo
lingüístico e das mais diversas patologias que comprometem parcialmente a fala, ainda é
empiricamente possível dizer e ser compreendido. Por quê? Porque a linguagem independe de
sua expressão física, porque langue (língua) é bem diferente de parole (fala), e a correlação
significativa que envolve significados e significantes naquela independe desta. Diferenças na
fala são apenas turbulências superficiais que, contanto que não prejudiquem a estrutura de
posicionamento dos significantes na langue, não comprometem a transmissão de sentido.
Para aquilo que Saussure denominou como teoria do valor (HARLAND, 1987;
DOSSE, 1993) o sentido dos signos lingüísticos não é atribuído por seu significado, este esta
ausente, tal como o átomo de carbono, se encontra exaurido na determinação das propriedades
do significante (diamante). Para compreender o sentido das palavras, não se pode tomá-las
individualmente, não querem dizer nada. Há de se vislumbrar a estrutura da língua, a cadeia
de significação que une significantes e que os dota de utilidade na medida em que estão
dispostos uns para com os outros. Vide o exemplo da palavra aborto. É possível compreendê-
la em toda sua magnitude simplesmente tendo aprendido seu significado? De nada adianta
saber que conceitualmente diz respeito à expulsão forçada de um feto da cavidade intra-
25
uterina. Que significância isso poderia ter? Essa descrição biológica da palavra? Nenhuma. O
sentido de aborto aparece quando relacionado a outros significantes como cristianismo, vida,
morte e família. É somente por essa inter-relação profunda, essa cadeia de significação que é
atribuído sentido ao significado. É isso que se denominaria mais tarde por estrutura da língua.
Essa prática de ontologização da estrutura (DOSSE, 1993), de atribuir alguma
materialidade, algum nível de existência a algo imperceptível é chave indispensável do
pensamento estruturalista, razão pela qual Saussure passa a se tornar referência para todos os
adeptos do movimento. E a ponta de lança dessa difusão é Claude Lévi-Strauss, que adapta a
ferramenta relacional da lingüística sistêmica ao estudo dos povos “não civilizados”.
A Antropologia Estrutural de Lévi-Strauss se baseia principalmente nas obras de
Emile Durkheim acerca da constituição do pensamento religiosos nas comunidades humanas e
de Marcel Mauss, sobre o caráter econômico, proto-mercadológico do sistema de
compensação de presentes nas primeiras aglomerações humanas. Da juventude marxista, o
antropólogo francês aprendeu que a ciência não deveria ser construída em torno de questões
superficiais, super-estruturais, que não fossem capazes de acessarem o âmago dos fenômenos
estudados (DOSSE, 1993). Outra importante contribuição seria feita ainda pelo lingüista russo
Jakobson, que levaria o trabalho de Lévi-Strauss na direção da lingüística estrutural de
Saussure.
A inspiração em Durkheim se dá através de seu estudo das razões do advento da
religião pelo homem primitivo. Ao contrário da lógica individualista, Durkheim não considera
a cosmogonia, os mitos e as definições religiosas como formas de compreensão errônea,
ingênuas e mal concebidas da realidade concreta que as rodeia. O esforço de concepção
místico dessa realidade, sob a lógica da tradição anglo-saxã, nada mais seria que meras
analogias mal concebidas, pré-científicas, que responderiam por explicações de fenômenos
observados pelo homem. Ao andar pela savana num dia tempestuoso, por exemplo, o
indivíduo ancestral avistaria um raio que incidisse sobre um arbusto qualquer, incendiando-o.
Em sua mente pouco desenvolvida, poderia significar o presente de uma entidade que lhe
fosse superior, para que pudesse se aquecer e se secar. Automaticamente, associaria à
entidade as características de majestosidade (pelo estrondo do raio) e benevolência, pela
preocupação para consigo.
De modo similar, outro homem primitivo poderia atribuir à mesma entidade a
característica de vingativa, por tentar quebrar uma pedra e perceber que sua mão começara a
sangrar. A vingança se faria presente na dor e no ferimento infringido pela tentativa de
26
destruir parte de sua criação. Para o individualismo, tais exemplos não passariam de
evidências da incapacidade do homem primitivo em conceber as relações causais dos
processos de combustão iniciado pela grande descarga elétrica sobre o arbusto e de reação
pela força inicial exercida sobre pedra. Incapacidades que o homem moderno, “civilizado”
fora capaz de superar.
Mas esse não é o modo como Durkheim enxergar a vida primitiva. Em primeiro lugar,
os exemplos acima se tratam ambos de casos de observações empíricas seguidas por
analogias, pela interpretação. Isto é simplesmente incompatível com a concepção
estruturalista durkheiminiana, de um todo que excede as propriedades individuais das partes.
Em primeiro lugar, não pode haver observação isenta de interpretação. Se os humanos
possuem a capacidade de interpretação e de abstração é porque lhes foram introjetadas por sua
própria comunidade lingüística. No limite, não conseguiríamos sequer pensar sem uma língua
primeira. Tendo isso em vista, não seria possível que um indivíduo sozinho, primordial
provesse significado a fenômenos naturais observados, pois:
[…] o homem não cria a língua, ele a fala mas ela lhe foi ensinada por seu grupo; ele
não inventa seus métodos de trabalho, ele os aplica, mas os utiliza presentes na era
na qual emergem; ele não inventa sua própria religião, mas professa uma pré-
existente, simplificadamente, ele deve ajustar seu modo de pensar, sentir e agir de
acordo com o socialmente aceito. (DURKHEIM apud WIGHT, 2006, p.66, tradução
nossa).7
Em outras palavras, nunca existiu esse homem primordial, esse indivíduo autônomo
senhor de suas vontades, pai de sua própria interpretação. E mesmo que de alguma maneira
ele tenha existido certamente foi a criatura mais vulnerável da natureza: um homem sozinho
(HARLAND, 1987). Os fenômenos religiosos devem ser entendidos em função da verdadeira
fonte de sua interpretação, da sociedade que o constitui em seu favor. É nesse sentido que
Durkheim discorre sobre a divisão do mundo em duas esferas distintas e contrárias, o sagrado
e o profano, presentes nos mais diversos fenômenos míticos. Com essa divisão a sociedade
(representação coletiva), seria capaz de constituir duas classes opositivas, compostas por todas
as coisas que existem, estando uma valorada em detrimento da outra. A partir dessa dicotomia
o reino do sagrado deveria ser blindado, protegido do reino do profano através de uma série
de tabus e restrições. Essa fronteira estabelecida, esse território conscrito em abstrato
7 […] (wo)man does not create the language (s)he speaks, but learns it from his/her group/society; (s)he does not
invent the methods of work (s)he applies, but uses those present in the era in which (s)he emerges; (s)he does not
invent his/her own religion, but professes one of those which already exist. Put simply, (s)he must adjust his/her
ways of thinking, feeling and acting to the ways accepted by society.
27
chamado de sagrado delimitaria duas classes distintas de seres humanos: aqueles que estão
dentro, que pertencem a ele, e os que estão fora, excluídos.
Essa imposição arbitrária de diferenças em seres biologicamente semelhantes e entre
espaços naturalmente homogêneos serviria a um propósito fundamental. Sua razão? Coesão
Social. Estabelecer um domínio e práticas que sejam compartilhadas por um grupo gera a
sensação de pertencimento, de possuir algo em comum. A particularidade do sistema de
totemismo seria justamente fornecer tais componentes de agregação para os vários clãs de
uma tribo qualquer. Tomando os exemplos do homem primitivo descritos acima, poder-se-ia
dividi-los em dois clãs, sob o signo de dois elementos que os representariam, que proveriam
analogias sobre seu modus vivendi, que lhes dariam um papel específico a ser exercido: Os
clãs do “fogo” e da “pedra”, por exemplo.
Aos integrantes do primeiro clã, caberia o cuidado ao fogo, à dádiva primorosa de sua
divindade mãe. Ao segundo, restaria proteger a criação, o solo, as rochas, as árvores, como
punição talvez a heresia primeira de seu membro ancestral: a tentativa de destruir o que seu
deus fizera. Esses homens deveriam se certificar que mais ninguém além deles, guardas de
seu deus impiedoso, quebrassem pedras, cortassem árvores, arassem o solo. As diferenças de
tabus e funções delimitariam o espaço sob o qual os integrantes dos dois grupos se
identificariam. A religião não era uma resposta ingênua a fenômenos naturais, era uma
resposta engenhosa às demandas sociais.
Mas há uma questão não respondida por Durkheim8. Em meio a tantos fatores de
diferenciação, o que seria capaz de, uma vez tendo os clãs se unificado, unificar também a
tribo como um todo? A partir dessa incógnita Lévi-Strauss trabalharia a questão da
comunicação, de um tabu universal em especial que seria o verdadeiro responsável pela
organização humana na forma de sociedade. Um tabu que até então não havia sido tratado de
maneira satisfatória, ora por explicações atomistas, ora por estudos por demais focados no
fenômeno em si, e não na cadeia de significação subjacente. O primeiro objeto de analise da
antropologia estrutural, de Lévi-Strauss, foi a prática da proibição dos casamentos
consangüíneos, o tabu do incesto.
As explicações mais comuns para a proibição do incesto nas sociedades humanas se
utilizavam de razões biológicas. Parecia claro como água que se tratava de uma defesa
instintiva do homo sapiens contra as horrendas conseqüências do casamento consangüíneo
8 Ou de acordo com Harland (1987) respondida insatisfatoriamente.
28
(DOSSE, 1993). Somava-se a isso, a crença9 na prática do casamento como tendo por única
finalidade a reprodução da espécie. A lógica fechava perfeitamente. Ao final tudo faria
sentido ao funcionalismo teleológico.
Isso, todavia, era exatamente o contrário daquilo que orientava o movimento
estruturalista. Essas explicações focam a observação no fenômeno em isolado, em seu
epicentro. Tenta-se apreender seu sentido em si mesmo, em sua essência. Contudo, sob a
lógica estruturalista, esse esforço é tão em vão quanto tentar acessar as propriedades de um
átomo de carbono, ou compreender uma palavra por sua definição conceitual. O sentido do
tabu do incesto não reside no fato, mas em seu posicionamento relativo na cadeia de
significação, particularmente às práticas do casamento e do totemismo. O sentido desses
termos só se mostra quando são contrapostos. É através da proibição dos casamentos
consangüíneos que a tribo, divida em inúmeros clãs com alto grau de coesão interna, em vista
da dicotomia sagrado/profano, mas com fracos vínculos entre si (não possuem razões para se
perceberem como iguais), torna-se una. É pela proibição do incesto que a sociedade emerge.
A lógica do totemismo, ainda que artificial e arbitrária, implica invariavelmente na
diferenciação entre os clãs de determinada tribo. Esse tipo de disparidade cria por si só um
nível de interdependência entre os clãs na exata contramão da maneira pela qual a
indiferenciação das unidades sistêmicas em Waltz (1979) leva à política do self-help.
Voltando ao caso fictício, por serem proibidos de cortarem árvores e moldarem pedras, os
homens do clã do Fogo tornam-se dependentes dos homens do clã da Pedra para a construção
de suas moradias e seu armamento (arcos, flechas e lanças). De modo semelhante, os homens
do clã da Pedra tornam-se dependentes dos homens do clã do fogo para se aquecerem e
cozinharem sua caça. Nesse sentido é imperativo que ambos criem laços de fraternidade e
confianças, ou pelo menos cultivem um bom relacionamento. A melhor forma de fazê-lo?
Trocando suas mulheres.
O clã do Fogo então oferece algumas de suas preciosas filhas aos clãs da Pedra e
talvez outras ao clã da Água e ao dos Animais. Ao fazerem isso, e aqui Lévi-Strauss recorre a
Mauss, o Fogo estabelece uma relação que, de certa forma, obriga os demais clãs à
reciprocidade. Dar um presente, no caso uma mulher, é um gesto merecedor de gratidão e,
portanto, demanda retribuição. Os demais integrantes da tribo que receberam as mulheres do
Fogo, então se vêem na obrigação moral de oferecer suas mulheres ao mesmo Fogo. Esse
costume modela uma rede de confiança e uma interconexão que percorrem toda a tribo. “O
9 Toma-se a liberdade para utilizar a palavra crença pois, a depender do conceito de ciência a ser empregado, é
ele quem, em ultima instância, define a filiação paradigmática.
29
casamento portanto não só conecta um homem e uma mulher mas também um homem que dá
uma mulher e um homem que a recebe” (HARLAND, 1987, p. 26, tradução nossa).10
Nada
disso seria possível se as mulheres da tribo não fossem obrigadas a se casarem fora de seus
respectivos clãs. Essa é a importância social do tabu do incesto. Impedindo com que os
homens se casem com suas próprias primas, irmãs e mães a proibição do casamento
consangüíneo automaticamente as deixa disponíveis para se transformarem em veículos de
solidariedade tribal, peças de uma estrutura mercadológico-comunicativa com a função de
aumentar a coesão social. Sem essa relação em mente, os significados do incesto e do não-
incesto simplesmente se esgotam.
É assim que Les Structures Élémentaires de la Parenté influenciaria toda uma geração
de humanistas a se filiarem à empreitada estruturalista e o brilhantismo de Lévi-Strauss o
levaria ao posto de intelectual mais influente da França (DOSSE, 1993). Um dos tantos
teóricos influenciados pelo trabalho de Lévi-Strauss foi o médico psiquiatra Jacques Lacan.
Com o sucesso do paradigma estruturalista, Lacan adere ao movimento na tentativa de fazer
da psicanálise mais do que uma sub-área da psiquiatria, subordinada a tratamentos
farmacológicos e a uma visão que propunha a causa última das patologias na dimensão
químico-biológica. Em outras palavras, Lacan almejava a criação de uma ciência super-
estrutural, que tal como a lingüística saussuriana, se fechasse em si mesmo, sem referências a
uma base biológica, a uma realidade material que lhe fosse anterior. Acima de tudo, almejava
uma contra-proposta à psicanálise behaviorista norte-americana de Sullivan, Erich Fromm e
Ana Freud, centrada no indivíduo e em suas inaptidões para se adequar à sociedade.
Essa vertente anglo-saxã tomava como ponto de partida a distinção freudiana entre os
diferentes níveis da consciência humana: id/ego/super ego. Na constituição dos indivíduos
enquanto sujeito de suas vontades essas três níveis exerceriam papeis de diferentes
intensidades e importâncias, que variavam do mais fundamental ao menos significativo. O
chamado id representaria o inconsciente biológico. Base de fundamentação do indivíduo, seria
o responsável pela construção das necessidades primárias do homem, de seus desejos, simples
instintos configurados em uma roupagem social. No extremo oposto estaria o super ego, a
verdadeira metáfora da sociedade, aquilo de artificial que havia sido criado pelos seres
humanos sobre a base primeira da realidade. O poder constitutivo do super ego não poderia
jamais ser igualado ao do id pelo psicanalista, era por demais inferior, superficial a ele. Para
essa teoria de matriz individualista, a sociedade deveria ser contemplada como apenas
10
Marriage thus binds together not just a man and a woman, but a man who gives a woman and another man
who receives her.
30
exercendo uma influência secundária na psique do sujeito, um complemento, subordinada a
mais significativa camada instintiva. Esta seria, sem sombra de dúvida, a responsável pelos
fenômenos observados no inconsciente. Ao fim e ao cabo, esse inconsciente funcionaria como
a mente de um animal (HARLAND, 1987).
Para Lacan esse tipo de construção analítica que via a sociedade como secundária na
formação subjetiva e subjugada a uma dimensão biológica, primordial, basilar, servia
unicamente para evidenciar que Sullivan, Ana Freud e Fromm, junto a outros behavioristas,
não haviam compreendido absolutamente nada do que Freud dissera. Em seus primeiros
trabalhos Freud concebia um inconsciente que talvez fugisse à ordem dos instintos. Em Die
Traumdeutung a experiência sensorial denominada sonho deveria ser entendida à luz da
experiência prática da leitura de um livro. Em ambos, as palavras precedem o observado e,
através delas, este se apresenta nas mais diversas configurações e magnitudes, não como o ato
de andar (uma necessidade básica comum a todos os homens), mas como um fenômeno
compartilhado com variações subjetivas.
Para se compreender com mais clareza o inconsciente da primeira fase do pensamento
freudiano, vale ressaltar um de seus objetos de maior admiração: o método hipnótico. A
prática da hipnose era capaz de acessar os níveis mais profundos do inconsciente de
determinado indivíduo enquanto este, mesmo que permanecesse num estado de aparente
consciência, não tomaria conhecimento do processo. Esse método possibilitava trazer à tona
lembranças já esquecidas pela expressão consciente do sujeito, apenas com estímulos verbais
por parte do hipnotizador. Era possível descobrir correlações inconscientes que
fundamentavam as patologias observadas. Tome-se por exemplo um neurótico x, que
apresentava distúrbios de fala ao simples contato de sua pele com determinada substância (ex.
algodão ou linho) associadas à cor preta. Obviamente formalidades seriam por demais
constrangedoras a um homem incapaz de pronunciar corretamente as palavras. Seria essa
uma doença que lhe fosse inata? Intrínseca? Dificilmente. A hipnose possibilitava descobrir
que tipo de relação havia sido imputada na mente do indivíduo entre o linho, o algodão, a cor
preta e a ansiedade, e de que modo isso havia acontecido. Ademais, existia a chance de retirar
essa correlação ou substituí-la por outra que, caso não resolvesse o problema, ao menos o
tornaria suportável. Tudo isso a partir do mero som das palavras pronunciadas pelo
hipnotizador.
Ora, esse inconsciente em nada se parece com a mente de um animal, muito pelo
contrário, era um inconsciente que respondia à linguagem (HARLAND, 1987). Mais ainda, de
31
acordo com Lacan, ele era “estruturado como uma linguagem” (LACAN apud DOSSE, 1993,
p.130). As relações apresentadas pela neurose funcionavam de maneira análoga à dualidade
significante/significado da lingüística saussuriana. De modo geral, o que seria a conexão entre
o preto, o linho e a ansiedade, coisas materiais que não apresentavam a menor semelhança
física, se não uma imposição arbitrária de sentido? A partir dessa lógica Lacan entrara
plenamente no movimento estruturalista, orientando sua atenção para a forma em detrimento
do conteúdo. Para demonstrar a dinâmica do inconsciente e sua semelhança para com a
estrutura da língua, Lacan se utilizou de duas figuras de linguagem, a metáfora e a metonímia,
que funcionariam pelo inovador sistema de deslizamento dos significantes. Vide, a princípio,
o exemplo da frase: “Victor é um touro”. Tem-se a princípio dois significantes, “Victor” (S1),
o nome próprio de um indivíduo da espécie humana (s1), e “touro” (S2), um quadrúpede
ruminante com chifres (s2). No momento exato da fala S2 desliza sobre seu significado s2
para cima de S1, transformando este em seu novo significado. A figura touro passa a remeter
não ao animal, mas a Victor (FIG. 1).
Figura 1- Deslizamento do significante na metáfora
Fonte: DOSSE, 1993, p. 130
Quanto à metonímia (FIG. 2), a relação encontrada era ligeiramente diferente, mas
igualmente erigida sob a lógica do deslizamento de significantes. Na frase “gosto de ler
Camões”, o significante Camões (S2) é destituído de seu significado enquanto pessoa (s2) e
deslizado até o locus ocupado pelo significante livro (S1) sem, no entanto, substituir o
significado de texto escrito por um ser humano (s1).
De acordo com Lacan, a “psicopatologia” da neurose possui a rigor a exata dinâmica
dessas figuras de linguagem. O que o inconsciente de um neurótico, e no geral de todos os
homens, faz é justamente deslizar o significante de um termo e atrelar seu significado a um
outro termo.
32
Figura 2- Deslizamento do significante na metonímia
Fonte: DOSSE, 1993, p. 131
Quanto ao papel do id, da expressão da realidade, da dimensão instintiva na
conformação do sujeito, Lacan recorre à teoria de Wallon do processo pelo qual a criança
humana constrói a noção de si. Wallon observara que por volta dos seis meses de vida os
recém nascidos tomavam consciência da própria unidade corporal. Quando postos frente a um
espelho percebiam que a figura que viam se tratava de uma imagem, a imagem de si mesmos.
Automaticamente, assim como no mito de Narciso (HARLAND, 1987) as crianças se
apaixonavam por esta imagem no espelho, una, completa, absolutamente dissociada do
mundo no qual existe, bem diferente de seu eu fragmentado.
O indivíduo, então, aprende o que é ser indivíduo por um estímulo externo. Ele não
nasce com essa concepção, ela lhe é apresentada por seu reflexo. Com aproximadamente oito
meses se iniciaria uma segunda etapa, a introjeção da linguagem. Para começar a falar, a
criança humana deve subjugar seu eu, a imagem do espelho pela qual se apaixonara, ao
“discurso do outro”, a uma expressão de uma existência que ameaça suplantá-la (HARLAND,
1987). Para Lacan, esse processo muda toda a estrutura de desejos individuais. A criança
passa a temer, dentre todas as coisas, a perda de sua individualidade que lhe é tão cara. Inicia-
se, pois, a busca inalcançável por auto-afirmação pelo ponto de vista do outro. As causas da
neurose se invertem. Não mais se encontram num distanciamento entre sujeito e sociedade,
mas na socialização perfeita.
Se Lacan retorna à Freud, outro influente ícone do pensamento estruturalista, Louis
Althusser retorna à Marx. O período no qual Althusser escreve, entretanto, não é muito
propício ao Marxismo. Em verdade, grande parte da intelectualidade francesa repudiava a
imagem do intelectual engajado (DOSSE, 1993) e aqueles que se aventuravam no Partido
Comunista Francês foram tomados por um sentimento de vergonha frente aos horrores do
stalinismo soviético. O Partido Comunista enfrentava uma espécie de crise vocacional, algo
que talvez o paradigma estruturalista e o seu comprometimento para com o estudo científico
da sociedade o auxiliasse a superar. Foi exatamente isso que Althusser fizera. Conectara a
teoria marxista, tida como ultrapassada, à vanguarda intelectual de seu tempo. Mais ainda,
33
num processo de dupla influência, levou ao Estruturalismo a importância da idéia da atuação
política.
Em um primeiro momento, Althusser se esforça para mostrar que o anti-humanismo,
comum ao paradigma estrutural, no qual o sujeito se encontra totalmente extirpado da análise,
também pode ser encontrado na teoria marxista tradicional. Marx, afinal de contas, criticara
os economistas clássicos como Smith e Ricardo por acreditarem na causa de todo fenômeno
econômico como derivada das necessidades isoladas do homo economicus (HARLAND,
1987). Tradicionalmente, a gênese do livre mercado se daria através do encontro das
demandas de dois indivíduos que existissem dissociados um do outro. O mercado seria então
simplesmente uma conseqüência natural da interação egoísta entre os homens. Se (x) um
fazendeiro qualquer precisasse de madeira, poderia oferecer a lã de suas ovelhas a um
lenhador (y), que porventura estivesse em busca disso. Do encontro das utilidades individuais,
bem como da capacidade humana em maximizá-las nasceria toda a lógica econômica
moderna.
Para ambos Marx e Althusser isso se tratava de um mais completo absurdo. De
maneira alguma se poderia supor que existisse algo como um indivíduo cuja existência
independesse de outro. O próprio ato de nascer, no limite, demandaria algum arranjo social
mínimo, por mas simples que fosse (HARLAND, 1987). Não obstante, a teoria de Mauss, a
mesma que influenciara Lévi-Strauss, contrapunha essa versão individualista da história do
empreendimento econômico. Para o antropólogo as trocas de “bens” entre os homens
primitivos eram muito menos função das necessidades individuais de cada um do que de um
sistema cultural do ato de presentear. Tanto nas antigas tribos indígenas quanto na Europa dos
bárbaros germânicos, o presente era tido como um objeto que representava um favor, que
demandava retribuição. Nessas sociedades não civilizadas, muitas vezes o poder de um
homem era determinado pela força e quantidade dos laços sociais que estabelecera. Num
ambiente onde não haveria um Leviatã a quem recorrer quando necessário, estabelecer uma
cadeia de retribuição de favores se fazia imperativo. Nessa lógica, os bens que um homem
“trocava” com outro, eram menos objeto de sua necessidade do que a troca em si. O sentido
dessa “construção mercadológica” residia não no indivíduo, mas na dinâmica social.
Mas do século XVIII em diante, esse tipo de motivação não se fazia mais presente.
Para todos os fins, o estado territorial moderno ocupou o vácuo que outrora existia na figura
do Leviatã, e tal como um juiz, como um poder soberano, começara a presidir os conflitos que
lhe diziam respeito, isso é, para dentro de seu território. Em outras palavras, a sociedade
34
internalizara o conflito, o separando do mundo da competição econômica. (HARLAND,
1987). A relevância do costume de presentear foi reduzida a quase nula para a manutenção
das possessões individuais. Mas essa não foi a única mudança. Em concomitância com essa
reorganização político-espacial, se deu a ascensão da classe burguesa. Com ela, a categoria
fundamental da teoria althusseriana: a ideologia.
Enquanto Marx subordinava qualquer expressão superestrutural (religião, cultura, arte,
ideologia) ao modo de produção histórico, às bases infra-estruturais de determinada
sociedade, Althusser os dissociava. Os fenômenos ideais não precisariam necessariamente
estar conectados à esfera produtiva e, sob a lógica inversa, poderiam inclusive exercer algum
nível de causalidade sobre ela. Essa dissociação das dimensões infra-estrutural e super-
estrutural possibilitava ao “Marxismo Estruturalista” explicar uma série de fenômenos que
antes não conseguira. Talvez o mais importante tenha sido o sucesso da revolução socialista
em um país atrasado, rural, sobre um regime czarista e sem qualquer proletariado significativo
como a União Soviética. A superestrutura parecia merecer mais importância do que Marx
devidamente lhe dera e essa importância veio por meio da ideologia.
Marx concebia a ideologia como sendo uma expressão falaciosa do pensamento
burguês. Resumidamente, ele a tratava como um mecanismo da classe dominante que visava
perpetuar a estrutura de dominação entre patrões e operários. Sua função de anestesiar o
proletariado, transfigurada na metáfora do ópio, serviria para assegurar que este continuasse
alienado do produto de seu trabalho, e que o status quo permanecesse imutável. Dever-se-ia
entender tal processo como uma verdadeira maquinação, um ato pensado, consciente, fruto do
calculo estratégico burguês.
Com o Marxismo althusseriano o papel da ideologia se tornaria tão mais complexo
quanto seus resultados mais nefastos. Toda a superestrutura da ordem capitalista não mais
poderia ser atribuída a um exercício maquiavélico da burguesia industrial, mas à suas crenças
mais profundas. Não se constituía um falso discurso, mas a expressão verdadeira do que se
acreditava. O processo de ascensão burguesa levou ao poder não só uma classe social, mas
também as premissas, pressupostos e a visão de mundo que ela carregava. O estado moderno
se constituíra sob as bases da ideologia individualista burguesa. Não aquilo que estava
presente e explícito, como era para Marx, mas o que estava ausente e implícito. Embebido no
arcabouço jurídico legal do estado estava o valor ao indivíduo, à sua propriedade, liberdade e
escolha. essa ideologia alimentada por Rousseau, Locke e Hobbes estava profundamente
enraizada na mente de patrões e, terrivelmente, proletários. Ela representava aquilo que era
35
entendido como realidade, e contra a realidade não se pode argumentar (ZEHFUSS, 2002).
De acordo com essa ideologia, as eleições seriam a verdadeira expressão da soma total das
vontades individuais, tal como a desigualdade entre os homens seria a evidencia das
diferentes capacidades. O individualismo faria da liberdade ovacionada e da igualdade uma
aberração. E os trabalhadores jamais conseguiriam inverter a ordem vigente enquanto
acreditassem nela.
Essa superestrutura burguesa, com o advento da cultura de massa, criaria ainda toda
uma mitologia ao redor da vida moderna. Dessa forma se apresentava o trabalho de Roland
Barthes, o novo empreendimento da semiologia, do estudo dos signos enquanto qualquer
coisa que fosse revestida de significado (DOSSE, 1993). Barthes tomaria por objeto os novos
“totens” da sociedade de consumo, ícones de uma estrutura de significação que suplantaria
suas substâncias individuais, concebendo-os como artifícios de coesão social. Como alvos de
seu ataque a essa nova forma de mitologia estariam o entendimento atomista dos desejos
(contrário à teoria lacaniana) e as banalidades do cotidiano, como a carne, o vinho, o
automóvel, o espaguete, a margarina e a lingerie. Todas essas coisas, comuns à realidade da
sociedade pós-industrial, estariam sob um invólucro significativo, sob uma “aura” que lhes
conferissem algo maior que seus significados individuais. A essa “aura” Harland (1987) dá o
nome de “glamour”.
A figura da propaganda é recorrente na análise semiológica11
, sempre analisada como
a tentativa de atribuir significados outros que os usualmente concebidos a determinados
significantes, ou de intensificar os já comumente aceitos. Tal como a langue saussuriana, ou
poder-se-ia dizer, o inconsciente lacaniano, a prática da publicidade consiste em associar dois
objetos distintos que, a princípio não possuiriam quaisquer semelhanças físicas entre si. Nesse
sentido, seu esforço consiste em atrelar determinados valores a objetos do cotidiano, de
deslizar seus significados até que se tornem desejados, por serem exatamente objetos do
desejo do outro. No geral, propagandas se utilizam, segundo Barthes, de imagens de grupos
de pessoas felizes, juntas, que associariam determinado produto à aceitação e ao convívio
social.
Vale ilustrar a lógica semiótica pelo exemplo hipotético de um comercial qualquer de
Maionese. Usualmente, é mostrada uma mesa repleta de pessoas, numa das práticas
cotidianas, possivelmente ausentes à vida do espectador, do jantar em família, do almoço ou
de um café da manha tranqüilo e alegre. Nesse cenário específico a maionese seria
11
Semiótica, Semiologia, psico-sociológia e psicologia social são todas possíveis denominações para a corrente
de Barthes. Serão, portanto, tratados aqui como termos equivalentes.
36
responsável por trazer a felicidade e coesão ao núcleo familiar, sendo isso reforçado no
transcorrer da propaganda pela utilização de frases tais como “A maionese x não pode faltar
em seu jantar”, ou “x faz a sua família mais feliz”. Ao final, o indivíduo senhor de suas
vontades (segundo a lógica anglo-saxã) acabaria por comprar o bem que lhe é oferecido,
muito menos por sua necessidade em si, por seu gosto, ou por uma vontade irresistível de
saborear a maionese. O gosto torna-se irrelevante frente aos novos desejos que lhe foram
imputados socialmente. O que se compra não é só a maionese, mas toda a “maionesidade”,
toda a aura artificialmente revestida de sentido. O que se compra é a família feliz e o jantar
tranqüilo, desejos de um ego por terem sido mostrados enquanto desejos de um outro.
Vide o exemplo fortuito das propagandas de sabão em pó. Tradicionalmente o sabão
era retratado tão somente como possuidor de um poder de limpeza extraordinário, exagerado
na medida em que seria capaz de pulverizar as partículas de sujeira, mas ainda assim,
condizente com sua funcionalidade. Com o passar dos anos, foi-lhe atrelado uma idéia de
profunda brancura, pureza, luxuosidade e assepsia que em nada diziam respeito à sua função
prática (HARLAND, 1987), mas que se caracterizavam como desejos últimos para uma
sociedade altamente “esterilizada”. De um modo mais primordial, a carne e o vinho eram
também “glamourizados” da mesma maneira. O ato de beber uma taça de vinho, pouco teria a
ver com a sede experimentada por quem a desejasse. Sob a perspectiva dessa psicologia
social, o ato deveria ser entendido como um ritual em si mesmo, um fim último da ação.
Bebê-lo representaria, mais do que degustá-lo, vivê-lo no sentido pleno da palavra. Os rituais
que obrigatoriamente acompanhavam a ingestão de vinho remetiam todos a uma vida luxuosa,
às grandes comemorações, à elegância e ao poder, associados à imagem do líquido vermelho
vivo. De modo similar, o Uísque seria menos uma bebida em si, e mais um “passaporte” a
determinado estrato da sociedade, um “recibo” de seu pertencimento. Isso não era diferente
com a carne, o grande e suculento bife malpassado desejado por todos os homens. Comê-lo
seria mais do que suprir qualquer necessidade protéica à vida, trazer para esta plenitude e
vivacidade.
Na visão semiológica, nada disso tinha alguma fundamentação instintiva, ou biológica.
Nada disso remetia aos desejos subjetivos de um indivíduo “dono de si”. Novamente, como
observado em todas as abordagens estruturalistas, a cultura era tomada como dissociada da
natureza, a sociedade anterior ao indivíduo. Em certo sentido esse movimento de predileção
pela dinâmica super-estrutural em detrimento de uma base que lhe forneceria sustentáculo é a
marca de todo o movimento estruturalista, ou nas palavras de Harland (1987),
37
“Superestruturalismo”. Na busca pela cientificidade, pela unificação em torno de um objeto
comum as humanidades precisaram se sobrepor ao naturalismo simplista. O paradigma
superestruturalista operou uma verdadeira fissão com as correntes evolucionistas.
2.1 A Filosofia da Diferença
O movimento do Estruturalismo francês de Lévi-Strauss, Barthes, Lacan e Althusser,
como antes mencionado, poderia ser compreendido fundamentalmente como uma crítica ao
humanismo e ao historicismo evolucionista característicos ao período de ascensão do
pensamento iluminista. Lévi-Strauss e Durkheim demonstram a falaciosa idéia de evolução ao
tratar o conjunto de signos do homem primitivo e seus esforços de compreensão da realidade,
não como ingenuidade pré-científicas, mas como apenas diferentes das quais a sociedade
contemporânea pressupõe, daquelas que julga mais naturais. Lacan proclama a alteridade do
desejo, outrora concebido como representação instintiva, enquanto Althusser expõe a
ideologia individualista na qual a classe burguesa piamente acredita, retirando a vontade da
exploração do próprio corpo físico do explorador. O desafio imposto ao iluminismo pelos
teóricos estruturalistas, entretanto, não fora extremamente radical, ou completo. Em seu cerne,
ainda residia uma característica fundamentalmente moderna: a crença na ciência.
De modo geral, o Estruturalismo representou a possibilidade de construção de uma
ferramenta científica rigorosa para análise dos fenômenos socioculturais, a verdadeira
promoção das humanidades ao campo das “ciências maduras”, no qual hipóteses, teorias e
suposições demandam algum tipo de fundamentação, algum rigor ou nível de valor-verdade.
Talvez não haja nada mais moderno, e compatível com a “era das luzes”, pois, que esse tipo
de pensamento. Essencialmente, o iluminismo defende a ciência, a racionalidade e o
conhecimento como formas pelas quais o ser humano transforma a condição na qual se
encontra, com efeito, a melhora. O progresso seria, portanto, a conseqüência quasi natural da
iluminação, da utilização do método, e do rigor para guiar a razão até a verdadeira realidade.
Embora o paradigma estruturalista objetive a negação do iluminismo, ele o faz usando das
“mesmas armas” deste, ao assumir o discurso do método científico, do universalismo e da
sistematização. Ainda que rejeitem o sujeito, estruturalistas concebem uma natureza da mente
humana, uma semiologia e uma estrutura dos mitos, todos imutáveis, sobre a forma de
processos sincrônicos, a-históricos. Em suma, o Estruturalismo aceitava e reproduzia o
38
discurso totalizante da modernidade, algo que a sociedade pós “Maio de 68” não mais
comportava.
As mudanças que ocorreram na França na década de 1950 e 1960, que transformaram
um país praticamente agrário em uma forte economia industrial, bem como a revolta dos
estudantes que politizara o ensino universitário em 1968, taxando-o como forma de
dominação (BEST; KELLNER, 1991) faziam de Paris um ambiente propício a proliferação de
pensamentos mais extremos, mais radicais. Isto de fato não se restringia à política ou às
formas de contra-cultura, mas também à dimensão das ciências sociais, economia e filosofia.
Ao certo, era também uma época prolífica às contestações de toda sorte, inclusive teóricas,
das quais boa parte fora direcionada ao paradigma estrutural. Antes de adentrar na rationale
desse movimento crítico, do chamado Pós-Estruturalismo, contudo, é preciso definir
claramente à que o termo se refere.
Com freqüência, ao menos na literatura das RI, o Pós-Estruturalismo é entendido
como sinônimo de Pós-Modernidade, ou Pós-Positivismo e contraposto ao Estruturalismo e
(ou) à Modernidade, também assumidos, por vezes como iguais (MANSBACH;
FERGUNSON, 1986; HOFFMAN, 1987; GEORGE, 1989; LAPID, 1989; LINKLATER,
1992; BROWN, 1994; VASQUEZ, 1995; NEUMANN; WÆVER, 1997; WENDT, 1999). De
acordo com Best e Kellner (1991), isto decorreria de um mal entendimento dos quatro termos,
que de fato carecem de uma sistematização/taxonomia padronizada, mas que, não obstante,
deveriam ser entendidos em separado, como quatro fenômenos distintos. Por Modernidade, a
despeito dos demais aspectos socioculturais, seria entendida a época de ascensão do
iluminismo, do triunfo da razão por sobre todas as outras formas inferiores de conhecimento,
do progresso afirmado enquanto telos último da história, do ser humano livre, liberto de Deus
e separado da natureza. Estariam ainda associados a esse determinado período/epistemologia
pensadores como Descartes, Kant, Marx, Weber e Comte (BEST; KELLNER, 1991). Com
diferentes variações, todos apresentariam um mesmo padrão de crença na racionalidade, na
neutralidade do conhecimento e na possibilidade de formulações generalistas12
.
O Estruturalismo, como visto anteriormente, não pode ser igualado às demais teorias
da modernidade, quando em verdade desafia suas premissas centrais como a subjetividade, o
progresso e o evolucionismo, priorizando a sociedade e a cultura ao indivíduo e o instinto. O
Pós-Estruturalismo, “nascido” em meio às revoltas intelectuais, sociais e políticas da década
12
Weber (2004) talvez seja o menos moderno dos pensadores modernos. Ao passo que sua concepção de “tipo
ideal”, caso levada às últimas conseqüências, diminuiria o teor de universalidade de sua teoria, sua crença na
neutralidade axiológica ainda o distanciaria da pós-modernidade.
39
de 1970, embora tenha levantado severas críticas a seu antecessor, pode não ser entendido
como uma negação completa deste. Por mais que autores pós-estruturalistas rejeitem o
discurso científico totalizante, o método único do saber e suas suposições universais, ainda
presentes no projeto estrutural, em sua maioria compartilham da “morte do sujeito”, da
exaustão de seu significado, da negação à racionalidade como meio para o progresso e da
concepção histórica teleológica/evolucionista comum ao século XIX. A rigor, as teorias pós-
estruturalistas se constroem também em torno do conceito de estrutura, conseqüência lógica
da exaustão do sujeito.
A diferença reside na rigidez com a qual a estrutura é tratada em Saussure e Lévi-
Strauss, contestada pelos teóricos chamados pós-estruturalistas por sua análise semiológica
sincrônica. Como alternativa estes concebiam uma análise estrutural diacrônica que
compreende a flexibilidade, volatilidade e instabilidade da cadeia de significação estrutural.
Ao priorizar o significante sobre o significado o Pós-Estruturalismo elevava a interpretação ao
infinito (DERRIDA apud BEST; KELLNER, 1991) num movimento semelhante ao
empreendido pela psicologia lacaniana, do deslizamento do significante. A nova forma de
Estruturalismo assumia a langue não mais como estática, mas em todo o seu
desenvolvimento13
histórico.
Em certo sentido, portanto, o “movimento” pós-estruturalista reintroduz a história no
exercício de compreensão sociocultural. Essa perspectiva histórica, contudo, difere em larga
medida daquela rechaçada por Lévi-Strauss e Lacan, do entendimento evolucionista ou
teleológico da passagem das eras. Argumenta-se, contra a estática estruturalista, que as coisas
mudam, que seu significado, sua razão de ser e seu sentido dependem do momento histórico
no qual se encontra o observador. Retira-se o significante “história” de suas relações
anteriormente concebidas com os termos progresso, avanço e finalidade, transportando-o para
junto de pluralidade, diferença e incomensurabilidade. Essa “manobra” tem raízes na crítica
da filosofia ocidental nietzscheo-heideggeriana (DOSSE, 1993) grande fonte de inspiração
pós-estruturalista. Ambos Nietzsche e Heidegger enxergavam a idéia da racionalidade
emancipatória, libertária e provedora do progresso humano como uma falaciosa ingenuidade.
Enquanto Nietzsche via a unidade do povo alemão ser atingida à custa de uma Prússia
totalitária e militarizada, Heidegger lamentava o progressivo esquecimento do ser advindo dos
processos de racionalização. Ambos são considerados expoentes do pensamento anti-
iluminista (DOSSE, 1993).
13
A palavra desenvolvimento deve somente ser considerada em seu teor de mudança. Intenciona-se dizer que a
estrutura muda, nada mais.
40
Dessa maneira, contra as formas de saber totalizantes da modernidade, o Pós-
Estruturalismo recorre ao perspectivismo nietzschiano, segundo o qual a realidade deveria ser
compreendida em sua natureza multifacetada. Não existem, a princípio, fatos exteriores
(BEST; KELLNER, 1991), tão-só varias interpretações diferentes, vários ângulos de
percepção um “suposto” mesmo evento. Para se enriquecer, posições teóricas deveriam
agregar o máximo de percepções possíveis, de perspectivas que somadas, constituem o todo o
qual se denomina realidade. Seguindo essa lógica, a história progressiva é substituída pelo
conceito de genealogia, que visa, sob última instância, promover esse sem número de
perspectivas. O esforço genealógico não reside na narrativa histórico-seqüencial das grandes
idéias, mas da problematização dela. A genealogia foca no pensamento marginalizado, na
pluralidade e na diferença, os principais slogans do Pós-Estruturalismo e da Pós-
Modernidade14
.
E talvez ninguém tenha dado mais atenção à marginalidade do que Michel Foucault.
Estudioso de temas estranhos à ciência moderna, Foucault busca na sexualidade, da história
dos modos de pensamento, na criminologia e no nascimento da loucura os discursos que
foram silenciados pela forma discursiva totalizante e absoluta que a ciência toma no final do
século XIX. Sua busca é motivada, não porque esses discursos marginalizados seriam mais
verdadeiros ou objetivos do que o científico, mas porque este os classificam enquanto
inferiores a ele (HARLAND, 1987). A ciência empírica estabelece sua distinção e
legitimidade com base na sistematização, observação e comprovação de suas proposições
formuladas. Esse tipo de saber particular dos Séculos XIX, XX e XXI se pretende
hierarquicamente mais elevado em relação a seus pares (a religião, ocultismo, alquimia, por
exemplo) com base numa suposta superioridade de seu método em acessar a realidade
exterior. A ciência, seria pois, o único conhecimento que levaria a verdade até o homem, que
os libertariam da ignorância pré-científica.
A busca pela verdade sempre foi uma preocupação da filosofia ocidental. A
“ansiedade cartesiana” (CAMPBELL, 1998), a necessidade de ancorar as formulações
abstratas em algo maior do que a simples subjetividade, algo que se estendesse para além
daquele que a defende, implica na constante busca pela verdade. Entre duas propostas, qual se
14
A teoria pós-estruturalista é definida por Best e Kellner (1991) como sendo um componente de um conjunto
maior chamado de pós-modernidade, que não só vislumbra o campo da epistemologia e meta-teoria como
também da arte, da economia, da propaganda e do modus vivendi. A chamada pós-modernidade seria então um
fenômeno de muito maior abrangência do que o pós-estruturalismo francês, embora ainda compartilhasse dos
preceitos de pluralidade, marginalidade, critica à razão e diferença. No geral valeria a regra: todo pós-
estruturalista é um pós-moderno, mas nem todo pós-moderno é um pós-estruturalista.
41
poderia dizer ser a correta? A que realmente fosse coerente com o observado, com o que
existe lá fora? A resposta, segundo Foucault poderia variar. Para estabelecer o que está
correto, o que é de fato objetivo, o que é belo ou o que é normal, é necessário ter noção dos
critérios segundo os quais o julgamento será realizado. Ora, acontece que de modo
semelhante à filosofia kuhniana, esses critérios não existem fora da própria dimensão
discursiva, eles são, ao contrário, estabelecidos por ela. O julgamento neutro, a aferição do
valor-verdade se transforma em uma ilusão da modernidade quando se presume a inexistência
de critérios neutros. Tomando-se como exemplo o nascimento de um ser humano. Ao sair do
ventre da mãe, em seu primeiro dia, talvez mês de vida, a criança não sabe o que é ou o que
não é real. A concepção da realidade não é biológica e, portanto, natural, ela é construída.
Com o passar dos anos o aprendizado da linguagem faz com que o recém nascido compreenda
finalmente aquilo que o conceito de realidade quer dizer. O que é real, os componentes do que
se tem por realidade são definidos pelo saber dominante, bem como também o são, e mais
importante para a filosofia foucaultiana, os componentes deixados de lado, excluídos. O
discurso, ao delimitar o que faz parte do real, necessariamente atribui um caráter ficcional à
dimensão exterior aquilo que foi delimitado, ao mundo extra-real, o irreal.
A ontologia, pois, não é vista como uma propriedade intrínseca ao homem ou passível
de apreensão pela aesthesis. O ser, o que há, depende arbitrariamente da delimitação de um
saber específico, passando de uma realidade imutável a um fluxo diacrônico constante. A
realidade muda, respeitando as mudanças a priori que a definem. Em sua fase arqueológica,
Foucault entende essas mudanças discursivas a priori como transformações naquilo que
concebe por episteme, o conjunto de pressupostos que determinado saber histórico estipula
sobre o mundo. Em Les Mots et les Choses - As Palavras e as coisas (FOUCAULT, 1987) -
entendido por Best e Kellner (1991) como a mais completa história da transição entre as
episteme dos últimos cinco séculos, Foucault descreve as descontinuidades epistemológicas
entre os períodos que define por Renascimento (do medievo a 1660), a era Clássica (até 1800)
e a era Moderna (até os anos 1950). Embora essencialmente incomensuráveis, as bases sob as
quais se estruturavam os saberes nesses diferentes períodos históricos se constituíam a partir
de seus antecessores, tendo, pois, algo de comum para com eles. No Renascimento, o
conhecimento era estruturado ao redor das quatro principais figuras de similitude: a
convenientia, aemulatio, analogia e a simpatia (FOUCAULT, 1987).
A convenientia reportaria a todas as formas de similitude que se conectassem através
do espaço. Desse modo, os animais marinhos seriam semelhantes na medida em que
42
dividissem o mesmo habitat. A aemulatio é a conveniência extirpada de seu caráter espacial
(FOUCAULT, 1987), a partir da qual os termos se assemelham independente às suas
distâncias relativas, como o homem é a “imagem e semelhança de Deus” ou o céu é a fronte
do universo. A analogia é a semelhança levada às últimas conseqüências, tornando todas as
coisas do mundo passíveis de inter-relação. A simpatia, a última figura de similitude, não
respeitaria nenhuma das outras, sendo totalmente imprevisível. Nela, um fio de cabelo seria
capaz de carregar os sentimentos da pessoa da qual foi tirado, bem como a alegria e frescor
trazidos pela posse de um girassol. Nesse mundo, nessa episteme, a verdade foi escondida por
Deus na forma de sinais, que devem ser desvendados pelo ser humano através das figuras de
semelhanças. Sob essa lógica da autoridade, a observação empírica não é mais válida que a
palavra (HARLAND, 1987). A verdade está escrita na bíblia e a linguagem assume um
caráter ontológico fundamental.
Através dessas semelhanças a cadeia de significação do mudo se estendia ao infinito,
transformando o conhecimento total da humanidade na soma de sinais já descobertos pelos
homens (FOUCAULT, 1987). Com a chegada da era Clássica, esse tipo de conhecimento,
esse saber embasado na semelhança, passa a ser definido como irracional, como uma
insanidade de tempos antigos. O homem que via a semelhança em todos os lugares, como no
romance Don Quixote (FOUCAULT, 1987), passa e ser taxado como louco. O saber, que se
estruturava ao redor da semelhança a transformará em um problema. A episteme clássica se
ancorará não mais nas figuras de similitude, mas sob a forma da sistematização racional da
mathesis. O saber passará a ser entendido como ordenamento, e serão erguidas as diferentes
taxonomias do século XIX. Será quase como se “ao acordar no mundo clássico, o gigante
adormecido da razão encontrasse o caos e a desordem em todo lugar, e embarcasse num
ordenamento racional do mundo social” (BEST; KELNER, 1991, p.38, tradução nossa).15
Conhecer será quantificar os termos, aferir suas diferenças, e calcular aquilo que seria
necessário para superá-las. Sobre esse saber, a linguagem é sobrepujada pela observação
(HARLAND, 1987), tornando-se meramente um instrumento taxonômico, de designação de
nomes às coisas. No geral, a era Clássica estabelece a distinção entre um sujeito da
observação e a natureza, seu objeto a ser observado por excelência.
A era Moderna encontra nos fenômenos do calor, da eletricidade e no magnetismo um
empecilho à concepção da natureza enquanto objetivamente coisa em si kantiana (BEST;
KELNER, 1991). Os efeitos desses fenômenos físicos são passíveis de apreensão sensorial,
15
Awakening in the classical world like a sleeping Giant, reason finds chaos and disorder everywhere and
embarks on a rational ordering of the social world
43
mas seu entendimento pleno, das forças que ditam seu funcionamento, demanda um nível de
abstração maior do que o permitido pela episteme clássica. O mundo passa a ser enxergado
como regido por forças invisíveis. A biologia começa a ver nos animais mais do que um
projeto taxonômico, uma dinâmica de seleção natural conduzida pela evolução (HARLAND,
1987). A medicina se volta àquilo que não estava aparente, adentrando o interior do corpo
humano, tornando-o objeto de sua pesquisa, compreendendo como funciona em seu interior
imperceptível à superfície. (BEST; KELNER, 1991). A dicotomia clássica entre sujeito e
objeto se torna mais nebulosa e o homem deixa o controle do mundo para tornar-se
controlado. Mas o século XIX também foi responsável pela criação de um espaço do sujeito,
interiorizado no indivíduo, no qual seria capaz de fugir a essas forças externas, encontrando
sua privacidade. O sujeito só seria destituído de suas capacidades, e para todos os fins
objetivizado completamente com a era Estruturalista, definida por Foucault como iniciada
pelo movimento francês dos anos 1950 e 1960.
Se a arqueologia é a dimensão ideal, “puramente” discursiva da análise foucaultiana
do saber então o projeto genealógico, aprendido em Nietzsche, é a congregação de discurso e
prática nos chamados aparatos (HARLAND, 1987; BEST; KELLNER, 1991). Além de
conceber o papel da episteme na definição da realidade e na criação da esfera do sujeito,
Foucault parte para o estudo das práticas de conformação e normalização destes. A genealogia
- essa forma de historicismo crítico (VIGHI; FELDNER, 2007; BEVIR, 2008) - se torna sua
ferramenta na revelação da marginalização de grupos tidos como “anormais” ao longo dos
séculos por diversas instituições tais como a prisão, o hospital psiquiátrico e a escola. Essa
historiografia anti-científica (HARLAND, 1987; BEST; KELNER, 1991) explora a já
mencionada característica do discurso enquanto delimitador de um espaço ao qual confere
legitimidade, enquanto exclui tudo o que não faz parte dele. Quando a lógica da episteme se
transpõe à práxis, a exclusão das outras formas de saberes se transforma na exclusão das
outras formas de comportamento. A dimensão discursiva delimita aquilo que entende por
normal e aquilo que entende por patológico. As práticas institucionais que objetivam a
conformação do sujeito foram ao longo do tempo, ao longo do processo de racionalização, se
constituindo sob a forma de aparatos de dominação cada vez mais sofisticados. Em Surveiller
et Punir Foucault demonstra como as eras clássicas e modernas transformaram as punições
brutais medievais em modos supostamente mais humanas de “penalização”, embasados na
vigilância e educação. Observa-se, contudo, que antes de qualquer preocupação com a
reinserção dos criminosos na sociedade, com o seu aprimoramento pessoal, as prisões têm por
44
fim a vigilância e a normalização em si mesmas. Tendo isso em mente é fácil compreender
por que, nos moldes como as concebemos, as penitenciárias são extremamente ineficientes na
diminuição do índice de reincidência criminal (FOUCAULT apud HARLAND, 1987).
Da mesma forma que o real precisa do irreal para que sua existência seja dotada de
algum sentido, o normal é dependente do patológico, do desviante. Enquanto instância de
normalização, não interessa à prisão o fim da criminalidade. Ao contrário, é importante que
seja bem sucedida em perpetuá-la, para que o exemplo do mau cidadão, “daquilo a ser
evitado” continue lhe servindo como fonte de legitimação, a partir da qual o bom cidadão
deve ser construído. Se o crime por ventura fosse extinto, as penitenciarias e a criminologia
perderiam sua razão de ser. De modo semelhante, a Histoire de la Sexualité traz o exemplo do
atrelamento da masturbação à perversão. No geral, o discurso contra essa determinada prática
comum aos jovens do sexo masculino serviria menos ao propósito de erradicá-la do que
propriamente instigar sua continuação (HARLAND, 1987). Para o projeto de formatação do
sujeito sadio era essencial a figura do pervertido, criada e reproduzida por todo um aparato de
dominação.
É em meio à análise genealógica que a relação entre poder e verdade, cerne da crítica
foucaultiana às teorias do iluminismo, se mostra mais perceptível. O poder não vem da posse
do saber, mas lhe é intrínseco. As dimensões discursivas da vida social, ao delimitarem o
campo do real/irreal, normal/anormal, belo/feio, sadio/patológico exercem poder por sobre o
indivíduo que visam normalizar, na medida em que estabelecem aquilo que ele deve ser, e por
sobre seus opostos, na medida em que os excluem. Isto é, a rigor, desconsiderado pelas
ciências modernas. Embora a psiquiatria se legitimasse ao redor de uma objetividade da
loucura, do comportamento desviante à razão, o louco, seu objeto, é pelo próprio saber
psiquiátrico objetificado. É a esse respeito que a loucura, a sexualidade e o crime, que podem
parecer instâncias imutáveis da realidade, são historicamente/discursivamente construídos.
Esses construtos possuem um teor político assombroso, muito distante da neutralidade
pretendida pelo saber científico. Ao contrário das teorias totalizantes, o poder em Foucault é
difuso, não se situa nos macro fenômenos do estado ou das classes, mas em cada relação
humana. Não estando especificamente em nenhum lugar, ele está em todos os lugares. Na
família, no sexo, no trabalho, na escola, o poder está em tudo. O sujeito continua um mito16
.
Objetificado por um saber que o pretendia enquanto objeto ele representa tão-somente um
16
Com respeito às primeiras fases de Foucault segundo Best e Kellner (1991).
45
ponto na estrutura microfísica de poder e dominação, onde diversos aparatos se intersectam,
criando a ilusão de uma subjetividade una.
A esse ente unificado Gilles Deleuze associa, dos modos totalizantes do pensamento
moderno, em especial, a dialética hegeliana. Para Deleuze, a lógica dialética - a superação das
diferencias na síntese - não passaria de uma tentativa de “territorializar” os fluxos diversos do
pensamento em uma teoria totalizante. Contrário a esse movimento, estaria o perspectivismo
nietzschiano, um ode às pluralidades contidas pela filosofia ocidental repressiva. Em
Nietzsche et La Pilosophie Deleuze mantém uma interpretação de Nietzsche na qual o filósofo
compreende o mundo “como consistindo de diferentes quantidades de forças, um fenômeno
dinâmico que constitui o mundo, dirigido por uma vontade interior” (BEST; KELLNER,
1991, p.81, tradução nossa).17
Rejeitando o reducionismo dialético, Deleuze busca em
Nietzsche uma forma de compreensão das diferenças, das multiplicidades que não são
consumidas na idéia de síntese. Tal teoria se encontra no conceito de realidade mosaica, da
negação do fato enquanto acontecimento fora da interpretação e do perspectivismo.
A realidade para o Nietzsche de Deleuze é uma soma das perspectivas totais do
mundo. Seria, pois, impossível tentar compreender um “fato” sem o agrupamento de todas as
perspectivas acerca dele. O criador de Zaratrusta se volta à “corrente sofista” silenciada por
Platão, quando da criação do que seria ser um filósofo, para conferir esse grau de
multiplicidade, quase cético à sua obra. Segundo uma de suas mais importantes influências,
Górgias “articulou essa visão, argumentando que nada realmente existia, e caso existisse não
se saberia, e caso se soubesse, não poderíamos comunicá-lo” (WIGHT, 2006, p.232, tradução
nossa).18
Decorre dessa simples seqüência de proposições a negação da filosofia de
Parmênides, Platão e Aristóteles, e por conseqüência de grande parte da filosofia ocidental.
Quando o ser não é automaticamente associado ao pensar, tem-se o problema da existência,
quando a resposta deixa de ser óbvia ao cidadão comum e volta no cogito cartesiano. O que é,
de fato passa a não ter uma resposta fora dos atos individuais do pensamento19
. Os Fatos não
podem mais ser concebidos fora das interpretações individuais de cada um porque, ao final,
são o que verdadeiramente os constroem. Não que Nietzsche e, por conseguinte, Deleuze
assumam uma postura própria ao psicologismo do objeto individualizado. O que é, num
17
Reality consists of differing quantities of forces, the dynamic phenomena that constitute the world, driven by
an inner will. 18
Articulated this view, arguing that nothing really exists, and if anything did exist it could not be known, and
that if knowledge were possible, it could not be communicated. 19
Resumindo para os fins do presente trabalho todo um problema característico ao saber da ontologia dos sec.
XVIII e XIX, quando, de acordo com Foucault (1987) a relação entre sujeito e objeto é reestruturada a partir da
descoberta de forças imateriais.
46
sentido mais foucaultiano, não se define a priori no sujeito, mas é socialmente construído.
Mesmo assim, essa construção depende da apreensão individual dos códigos e significados,
que variam de ser a ser (BEST; KELLNER, 1991).
Após definir a epistemologia pós-moderna que guiará o restante de seu trabalho,
Deleuze se encontra com Pierre-Félix Guattari com o qual construirá a proposta da
esquizoanálise, a apologia ao modus vivendi nômade e a lógica rizomática. Em L'Anti-Oedipe
Deleuze e Guattari criticam a psicanálise Lacaniana, naquilo que permanece acrítica a alguns
conceitos freudianos, o pensamento moderno e o sujeito unificado, partindo de uma adaptação
da teoria marxista, numa analise da sociedade capitalista. O conceito fundamental dessa
empreitada é o desejo. Concebido não como falta, como fizeram Lacan, Freud e toda tradição
psicanalítica, Deleuze e Guattari o entendem de uma ótica produtiva, explosiva, criacional.
Em sua espécie de “fenomenologia” o desejo é uma força libertária do homem, um fluxo
libidinal essencial, constantemente reprimido por estruturas e instituições de dominação. Sua
teoria materialista substitui a idéia de modo de produção marxista pela máquina (literalmente)
produtiva dos desejos, e a estrutura de produção pelos fluxos sociais. Eles colocam o desejo
enquanto uma força que destrói a dicotomia sujeito e objeto, sendo capaz de criar tudo o que
concebemos por realidade através de seu locus na infra-estrutura social.
A análise do capitalismo parte de seu princípio mestre de desterritorialização. Ao
contrário das eras que lhe antecederam, o período capitalista prima pela desintegração de
todos os códigos, valores, sentidos e definições de seus períodos antecessores. A moeda não é
mais particular de um feudo, a cerveja não mais obedece às diferenças de sua origem, é
transformada em um commodities, e os códigos são todos esfacelados e reteritorializados sob
a lógica quantitativa do valor de mercado. Essa lógica, contudo, também produz aquilo que se
tornará o “anjo assassino” do capitalismo e de seu modo de vida, a esquizofrenia.(DELEUZE;
GUATTARI apud BEST; KELLNER, 1991). De maneira análoga à Marx, o capital produz,
em sua essência, aquilo que o sobrepujará. Ao contrário de qualquer contradição inerente, no
entanto, a esquizofrenia diz respeito aos efeitos inconscientes da empreitada capitalista. Sua
lógica de desterritorialização extrema através da qual tudo o que era sólido era desmanchado
no ar (MARX; ENGELS, 2005) implicou na condição libertária por excelência do sujeito
esquizofrênico. A desterritorialização, a volatilidade de sentido, o esfacelamento dos códigos,
o desrespeito pelas fronteiras, e a infindável transposição entre o eu e o outro presentes
naquilo que Deleuze e Guattari denominaram por esquizo-sujeito deveriam ser tomadas como
armas contra as instituições repressoras capitalistas. O processo de desterritorialização
47
iniciado por ele contra ele se voltaria promovendo a explosão infindável dos fluxos de desejos
libidinais.
O processo de esquizofrenia remontaria à condição natural do ser humano
(HARLAND, 1987), à essência não significante e não referente da máquina de produção dos
desejos (BEST; KELLNER, 1991). De acordo com Deleuze e Guattari, os significados e
referentes são atrelados aos desejos individuais ao longo de processos históricos de repressão.
O esquizo-sujeito subverteria essa lógica da dominação através da re-significação contínua e
imprevisível, uma espécie de deslizamento do significante levado à sua conseqüência
extrema. A esquizofrenia é o extremo oposto à identificação de uma subjetividade una. O
esquizofrênico enquanto objeto da análise psiquiátrica, enquanto um mal a ser curado, vê, na
realidade, não mais que um amálgama de sentidos impossíveis de serem fixados (HARLAND,
1987). Com isso ele se recusa a construir-se em torno de um “eu”, o que muitas vezes
repercute no fenômeno das identidades múltiplas, ou da “identificação” com algum
personagem histórico. Em última instância, ele reconhece a diferença entre o eu e o outro,
mas a desconsidera no seu livre transpassar das fronteiras e dos limites da realidade
dicotômica.
Em Mille Plateaux Deleuze e Guattari passam a criticar também a lógica do
pensamento ocidental per se, criando a rizomática, uma nova condição de saber compatível
com a epistemologia pós-moderna. No texto, todo conhecimento ocidental é entendido como
pautado pela metáfora da árvore. Teorias, pressupostos, opiniões e premissas são
hierarquicamente estabelecidos como ramos em uma árvore, sob a necessidade de se
fundamentarem em uma sólida raiz (o valor verdade obtido da empiria ou da lógica). Contra
esse modo totalizante e verticalizado, base da própria organização social capitalista, é
proposta a rizomática, a horizontalização anárquica completa. Para Deleuze e Guattari, assim
como a não-fixação de sentido no esquizo-sujeito, a rizomatica é a forma de composição
encontrada na natureza. Formigas, matilhas de lobos, gangues de motociclistas e até o
perspectivismo de Nietzsche são rizomas exemplares, funcionando de maneira fluida na
desterritorialização completa. Nesse sentido, no pensamento de Deleuze e Guattari, da mesma
fora que a “árvore vertical do conhecimento” deve ser substituída pela “raiz horizontal da
multiplicidade” e o sujeito fascista pelo esquizo-sujeito, o modus vivendi capitalista deve ser
completamente sobrepujado em prol do nomadismo, da vida desterritorializado do fluxo
constante. As lutas contra a opressão não poderiam, pois, estruturarem-se na figura do partido
político, como gostariam os marxistas, mas na micro-política da não delimitação e da
48
explosão libidinal. Afinal, os partidos e as organizações “moleculares” da sociedade carregam
em si mesmos aparatos hierarquizados de submissão dos desejos. Enquanto continuar
respeitando esse formato, a luta de libertação política estará fadada ao fracasso (BEST;
KELLNER, 1991).
Outro importante e controverso teórico pós-estruturalista foi Jean Baudrillard. Ele foi
aquele que mais sofisticadamente elaborou, ao lado de Jan-François Lyotard, uma teoria da
pós-modernidade no campo da filosofia. O pensamento de Baudrillard leva o projeto de
“superestruturalização” do Marxismo, começado por Althusser, ao seu extremo (HARLAND,
1987). A lógica do economicismo é desafiada através de sua natureza socialmente construída
e, portanto, arbitrária. Marx erguera sua teoria por sobre uma diferença entre o valor de uso e
o valor de troca que lhe era fundamental. De acordo com sua lógica, o capitalismo subverteria
a relação do homem para com o produto de seu trabalho, alienando-o através da superposição
do valor de troca ao seu oposto mais natural, infra-estrutural: o valor de uso. Esse valor de uso
de determinada coisa seria dado mediante sua relação para com o mundo exterior e objetivo,
sua capacidade de suprir as necessidades humanas inerentes. Uma lança, por exemplo, teria
por valor objetivo a sua capacidade em auxiliar nas caçadas e nas batalhas, ambas
necessidades de um ser mortal, que independente ao período histórico no qual existe, é um
ente que precisa se alimentar e se proteger. Com efeito, embora as forças do capital possam
distorcer essa relação infra-estrutural, o real valor dos objetos ainda poderia ser acessado, algo
que não ocorre em Baudrillard.
O sociólogo francês advoga, dentre outras questões, pela verdadeira autonomia do
valor de troca enquanto expressão da sociedade. Ora, decorre que o mundo exterior pelo qual
Marx sugere mensurar o valor de uso não existe fora do discurso burguês da realidade
(HARLAND, 1987). Admitir que o trabalho seja aquilo que faz do homem humano, como
Marx definitivamente conclui, é enxergar o mundo através da ótica capitalista. Para
Baudrillard essa é a grande estratégia/falácia das sociedades modernas. Atrelar algo à esfera
da natureza é, como dito, sempre uma ação política valiosíssima. Isto posto, a lógica
baudrillardiana divide a história das sociedades humanas em dois períodos diferentes,
separados por uma brusca ruptura. O primeiro é o que denomina por período das sociedades
simbólicas e o segundo é o das sociedades de produção. Baudrillard concebe uma diferença
significativa na natureza dessas duas formas de organização social na medida em que se
organizam ao redor de símbolos e signos respectivamente. Sociedades simbólicas se
estruturam através da troca simbólica, na qual o valor do objeto a ser trocado jamais é
49
separado da troca em si, do processo. Símbolos, ao contrário dos signos e códigos das
sociedades modernas, não teriam um sentido fixo, mensurável e quantificável, mas uma
cadeia de significação fluida, em constante modificação, como as próprias trocas simbólicas
das quais fariam parte, nas quais ser o receptor ou o doador de presentes é apenas um ponto
no tempo, uma questão passageira. Harland (1987) prove o exemplo do Sol, que perdera toda
a ambigüidade simbólica que lhe fora atribuída pelas sociedades primitivas (enquanto fonte de
vida e morte, terror e admiração) para ser enquadrado nas sociedades de produção (modernas)
sob as dicotomias alegria/tristeza, vivacidade/morte, nas quais é contrastado e validado aos
seus opostos: noite, chuva ou mau tempo.
Mas a revolução não para por ai. No final dos anos 1970 e início dos anos 1980
Baudrillard assume a virada à pós-modernidade, um termo que até então não havia utilizado.
De acordo com o autor, as incríveis transformações tecnológicas e comunicativas levaram a
uma sociedade de simulação, sem quaisquer vínculos referenciais com a realidade. Os
modelos cibernéticos, a tecnologia da informação e a simulação dos códigos substituiriam a
produção bruta enquanto princípio de organização societal. No final do século XX cada vez
mais os modelos e as simulações se aperfeiçoariam, tomando o lugar da coisa real per se. Na
mídia um movimento que mesclava jornalismo e entretenimento introduziria elementos
dramáticos nos noticiários e telejornais, e também formatos jornalísticos (associados à
transmissão da verdade e de acontecimentos factuais) às programações que a priori não teriam
preocupações com essa pretensão, como programas de auditório (os Talk Shows) ou vinhetas
do canal Music Television (BEST; KELLNER, 1991). Nesse sentido, a realidade, tão cara ao
pensamento marxista, se transformaria em algo absolutamente irrelevante, talvez subjugada
ao próprio modelo, à simulação. Ainda com respeito à mídia pós-moderna, anúncios
mostrariam corpos humanos magníficos, jantares ideais, famílias perfeitas, habilidades
invejáveis e tudo o mais que permeasse o cotidiano em um grau de perfeição totalmente
incoerente com o mundo real. Os corpos esbeltos que as pessoas não têm e os jantares
perfeitos que a rápida vida moderna não possibilita, além de outras simulações como as
descritas acima, criariam juntas uma espécie de domínio do não-real, no qual os papéis da
vida e do virtual se inverteriam, exercendo a arte, um feitiço sobre a vida, que a imitaria a
qualquer custo.
Nesse ponto chega-se ao conceito de hiper-realidade. Os simulacros da pós-
modernidade tornar-se-iam mais reais do que o próprio real. Num exemplo particularmente
interessante, Best e Kellner (1991) citam a história de um artista norte americano que
50
interpretara um medico em determinado seriado/tele-novela. Com o passar dos anos o artista
em questão acumulara centenas de cartas de fãs da série que desejavam algum tipo de auxílio
médico, ou opinião profissional. Mais tarde, o mesmo ator ainda apareceria em anúncios de
café, nos quais discorreria sobre os benefícios do café descafeinado para a saúde. No geral,
não é incomum que artistas sejam confundidos pelo grande público com os personagens que
interpretam na televisão ou no cinema. Com relativa freqüência aqueles que passam por vilões
precisam contratar seguranças para escapar da “justiça popular” (BEST; KELLNER, 1991).
Nesse sentido a fronteira entre a ilusão e a realidade é completamente implodida. Essa
implosão, todavia, levaria também a um estágio de entropia social, no qual as “massas se
tornariam aborrecidas e ressentidas do constante bombardeamento de mensagens e das
constantes tentativas para convidá-las a comprar, consumir, trabalhar, votar, registrar uma
opinião, ou participar na vida social” (BEST; KELLNER, 1991, p. 121, tradução nossa).20
Ao longo dos anos 1980 Baudrillard ainda se voltaria ao estudo da “metafísica” pós-
moderna, mais especificamente as transformações que a hiper-realidade, a implosão e o
simulacro trariam à relação entre sujeito e objeto. Mais do que negar a subjetividade como os
outros superestruturalistas21
Baudrillard a transfere de lugar, passando todas as suas
características marcantes ao reino dos objetos. Para ele, objetos possuem intencionalidade e
estratégias, tendo vencido a batalha do pensamento ocidental e sobrepujado os sujeitos sob
sua dominação. A filosofia moderna do Ocidente sempre lutara em vão pelo predomínio do
sujeito observador sobre o objeto da observação, com efeito, a natureza. Essa luta terminou e
os objetos ganharam. Agora, são eles que dominam a vida social, estando a dimensão
subjetiva amplamente subjugada a eles. De acordo com o sociólogo francês só haveria uma
solução possível para superar essa “coisificação invertida” iniciada pela lógica capitalista. Em
Les Stratégies Fatales é proposto um caminho político para a implosão do sistema corrente.
As massas levariam o sistema de signos à sua auto-destruição fazendo exatamente aquilo que
ele demanda. Se a sociedade do consumo deseja o consumismo desenfreado, fora de qualquer
significação social, de forma contrária ao mundo primitivo, então é exatamente isso que deve
ser feito. Um sistema é implodido quando levado às últimas conseqüências. O radical
Baudrillard, então, clama pelo consumismo desenfreado.
Jean-François Lyotard, por sua vez, retoma a lógica da micro-política dos desejos
trabalhada por Deleuze e Guattari. Em sua versão, a superação aos modos de pensamento
20
Masses become bored and resentful of their constant bombardment with messages and the constant attempts to
solicit them to buy, consume, work, vote, register an opinion, or participate in social life. 21
Termo empregado por Harland (1987) para denominar ambos estruturalistas e pós-estruturalistas entendidos
como pertencentes a um só grande fenômeno, o superestruturalismo.
51
totalizantes e opressivos se da pela luta estética das artes e da figura como fontes de
intensidade libidinal. Influenciado pela filosofia de Jacques Derrida (1994; 2008; 2009),
Lyotard crítica a forma pela qual o Ocidente toma a realidade como constituída por um sem
número de oposições binárias, nas quais um termo é valorado em relação ao outro. Sua
epistemologia pós-moderna, assim como a genealogia foucaultiana, objetiva fazer ouvir os
termos marginalizados das dicotomias, aqueles deslegitimados pelo pensamento moderno.
Desde Platão (2008), e sua famosa crítica à tragédia enquanto paideia, o Ocidente virou as
costas à arte em prol da ciência, primeiro no sentido de saber e depois no sentido moderno do
termo. O discurso, o logos é valorizado em detrimento da experiência sensível. Para Lyotard
isso é algo a ser mudado, pois só a figura, o sensível, é capaz de libertar o desejo em sua força
explosiva e subverter o discurso político científico em suas bases.
Nesse sentido, o filósofo de Versailles advoga pela ferramenta estética (aesthetics) na
luta por espaço aos saberes, grupos, termos ou posições desvalorizadas. Essa batalha deveria
tomar a forma do vanguardismo, única prática capaz de liberar a intensidade última dos
desejos e desafiar a forma unificada com a qual a realidade é retratada. Em Économie
Libidinale é esclarecido como o desejo é preso sob diversos modos de dominação e tem sua
intensidade atenuada (BEST; KELLNER, 1991). Lyotard então reclama o livre fluxo das
energias vitais, tomando por base uma perspectiva nietzschiana que confronta ambos Marx e
Freud (BEST; KELLNER, 1991). Deixando o desejo e adentrando o campo do saber, o autor
constrói uma série de críticas à modernidade enquanto modo unificado de pensamento e
método. Para ele, o conhecimento não é construído através da unidade e do consenso, mas por
meio da proliferação das diferenças, da convivência incomensurável. Novamente, vê-se o
tema pós-moderno da pluralidade se repetir, dessa vez sob a rationale das “pequenas
narrativas”.
O pensamento moderno, em sua busca pela verdade e por fundações sólidas sempre se
escorara em grandes narrativas e metanarrativas através das quais se fazia parecer legítimo.
Um exemplo fortuito diz respeito à ciência. Quando do iluminismo, esse saber específico
aproveitou-se de um discurso sobre as capacidades emancipatórias da razão e de uma
teleologia de progresso histórico, já criticada pelo movimento estruturalista dos anos 1950. De
maneira semelhante, o saber ocidental sempre validara suas proposições pelo embasamento da
correspondência empírica, numa suposta relação referencial para com a realidade, sem a qual
qualquer conhecimento era taxado de ingênuo e supersticioso. Essas foram as armas de uma
epistemologia moderna, preocupada com uma verdade fundamental incapaz de ser outra coisa
52
que não una. Os saberes pós-modernos, em contrapartida, desafiariam essa visão sintética da
realidade reclamando a heterogeneidade, usualmente reprimida por consensos não tão
consensuais. Fazer algo único seria, para Lyotard e sua epistemologia pós-moderna, uma
violência à pluralidade inerente à sua visão de mundo, conseqüência imediata de sua
perspectiva nietzschiana. Desse modo, dever-se-ia quebrar com os modos totalizantes de
pensamento, a fim de provocar uma explosão de “pequenas narrativas” locais, devidamente
situadas, que de maneira alguma teriam a pretensão “universalizante” da ciência moderna e de
seu método único.
O filósofo ainda conceberia uma diferença conceitual entre descrição e prescrição,
entre o reino irremediavelmente incomensurável do ser e do dever ser. Lyotard passaria a
analisar as conseqüências de uma epistemologia pós-moderna para a questão da justiça, que,
ao menos sob a ótica kantiana, demandaria um alto grau de generalidade. Em Au juste Lyotard
e Thébaud discorrem acerca das possibilidades de julgamento sem critérios que sejam
universais, prescrições que digam respeito a uma regra geral. Para que a justiça possa ser
vislumbrada, contemplando-se o objetivo da pós-modernidade de proliferação das diferenças,
é elaborado o conceito de justiça enquanto respeito às regras. Tais regras, diriam respeito às
prescrições estabelecidas em um jogo específico, em comum acordo entre os participantes. Só
se poderia afirmar que uma ação é justa se ela estivesse de acordo com um conjunto de
prescrições locais, que lhe fossem anteriores, capazes de lhe conferir justiça ou injustiça. Não
se poderia, seguindo essa lógica, definir qualquer teor de justiça/injustiça de uma ação sem
levar em conta o contexto sob o qual ela acontece. Isso posto, a episteme pós-moderna de
Lyotard edifica o que será denominado por “multiplicidade de justiças”, o conceito que
confere à análise ad hoc das ações contextualizadas prioridade sobre generalizações e
prescrições universais. Só se pode pensar a justiça local, provisional e sujeita à mudanças
(BEST; KELLNER, 1991). Esse conceito do que seria um ato “justo” confere voz à
pluralidade de diferenças que compõe a realidade pós-moderna.
Mais tarde o termo jogo seria extirpado do discurso de Lyotard. Sua idéia remeteria a
um arrogante antropocentrismo comum ao Ocidente, segundo o qual indivíduos fariam uso
(possivelmente instrumental) das regras do jogo de acordo com seu bel prazer e sua
intencionalidade (LYOTARD apud BEST; KELLNER, 1991). Coerente com a retirada de
sentido da esfera subjetiva, prática comum aos mais diversos pensadores superestruturalistas,
a categoria jogo é substituída pela noção de “frases lingüísticas”, que, ao não demandar
nenhum grau de subjetividade, passa a ser o mínimo objeto de análise da teoria de Lyotard.
53
2.2 O Pós-Estruturalismo Nas Relações Internacionais
Enquanto um ramo das Ciências Sociais, a teoria das RI também sofreu influências de
ambos os movimentos estruturalista e pós-estruturalista. Cabe aqui discorrer sobre as
implicações da filosofia de Foucault, Derrida, Lyotard, Deleuze e Baudrillard para a
disciplina, que apresentaram uma oportunidade de formação de uma teoria “crítica”,
consciente de sua própria temporalidade histórica (COX, 1986), bem como de sua condição
essencialmente arbitrária. No geral, o pensamento francês das décadas de 1970 e 1980 foi
fundamental para a construção de uma comunidade “científica” que contestasse as bases
fundacionais, as “condições de possibilidade” do discurso teórico do main stream. Walker
(1993), Thomsom (1994), Weber (1995), Bartelson (1995), Campbell (1998) e Hansen
(2006), dentre outros, passaram a atacar os conceitos assumidos como dados, não
problematizados e supostamente imutáveis para o estudo do internacional, advogando pela
natureza histórica de cada um. Os ataques se concentraram em torno das categorias soberania,
Estado e identidade.
2.2.1 Walker
O mundo contemporâneo é cada vez mais compreendido como um fluxo constante de
informações, transações, bens, pessoas, animais, tal seja, um mundo em que o espaço torna-se
gradativamente irrelevante frente às descobertas da ciência moderna. De certo sentido, esse
mesmo espaço é também aos poucos substituído pela virtualidade, por um não-local, onde a
não-existência, ou a existência virtual permitiria o envio imediato de montantes gigantescos
de divisas a qualquer lugar do globo. A condição contemporânea é percebida essencialmente
como uma condição de mutabilidade, onde a sempre presente figura da mudança, seja ela qual
for, desmancharia tudo o mais que fosse sólido no ar (WALKER, 1993). Não obstante, apesar
do teor quase auto evidente de volatilidade que a era contemporânea exerce no homem, as
teorias de RI, ao menos um parte delas22
, ainda argumentam no sentido de uma imutabilidade
natural de uma esfera particular do mundo: do internacional. As questões e os dilemas
enfrentados pelos Estados Nacionais no processo de interação entre eles não seriam, a
princípio, diferentes daqueles enfrentados pelos primeiros macabeus do período bíblico
(WALTZ, 1979), pelo Império Assírio, Roma, China Antiga, Astecas (KAUFMAN; LITTLE
22
Como, por exemplo, o Realismo Estrutural (WALTZ, 1979) e suas abordagens correlatas (COPELAND, 2000;
(KAUFMAN; LITTLE et al., 2007).
54
et al., 2007) Esparta, Atenas ou ainda pelos senhores feudais do medievo (COPELAND,
2000). A rigor, essas teorias definiriam o internacional como o reino do recorrente, como o
ambiente no qual a mudança é impensável e as propostas de progresso da modernidade são,
ao final, impossíveis. Essas teorias entenderiam o internacional como qualitativamente
diferente do ambiente doméstico.
Mas o que seria responsável por essa diferenciação qualitativa entre dois ambientes
aparentemente indiferenciados? Qual a condição sobre a qual é possível afirmar que a política
internacional possui uma natureza diferenciada da doméstica? Ora, a própria criação da
disciplina das RI precisa que essa diferença seja afirmada para que seja entendida como
legítima. Afinal, o que definiria um saber como ciência, dentre outras característica, seria um
sujeito específico sobre o qual esta predicaria (ARISTÓTELES, 2002). Não há de haver
Enologia sem o vinho, Física sem a matéria, tampouco Matemática sem o número. O que
atribui às RI a qualidade de disciplina, ou de ciência no sentido aristotélico do termo, seria
exatamente o internacional como sujeito de predicação, como objeto de análise, proveniente
da política entre os Estados pensada em separado da doméstica.
Esse tipo de configuração adviria de uma resposta particular ao problema da
concepção do locus da comunidade política. Ao contrário de algo auto-evidente, objetivo, ou
independente à cognição humana, essa diferenciação entre um espaço doméstico e um espaço
internacional seria antes conseqüência da resposta provida pela modernidade ao
questionamento acerca de um “nós” (WALKER, 1993). A idéia responsável pela demarcação
de um domínio interno, um inside, e um domínio externo um outside, seria justamente o
conceito moderno de soberania forjado na revolução histórica (FASOLT, 2004). Através da
soberania, seria possível responder à questão de um “nós”, delimitando-o espacial e
temporalmente enquanto diferente do “nós” pensado pela cristandade. Essa identidade antes
universal, passaria a ser concebida sob a lógica particularista do conceito de soberania. Antes
da humanidade, a comunidade política moderna se estruturaria a partir da cidadania. A
modernidade em si forjou a diferença pressuposta pelo Realismo político, construindo um
espaço onde suas promessas poderiam ser efetivadas, onde de fato haveria o progresso, o
direito, a lei, a ordem, e um vácuo político no qual só se daria a infinita recorrência da
realpolitik, de uma política puramente utilitarista. A modernidade criara o internacional como
a não-política, provendo as RI de sua razão de ser.
Assim sendo, a disciplina de RI, deveria ser vista, na ótica pós-estruturalista, mais
como expressão dos limites da concepção moderna de espaço político do que propriamente
55
uma explicação de uma realidade imutável, que lhes fosse exterior (WALKER, 1993). Dessa
forma, mais do que conseguir acessar um internacional de fato, o Realismo poderia ser
entendido como um dos discursos da modernidade por meio do qual esse internacional é
concebido. Seria antes que uma ferramenta preditiva de um comportamento imutável em uma
esfera dada, conseqüência da particularização do “nós”, da submissão moderna do universal
ao local, do privilégio à existência política do estado em detrimento do mundo.
Mas esta não é uma maneira eficiente, muito menos convincente de legitimar um
campo do conhecimento. Para que o Realismo e, conseqüentemente as RI, sejam levados a
sério é necessário que essa expressão histórica de um saber socialmente construído seja
camuflada pela criação de uma grande tradição do pensamento político internacional. Uma
tradição a-histórica, que desrespeitasse as particularidades socio-temporais de seus membros.
Nesse sentido o discurso realista estabelece uma origem, uma fundação, um ponto de partida
em um autor como Tucídites, e transforma sua descrição da guerra do Peloponeso, travada
entre duas cidades-estado separadas da contemporaneidade por mais de dois mil anos, em
uma proveitosa analogia da Guerra Fria. E como uma tradição não pode se constituir de um só
pensador, são adicionados autores diversos e complexos como Rousseau, Maquiavel, Hobbes
- e seu estado de natureza absurdamente “condizente” com a realidade internacional - Carr e
Morgenthau (WALKER, 1993). Todos sintetizados através de uma estratégia discursiva do
apagar das diferenças, do silenciar das inconsistências e do ressaltar das semelhanças. Ao
final, de acordo com Walker (1993), é estabelecida uma proto-identidade do que o Realismo,
e nesse sentido toda a disciplina de RI, viria a ser com Theory of International Politics (1979).
Todavia, independente da forma tomada pelas grand narratives23
, as inconsistências
silenciadas que lhe são inerentes não resistiriam a um rigoroso estudo histórico, que
evidenciasse e demonstrasse a arbitrariedade daquilo que é tomado por natural. A missão pós-
estruturalista seria fazer vir à tona tais inconsistências. Uma maneira particularmente
interessante de fazê-lo é contrastar o que é dito dos clássicos que compõe a tradição do
Realismo político. Em seu processo de desconstrução, Walker analisa o texto de Maquiavel, o
denominado pai da política de poder e da raison d'etat. Maquiavel atentara para o problema
em sustentar a ação do príncipe em sólidas fundações, na metáfora dos fortes (MAQUIAVEL
23
Seria possível conceber três grandes narrativas sobre a tradição das RI segundo Walker (1993). Primeiramente,
uma eterna disputa entre realistas e idealistas, entre teóricos preocupados com a natureza real do mundo, com
aquilo que ele realmente é, e teóricos preocupados com aquilo que ele poderia ser, com uma normatividade. Em
segundo lugar, um longo monólogo realista sem a presença de qualquer paradigma opositor. Em terceiro, da
forma como M. Wight a concebe, como a negação do conhecimento postulado pela ciência política, transcrita na
problemática da “analogia domestica”. (WIGHT, 1960).
56
apud WALKER, 1993). Por mais rígidos e seguros que parecessem, eles não teriam a
maleabilidade necessária, a virtuosa astúcia, embora possuíssem elementos da virilidade,
capaz de domar a deusa da fortuna. O príncipe não deveria se embasar em soluções anteriores,
pois estas poderiam não dar certo novamente. A imprevisibilidade da sorte fazia da virtú uma
espécie de sagacidade em adaptar-se ao contexto, às especificidades das necessidades
momentâneas, ao contrário de uma postura política imutável.
Ademais, Maquiavel não falara sobre o internacional, categoria que muito
provavelmente não lhe faria sentido algum, mas sobre a importância de instituições para a
existência e perseverança de determinado arranjo social. Sem a construção de Diques, de um
exército profissional, de homens guerreiros sempre prontos à luta, de um líder a ser seguido e
respeitado, mas que saiba medir o uso do poder, seria impossível controlar a deusa da sorte
(WALKER, 1993). Poder-se-ia argumentar ainda, que a concepção de tempo própria à Itália
na qual vivera Maquiavel, impossibilitaria qualquer associação de seu pensamento às formas
de racionalidade instrumentais concebidas pela contemporaneidade. Com essência, o rio pela
qual Maquiavel metaforicamente trata do tempo não é um rio de trajetória especificada, linear,
como no caso hobbesiano, mas uma força imprevisível do acaso e da fortuna, que promoveria
inundações ao bel prazer (WALKER, 1993).
Não obstante, a construção da tradição serviria ao propósito de reificar a distinção
inside/outside, entre o espaço ocupado pela possibilidade de existência de uma comunidade
política e seu contrário, sua negação completa. Uma vez, pois, naturalizada, essa dicotomia
faria crer, por exemplo, que a ética e as RI seriam saberes inerentemente opostos. Ora, o
conceito de ética para Walker pressupõe um nível de universalidade mitigado pela solução
particularista do conceito de soberania. Só pode haver ética para dentro dos Estados, para fora
destes, somente a “ética dos fins” weberiana. Isso se torna um problema na medida em que o
intolerável, aquilo que não pode ser, se transforma, e cada vez mais toma força, na percepção
da “comunidade internacional”. Depois de Auschwitz, Bósnia e Ruanda, tornou-se mais
difícil fechar aos olhos ao que acontece para além da dimensão doméstica, e assumi-la como
simplesmente um espaço fora de questionamentos éticos. Essa talvez seja uma medida
significativa de um descontentamento da resposta provida pelo conceito de soberania. Talvez
questões como a formulação dos direitos humanos ou as pressões políticas de diversas
sociedades civis ao redor do globo por soluções a problemas que a priori não lhes diriam
respeito representem isso. Uma forte percepção de que o “nós” deve ser repensado, de que o
respeito ao particular talvez não baste mais. Há uma pressão para que a ética, o progresso, a
57
democracia e o tempo deixem de ser qualidades exclusivas do inside, e tornem o internacional
cada vez menos apolítico.
2.2.2 Thomson
Janice Thomson (1994) assume o pressuposto “crítico” de que o conceito de soberania
seria constituidor da dicotomia inside/outside e questiona outro elemento fundamental às
teorias de RI, seu objeto de análise por excelência, o estado. Em primeiro lugar, a autora
expõe problemas e lacunas advindas das concepções weberiana e giddensiana daquilo que
constituiria a soberania estatal, do que atribuiria aos Estados a condição de atores mais
importantes no ambiente internacional. Sua argumentação perpassa o estudo histórico do
estado como uma entidade política que deteria o monopólio do uso (legítimo) da força, ou da
violência e suas implicações para além da dimensão da política doméstica. A rigor, Thomson
(1994) demonstra que, nos períodos anteriores à época moderna - mais especificamente até
1900) - o estado não era o único detentor de meios coercitivos no ambiente externo e
tampouco reivindicava sê-lo (THOMSON, 1994). Em linhas gerais, a violência era tratada
como uma espécie de commodities e sua existência e continuação eram encorajadas por
unidades políticas que possuíam meios restritos de projeção de poder. A força de trabalho
militar, a mão de obra guerreira foram durante grande parte da história ocidental uma fator
“internacionalizado”. O recrutamento e a “contratação” de mercenários, corsários e
companhias de comércio eram um meio economicamente interessante aos Estados, para
alcançarem determinados objetivos sem o dispêndio de quantias desnecessárias de recursos.
Era comum, pois, delegar certas missões a esse agentes privados da violência sob a promessa
de que poderiam tomar para si metade dos espólios de guerra, ou como no caso do rei inglês
Henrique VIII em um decreto de 1544 , todo ele.
Tal era a dependência dos Estados europeus para com forças mercenárias, que
originariamente não haviam nascido, tampouco se naturalizado cidadãos do estado pelo qual
lutavam, que, em 1700 a 1770 os componentes estrangeiros dos exércitos europeus chegavam
a mais da metade do total das tropas (THOMSON, 1994). Em 1751 cerca de 25% do
contingente militar espanhol eram estrangeiros. Na França pré-revolucionária o número era da
ordem de um terço, e a marinha era composta inteiramente de corsários. Em 1701 a Grã
Bretanha contava com 54% de estrangeiros em suas tropas e em 1743, no caso mais
impressionante, o exército da Prússia era composto por cerca de 66% de não prussianos. Nos
58
anos de 1807 mais de 6 mil norte americanos se alistariam na real marinha britânica, enquanto
em 1878 60% dos marinheiros estadunidenses havia nascido fora do território americano
(THOMSON, 1994). Em termos gerais, a nacionalidade e a naturalidade não eram critérios
fundamentais para o serviço militar. O que regia os recursos disponíveis às potências e aos
demais Estados era uma espécie de lei da oferta e demanda internacional da violência. Para
lutar pela França, por exemplo, bastava que se estivesse disposto a fazê-lo e, portanto, ariscar
a própria vida em nome de outros, e que se cobrasse um preço razoável, no limite, dentro das
condições do contratante. A prática que Maquiavel (1996) via como prejudicial à república, a
dependência em relação a exércitos mercenários, era em verdade mais comum do que o
pensamento moderno permite pensar.
Uma das razões para isto residiria na lógica feudal da obrigação militar (THOMSON,
1994). No medievo, os nobres cavaleiros se viam coagidos, dada a relação de vassalagem, a
um serviço militar muito curto, de cerca de 40 dias no ano, que dizia respeito tão-somente à
defesa do território de determinado suserano. A conseqüência, portanto, era uma
impossibilidade física, material, talvez contratual, de contar com aquilo que se entenderia em
termos contemporâneos por um exército regular para quaisquer excursões militares ou
projeções de poder. Isso apresentava em decorrência lógica, um vácuo mercadológico que
viria a ser ocupado por esses mesmos nobres que, por definição, estariam livres para
“venderem” sua força de trabalho pela maior parte de suas vidas. Ademais, era interessante
aos senhores que assim o fizessem, caso contrário não conseguiriam atacar outros territórios e,
como conseqüência, aumentar seu poder econômico e político, cujas configurações medievais
eram territoriais.
Mas, por mais que em um primeiro momento a guerra de corso e os exércitos
mercenários fossem interessantes, quiçá essenciais aos feudos/Estados, com o passar do
tempo e o fortalecimento desses atores privados, as unidades políticas que deles se utilizavam
tiveram de tomar uma decisão. Ou o aumento gradativo do poder dos atores privados, em
especial as companhias de comércio, cresceria a ponto de desafiar o predomínio estatal, como
fora o caso de quando um gigantesco corpo de corsários tomou a capitania do Rio de Janeiro
das mãos da coroa portuguesa (THOMSON, 1994), ou a violência internacional deveria sofrer
alguma forma de regulação, ou mesmo restrição. Isto posto, ao longo dos anos a violência
privada exercida no mar, por exemplo, fora ora taxada de pirataria (uma ato ilegal pelo qual o
estado não se responsabilizaria), ora taxada de guerra de corso (uma iniciativa privada
autorizada pelo monarca ou parlamento).
59
Para uma satisfatória compreensão do processo de exclusão da violência não estatal do
mercado internacional é necessário entender, acima de tudo, a mudança na concepção de
soberania no período das revoluções do século XVIII. Esse tipo de critério, categoricamente
desconsiderado pela tradição realista das RI, foi o que deu início ao fim da violência privada
internacional24
. Quando das primeiras utilizações desta, provavelmente durante a guerra dos
100 anos (THOMSON, 1994), o fator de legitimidade das formas existentes de domínio
estava atrelada ao próprio monarca, a figura sacralizada do rei. Era relativamente fácil,
portanto, permitir com que atores privados se valessem de meios coercitivos para alcançarem
seus objetivos no exterior, sem que houvessem maiores conseqüências para o reino. O
motivo? O monarca poderia simplesmente negar qualquer autorização prévia, algo até então
necessário, a tal ato, ou mesmo acentuar seu caráter privado. Ao fazê-lo ele estaria protegendo
a esfera pública, o reino, de qualquer sorte de retaliação. Afinal, não é razoável pensar que um
homem ou grupos de homens sejam punidos pelos atos de outro.
Com as revoluções, a soberania fora transplantada da figura do rei e introjetada
diretamente em seus “súditos”, seu povo. Num mundo consciente de uma volonté generale,
tornou-se impraticável para as unidades políticas não arcar com as conseqüências dos atos de
violência, quaisquer que fossem, que emanassem de seu território. O exercício privado da
violência, ao qual outrora o governante pudera facilmente negar autorização prévia, era então
entendido sob pena de retaliação imediata, retaliação ao todo, do qual tal parte pertencera.
Ora, uma vez que a legitimidade estatal, sua própria razão de ser, passou a emanar do cidadão,
era inevitável que o estado fosse responsabilizado pelas ações deste. A partir desse ponto, o
recurso à violência não estatal tornou-se impraticável. O que de início fora economicamente
proveitoso, transformara-se em algo por demais ariscado.
2.2.3 Weber
Seguindo a crítica às premissas fundamentais das RI, Weber (1995) problematiza a
relação entre os conceitos de soberania e estado (statehood). Para o main stream da disciplina
ambos são tratados enquanto auto-referentes, servindo um de significação ao outro. O estado é
usualmente explicado como um ente soberano, e a soberania é concebida como tão-somente
uma propriedade estatal. A questão que persiste a qualquer resposta acerca da relação entre
esses dois conceitos tão caros às RI é, em concordância com o pensamento de Walker, a
24
Como efetivo recurso estratégico dos estados. Obviamente, casos de violência privada não autorizados, por
sua própria natureza, independem de tais considerações.
60
necessidade vislumbrada por aqueles que se pretendem estudiosos do internacional em reificá-
los. Independente a posicionamentos realistas ou idealistas - uma taxonomia “tradicional”
recuperada por Weber - a análise dos fenômenos internacionais perpassam a não
problematização do estado enquanto ator dotado de agência, bem como da soberania como o
ponto de partida da pesquisa. Para (neo)realistas, o sistema internacional advém da interação
de um número qualquer de unidades políticas autônomas, e portanto soberanas, que respeitam
relações tipo-lei probabilísticas transhistóricas. Essa corrente teórica, que concebe o locus da
comunidade política como algo particularizado, quase pulverizado, se sustenta sobre uma
concepção de soberania que não pode ser, não só questionada, como também sofisticada.
Qualquer tipo de aferição mais profunda sobre o que seria a soberania, o que ela representaria,
sobre sua verdadeira essência, impediria a continuação do raciocínio realista. Afinal, toda
ciência deve partir de algo que lhe sirva como sujeito de predicação (ARISTÓTELES, 2002),
um sujeito que ela mesma se recusa a contestar, uma vez que, caso o fizesse, colocaria em
cheque sua própria razão de ser. Não se vai a lugar algum se não se parte de algum lugar, e o
Realismo é explícito quanto à pretensão positivista de chegar a algum lugar (WALTZ, 1979).
Essa lógica, embora o hábito da contraposição absoluta nos leve a pensar o contrário,
cabe também à corrente idealista. Para argumentar em prol da existência de uma comunidade
internacional (BULL, 2002) que atribua a qualidade de soberanos aos diferentes Estados , e
cujas regras e normas (institucionalizadas, ou não) funcionem como condições primeiras à
interação, deve-se ter também um ponto de partida qualquer. Nesse caso, a premissa tido
como incontestável é a existência de uma comunidade interpretativa que justifique o
conhecimento intersubjetivo necessário à formação de normas e regras. No limite, a idéia de
um direito internacional (entendido mais enquanto um quadro normativo comum aos Estados)
que atribui às unidades aquilo que as torna Estados : a soberania, implica igualmente reificar a
soberania como propriedade do estado. No fim, nada foi dito sobre a natureza de ambos,
apenas foram feitas elucubrações acerca de seu funcionamento (WEBER, 1995).
O grande problema dessa prática de reificação das premissas teóricas, desse apego a
uma ontologia incontestável de determinados conceitos, é a decorrente exclusão de suas
variações históricas de sentido. Dizer que a soberania é uma qualidade do estado (aquilo que o
constitui enquanto tal) ou mesmo dizer que o estado é um ente, ou um ator soberano,
geralmente uma afirmação traduzida como uma autoridade máxima sobre um povo ou
território (WEBER, 1995) implica invariavelmente no congelamento de ambos os conceitos.
61
Ora, conceituar25
é em si mesmo uma prática que abstrai de uma singularidade aquilo que dela
pode ser transposto ao universal. Nesse sentido, portanto, Weber critica a prática, inerente às
pretensões generalizantes de certas abordagens das RI, de estabilização de conceitos como
soberania e o estado, conceitos que, em verdade, são constantemente construídos e
reconstruídos socialmente. Dada essa condição, termos como soberania e estado não possuem
uma essência, uma ontologia, um sentido que independem do contexto histórico no qual são
empregados, aqueles são, ao contrário, fruto deste.
Para evidenciar esse congelamento artificial, essa prática com a qual o teórico delimita
de ante mão o sentido de seu objeto de observação, tentando posteriormente encontrá-lo no
que considera como o “mundo lá fora”, buscando como fim último um sentido que seja
“verdadeiro”, Weber analisa a problemática da intervenção. Ao fazê-lo, ela introduz a noção,
com base nos escritos de Baudrillard, da impossibilidade de representação, ou da
representação não de um significante a um significado, mas da redução do próprio sentido ao
significante: o simulacros. Além disso, nos termos propostos por Walker (1993), Weber
contesta uma espécie de metafísica do ser, em prol de uma metafísica do tornar-se, não da
“congelada” permanência ontológica de determinados conceitos, mas de sua mudança
contínua. De fato, a autora trata do “fazer” enquanto anterior e constituinte ao “ser”. Ela o faz
através de evidências históricas que demonstram, a rigor, como sentido de soberania (o
significado ao qual o significante “intervenção” remete) variou ao longo do tempo. No geral,
a fonte de legitimidade, bem como as atribuições - que Thomson formula como parte da
dimensão funcional da soberania - nem sempre foram as mesmas. O ano de 1700
aproximadamente, marcaria uma espécie de passagem da fonte de legitimação da autoridade
política de Deus e, portanto, do corpo físico do monarca, para o povo e, portanto, a estrutura
“física” do estado (WEBER, 1995).
2.2.4 Bartelson
Bartelson (1995) constrói uma crítica às pretensões universais das abordagens
estruturalistas através de um estudo histórico do conceito de soberania. Para o autor, qualquer
25
Essa delimitação do que seria conceituar, esse exercício de conceituar o conceituar é algo que, ironicamente,
abstrai da prática de conceituar algo que a partir dela possa ser universalizado. Ademais, por delimitar o espaço
do que seria o ato do conceituar, invariavelmente cria-se o espaço do não - conceituar. Admitindo um alto grau
de incomensurabilidade entre esses “espaços” comuns ao pensamento dualista ocidental, faz-se necessário
afirmar que sob hipótese alguma essa definição de conceituar exclui todas as outras possibilidades por ela não
compreendidas. Ela não exauri o significado do termo, porque este afinal, assumindo a lógica saussuriana, não
esta no termo (HARLAND, 1987; DOSSE, 1993).
62
tentativa de transpor o comportamento dos Estados -nacionais do século XX em termos de
regras gerais que valeriam para qualquer unidade política, independente de seu tempo
histórico, incorreria num grotesco anacronismo. A soberania, enquanto um conceito, ou idéia,
esta intimamente ligada às bases epistemológicas de seu tempo, àquilo que possibilita ao
homem pensar da forma como este pensa. Nesse sentido, imaginar que o que hoje é entendido
por soberania teria o mesmo valor semântico em outros tempos, cujas bases epistemológicas
diferem em muito do conhecimento arquitetado ao redor do homem, da episteme moderna,
seria no mínimo ingenuidade. Dessa forma Bartelson tenta demonstrar como as bases do que
se entendia por conhecimento e o conceito de soberania mudaram, em concomitância, com
passar do tempo, e como isso se refletiu nas relações de identidade e alteridade da vida
política. Assim, assumindo a demarcação foucaultiana, A Genealogy of Sovereignty perpassa
as épocas históricas da alta Idade Média, do período clássico e da modernidade, analisando as
respectivas formas de concepção do conhecimento, a ontologia e sua relação com o conceito
de “soberania”.
Durante a alta Idade Média, ou o período que Foucault (1987) e Bartelson (1995)
chamam de Renascença, o conhecimento era construído através das figuras de similitude.
Saber era desvendar as relações de semelhança, analogia e simpatia entre entes separados no
espaço e tempo que haviam sido primeiramente estabelecidas pelo ato criador de Deus,
quando da junção entre as palavras e as coisas. Conhecer estava, pois, intimamente ligado à
identificação das semelhanças, na construção de uma série de interconexões analógicas
virtualmente infinitas entre as coisas. Num mundo no qual a identidade dita o que se conhece
e, por conseguinte, “o que é” o externo, o outside da comunidade política que se poderia
chamar, assumindo algum grau de anacronismo, de “Estado”, era na realidade ocupado por
um outro inside sobreposto, a cristandade. O conceito de tempo fora, com a introdução dos
escritos aristotélicos, transformado da efêmera contingência subjetiva de Agostinho – oposto
à eternidade divina – para o simples movimento no espaço – que agrega tanto nosso conceito
de movimento físico como as relações de geração e corrupção em geral. O tempo se tornara
eterno, e a mudança, embora possível, não traria mais do que a recorrência. O horizonte de
possibilidades era limitado: o mundo sempre fora e sempre seria da forma como ele é. Nesse
ambiente nasceu a Teoria Geral do Estado, que associava monarca, Deus e a lei de modo a
proteger o “estado”, o domínio da eternidade, de seu outro, entendido vagamente enquanto
contingência e a fortuna, os infiéis e os sentimento que tirassem da razão as rédeas da vida.
63
A era Clássica substituiria as relações de similitude medievais transformando-as em
delírios de mentes doentias, ou atrasadas, como na figura de Don Quixote de la Mancha
(FOUCAULT, 1987). O princípio regulador da episteme clássica, ao contrário de sua
antecessora, seria a diferença e não mais a identidade. Saber, na época da mathesis cartesiana
era identificar não mais aquilo que fosse semelhante entre as coisas, mas seus respectivos
graus de diferenças, qualitativas ou quantitativas de modo a construir uma grade de
ordenamento, uma taxonomia que as descrevesse em exaustão. Conhecer era buscar uma
partícula indivisível a partir da qual toda a ordem taxonômica se daria com base nas
diferenças. No mundo político, também sujeito às leis da mathesis, essa partícula fora
identificada na soberania, que, outrora imersa na confusa sobreposição jurídica medieval
agora se tornara indivisível.
Esse cenário se aproxima mais da conjuntura em que vivemos, mas não havia nada
próximo de um sistema internacional que sobrepujasse as partes que o compunha, somente
um conjunto de Estados ordenáveis. O que fazia destas unidades políticas objetos do
conhecimento era a partícula indivisível da soberania - um dualismo auto-referente entre Rei e
corpo político – que se tornava cognoscível através da análise de interesses. A cada estado,
com base em seus atributos econômicos, geográficos e sociais, era atribuída uma máxima
atemporal, que conectasse passado, presente e futuro constituindo sua essência. Através do
ordenamento desses interesses particulares era possível identificar um ordenamento
hierárquico valorativo entre os diversos Estados absolutistas. Para além da taxonomia de
Estados , não havia possibilidade de conhecimento. A alteridade se configurara por sobre as
porções territoriais, mas o teor universalistsa da mathesis permitia pressupor que cada
partícula se comportasse de maneira igual, assimilando, pois, a possibilidade de previsão do
comportamento.
É só através da episteme moderna que a soberania se configura na relação dialética
entre doméstico e internacional, como uma membrana que ao mesmo tempo separa e confere
existência a esses dois reinos políticos. A partir dos séculos XVII e XVIII a humanidade
concebe a existência de forças para além da simples observação do conhecimento clássico. Ao
invés de simplesmente construir o conhecimento por meio do ordenamento diferencial entre
as coisas mundanas, passa a ser preciso compreender as forças ocultas que gerem esses
mesmas coisas, muitas vezes fora de sua compreensão imediata. Ao mesmo tempo, o homem
passa a ser duplamente sujeito de cognição e objeto cognoscível, trazendo para si a soberania
que uma vez residira sobre Deus, e posteriormente no monarca. Através do conceito de
64
vontade geral, a justificativa para a existência do estado é transportada à noção de nação,
configurando o estado-nacional soberano, cujo outro é o domínio “entre as nações” do qual,
dada natureza reflexiva da soberania, aquele necessita para existir. No seu outro as promessas
da modernidade não podem ser cumpridas.
A mais impressionante característica da base epistemológica moderna, no entanto, é a
historicidade com a qual todas as coisas mundanas são vislumbradas. Tudo possui uma
história, e essa história permite a construção das grandes narrativas. O passado deixa de ser
um reservatório de exemplos empíricos, o conjunto de todas as coisas possíveis e o presente
se emancipa rumo a um futuro indeterminado. Natureza e sociedade são divididas em torno da
história: da inação à capacidade de construção e reconstrução das coisas pelo homem, sujeito
que se torna ator do conhecimento através da crítica Kantiana da razão pura. Nesse contexto, é
possível finalmente conceber o sistema internacional: o conjunto de leis e relações
subjacentes que determina ou compele as unidades; o todo orgânico-funcional maior que a
soma de suas partes. Assim, restam ao homem moderno duas possibilidades: ou continuar
vivendo no conflito criado pela dialética da soberania – a possibilidade de progresso e da
vontade geral espacialmente delimitadas por sua ausência num internacional anárquico – ou
utilizar de sua capacidade criadora no tempo para fazer valer o conceito universal de
humanidade, fruto da ascensão do homem ao centro do universo.
2.2.5 Campbell
Campbell (1998) analisa o papel da ameaça na formação e reprodução de uma
categoria que, com a virada construtivista, tornou-se prolífera nas RI: a identidade estatal. Em
particular, seu estudo perpassa a construção de uma identidade “americana”, um construto
talvez mais abstrato do que qualquer outro26
, ao longo da história. Para Campbell, essa
concepção arbitrária do que seria o “ser americano”, essa delimitação espacial de uma
comunidade política específica dependeria de uma ameaça a qual seria contraposta, de um
risco frente ao qual seria necessário. Em sua “natureza”, o estado enquanto forma de
organização política precisaria justificar sua razão de ser, afinal, o processo fictício de cessão
de soberania individual quando do contrato social hobbesiano não poderia ter sido em vão.
Essa justificativa se daria através de um mecanismo muito eficaz: o medo.
26
Campbell embasa seu argumento de maior arbitrariedade da identidade americana por não haver uma América,
sob a figura de um estado, à qual esta representaria, em contraposição à identidade francesa, inglesa ou
espanhola que diriam respeito à França, Inglaterra e Espanha respectivamente.
65
Dizer que o estado se legitima pelo medo não é de maneira alguma traduzir o
pensamento maquiavélico de um príncipe que devesse ser temido (MACHIAVELLI, 2002)
mas ao contrário, remeta à construção do medo em si, de um algo a ser temido em razão do
qual o estado teria se erguido, em sua função máxima de proteção. Se não houvesse nada a
temer, não haveria por quê para tamanho dispêndio de recursos na construção do aparato
estatal. Portanto, a lógica dessa instituição que, assume-se, deseja perdurar no tempo é a de
construção e constante reafirmação de seu contraposto, do perigo do qual defende sua
população, seu “povo”. Tradicionalmente, esse perigo, essa ameaça poderia parecer não mais
do que uma obviedade, algo que sempre esteve presente, independente da mente humana ou
da época histórica. Poder-se-ia argumentar que o convívio social sempre houve, que o ser
humano sempre se organizara para se defender do que o ameaçava, desde animais a outros
grupamentos humanos. Nesse sentido, a “comunidade” seria quase que uma necessidade
biológica de um ser que sozinho na natureza seria ridiculamente frágil (HARLAND, 1987).
Essa rationale, todavia, se baseia numa distinção negada pelo Pós-Estruturalismo.
Dizer que o perigo é exterior, que é de fato objetivo, é, pois, conceber uma dimensão que seja
puramente exterior e objetiva. Embora Campbell vislumbre perigos que assim o sejam, como
doenças, por exemplo, nem mesmo estas escapam à construção social e à interpretação. A
dimensão dada a problemas aparentemente naturais, por exemplo, por ventura foge
completamente à realidade objetiva. Nos Estados Unidos da América, por exemplo, a AIDS, a
imunodeficiência transmitida pelo vírus HIV, é compreendida como o maior problema de
saúde pública pela população. Essa percepção parece ser indiferente, ao fato de que a gripe, o
alcoolismo e o suicídio matem mais em termos absolutos (cada um deles) do que o HIV. A
definição do que é perigoso pode sempre ser arbitrário.
Essa definição, esse exercício arbitrário de definição de um algo que se deve temer,
não é dissociado da própria definição de quem deve temê-lo. Em outras palavras, a criação do
perigo é parte fundamental da dinâmica da construção da identidade estatal. Ao longo de
Writing Security (1998), Campbell evidencia uma América não pelo que ela é, mas pelo que
aprendera a temer ao longo de sua existência. Nativos, súditos da coroa britânica, espanhóis,
mexicanos, comunistas e usuários e traficantes de drogas foram todos fundamentais para a
continuidade do ser americano ideal, de sua identidade normativa. Por diferentes períodos
históricos serviram de pontos de contraposição a partir dos quais se fazia possível pensar uma
América branca, livre, puritana, democrática e sadia. Naturalmente, isso nada tinha de natural.
66
Todos as comunidades listadas, e outras mais, foram construídas enquanto um “outro” e
relegadas para fora do espaço identitário americano.
A essas comunidades construídas como o “outro” americano foi justamente atribuído a
função da ameaça, do perigo ao qual a América deveria se precaver, resistir, e jamais
sucumbir. Ilustrativa, nesse sentido, é a figura do “forte Apache”, uma fortaleza para dentro
da qual o modo de vida WASP estaria protegido da selvageria dos nativos pagãos não
civilizados. Transpondo por analogia o “forte apache” ao período de 1960 a 1980,a famosa
Guerra Fria, é possível observar um fenômeno semelhante na doutrina da deterrence nuclear
entre as super potências. O estado norte americano altamente militarizado teria se construído
enquanto uma espécie de fortaleza contra o perigo iminente do comunismo sino-soviético.
Que esse perigo era real, não havia dúvidas. E como usualmente acontece com aquilo ao qual
são atribuídas as características de real, exterior e objetivo, a ameaça soviética foi tomada
como dada, tida como indiscutível, inclusive para a teoria das RI. A idéia de guerra fria foi
cristalizada nas interpretações de um embate entre o Ocidente e Oriente, entre capitalismo e
socialismo. Comuns a essas interpretações é a não dissociação da dimensão discursiva e não-
discursiva, da teoria e da prática.
David Campbell, através de uma perspectiva foucaultiana, propõe uma nova
interpretação da Guerra Fria, não como período particular sem precedentes, mas como um
ponto num contínuo de reprodução de uma identidade americana. Sob esse ângulo, a história
dos EUA transcorreria pela constante oposição de um “nós” unificado a um “outro”
radicalmente oposto. A guerra fria, assim concebida, não acabou nem poderia acabar. A
oposição a uma ameaça externa, fator constitutivo do “nós” americano, seria sua própria
condição de possibilidade, sem a qual perderia seu sentido. A queda da União Soviética não
significaria mais do que a necessidade de encontrar uma nova ameaça, um novo inimigo.
Necessidade esta talvez satisfeita com o discurso da “guerra contra as drogas” do governo G.
H. Bush. (CAMPBELL, 1998).
Ao questionar o conceito de identidade estatal como anterior à prática, como algo que
de alguma forma a orientasse, o Pós-Estruturalismo das RI desafia as bases sob as quais a
política externa é pensada na disciplina. De modo geral, para que se tenham identidades
fixadas que orientem o comportamento, e mais importante, que sejam exteriores ao discurso, é
preciso assimilar completamente a distinção entre inside/outside. Essa distinção advêm da
prática comum ao main stream em atribuir prioridade temporal ao ambiente doméstico frente
o internacional (WALKER, 1993; CAMPBELL, 1998). Isso quer dizer que, tradicionalmente,
67
as RI pensam o outside como uma junção de diferentes insides plenamente dissociáveis e
independentes. Nesse puro exemplo de lógica individualista, as unidades comporiam o todo
por meio de um processo de interação contínua. Assim sendo, a política externa não poderia
ser outra coisa que não a criação de “pontes” entre Estados distintos, sem quaisquer conexões
a priori. A construção discursiva da identidade, introduzida pela chamada abordagem
interpretativista, impossibilitaria esse tipo de conclusão. No geral, porque trabalha com uma
filosofia da história completamente distinta.
Compreender a política externa como o esforço de conexão entre domínios separados,
ou como a resposta à estímulos externos ao estado depende necessariamente de uma
interpretação histórica particular: A plena superação da igreja pelo aparato burocrático secular
do Estado. (CAMPBELL, 1998). É fácil entender o porquê da Europa, antes um continente
unificado sobre a cristandade, ser vislumbrado como um mosaico de Estados particulares, de
domésticos dissociáveis. Ora, a resposta jaz na queda dessa cristandade, na completa
secularização da política que reorganizaria o espaço europeu no pós-westfalia. A dominação
romana havia acabado e o que lhe seguira, antes de qualquer continuação, era sua total
negação. Com os processos de racionalização e de secularização, a “morte de deus”
propriamente dita, espaços que não existiam passaram a existir, como algo denominado
Espanha, Rússia, Inglaterra, Itália e Alemanha. Onde só existia o Império Romano, foram
criados diferentes insides que, a rigor, possuíam pouco, ou nada em comum, e não se poderia
esperar o contrário. Assim seria criado o ambiente internacional, com uma forte ruptura com a
ordem que lhe antecedera. Restaria, então, à política externa, criar “pontes” entre aquilo que a
modernidade seccionara.
Esta interpretação, todavia, representaria uma mera caricatura do que realmente
aconteceu (CAMPBELL, 1998). Ao invés da superação plena da ordem religiosa, o processo
de instituição do estado se deu através da cristandade, em concomitância com a secularização
gradual dos assuntos concernentes à Santa Sé. No geral, as alegorias do inferno e dos
demônios foram substituídas pelas alegorias da anarquia, da guerra, da morte e da barbárie,
permanecendo a prática do “evangelismo do medo”. A coesão social de um mundo sem Deus
viria majoritariamente da periculosidade desse mundo. Os Estados , dessa forma, delimitariam
suas identidades internas, seus insides através de um discurso do medo, para o qual o “mundo
lá fora”, inacabado, seria caótico e ameaçador.
Esse tipo de construção identitária, una, homogênea e absoluta, tal como as epistemes
foucaultianas, pressupõe necessariamente uma política de exclusão. Novamente, delimitar
68
algo é delimitar aquilo que esse algo não é. Em termos da construção de uma identidade
coletiva, isso transcorre por um processo de dupla exclusão. O passo que é definido um
inside, em oposição a um outside, elementos conflitantes do inside, da própria concepção de
“nós” são conectados ao outside, ao perigo externo que ameaça a identidade. Na história
americana, grupos marginalizados como negros, homossexuais, trabalhadores e mulheres
foram associados ao comunismo e às drogas. Durante a guerra fria, o homossexualismo e a
feminilidade foram atrelados ao comunismo. A América precisaria ser uma nação forte e viril,
caso contrário sucumbiria às mazelas socialistas. (CAMPBELL, 1998). Planos de saúde e
medidas de assistência social eram taxados de “aberrações comunistas”. De forma
semelhante, acreditava-se, no período da “cruzada” contra as drogas de George H. Bush, que
jovens negros de baixa renda seriam mais propensos ao uso de cocaína, embora as estatísticas
apontassem exatamente o contrário.
Ainda, de acordo com a abordagem “interpretivista”, existiriam dois tipos de política
externa. O primeiro, denominado foreing policy, corresponderia à própria prática de formação
das identidades. nesse sentido mais sociológico, a política externa representaria a delimitação
de um “nós” em contraposição a um “eles”, conectando elementos “subversivos” a identidade
específica que se pretende delimitar, à ameaça externa. Ela compreenderia, pois, toda a
dinâmica da dupla exclusão. O segundo tipo de política externa seria a Foreing Policy , a
prática de pronunciamentos oficiais e execuções governamentais, uma política pública
formulada em nome de um público que nunca está presente. O que na visão tradicional
responderia pela interconexão entre ambientes domésticos distintos, funcionaria mais como
ferramenta de (re)construção das fissuras que ela mesmo pressupõem. A política externa
oficial serviria à reafirmação das foreing policies previamente estabelecidas, assegurando com
sua continuidade no tempo. O que supostamente deveria construir “pontes” entre os povos,
seria aquilo que sistematicamente os manteria afastados. Ao final, faria com que uma
arbitrariedade parecesse natural, fixando em um determinado ontos a fluida construção das
identidades.
2.2.6 Hansen
Hansen (2006) aprofunda a análise da formação indentitária de grupos políticos e sua
relação com as práticas da política externa estatal. Em primeiro lugar, a autora define o caráter
relacional do estabelecimento e da reprodução da identidade ao longo do tempo. Dizer o que
69
alguma coisa é, que características possui, é, automaticamente, dizer o que ela não é, negar-
lhe um sem número de outras características. Simplificadamente, um “eu” que existisse
sozinho, sem qualquer “outro”, um “não-eu” ao qual aquele se referiria, faria pouco, se não
nenhum sentido. Definir a identidade é mais uma prática de delimitar um terreno (sob o
perdão da metáfora territorial moderna) e diferenciar aquilo que está dentro do que esta fora.
O ser algo necessariamente remete ao seu oposto, ao que não se é. Ao tomar parte na virada
lingüística saussuriana, Hansen concebe a identidade como algo relacional, formada por uma
série de conexões e superposições entre diferentes signos (FIG. 3).
Figura 3- Conexão e diferenciação da identidade
Fonte: adaptado de HANSEN, 2006, p.20
Ao contrário de Alexander Wendt (1999) e outros teóricos ditos racionalistas, Lene
Hansen (2006) e Campbell (1998) não entendem a identidade como algo passível de posse.
70
Para construtivistas e liberais os Estados teriam certas características identitárias que seriam
anteriores à interação per se. Em Social Theory of International Politics (1999) Wendt
descreve um suposto primeiro encontro entre ego e alter, entes completamente distintos, cujas
existências até então independiam uma da outra. Esse exercício de abstração através do qual,
segundo o autor, a intersujetividade é criada e o mundo social é dotado de sentido
(ZEHFUSS, 2002), ilustra a separação entre o eu e do outro concebida pelo main stream de
RI. No fim, ego e alter só começariam a se relacionar depois de já terem se constituído
enquanto eu e outro num processo tanto anterior quanto necessário à interação. Não há a
construção relacional da identidade nos moldes pós-estruturalistas, só possíveis relações de
causalidade exercidas por uma qualidade inerente aos atores (suas identidades) sobre seu
comportamento. Para esse pensamento tradicional, o comportamento democrático de
determinado ator não construiria sua identidade enquanto democrata, mas seria antes causada
por ela. O objetivo da pesquisa passaria a ser a descoberta dos fatores ideacionais que
exercessem alguma influência sobre padrões comportamentais.
O Pós-Estruturalismo nas RI, como visto, transforma essa relação. O self passa a
depender do outro, na medida em que a própria construção da identidade é compreendida à
luz daquilo que é negado. Hansen exemplifica os processos de conexão e superposição dos
signos no exemplo do que fora considerado ser uma mulher até muito recentemente no século
XX. Com efeito, a feminilidade era associada às características de fragilidade, emotividade,
maternidade e inferioridade intelectual. Essa correlação de termos era contraposta, e dai
retirava seu sentido, ao atrelamento da masculinidade para com a força, a racionalidade, a
paternidade (pater familias) e superioridade intelectual. Essa superposição de signos fazia do
homem um ser naturalmente excelente para a política, enquanto a mulher era considerada
incapaz. Nesse sentido, o feminino seria construído como oposto ao masculino, seu contrário
extremo, e ao mesmo tempo desvalorizado perante este.
Transpondo o raciocínio para o universo dos Estados, essa construção antagônica teria
ocorrido de maneira semelhante nos casos de Milosevic e da segunda guerra do golfo. Na
Guerra da Bósnia, a comunidade de Estados do oeste europeu freqüentemente se valia do
termo “Bálcãs” para designar o conflito na região. Implícita, e por vezes explícita na idéia de
Bálcãs estavam uma série de qualidades diretamente opostas ao que era entendida como a
identidade européia. Ao povo balcânico eram associados termos como sub-desenvolvidos,
bárbaros, violentos e passionais, enquanto aos europeus era atribuídas as características
opostas de desenvolvimento, civilidade, pacifismo e racionalidade. No geral, essa construção
71
identitária servia para caracterizar a guerra como algo além de qualquer solução política27
passível de ser realidade pela Europa ocidental. Ela era fruto de um ódio irracional acumulado
pela população local ao longo de mais de meio milênio (HANSEN, 2006). Nesse sentido, o
construto “identidade” também possuiria considerável valor político, apresentando a guerra
como única maneira viável de dar fim ao genocídio.
Mas o chamado “outro radical” não e a única possibilidade sob a qual se edificaria a
identidade de ego. Os processos de correlação e diferenciação poderiam tomar, a princípio,
um amálgama de alters como pontos de partida, possuindo cada um deles diferentes graus de
oposição às qualidades atribuídas ao self. Não seria necessário a construção do “eu”, em
abstrato, uma oposição radical, total para com o “outro”. Hansen apresenta a possibilidade de
um “espectro de alteridade” no qual as qualidades do outro28
poderiam inclusive se
assemelhar às de ego. Um exemplo frutífero dessa relação é a construção da identidade
iraquiana pela política externa americana quando da Segunda Guerra do Golfo. O Governo
Bush se valeu de três identidades diferenciadas para a legitimação da invasão: os Americanos,
o Iraque opressor e o Iraque oprimido. A América congregaria os valores de liberdade,
democracia de maneira análoga à experiência européia. Ao Iraque opressor, personificado na
figura do ditador Saddan Hussein, foram associados os signos contrários de tirania,
aprisionamento, tortura enquanto ao Iraque oprimido, o povo iraquiano, foi atribuída uma
identidade mais próxima à americana.
Não é somente possível a construção identidade sobre um outro mais brando, como
este não necessariamente precisa ser espacialmente situado. De acordo com Wæver (WÆVER
apud HANSEN, 2006) A União Européia (UE) teve sua identidade constituída não em relação
a um “outro” físico, mas a um self temporal que lhe era contrário. Uma Europa unida fora
pensada a partir dos horrores da desunião das primeira e segunda grandes guerras. No geral,
Hansen sistematiza a análise de discurso pós-estruturalista nas RI, sofisticando a abordagem
da construção identitária apresentada por Campbell.
No próximo capítulo serão analisados os trabalhos de Walker, Campbell e Bartelson à
luz do historicismo-crítico com o qual tais autores operam suas críticas. Walker, porque
trabalha puramente no campo da reflexão teórica, tornando o exercício de evidenciar seu
conservadorismo histórico mais difícil do que o normal. Campbell, porque se utiliza da
perspectiva histórica na teorização das relações entre identidade e política externa, um tema
27
Entendendo o exercício da guerra como o cessar da política. 28
No fim, alter, o outro nem sequer precisaria dizer respeito a alguma coletividade humana. Animais, Deuses,
Espíritos ou demônios funcionariam igualmente enquanto pontos de oposição para a construção de um ego
unificado.
72
comum ao main stream teórico das RI que o Pós-Estruturalismo visa desconstruir. Bartelson,
por fim, por ser aquele que expôs explicitamente uma proposta genealógica, não poderia ser
deixado de fora da desconstrução das condições de possibilidade dessa forma de saber
histórico.
73
3 O IMPERATIVO CONTEXTUALISTA
Distance in time prompts a mental illusion just as distance in space prompts a
sensory illusion. The contemporary does not see the necessity of that which comes
into existence, but when century lies between the coming into existence and the
viewer – then he sees the necessity, just as the person who at a distance sees
something square as round. (KIERKEGAARD, 1985, p. 79)
Nos capítulos anteriores discorreu-se acerca das diferenças entre a perspectiva
sincrônica (estática) do movimento estruturalista das ciências sociais e a perspectiva
diacrônica (mutável) do movimento pós-estruturalista. No que tange à disciplina de RI, é
possível vislumbrar essa diferença por meio da contraposição de estudos “estruturalistas” a
estudos “pós-estruturalistas”. Ao contrário de Walker, Weber, Campbell e outros pós-
estruturalistas, que entendem os fenômenos internacionais enquanto historicamente situados e
passíveis de mudança, o chamado Realismo Estrutural de Waltz advoga por um sistema
internacional que, a rigor, geraria na época contemporânea os mesmos condicionantes à ação
política do que nos tempos bíblicos (WALTZ, 1979).
Esse pressuposto de imutabilidade sistêmica do Realismo estrutural, de “eterna
recorrência”, seria tão forte que justificaria a aplicação dos princípios de funcionamento do
sistema internacional a qualquer época histórica, do antigo Império Assírio ao Ocidente dos
séculos XIX e XX, da China Antiga ao Império Maia e à Grécia Antiga (KAUFMAN;
LITTLE et al., 2007). A “estrutura da política internacional permanece altamente constante,
padrões recorrentes e eventos se repetindo indefinidamente”(WALTZ, 1979, p.67-68,
tradução nossa).29
Aos princípios ordenadores dessa estrutura, sobretudo à distribuição de
capabilities, é atribuída, pois, uma característica que transcende a história, tornando a
passagem do tempo uma variável pouco frutífera para os fins da análise.
Nesse sentido não seria absurdo compreender o movimento pós-estruturalista nas RI
como um movimento de volta ao estudo histórico, de volta à utilização da reflexão histórica,
outrora abandonada pela “síntese neo-neo” e pela “revolução behaviorista” (NEUMANN;
WÆVER, 1997). Para o Pós-Estruturalismo não é suficiente que se façam análises lógicas de
diferenças espacialmente condicionadas, é preciso que se identifiquem descontinuidades
temporais, diferenças semântico-epistemológicas entre o contexto histórico no qual o
fenômeno ocorre e o presente. Diferenças que uma análise sincrônica não seria capaz de
vislumbrar. Essa (re)introdução do perspectivismo histórico, contudo, traz em si mesma, uma
29
The texture o International politics remains rightly constant, patterns recur, and events repeat themselves
endlessly.
74
série de pressupostos e assunções “não problematizadas”, próprias à historiografia que devem
ser esclarecidas. Se o Realismo Estrutural trata o conceito de “soberania” enquanto
inquestionáveis, como os pós-estruturalistas apontam, estes também desconsideram qualquer
teor problemático quanto a um conceito em particular: o conceito de história.
Em seus primórdios30
o saber histórico era considerado essencialmente uma arte de
erudição. Num tempo anterior ao século das luzes, a então considerada arte de conexão dos
homens com seu passado era levada a cabo majoritariamente por antiquários, que buscavam
vestígios arqueológicos ou/e textuais de eras antigas. Desse aparentemente supérfluo
exercício, considerado enquanto tal por razões discutidas mais adiante, fora extraído um
conceito fundamental ao fazer histórico dos séculos XIX e XX, o conceito de “fato histórico”.
(HOOPER, 2007). Em seu âmago, essa ferramenta conceitual diria respeito aos
acontecimentos da ordem de um real, de um verdadeiramente acontecido. Por mais incrível
que possa parecer a um(a) homem/mulher contemporâneo(a), no tempo em que “aquilo que
mais poderia se aproximar do que entendemos por verdade” era delegada aos eruditos
responsáveis por antiquários, o homônimo do moderno conceito de história tinha por maiores
preocupações questões retóricas à questões epistemológicas (HOOPER, 2007). Em outras
palavras, a separação que gradualmente aprendemos entre história e literatura, separação
cunhada sobre aquilo que chamamos de “realidade” em oposição a uma suposta “ficção”, era
sob todos os aspectos inexistente. Histórias eram simplesmente estórias.
Não obstante, essa comunhão inicial fora gradativamente se dissolvendo na medida em
que o então “gênero histórico”, como o compreendia Voltaire (BARROS, 2011c), se deparava
com as demandas de cientificidade da razão iluminista. A logocracia ocidental, em sua busca
por formas de conhecimento absolutas que sobrepujassem saberes inferiores, transformara a
questão do real em algo efetivamente problemático31
. O que seria real e o que seria ficcional,
a oposição que nos permite distinguir entre literatura e história hoje, a partir de definições
simplistas de ambas, estava longe de ser claro quando da época de uma arte histórica. Quando
a faculdade do pensar era ditada pelos chamados universais escolásticos, a verdade não era
“feita de objetos específicos que podem ser acessados através dos nossos sentidos”
(HOOPER, 2007), ao contrário, ela era fruto de um processo sistemático de abstração. Nas
30
Ou ao menos naquilo que historiadores consideram como sendo a “origem” pré-científica da história
(HOOPER, 2007). 31
Não que o problema do real, do “verdadeiro”, segundo Barros (2011c) fosse algo particular à historiografia -
no sentido de fazer histórico estritamente moderno. Desde Heródoto, supostamente haveria uma preocupação
com as coisas como elas realmente aconteceram. Essa preocupação, todavia, se relacionava mais com a
idoneidade da pessoa do “historiador” do que propriamente da forma epistemológica como a concebemos.
75
palavras de Tomás de Aquino (1999) “aquilo do que o intelecto adquire certeza é certamente
mais inteligível”. Nesse mundo as figuras de “anjos”, ou de “Deus”, entes maximamente
inteligíveis e, por conseguinte, maximamente separados dessa matéria que provê a certeza
positivista seriam o que haveria de mais real ou verdadeiro. Algo não mais possível num
mundo pautado pela racionalidade empírica, para o qual o valor de verdade de proposições se
iguala a sua referência para com um mundo exterior e objetivo.
Essa nova “realidade”, ou nos termos kuhnianos, “paradigma” que se inicia com as
Grandes Revoluções32
influencia na formação e institucionalização da disciplina moderna da
história. Nesse processo de definições das fronteiras disciplinares a história se separa da
literatura e da filosofia da história subjetiva de Kant e Hegel (BARROS, 2011c) e busca, para
reforçar tal separação, reivindicar seu caráter científico nos conceitos de arquivo, fato
histórico e evidência (HOOPER, 2007). Assim, os Século XIX e XX retrocedem ao fazer
histórico dos antiquários, primando em sua “ciência normal” (KUHN, 1970) no afazer diário
do historiador, pela verdade acima de tudo, pelo passado como este realmente aconteceu.
A instituição do chamado modelo documental, ou positivista (BARROS, 2011b) não
foi nada fácil. Assumir as pretensões científicas do século das luzes representou, à agora
disciplina da história, a assimilação de tensões paradoxais de difícil resolução. O caráter
científico ao qual o modelo documental se atrelara demandava necessariamente a formulação
de leis gerais. Ora, se há uma razão de ser da “ciência” como a concebemos, esta só pode ser a
possibilidade que lhe é intrínseca de previsão dos fenômenos ao qual o homem/mulher este
sujeito(a), e por definição, não controla (ainda). Tal característica se transfigura num
“paradoxo”, ou ao menos num incomodo significativo, quando somos lembrados de que a
história é um saber baseado no particular. Desse modo, a discussão geral de
institucionalização da história como disciplina acadêmica “desafiava o conhecimento
histórico - que se pautava no particular- a formular leis e regras gerais” (HOOPER, 2007,
p.49).
Embora de fato o paradigma do “modelo documental” e do “arquivo”, para o qual o
metier do historiador consistiria, de acordo com Dilthey (apud HOOPER, 2007), em uma
espécie de “dupla transparência” 33
, tenha se constituído enquanto paradigmático através dos
trabalhos de Burkle, Taine, Renan e Condorcet (BARROS, 2011b), nem toda comunidade
científica se satisfizera com ele. Imaginar que ambas as fontes primárias e secundárias
32
Para Fasolt (2004), A Revolução Histórica e as Revoluções Burguesas do sec. XVIII. 33
Na “dupla transparência” assumida pelo modelo documental positivista ambas as relações entre texto-verdade
e historiador-texto se dão automaticamente sem nenhuma perda de sentido para além de anacronismos e
deficiências.
76
possuiriam uma espécie de relação de transparência para com a “realidade” não agradara à
chamada escola historicista de Chladenius, Dilthey, Herder, Droysen e Humboldt (HOOPER,
2007; BARROS, 2011b). Para esses pensadores, denominados historicistas - ou no caso de
Chladenius, proto-historicista ou romancista - entre o texto e a “verdade” haveria um hiato
passível de superação a partir de uma lógica interpretativa, da lógica hermenêutica. Tal
metodologia interpretativista trabalha com a máxima de que o historiador, para compreender a
verdade por trás do texto, deveria tentar ao máximo mirar seu olhar para aquele/aquilo que
observa, do observado-observador. Esse método responderia por uma forma de compreensão
dos fenômenos vividos que, a rigor, significaria “colocar-se na posição do outro” (HOOPER,
2007, p.63), uma posição verdadeiramente cômoda para aquele que estivesse buscando a
verdade. É através de algo próximo à essa lógica historicista que Gatterer estipulou os
critérios segundo os quais qualquer de seus contemporâneos poderia compreender a
verdadeira visão possuída por Tito Lívio da Roma antiga. Para o autor, era necessário que se
fosse algo como um professor universitário que vivesse sob uma espécie de regime político
misto para que se escrevesse corretamente a história do verdadeiro Lívio (KOSELLECK,
2006). História, nesse sentido, se assemelharia ao máximo esforço para se vivenciar o vivido
que se desejasse contar. Dever-se-ia, para a tradição historicista, experienciar o “presente” de
um passado que se desejasse trazer de volta ao presente.
Embora o modelo documental positivista nunca tenha sido capaz de resolver o
problema do lugar reservado ao historiador na obra histórica, a tensão
subjetividade/objetividade que simultaneamente responderia pelas condições de possibilidade
e impossibilidade de uma história científica, o “arquivo” aparentemente possui maior apelo
sobre a comunidade científica do que a interpretação. O “gosto dos historiadores pelo
empírico” (HOOPER, 2007, p.71) talvez tenha feito da proposta historicista um método
marginal no interior da disciplina. Contudo, mesmo que marginalmente utilizado, por mais
que não tenha alcançado status de ferramenta “paradigmática”, a vertente hermenêutica trouxe
de fato contribuições para a historiografia contemporânea34
. A mais importante das
contribuições talvez tenha sido a crítica documental (BARROS, 2011b), a introdução de
preocupações semânticas, a pressuposição, ainda que “conservadora”, da possibilidade de
mudanças temporais de sentido, movimento sem o qual não se desafiaria o caráter universal e
teleológico da historiografia científica. Na medida em que propunha a maior singularização
34
De acordo com Hooper (2007, p.70) “Um estudo de filiação historiográfica mostra que a hermenêutica está
embutida nos principais autores e correntes da historiografia contemporânea. Sendo afirmada ou recusada, a
hermenêutica marca a sua presença.”
77
dos eventos históricos, a hermenêutica se desfazia do “véu” que encobria e maquiava a
presença de um homem em uma obra. Para a tradição historicista, o historiador, uma
existência incômoda ao modelo documental, é compreendido como um criador em si, que
através do processo de interpretação (re)constrói uma história a ser contada. A hermenêutica,
aproxima arte e ciência, literatura e história (HOOPER, 2007).
Seria possível continuar descrevendo as diferenças que fazem do modelo positivista e
da hermenêutica/historicismo formas antagônicas de construção do conhecimento histórico.
No entanto, tal estratégia não seria, em nada, interessante aos objetivos do presente trabalho.
Por mais que haja diferenças significativas entre a busca por leis gerais objetivas e sua
assumida impossibilidade (conseqüências imediatas da vinculação aos modelos documentais e
hermenêutico, respectivamente), elas não passam de diferenças específicas. Estas, dado sua
condição, não impedem o ordenamento da história documental e historicista a um só gênero: o
gênero histórico. Subordinadas ao “grande paradigma” da história, positivistas e historicistas
compartilham de um mesmo axioma.
Ambos têm como condição comum de possibilidade a distinção entre passado e
presente (FASOLT, 2004; HOOPER, 2007), fruto da compreensão vetorial de uma
temporalidade progressiva (BARROS, 2011c). Por mais óbvia que possa parecer, tal distinção
é imprescindível a toda forma de conhecimento histórico. A noção de tempo subjacente à essa
dicotomia pressupõe duas dimensões diferentes: o “ontem” e o “hoje”, o “antes” e o “agora”.
A história - moderna, sempre moderna - divide a realidade em duas porções: um passado que
se esta ausente e um presente do aqui vivo. A história inscreve na experiência um corte: entre
a forma como as coisas eram e a forma como as coisas são (FASOLT, 2004). Tanto a
abordagem historicista quanto a positivista necessitam de um passado ausente, diferente do
presente do qual falam, que seja efetivamente falado. Ausente, para que se justifique buscá-lo.
Diferente, para que não seja redundante dizê-lo.
Falar da História, pois, é falar de uma maneira particular de lidar para com esse
passado. De acordo com Fasolt:
Nossa atitude para com o passado é governada por três princípios:
1. O passado se foi para sempre;
2. Para entender o sentido de um texto, deve-se primeiro colocar esse texto no
contexto de seu tempo e espaço;
3. Não podes dizer aonde vais se não sabes de onde vens.
78
[...] Tão óbvios que não são sujeitos à dúvida, mas se fundamentam em pressupostos
sobre o tempo e a eternidade, a verdade e o sentido, liberdade e responsabilidade que
não são nem um pouco óbvios. (FASOLT, 2004, p. ix, tradução nossa).35
Dentre as três principais maneiras pela qual lidamos com aquilo que entendemos por
passado nos são particularmente interessantes as duas primeiras. O passado se foi para
sempre, e, portanto, é o reino da ausência, daquilo que, como dito, não está presente. Não se
pode vivenciá-lo ou experimentá-lo, ele se foi. O que quer que tenha “passado”, não está mais
aqui. Ora, a segunda proposição: “Para entender o sentido de um texto, deve-se primeiro
colocar esse texto no contexto de seu tempo e espaço.” (FASOLT, 2004, p. 9) poderia ser
entendida como uma decorrência lógica da primeira. O sentido, como tudo o mais pertencente
ao passado, pode igualmente estar ausente. Para verdadeiramente compreender um texto, é
imperativo que ele seja “colocado” em seu contexto, naquilo que o provê de sentido.
Esse imperativo metodológico: “Colocarás tudo no contexto de seu tempo” (FASOLT,
2004, p. 6, tradução livre)36
é o mais importante “mandamento” da historiografia (BARROS,
2011a), seu verdadeiro modus operandi (HOOPER, 2007). Aos que não se conformam à esse
princípio, advindo da característica “ausência do passado”, resta o perigo do anacronismo, do
desentendimento, da falha na obtenção da verdade, do passado como ele realmente foi. Esse
“imperativo contextualista” previne o historiador, ou qualquer estudioso que faça uso da
história, do risco de compreender o passado nos termos do presente (BARTELSON, 1995).
Um risco ao qual estão sujeitas ferramentas teóricas sincrônicas, tais como as do movimento
estruturalista. Nesse sentido até mesmo os conceitos que porventura possam parecer os mais
“puros”, os mais desprovidos de manipulação humana, mais “naturais”, correm o risco de
apresentarem sentidos temporalmente divergentes.
Mas em que o imperativo da contextualização diz respeito ao modelo positivista de
história? Tudo o que foi dito até aqui sobre a força do contexto assume o pressuposto
interpretativista da mudança de sentido ao longo do tempo. A mudança de sentido só se torna
um problema para aqueles que a entendem enquanto significativa. É difícil vislumbrar uma
ciência, preocupada com leis gerais e padrões macro-estruturais, como se pretende a história
positivista, estipulando de maneira hermenêutica que cada história deva ser entendida em seu
35
Our attitude toward the past is governed by three principles: 1. the past is gone forever; 2. To understand the
meaning of a text, you must first put in the context of its time and place; 3. you cannot tell where you are going
unless you know where you are coming from [...] So obvious that they are subject to no doubt. But they rest on
assumptions about time and eternity, truth and meaning, freedom and responsibility that are neither simple nor
obvious at all. 36
Thou shalt place everything in the context of its time.
79
determinado contexto. Uma dificuldade que elucida o paradoxo ao qual se sujeita o modelo
documental, a tensão da “generalização” a partir do particular.
A expressão “contextualizar”, todavia, diferente do que se possa ter dado a entender,
não serve somente aos propósitos de uma história que se preocupa com a interpretação do real
sentido dos textos com os quais trabalha. O que se denomina por contexto, pode igualmente
ser visto como aquilo que faz da história a história, aquilo que nos permite falar de uma só
história. Colocar em contexto é também prover de sentido eventos aparentemente desconexos
(HOOPER, 2007), é unificar múltiplas histórias sob o nome de História (KOSELLECK,
2006). O contexto também torna inteligível a unidade em meio ao caos, e como qualquer
exercício de abstração, faz o pensamento viável (STOCKER, 2006).
Talvez não seja em vão lançar mão de um exemplo. O objetivo científico da
formulação de leis gerais, ou em termos históricos, padrões de comportamento só se torna
possível quando existe algo uno sobre o qual estipular tais padrões. Dizer que algo é comum,
ou esperado de um conjunto de coisas x só é possível, invariavelmente, tendo sido observado
ou construído, o conjunto em si37
. Desse modo, da mesma forma que a tradição hermenêutica,
com Weber, se utiliza da contextualização para falar de um “sentido da modernidade”, sendo
a modernidade, no caso, nosso conjunto de experiências x, também o positivismo o faz, com a
diferença de sê-lo em uma escala mais abrangente, para poder falar de uma História com H
maiúsculo. A diferença entre múltiplas histórias e uma só História será esclarecida mais
adiante, no próximo capítulo. Nesse momento, basta que fique bem claro que, para os fins do
presente trabalho, todo conhecimento histórico moderno se utiliza da contextualização, seja
para mostrar diferenças e apontar anacronismos, seja para fazer da multiplicidade caótica algo
significativo.
Em suma, para ambas as abordagens da historiografia, se o objetivo é contar uma
história de maneira satisfatória, é preciso contextualizá-la. Mas esse caráter dualista do
contexto - capaz de ser invocado tanto para particularizações quanto para generalizações - que
possibilita afirmar que as abordagens estruturalistas, cuja análise se dá de forma sincrônica,
também levam em conta o “contexto” dos fenômenos analisados, parece incoerente com o uso
do termo na disciplina de RI. Como será visto logo abaixo, “colocar as coisas em seu devido
contexto”, para os estudiosos da política internacional38
, significa levar em conta sua devida
37
A construção de conjuntos ou gêneros taxonômicos pode ser compreendida através de um processo de
apagamento das diferenças específicas, como foi feito aqui no presente capítulo acerca dos dois modelos do
saber histórico, e pelo realçar das semelhanças. Aqui, onde anteriormente existiam dois tipos muito diferentes de
história, agora ha um grande conjunto História. 38
Ao menos para os chamados pós-estruturalistas.
80
historicidade. Sendo assim, por mais que historicizar não corresponda automaticamente a
contextualizar (HOOPER, 2007) o termo “contexto” será aqui significado dessa exata
maneira. Toda a vez em que nos referirmos à prática de colocar as coisas em seu devido
contexto, isso deverá ser lido como a compreensão de que tais coisas são históricas em sua
essência e, portanto, devem ser compreendidas à luz de seu tempo específico39
.
3.1 O Contexto em “Inside/Outside”
A sensação de que a vida e o pensamento político são severamente constrangidos
por horizontes intelectuais herdados é amplamente difundida. Essa sensação de
constrangimento é sentida no ceticismo popular para com ideologias políticas
estabelecidas. Ela caracteriza correntes influentes do pensamento social e político
contemporâneo. Ela encontra uma articulação particularmente interessante e
importante nas teorias modernas de relações internacionais.
Nesse contexto, as teorias de relações internacionais aparecem menos como
variações acerca da política de poder - indubitavelmente sua máscara mais popular -
do que como uma celebração de uma concepção historicamente especifica da
natureza, localização e possibilidade da identidade e comunidade política.
(WALKER, 1993, p.15, grifo nosso, tradução nossa).40
Esta é, a rigor, a razão de ser de Inside/Outside: International Relations as Political
Theory. Ao longo do restante do livro Walker busca de diferentes formas aquilo que propôs
nas primeiras quinze páginas, entender a disciplina de Relações Internacionais a luz do
contexto histórico no qual foi estabelecida.
Há maneiras distintas de se contar a estória das RI. É possível pensar em um eterno
debate entre realistas, aqueles que consideram o mundo como é, e idealistas, aqueles que
imaginam mundos possíveis. Pode-se contar a grande trajetória de uma tradição trans-
39
Esse movimento de igualação dos termos “contextualizar” e “historicizar” leva a um problema de definição
daquilo que chamamos de historiografia. Se o contextualismo é entendido enquanto a prática de compreensão
dos fenômenos a luz de seu tempo histórico específico, e se, igualmente, é a característica mais marcante daquilo
que entendemos como sendo a historiografia, então se configura um problema: a historia positivista, uma
abordagem que busca leis gerais e indiferente à passagem do tempo, não faria parte, a rigor, da Modernidade. Tal
afirmação poderia parecer absurda, uma vez que a “Modernidade” é usualmente (BEST; KELLNER, 1991;
BEST, 1995) associada às características da busca da verdade e objetividade, bem como de uma postura
científica positivista. Como então excluir da modernidade aquilo que alguns dizem ser uma de suas principais
características? Ora, uma forma particularmente elegante de fazê-lo seria considerar a modernidade não como
uma época, mas como um substrato epistemológico, como uma postura (BEST, 1995). Se a época moderna for
então subdividida nas eras clássica e moderna, então é possível pensar no historicismo como algo que aparece
somente com o advento da Modernidade. A análise sincrônica particular às abordagens estruturalistas seria,
talvez, vestígio de uma prática discursiva pré-moderna (BEST, 1995). Infelizmente, não cabe aqui discutir isso. 40
The sense that modern political life and thought is severely constrained within inherited intellectual horizons is
fairly widespread. This sense of constraint is felt in popular skepticism towards established political ideologies.
It characterizes influential currents of contemporary social and political theory. It finds a particular interesting
and important articulation in modern theories of international relations. In this context, theories of international
relations appear less as a set of variations on the theme of power politics - undoubtedly their most popular guise -
than as a celebration of an historically specific account of the nature, location and possibilities of political
identity and community.
81
histórica de pensamento realista, de pensadores que vão de Tucídides a Weber em busca da
compreensão da lógica da política de poder. É, por fim, provável que ao se falar das RI
enquanto saber autônomo, a fala tome como oposto a ciência política. Esta é a concepção de
Martin Wight uma concepção particularmente interessante aos propósitos de Walker. Wight,
em Why is there no International Theory?(1966) atenta para os perigos daquilo que denomina
a “analogia doméstica”, a não diferenciação entre os fenômenos domésticos e internacionais.
Todas as estórias, contudo, partem de um mesmo ponto, de um pressuposto em comum: a
existência de uma tradição das RI. Tradição que, na maioria das vezes envolve o nome de
Nicolau Maquiavel.
O trabalho de Maquiavel é constantemente citado como um clássico do pensamento
“realista” das RI (WALKER, 1993). Sua descrição do homem político, do governante é
geralmente idealizada como aquele que busca a política de poder ou o recurso a força em
detrimento de uma moral universalista. O Príncipe é tomado como um exemplo de
pensamento a-histórico, uma obra que revela as verdades do comportamento inter-estatal, as
relações tipo-lei de um ambiente internacional imutável. Em certos sentido, Maquiavel é
transformado em um dos “pontos arquimedianos” das RI, a partir do qual é possível legitimar
todo o status de disciplina autônoma. A busca pela generalidade científica do Realismo
Estrutural encontra na política maquiavélica uma espécie de evidência, de que, independente
aos nossos esforços, o internacional será sempre o domínio da recorrência (WALTZ, 1979).
Mas dizer que o pensamento de Maquiavel se reduz a isso nada mais é que uma
caricatura (WALKER, 1993). O “fundador” da ciência política (GOODIN; KLINGEMANN
et al., 1998) construiu um pensamento muito mais complexo do que qualquer tentativa de
defini-lo como uma espécie de “proto-Realismo” faria transparecer. Maquiavel não é
simplesmente um teórico da política de poder, “ele propõe questões sobre a comunidade
política e a prática que podem ser ainda perseguidas, embora suas respostas exponham suas
próprias limitações históricas e conceituais” (WALKER, 1993, p.31, tradução livre).41
Em
cima dessas limitações históricas Walker inverte magistralmente o argumento main stream.
De “ponto arquimediano”, de um dos mitos fundadores da disciplina, de evidência de padrões
de comportamento recorrentes, Maquiavel é discursivamente transformado num pensador
muito mais relativista, num autor que desconfia de todo e qualquer tipo de fundação rígida.
Ao invés de evidenciar leis universais de comportamento, “o príncipe” de Walker glorifica a
41
Machiavelli poses questions about political community and practice that may still be pursued even though his
answers expose his own limited historical and conceptual horizons
82
maleabilidade: “O homem que adapta seu curso de ação à natureza dos tempos [...] terá
sucesso” (WALKER, 1993, p.44, tradução livre).42
A desconstrução da “caricatura” realista se dá por um processo de contextualização.
Walker retira Maquiavel de seu posto trans-histórico de “legislador” universal do
comportamento estatal, e o coloca em um lugar do tempo muito específico:
Maquiavel escreve no contexto de condições muito particulares, de modo que é
alguém que tem de ser entendido dentro do contexto geral da vida e cultura
renascentista. Longe de ser alguém em contato com alguma essência atemporal da
vida política, Maquiavel era alguém tentado fazer com que circunstâncias históricas
específicas fizessem sentido, através de categorias discursivas que lhe estivessem
disponíveis (WALKER, 1993, p.35, tradção nossa).43
O Príncipe, longe de constituir um manual a todo e qualquer governante, de toda e
qualquer época, é um trabalho destinado a prover uma diferente forma de estruturação da
comunidade política, uma forma contrária à universalidade cristã de uma política da
eternidade, do “fora do tempo”. Ao invés da complicada organização de jurisdições
sobrepostas e do império universal, do dominus mundi (WALKER, 1993; FASOLT, 2004),
Maquiavel reivindicava ao stato, a uma delimitação espacial, a função de proteção dos
indivíduos frente aos infortúnios da fortuna, dos problemas temporais.
Tal como as enchentes que assolavam a Florença do século XVI, o imaginário
temporal da renascença ilustrava a sorte (fortuna) com a metáfora de um rio. Um rio, que ao
invés de correr linearmente para um destino definido de antemão, transbordava ciclicamente
ao bel prazer. Assim, para salvar o stato um Maquiavel não mais realista, mas republicano,
clamava pelos homens de virtú. Sua resposta ao manejo político envolvia sim a construção de
um corpo armado, capaz de defender a república contra ameaças externas, mas não mais do
que de um espírito cívico e de instituições sólidas, capazes de defendê-la contra sua própria
sorte (WALKER, 1993).
O conceito de virtú invoca não só qualidades militares de um guerreiro e as
qualidades cíveis necessárias à cidadania, mas também as qualidades pelas quais o
herói viril seria capaz de seduzir a Fortuna, de preparar as margens e os diques
42
The man who adapts his course of action to the nature of the times [...] will succeed. 43
Machiavelli writes in the context of some very particular circumstances, that he is someone who has to be
understood within the broader context of Renaissance life and culture. Far from being someone in touch with
some timeless essence of political life, Machiavelli was someone trying to make sense of historically specific
circumstances, and trying to do so in the discursive categories then available to him
83
contra as enchentes iminentes. Em uma linguagem humanista especificamente
renascentista. (WALKER, 1993, p.39, tradução nossa).44
A obra de Maquiavel, sua tentativa de reconfiguração das relações de espaço e tempo,
ilustra claramente, segundo Walker, o horizonte de possibilidades de localização da
comunidade política no contexto das teorias de RI. A divisão entre interno e externo, entre
uma comunidade doméstica da virtude política e das instituições, contrastaria com o ambiente
anárquico da política de poder. O problema da “caricatura” realista de um teórico da
realpolitik, ou de um cientista político buscando padrões de comportamento recorrentes, é o
esquecimento da historicidade do pensamento Maquiavélico. Tentar transformá-lo em
universal é, no mínimo, uma ironia. Se Maquiavel possuía alguma relação com o
universalismo, esta era a de oposição, advogando uma política do tempo terreno, do agora, da
contingência. Walker desafia, assim, toda e qualquer tentativa de “atualizar” Maquiavel, de
fazê-lo parecer um realista, um cientista político, um autor contemporâneo. Todas essas
tentativas estão fadadas à contradição. Afinal, “A teoria positiva de Maquiavel faz pouco
sentido a não ser que seja lida no contexto do significado clássico da vida em uma
comunidade política.” (WALKER, 1993, p.41, tradução nossa).45
De acordo com Walker, a mesma máxima “nada pode ser compreendido fora de seu
contexto” valeria também para as abordagens daqueles que constroem essa caricatura de
Maquiavel. As teorias de RI, no que diz respeito a sua própria compreensão das possibilidades
de localização da comunidade política, devem ser analisadas pela lente de uma concepção
espaço-temporal própria aos séculos XVII e XVIII (WALKER, 1993).
Um dos principais pontos de divergência entre realistas e “idealistas”, compreendidos
num sentido mais amplo como “não-realistas”, é a temática da importância dos Estados
enquanto atores internacionais. Para a corrente realista, supostamente, o estado permaneceria
ad aeternun, como o ator de maior preponderância no sistema internacional, os verdadeiros
entes dotados de “agência”. A passagem do tempo na forma de aprendizado,
institucionalização, normalização e interdependência não seria capaz de minar tal
importância, como advogariam os não-realistas, mas ao contrário, só poderia reafirmá-la cada
vez mais. Novamente, como recorrente em Walker, a temática importa menos do que as
condições de possibilidade que a suportam. Saber o que acontecerá com o estado não é o
44
The concept of virtù invokes not only the military qualities of the warrior and the civic qualities necessary for
citizenship but also the qualities through which the virile hero is able to seduce Fortuna, to prepare the banks and
dikes against the oncoming flood. In a specifically renaissance humanist language 45
Machiavelli's positive political theory makes little sense unless read in the context of the classical account of
life within a political community
84
ponto. É preciso procurar aquilo que leva realistas e não-realistas a responderem da forma
pela qual respondem.
Entre afirmações acerca da inevitabilidade de um estado mundial (WENDT, 2003), da
criação de uma federação de Estados que reproduza a lógica doméstica da liberdade
individual (KANT apud WALKER, 1993) e da continuação da lógica da balança de poder
reinando sobre a anarquia internacional subjaze uma compreensão particular de espaço. Um
dos problemas das teorias modernas de RI que repercute, dentre outras conseqüências, na
confluência acrítica entre as categorias de “estado” e “nação” é a espacialização do conceito
de soberania. As RI, condicionadas pelo ordenamento político europeu pré-moderno,
compreendem a possibilidade de comunidade política enquanto geograficamente circunscrita,
espacialmente delimitada. Ser soberano segundo a famosa perspectiva weberiana, lembra
Walker, é deter o monopólio legítimo do uso da força dentro de um determinado território.
A história da soberania, daquilo que definiria uma espécie de alter ego político do indivíduo,
no caso, cidadão, é construída através de uma série de metáforas espaciais tais como a descrita
acima. E o Ocidente, através do que Walker - seguindo Derrida - chama de metafísica da
presença foi condicionado a pensar na dicotomia dentro/fora.
O mapa político ocidental convencional é altamente linear, incrivelmente preciso (ao
menos em aparência) seccionado em distintas parcelas e contínuo, no sentido em
que, com apenas algumas exceções (geralmente envolvendo áreas não povoadas) ele
é inteiramente 'preenchido'. O mundo se transforma, no imaginário popular do
Ocidente, em um rígido mosaico não só lembrando padrões de propriedade privada
locais, mas sugerindo o que é entendido como células bem defendidas e claramente
demarcadas identificadas em alguns estudos de territorialidade animal. (WALKER,
1993, p.130, tradução nossa).46
Embora geralmente “não problematizado” o condicionante espacial das relações
internacionais modernas não é, sob hipótese alguma, algo de ordem natural. Ele advêm das
considerações acerca do espaço homogêneo euclidiano – co-extensivo ao conceito de espaço
absoluto newtoniano – constituinte da organização política européia no século XVIII que
culminou no princípio da soberania como o conhecemos.
A concepção de espaço da geometria de Euclides assume uma série de cinco
postulados que convergem para a homogeneidade espacial. O primeiro postulado assume a
possibilidade de se desenhar uma linha reta no espaço entre dois pontos quaisquer. Aqui já é
46
The conventional Western political map is highly linear, incredibly precise (at least in appearance), partitioned
into distinct parcels, and continuous in the sense that, with only a few exception (generally involving
unpopulated areas). It is entirely 'filed'. The world become, in the popular western image, a rigid mosaic
resembling not only local property patterns but suggesting what are understood to be the well-defended and
clearly demarcated cells identified in some studies of animal territoriality.
85
possível perceber que o que se entende por espaço deve possuir propriedades tais que
mantenham as leis da geometria constantes por toda sua extensão. Caso o espaço euclidiano
não se comportasse dessa maneira, “homogênea”, e porventura possuísse bolsões de
heterogeneidade, tal seja, espaços que possuíssem diferentes propriedades geométricas dentro
de um mesmo “espaço”, não seria possível traçar uma linha entre dois pontos quaisquer,
tampouco estendê-la indefinidamente – o segundo postulado de Euclides. O terceiro e o
quinto postulados, a inexistência de restrições ao tamanho de um círculo e a possibilidade da
criação de figuras idênticas independente à escala, respectivamente, reforçam a infinitude e
continuidade espacial (WALKER, 1993).
Essa compreensão historicamente situada sustenta, por exemplo, as respostas de Hertz,
Wendt, Kant e Claude acerca das possibilidades de criação de um estado/federação global
(WALKER, 1993). Ora, tal construto, entendido como uma cópia idêntica a seu homônimo do
ambiente doméstico em escala de magnitude diferente tem por condição de possibilidade a
pressuposição da homogeneidade espacial euclidiana. Se os “espaços” doméstico e
internacional fossem tão heterogêneos quanto suas propriedades “geométricas” seria
impossível supor a reprodução de uma “figura” doméstica em “escala” internacional.
Imaginar que a anarquia internacional será sobrepujada invariavelmente por uma hierarquia
internacional nos moldes do estado contemporâneo difere muito pouco, Walker enfatiza, da
crença renascentista de que o embrião, aquilo que prove a forma, o eidos humano, se
assemelharia a um homem adulto em escala microscópica (WALKER, 1993). Menos do que
verdades absolutas, tais argumentos evidenciam uma temática de pensamento historicamente
condicionada, à qual Walker nomeia “temática de Gulliver”.
Lilliput se parece com nosso mundo humano em tudo exceto por sua escala menor;
Brobdingnag da mesma forma é meramente maior. Esse tema reflete a concepção de
um mundo microfísico que veio com a mecânica clássica, juntamente com sua
concepção associada de espaço euclidiana-newtoniana-kantiana. Assumia-se que o
espaço microfísico era exatamente como o mundo do senso comum, meramente
reduzido em sua magnitude. (WALKER, 1993, p.131, tradução nossa).47
Essa concepção da política transcrita em termos espaciais, bem como as resposta ao
problema da anarquia internacional baseadas na “temática de Gulliver” fazem parte da tensão
do pensamento contemporâneo entre a universalização e a particularização das práticas
47
Lilliput resembles our human world in everything but its smaller size; Brobdingnag likewise is merely bigger.
This theme reflects the conception of the microphysical world which came with classical mechanics, together
with its associated Euclidean-Newtonian-Kantian conceptions of space. Microphysical space was assumed to be
just like the space of the commonsense world, merely reduced in magnitude.
86
políticas. Se o princípio da soberania estatal circunscreveu a possibilidade da existência de
uma comunidade política interna ao estado, delimitando-a espacialmente, ele também o fez
com a possibilidade de progresso, igualdade, liberdade, e todas as outras promessas de
“iluminação” da modernidade. Se convivemos em um mundo cada vez mais globalizado e
conectado, é a supremacia da particularização territorial das possibilidades de universalização
que continua a ditar as práticas políticas. Só pode haver o universal e, portanto, a lei, a ética e
a identidade de um “nós” político para dento do estado nacional, para dentro de uma unidade
particular. Para que haja uma comunidade na esfera doméstica é preciso que a realpolitik
perdure sem fim no internacional. “A anarquia das relações internacionais deve então ser lida
como a condição tácita que torna todas as reivindicações pela universalidade para dentro do
estado possíveis” (WALKER, 1993, p.151, tradução nossa).48
Como conseqüência, a democracia, aquilo que supostamente deveria resolver as
incongruências da política atual, se vê impotente, construída por sobre as mesmas bases que
deveria derrubar. Como a política em geral, a prática democrática também se restringe ao
domínio do particular, à dimensão interna do estado. A despeito das pressões por direitos
humanos de um mundo cada dia mais interligado, demandante por uma reorganização dos
procedimentos de governança tradicionais, o cidadão e o estado continuam como as principais
categorias pensadas por teoria e prática política. Novamente, sem o contexto histórico (as
relações espaço-temporais modernas), não há compreensão satisfatória dos fenômenos (as
tensões contemporâneas da prática democrática).
3.2 O Contexto em “Writing Security”
O sentido da Guerra Fria irá sem dúvida mudar, mas se nos lembrarmos que a
expressão “guerra fria” foi cunhada por um escritor espanhol do século quatorze
para representar a rivalidade persistente entre cristãos e árabes, então reconhecemos
que esse tipo de guerra que a expressão denota é uma guerra pela identidade: uma
guerra que não é específica de um contexto, e portanto, não é enraizada na
existência de um tipo particular de União Soviética. (CAMPBELL, 1998, p.33,
grifo nosso, tradução nossa).49
A leitura desse parágrafo extraído de Writting Security demonstra uma tensão no
argumento de Campbell que se mantém constante por todo o livro. Ao primeiro olhar a 48
The anarchy of international relations might then be read as the tacit condition that makes all the claims to
universality within states possible. 49
The Cold War's meaning will undoubtedly change, but if we recall that the phrase cold war was coined by a
fourteenth-century Spanish writer to represent the persistent rivalry between Christians and Arabs, we come to
recognize that the sort of struggle the phrase denotes is a struggle over identity: a struggle that is not context-
specific and thus not rooted in the existence of a particular kind of Soviet Union.
87
afirmação de que a luta pela identidade não seria uma luta contextual, poderia nos levar a
questionar a filiação dessa obra “pós-estruturalista” aos pressupostos da historiografia
historicista. Contudo, na primeira linha, a asserção de que o “o sentido da Guerra Fria
certamente se transformará” coaduna com as preocupações das abordagens pós-estruturais
com relação às mudanças diacrônicas de sentido. Compelido a tornar o conceito de Guerra
Fria independente de um dos seus participantes - a União Soviética - e transformá-lo num
resultado da história Norte Americana, Campbell confere à formulação identitária nos moldes
da alteridade o benefício da trans-historicidade.50
Ao comparar a relação entre EUA e URSS -
ainda que de maneira superficial - com a tensão entre Cristãos e Árabes em uma Europa
medieval, Writing Security se aproxima mais de uma análise sincrônica particular às teorias
estruturalistas do que se poderia esperar.
O caráter trans-histórico da identidade não significa, contudo, sua constância no
tempo, ou imutabilidade. A identidade estatal para Campbell não é algo a ser possuído pelos
atores, tampouco uma categoria essencial que os tornaria aquilo que são. Identidade é uma
construção imaginária formada através de práticas discursivas. Identidade seria, então, uma
categoria fluida, passível de mudanças ao longo do tempo. O que deve ser entendido por
trans-historicidade das lutas identitárias não é o congelamento atemporal das formas pelas
quais as “nações” se percebem enquanto “nações”, mas sim a prática da construção per se.
Em outras palavras, o que é constante e aparentemente universal para Campbell - ao menos no
que diz respeito aos EUA - é a busca pela delimitação discursiva de um “nós”, do povo
americano, baseada na ameaça que um “outro”, o “não-americano” representa pelo simples
fato de existir. São admitidas variações qualitativas quanto à identidade americana, como será
descrito adiante, sem deixar a transcendentalidade do trato com a diferença.
O que permite as variações qualitativas da identidade “americana” é exatamente aquilo
que conecta o pensamento de Campbell à lógica historiográfica moderna: os efeitos
semântico-epistemológicos da passagem do tempo. Ao assumir com veemência que o sentido 50
Para que sejamos justos, na verdade, Campbell de fato situa a dinâmica da busca pela identidade com relação à
diferença na experiência histórica do ocidente. Entretanto, essa característica ocidental parece indiferente à
passagem do tempo, permanecendo uma constante. Writing Security nos permite imaginar que, ao invés de uma
prática historicamente situada, a formação da identidade por meio da alteridade seja uma característica social, ou
essencial ao mundo ocidental e, portanto, espacialmente delimitada.
Em outras passagens Campbell afirma: “ As with all republics, America has constantly confronted the dilemma
of securing legitimacy and establishing authority in a culture that renders ontological guarantees suspect.”
(CAMPBELL, p.131) e ainda: “Each and every republic faces a similar structural requirement, for no matter how
powerful or plausible are the claims of nations upon states, in no state are temporality and spatiality perfectly
aligned . Each state thus confronts and aporia in its identity which - just as Derrida argued with regard to
language and all acts of founding - cannot be overcome.” (CAMPBELL, p. 131). Não fica claro se tais
argumentos são temporalmente situados - o que não parece ser o caso - socialmente delimitados ou ainda
relacionados a uma espécie de “essência” da vida política republicana.
88
do termo Guerra Fria irá mudar e, não obstante, mostrar que de fato isso já ocorreu outras
vezes, Writing Security assume a oposição passado/presente enquanto significativa. O que
buscaremos demonstrar é que a universalidade conferida à luta identitária não é suficiente
para ofuscar o exercício historiográfico presente na obra. O contexto ainda é fundamental para
Campbell, embora, como visto, algumas categorias o escapem.
O primeiro sinal disso jaz no título do segundo capítulo: Provocations of our time
(Provocações de nosso tempo). Quais seriam as provocações da época em que vivemos? E
mais importante, porque começar um livro falando do contexto no qual ele é escrito? O que
faria de nosso tempo uma variável importante para a análise senão o fato de que, a rigor, ele é
único e, portanto, diferente daqueles que o precederam e os que o sucederão? Ora, o mais
significativo movimento de contextualização de Campbell é um movimento reflexivo, no qual
o autor contextualiza a si mesmo. Sua função introdutória, como primeiro capítulo, talvez
possa ser lida como um aviso, um lembrete de que o texto não passa de uma resposta ao
contexto, de que seu tempo lhe resguardou provocações com as quais ele agora tenta lidar.
Visto desse ângulo, Writing Security é um perfeito exemplo do movimento pós-estruturalista,
de (re)introdução do pensamento e reflexão histórica na disciplina.
A provocação reside na incompatibilidade, já identificada por Walker, entre uma
comunidade política cada vez mais universalizada e o espaço particular reservado à política: o
Estado. Essa inconsistência poderia ser percebida nas práticas de dupla exclusão mencionadas
no primeiro capítulo. Uma vez que as fronteiras espaciais e abstratas são fruto de uma
economia discursiva, em um processo de constante re-construção histórico-social, a
delimitação identitária inevitavelmente encontrará desafios tanto internos quanto externos. Na
busca para circunscrever o espaço de uma comunidade imaginária (ANDERSON, 2008), as
estratégias discursivas precisam identificar os perigos internos - aqueles que discordam da
identidade sendo construída - e os conectar a perigos externos, como se, ao invés de
participantes de uma determinada comunidade que discordam da forma como ela é
representada, tais “desafiantes” fossem agentes externos que visam o fim da comunidade em
que vivem. Posto em termos empíricos, a estratégia de dupla exclusão transforma os
“americanos” que discordam da “Postura espiritual, material e moral dos Estados Unidos da
América” (NSC 5602/1 apud CAMPBELL, 1998, p.29, tradução nossa)51
em “inimigos da
América”, “comunistas” ou “traidores”.
51
The spiritual, moral and material posture of the United States of America.
89
A estratégia de descontextualizar o termo “Guerra Fria”52
e torná-lo um fenômeno
particular subordinado à luta pela formação da identidade liberal/Americana perpassa a
contraposição à asserção realista do fenômeno Guerra Fria como resultado de um arranjo de
poder bipolar. Para o Realismo estrutural, independente a quaisquer que fossem as unidades
políticas participantes, a distribuição de recursos e capacidades militares presentes no período
de 1945 a 1990 invariavelmente levaria ao clima de tensão e à perspectiva de um conflito
entre os dois pólos. Sendo o interesse um dado que, para fins analíticos, é exógeno às
unidades sistêmicas, mudanças qualitativas nas mesmas unidades não acarretariam mudanças
nos resultados previstos. Se o Realismo descontextualiza o fenômeno Guerra Fria tornando-o
um mero resultado da distribuição material das capabilities sistêmicas, a análise de Campbell
contextualiza o fenômeno mostrando que tal distribuição pouco ou nada teve a ver com a
política de defesa americana.
Em verdade, a maneira pela qual a Guerra Fria é tratada como um fenômeno universal
pelas teorias tradicionais de RI tem raízes na maneira pela qual a temática da política externa
é vislumbrada pela disciplina. Tome-se por exemplo o argumento de Alexander Wendt quanto
à formação intersubjetiva entre os atores no sistema internacional. Para Wendt (WENDT,
1999; ZEHFUSS, 2002) a atribuição de sentido por parte dos Estados e suas conseqüências
para a conformação da identidade obedecem a três fases distintas. Em um primeiro momento,
um ator x e outro ator y, cujas existências individuais independem uma da outra, que jamais
haviam se encontrado de repente se vêem face a face. Como nenhum dos dois sabe
exatamente o que esperar do outro, o resultado do encontro é definido por duas subseqüentes
fases de interpretação mútua. Primeiro, y interpreta os gestos que x por ventura fizer -
inclusive o silêncio e a inação - gesticulando depois de acordo com o sentido atribuído ao
primeiro gesto. Em seguida, x interpreta a interpretação de y contida em seu gesto e,
novamente gesticulando, dá seqüência ao processo de significação, que, virtualmente,
prossegue ao infinito.
O interessante dessa transcrição da interação estatal é que ela constrói uma imagem
das unidades do sistema internacional como reinos completamente separados uns dos outros.
Nessa representação particular os Estados x e y sequer haviam tomado conhecimento da
existência de seus outros, antes do primeiro encontro. A despeito dos problemas relacionados
52
Deve-se atentar para as diferenças entre o “termo” Guerra Fria e o “fenômeno” Guerra Fria. Campbell visa
descontextualizar o termo Guerra Fria (ainda que aceite possíveis mudanças em seu sentido), mantendo o
fenômeno guerra fria como um episódio historicamente situado dentro da luta pela conformação da identidade
liberal/americana. De fato, a “verdadeira” descontextualizarão, no sentido de proteção à passagem do tempo ou
indiferença à temporalidade enquanto fluxo, só é construída no nível da luta pela identidade americana.
90
à ausência da linguagem falada (ZEHFUSS, 2002), essa interpretação do internacional
evidencia o quanto o mains tream das RI se baseia na abordagem individualista hobbesiana. A
interação entre os Estados é entendida da mesma maneira como a interação entre os
indivíduos quando da criação do contrato, de modo a conectá-los. Se x e y interagem - de
modo não conflituoso - tal como os indivíduos no estado de natureza, é tão-somente para que
haja algo em comum que possibilite a criação e manutenção da vida em sociedade. A
estrutura de sentidos intersubjetiva de Wendt é aquilo que liga um estado ao outro, uma arena
doméstica a outra.
De forma similar:
A análise de política externa [...] toma como seu foco de estudo as pontes que
sistemas completos chamados de Estados constroem para se conectarem, conectarem
seus subsistemas e até mesmo o mais abrangente sistema internacional do qual
fazem parte [...] Esses sistemas e subsistemas existem independente de, e
anteriormente à, qualquer relação que resulta da junção dessas “pontes” de política
externa. Essa ponte é conscientemente construída pelo estado em um esforço de se
fazer parte do grande sistema, e lidar com as incertezas e perigos que o grande
sistema reserva à sua própria segurança. Como um fenômeno julgado comum para
todos os Estados, falamos de uma política externa de um estado “x” ou estado “y”,
desse modo indicando que o estado é anterior à política. (CAMPBELL, 1998, p.38,
tradução nossa).53
Essa é a visão que a disciplina possui das práticas de política externa: como uma
forma de conectar reinos separados, de interligar dimensões independentes. Essa é a visão que
faz com que a Guerra Fria seja entendida como uma mera resposta norte-americana a um
estímulo externo chamado União Soviética. Essa é a visão responsável por extirpar toda
historicidade do conflito e transformá-lo num simples exemplo de funcionamento da lógica
bipolar. Essa é a visão que Campbell “desconstrói”.
Em primeiro lugar, o entendimento de que as unidades políticas que chamamos de
Estados são entidades separadas umas das outras e que a política externa, pois, é aquilo que as
conecta tem por condição de possibilidade uma narrativa histórica em especial, geralmente
não evidenciada, com respeito à transição do confuso sistema de lealdade medieval para a
lógica da soberania moderna. Ora as comunidades políticas particulares instituídas pelo
princípio da soberania, só podem ser pensadas enquanto entidades completamente separadas
53
Foreign policy analysis [..] takes as its focus of study the bridges that whole systems called states build to link
themselves and their subsystems to the even more encompassing international systems of which they are part [...]
These systems and subsystems exist independently of, and prior to, any relationship that results from their
joining by the “bridge” of foreign policy. That bridge is consciously constructed by the state in a effort to make
itself part of the larger system and to deal with the dangers and uncertainties that larger system holds for its own
security. As a phenomenon tough to be common to all states, we speak about the foreign policy of state “x” or
state “y”, thereby indicating that the state is prior to the policy.
91
umas das outras se a transição entre a cristandade e o moderno sistema de Estados for
entendida enquanto completa e abrupta. Só faria sentido falar de Estados que nunca tomaram
conhecimento uns dos outros - ao menos no que tange ao sistema europeu - se a comunidade
política universal da cristandade houvesse sido completamente destruída com a passagem para
a modernidade. Só é possível pensar na interação entre Estados como a construção de pontes,
se aceitarmos que tudo aquilo que era mais sólido entre esses mesmos Estados, a fé cristã,
simplesmente se dissolvera no ar.
Campbell tenta demonstrar que esse não foi bem o caso. O “evangelismo do medo” e a
“política do corpo”, foram ambas práticas que não só sobreviveram à transição do medievo
para a modernidade - contrariando a idéia de um processo de secularização que negasse
totalmente aquilo que o precedera - como também foram fundamentais para o estabelecimento
e manutenção do estado-nacional. A utilização do corpo como uma alegoria político/religiosa
por teólogos e juristas do período medieval, por exemplo, culminou com o conceito
fundamental à prática política contemporânea de “corporação”. Tradicionalmente, durante a
história da fé cristã, a igreja e os fiéis foram concebidos como o corpo físico de Deus na
Terra, cuja cabeça, o controle, seria atribuído a Cristo. Por volta do século XII, todavia,
teólogos carolíngios começaram a denominar a hóstia sagrada como corpus mysticum,
exatamente o termo utilizado por São Paulo para definir a cristandade (KANTOROWICZ
apud CAMPBELL, 1998). Esta polêmica dualidade do corpo de Cristo (cristandade e hóstia)
permearia o trabalho de teólogos medievais até que Tomás de Aquino reivindicasse a
substituição da definição corpus mysticum por persona mystica. Segundo o Aristotélico, a
cabeça (cristo) e os membros (os fiéis) jamais seriam capazes de constituir um corpo, mas
ainda sim formariam uma espécie de “pessoa mística” (CAMPBELL, 1998). Com o passar do
tempo e com o estabelecimento da teoria da consubstanciação, a hóstia sagrada seria
definitivamente chamada de corpus christi, o verdadeiro corpo de Cristo, e a igreja passaria a
ser pensada como uma representação: um Corpus Repraesentatum.
Essa concepção de corpus repraesentatum, ou corpus imaginatum enquanto
fundamental para a compreensão e funcionamento das “corporações” modernas é
particularmente esclarecedora quanto aos pressupostos historiográficos encontrados em
Writing Security. De acordo com Campbell, parte considerável da vida política
contemporânea é explicada através das condições de possibilidade sobre as quais ela fora
estabelecida. Isto é, pelo seu contexto histórico-social. O contexto de transformações
semânticas que culminaram com a idéia de corporação, de representação daquilo que não está
92
presente, na Idade Média é tão importante para o entendimento da política moderna quanto a
ideologia puritana o é para a foreign policy norte-americana. Ignorar essa peça fundamental, o
contexto, incorreria muito provavelmente para Campbell, em alguma falta de compreensão
dos fenômenos descritos. Ou será que seria possível compreender satisfatoriamente “a caça às
bruxas” do século XIX sem menções ao radicalismo protestante de alguns colonos?
Outro exemplo no decorrer do texto que demonstra o comprometimento
“contextualista” do autor é sua explicação para a insistente negação das evidência empíricas
por parte de Cristóvão Colombo quando da descoberta do que viria a ser a América. De 1442
a 1500, Colombo aportara em terras as quais, estava convencido, pertenceriam a uma
península oriental das Índias (nomeando, pois, os nativos de índios). Nem o fato de que
navegações posteriores ao redor da península não encontrassem passagens nos extremos norte
e sul, nem a descoberta de uma fonte de água – ambas evidências empíricas de que Colombo
se encontrava em um diferente continente - convenceram o navegador a abandonar a
convicção de que havia de fato chegado às Índias. Sua fé era tão grande, que até em encontros
com os ameríndios, Colombo presenciava aquilo que corroborasse sua “teoria”, ou melhor,
sua verdade. Uma vez, durante um desses encontros, ele imaginou ter ouvido da boca de um
nativo a palavra Caniba - quando este pronunciara Cariba - em alusão ao Grande Khan
asiático. Em outro momento, julgou que os nativos haviam pronunciado palavras em
espanhol, algo absurdamente impossível, dado que aquele era seu primeiro contato com a
língua.
Tais fatos nos soam como desatinos. Não parece ser possível que alguém em sã
consciência desconsidere evidências empíricas tão certas, tão claras quanto a luz do sol, fonte
infinita de razão, inteligibilidade e inteligência. Não nos parece ser possível negar a
experiência. Permanecemos perplexos até o momento em que percebemos o óbvio: “Colombo
não permitia com que [a verdade bíblica] fosse contradita pela evidência experiencial.”
(CAMPBELL, 1998, p.94, tradução nossa).54
Isto porque:
Longe de ser um empirista moderno, para Colombo o argumento decisivo é um
argumento de autoridade, não de experiência. Ele já sabe com antecedência o que irá
encontrar; a experiência concreta está presente para ilustrar uma verdade desde já
possuída, não para que seja interrogada de acordo com regras pré-estabelecidas
visando a obtenção da verdade. (CAMPBELL, 1998, p.92, tradução nossa).55
54
Columbus did not allow it to be contradicted by experiential evidence. 55
Far from being a modern empiricist, for Columbus “the decisive argument is an argument of authority, not of
experience. He knows in advance what he will find; the concrete experience is there to illustrate a truth already
possessed, not to be interrogated according to preestablished rules in order to seek the truth.
93
Uma verdade que só poderia ser revelada pela verdade das verdades: a palavra de
Deus. Para o imaginário cristão medieval, do qual fazia parte Colombo, todas as massas de
terra maiores do que uma ilha estariam conectadas numa só grande ilha-mundo. A bíblia, mais
especificamente o livro de Esdras, descrevia ainda que a exata proporção dos corpos de terra
para os de água seria de seis para um. Portanto, não havendo continentes ao sul Colombo
estaria em algum lugar da ilha-mundo. Admitir o contrário - que a experiência pudesse negar
a palavra de Deus - seria tão absurdo quanto pensar que uma marionete pudesse desafiar seu
titereio.
Novamente, é virtualmente impossível compreender a posição de Colombo quanto à
“descoberta” de um novo continente - a não ser recorrendo à caricaturas e simplificações
anacrônicas - senão pela compreensão do pensamento corrente, da base epistemológica pela
qual o navegador pensava o que pensava. Ao longo do texto, Campbell ainda provê mais um
exemplo de como a apreensão do valor-verdade das proposições no medievo era indiferente à
lógica empirista. O caso concerne às opiniões antagônicas de Gines de Sepúlveda e
Bartolomeu de Las Casas quanto à natureza indígena. Frente à questão da forma de tratamento
que o império espanhol deveria reservar aos ameríndios, Sepúlveda e de Las Casas
elaboraram visões tão diferentes do “nativo” que, para Campbell, fica claro a inexpressividade
da dimensão empírica na escolha entre uma das duas. Sepúlveda julgava que os
conquistadores deveriam escravizar os indígenas, que não conheciam as artes, a moeda, a
religião, os bons costumes. Para Sepúlveda, os nativos tendiam naturalmente ao trabalho
bruto, dada sua essência bestial. Era possível vê-los transportando cargas nas costas por
longas distâncias assim como cavalos, e devorar uns aos outros assim como insetos. Ademais,
os homens e as mulheres caminhavam nus, como toda e qualquer besta.
De Las Casas, em contrapartida, ao invés de tratar os nativo-americanos enquanto
bárbaros, bestas ou incivilizados, “decidiu” por enxergá-los como pagãos, não-cristãos. A
diferença, por mais sutil que possa parecer, transforma radicalmente a política que se segue ao
posicionamento ontológico. Ao invés de transportá-los para Europa como animais, os cristãos
deveriam catequizá-los, trazê-los para o lado da fé e dos bons costumes. Esse movimento era
absolutamente plausível na visão de Las Casas, para a qual os “selvagens” eram, na realidade,
seres dóceis, amigáveis, puros, bondosos, misericordiosos e inocentes, virtudes de verdadeiros
cristãos. Nesse sentido, os ameríndios seriam “folhas em branco” à espera do correto
direcionamento para a vida da fé em Cristo. Embora a idéia de uma hierarquia temporal ainda
estivesse presente na dicotomia cristão/pagão empregada por de Las Casas - o europeu como
94
sendo uma forma mais amadurecida dos povos primitivos - a semelhança essencial entre
espanhóis e indígenas era fruto de um conceito mais abrangente e igualitário de humanidade.
Assim como um adulto tem a mesma forma, o mesmo eidos, que uma criança (o que os torna
igualmente homens) também o nativo e os conquistados possuem a mesma natureza. Quando
a diferença se torna sujeita ao tempo, torna-se uma questão de tempo até não haver diferença.
Mas de todos os exemplos do poder explicativo do contexto histórico talvez o mais
importante ao argumento de Campbell seja a relação entre a concepção de política externa
como conexão entre “reinos” separados e o pensamento particular à modernidade.
Embora a fundação, a base, ou o ponto arquimediano que provê a referência ao
discurso moderno varie de local para local, uma fundação em particular pode ser
considerada essencial: tal seja a presença soberana do “homem racional”. Uma
instância do paradigma da soberania, ele toma forma em um locus histórico
identificável. Por volta do final do século dezoito, o discurso moderno toma uma
nova guinada e invoca a figura do “homem racional” como a origem da linguagem,
o criador da história, e a fonte de sentido e significado [...] Pela primeira vez o
“homem” é duplamente objeto de conhecimento e sujeito cognoscente [...]
Aparecem conceitos tais como “população” e “sociedade” no final do século dezoito
e início do século dezenove. Embora ambos sejam hoje tratados como termos
naturalizados descrevendo uma realidade não-problemática, sua emergência se deu
em um específico (e recente) contexto histórico enquanto instâncias de um projeto
normalizador que tinha em seu núcleo o “homem racional”. (CAMPBELL, 1998,
p.66, tradução nossa).56
O “homem racional” e a dualidade cartesiana que este assume - ser ao mesmo
tempo objeto cognoscível e sujeito cognoscente - são fundamentais àquilo que Campbell
chama de “paradigma da soberania”. Assim como uma consciência separa do mundo no qual
habita mantém relações de interioridade e exterioridade para com este, também o “self”
doméstico mantém as mesmas relações com a dimensão internacional. O “paradigma da
soberania” define a separação entre duas dimensões, o doméstico e o internacional, mas tal
separação jamais poderia acontecer se não fosse uma anterior entre mente e corpo. Assim, da
mesma forma que só é possível pensar numa relação entre coisas que estejam desde já
separadas, só se pode pensar em relações internacionais e na política externa enquanto
conexão, na medida em que se assume que as mais variadas nações, os mais variados
56
Although the foundation, fixed ground, or Archimedean point that provides the point of reference for modern
discourse varies from site to site, one particular foundation can be considered pivotal: that is the sovereign
presence of “reasoning man”. An instance of the paradigm of sovereign , it takes its form in an identifiable
historical location. Around the end of the eighteenth century, modern discourse took a novel turn and invoked
the figure of “reasoning man” as the origin of language, the maker of history, and the source of meaning [...] For
the first time “man” was both an object of knowledge and a subject who knows [...] the appearance of the
concepts of “population” and “society” in the late eighteenth and early nineteenth centuries. Although both are
now treated as naturalized terms describing an unproblematic reality, they emerged in a specific (and recent)
historical context as instances of a normalizing project that has “reasoning man” at its core.
95
ambientes domésticos estão separados tanto uns dos outros, quanto do ambiente no qual as
relações entre eles se dão, o internacional. Ora, se aceitamos que a soberania depende do
“homem racional”, então assumimos necessariamente que a concepção que possuímos de
política externa, bem como da dualidade doméstico/internacional são, na realidade,
específicas a um contexto histórico particular. Como dito, o que é específico ao tempo, é
também sujeito às suas ações. Não pode haver ontologia, onde não há permanência.
3.3 O Contexto em “A Genealogy of Sovereignty”
O que é a soberania? Se existem questões que a Ciência Política deveria ser capaz de
responder, está certamente é uma. Ainda assim, a ciência política moderna
freqüentemente atesta sua própria incapacidade quando tenta lidar com o conceito e
a realidade da soberania; parece que não conseguimos fazer por nossa
contemporaneidade aquilo que Bodin, Hobbes e Rousseau fizeram por suas [...]
Alguém poderia dizer que a questão da soberania é para a ciência política o que a
questão da substância é para a filosofia; uma questão que tacitamente implica na
prática do questionamento (BARTELSON, 1995, p.1, tradução nossa).57
O objetivo principal de A Genealogy of Sovereignty é responder à pergunta posta por
Bartelson na primeira página da obra: O que vem a ser soberania? Surpreende o autor que
algo tão fundamental à teoria política, a ponto de ser comparado à substância (ousia) para a
filosofia, não consiga ser satisfatoriamente explicada por ela. Em verdade, ao invés de buscar
explicações para o fenômeno que, a rigor, cria o saber político, esse campo disciplinar vem
evitando, numa espécie de “fuga à metafísica”, pensar acerca de suas próprias bases
fundacionais. Todavia, a surpresa se esvaece quando lembramos que uma “ciência” que
atingiu um grau significativo de maturidade, não deveria se debruçar sobre reflexões e
dúvidas vãs que não levassem a lugar algum. Afinal de contas, a modernidade estabelece um
local e uma data de chegada para tudo e todos.
Infelizmente, para Bartelson, parece que não somos capazes de fazer, para nossa
contemporaneidade, para tudo o que nos é presente no momento de nossa existência, de nossa
presença, aquilo que Bodin, Hobbes e Rousseau fizeram por seu próprio presente. Mais
interessante do que as respostas individuais desses autores para os dilemas da localização e/ou
forma da comunidade política, bem como de seu outro, a anarquia, contudo, é o fato de tais
respostas não transcenderem, no entendimento genealógico de Bartelson, o horizonte
57
What is sovereignty? If there are questions political Science ought to be able to answer, this is certainly one.
Yet modern political science often testifies to its own inability when it tries to come to terms with the concept
and reality of sovereignty; it is as if we cannot do to our contemporaneity what Bodin, Hobbes and Rousseau did
to theirs […] One could say that the question of sovereignty is to political science what the question of substance
is to philosophy; a question tacitly implied in the very practice of questioning
96
temporal de seu nascimento, de sua própria época histórica. Os trabalhos de Bodin, Hobbes e
Rousseau sobre a soberania, longe de se constituírem como instâncias da mesma verdade
eterna, são entendidos como respostas historicamente situadas e incomensuráveis. Em sua
produção da história da soberania, Bartelson encontra um dilema: como escrever a história do
que não pode ser definido, uma vez que só se pode definir o que não tem história?
(NIETZSCHE apud BARTELSON, 1995)
Certamente não se pode fazê-lo – escrever a história de um conceito tão conectado
com as bases epistemológicas que o legitimam e são legitimadas por ele – através de uma
história que trate o presente como uma projeção do passado. Esse tipo de história, nomeada
história finalista, simplesmente identifica no passado eventos embrionários de realizações
futuras, e traça uma linha evolutiva na direção do presente. Como só é possível apreender a
verdadeira capacidade e o significado dos eventos históricos com sua plena maturação, o
historiador finalista trabalha sempre a posteriori. Um exemplo de fazer histórico finalista é
encontrado na obra de Jaeger (1995), que vislumbram, de algum modo, o embrião da
sociedade moderna alemã, entendida como verdadeira sucessora da cultura helênica, na polis
da Grécia antiga. Nessa lógica, o que começa lá, num tempo ausente, abraça no presente seu
real significado, seu real destino.
Se a história finalista não resolve a questão, tampouco o faz aquilo que é denominado
por história presentista. Se o erro de autores finalistas é localizar o ponto arquimediano de sua
compreensão da realidade no passado, o ponto a partir do qual tal a compreensão se torna
possível, o presentismo incorre num erro semelhante. Ao tentar estabelecer critérios neutros e
objetivos a partir dos quais conceitos possam ser analisados em seu percurso histórico, o que
o historiador presentista faz é olhar para o passado com os olhos do presente. Ora, para que a
história de determinado conceito seja estudada, é preciso que se estabeleça desde já o
significado, a conceituação daquilo que se deseja perceber ao longo do tempo. Mas, se o
conhecimento é de fato historicamente contingente (FOUCAULT, 1987; BARTELSON,
1995), o resultado do esforço presentista é a mera “presentificação refletida do passado”
(KOSELLECK, 2006). Nesses termos, se buscamos a história de um conceito - que
invariavelmente possui uma carga semântica a ele atribuída pelo tempo presente – no passado,
então não estamos fazendo mais do que a mais pura ficção, imaginando por ficção o ato de
criar algo que não estivesse presente na realidade. O presentismo introduz conceitos nossos
em um tempo que não nos pertence. Ele eleva o presente à eternidade agostiniana, como se
97
aqueles que nos antecederam devessem, por algum motivo, coadunar com nossas
preocupações e aceitar nossas respostas.
Ambos finalismo e presentismo constroem suas análises em topoi transcendentais. Se
o historiador finalista toma o passado como o tempo histórico relevante para os fins de seu
trabalho, ao inverter a lógica, o presentista, ainda que não tenha consciência plena disso, eleva
hierarquicamente o tempo presente enquanto construtor de verdades para além de suas
fronteiras. Pelo finalismo, a história é escrita em termos de um destino a ser cumprido, em
termos de uma missão já escrita num passado originário. Pelo presentismo, a história é escrita
em termos de idéais que são maravilhosamente e milagrosamente antecipadas. Da mesma
forma que só se pode atingir um destino que tenha sido escrito fora da história, só se pode
antecipar uma idéia que já tenha se emancipado do tempo. Ambos finalismo e presentismo
não servem a Bartelson, portanto, porque não respeitam o critério que lhe é mais caro: a
pressuposição de que “somos seres históricos até o âmago” (BARTELSON, 1995, p.78,
tradução nossa).58
Essa falta de historicidade apresentada por presentistas e finalistas, a falta da noção de
que as coisas devem ser compreendidas em seu devido contexto histórico, seria supostamente
superado pela proposta hermenêutica da busca por uma verdade passada, obscurecida pelos
anacronismos da prática histórica não-contextualista. Quentin Skinner, o exemplo de adepto
da prática hermenêutica, entende que a verdade, aquilo que realmente aconteceu, não deve
sofrer influências anacrônicas, tendo o historiador que levar em conta somente a intenção de
um “eu” presente em um determinado instante. Skinner, em suma, diferencia entre a fala
(speech) e o enunciado (statement), uma espécie de diferença entre o conteúdo de uma
proposição, aquilo que é efetivamente dito, e a forma pela qual aquele que diz o faz
(FASOLT, 2004; BARTELSON, 2009). A esta divisão inicial se adiciona a diferença entre –
assumindo a teoria dos atos de fala - atos locutórios e ilocutórios, tal seja, aquilo que
queremos dizer quando pronunciamos uma sentença, e aquilo que está para além do nosso
“querer dizer”, mas que pode ser assumido dos mesmos vocábulos utilizados na produção do
ato locutório. Em linhas gerais, a história hermenêutica busca acessar os atos locutórios dos
atores envolvidos nos fenômenos estudados, na tentativa de compreender o sentido atribuído a
estes por aqueles. A fonte da verdade hermenêutica reside em uma espécie de “querer dizer”
fenomenológico, na consciência de um self racional capaz de dotar o mundo à sua volta de
58
we are historical beings all the way down
98
sentido. Compreender esse sentido demanda a imersão nesse mundo, no contexto que não nos
permite compreendê-lo justamente por sua ausência.
A hermenêutica é assim sintetizada por Bartelson (1995) como um esforço que se
pauta pela idéia reguladora da verdade, e que transfere o fardo de encontrá-la para o contexto.
Mas a aparente resolução proposta por Skinner para seu problema de escrever uma história
por dentro da história se mostra problemática a um olhar mais sofisticado. Na verdade, com o
perdão da ironia, o projeto contextualista hermenêutico é traído por sua busca incessante por
uma verdade. Consideremos, por exemplo, essa passagem de A Genealogy of Sovereignty:
Em um de seus muitos exemplos, Skinner traz à tona o fato de que Bodin escreveu
um pequeno tratado sobre bruxaria. Como Skinner julga a crença em bruxas falsa e
bizarra, ele se esforça para explicar por que seria racional, e não meramente
psicologicamente inteligível, afirmar a existência de bruxas no contexto particular
do conhecimento da Alta Renascença. Embora as bruxas nunca tenham existido, era
melhor discuti-las como se fossem reais, uma vez que fazer o contrário representaria
uma afronta à autoridade teológica corrente. Com a ida aos calabouços como maior
recompensa a tamanho ceticismo, dever-se-ia permanecer ontologicamente correto.
(BARTELSON, 1995, p.66, tradução nossa). 59
Nesse trecho particular do texto, não é possível identificar, em uma primeira
observação, um problema relevante que justifica o recurso ao exemplo. Qual é o problema? A
interpretação de Skinner parece absolutamente razoável. Ela leva em conta o ato locutório da
afirmação da existência de bruxas, o que pode nos levar a crer que Bodin realmente acreditava
em bruxas, e o ato ilocutório de permanecer fiel à autoridade religiosa numa época em que a
deserção não era bem vista e à discordância era reservada a pena capital. Em verdade, a
explicação parece absolutamente racional. No limite, se adequar às exigências de uma
instituição poderosa para não ir aos calabouços medievais soa tão obvio, tão natural que
parece algo que nós mesmos faríamos se estivéssemos no lugar de Bodin. Bem, esse é o
problema:
Agora, um ferrenho relativista conceitual tomaria as freqüentes descrições de
bruxas, sereias e demônios como uma indicação de que de fato eles existiram; que a
abertura ontológica propiciada pelo conhecimento renascentista provia livre acesso a
tais entidades enquanto átomos, forças produtivas e sistemas internacionais eram
59
In one of his many examples, Skinner brings up for discussion the fact that Bodin wrote a short treatise on
witchcraft. As Skinner finds belief in witches both false and bizarre, he is at pains to explain why it was rational,
and not merely psychologically intelligible to speak of witches in the particular context of late renaissance
thought. Though witches never have existed, to discuss upon them as if they were real, since denial of their
existence would have presented a challenge to the theological authority of the day. With a sojourn in the
dangerous as the ultimate reward for undue skepticism, you better stay ontologically correct
99
excluídos. O que é que, além da arrogância liberal, impede com que Skinner admita
a existência de bruxas? (BARTELSON, 1995p.66, tradução nossa).60
Não estamos no lugar de Bodin, e ele certamente não estaria no lugar no qual tentamos
colocá-lo. Talvez seja também uma espécie de arrogância liberal pensar que ele deveria agir
da forma como agiríamos se fossemo-lo. Mas há mais do que arrogância no exemplo de
Skiner. Bartelson em momento algum crítica a idoneidade do historiador, não se trata de um
vício particular ou coletivo. A crítica é direcionada à capacidade de compreensão da verdade
enquanto algo historicamente construído. O problema é que “se permite que critérios para
distinguir a aparência da realidade que são nossos, não de Bodin, guiem a interpretação, como
se fossem em si mesmos sem história.” (BARTELSON, 1995p.67, tradução nossa).61
Aqui aparece um dos pontos decisivos desse capítulo. O apego hermenêutico à uma
verdade transcendental implica na escolha de Bartelson por um fazer histórico que até então
não fora analisado. Discorreu-se sobre os diferentes modos de se pensar a história, bem como
os principais pressupostos do historicismo. Até esse ponto a palavra genealogia pode ter
aparecido uma ou outra vez, mas isenta de qualquer esclarecimento substancial foi mantida
em suspensão à espera de um momento propício. O momento chega com a escolha de
Bartelson.
A genealogia, como brevemente descrito no primeiro capítulo, é um projeto
nietzscheo-foucaultiano de construção de uma “história efetiva” (FOUCAULT, 2008). Por
história efetiva, Foucault compreende o estudo histórico que não se deixe levar pelo “mito da
origem”, que não seja guiado pelo princípio metafísico da busca da essência. Ao contrário do
fazer histórico positivista e historicista - em sua vertente mais conservadora (BARROS,
2011b) - a genealogia deve ser anti-científica, pois não se pretende um saber totalizante, e
não-ontológica, pois não busca demonstrar a verdadeira face das coisas como elas realmente
são, mas ao contrário, mostrar através da história que tal face não existe. A genealogia ensina
“que atrás das coisas há 'algo inteiramente diferente': não seu segredo essencial e sem data,
mas o segredo que elas são sem essência.” (FOUCAULT, 2008, p.18).
Para a “história efetiva” tudo o que presenciamos, tudo aquilo que faz parte de nosso
tempo histórico tem, em si mesmo, uma história. Ao contrário da certeza dos pontos
60
Now a diehard conceptual relativist would take the frequented occurrence and coexistence of statements about
witches, mermaids and demons as an indication that they did exist; that the ontological space opened by
Renaissance knowledge gave free access to those entities while excluding atoms, productive forces and
international systems, so what is it besides liberal arrogance that keeps skinner from admitting the existence of
witches? 61
Criteria for distinguishing appearance from reality that are ours, not Bodin’s, are allowed to guide
interpretation, as if they themselves were without history.
100
arquimedianos da qual se valem finalismo, presentismo e hermenêutica - cujas análises são
respectivamente ancoradas no passado, presente e verdade - a genealogia descarta qualquer
apoio transcendental, buscando na contingência e na particularidade as armas contra a
sujeição do sujeito às práticas discursivas que lhe parecem mais naturais. A história, para a
genealogia, não é composta de continuidades, destinos, evoluções lineares, mas,
assemelhando-se a um campo de batalha, é escrita em meio à luta entre diferentes
interpretações e perspectivas. Eventualmente há um vencedor, e um perdedor a ser dominado,
sobrepujado, coisificado. Ao vencedor é reservada a escrita da história, como descrevera
Willian Benjamin (BARROS, 2011a), e somente através da genealogia, do estudo histórico-
crítico daquilo que há de mais marginal é que se torna possível contestar a grande narrativa da
vitória. A uma história efetiva não cabe legitimar, mas contestar as bases institucionais
vigentes. A genealogia trata do exercício do poder em um mundo no qual a política é a
continuação da guerra por outros meios (FOUCAULT, 2008).
A genealogia se opõe à hermenêutica, e aos demais tipos de fazer histórico, porque:
Onde a interpretação hermenêutica buscaria revelar realidades passadas por traz das
aparências do passado, a genealogia busca explicar a mobilidade histórica entre
aparência e realidade; por traz do véu das aparências a história genealógica não
encontra a realidade, mas somente outra interpretação da diferença entre aparência e
realidade. Para a genealogia, o existente é uma questão de como essa dicotomia é
organizada e re-organizada através da história. (BARTELSON, 1995, p.75, tradução
nossa).62
Nesse sentido, uma “história efetiva” compreende a verdade - aquilo que nos permite
distinguir entre fato, ficção, realidade e ilusão - não como um monólito independente à
história, mas como o resultado de um conjunto de regras tanto social quanto historicamente
construídas. “Do ponto de vista genealógico, o presente é inteiramente história, no sentido de
que tudo nele possui uma história, incluindo aquilo que é julgado atemporal, imutável, dado
ou original, tendo sido elevado à metanarrativa.” (BARTELSON, 1995, p.74, tradução
nossa).63
A hermenêutica falha ao desconsiderar o caráter histórico das bases epistemológicas
de apreensão do valor verdade. Embora o hermeneuta compreenda o sentido lingüístico
62
Where a hermeneutic interpretation would seek to uncover past realities behind past appearances, genealogy
seeks to account for the historical mobility of appearances and realities; behind the veil of appearance, a
genealogical history does not find reality, but only another interpretation of the difference between appearance
and reality. To genealogy, what happens to exist is a matter of how this divide is arranged and rearranged
throughout history. 63
From a genealogical point of view, the present is all history, in the sense that everything in it has a history,
including that which is thought to be timeless, unchanging, given or original, and has been elevated into
metanarrative
101
atribuído a determinadas afirmações, bem como caráter ilocutório de algumas proposições
enquanto dependentes de um contexto histórico, ele insiste em julgá-los com base em um
conhecimento situado fora do tempo. Ora, se tudo o mais é histórico em sua natureza, porque
também não seriam o princípio metafísico de não-contradição e a racionalidade? O que nos
faz pensar, novamente, para além de uma “arrogância liberal”, que a maneira pela qual
julgamos o valor de verdade das proposições no presente seria igual à dos tempos passados?
Portanto a genealogia põe em prática uma espécie de expansão da “historicidade das
coisas” - que numa história hermenêutica não engloba o conceito de verdade - para além dos
sentidos e das afirmações, chegando até as bases de sustentação do conhecimento. Assim, ao
invés de buscar a verdade dos acontecimentos, a genealogia demonstra que a verdade nada
mais é do que uma “espécie de erro que tem a seu favor o fato de não poder ser refutado.”
(FOUCAULT, 2008, p.19). A verdade foi alocada em diferentes lugares ao longo da história
humana, como Bartelson e Foucault sugerem: nas sagradas escrituras, nos signos dispersos
por Deus pela terra, no rei e na reflexão do espelho da mente e, por fim, no homem, o sujeito
transcendental. Mas não há razão alguma, em uma época na qual a razão é o que há de mais
relevante, para julgar a episteme moderna como melhor, mais válida ou axiologicamente
superior às demais.
Ironicamente, Bartelson crítica a “história contextualista” por não levar em conta
justamente aquilo que a definiria: o contexto histórico.64
A hermenêutica parece não servir a
seus propósitos por deixar de levar ao máximo a idéia moderna de que passado e presente são
“dimensões” profundamente diferentes (BEST, 1995; FASOLT, 2004; KOSELLECK, 2006).
O historicista “erra” ao não compreender que tal diferença comporta, inclusive, uma
heterogeneidade quanto as faculdades do próprio pensar. Voltando mais uma vez ao exemplo
de Bodin, Skinner se engana ao tentar escrever a história por antecipação (BARTELSON,
1995), sabendo a priori, o a priori histórico que deveria buscar.
64
As diferenças entre a hermenêutica e a genealogia no que tange ao processo de contextualização são, na
realidade, mais complexas do que a forma como foram descritas pode sugerir. Para a hermenêutica o termo
contexto abarca a situação na qual se encontra o sujeito, ou mesmo as intenções que este possuía, quando da
expressão de determinado enunciado. Assim é possível conceber que a expressão, por exemplo, “bom dia”,
possua sentidos diferentes se proferida em diferentes situações. Para a genealogia, todavia, nem a situação, nem
a intenção e o sujeito são categorias significativas. O estudo genealógico procede à nível das práticas
discursivas, que funcionam como contextos epistemológicos que condicionam a emergência de determinados
enunciados (FOUCAULT, 1997). Além disso, a natureza dos enunciados genealógicos (discursos) é distinta à
dos enunciados hermeneutas.
102
4 A DESCONSTRUÇÃO DO TEMPO
Como descrito na introdução, o exercício da desconstrução pode ser dividido em duas
diferentes fases: a genealogia do conceito a ser desconstruído e a inversão axiológico-
epistemológica dos termos da oposição metafísica que o sustenta (CULLER, 1997).
Na genealogia o processo de desconstrução é exercido através do estudo histórico do
conceito que se objetiva desconstruir. Por meio da genealogia é possível identificar ao longo
do tempo descontinuidades nas estruturas de práticas discursivas65
que condicionam a
emergência dos enunciados e discursos66
(FOUCAULT, 1997). Assim é possível evidenciar
transformações semântico-epistemológicas nos objetos de análise que descartem sua
naturalidade e (ou) imutabilidade e tragam à tona seu caráter político de dominação.
Em sua segunda fase, a fim de revelar a arbitrariedade de uma oposição metafísica, a
desconstrução promove a inversão entre o primeiro termo (privilegiado) e o segundo
(decaído). Isso significa demonstrar logicamente que, desde o início, as características do
termo desvalorizado se fazem presente no termo valorizado.
No presente capítulo, serão realizadas as duas etapas do exercício de desconstrução do
historicismo pós-estruturalista identificado em Walker, Campbell e Bartelson. Em primeiro
lugar será demonstrada a historicidade da divisão entre passado, presente e futuro trabalhada
pelos referidos autores. Em segundo lugar, far-se-á a inversão dos termos “presente” e
“passado”, componentes da oposição que sustenta o historicismo, à luz da filosofia derridiana.
4.1 Passado/Presente como Dualidade Historicamente Situada
Se a proposta das abordagens diacrônicas de compreensão dos fenômenos à luz de seu
contexto específico for aceita, então o conhecimento do tempo histórico desses fenômenos
passa naturalmente de mera erudição, ou saber supérfluo, para ponto fundamental da análise.
Mas o que é um tempo histórico? Para além de uma série de acontecimentos conjunturais que
denominamos por contexto específico, ou mesmo pelas bases epistemológicas de uma
determinada era, o que é aquilo que faz de um fenômeno historicamente peculiar?
65
Práticas discursivas são para Foucault (1997) um conjunto de regras históricas que condicionam a formação e
dispersão dos discursos. 66
Segundo Dreyfus e Rabinow (1995) uma formação discursiva ou um discurso é um conjunto de enunciados
estabelecidos a partir de determinada posição (sujeito da enunciação), dentro de um determinado domínio e
através de procedimentos reconhecidamente válidos. São exemplos de discursos a história natural do século XII
e XIII, a medicina moderna e a geometria euclidiana. Todos esses saberes se constituem através de um
amálgama de enunciados (como proposições, axiomas ou equações) estabelecidos a partir de posições
privilegiadas (o naturalista, o médico, o geômetra) seguindo determinados procedimentos.
103
Esse tipo de questionamento leva a um aparente paradoxo. Se absolutamente tudo é
histórico em sua essência e se só pode haver conceito daquilo que não tem história, então
conceituar a história, ou tempo histórico, o ponto chave que norteia toda análise diacrônica
parece no mínimo incoerente. De fato, essa incoerência será mantida, não só porque não
possua solução - estando no lugar aporético da indecisão - mas porque o objetivo aqui é
descrevê-la, explorá-la, reforçá-la. A inconsistência de negar à história exatamente aquilo que
ela provê a todo o resto do universo, supostamente superada pela genealogia, é o gatilho da
lógica diacrônica. Por isso, tratar-se-á aqui de aceitar, por hora, a conceitualização de tempo
histórico.
De acordo com Koselleck (2006), um “tempo histórico” se configuraria pela diferença
entre passado e futuro nos termos de experiência e expectativa. A especificidade da forma
como os homens, ao longo do tempo, tratam a diferença entre aquilo que se poderia esperar,
no que concerne à experiência (futuro), daquilo que eles mesmos e seus antepassados já
experimentaram (passado) ditaria a relação que tais homens tem para com a história. Isso
pode parecer estranho para um tempo no qual, em meio a um processo de aceleração espaço-
temporal, um horizonte de cinqüenta anos, talvez menos, já é suficiente para apontar
mudanças significativas. O que se poderia esperar do futuro senão o inesperado? Qual relação
seria possível com um futuro que é, por definição, diferente do presente e (muito diferente) do
passado pelo simples fato de não existir?
Para o imaginário moderno a relação com um futuro é tão simples quanto naturalizada.
O futuro é para a “era das oportunidades” (CAMPBELL, 1998) não só o reino do inesperado,
como também o do “ainda não”. No amanhã residem as respostas que ainda não temos,
realizações para promessas que ainda não cumprimos, construções que sequer somos capazes
de imaginar. No amanhã jaz destruição como jamais vimos, respostas que não queríamos, e
realizações que temos medo de imaginar. De qualquer maneira, esperançoso ou desesperador,
a certeza é de que o futuro será diferente. Mas isso nem sempre foi assim
A Figura 4 é uma reprodução de um quadro encomendado pelo duque Guilherme IV
da Baviera ao artista Albert Altdorfer no ano de 1528. Sua intenção era compor uma coleção
de obras com temáticas históricas. “A Batalha de Alexandre”, magistralmente pintada por
Altdorfer, é talvez a mais famosa peça dessa coleção (KOSELLECK, 2006). Nela, a intenção
do autor era representar a famosa batalha de Alexandre Magno em Issus, ocorrida em 333 A.
C. na qual o famoso imperador derrotara as tropas persas de Dario III. A despeito das técnicas
104
de desenho, ilustração e pintura, a obra apresenta características marcantes da relação de sua
época quanto à diferença entre futuro e passado.
Figura 4 – A Batalha de Alexandre de Albert Altdorfer
Fonte: (WOOD; ALTDORFER, 1993, p.20)
A Batalha de Alexandre possui uma beleza incrível. É impressionante a maneira pela
qual Altdorfer conseguiu construir a impressão de exércitos compactos e ao mesmo tempo
105
criados por indivíduos que dão a sensação de autonomia (KOSELLECK, 2006). O movimento
de fuga dos persas é igualmente impressionante. A paisagem funciona como indício tanto de
profundidade quanto de, utilizando de um anacronismo moderno, “ideologia”. No canto
superior direito, ao lado da escrita em latim no quadro central, vemos o sol - figura metafísica
e sacra da iluminação e do bem - que nasce sob as tropas de Alexandre, tomar o espaço do
crescente - figura símbolo do mundo islâmico - que parece fugir junto com as hordas de
Dário.
De acordo com Koselleck (2006), Altdorfer desejava tornar sua obra o mais
historicamente precisa e, tendo isso em mente, buscou informações tais como o número de
participantes mortos e prisioneiros de Issus em Curtius Rufus, - “historiador” romano do
século I A.C.. Esses números podem ser vislumbrados nos estandartes carregados pelos
soldados ainda vivos, como o estandarte vermelho no canto inferior direito, ou o negro, em
seu oposto horizontal. Essa preocupação para com a precisão é fundamental para os
desdobramentos de uma leitura mais “profunda” e temporalmente crítica da obra em questão.
Uma coisa que salta aos olhos: uma vez esclarecida as intenções de veracidade e
verossimilhança do autor, é quase cômico para uma mente moderna, a maneira com a qual
Alexandre o Grande, Dário e suas respectivas tropas são retratados. A pintura, ao contrário de
retratar guerreiros macedônios ou gregos do século III A.C., mostra cavaleiros usando
armaduras completas e adornos característicos ao período medieval (FIG. 5), montando
cavalos e empunhando uma lanças pesadas também características ao medievo
(KOSELLECK, 2006).
Figura 5- "Cavaleiro" Macedônio
Fonte: adaptado de WOOD; ALTDORFER, 1993, p.20
106
Do lado de Dário (FIG. 6), de acordo com Koselleck “a maioria dos persas assemelha-
se, dos pés ao turbante, aos turcos que, no mesmo ano de composição do quadro (1529),
sitiaram Viena, sem resultado.” (2006, p. 22). Quanto a Issus, é possível vislumbrar alguns
traços arquitetônicos da “Idade das Trevas”, principalmente quanto à muralha que a rodeia,
bem como o castelo central, cujo formato lembra as construções góticas (KOSELLECK,
2006). Enfim, parece haver mais anacronismos na “Batalha de Alexandre” do que uma
representação preocupada com a fidelidade deveria aceitar.
Figura 6- "Turcos" Persas
Fonte: adaptado de WOOD; ALTDORFER, 1993, p.20
Isso certamente nos tenta a afirmar que o autor alemão incorreu em “erros de
representação histórica”. Parece óbvio o suficiente que, se a intenção era a precisão, então sua
empreitada não é mais que um imenso fracasso. O quadro claramente não mostra o contexto
histórico de Alexandre, mas sim o daquele que o cria. Tal como na interpretação foucaultiana
de Velásquez, a obra parece representar aquele que representa, mostrando a realidade do
observador que - obedecendo à dinâmica reflexiva de um espelho - se transforma em objeto
de observação (FOUCAULT, 1987). Altdorfer nos mostra mais de seu próprio tempo, mais
especificamente de seu “tempo histórico”, do que de qualquer coisa relacionada a Alexandre.
A Batalha de Alexandre é pintada em um dos três tempos históricos que são passíveis
de identificação em Koselleck. Para o esclarecimento, e conseqüente diferenciação dos três
tempos, optou-se por denominar este primeiro de “tempo histórico teológico”. Neste tempo
sacralizado a relação entre futuro e passado era ditada pela escatologia das sagradas
escrituras. Em termos de expectativa, não se podia esperar outra coisa senão a chegada do
107
apocalipse e o juízo final. O futuro era o fim do tempo, essa contingência mundana que
afastava os homens da eternidade de Deus.
A história segundo a cristandade era, pois, uma história de espera. Concebendo o
mundo enquanto uma criação divina, com data marcada para sua destruição, a doutrina
judaico-cristã fixou a arquê e o télos sob os quais se constituiria o contexto de todos aqueles
que passassem pela terra. Não é que Altdorfer não tenha compreendido as diferenças
temporais entre ele e Alexandre, tais diferenças simplesmente não existiam, não eram
manifestadas (KOSELLECK, 2006). Em verdade, de acordo com a fé cristã, tanto os
medievais quanto os antigos deveriam ser entendidos como contemporâneos. Sob a sombra da
possibilidade do fim do mundo, não haveria evento que fosse significativo o suficiente para
separar os povos historicamente (FASOLT, 2004). Dito com outras palavras, a história jamais
fora temporalizada para o tempo histórico teológico. A expectativa que se poderia cultivar
para o futuro independia do tempo cronológico em que se estivesse, sendo sempre
escatológica.
Nesse sentido a Figura 4 deve ser lida como uma representação atemporal da luta
contra o bem e o mal (KOSELLECK, 2006). A tela representa um símbolo das verdades
contidas nas sagradas escrituras - imunes aos efeitos da temporalidade mundana. Para a
mentalidade, ou imaginário medieval, a batalha de Issus representava um importante
momento rumo ao apocalipse. A vitória de Alexandre significara a passagem da segunda para
a terceira das monarquias universais, anterior à quarta e última: o Sacro Império Romano
(FASOLT, 2004; KOSELLECK, 2006). O objetivo de Roma, enquanto monarquia universal,
era manter o fim dos tempos sobre a suspensão atemporal desejada pela igreja. Seu dever era
postergar o destino escatológico da terra. Enquanto Roma existisse, o mundo continuaria
existindo.
Com a eterna espera cristã pelo Juízo Final, o horizonte das possibilidades de
acontecimentos, como dito, era muito reduzido. A rigor, não poderia haver nada de novo que
fosse realmente significante, ou então, que já não tivesse sido previsto. O futuro era o tempo
de realização das profecias e verdades de um passado, que por natureza, não poderia ser
localizado no tempo. O medievo, ao invés de período de conexão entre a Idade Antiga e a
Modernidade, uma espécie de “Idade Média”, era considerada a vanguarda da experiência
humana, vivenciando a última das quatro monarquias. Para Altdorfer, o duque da Bavária e
seus contemporâneos, futuro e passado, expectativa e experiência se mesclavam de tal
maneira que, talvez seja possível afirmar, tornava a própria diferenciação um gesto sem
108
sentido. O futuro era passado desde o início (KOSELLECK, 2006), o tempo uma ilusão que
denunciava a humanidade e imperfeição daquele que o experimentava.
Com a Paz de Augsburgo, em resposta a Guerra dos trinta anos, entretanto, ascende o
segundo tempo histórico do qual fala Koselleck. Em 1555, e no século seguinte, a parcial
secularização dos assuntos “políticos” desmanchava a igualdade semântica entre unidade
religiosa e Paz. Veio a compreensão, obtida ao longo de sangrentas batalhas, de que a defesa
da unidade cristã não salvaria a Europa do apocalipse, mas ao contrário, parecia levá-la cada
vez mais próxima ao fim. O locus da soberania passaria então dos cargos religiosos, paras
senhores de terras. Tal processo não representou tão-somente uma reorganização das
lealdades e (ou) identidades, mas uma profunda mudança na concepção de tempo histórico.
Com o fim dos tempos cada vez mais postergado - “os cálculos astrológicos deslocavam as
expectativas escatológicas para um futuro cada vez mais distante” (KOSELLECK, 2006,
p.28) - bem como a dissociação entre religião e paz, o Império Romano perdeu seu lugar
enquanto mantenedor do status quo. Essa função foi tomada pelos então Estados, ou pelas
unidades políticas seculares que acabaram de surgir.
No exercício de sua recém autorgada função, lordes, nobres e príncipes faziam uso -
além das conhecidas realpolitik e do conceito da balança de poder - de uma ferramenta que
tomara o lugar das antigas profecias escatológicas: o prognóstico. A arte do prognóstico
político só se tornou possível com aquilo que chamaremos de tempo histórico “secular-
exemplar”. O princípio norteador dessa forma peculiar de temporalidade deixa de ser a
presumida finitude de um mundo criado para se tornar seu extremo oposto, a infinitude de um
mundo que sempre esteve presente. Influenciado pela temporalidade pagã - baseada nos
eternos ciclos naturais - e no conceito de tempo aristotélico - que compreendia o mundo como
imutável - o “modelo” secular-exemplar se vale da razão e cálculo probabilístico, bem como
da experiência, para projetar no futuro expectativas plausíveis.
Em essência, e em consonância com a lógica do exempla comum à rationale
renascentista (FOUCAULT, 1987; BARTELSON, 1995), essa então nova forma de
temporalidade possibilitava o prognóstico através da possibilidade de repetição dos
fenômenos. Em um mundo virtualmente infinito, movido pelos ciclos maquiavélicos da
fortuna (WALKER, 1993), no qual passado, presente e futuro se conectavam em uma só
identidade nas máximas da análise dos interesses estatais (BARTELSON, 1995) o futuro não
reservaria nada que já não tivesse acontecido. “Nil novum sob sole (nada novo sob o sol), essa
era a máxima válida tanto para a antiguidade clássica quanto para os cristãos, no horizonte da
109
expectativa do juízo final.” (KOSELLECK, 2006, p.167). Para a Europa do pós
Renascimento, que manteve essa característica de um futuro passado, o amanhã era uma
questão de probabilidade.
É claro que a possibilidade de mudança existia, mas essa mudança só poderia ser
concebida, a rigor, em termos de uma reorganização. Portanto, era possível falar da mudança
nas formas de governo republicano, mas tal mudança, nos moldes de um ciclo sem fim,
respeitava princípios lógico-racionais. O termo “revolução”, por exemplo, longe de significar
a ruptura completa com a antiga ordem - sentido adquirido com a modernidade - dizia respeito
aos ciclos de mudanças constitucionais. Para Luis Leroy, inspirado nas doutrinas antigas das
mudanças nos regimes políticos, as monarquias tenderiam naturalmente a se transformar em
tiranias e, por fim, se dissolverem em aristocracias. Daí em diante, estas se transformariam em
oligarquias, superadas por democracias, que se degenerariam em olocracias, regime no qual
não há governo de fato, só a dominação caótica das massas. Isso abriria um vácuo de poder a
ser preenchido por um indivíduo, que reiniciaria o ciclo anterior. Essa é a mudança enquanto
metabolé tôn politeiôn, a “reviravolta de regimes.” (KOSELLECK, 2006, p.63).
Essa característica exemplar do tempo histórico secular, ou neo-pagão, evidencia um
conceito que se manteve presente e forte durante cerca de 2 mil anos. Embora tenha
representado a secularização de uma temporalidade clássica, a “proto-modernidade” não havia
conseguido destituir o papel didático do passado. Continuava plausível, como de fato o fora
para a antiguidade e a Europa cristã, buscar na experiência “histórica” respostas para
acontecimentos contemporâneos. A história [Historie], entendida como um caldeirão de
exemplos passados passíveis de reutilização, ainda detinha uma função professoral. A
Antiguidade, a Cristandade e a “proto-Modernidade” - aquilo que Foucault (1987) chamaria
de transição entre a Renascença e a Era Clássica - embora cada qual com sua maneira
particular, mantiveram-se fiéis à Historia Magistra Vitae, à experiência histórica enquanto
“mestre da vida”(KOSELLECK, 2006).
Contudo, a partir do século XVIII, essa realidade irrevogável “passou” a ser
contestada. Durante esse período é possível identificar a gradual, e de acordo com Koselleck
(2006) estatisticamente impressionante, substituição do conceito de Historie, pelo coletivo
singular de Geschichte, que inicialmente significava algo como narrativa. Tal mudança,
embora possa parecer uma simples troca de termos, teve enquanto repercussão a erosão da
antiga concepção de temporalidade. O mundo dos ciclos e das experiências passadas que se
repetiam indefinidamente perdia força ante uma concepção da História, agora passível de
110
compreensão enquanto um todo, que, dada sua natural especificidade, não poderia ensinar
nada mais do que a si mesmo (KOSELLECK, 2006). Em outras palavras, cada acontecimento
era vislumbrado como fechado em si mesmo, individualizado e específico pela verdadeira
razão de existir. Assim, o lugar de “mestra da vida” que a Historie ou as histórias, ocuparam
por cerca de dois milênios se via “arruinado”. “A história (Geschichte) como acontecimento
(Begebenheit) único ou como complexo de acontecimento (Ereigniszuasamenhang) não seria
capaz de instruir da mesma forma que uma história compreendida como relato exemplar.”
(KOSELLECK, 2006, p. 48-49).
Este é o prólogo do terceiro e, até agora, último tempo histórico identificado por
Koselleck. A dissolução do topos da Historia Magistra Vitae marca o início da Modernidade,
época de expectativas infinitas quanto à novidade, época de um futuro que não se sente
obrigado a repetir seu passado. No tempo histórico moderno, a expectativa se dissocia
completamente da experiência, não mais precisando ser “lastreada” por esta. O que esperamos
do futuro, como dito anteriormente, não é nada menos que o inesperado. Isto,
conseqüentemente, atribui à passagem do tempo algo de significativo. Se as coisas podem ser
mudadas a ponto de se emancipar o futuro da experiência histórica, então o tempo, no limite,
dissolve, ou ao menos desafia, a certeza ontológica das essências. Na Modernidade, os
eventos passam a ser particularizados exatamente porque eles se dão no tempo, e assim, estão
num fluxo constante. O futuro só é dissociado do passado na medida em que a história é
temporalizada.
O conceito de Geschichte, ou história enquanto narrativa, foi levado ao extremo e
trazido a tona para o resto do Ocidente com os acontecimentos de 1789. A emancipação do
futuro para com o passado se dava através da Revolução Francesa. Um “golpe de estado”
executado por determinado estamento para deliberadamente modificar o status quo , tomando
o poder para si, era algo absolutamente impensável dentro da lógica aristotélica da “mudança
de regimes”. As doutrinas da construção de um futuro sem classes, guerras ou quaisquer tipos
de mazelas, exigia não só a crítica kantiana, mas acima de tudo, um desprendimento para com
a experiência histórica sem precedentes nos modelos cíclico e escatológico. A singularidade
da Revolução era tamanha, que as tentativas de analisá-la através da lógica do exempla
estavam fadadas ao fracasso, o que minara a credibilidade do modelo. Os franceses bradaram
ao mundo muito mais do que o ideal de “igualdade, liberdade e fraternidade”. Eles afirmaram,
em alto e bom tom, que o amanhã poderia ser diferente.
111
Figura 7- Colônia Espacial
Fonte: CORN; HORRIGAN et al., 1996
A Figura 7 foi criada no final da década de 1970. Nela, há ao menos três informações
que a associam à época moderna, e que a diferenciam da “Batalha de Alexandre” de
Altdorfer. Em um primeiro momento, é perceptível, ao contrário do amálgama de
anacronismos empregados pelo artista medieval, há heterogeneidade entre a representação e o
contexto histórico na qual foi feita. A ilustração nos mostra um futuro amplamente diferente
de seu presente. Ambientada numa espécie de colônia espacial (é possível perceber o reflexo
de um planeta no que talvez seja um vidro na parte superior da ilustração) a “cidade do
futuro” é permeada por construções flutuantes cuja arquitetura lembra muito vagamente os
arranha céus de hoje. Tudo é tecnológico ao extremo e os indivíduos desfrutam amplamente
dessa tecnologia, com a satisfação - talvez por finalmente terem realizado o que a
modernidade lhes prometera - estampada em um sorriso largo. Mas acima de tudo, através da
metáfora da possibilidade do voar, a figura demonstra a liberdade. Ser capaz de voar, de se
movimentar por todos os eixos dimensionais, significaria transgredir a última fronteira.
É essa liberdade que separa a temporalidade moderna de suas antecessoras. Com a re-
significação das revoluções, a ascensão do “homem racional” (CAMPBELL, 1998) e a
temporalização da história, o futuro deixava de ser passado e o amanhã se emancipava do
ontem. Em termos de possibilidade, o tempo histórico moderno dissolve o limite na
capacidade imaginativa humana. Tudo parece ser possível e o único elemento necessário para
consegui-lo é o tempo. Um tempo que o homem agora tem em suas mãos.
112
A emancipação do futuro (expectativa) em relação ao passado (experiência) tem como
conseqüência imediata a maior necessidade de dissociação entre essas duas dimensões do
tempo: o antes e o depois. Se acredita-se que o futuro pode realmente ser diferente de seu
passado, algo improvável para os tempos históricos teológico e secular-exemplar, então,
juntamente com o esfacelamento da Historia Magistra Vitae tem-se o rompimento de uma
seqüência cronológica que outrora se daria de forma contínua. Na medida em que aceita que
as coisas podem não mais ser como sempre foram, o tempo histórico moderno introduz uma
heterogeneidade em um tempo que parecia, naturalmente, transcorrer de forma homogênea. É
por isso que, voltando ao quadro de Altdorfer, Koselleck (2006) sugere que parece ter passado
mais tempo nos 100 anos do século XVIII do que nos aproximadamente 1500 anos que ligam
a batalha de Issus à renascença. Uma vez que a passagem do tempo se torna significativa, as
dimensões temporais do “ontem” e do “hoje” são bruscamente seccionadas.
Usa-se a palavra “hoje” porque, a rigor, o futuro enquanto existente é uma função do
tempo presente (FASOLT, 2004). Mesmo se for pensado em termos de expectativas, nos
moldes daquilo que Koselleck propõe, o ato de manter expectativas depende de um ponto
referencial do qual estas são mantidas, de um determinado locus temporal a partir do qual se
pensa adiante. Esse ponto é que nos é dado como presente no exato momento em que
esperamos algo. Expectativas são mantidas no presente, o futuro depende deste. Nesse caso,
para que verdadeiramente se emancipe do passado, e experimente a liberdade moderna, o
futuro necessita de um presente desde já liberto. Portanto, a relação mais importante para a
definição do tratamento dado à temporalidade não é entre futuro e passado, ou presente e
futuro, mas sim entre passado e presente.
A diferenciação moderna entre o passado e o presente, que liberta a expectativa do
lastro da experiência, não nos é estranha. Ela é a condição de possibilidade do que foi
chamado de historicismo-crítico, ou historiografia descontinua no segundo capítulo. Na
medida em que a homogeneidade cronológica é interrompida pelo tempo histórico moderno,
fazendo da passagem do tempo de algo insignificante à fonte do sentido, o contextualismo se
transforma no método historiográfico. Quando o passado é visto como diferente do presente,
seu acesso se torna condição de sua compreensão. Se as coisas não são mais “hoje” como elas
foram “ontem”, então para compreender como elas eram, se faz necessário compreender esse
“ontem”. Não em termos de um presente vivo, que nos é imediatamente acessível, mas em
termos de um passado que já se foi. O contextualismo, esse mandamento historiográfico
113
(FASOLT, 2004; HOOPER, 2007), tem por função tornar o passado, agora uma dimensão
temporal heterogênea, em algo inteligível.
A mudança na percepção temporal de um “futuro passado” para a temporalidade
moderna historicista não possui implicações tão-somente epistemológicas,67
da ordem de uma
“história dos conceitos”, mas também política, relevante à uma “história social”. A rigor, a
história é política, não no sentido que possa ser manipulada em prol de interesses particulares,
tampouco na questão ideológica. A história é política em sua essência pelas conseqüências
com respeito à verdade, liberdade e significado que o posicionamento frente a ela implica.
Para demonstrar essa relação de poder advinda de uma quebra epistemológica, como a
genealogia deve de fato fazer (FOUCAULT, 2008), vale lembrar uma controvérsia dos
séculos XV a XVII quanto a uma unidade política que influenciava diretamente na vida
cotidiana: O Sacro Império Romano Germânico.
Em meados de 1643, um livrete revolucionário chegou às mãos da alta sociedade
européia letrada. Tinha por título Discursos Novus de Imperatore Romano-Germanico e
proclamava uma verdade estarrecedora. O Discursos Novus decretava o fim do Império
Romano, a última das quatro monarquias universais, a responsável pela postergação do dia do
juízo final. Em sua capa, enquanto autor, constava o nome de um professor e médico da
Universidade de Helmstedt, Herman Conring. Conring poderia ser considerado um homem no
mínimo corajoso, porque em menos de 50 páginas conseguira desafiar todo um conhecimento
tradicional enraizado, bem como a palavra de Deus em si.
Durante séculos a Europa medieval conheceu uma verdade intocável. A história do
mundo transcorreria pelo surgimento e “corrupção” de quatro grandes impérios antes de
terminar no armagedom. “Todos estavam familiarizados com as antigas verdades [...] você as
aprendia na escola.” (FASOLT, 2004, p.133, tradução nossa).68
A última e contemporânea das
quatro monarquias seria o Império Romano, representante legítimo das forças do bem na luta
contra o mal. A existência do Império era tida como uma simples obviedade, bem como o
papel do imperador como senhor de tudo o que há no mundo. Essas verdades irrevogáveis
provinham de dois dos textos mais importantes da sociedade medieval: a Bíblia Sagrada e o
Direito Romano. Ambos, longe de serem compreendidos enquanto criações humanas, como
evidências de um conhecimento histórico específico, reproduziam a vontade e intenção de um
mesmo autor: Deus, o criador do mundo e de tudo o que existe.
67
Em verdade, a diferenciação entre epistemologia e política, idéia e matéria, ou discurso e prática é
problemática. Como visto em Campbell (1998) e Foucault (1987) é o discurso que disciplina e possibilita a
prática, sendo indissociável desta. 68
Everyone was familiar with the old verities [...] You learned those things in school.
114
Na bíblia, mais precisamente no evangelho de Lucas, há uma frase em particular que
reforça a idéia de dominação universal. No decorrer do texto, Lucas informa que um
determinado decreto de Cesar Augusto exigia que o mundo inteiro fosse taxado pelos fiscais
imperiais (FASOLT, 2004). O conhecimento de tal decreto tornava razoável a afirmação de
que Roma possuiria direitos por sobre toda a criação divina. Ora, só se podem coletar
impostos nas terras sobre as quais se possui controle. Se Cesar desejou a tributação de todo o
mundo, então era mais do que plausível pensar que este era seu domínio. Como não se
permitia pensar a possibilidade de que Lucas estivesse mentido, tampouco a de uma
interpretação não-literal das escrituras sagradas - um argumento que seria utilizado mais a
frente por Conring - o assunto se dava por encerrado. Dentre os ensinamentos bíblicos estava
o de que o Cesar era o senhor do mundo.
Quanto ao direito romano, a questão se dava de forma igualmente clara. O Corpus
Iuris da cidade de Roman, centro da quarta monarquia universal, estabelecia que o imperador
fosse o dominus mundi. O termo dominus era derivado de dominium que, sem maiores
problemas, poderia ser traduzido para o português contemporâneo em algo como
“propriedade”. Possuir dominium sobre alguma coisa era ser seu proprietário, seu dono.
Dominium, assim como seu correlato contemporâneo, era um direito em sua essência
indivisível. Se alguém detinha dominium sobre algo, somente esse alguém haveria de detê-lo.
De acordo com o direito romano, portanto, o imperador, e somente o imperador era o
proprietário do que se entendia por mundo. Em um mundo no qual a divisão entre as esferas
do público e do privado, se é que se pode dizer que de fato existia, era incipiente, isso
significava que o Imperador era o senhor, o lorde de tudo.
Para Conring69
, todavia, isso não passava de uma superstição velha e tola. O
imperador romano não poderia ser chamado de dominus mundi pelo simples inconveniente
factual de jamais ter dominado o mundo. Seu argumento se estrutura em duas partes: uma
histórico-factual e a outra de ordem legal. Apelando aos fatos, Conring demonstra que, na 69
Assume-se aqui, e de certa maneira Fasolt (2004) também o faz, que a posição expressa pelo Discursos Novus
é a real posição de Conring. É necessário dizê-lo porque, após a publicação do mesmo, Conring se revoltou. O
suposto autor não gostou de ver seu nome atrelado a um trabalho que, segundo Fasolt, possuía um teor
revolucionário maior do que Conring poderia suportar em público. Isso traz uma polêmica quanto a autoria do
texto e quanto à sua atribuição a Conring. No entanto, o Discursos Novus se baseara completamente numa
dissertação – ou o equivalente medieval: dissertatio - de um ex aluno da universidade de Helmsted, Otto Von
Bogislaus, cuja defesa fora orquestrada por Conring, seu “orientador” na época. Na medida em que as
dissertatio, disputatio ou exercitatio do Século XVII poderiam ser em parte ou integralmente escrita pelo
professor, tendo o aluno a única obrigação de defendê-la em uma argüição pública, é razoável pensar que o texto
do Exercitatio de Imperatore Romano Germanico – o nome do trabalho – ao menos coaduna com as principais
opiniões de Conring. Ademais, caso fosse o contrário, ela poderia não ter sido aprovada quando de sua defesa.
Para mais informações sobre a autenticidade do Discursos Novus ver: FASOLT, C. The limits of history.
Chicago: University of Chicago Press, 2004. xxi, 326 p.
115
realidade, Roma sequer se estendera pela maior parte do globo, a despeito da significância de
suas conquistas, e detinha, em sua época áurea, uma parte ínfima do total da Terra. O
Imperador Romano não poderia ser senhor do mundo. Ora, mesmo que tivesse conquistado
todo o mundo conhecido ainda não poderia estender seu dominium sobre as terras do novo
mundo, supostamente fora do conhecimento geográfico antigo e medieval. Quanto ao Direito
Romano, Conring julgava absurdo que a lei positiva de uma cidade em particular atribuísse
direitos sobre todo o mundo. Tal fato lhe parecia tamanha ingenuidade que o fazia argumentar
que até uma criança saberia os limites da jurisdição romana (FASOLT, 2004). Quanto à
Bíblia, como dito, ele enfatizava a necessidade de interpretá-la num sentido menos literal. Por
mais que Lucas tivesse dito “o mundo inteiro”, isso deveria ser entendido como uma
expressão, ou talvez uma metáfora.
Em suma, segundo Conring - tendemos a concordar com ele por motivos explicitados
mais adiante - o Império Romano nunca foi universal de fato, e em parte como conseqüência,
nem de direito. Historicamente, só um tolo, ou louco afirmaria o contrário. Roma não só não
tinha conhecimento da existência da América como não conseguira conquistar algumas partes
da velha Europa. Ademais, já no século XVII os Reinos da França, Inglaterra, Veneza, Grécia
e os Otomanos, dentre outros, ignoravam deliberadamente os direitos que o suposto lorde do
mundo deveria ter sob seus territórios. O argumento parece claro como água: de que adianta
possuir dominium, ou direito de propriedade, se não é possível exercê-lo?
Isso levara a uma conclusão política substancial. Os reis alemães deveriam parar de
despender preciosos recursos para receberem o título (inútil) de imperadores romanos. A
prática de marchar à Itália central, comum desde a nomeação de Otto III, exauria o escasso
tesouro germânico e, além de vã, aumentava as possibilidades de guerra e destruição em um
mundo político instável, pós-reforma protestante. Acreditar que o Império Romano não existia
mais, no sentido de monarquia universal, e que se existisse, só poderia ser no sentido de
“cidade de Roma e seu entorno”, que então eram controlados pelo papado, significava poupar
gastos, vidas e sofrimento.
Durante seu estudo histórico-político – talvez um termo pleonástico – de
desmistificação da qualidade do imperador romano de dominus mundi, Conring visa um autor
contra o qual e a partir do qual constrói sua crítica. Conring faz de “bode expiatório” da
mentalidade medieval-renascentista o jurista Bartolo de Sassoferato, por ter defendido
ferrenhamente a universalidade e veracidade do dominium romano. Para Conring, Bartolo era
ingênuo o suficiente, menos sagaz que uma criança, a ponto de advogar em favor de uma
116
interpretação literal do evangelho de Lucas e do Direito Romano. Bartolo era tolo o
suficiente, louco o suficiente para afirmar que o Império Romano havia sobrevivido à
passagem do tempo. Em sua defesa, restava apenas sua ignorância. De acordo com Conring,
os fatos históricos que o fizeram questionar a validade do título de imperador romano para os
alemães, eram desconhecidos por Bartolo.
Esse argumento é por demais tentador. Simples, fácil e satisfatório, transformaria
nossa relação com o passado em uma questão de descobertas. Conring revogou os direitos de
propriedade do imperador romano, pois descobria novos fatos sobre seu passado que não os
sustentavam. Simples assim, caminhamos linearmente na medida em que acumulamos
conhecimento. Simples assim, a diferença entre Conring e Bartolus se transforma no resultado
de uma equação numérica, um resultado puramente quantitativo. Todavia, se aprendemos algo
com os debates da filosofia da ciência das décadas de 1960 e 1970, é que as coisas não são
assim tão simples (WALKER, 1993). Felizmente, podemos ser mais sofisticados do que isso,
e afirmar um veemente não. Podemos recusar essa caricatura que Conring nos apresenta de
Bartolo (FASOLT, 2004), podemos respeitá-lo. Bartolo não era louco nem ingênuo, era
apenas diferente. E se há algo que devemos fazer, é não tratar tal diferença com a “arrogância
liberal” (BARTELSON, 1995) moderna.
Sassoferato escrevia tendo em mente não o tempo secular ou moderno dos fatos, mas o
tempo eterno de Deus. Se Conring se embasava no conhecimento histórico, Bartolo via a
verdade nas palavras das sagradas escrituras. Isso incluía o Direito Romano, cuja menção na
bíblia, dentre as quais se destaca a passagem de Lucas, transformava em direito divino aquilo
que Conring julgava ser positivo, humano, contingente. Escrevendo suas obras em pleno
século XVI, Bartolo não poderia ignorar a verdade transcendental do criador. Não porque
tivesse medo de ser rechaçado pela mais importante instituição da época, ou ainda porque
precisasse de argumentos convincentes para a atribuição do status de hostis70
. Deus não era
um meio para ele, era a mais pura verdade. Tal como os fatos históricos para Conring as
verdades transcendentais de Bartolo são aquilo que sustentam seu argumento, que moldam
sua faculdade de pensar (FASOLT, 2004). Essa diferença epistêmica, como é de se esperar,
70
Durante o período medieval, aproximadamente em meados do Sec. XII, um dos principais desafios dos
Juristas era esclarecer o conceito de “povo romano”. Isto se fazia necessário porque a legislação romana, sendo
um dos mais importantes livros do medievo, previa sérias conseqüências para aqueles que, independente à razão,
haviam sido feitos prisioneiros por “estrangeiros”. O código previa que a captura de um cidadão de Roma por
outro cidadão de Roma constituía um crime, mas não tornava o malfeitor um inimigo de Roma. Assim, se um
indivíduo fosse capturado por um romano, seus bens não eram “expropriados”, seu casamento não era anulado e
ele não perderia sua cidadania. Mas se, ao contrário, o mesmo indivíduo fosse capturado por hostis, os não-
romanos, tais conseqüências automaticamente se aplicavam (FASOLT, 2004). Numa Europa medieval, afligida
por conflitos constantes, essa era uma questão da mais alta importância.
117
implicava em projetos políticos diametralmente opostos. Se para Conring o Império Romano
estava absolutamente morto, circunscrito ao entorno de Roma, para Bartolo ele continuava
vivo e, por direito, detinha o mundo.
Mas como era possível ser lorde de tudo, sendo de fato desobedecido por tantos, como
Conring tão claramente mostrara? Como era possível que o imperador fosse senhor de todo o
mundo se os reis da França, Veneza, Itália Lombarda Inglaterra e Grécia permaneciam
senhores em seus respectivos territórios? Como era possível dividir o dominium, que pelo
Direito Romano era indivisível? Bartolo sabia de um jeito, e era tão brilhante quanto
inconcebível à mentalidade moderna. De fato, para a antiguidade, o direito de propriedade, ou
dominium, era virtualmente indivisível. Caso contrário, bem, não faria sentido algum a idéia
de “propriedade privada”, excluindo-se todos os anacronismos que tal expressão possa por
ventura levantar. Assim, quando a lei de Roma estabelecia as terras sobre as quais o
imperador possuía dominium, ela estava de fato indicando que ele, e somente ele, exerceria
imperium71
sobre aqueles que por elas passassem.
Durante o medievo, contudo, isso mudou drasticamente. Para o mundo pré-cartesiano
da similitude, a essência das coisas não estava exatamente nas coisas, mas nas relações
possíveis entre elas (FOUCAULT, 1987; FASOLT, 2004). Nesse contexto, para o qual a
analogia importava mais do que a substância, um dos afazeres prediletos dos juristas
medievais, segundo Fasolt (2004), era o desmembramento e a divisão do dominium de
diferentes formas, a depender do relacionamento da coisa em questão - sobre a qual se possui
propriedade - para com as partes em disputa. Citando um exemplo particularmente
interessante, era possível pensar um pastor, proprietário de um rebanho de ovelhas, que a
rigor, não possuísse dominium sobre nenhuma delas individualmente. Transpondo o
raciocínio ao mundo político, na ausência de uma partícula indivisível que conferisse a
qualidade de “mínima unidade política” e organizasse o mundo estatal - em outras palavras,
na ausência da soberania (BARTELSON, 1995) - era possível reivindicar direitos de
propriedade sobre o mundo, sem qualquer pretensão quanto às partes que o compõe. O todo
era, no limite, diferente da soma de suas partes. O conjunto em si formava um algo sobre o
qual era possível possuir dominium. A afirmação de Bartolo, de que o imperador romano era
de fato e de direito o dominus mundi, quando vista a luz de seu próprio tempo histórico, nada
tem de insana. Em nada importa a “independência” factual da França, Inglaterra ou Grécia
para com o Império Romano. De nada interessa a existência oculta das Américas. Mesmo que
71
Quanto à diferença entre dominium e imperium ver : FASOLT, C. The limits of history. Chicago: University
of Chicago Press, 2004. xxi, 326 p.
118
o Ocidente inteiro, mesmo que o mundo por completo o desobedecesse, ou ignorasse seu
poder, sua iuris dictio, suas leis, o imperador ainda seria o seu senhor. Não havia partícula
indivisível que o impedisse, não havia soberania e não era clara a divisão entre
público/privado.
Da discordância entre Conring e Bartolo surge a conclusão mais importante de Fasolt
para os fins do presente trabalho. Não é possível transcrever - de forma minimamente
satisfatória - os termos utilizados por Conring de acordo com o léxico de Bartolo, e vice
versa. Os dois argumentos, o de Bartolo tendo em vista a eternidade e o de Conring a história,
são incomensuráveis (FASOLT, 2004). Isso significa dizer que não existe uma linguagem
neutra através da qual se poderia traduzi-los objetivamente (KUHN, 2007), sendo então
impossível julgar qual dos dois é o melhor. Isso não só diz respeito à polêmica do século
XVII, mas também a todos os tempos históricos aqui descritos, bem como à metodologia da
contextualização.
Conring contestara a tradição ao levar em conta o conhecimento histórico. Por mais
que em determinado momento o imperador romano tivesse de fato merecido o título de
dominus mundi, o que o Discursus Novus mostrava não ser o caso, a história havia
transformado tal situação. Agora, em 1643, o poderoso “Império” se restringia a uma cidade
controlada pelo papado. Por mais banal que possa parecer, essa atribuição de significado à
passagem do tempo permitira a afirmação da independência do presente de Conring para com
seu passado, ela viabilizara sua autonomia. Além disso, a perspectiva histórica do Discursus
Novus o tornava incomensurável em relação à obra de Bartolo. Sassoferato, preocupado não
em contestar a tradição, mas em reforçá-la, trabalhando sob uma temporalidade medieval-
cristã, não via o fim de Roma como uma oportunidade de se emancipar de seus antepassados,
mas como o prólogo do apocalipse. Para Bartolo, ou o futuro repetia o passado, ou não
haveria mais futuro.
Mas é no exato instante em que percebemos e aceitamos a incomensurabilidade entre
ambos que a ironia se revela. Compreender que Bartolo não estava errado é, ao final, afirmar
com todas as letras que Conring estava certo. Quando o anacronismo é deixado de lado e
julgamos Bartolo segundo suas próprias regras, seu próprio contexto, estamos no mínimo nos
colocando do lado de Conring, do lado da história. Ao entender o sentido atribuído por um
jurista influenciado pelo tempo histórico de Deus, faz-se uso de um imperativo historicista
que é em muito estranho àquele que nos propomos a compreender. Colocam-se as idéias de
Bartolo em seu devido contexto histórico, sob o pretexto de que, ao fazê-lo, seria mais
119
respeitosos para com ele, mas no fim, contextualizamos e particularizamos o transcendental e
absoluto no qual tal homem acreditava. Não precisamos dizer abertamente, como Conring,
que Bartolo era ingênuo ou tolo por não olhar o mundo através da história (FASOLT, 2004).
Nosso método já o faz de maneira velada.
Existiram diversas formas de lidar com o tempo histórico ao longo do tempo. Foram
citados aqui as temporalidades Sacra, Secular-exemplar e Moderna. Através dessa espécie de
genealogia do conceito de história a historicidade é finalmente devolvida ao lugar de onde tão
somente emanara. Mas o processo nos levou à incomensurabilidade, à aporia, ao não-lugar.
Descobriu-se que a prática de conferir historicidade à história acabava por hierarquizar e
“congelar” temporalmente uma maneira (moderna) de lidar com a temporalidade sobre as
demais. Afinal, porque deveríamos supor que o método da contextualização, que a
diferenciação entre o passado e o presente do qual ela depende, que, em essência é fruto de
um tempo histórico específico, deveria valer para além de suas fronteiras cronológicas? Não
continuaríamos a julgar Bodin, relembrando o exemplo de Bartelson (1995), de acordo com
nossos critérios e não os seus, se analisássemos suas idéias à luz de seu contexto específico?
Como demonstrado no capítulo dois, o contextualismo parece ser o meio pelo qual as
obras pós-estruturalistas de Walker (1993), Campbell (1998) e Bartelson (1995) atacam a
violência72
ontológica do Realismo estrutural, quando este “congela” o sentido da soberania
para a formação das unidades políticas de um sistema internacional presumidamente imutável.
Acontece que tal contextualismo, quando analisado a luz de seu próprio contexto histórico,
não se mostra menos “violento”. Colocar as coisas em seu devido contexto, assumir sua
relação com seu respectivo tempo histórico dissociando, pois, um passado que já se foi de um
presente vivo, é violar desde já, todas as outras formas possíveis de lidar com o tempo, formas
que não necessariamente respeitam tais axiomas. O método contextualista, tal como a
oposição passado/presente é uma ferramenta da modernidade.
4.2 Presente/Passado como Oposição Metafísica
Essa violência presente no imperativo contextualista evidencia não só um ato isolado,
uma violência particular, mas talvez, uma expressão de todo um conjunto, toda uma “era” de
72
Violência no sentido utilizado por Emanuel Levínas, quando descreve a supressão do outro, da diferença e do
tempo, na ontologia, no mesmo e na ousia (ουσία). Para Levínas (DERRIDA, 2009, p. 130): “Incapazes de
respeitar o outro em seu ser e em seu sentido, fenomenologia e ontologia seriam, pois, filosofias da violência.
Através delas, toda tradição filosófica seria cúmplice, em seu sentido e em profundidade, da opressão e do
totalitarismo do mesmo”.
120
violência chamada “logocentrismo” (DERRIDA, 1994; CULLER, 1997; STOCKER, 2006;
DERRIDA, 2008; 2009). Para Derrida (2008), o logocentrismo é pelo menos tão antigo
quanto a história do que é compreendido hoje como Ocidente, tão antigo quanto a metafísica.
A despeito das diferentes interpretações para o termo metafísica, o sentido que lhe é
atribuído por Derrida é algo próximo a uma transcendentalização, que consiste na redução das
diferenças empíricas, que constituem o fluxo caótico do tempo, sob uma forma a temporal
(DERRIDA, 2009). De uma forma ou de outra o logocentrismo da tradição metafísica, em
busca de uma verdade absoluta, “eternizada” na metáfora da luz e do sol, incorreu ao longo da
história na supressão das diferenças que “ameaçavam” a unidade do Ser, de Deus, da essência
e do que é imutável.
Dizer que o logocentrismo subordina a força à forma, que ele apaga as diferenças da
realidade empírica caótica em prol da unidade do ser é, dentro da lógica derridiana, acusá-lo
do exercício de abstração (STOCKER, 2006). Toda a vez que uma característica determinada
é abstraída de um todo, o que ocorre, invariavelmente, é o apagamento das multiplicidades de
outras características presentes no todo para que se dê à consciência, apenas o alvo da
abstração. Quando se deseja abstrair, por exemplo, o formato de uma laranja, ou de outra
fruta qualquer, é inevitável percorrer um processo por meio do qual todas as outras
características da fruta, tais como a cor, o cheiro e a textura são desconsideradas, deixadas de
lado, para que ao final só reste seu formato, no caso da laranja, a circunferência. Mas
nenhuma laranja tem como formato uma circunferência perfeita. Quando abstraímos o
formato das laranjas, num problema particularmente caro à metafísica, que consiste no
equacionamento do um e do múltiplo (TOMAS; NASCIMENTO, 1999; ARISTÓTELES,
2006; PLATÃO, 2008), desconsideramos também, por meio do apagamento das diferenças,
tanto as imperfeições de laranjas individuais, bem como as diferenças de formato entre todas
as laranjas existentes. Aliais, o próprio exercício de pensar o que vem a ser uma laranja, em si
mesmo, necessita desse apagamento das diferenças. A rigor, cada existente individual, cada ti
esti é diferente um do outro, tornando a abstração generalizante algo impossível, a não ser
pela supressão das desigualdades. Essas diferenças suprimidas são o que Derrida chama de
força, de realidade caótica, de empiria.
A forma (eidos) abstraída, portanto, é aquilo que sobrevém às vicissitudes desta força
e do caos, representando a essência fora-do-tempo dos existentes particulares. Ela se constitui
enquanto atemporal porque, em termos aristotélicos, não sofre as ações de geração e
corrupção, ou seja, as ações da mudança às quais estão sujeitos todos os seres mortais, todas
121
as coisas que se dão no tempo. O eidos é aquilo que permanece a despeito do fim dos
particulares que o carregam. O gênero73
é aquilo que não deixa de existir caso um de seus
“participantes” definhe. Ao contrário, ele é o que dita os particulares, aquilo que faz com que
suas diferenças desapareçam frente a uma unidade abstrata.Tendo em vista todos os homens
que já passaram sobre a terra, a “humanidade”, sua forma, é o que os definiu enquanto tal.
Esse é o papel da ousia, o papel da identificação de uma presença essencial, abstraída em
meio ao caos empírico, que dita a natureza do ser.
A lógica logocêntrica funciona através das chamadas oposições binárias, ou oposições
metafísicas (DERRIDA, 1994; 2008; 2009). Uma oposição binária é construída quando dois
termos são sobrepostos de modo a criar uma hierarquia axiológica ou de qualquer outra
natureza (CULLER, 1997). O primeiro termo é geralmente valorizado em detrimento de um
segundo termo que representaria, de alguma forma, uma privação de seu oposto,
caracterizando-se enquanto sua forma decaída. São exemplos de oposições metafísicas as
dicotomias verdade/mentira, justiça/injustiça, certo/errado, homem/mulher,
entendimento/desentendimento e sentido/ausência de sentido. Em todas as oposições existe
uma valorização da presença frente à ausência, o que justifica o nome dado por Derrida à era
logocêntrica de “metafísica da presença” (DERRIDA, 2008). O problema dos segundos
termos, a privação que eles representam, é ausência do que é logicamente privilegiado. A
mentira é ausência de verdade, o erro é a ausência de acerto, o desentendimento é a ausência
de entendimento e a mulher representa a ausência de tantas características (masculinas) que
não caberiam no limitado espaço do presente trabalho.
É nesse exato contexto - da metafísica da presença - que o imperativo contextualista se
mostra parte da história da metafísica. Ora, o que significa colocar as coisas em seu devido
contexto histórico? Por que devemos compreendê-las à luz de seu tempo? Segundo a
rationale historicista, ou, de acordo com Fasolt (2004), toda a historiografia, a compreensão
dos fenômenos históricos acontece mediante a contextualização dos mesmos em seus
respectivos períodos. Nesse modelo de metodologia histórica está implicado o mesmo
mecanismo logocêntrico de valorização da presença. Compreender os fenômenos à luz de seu
respectivo tempo histórico é compreendê-los tendo em vista os acontecimentos74
presentes ao
seu próprio acontecimento.
7373
Estamos plenamente conscientes de que o Ser, para Aristóteles, não é uma espécie de Gênero, e sim um algo
que pode ser predicado de diversas formas (DERRIDA, 1994; ARISTÓTELES, 2006). O exemplo acima é tão
somente utilizado para ilustrar a transcendentalidade da ousia. 74
Tanto factuais quanto epistemológicos.
122
O que é o contexto senão o presente? O que é o contexto histórico senão o presente de
um passado ausente no presente que o busca? A metafísica da presença opera, com respeito à
historiografia descontínua e ao historicismo-crítico de modo a valorizar a presença do
presente (passado) em detrimento de sua ausência (presente). O historicismo em geral nos diz
que não é possível compreender o por que de determinados acontecimentos históricos cujo
presente, o contexto, não nos é presente em nosso tempo. Dessa forma, ele igualmente
hierarquiza a presença de um passado ausente à ausência de um presente vivo, trabalhando
sobre uma oposição basilar de presente/passado75
. Presente como termo privilegiado porque é
nele que se encontra a chave para a compreensão histórica. Passado como termo decaído
porque, de acordo com Fasolt (2004), ele está ausente, para sempre longe de nosso alcance
pleno. Um outrora presente vivo que já se foi e decaiu à forma de um passado morto.
Como toda oposição hierárquica, a dicotomia presente/passado pode, ou melhor deve,
ser desconstruída. Mas antes de fazê-lo, antes de descrever a desconstrução do conceito
tradicional de tempo derridiana se faz necessário conhecer o pensamento contra qual e à partir
do qual a desconstrução é pensada. Um pensamento que se baseia numa faceta ainda não
explorada da metafísica: o logocentrismo como “fonocentrismo”:
O privilégio da phoné não depende de uma escolha que teria sido possível evitar.
Responde a um momento da economia (digamos da “vida” da “história” ou do “ser
como relação a si”). O sistema do “ouvir-se-falar” através da substancia fônica – que
se dá como significante não-exterior, não mundano, portanto não empírico ou não
contingente – teve de dominar durante toda uma época a história do mundo, até
mesmo produzir a idéia de mundo, a idéia de origem do mundo a partir da diferença
entre o mundano e o não-mundano, o fora e o dentro, a idealidade e a não-
idealidade, o universal e o não-universal, o transcendental e o empírico (DERRIDA,
2008, p.9).
A história da metafísica apresenta ainda uma dicotomia particular, aquela proveniente
da relação entre significado e significante, as duas faces do signo saussuriano. Para a filosofia
primeira, o significado (a descrição ideal de algo) diria respeito à uma presença presente a si
na consciência no momento da fala, enquanto o significante (a imagem acústica) representaria
o meio material através do qual significado seria expresso no mundo.
Para a lógica fonocêntrica, o sentido de um determinado signo lingüístico está presente
em seu significado, de modo que ao significante, o meio material a partir do qual do qual o
sentido é transmitido, seria tão-somente uma espécie de suplemento, uma adição
desnecessária e perigosa que poderia comprometer a verdade, pela ausência do significado
75
123
que carrega em si. Em outras palavras, o significante, a imagem acústica que possibilita a
representação seria perigosa na medida em que abriria para a possibilidade do
desentendimento. No significado, a presença plena do sentido e da intenção impossibilitariam
quaisquer falta de entendimento, enquanto que, em sua morte, na ausência do significado
carregada pela existência do significante, a privação de um sentido pleno, original, que é
então re-presentado76
, abre espaço para o erro. O significante, ao carregar a ausência do
significado, “infesta” o sentido pleno com a diferença caótica do fluxo empírico.
Mas o que isso quer dizer? Em termos práticos, a valorização axiológica e
epistemológica do significado (presença) sobre o significante (ausência) incorreu diretamente
na valorização da fala sobre a escritura. Pensemos o processo de representação lingüística da
forma como Foucault (1987) o faz, no qual uma idéia é representada em um “índice” que é
então representado em sua exteriorização, numa espécie de dupla representação. Ora, o índice
estaria mais próximo da idéia representada do que de fato a exteriorização do índice que,
nesse contexto, já seria uma representação da representação inicial. A lógica do
fonocentrismo, apesar de ligeiramente diferente, funciona de maneira análoga.
A metafísica sobrepuja a escritura à presença da fala desde seus primórdios. Para
Aristóteles: “Os sons emitidos pela voz [...] são os símbolos dos Estados da alma[...] e as
palavras escritas, os símbolos das palavras emitidas pela voz” (DERRIDA, 2008, p.13).
Utilizando a lógica do exemplo foucaultiano acima, os sons emitidos pela voz, a fala, estariam
mais próximos dos Estados da alma do que as palavras escritas, meros símbolos dos símbolos
que constituem a voz. Nessa série entre alma e matéria, entre interioridade e exterioridade,
cada movimento em direção à escritura é um movimento que se afasta, tanto lógico quanto
espacialmente, do sentido presente no estado da alma. De acordo com Platão (STOCKER,
2006), é uma questão simples. Como estou presente no momento em que falo, posso corrigir
meu interlocutor de qualquer desvio que porventura aconteça na apreensão do sentido daquilo
que digo. Quando em minha ausência, quando a expressão do meu estado da alma é
representada por palavras mortas, isso já não é mais possível. Não posso corrigir os
desentendimentos alheios porque não estou lá, não estou presente para fazê-lo. A escritura é a
minha ausência, leva em si a minha morte. É o pharmakón, o veneno platônico que abre a
possibilidade do erro.
76
A forma escrita “re-presentação” é um artifício utilizado por Derrida para reforçar o sentido da presença plena
na cadeia de significação. Portanto, algo é re-presentado quando se busca de alguma forma suplementar a
ausência de sua presença originária perdida.
124
Por vezes, contestou-se que a fala fosse uma vestimenta para o pensamento [...] Mas,
alguma vez duvidou-se que a escritura fosse uma vestimenta da fala? Para Saussure
chega a ser uma vestimenta de perversão, de desarranjo, hábito de corrupção e de
disfarce, máscara de festa que deve ser exorcizada, ou seja, conjurada pela boa fala.
Já se lança suspeição que, se a escritura é “imagem” e “figuração” exterior, esta
“representação” não é inocente. O fora mantém com o dentro uma relação que, como
sempre, não é nada menos do que simples exterioridade. O sentido do fora sempre
foi no dentro, prisioneiro fora do fora, e reciprocamente [...] Segundo os
pressupostos histórico-metafísicos que evocamos mais acima, haveria aí,
primeiramente, um liame natural do sentido aos sentidos e é o que passa do sentido
ao som: “liame natural, diz Saussure, o único verdadeiro, o do som” (p.35). Este
liame natural do significado (conceito ou sentido) ao significante fônico
condicionaria a relação natural subordinando a escritura (imagem visível, diz-se) à
fala. (DERRIDA, 2008, p.42-43).
É essa relação natural da fala para com o pensamento que justifica a exclusão da
escritura no modelo saussuriano, que em um segundo momento, dada sua característica
sincrônica, excluiria também a fala (parole) da análise das diferenças. Aqui a degradação
axiológica da escrita como segundo termo da oposição é perceptível: ela é tratada como uma
máscara, um disfarce uma perversão exterior, algo que quebra com o liame natural entre
mente e fala. Para a contemporaneidade, fortemente influenciada pelo pensamento
logocêntrico, o sentido das proposições é geralmente atribuído às intenções daqueles que as
proferem. Ora, se um indivíduo x afirma que, por exemplo, não existem círculos quadrados,
mas não quer dizer necessariamente isso porque o faz em tom de ironia, entendê-lo seria
errado. Nessa lógica, sentido e intenção são quase idênticos e a verdade jaz na consciência.
Assim, parece ser mais importante o que se “quis dizer” do que o que de fato se disse.
Isso trás a tona uma função não esclarecida da escritura, a de meio. A escrita, o signo
lingüístico em sua face material inscrita, sempre fora percebido pelo fonocentrismo como um
mero mecanismo de representação exata de sua contraparte, a voz. Isto porque, de acordo com
a lógica da suplementaridade (DERRIDA, 2008) a inscrição vem adicionar a possibilidade da
iteração. A voz, que possui uma relação de representação natural para com a alma, tem, como
efeito dessa mesma naturalidade, que se apagar no momento em que foi proferida. A voz, a
presença quase plena de um significado na psyché, não podendo se repetir no tempo,
representa a morte. É a escritura, sua adição artificial, sua “máscara perversa” que inscreve o
fonema e possibilita sua re-presentação ao infinito, mesmo na ausência, na morte de quem o
proferiu.
A escritura então, a inscrição do fonema em uma superfície material que permite a
repetição ao infinito é igualmente condição de possibilidade e impossibilidade - conceito
comum ao pensamento de Derrida (CULLER, 1997; STOCKER, 2006) - da transferência de
sentido entre uma consciência e seu outro. Sem a imortalidade virtual da inscrição, o sentido
125
não pode ser re-presentado para além do horizonte temporal da vida da consciência que o
possui, para longe de sua presença. Minha fala, esta ligação natural com minha alma, só
funciona como mecanismo de comunicação se eu sou, tal seja, se eu estou vivo (DERRIDA,
2008). Minha morte, nesse sentido, põe fim à possibilidade de que minhas intenções sejam
expressas a um mundo exterior. É preciso que haja (arqui)escritura para fazê-lo. Mas isso não
é tão simples. A mesma escritura, que abre a possibilidade para o meu entendimento ante
minha morte, também traz em si a possibilidade, descrita acima, do desentendimento sem a
minha correção.
Aquilo mesmo que permite com que minhas “palavras” sejam imortais, impossibilita
com que elas sejam plenamente compreendidas, podendo até, permitir seu completo
desvirtuamento. Quando escrevo algo eu “me ausento”, no sentido rousseauniano da
expressão (DERRIDA, 2008), me escondo em minha morte para então compreender o que
possuía com minha presença.
Essa concepção de escritura enquanto meio, enquanto artifício de uma fala que deseja
prolongar sua “vida” está intimamente ligada à percepção da escritura fonética enquanto um
tipo mais elaborado, mais sofisticado de inscrição material. A oposição metafísica entre
significado/significante estabelece outra hierarquia, a escritura fonética/escritura hieroglífica.
A escritura fonética seria uma escritura própria à civilizações mais avançadas, a povos cujo
grau de sofisticação intelectual sobrepujou o estágio metafórico inicial da linguagem. Os
fonemas inscritos reproduzem de maneira satisfatoriamente fidedigna - com algumas
imperfeições ou adições desnecessárias77
- os sons emitidos pela fala, as verdades presentes
nos Estados da alma. A escritura hieroglífica, por falta de uma definição mais apropriada aos
símbolos utilizados pelos homens primitivos, é em contrapartida compreendida como um
vestígio dos estágios primários da comunicação humana. Seu formato é o formato da
metáfora, um movimento de transporte de sentido, um artifício conotativo, que demanda um
alto grau de interpretação para sua compreensão, alto demais para os padrões metafísicos.
Enquanto a escrita fonética prontamente atende ao objetivo quase mecânico - que lhe
fora atribuído pelo fonocentrismo - de expressar o sentido da alma, das intenções, o mais
objetivo e diretamente possível, isto é, sem percalços desnecessários que incorram no perigo
do desentendimento e desvirtuação dos vocábulos, a escritura hieroglífica tem nos seus
símbolos uma metáfora que resguarda centenas de interpretações diferentes. Ademais, é uma
77
Derrida utiliza o exemplo da palavra Lefrèvre, um nome de família que sofreu alterações com o tempo e
passou a ser pronunciado Lefebure “com um b que jamais existiu realmente na palavra, e um u proveniente de
um equívoco” (DESCARTES apud DERRIDA, 2008, p.50)
126
escritura apaixonada (DERRIDA, 2008), algo não muito de valorizado na história metafísica
da busca pelo controle racional sobre as emoções78
. Se na escritura fonética (ocidental) as
intenções são “claramente” expressas, evidenciando o avanço das civilizações que a utilizam,
os hieróglifos remetem a um tempo das cavernas, cujas formas de inscrição espacial do
homem não eram mais sofisticadas que um mero desenho, uma figura, uma imagem.
Não importa em que forma, ou modelo, a escritura é uma adição desnecessária à
plenitude de um estado de natureza originário. Um supostamente supérfluo suplemento que
introduz a possibilidade do erro, desvirtuando o simples jogo da naturalidade e sinceridade de
uma fala que transporta imediatamente o sentido presente na alma (DERRIDA, 2008).
A oposição fala/escritura também traz a tona outra espécie de oposição metafísica,
trabalhada nas obras de Rousseau e Lévi-Strauss, a dicotomia natureza/cultura. Uma relação
bem conhecida da filosofia entre physis e nomos (GILSON, 2004), entre o que é natural aos
homens e aquilo que é por eles instituído. A oposição natureza/cultura é sobreposta pela
lógica fono-logocêntrica à oposição entre fala e escritura. A fala, o liame imediato que
conecta a alma ao mundo exterior seria algo de ordem natural. A escritura, o signo inscrito
que traz a morte do significante, um artifício criado pela cultura. A hierarquia axiológica
persiste. O natural é valorizado frente à artificialidade de uma cultura que, na condição de
suplemento, de adição, não teria razão nenhuma para existir. Para Rousseau, não há o que
suplementar em uma natureza completa em si mesmo. A cultura, em sua função aditiva seria
desnecessária, supérflua e viciosa.
De acordo com Derrida (2008) a lógica de Lévi-Strauss é singular. Compreendendo a
relação entre natureza e cultura nos termos do universal e do particular, respectivamente,
Lévi-Strauss abandona uma preocupação estritamente ontológica frente ao tabu do incesto,
em prol de supostos benefícios práticos. Ora, se o “natural” corresponde ao domínio do
universal, a tudo aquilo que é comum a todos os homens, independente de variações nas
estruturas de significação locais e o “cultural” conseqüentemente, ao domínio das instituições
artificiais que causariam tais variações, então o incesto é uma aporia, um não-lugar. Tal como
algo proveniente da natureza, ele é universal – podendo ser observado em todas as
comunidades humanas do globo – contudo, também é uma regra social (DERRIDA, 2008).
E tal como o homem é naturalmente bom, ele aprende naturalmente aquilo que
também o é como, por exemplo, a fala. O homem começa primeiro a falar, ainda em terna
idade, e só depois, quando o convívio em sociedade, a vida em meio às instituições artificiais
78
Ver a crítica platônica aos mitólogos e poetas no que tange à educação em: PLATÃO. A República. Lisboa:
Fundação Calouste Gulbenkian, 2008.
127
da cultura o corrompe é que ele aprende a escrever. Ou ainda, não seria esse (o aprendizado
da escritura) um primeiro passo rumo à corrupção? Não seria através do ensino da escrita que
a ordem natural seria violada e desfigurada pela vida em sociedade? Em relação a isso Lévi-
Strauss é assertivo: “A escritura, exploração do homem pelo homem.”(DERRIDA, 2008,
p.147). Em uma experiência etnológica peculiar a afirmação é explicada:
Ora, mal havia ele reunido todo o seu pessoal, tirou de um cesto um papel coberto de
linhas tortas, que fingiu ler, e onde procurava, com uma hesitação afetada, a lista dos
objetos que eu devia dar em troca dos presentes oferecidos: a este, contra um arco e
flechas, um facão de mato” a outro, contas! para os seus colares... Essa comédia se
prolongou durantes duas horas. Que esperava ele? Enganar-se a si próprio, talvez;
mas, antes, surpreender os companheiros, persuadi-los de que as mercadorias
passavam por seu intermédio, que ele obtivera a aliança do branco e participava dos
seus segredos (LÉVI-STRAUSS apud DERRIDA, 2008, p.155).
O trecho acima trata de um grupo de índios Nhambiquara, uma população nativa da
América do sul, que segundo Lévi-Strauss, não conheciam a arte da escritura. Uma das ações
do etnólogo quando em contato com os indígenas, foi distribuir papeis e lápis entre eles,
observando sua reação. Para sua surpresa, embora acanhados de início, os índios começaram a
imitá-lo, construindo linhas que, nada significavam, no papel em branco. Para Lévi-Strauss,
contudo, o chefe da população Nhambiquara entendeu muito bem o significado daquela
prática estranha. Ele parece, como indica o exemplo, ter compreendido a função dissociadora
da escritura, que divide os homens entre aqueles que a dominam e os que não. O chefe,
fazendo-se passar por entendido, fingindo ser o único a tomar parte naquele código,
inacessível aos demais, percebeu uma forma de ludibriá-los, de exercer dominação sobre eles.
A conclusão de Lévi-Strauss é impactante. A outrora boa, gentil, simples e igualitária
comunidade Nhambiquara havia - através de seu contato com a escritura - se tornado uma
comunidade divida entre dominados e dominantes.
É em virtude dessa exterioridade - sentido presente em suplemento - viciosa da
escritura que opera um pensamento contra o qual Derrida (1994) talvez tenha exercido sua
crítica mais ferrenha: a redução fenomenológica de Husserl. O que a história da metafísica
enquanto fonocentrismo nos mostra, como visto, é a constante hierarquização da fala sobre a
escritura, baseado numa “proximidade” lógico-espacial desta para com a consciência, o estado
da alma. Este distanciamento do significante “substancial” (a escritura) em relação ao
significante acústico (a fala) representaria a abertura ao erro e ao desentendimento, advindos
da morte, da ausência (mais significativa) de um significado presente no signo inscrito. Ora, a
ausência de uma consciência que esclareça qualquer dúvida que possa existir para os que lêem
128
sua expressão inscrita tem grande possibilidade de se traduzir na não-compreensão. A
conseqüência lógica é que a verdade, a presença plena de um significado, só pode ser
acessada na consciência, no interior de um cogito vivo àquele que pensa, no ponto de
proximidade total à própria alma. Husserl entende, em sua fenomenologia, que para alcançar
esse ponto do sentido absoluto, um estado de interioridade plena, bastaria excluir toda a
exterioridade e ausência da re-presentação.
Husserl primeiramente divide as possibilidades de significação do termo signo
(zeichen) entre índice (anczeichen) e expressão (ausdruck) (DERRIDA, 1994). No sentido de
índice, o signo teria por função a indicação pura e simples, diferindo da expressão, pela
ausência de intenção vinculadas no seu processo de significação. Um índice pode ser natural -
como os sulcos observados na superfície do planeta Marte - ou artificial - como no caso de
uma seta inscrita na casa de uma árvore (DERRIDA, 1994). Independente ao tipo, a função
indicativa do signo responde por apontar ou sugerir a presença anterior de algo que, ao vir-a-
ser, deixara sua marca. As marcas na superfície de Marte podem atestar a passagem de um
cometa ou um evento qualquer que as tenham feito - inclusive a existência prévia de vida
inteligente (DERRIDA, 1994) - ao passo que sinais grafados em árvores podem indicar a
existência (passada ou presente) de uma população humana no entorno. Acima de tudo, é
preciso compreender que a indicação não necessita de nenhuma intenção específica para
funcionar. Independente da intenção primeira do homem que cravou a seta, após a sua morte,
ela indica tão somente a sua existência e, sobretudo, não intenciona nada ao fazê-lo.
O signo expressivo, em contrapartida, se caracterizaria pela transmissão de uma
intenção, um conteúdo discursivo expressivo quando de sua significação. Essa expressividade
(bedeutung) presente na expressão transmite um “querer-dizer” (bedeuten), algo que se
intencionara compartilhar à outrem através do processo de comunicação. O querer-dizer
husserliano, o signo em sua função expressiva, responderia a uma necessidade do transporte
do significado dos fenômenos experimentados por uma existência subjetiva, uma consciência,
a uma outra existência subjetiva. Tais fenômenos, denominados “vividos” por Husserl
(DERRIDA, 1994) precisariam da função significante do signo para serem compartilhados
entre consciências particulares. Na mente, na interioridade da alma, na conjunção de um “eu”
consigo mesmo, os vividos não precisariam da função significativa, de acordo com a
interpretação derridiana (1994) da fenomenologia, pois se dariam no exato momento em que
acontecem. Isto quer dizer que os fenômenos experimentados pela consciência são
significados de imediato, ou melhor, não precisam ser significados porque adquirem sentido
129
àqueles à quem afligem automaticamente quando acontecidos. Uma sensação, por exemplo,
seja de medo, dor, felicidade ou ansiedade, quando acomete um ser consciente, já possui um
sentido automaticamente ao acometê-lo, “significando” prontamente o medo, a dor, a
felicidade e a ansiedade experimentados. Em nossa consciência, na absoluta interioridade
atemporal da mente, não se faz necessária a função significativa, diante da plenitude do
sentido presente a si. O que vivencio já se traduz imediatamente a mim.
Então, o primeiro passo da fenomenologia seria separar, através da dissociação entre
“expressão” e “índice” a experiência - de um modo característico à metafísica - em duas
dimensões opostas: uma interioridade e uma exterioridade. Na dimensão interior estariam os
vividos e seus respectivos sentidos plenamente presente à consciência. Na parte exterior,
estaria o signo indicativo e sua função absolutamente ausente de expressividade. A conclusão
que se segue em Husserl, dada essa primeira clivagem, é a impossibilidade da existência, no
mundo, de um signo unicamente expressivo, de uma bedeutung pura. Para Husserl, “o
querer-dizer, está sempre emaranhado, agregado a um sistema indicativo” (DERRIDA, 1994,
p.28) de modo que a face material do signo, seja um grafema ou fonema, está sempre
associada à indicação. Para que se queira dizer algo, é preciso também indicar. Embora haja
exemplos de pura indicação na natureza, é impossível que haja exemplos de pura
expressividade, ao menos no que tange à exterioridade mundana.
Desse modo, “por um estranho paradoxo, o querer dizer só isolaria a pureza
concentrada da sua expressividade no momento em que ficasse suspensa a relação com um
certo exterior” (DERRIDA, 1994, p.30). Ou seja, para acessar a expressão pura, em sua
plenitude de sentido, seria necessário incorrer na dissociação de tudo aquilo que fosse
indicativo, e portanto físico, exterior. A pura expressão, o querer-dizer husserliano só pode ser
alcançado através da presença a si na consciência, quando (supostamente) a relação com outro
é cortada por completo.
Esse gesto, a redução fenomenológica, é paradoxal se admitirmos, como Husserl o faz
(DERRIDA, 1994), que a função primeira de um querer-dizer é a bedeutung, a expressão de
algo que se quer dizer efetivamente na comunicação. Ora, a razão do meu querer-dizer parece
ser a existência de um outro incapaz de tomar parte em meus vividos presentes plenamente
em minha consciência. Se não há um outro, se não há o mundo exterior com o qual
efetivamente queira me comunicar, minha intenção de fazê-lo parece perder o sentido. A
expressão embora construída em minha mente, não parece ser de muito uso na interioridade
da relação de mim comigo mesmo. Por definição, nada posso me dizer que desde já não saiba.
130
Nada posso comunicar que já não tenha sentido. O “solilóquio”, este diálogo interno, não
precisa da significação. Quando ela ocorre, quando falo comigo mesmo, quando me escuto
falar à consciência, isto não é mais que uma fantasia, uma desnecessidade, um teatro. Husserl
estabelece a verdade, o sentido mais puro e pleno das expressões discursivas lá, onde o
discurso não se faz necessário. A redução parece paradoxal, mas não por isso é incoerente:
O que acabamos de chamar de paradoxo, na verdade é apenas o projeto
fenomenológico em sua essência Além da oposição, do “idealismo” ou do
“Realismo”, do “subjetivismo” e do “objetivismo” etc., o idealismo transcendental
fenomenológico responde à necessidade de descrever a objetividade do objeto
(Gegenstand) e a presença do presente (Geeenwart) — e a objetividade na presença
— a partir de uma “interioridade”, ou antes, de uma proximidade a si, de um próprio
(Eigenheit) que não, é um simples dentro, mas a íntima possibilidade da relação com
um lá e com um fora, em geral. É por isso que a essência da consciência intencional
só se revelará (por exemplo, em Idées I, § 49) na redução da totalidade do mundo
existente em geral. (DERRIDA, 1994, p.30-31).
Husserl põe em prática os princípios da metafísica - apesar de, dada sua associação à
tradição cartesiana, desejar extirpá-la de seu pensamento - em todos os passos da redução
fenomenológica. O querer-dizer é a expressão de um sentido presente à consciência. Cuja
forma decaída é aquela que, emaranhada com a indicação, traz em sua re-presentação, a
ausência da “presentação” original. Husserl admite que o signo indicativo, sendo a escritura
claramente um exemplo deste (DERRIDA, 1994), é hierarquicamente inferior à expressão, no
que diz respeito à veracidade e plenitude do sentido. Seria plausível dizer então que a
fenomenologia husserliana é uma forte expressão da metafísica da presença. O fono-
logocêntrismo em sua história, como se pretendeu mostrar, é o privilégio sob qualquer forma,
da presença, interioridade, significado fala e, segundo o presente trabalho, “contexto” frente a
ausência, exterioridade, significante, escritura e ausência de contexto. Um pensamento tão
velho quanto o Ocidente que define o ser, desde Parmênides (WEIZSÄCKER, 1968) na forma
da permanência, e que o impede, seguindo o princípio basilar da não contradição
(ARISTÓTELES, 2006) de “não ser”.
Mas o saber metafísico não é isento de contradições, e é esse ponto que Derrida
explora em sua filosofia. Para desconstruir, isto é, desnaturalizar a oposição presença/ausência
(sob a qual todas as outras oposições convergem) é preciso evidenciar essa incoerências, as
aporias presentes no discurso logocêntrico, e mostrar como estas exercem um papel, ao
mesmo tempo, de suas condições de possibilidade e impossibilidade.
Seria interessante começar a desconstrução do logocentrismo através do ilustrativo
paradoxo de Zenão (CULLER, 1997; ZEHFUSS, 2002; STOCKER, 2006). Imagine um
131
arqueiro, portando um arco e flecha. Uma flecha é retirada da aljava e equilibrada em paralelo
ao arco fazendo com que este, em uma espécie de prontidão, mantenha sua corda
maximamente tensionada, à espera do comando do arqueiro, que se soltar a flecha a dispara
no ar. Imagine agora que o comando é dado. O arqueiro solta a flecha e esta então voa pelo ar
percorrendo um movimento parabólico até acertar seu alvo.
Onde estava a flecha durante o movimento? Ora, é quase natural admitir que a flecha
é. Ela é empunhada, é manipulada, é emparelhada e, por fim, é solta. Ela é capaz de voar, é
feita de maneira e é eficiente em sua função de acertar o alvo. Ela pode ser leve ou pesada, a
depender do que é feita, mas sem duvida alguma a flecha é. Seria, talvez todos concordemos,
tolice afirmar o contrário.
Mas o que significa “ser” (το ον) de acordo com a metafísica/ontologia/filosofia
primeira? Ser, em qualquer um dos múltiplos sentidos que possui, significa estar presente.
“Eu sou” quer dizer eu estou aqui presente. “Eu sou” quer dizer também que eu sou “aquele
que não mais estará presente”, que há de se ausentar quando do momento da minha morte.
“Eu sou” quer dizer, afinal, que eu sou mortal (DERRIDA, 1994).
Tendo em vista o sentido de ser enquanto presença, voltamos a pergunta inicial: onde
estava (presente) a flecha durante o movimento? Para respondê-lo, é preciso pensar o
movimento espacial temporalmente, e considerar o vôo da flecha como uma sucessão de
pequenos instantes nos quais esta esteve presente em determinado lugar. Num instante a é
possível dizer que a flecha se encontra, está efetivamente presente no ponto x¹. Num instante
b ela passa a estar presente num outro ponto x². No instante c em um ponto x³ e assim por
diante.
Existem ao menos duas maneiras possíveis de responder a esse paradoxo. A primeira
seria concluir que o movimento é uma ilusão advinda da sucessão de “presenças pontuais” da
flecha em diferentes pontos do espaço. Mas isso seria simplesmente corroborar a noção de
“ser como presença” própria à metafísica. Não é o caso de Derrida (DERRIDA, 1994; 2008;
2009). Para ele, não é o movimento que se mostra ilusório através do paradoxo de Zenão, mas
sim a noção de ser enquanto presença (CULLER, 1997; ZEHFUSS, 2002). Invertendo a
lógica da primeira resposta, a resposta metafísica, é possível pensar que a presença é uma
ilusão “macroscópica” de um infindável fluxo temporal, de um constante movimento
interminável. Ora, o que vem a ser um instante? Certamente ele não é uma espécie de unidade
indivisível que ordenaria o tempo. Melhor seria indagar: quanto dura um instante? Um
segundo? Meio segundo? Um milésimo de segundo? Seria possível definir as fronteiras
132
temporais do instante, quando o presente efetivamente se torna passado? Seria, no mínimo,
absurdamente complicá-lo dizê-lo. Afinal, o tempo é uma convenção, o que faz do instante
uma mera ilusão. O passado e o presente, de fato não se dissociam, são partes de um mesmo
fluxo (FASOLT, 2004).
A desconstrução explora esse elo frágil do logocentrismo, essa impossibilidade de se
pensar o ser enquanto presença numa realidade que se dê no tempo. A ontologia, a noção de
que os existentes possuem uma essência, uma natureza, é incompatível com uma noção de
tempo fluido, inapreensível pelo instante. Ao conceber a possibilidade da
natureza/estrutura/ontologia/identidade ignora-se o fato, aceito inclusive por Husserl
(DERRIDA, 1994) de que os vividos acontecem no e ao longo do tempo. “O ser é assim
oposto a toda temporalidade. Segundo Parmênides, o ser 'não foi' e 'não será' porque isso
implicaria mudança.”(WEIZSÄCKER, 1968, p.55, tradução nossa).79
Ora, o que seria da
essência se fosse sujeita à mudança? O que seria da identidade se fosse um mero acidente?
Para lidar com esse duplo movimento de vir-a-ser-tempo no espaço e vir-a-ser-espaço
no tempo Derrida (1994; 2008; 2009) cria o conceito de différance. A différance é um
neologismo que associa o termo francês différence (diferença) ao sufixo “ance”, que denota
uma ação (CULLER, 1997). Significando ao mesmo tempo diferir, diferença e diferimento, a
différance é talvez mais facilmente compreendida como uma conjunção, uma fusão dos
conceitos de diferença saussuriana e da ação diferida (nachträglich) pensada em Freud.
A lógica da lingüística de Saussure - que para ser geral - exclui a parole, o âmbito da
contingência, de uma análise estruturalmente fechada, impede o pensamento do
funcionamento da língua no tempo. Sua análise, como vislumbrado no primeiro capítulo,
estabelece uma série de diferenças espaciais, tal seja, sincronicamente pensadas que atribuem,
dada uma determinada configuração, sentido ao significado esvaziado (HARLAND, 1987;
DOSSE, 1993; DERRIDA, 2008). Nesses termos, a estrutura do sistema lingüístico é mais
importante do ponto de vista significativo do que suas próprias unidades (os termos). Essa
diferença sincrônica, pensada não enquanto um decaimento da presença metafísica no mesmo,
mas enquanto uma fonte sistêmica de sentido, já é, em princípio, um desafio ao
logocentrismo. Se pensamos que a oposição do sentido aos termos que a constituem, e não o
contrário, a idéia de uma natureza originária, como em Rousseau e Lévi-Strauss, da intenção
primeira em Husserl e Aristóteles, ou de uma fala que fosse originalmente anterior à todo e
qualquer tipo de escritura - como em toda tradição metafísica - cai por terra. Pensado na ótica
79
El ser es así opuesto a toda temporalidad. Según Parménides, el ser “no fue” y “no será”, porque eso implicaría
cambio.
133
da diferença aplicada às oposições binárias, o primeiro termo, o
axiologicamente/logicamente/epistemologicamente valorizado não faria sentido algum se não
fosse “contemporâneo”, no sentido de existência em um mesmo horizonte temporal, ao seu
outro, o termo decaído. Em outras palavras, a presença não teria um sentido presente à si, mas
compartilhado pela contraposição à ausência.
A conseqüência mais impressionante da diferença saussuriana aparece quando esta é
introduzida numa perspectiva temporal. Até então pensada de maneira sincrônica, Derrida
transporta a atribuição de sentido pela oposição, pela diferença a uma espécie de linha
temporal que contempla a desconstrução da origem. Ele pensa o movimento e a diferença
como conceitos emaranhados que desafiam a ingênua concepção do transcendental. E seu
alvo principal é o querer-dizer husserliano que se escora na presença à consciência.
Freud serve de meio para essa introdução da diferença sincrônico-espacial no tempo.
De que modo? Através da descrição de um brinquedo. Em meados de 1987 a psiquiatria tinha
em vista um problema considerável: descrever o mecanismo da memória (DERRIDA, 2009).
O problema consiste na aparente inconsistência que a memória, ou melhor, que a mente
humana demonstra quanto ao armazenamento e recepção de informações. Somos capazes de
armazenar na memória fatos que aconteceram há décadas e ainda assim permanecermos de
algum modo virgens a novas informações. A memória parece funcionar igualmente bem tanto
para a assimilação quanto para a recepção, e não apresenta limites aparentes. Dever-se-ia,
então, contemplar um modelo que explicasse essa dupla-função mental. Usualmente, tal tarefa
era feita por meio dos conceitos provenientes das ciências naturais. Freud concebeu, em um
primeiro momento, que o mecanismo de retenção da memória e o mecanismo de recepção de
informações novas estariam situados em diferentes células do sistema nervoso, o chamado
mecanismo das “grades de retenção” (DERRIDA, 2009). Existiria um tipo de célula, digamos,
w responsável pela memória passiva, e outra z responsável pela percepção ativa. Essa teoria se
provaria problemática na medida em que as células, por definição, apresentavam limites
físicos incongruentes com a ilimitada capacidade apresentada pela mneme.
Essa idéia de retenção que permaneceria capaz de apreensão, todavia, encontraria a
metáfora perfeita trinta anos mais tarde, ao se deparar com um pequeno aparelho que havia
sido recentemente lançado no mercado, o bloco mágico:
O bloco mágico é uma tabuinha de cera ou de resina, de cor marrom escuro, rodeada
de papel. Por cima, uma folha fina e transparente, solidamente presa à tabuinha no
seu bordo superior, enquanto o seu bordo inferior está nela livremente sobreposto.
Esta folha é a parte mais interessante do pequeno dispositivo. Ela própria se compõe
134
de duas camadas que podem ser separadas uma da outra, exceto nos dois bordos
transversais. A camada superior é uma folha de celulóide transparente; a camada
inferior é uma folha de cera fina, portanto transparente [...] não precisamos de lápis
nem giz, pois a escrita não depende, aqui, da intervenção do material sobre a
superfície receptora [...] Uma ponta aguçada risca a superfície cujas depressões
produzem o “escrito”. No bloco mágico, esta incisão não se produz diretamente mas
por intermédio da folha de cobertura superior. A ponta pressiona, nos lugares que
toca, a superfície inferior do papel de cera sobre a tabuinha de cera, e estes sulcos
tornam-se visíveis como uma escrita escura na superfície do celulóide que é liso e
cinza esbranquiçado. Se quisermos destruir a inscrição, basta destacar da tabuinha de
cera, com um gesto leve, pelo seu bordo inferior livre, a folha de cobertura
composta. O contato íntimo entre a folha de cera e a tabuinha de cera, nos lugares
riscados dos quais depende o devir-visível da escrita, é deste modo interrompido e já
não se reproduz quando as duas folhas repousam de novo uma sobre a outra. O
bloco mágico fica então virgem de escrita e pronto para receber novas inscrições.
(FREUD apud DERRIDA, 2009, p.327-328).
O fantástico mecanismo que incorpora as funções de retenção e apreensão
virtualmente ilimitadas traz uma inversão surpreendente do funcionamento da consciência.
Em pleno Século XIV, Freud propõe uma teoria segundo a qual nós não estamos no controle,
ao menos não no sentido tradicional. Ele afirma que ao invés de chegar primeiramente à
consciência (a superfície de celulóide superior) as informações percebidas passam
diretamente por ela, como se fosse literalmente transparente, e se inscrevem no inconsciente
(a camada de cera inferior). Só então, pelo contato entre inconsciente e consciente, tal como
no bloco mágico, os sulcos, os traços gravados no camada inferior se fazem aparecer na
camada superior. O que acreditamos ser nossa consciência, se torna consciente pelos rastros
de um inconsciente que lhe é - conscientemente - inacessível.
Isso muda tudo. Esse simples e magnífico gesto muda absolutamente tudo. A partir
daí, as oposições presença/ausência, natureza/cultura, fala/escritura e - insistimos em
adicionar –contexto/ausência de contexto - caem por terra, são desmanteladas.
“Tudo começa pela reprodução”, admitira Freud, “sempre já, isto é, depósitos de um
sentido que nunca esteve presente, cujo presente significado é sempre reconstituído mais
tarde, nachträglich, posteriormente.” (DERRIDA, 2009, grifo nosso, p.311). Não há presença
viva - justificativa das oposições metafísicas - que não seja desde já uma reprodução, um
rastro originário. Só o que há é a reprodução: a indicação no inconsciente de que em algum
momento passado nele algo se inscrevera, e a presença à consciência, que já se da de início
como “re-presentação”, se dissolvendo tão logo é percebida, e retornando à sua ausência
originária.
O nachträglich é mais bem ilustrado pelo exemplo da prática psicanalítica de Freud.
Lembremos o chamado caso de “Ema” (CULLER, 1997). Ema, nome fictício da paciente, era
uma garota que apresentava um estranho medo de lojas. Ela acreditava que isso se dava em
135
função de um episódio que acontecera por volta de seus treze anos. Ema se lembrava de ter
entrado em um estabelecimento e, ao ver dois homens rindo, fugira com medo. Freud,
todavia, conseguira alcançar mais da memória da garota do que ela própria. Ele seguira esse
trauma até a idade de oito anos, quando Ema, ao entrar numa loja, vira um empregado local
bolinar seus genitais (CULLER, 1997).
Quando se originou o medo? Quando se deu o trauma? É impossível dizer. Ver um
homem tocar sua genitália seria algo dificilmente significativo para uma garotinha de oito
anos. É somente com a chegada da puberdade, e a abertura para a sexualidade que o trauma,
silenciosamente preservado no inconsciente como uma lembrança qualquer se manifesta. O
trauma em si nunca aconteceu, jamais esteve presente como um “vivido husserliano”. Ele se
constituiu pela ação diferida, não possuindo origem exata, senão uma não-origem.
A différance então, a diferença ativa, serve à desconstrução da idéia de origem, de
uma presença anterior a tudo, antes da qual nada de fato seria. Ela revela a “ilusão ontológica”
do exercício de abstração atemporal que suprime, mascara uma importante “verdade” do
processo de significação. “Algo pode ser uma seqüência significante somente se é iterável,
somente se pode ser repetido em vários contextos.” (CULLER, 1997, p.138). O sentido de
uma coisa, só pode existir, se houver a possibilidade de sua repetição ao infinito, mantendo-se
semelhante.
Figura 8- Iterabilidade e Significação
Fonte: elaborada pelo autor
A significação é uma função da possibilidade de repetição/iteração com a continuação
do sentido. Na origem da cadeia de significação, onde (E¹ = x), é impossível saber ao certo o
sentido do significante E, sem vislumbrar a seqüência da cadeia. A única forma de conceber
(E = x) é construir uma estrutura sincrônica que desconsidere a variável T, a temporalidade.
Tão logo essa estrutura é inserida no tempo a igualdade se desfaz enquanto essência e se
transforma numa função da repetição. Como mostra a Figura 8, o significante E¹ só é
136
associado ao significado x na medida em que se repete em um momento T² como E²,
mantendo-se x constante. Se, hipoteticamente, o significado do significante E variasse com o
passar do tempo T, E, ao final nada significaria. Se em T², E² significasse, suponhamos, y ao
invés de x e em T³, E³ significasse z então não seria possível identificar em T¹ o que E¹
significa. A conseqüência lógica é impossibilidade da presença plena (e ao mesmo tempo
significativa) na origem. Aquilo que acreditamos ser a identidade, ou a essência de E, é na
realidade fruto da repetição, uma “ilusão ontológica” do processo de iteração. O que
entendemos por natureza significativa de E é fruto de sua permanência de sentido no tempo,
conseguida através da repetição. Se tentássemos retroceder na cadeia de significação ao
máximo jamais alcançaríamos a origem. Só a partir do momento T² é que se torna possível
aferir o significado x de E - assumindo que, ao longo da cadeia, ele continuará o mesmo.
O que entendemos enquanto o significado de E é o efeito diferido de T¹, a mesma
nachträglich da relação consciente-inconsciente. Assumindo o significado como fruto de sua
permanência em meio à repetição, tem-se que o E só efetivamente significa posteriormente
em T². A significação se da na diferença entre T² e T¹ , uma diferença espaço-temporal, que
repercute no sentido estando ausente em T¹.
No entanto, ainda observamos a existência em um tempo T¹ de um significante E¹ cujo
significado é x. Como afinal E¹ chegou a significar x? Sabemos que o processo de
significação, a identidade de um significante para com seu significado é uma atribuição da
permanência no tempo, através da repetição, mas isso não resolve nosso problema. Sabemos
que a ilusão ontológica de (E = x) só se torna inteligível, só é construída, a partir de T², mas
também sabemos que na origem T¹, E¹ significa x. Uma solução seria pensar que (E = x)
estaria de fato presente no momento T¹, e que os instantes que se seguem, a re-presentariam.
Mas a lógica da différance não nos permite fazê-lo. Ela admite que tudo é em si mesmo
repetição e, portanto, que a “origem” T¹ é igualmente uma ilusão. Na origem, não há
presença, somente o rastro originário.
A relação do significante E¹ com x, no instante T¹ só nos é dada enquanto significativa
porque, a rigor, ela já se da como repetição. Repetição, rastro, adição originária de uma
origem que nunca esteve presente. Retroceder mais ainda na cadeia não adiantaria, o sentido
pleno nunca é encontrado. A suplementação originária é uma relação ao infinito. Como disse
Freud, “tudo começa pela reprodução” (DERRIDA, 2009, p.311).
137
Figura 9 - O rastro/Suplemento originário
Fonte: elaborada pelo autor
Isso traz conseqüências devastadoras para a metafísica da presença. Não é possível
mais pensar numa natureza primeira, no sentido em que o fazem Rousseau e Lévi-Strauss, que
fosse simplesmente suplementada, adicionada pelas instituições culturais. Lá na origem, lá na
natureza antes entendida enquanto plena, já residia a possibilidade da complementação.
Afinal, só se adiciona um algo a alguma coisa na medida em que nela esse algo falta. E se a
natureza plena, em sua constituição, já concebe uma ausência que permita o suplemento,
então sua plenitude há de ser revista. A escritura, essa artificialidade que as instituições
adicionam - desnecessariamente, devemos frisar - à naturalidade da fala, é na realidade,
condição de possibilidade desta. Ora, só a escritura é virtualmente atemporal, só ela abre
espaço à repetição no infinito. Desde a primeira palavra, desde que o homem pronunciou seu
primeiro fonema, a escritura sempre esteve presente, na forma do rastro originário e do
mecanismo de significação (iteração). Não a escritura como a conhecemos, mas a “arqui-
escritura”, a inscrição originária da qual fala e escrita são diferentes subtipos.
Quanto à função de bedeutung, o querer-dizer husserliano que seria fonte de verdade e
sentido das proposições enunciadas, há uma inversão substancial. A intenção, o quere-dizer só
se faz possível mediante a iterabilidade proporcionada pela função indicativa (exterior) que
Husserl condena. Não posso querer dizer nada se nada se repete no processo de significação
exterior. Quando, por exemplo, afirmo que “o cachorro late” só posso fazê-lo porque, antes de
tudo, “o”, “cachorro” e “late” possuem um sentido que poderia ser compreendido, isto é,
repetido com algum grau de permanência, na ausência do cachorro, do latido e de minha
consciência. A minha expressão se da em função da indicação da qual faz uso, e não o
contrário80
.
Quanto ao imperativo contextualista, a compreensão dos fenômenos históricos à luz de
seu tempo, a conclusão é igualmente surpreendente. Se não há presença plena presente à
80
Assumindo, é claro, que não existe pensamento fora da linguagem (DERRIDA, 2008), o que nos parece
perfeitamente plausível.
138
consciência, não há razão de haver na história. O que tomamos como “contexto” no sentido
particularista a ele atribuído pela tradição historicista, se compreendido enquanto um
presente-passado de um tempo que nos é ausente é, desde já, a ausência de contexto. Pensar a
história - assim como Derrida (2008) a pensa ao afirmar que “não há nada fora do texto”-
enquanto uma seqüência de eventos significativos que poderiam ser lidos do mesmo modo
que qualquer outro significante, o “texto mundo” (STOCKER, 2006), é pensá-la a partir do
rastro originário. O presente, para que faça sentido, para que se constitua como um evento
histórico, precisa ser, desde já um passado, um suplemento, uma repetição.
Não importa, pois, que vislumbremos os fenômenos à luz de seu devido contexto, seu
presente-passado, porque tal coisa não existe. Pensar o contrário é deixar-se iludir pela
metafísica.
139
5 CONCLUSÃO
Chega-se ao final do presente trabalho, cujo principal objetivo era demonstrar os
limites do Pós-Estruturalismo em Relações Internacionais, através da desconstrução da
oposição metafísica na qual este se baseia, a saber, a dualidade presente/passado. Um
processo que evidencia as inconsistências do projeto político pós-estruturalista, que contrapõe
a violência metafísica do Estruturalismo com outra violência: a imposição de uma concepção
de temporalidade para além de suas fronteiras históricas. O uso do imperativo contextualista
por parte de Walker (1993), Campbell (1998) e Bartelson (1995), por fim, os associa à
tradição metafísica ocidental, que funciona através da valorização axiológico-epistemológica
da presença em relação à ausência. O movimento que prega a diferença e pluralidade, por um
lado, ainda faz parte de uma tradição que a suprime na unicidade do mesmo.
Assim, a condição de possibilidade do movimento pós-estruturalista é, também, sua
condição de impossibilidade. O imperativo contextualista, o entendimento de que todo
fenômeno histórico deve ser compreendido à luz de seu contexto específico, se ancora, tal
como a lógica das capabilities waltzianas, num pensamento que, sendo historicamente
específico, se pretende, ou se “mascara” de universal.
A historiografia (FASOLT, 2004) e o historicismo-crítico (HOOPER, 2007; VIGHI;
FELDNER, 2007; BEVIR, 2008), espécies de base metodológica do Pós-Estruturalismo nas
RI, possuem sua “razão de ser” na oposição entre passado/presente ou, pela lógica da
metafísica da presença, dada a hierarquização axiológico-epistemológica do primeiro sobre o
segundo termo: presente/passado. O “passado” é a dimensão da ausência, ele se foi para
sempre. Nossa esperança de compreendê-lo jaz nas evidências arqueológicas que restaram,
sugestivas de sua existência outrora presente. Mas não podemos compreender o passado de
acordo com a mentalidade presente, uma mentalidade que não lhe diz respeito. Para
compreendê-lo satisfatoriamente é preciso buscar seu contexto, seu “presente”, que passado,
se faz ausente no presente que o procura. Essa é a lógica que sustenta o esforço
arqueológico/genealógico de desnaturalização do presente. Uma lógica que contesta o
congelamento de sentido presente no modelo estrutural. Afinal, definir leis probabilísticas que
funcionariam desde os tempos bíblicos até hoje (WALTZ, 1979), não é mais que a
“presentificação” (KOSELLECK, 2006) de um passado que em pouco, ou nada se assemelha
ao presente nele refletido.
140
Mas ao atribuir uma essência histórica a tudo o que se pensa ser transcendental a
arqueologia/genealogia deixa intocada a própria história. O “tempo histórico”, o modo como
os homens tratam a relação entre passado e futuro, entre suas experiências e suas expectativas
(KOSELLECK, 2006) é também uma prática historicamente constituída. Atribuir significado
à passagem do tempo é algo particular à Modernidade (FASOLT, 2004). A rationale
historicista pode, portanto, voltar-se contra o próprio contextualismo.
Afinal, por qual razão deveríamos vislumbrar fenômenos - que sequer eram
compreendidos como históricos - à luz de seus respectivos contextos? Fazê-lo não seria,
julgar nossos antepassados com critérios que não são seus, mas nossos? Não é esse o “crime”
do qual fora acusado o movimento estruturalista?
Fasolt (2004) brilhantemente identifica esse contra-senso na disputa entre os
pensadores medievais Herman Conring e Bartolo de Sassoferato. Se aceitarmos a caricatura
de Conring nos situamos ao seu lado, em oposição à Bartolo. Se a rejeitarmos, continuaremos
ao seu lado, contra Bartolo, vislumbrando a passagem do tempo como algo significativo. Em
suma, qualquer que seja a opção escolhida, o resultado permanece. Jamais acessamos Bartolo
de dentro de próprio mundo, em primeiro lugar, por acreditarmos que exista algo como seu
“próprio mundo”. Sassoferato escreveu de uma época que não compreendia a idéia de
contexto histórico, tampouco a separação significativa entre o passado e o presente. Seu
pensamento é incomensurável com o de Conring e de toda a Modernidade. Tal
incomensurabilidade torna virtualmente impossível alcançá-lo sem incorrer em violência, sem
lhe impor idéias que nunca verdadeiramente aceitara. No fim, não se pode compreender
Bartolo, sem desde já, posicionar-se contra ele: “toda história é história moderna.” (FASOLT,
2004, p. 228, tradução nossa).81
Mas suponhamos que isso não fosse um problema, que a chave para a “verdade” sobre
Bartolo estivesse em seu “presente” e que buscá-la não incorresse em violência alguma. Só
seria preciso reconstruir o tempo presente à Bartolo, os fenômenos sócio-político-
epistemológicos que o constituíram, para finalmente nos situarmos ao seu lado, entendê-lo de
seu “próprio mundo”. Ainda que a violência fossa extirpada do estudo historicista, a proposta
pós-estruturalista continuaria enfrentando um empecilho substancial à sua realização: a
inexistência do presente.
A differánce destrói a esperança de uma presença originária de sentido, seja no
significado ao qual reporta o significante, na consciência ao qual reporta a fala ou mesmo no
81
All history is modern history.
141
passado ao qual reporta a evidência. Se “não há fora do texto” (DERRIDA, 2008, p.194) a
economia de significação opera em todo lugar, inclusive na história. As evidências não
correspondem à verdade dos acontecimentos passados, mas à “significantes” sujeitos à
interpretação e ao erro (FASOLT, 2004). Significantes que nunca reportam exatamente a seus
significados, mas somente a outros significantes. Na origem não há a presença, mas a
ausência trazida pelo suplemento originário.
Se não há a presença originária, se não existe sentido pleno que seja imediatamente
presente, então como julgar as análises sincrônicas estruturalistas? Qual o critério, para além
do hedonismo, que justifique o esforço historicista do Pós-Estruturalismo? O presente-
passado que se pretende re-presentar já é, desde sempre, uma representação de uma ausência
originária, de um tempo que, supostamente presente, sempre estivera ausente. A
irredutibilidade do tempo em um instante indivisível, em uma categoria que excluísse a
economia da significação transforma, no limite, o “imperativo” contextualista em não mais
que uma sugestão.
Se as abordagens estruturalistas das RI, como o Neo-Realismo, incorrem em
anacronismos, estudando eventos e fenômenos fora de seus respectivos contextos históricos, o
Pós-Estruturalismo não faz diferente. Walker (1993), Campbell (1998) e Bartelson (1995)
situam suas análises tão fora do contexto – das práticas discursivas e não discursivas que
possibilitaram a emergência dos fenômenos estudados - quanto Waltz (1979).82
Nenhuma das
obras aqui vislumbradas é capaz de acessar a presença plena do passado - do contexto - que
pretendem contrapor à sua ausência completa no transcendentalismo realista. Elas criticam o
congelamento temporal das abordagens anacrônicas, ao mesmo tempo em que congelam o
tratamento dado à temporalidade. Que fique bem claro: isso não é uma falha dos autores, mas
uma simples impossibilidade ontológica.
Não se quer dizer aqui, tal como não se quis dizer em Fasolt (2004), que o Pós-
Estruturalismo, a pesquisa histórica e a genealogia devem ser abandonados. Tampouco se
quer dizer que as obras analisadas não têm nenhum valor. Não se trata de defender ou atacar
essa ou aquela abordagem, essa ou aquela opção metodológica. O que a desconstrução faz não
é rejeitar o presente, mas única e exclusivamente sua superioridade hierárquica com relação
ao passado. A categoria de arqui-passado, introduzida na oposição metafísica como forma de
superá-la, não diz respeito à completa inutilidade do contexto histórico (presente) como
construção teórica, mas tampouco a valoriza como uma alternativa superior às demais. O
82
Admitindo a impossibilidade, ou ao menos dificuldade, de se pensar em um gradiente de “presença” ou
“ausência”. Não parece haver grau de presença ou ausência. Algo está ou não está.
142
arqui-passado representa a completa incapacidade em se fazer escolhas. A indecisão
derridiana em sua forma máxima, uma espécie de incomensurabilidade que não se restrinja às
diferenças semânticas que separam as alternativas.
Assim, o (não)método desconstrutivista não inviabiliza o Pós-Estruturalismo e seu
estudo histórico-político do internacional. Ao contrário, ele o reforça em suas condições de
existência. Se o presente fosse objetivamente alcançável, então o sentido de determinado
evento histórico poderia ser des-historicizado, tal seja, congelado no tempo: fechado. É a
impossibilidade de acesso pleno ao a priori histórico de formações discursivas, e conseqüente
fechamento do sentido, que permitem a existência de algo como o imperativo contextualista
em primeiro lugar (VAUGHAN-WILLIAMS, 2005).
Portanto, a questão é aplicar a lógica desconstrutivista ao limite. É preciso prover de
historicidade absolutamente tudo que se imaginar, inclusive à própria história. Fazer da
temporalidade moderna também sujeita ao tempo que dela emana. Mostrar, que se devemos
levar os conceitos de pluralidade e polifonia a sério, a “desconstrução conveniente” que
contrapõe a “violência metafísica” com uma “violência historicista” não é uma solução
satisfatória. A história é uma poderosa ferramenta política. O fluxo temporal é inapreensível
na violência do conceito e, por conseguinte, serve ao propósito de contestá-la. Contudo,
quando reduz as diferenças entre temporalidades na unidade de um mesmo historicismo, a
história se faz metafísica. Talvez, parafraseando Bartelson, o imperativo contextualista seja
mera “arrogância moderna”. O Pós-Estruturalismo se afasta do passado no momento em que
se propõe buscá-lo.
143
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