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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais MODOS DE VIDA E INTEGRAÇÃO SOCIAL DO IMIGRANTE: libaneses em Teófilo Otoni Alyne Rachid Ali Scofield Belo Horizonte 2011

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAISPrograma de Pós-Graduação em Ciências Sociais

MODOS DE VIDA E INTEGRAÇÃO SOCIAL DO IMIGRANTE:

libaneses em Teófilo Otoni

Alyne Rachid Ali Scofield

Belo Horizonte2011

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Alyne Rachid Ali Scofield

MODOS DE VIDA E INTEGRAÇÃO SOCIAL DO IMIGRANTE:

libaneses em Teófilo Otoni

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Ciências Sociais.Orientador: Prof. Dr. Tarcísio Botelho

Belo Horizonte2011

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FICHA CATALOGRÁFICA Elaborada pela Biblioteca da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais

Scofield, Alyne Rachid Ali S42m Modos de vida e integração social do imigrante: libaneses em Teófilo

Otoni / Alyne Rachid Ali Scofield. Belo Horizonte, 2011. 120 p. Orientador: Tarcísio Botelho

Dissertação (Mestrado) – Pontifícia Universidade Católica de Minas

Gerais. Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais. 1. Imigração Síria. 2. Imigração. Libanesa. 3. Desiderabilidade social. 4.

Interação social. 5. Integração social. 6. Estilo de vida. I. Botelho, Tarcísio. II. Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Curso de Pós-Graduação em Ciências Sociais. III. Título.

CDU: 325

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Alyne Rachid Ali Scofield

MODOS DE VIDA E INTEGRAÇÃO SOCIAL DO IMIGRANTE:

libaneses em Teófilo Otoni

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Ciências Sociais.

_________________________________________Tarcísio Botelho (Orientador) – Puc Minas

_________________________________________Weber Soares - UFMG

_________________________________________Léa Guimarães Souki – Puc Minas

Belo Horizonte, 31 de março de 2011

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À minha família.

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AGRADECIMENTOS

Agradeço aos meus pais Wagner e Soraya, pelo incentivo e cumplicidade.

Seus esforços foram importantíssimos para a conclusão desse trabalho e dessa

etapa da minha vida.

À minha irmã, Anna Sílvia, por estar ao meu lado sempre, e me nutrir com seu

amor.

À minha querida Pepé, pelo apoio incondicional.

Aos meus avós, Rachid, Tete e Hala. Sem vocês este trabalho não teria

sentido.

Aos meus tios e tias, pelo acolhimento nas horas incertas.

Ao meu amigo Leo, o presente que o mestrado me deu.

Aos meus colegas da turma 2009/2010, que com união, alegria, cumplicidade

e apoio, deixaram o processo do mestrado mais leve e humano.

Aos professores e funcionários do curso de Pós-graduação em Ciências

Sociais, pelo carinho, respeito e atenção.

Ao meu orientador, Tarcísio, cujas palavras me faltam para agradecer!

Ao meu marido, Joca, pela paciência e amor!

À Fapemig (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Geirais)

pelo auxílio financeiro à presente pesquisa.

E a todos os entrevistados, que confiaram suas memórias a mim.

Obrigado a todos!

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“Chegaram com o ventoPendurados nas proas dos navios

Em meio às tempestades em alto mar.Deixaram para trás pedaços de uma vida

Pais, irmãos, amigos, amores, quem sabe, filhos.Mas eles chegaram”.

Seme Handeri citado em Folheto... (2010)

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RESUMO

A presente dissertação foi norteada pelo objetivo de conhecer e discutir as formas de

integração dos imigrantes sírios e libaneses no nordeste de Minas Gerais, ao longo

do século XX. Para tanto, foram investigados a formação e a relevância das redes

sociais, a sociabilidade e os modos de vida desses indivíduos que vieram de tão

longe reconstruir suas vidas em terras desconhecidas. Foram realizadas onze

entrevistas com imigrantes e descendentes residentes na cidade de Teófilo Otoni,

como também análise do material documental, alguns produzidos pelos próprios

imigrantes. Em sua conclusão, tornou-se evidente o papel fundamental das redes

sociais tanto no processo migratório, quanto na manutenção do constante ir e vir

desses imigrantes, mantendo laços fortes com seu país de origem. O trabalho,

predominantemente, no comércio, a família, a religião e as associações foram

ressaltados como formas de sociabilidade específicas em que os modos de vidas

desse grupo se revelam em sua singularidade, mas também, como forma de

adaptação a um novo território.

Palavras-chave: Imigração. Sírios e Libaneses. Sociabilidade. Modos de vida.

Redes Sociais.

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ABSTRACT

This dissertation aimed to meet and discuss the ways of integrating the Syrian and

Lebanese immigrants in northeastern of Minas Gerais, during the twentieth century.

Thus, we investigated the social networks formation and relevance, these

individuals sociability and the lifestyles of who came from so far to rebuild their lives

in unfamiliar lands. Eleven interviews were carried out with these immigrants and

descendants living in the city of Teófilo Ottoni, Minas Gerais, Brazil, as well as we

proceeded the documentary material analysis, some of them produced by the own

immigrants. In the conclusion, it became evident the social networks fundamental

role both in the migration process as the maintenance of the immigrants’ constant

goings and comings, maintaining strong ties with their origin country. The work,

predominantly in the trade, the family, the religion, and the associations were

highlighted as sociability specific forms, in which that group’s lives modes reveal

their uniqueness, but also as an adapting way to a new territory.

Keywords: Immigration. Syrians and Lebaneses. Sociability. Lifestyles. Social Networks.

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LISTA DE FOTOGRAFIA

Fotografia 1 - Imigrantes Libaneses: no centro de terno branco com dois meninos Rachid Almeida .......................................................................................................112Fotografia 2 - Imigrantes Libaneses reunidos da primeira sede do Clube Libanês de Teófilo Otoni ............................................................................................................112Fotografia 3 – Imigrantes Libaneses e suas famílias na cidade de Poté.................113Fotografia 4 – Imigrantes Libaneses reunidos na Associação Beneficente Libanesa da cidade de Poté ...................................................................................................113Fotografia 5 – Imigrantes libaneses e suas famílias num momento de lazer em um circo na cidade de Pote...........................................................................................114

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LISTA DE MAPA

Mapa 1 – Líbano .....................................................................................................120

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LISTA DE TABELAS

Tabela 1 - Características gerais dos sujeitos entrevistados ..................................110

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LISTA DE SIGLAS

SAARA - Sociedade de Amigos das Adjacências da Rua da Alfândega

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LISTA DE ABREVIATURAS

Ed. – Editora

Org. - Organizador

Sr. - Senhor

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO.......................................................................................................... 142 HISTÓRIA DA IMIGRAÇÃO DOS SÍRIOS E LIBANESES PARA TEÓFILO OTONI ................................................................................................................................ 262.1 Migrações: suas teorias ............................................................................................... 262.2 A diáspora síria e libanesa ........................................................................................... 332.3 A imigração síria e libanesa para o Brasil .................................................................... 443 O PAPEL DAS REDES SOCIAIS: UNIVERSO ÉTNICO E INTEGRAÇÃO SOCIAL.............................................................................................................................. 513.1 O que são redes sociais? .............................................................................................. 513.2 Redes sociais na imigração síria e libanesa: o caso de Teófilo Otoni............................ 674 MODOS DE VIDA E SOCIABILIDADE EM NOVO SOLO .................................. 764.1 Modos de vida e estilos de vida ................................................................................... 764.2 Modos de vida e sociabilidade em Teófilo Otoni ......................................................... 824.2.1 O comércio ................................................................................................................. 834.2.3 As associações ............................................................................................................ 904.2.4 A família ..................................................................................................................... 925 CONCLUSÃO ........................................................................................................... 97REFERÊNCIAS............................................................................................................... 101APÊNDICE ...................................................................................................................... 107ANEXO............................................................................................................................. 111

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1 INTRODUÇÃO

O tema desta pesquisa é a imigração, aqui entendida como um processo que,

segundo Sayad (1998), é “um fato social completo”, um deslocamento de pessoas

no espaço, em especial no espaço físico, mas também no espaço social, econômico,

político e cultural. Portanto, esta pesquisa está relacionada às ciências que buscam

conhecer as relações sociais, a população e as formas de ocupação dos territórios.

Já o seu objeto é a imigração sírio-libanesa para o Brasil, mais

especificamente, para o nordeste de Minas Gerais. Há mais de 140 anos os

primeiros imigrantes sírios e libaneses começaram a chegar ao Brasil em busca de

trabalho e melhores condições de vida e encontraram condições econômicas e

sociais que favoreceram a adaptação e a permanência da maioria dos que aqui

chegaram. Como e por que estes imigrantes escolheram e se fixaram no nordeste

de Minas Gerais, mais especificamente em Teófilo Otoni, são perguntas para as

quais este trabalho busca respostas. Por meio da pesquisa qualitativa, com

instrumentos como entrevistas semiestruturadas e pesquisa documental, pretende-

se analisar e conhecer a história da imigração árabe para a região, os modos de vida

dos imigrantes no novo território, como também o papel das redes sociais nesse

processo.

Assim sendo, muitas são as explicações para os motivos pelos quais as

pessoas migram. Segundo Klein (2000), um dos principais pontos é a junção e

intensidade dos fatores de expulsão e atração dos países, associados à

necessidade de encontrar novos e mais eficazes meios de sobrevivência O Brasil foi

um país que recebeu imigrantes de várias nacionalidades. As migrações europeias,

por exemplo, tiveram vários motivos. O alto valor da terra na Europa e a mão de

obra extremamente barata fizeram com que a América se tornasse sedutora para

sua população, já que nela, a realidade se apresentava de maneira oposta: terra

abundante e barata e mão de obra cara e escassa. Dessa forma, a possibilidade de

obtenção de terra se tornou um atrativo para grande parte dos imigrantes,

principalmente os dos países da Europa (KLEIN, 2000).

Klein (2000) afirma que, com o significativo crescimento econômico, o Brasil

se tornou um potencial centro para a migração de brancos livres. Novas levas de

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imigrantes europeus chegaram ao país, estimulados pela presente mudança salarial,

consequência do crescimento da economia na América.

Dessa forma, o Brasil, antes de 1880, recebeu uma significativa migração de

colonos, trabalhadores rurais, originários principalmente da Alemanha e da Itália.

Mas, nas últimas décadas do século XIX, o volume de imigrantes aumentou em

grande proporção devido às notícias sobre as condições de emprego no Brasil e

mais o incentivo do governo brasileiro. A navegação a vapor, o telégrafo

transatlântico e as primeiras ferrovias nos países tanto da Europa quanto da América

tornaram possíveis comunicações rápidas entre os países europeus e a América

(KLEIN, 2000).

Já na migração síria e libanesa, um dos fatores que alavancaram o processo

migratório para o Brasil foi o exemplo de alguns pioneiros que, bem sucedidos na

nova terra, estimularam a vinda de seus compatriotas. A possibilidade de se fazer

dinheiro numa dimensão impensável para os padrões locais foi um forte estímulo à

migração, em especial de homens solteiros, quase sempre apoiados e incentivados

por suas famílias. Ao contrário dos europeus, estes chegaram sem o incentivo do

governo brasileiro, ou dos donos de grandes lavouras e, em sua maioria, eles

escolheram o comércio como forma de trabalho. Como mascates, conseguiram se

estabelecer financeiramente, acolher os seus compatriotas, e se adaptar à

sociedade brasileira, quase sempre como homens de sucesso (TRUZZI, 2000).

Sendo a migração um estruturado processo social que, a partir do seu início,

já se apresenta cumulativo e mantido por meio do movimento de ir e vir dos

migrantes entre as comunidades de origem e o país de destino, é possível afirmar

que tal movimento é fortalecido por diferentes tipos de ligações sociais, sendo os

laços familiares e de parentesco um dos mais significativos pilares da organização

social da migração. Dessa forma, as conexões familiares são um dos mais seguros

laços da rede social. Para Massey et al (1987)1 citado por Dias (2005) a questão da

presença e do fortalecimento de redes sociais é tão decisiva e importante quanto a

oferta de trabalhos no estímulo para a migração. Segundo Portes (1999), as redes

sociais estão entre os mais relevantes tipos de estrutura social em que as

transações econômicas estão enraizadas. Tais redes são conjuntos de associações

1 MASSEY, Douglas S. et al. Return to Aztlan: the social process of international migration from Western Mexico. Los Angeles: University of California Press, 1987. 335p.

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recorrentes entre grupos de pessoas unidas por vínculos ocupacionais, culturais,

familiares, ou afetivos.

Outros aspectos investigados ao longo da pesquisa são as relações de

sociabilidade e os modos de vida construídos no processo de (re)significação do

novo solo. Aqui, o que se compreende como modos de vida é “a maneira como

grupos e indivíduos vivenciam o mundo, numa cadeia de acontecimentos e práticas

em que objetividades e subjetividades são inseparáveis”. Portanto, “os modos de

vida seriam efeitos reveladores de uma multiplicidade de vetores históricos, políticos,

econômicos, sociais, culturais, psíquicos etc. que se entrecruzam e em dado tempo

e espaço se atualizam” (PENZIM, 2001, p. 18)

Tem-se, então, o que propõem Bourdieu (2003) e Giddens (2002) acerca de

estilos de vida. Para Bourdieu (2003), “às diferentes posições no espaço social

correspondem estilos de vida, sistemas de desvios diferenciais que são a retradução

simbólica de diferenças objetivamente inscritas nas condições de existência”

(BOURDIEU, 2003, p.71). Neste sentido, as práticas cotidianas seriam a expressão

de tais condições de existência, “não só porque essas práticas preenchem

necessidades utilitárias, mas porque dão forma material a uma narrativa particular de

autoidentidade” (GIDDENS, 2002, p.79)

Vale, portanto, lembrar a voz canônica de Park (1967), para quem a cidade é

um tanto mais que um aglomerado de homens individuais e de convergências

sociais, não somente um mecanismo físico e uma construção artificial; é um estado

de espírito, um corpo de costumes e tradições, de sentimentos e atitudes

organizados, próprios desses costumes e transmitidos por essa tradição. A cidade

está envolvida nos processos vitais das pessoas que a habitam. Diferentemente da

vida em aldeia e nos campos abertos, estrutura e tradição são aspectos diferentes

de um complexo cultural comum que determina o que é característico e próprio da

cidade. (TEOFILO OTONI, 2009)

A pesquisa empreendida tem como lugar a cidade de Teófilo Otoni, nordeste

de Minas Gerais. Fundada em 1853, por Theophilo Benedicto Ottoni, que, após

renunciar ao seu mandato de deputado, deu início à colonização do Vale do Mucuri.

Com a intenção de marcar o encontro de duas expedições que partiram em direções

diversas, estabeleceu-se um núcleo pioneiro, em princípio com pequenas lojas e

hospedarias, à margem do rio Todos os Santos. Este núcleo foi denominado

Filadélfia, em referência à cidade homônima nos EUA, considerada o berço da

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democracia nas Américas. No início do século XX, a então jovem cidade recebeu

grande parte dos imigrantes sírio-libaneses de religião drusa, que passaram, ali, a

trabalhar, principalmente, com o comércio de secos e molhados e de pedras

preciosas, como também, os imigrantes alemães que foram convidados pelos

políticos e fazendeiros da época a vir para a região com o objetivo de trabalhar nas

lavouras. (TEOFILO OTONI, 2009).

Na atualidade, Teófilo Otoni é reconhecida como cidade polo da região

nordeste mineira. Apresenta um acelerado crescimento socioeconômico e se

destaca pelo comércio de gemas preciosas e semipreciosas, e artesanato mineral,

sediando feiras internacionais e frequentemente referida como "A Capital Mundial

das Pedras Preciosas" (TEOFILO OTONI, 2009).

Entretanto, por que a região de Minas Gerais, em especial a cidade de Teófilo

Otoni, foi escolhida pelos imigrantes sírios e libaneses? O que existia ali que

favoreceu a sua escolha? Qual o papel das redes sociais ali presentes? Enfim, qual

a história da imigração síria e libanesa na cidade de Teófilo Otoni? Essas são

algumas questões que dão norte e conduzem o presente estudo. A cultura libanesa,

com suas peculiaridades, desperta interesse em muitos daqueles que convivem com

seus traços e marcas. Mas não é só isso. É relevante ressaltar o importante papel

que o Brasil desempenhou, ao acolher milhares de vidas, simultaneamente

marcadas por grande sofrimento, mas também pela esperança ante o novo território

a ser adentrado. Dentre muitas vidas, estão os sírios e libaneses que encontraram

no nordeste de Minas Gerais um território favorável para seus objetivos econômicos,

principalmente, com o desenvolvimento de redes sociais, de laços profissionais,

familiares, afetivos.

Cada imigrante, ao trazer consigo traços da sua territorialidade original, no

processo de re-territorialização aqui vivido, de alguma forma, contribuiu para que a

cultura síria e libanesa, seus costumes e práticas se misturassem à cultura

brasileira, deixando aqui suas marcas e traços na dinâmica urbana e nos modos de

vida presentes nas cidades por eles escolhidas.

O debate acadêmico em torno da imigração síria e libanesa no Brasil é

bastante rico. Sabe-se que, em meados do século XIX, os primeiros imigrantes

árabes chegaram ao nosso país. De acordo com Cabreira (2001), os motivos mais

significativos que levaram esses povos a imigrar foram a ocupação da Síria e do

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Líbano pelo Império Turco-Otomano e a desagregação financeira motivada pela

entrada da França e da Inglaterra naqueles países, após a Primeira Guerra Mundial.

A primeira geração de imigrantes pisou em solo brasileiro no período entre

1880 e 1920, quando se iniciava intenso êxodo internacional naqueles países. À

época, a imigração tinha um caráter livre e era formada, em grande parte, por

indivíduos que não escolheram o Brasil como destino final. Assim, os primeiros sírios

e libaneses a desembarcar no porto de Caravelas, Bahia, os quais vieram a se

deslocar para as cidades de Poté e Teófilo Otoni datam daquela época.

Já a segunda geração de imigrantes sírios e libaneses, chegada ao Brasil

entre 1920 e 1940, teve como característica principal o fato de ser uma migração em

massa, incentivada por notícias enviadas à região pelos imigrantes pioneiros. Tal

geração contou com uma rede estruturada, composta por conhecidos e parentes,

que já se encontravam mais inseridos no meio social e econômico do Brasil

(FÍGOLE; VILELA, 2004).

Entre 1940 e 1975, chega a estas terras a terceira geração de imigrantes,

consequente ao êxodo de cristãos e muçulmanos, em sua maioria de origem urbana.

Tais grupos vinham sofrendo com a falta de oportunidades profissionais acentuada

pela depressão econômica posterior à Segunda Guerra Mundial e por conflitos de

origem religiosa e política.

Uma quarta geração de imigrantes (1975-2000) teve como causa imediata o

conflito militar que se instalou no Oriente Médio ao início da década de 1970. Suas

implicações para a população libanesa, tais como insegurança e medo

generalizados, queda da atividade econômica com consequente desemprego,

perseguições políticas e sectárias, estimularam a saída de centenas de sírio-

libaneses de seus países. (GATTAZ, 2005)

Igualmente como os imigrantes oriundos de outros países que vieram para o

Brasil, muitos sírios e libaneses chegaram à “nova terra” com o objetivo de superar

suas dificuldades, em especial as econômicas, e retornar ao seu país de origem.

Não foi diferente daqueles que se estabeleceram no nordeste de Minas Gerais. O

trabalho apresentava um forte apelo econômico, sendo visto como fonte de

acumulação e enriquecimento, mas principalmente, como uma maneira de

conquistar dignidade e (re)construir a identidade no novo país. Para Sayad (1998), o

imigrante é em sua essência uma força de trabalho, entretanto, temporária,

provisória, em movimento, em transição. A autorização de estadia do país que

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recebe o imigrante em seu solo está inteiramente vinculada ao trabalho, única razão

de ser pelo qual ele é reconhecido. O imigrante sírio-libanês chegou ao Brasil com o

objetivo de vencer e superar suas dificuldades e isso se deu, principalmente, por

meio do seu trabalho, especialmente como comerciantes e mascates.

Souza (2007) lembra que, após a entrada da França e da Inglaterra em

alguns países do Oriente Médio, ocorreu um processo de industrialização, e o

cotidiano das aldeias do Líbano e da Síria sofreu intensas transformações, o que

veio também a impulsionar o processo migratório. Além disso, o impacto na questão

demográfica com o aumento da população jovem, que não via na agricultura diluída

e nos solos quase desérticos uma possibilidade de melhor qualidade de vida, foi,

também, elemento decisivo a influenciar o êxodo.

Ao chegarem, os primeiros sírio-libaneses, a se fixar no Brasil, contribuíram

para a formação de núcleos ou colônias que, posteriormente, vieram a servir de

referência e base para os que viessem a partir de então.

Parentes, conterrâneos, amigos, provenientes da mesma aldeia ou região, de acordo com os padrões identitários prevalecentes no local de origem, encontravam nesses núcleos formas de solidariedade e cooperação. Os pioneiros formaram assim uma rede social vital, que oferecia todo tipo de ajuda aos novos viajantes, amenizando o custo da acomodação à nova situação, fornecendo informações indispensáveis para a sobrevivência e entrada no mercado de trabalho. (FÍGOLE; VILELA, 2004, p. 9)

Enfim, o que leva a pensar ser relevante o estudo da imigração síria e

libanesa para Teófilo Otoni é o fato de que ali as redes sociais podem ter

influenciado no sucesso e na continuidade da migração síria e libanesa, como

também, para a continuidade da sua ligação com seu país de origem. Para tanto, é

necessário conhecer a história e analisar os modos de vida, a sociabilidade e a

função das redes sociais existentes na cidade referida onde este povo e esta cultura

compõem a singular organização social.

Dessa maneira, o objetivo geral da presente pesquisa é conhecer e discutir as

formas de integração dos imigrantes sírios e libaneses no nordeste de Minas Gerais,

ao longo século XX, investigando as redes sociais, a sociabilidade, os modos de

vida que garantiram e permitiram ali a continuidade da migração sírio e libanesa até,

praticamente, os dias atuais.

Já os objetivos específicos empreendidos na pesquisa se referem a:

investigar o histórico da imigração síria e libanesa em direção à região de Teófilo

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Otoni, buscando conhecer suas características e especificidades; compreender o

papel das redes sociais na imigração síria e libanesa, discutindo e analisando o seu

universo étnico ao longo do processo de integração na sociedade que os acolheu; e

identificar e caracterizar os modos de vida de tal grupo pelo conhecimento de suas

práticas cotidianas e relações de sociabilidade.

Assim, segundo Pereira (2001), os estudos e pesquisas sobre imigração no

Brasil têm crescido na medida em que se quer buscar a própria identidade, sempre

tão fragmentada e marcada pela pluralidade de origens, principalmente, no mundo

contemporâneo. Para a autora, a nação brasileira é uma “comunidade imaginada”,

um caleidoscópio multicolorido e multiforme, sempre num movimento à procura de

uma unidade, em sua contradição fluida.

Dada a relevância das pesquisas sobre imigração, há de se constatar que

poucas são as pesquisas sobre a imigração estrangeira para as cidades do interior

no contexto do século XX em Minas Gerais. Essa escassez de trabalhos sobre o

assunto torna o campo de pesquisa necessário e próspero, sobretudo pela

relevância histórica, cultural e social do tema. Assim, numa soma de histórias

individuais, será possível elucidar não somente a história da imigração sírio-libanesa,

mas os modos de vida e as formas de integração e apropriação do território de

muitos que o habitam, num tempo promissor para o estudo das cidades, quando se

compreende que a sua composição é entrecortada pela multiplicidade étnica, caso

de outras cidades brasileiras.

A migração árabe para a região de Teófilo Otoni, por vários motivos, se deu

num processo contínuo marcado pelo ir e vir dos sírio-libaneses para a região de

origem, ao contrário da migração alemã, ocorrida de forma pontual durante o período

de atração exercida pelo trabalho nas lavouras, o que é característico da migração

europeia. Dessa forma, a cultura árabe, por meio dos imigrantes, deixou marcas na

cidade e na região. Há, inclusive, uma demanda popular neste sentido, na forma de

um movimento atual protagonizado pelos descendentes sírios e libaneses, que visa

a delimitar, datar e preservar a história, o caminho e os motivos que trouxeram a

Teófilo Otoni os primeiros imigrantes do Líbano e da Síria.

Portanto, no presente trabalho, a temática proposta inspira a realização de um

estudo empírico com ênfase qualitativa. Assim sendo, segundo Goldemberg (1999,

p.14):

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na pesquisa qualitativa a preocupação do pesquisador não é com a representatividade numérica do grupo pesquisado, mas com o aprofundamento da compreensão de um grupo social, de uma organização, de uma instituição, de uma trajetória etc. (GOLDEMBERG, 1999, p.14)

Portanto, a pesquisa qualitativa tem como objetivo entender e interpretar os

sentidos e as significações que o indivíduo dá aos fenômenos em questão. Para

tanto, deve-se utilizar um instrumental técnico que possibilite a construção de um

conhecimento amplo e profundo acerca do grupo pesquisado, valorizando-se o

contato pessoal, os elementos dos lugares naturais do sujeito e as significações que

as coisas ganham, e que um indivíduo em particular ou um determinado grupo

atribui aos fenômenos que lhe dizem respeito (TURATO, 2003).

Inicialmente, foi empreendida uma pesquisa documental, durante a qual se

buscou levantar todo tipo de registro que permitiu investigar o histórico da imigração

síria e libanesa para Teófilo Otoni. Foram consultados memórias e arquivos

pessoais, familiares e de instituições como o Clube Libanês de Teófilo Otoni,

biografias, fotografias, cartas, certidões, censos, passaportes, que contribuíram para

revelar o processo histórico da cidade, e os caminhos da imigração na região.

Segundo May (2004), a pesquisa documental é capaz de localizar os depoimentos

atuais em um contexto histórico, o que possibilita realizar comparações entre as

interpretações dos fatos feitas pelo observador e aquelas escritas em seus

documentos. Do mesmo modo, tais fontes podem ser legitimadas por seu próprio

valor, já que são capazes de informar como os eventos são construídos, suas

justificativas, como também fornecer materiais que possibilitam sustentar

investigações profundas e intensas (MAY, 2004).

Para o autor, “os documentos, lidos como as sedimentações das práticas

sociais, têm o potencial de informar e estruturar as decisões que as pessoas tomam

diariamente e em longo prazo; eles também constituem leituras particulares dos

eventos sociais” (MAY, 2004, p. 205). Atualmente, nas pesquisas históricas, a

biografia e/ou o estudo das biografias vêm sendo considerados fontes relevantes de

conhecimento do ser humano, pois possibilitam entrar em contato com sua

multiplicidade e sua história, em espaços e tempos diferentes (BORGES, 2005).

Sobre a pesquisa em fontes históricas, Grespan (2005) afirma que ter

expectativas em relação ao que será descoberto nos documentos pode não só ser

inevitável como desejável, pois são as conjecturas que norteiam a pesquisa ao

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possibilitar a seleção do acervo, orientar onde buscar as informações indispensáveis

e estabelecer os critérios da coleta, reunião e análise do material.

Por conseguinte, juntamente com outros métodos e técnicas, a pesquisa

documental pode produzir importantes e significativas compreensões das

sociedades num determinado tempo, como também, das dinâmicas da vida social

(MAY, 2004), o que foi fundamental para a realização desta pesquisa.

Uma das principais fontes de informação deste trabalho foi a entrevista.

Sendo assim, foram realizadas entrevistas até se atingir o critério de saturação,

sendo os entrevistados imigrantes sírios e libaneses, homens e mulheres, que

chegaram ao Brasil até a primeira metade do século XX na região de Teófilo Otoni, e

também seus filhos e filhas. O objetivo da entrevista com a segunda geração dos

imigrantes foi compreender o processo de imigração dos seus pais, como ocorreu a

continuidade dos laços com a população de origem, enfocando o papel das redes

sociais neste processo. Já a entrevista com os próprios imigrantes teve como foco

investigar e conhecer o processo da imigração, a integração com o Brasil e com a

região pesquisada.

Segundo May (2004), as entrevistas podem ser empregadas na compreensão

de como os indivíduos interpretam e agem no seu mundo social, já que para ele o

ato de entrevistar e o da entrevista são fundamentados nos métodos para gerar e

sustentar conversações com indivíduos sobre um tema específico ou uma gama de

assuntos, juntamente com os sentidos e interpretações que os pesquisadores

realizam do material coletado. Um dos pontos fortes da entrevista como técnica é

proporcionar valiosas compreensões das histórias de vida, experiências, opiniões,

valores, anseios, atitudes e sentimentos dos indivíduos (MAY, 2004). Já Bourdieu

(1999) fala sobre as dificuldades e os problemas práticos e teóricos que podem

surgir na interação entre o pesquisado e aquele(a) que ele entrevista. Segundo o

autor, a relação de pesquisa, como relação social, provoca consequências sobre os

resultados alcançados. Porém, tais efeitos ou distorções introduzidos na estrutura da

relação de pesquisa podem e devem ser reconhecidos e superados. Afirma, ainda,

ser fundamental reduzir ao extremo a violência simbólica exercida pelo pesquisador

se ele ocupar um lugar superior ao pesquisado, principalmente na hierarquia das

distintas espécies de capital, em especial, o capital cultural.

Para Bourdieu (1999), a familiaridade do pesquisador com seus entrevistados

pode proporcionar garantias contra a violência simbólica, ou seja, contra a ameaça

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de reduzir razões subjetivas narradas pelo entrevistado a causas objetivas. Para

ele, “a entrevista pode ser considerada uma forma de exercício espiritual, visando a

obter, pelo esquecimento de si, uma verdadeira conversão do olhar que lançamos

sobre os outros nas circunstâncias comuns da vida” (BOURDIEU, 1999, p.704).

No presente trabalho, as entrevistas realizadas foram do tipo

semiestruturadas, ou seja, foram compostas por técnicas dos métodos estruturados

e focalizados. Deste modo, as perguntas geralmente foram específicas, porém o

entrevistador se encontrava com liberdade para ir além das respostas. Segundo May

(2004), esse tipo de entrevista autoriza os entrevistados a responder com a sua

própria maneira de falar, seus próprios termos, o que proporciona um maior

arcabouço de comparação do que nas entrevistas livres ou não estruturadas.

O ato de entrevistar e o produto de boas entrevistas estão, intimamente,

ligados à memória da trajetória de vida dos entrevistados. Para Delgado (2006), a

memória ativa é um recurso importante para a transmissão de experiências

consolidadas ao longo de diferentes temporalidades, constituindo um diálogo do

presente com o passado. Já Portelli (2005) afirma que, como todas as atividades

humanas, a memória é social e pode ser compartilhada, motivo pelo qual cada

indivíduo tem algo a contribuir para a história social. Deste modo, as entrevistas

foram realizadas levando-se em conta a importância de se estabelecer uma franca

interação com os entrevistados, para que pudessem ser alcançados os objetivos

pretendidos.

Para esta pesquisa, foram conduzidas onze entrevistas, seis delas com

imigrantes libaneses e cinco com filhos de imigrantes. Todos se mostraram

disponíveis a dar entrevistas e nenhum se opôs a fornecer dados e respostas a

qualquer questão. Desses entrevistados, somente um não reside no momento em

Teófilo Otoni, tendo todos eles chegado à região entre o segundo e o terceiro quartel

do século XX.

Os motivos que estimularam tanto o início, quanto a continuidade do processo

migratório sírio e libanês para o Brasil e, especialmente, para Teófilo Otoni

apareceram de forma redundante em todas as entrevistas. Já o papel e a

importância fundamental das redes sociais que, ao longo do tempo, mantiveram

firmes os elos da corrente migratória para a região, foram ressaltados na fala de

cada um dos entrevistados, principalmente quando questionados sobre os fatores

que fizeram com que o Brasil e Teófilo Otoni fossem escolhidos como ponto final de

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uma viagem rumo ao não tão desconhecido assim, novo solo. Todos afirmaram ou

terem sido convidados por parentes bem sucedidos ou ter amigos e conhecidos

aqui, que lhes enviavam notícias tanto da prosperidade econômica, como também

da estabilidade política e social do país.

No segundo capítulo da dissertação “História da imigração dos sírios e

libaneses para Teófilo Otoni”, são apresentados o histórico da imigração sírio-

libanesa em direção à região de Teófilo Otoni, suas características e especificidades,

como também os fatores que contribuíram para a imigração tanto para o Brasil,

quanto para a cidade em especial. Na discussão das teorias sobre migração, são

explorados os principais autores que contribuíram para a análise da imigração síria e

libanesa para Teófilo Otoni. Em relação à diáspora síria e libanesa, são discutidos os

motivos que levaram grande parte da população libanesa a se aventurar em outras

terras. Quais os principais fatores que alimentaram o processo imigratório dos sírios

e libaneses para outros países? O que contribuiu para o sucesso e a manutenção de

tal movimento durante tantas décadas? Aqui são também revistas as fases que

marcam o processo migratório sírio e libanês. Tratando-se especificamente da

migração sírio e libanesa para o Brasil, a discussão se concentra nas seguinte

questões: o que levou um número tão significativo de imigrantes sírios e libaneses a

escolher o Brasil como destino? Que estímulos e fatores favoreceram a permanecia

da grande parte dos imigrantes que aqui chegaram? Como e por que a região de

Teófilo Otoni foi escolhida como novo território? O que, além das pedras preciosas,

existia ali que beneficiou os imigrantes? Como e por que a vinda para Teófilo Otoni

teve início e continuidade?

No terceiro capítulo, intitulado “O papel das redes sociais: universo étnico e

integração social”, será analisado e problematizado o papel das redes sociais na

imigração sírio e libanesa, da chegada do imigrante ao país ao processo de

integração na sociedade que os acolheu. As teorias que analisam o papel e a

importância das redes sociais no processo migratório são problematizadas nessa

etapa do presente trabalho. Segundo Soares (2002), a relevância dada às redes

sociais nos estudos sobre migração se originou da necessidade de considerar

processos sociais concretos que lançassem luz sobre o estilo seletivo da dinâmica

migratória e que ajudassem a encontrar repostas para duas importantes perguntas:

por que um indivíduo migra? E por que determinadas pessoas de um mesmo

segmento populacional, sob as condições econômicas, sociais ou políticas, optam

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por migrar e outras não? Tais processos sociais podem ser explicados com base nos

estudos sobre o papel das redes sociais na migração. Na compreensão específica

do caso da cidade de Teófilo Otoni, é analisado o papel das redes sociais no

processo imigratório rumo a novas terras e como essas redes se solidificaram ao

longo do tempo. Como se estabeleceram os primeiros elos da rede social? Que

fatores a alimentavam? Aqui são analisadas as relações de solidariedade e a

formação das redes sociais no processo migratório sírio e libanês em direção à

cidade de Teófilo Otoni. Como tudo começou e que elementos alimentavam tal

rede? Qual o papel e a relevância das redes sociais na manutenção da imigração

síria e libanesa para a região ao longo do século XX?

O quarto capítulo, “Modos de vida e sociabilidade em novo solo”, contém a

descrição, identificação e caracterização dos modos de vida e das relações de

sociabilidade dos imigrantes ao longo do processo de reintegração e adaptação ao

novo solo. Para compreender e analisar o processo de imigração da população síria

e libanesa para cidade de Teófilo Otoni, é importante conhecer os modos de vida

que esse povo estabeleceu no novo solo. Aqui, o que se compreende como modos

de vida é “a maneira como grupos e indivíduos vivenciam o mundo, numa cadeia de

acontecimentos e práticas onde objetividades e subjetividades são inseparáveis”.

Portanto, “os modos de vida seriam efeitos reveladores de uma multiplicidade de

vetores históricos, políticos, econômicos, sociais, culturais, psíquicos etc. que se

entrecruzam e, em dado tempo e espaço, se atualizam” (PENZIM, 2001, p. 18). Pela

análise das entrevistas com os imigrantes e seus descendentes, são estudadas e

descritas as formas de viver, os costumes, as práticas, os hábitos, que, juntos,

compõem os modos de vida dos sírios e libaneses na cidade de Teófilo Otoni. Como

os imigrantes sírios e libaneses se relacionavam entre si e com os cidadãos

brasileiros? Quais foram suas maiores dificuldades nessa interação social? O que

torna singular a sociabilidade desse povo? Tais perguntas, dentre outras, nortearam

a análise das entrevistas em busca de dados sobre como se caracterizava a

sociabilidade dos imigrantes árabes em Teófilo Otoni.

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2 HISTÓRIA DA IMIGRAÇÃO DOS SÍRIOS E LIBANESES PARA TEÓFILO

OTONI

2.1 Migrações: suas teorias

Por que os seres humanos migram? Esta é uma interrogação clássica que

ocasionou inúmeros debates e publicações acadêmicas. Segundo Klein (2000), a

questão central dos processos migratórios está relacionada ao peso e à importância

dos fatores de expulsão ou de atração de uma determinada sociedade e à forma

como esses mesmos fatores se equilibram.

Para Klein (2000), o desejo da grande parte dos migrantes não é abandonar

suas casas, muito menos sua terra natal. Se tivessem como escolher, a maioria dos

indivíduos que migram permaneceria em seus locais de origem com poucas

exceções que possivelmente podem almejar aventuras e mudanças. Portanto, a

migração somente tem início quando as pessoas constatam que não poderão se

manter com os meios tradicionais de trabalho e renda existentes em suas cidades ou

comunidades de origem. Entretanto, em alguns casos, a migração das pessoas pode

ocorrer pela existência de formas de perseguição causadas por diferentes

nacionalidades, ou credos religiosos, que podem ser ameaçadas e atacadas pelos

grupos religiosos mais fortes e dominantes (KLEIN, 2000, p. 13).

Um dos fatores de expulsão que para Klein (2000) teria mais força e

importância são as condições econômicas de uma determinada sociedade. Segundo

o autor, é fundamental conhecer os motivos pelos quais as condições econômicas

mudam e os fatores responsáveis pelo agravamento da situação crítica que afeta a

habilidade dos emigrantes de enfrentá-las e vencê-las. Tal questão é composta por

três importantes fatores: a possibilidade de ter acesso a terra e então, ao alimento, a

alteração do nível de produtividade da terra, e ainda, o número de membros da

família que precisam ser alimentados e sustentados. As questões relativas à

mudança dos direitos sobre a terra, que surgem em decorrência da variação da

produtividade das colheitas provocada, em especial, pela modernização da

agricultura em resposta ao crescimento da população, ocupam a primeira categoria

(KLEIN, 2000). Assim, durante as grandes migrações dos séculos XIX e XX, período

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em que chegaram ao continente americano grande parte dos migrantes, que

compõem ainda hoje a sua população, o que promovia e estimulava de fato o

processo migratório era a combinação desses três principais fatores (KLEIN, 2000).

O autor afirma ainda que a questão demográfica influenciou de forma

acentuada as grandes migrações. Ou seja, a chamada transição demográfica, que

começou na Europa ocidental no início do XVIII, na qual, pela primeira vez na

história do mundo, as taxas de mortalidade se tornaram estáveis durante décadas e

começaram a decrescer de maneira lenta, mas progressiva, até chegar aos atuais

níveis baixos que marcaram a história. A explicação para a causa desses índices de

mortalidade estabilizados ainda não foi totalmente encontrada, mas alguns fatores

como a descoberta e a utilização da vacina contra a varíola, o movimento higienista,

que provocou significativas mudanças em relação às ideias sobre o saneamento, e o

início do cultivo de novos alimentos em grande escala nas Américas, podem ter

influenciado. Grande parte dos países levou muitas décadas para tomar consciência

desses índices estáveis de mortalidade e, em contraponto, ao longo desses

períodos, eles prosseguiram com suas tradicionais altas taxas de natalidade (KLEIN,

2000).

Assim sendo, uma das principais consequências desse crescimento

populacional foi a enorme pressão sofrida pelo setor agrícola desses países, que,

com o objetivo de atender às crescentes exigências da demanda por alimentos,

tiveram que modificar os procedimentos de arrendamento, cultivo e produção. Nessa

conjuntura, o Hemisfério Ocidental passou a oferecer maiores possibilidades de fugir

das crescentes limitações nos mercados de trabalho tanto europeus, quanto

asiáticos (KLEIN, 2000).

Nesse período, a América passou a oferecer intensos fatores de atração, pois

nela a terra era abundante e facilmente disponível. Todavia, a mão de obra

permanecia escassa e, consequentemente, bastante cara. De tal modo, a

possibilidade de obter facilmente terra e trabalho se tornou uma forte atração para

todos os imigrantes (KLEIN, 2000).

Assim, Klein (2000) afirma que a partir de 1880 o Brasil recebeu um número

expressivo de imigrantes italianos, espanhóis, portugueses, poloneses, russos e

grandes grupos de cristãos do Império Turco-Otomano, como os sírios e libaneses, e

mesmo os gregos. A maior parte desse contingente de imigrantes apresentava

características tradicionais, ou seja, foi composta em sua maioria de jovens adultos

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do sexo masculino à procura de empregos temporários ou permanentes no país que

os receberam. Portanto, “fazer a América” era a intenção de praticamente todos os

indivíduos que cruzavam o Atlântico como imigrantes. A prioridade básica para eles

consistia em acumular bens e poupar dinheiro com o qual esperavam conseguir

gozar de uma vida melhor e mais digna em sua terra natal (KLEIN, 2000).

Porém, segundo Klein (2000), para metade dos imigrantes que

permaneceram nos países que os acolheram a exclusiva preocupação em juntar e

acumular riquezas começou a se modificar, ao passo que assimilavam as novas

culturas, os diferentes hábitos e economias. Com a esperança de alcançar a

mudança social na América, os imigrantes começaram a considerar investimentos

em educação e um sacrifício mesmo que temporário dos rendimentos para os filhos

em idade escolar. Foram esses mesmos homens que almejaram um lugar diferente

na escala social do país receptor, que mandaram buscar suas famílias ou suas

noivas, se estabeleceram e se enraizaram na América. Essa primeira leva de

imigrantes era praticamente endogâmica em seus arranjos matrimoniais, já que

praticamente a maioria deles se casou com mulheres de sua mesma etnia. Porém,

esse panorama se modificou na segunda geração à medida que começaram a

assimilar mais fortemente a cultura e o ambiente americano. No mais, uma vez

estabelecidos, o desequilíbrio sexual da primeira geração que fora dominada pelos

homens, diminuiu significativamente, como também as taxas de fecundidade entre

as mulheres imigrantes no momento em que as mulheres orientais e também

europeias adotaram o espaçamento entre uma gravidez e outra ao utilizar métodos

contraceptivos aprendidos, muitas vezes, com os próprios nativos (KLEIN, 2000).

Dessa maneira, segundo Klein (2000), tanto o desenvolvimento, quando o

crescimento econômico das Américas estão fortemente calcados nos muitos

imigrantes estrangeiros que a elas recorreram. Portanto, as condições de trabalho e

geração de renda nas Américas produziram os fluxos da imigração estrangeira e

seus padrões finais de êxito.

A imigração pode ser compreendida como um “fato social total”, inclusive

sendo essa a única característica com a qual concorda toda a comunidade científica.

Dessa forma, toda trajetória do imigrante passa a ser uma trajetória também

epistemológica que se realiza de certa maneira no encontro das ciências sociais com

muitas outras disciplinas, tais como a história, a geografia, a demografia, economia,

o direito, a sociologia, a psicologia e a psicologia social, estando presentes inclusive

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as ciências cognitivas, como também a antropologia em suas diferentes formas,

como a cultural, econômica, social, jurídica, política, entre outras, as ciências

políticas, a linguística e sociolinguística etc.

De certo modo, segundo Sayad (1998), a imigração é um deslocamento de

pessoas no espaço e, antes de tudo, no ambiente físico. Porém, o espaço do

deslocamento não se resume somente ao campo físico, geográfico, pois ele também

é um espaço caracterizado por diversos e diferentes sentidos, ou seja, sociológica,

política, econômica e culturalmente. Assim sendo, diante da complexidade do tema,

cada uma dessas particularidades e de suas variações pode se tornar objeto de uma

ciência particular e tema de uma pesquisa especifica (SAYAD, 1998).

O autor afirma que o imigrante somente passa a existir, de fato, na sociedade

que assim o nomeia, a partir do momento em que ele atravessa suas fronteiras e

pisa em seu solo. O imigrante então “nasce” como imigrante para a sociedade que

dessa forma o designa a partir desse momento (SAYAD, 1998).

Ao passo que a presença do imigrante é sentida como uma presença

estrangeira na sociedade que os acolheu, as “ilusões” e idealizações que estão

associadas a ela que até a compõem, podem ser qualificadas como, em primeiro

lugar, a ilusão de uma presença que apresenta em sua essência a provisoriedade,

mesmo quando tal presença, dada por direito de forma provisória, se verifica na

realidade sempre a posteriori, como uma presença duradoura, ou até mesmo

definitiva. A segunda é a ilusão de que tal presença é totalmente justificável pelo

motivo ou pelo álibi que se encontra em sua base e que é o trabalho ao qual ela

está, ou deveria estar, lógica e completamente, dependente. Finalmente, a ilusão da

existência de uma neutralidade política, não só a neutralidade que se ordena ao

imigrante, mas da maneira como ela se confere ao próprio fenômeno da imigração e

também da emigração, cujo caráter intrinsecamente político é disfarçado, ou quando

não negado, em conveniência com o seu papel econômico (SAYAD, 1998).

Segundo Sayad (1998), uma das características fundamentais do fenômeno

da imigração é que, excluindo algumas situações excepcionais, tal fenômeno

colabora para disfarçar para si mesmo sua verdade. Ou seja, por não conseguir

sempre colocar em concordância o direito e o fato, a imigração condena-se a

produzir uma determinada situação que parece destiná-la a uma eterna contradição

dupla. Assim, passa a não mais existir a certeza de que se trata de um estado

provisório que se deseja prolongar de forma indefinida ou, pelo contrário, se a

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imigração trata de um estado mais permanente e/ou duradouro, mas de que se

gosta e se acostuma vivê-lo com um forte sentimento de provisoriedade. Por se

encontrar dividida entre essas duas representações contraditórias, todo o processo

ocorre como se a imigração precisasse, para conseguir se perpetuar e se reproduzir,

de se desconhecer a si mesma e se ignorar como temporária e, ao mesmo tempo,

não se confirmar como uma mudança definitiva (SAYAD, 1998). Portanto, Sayad

(1998) afirma que no momento em que o crescimento econômico, grande

consumidor da imigração, necessitava de mão de obra imigrante constante e

estável, sempre em maior número, tudo convergia para concordar e fazer com que

todos os imigrantes partilhassem a grande ilusão coletiva que se localiza na base do

fenômeno da imigração.

Enfim, o que é um imigrante então? Um imigrante, segundo Sayad (1998), é

em sua essência uma força de trabalho, uma força de trabalho transitória, temporária

e em movimento. Como consequência desse princípio, um trabalhador imigrante,

mesmo se for convocado a trabalhar durante praticamente toda a sua vida no país

receptor, mesmo se estiver destinado a falecer como imigrante, permanece sendo

um trabalhador tratado e marcado como temporário, ou seja, revogável a qualquer

tempo. Assim, o tempo de permanência no novo solo permitido e autorizado ao

imigrante está absolutamente sujeito ao trabalho, única razão para qual ele é

reconhecido. Primeiro, ser e estar como imigrante, mas também como homem,

apesar de sua qualidade de homem se encontrar sempre subordinada à sua

condição de imigrante, pois foi somente o trabalho que proporcionou o nascimento

do imigrante e que o faz existir. Portanto, quando o trabalho finaliza, este término faz

com que o imigrante “morra”, decreta então sua negação e o impele para o não-ser.

É o trabalho que condiciona toda a vida e existência do imigrante, mas este não é

qualquer trabalho, não se localiza em qualquer lugar. Ele é o trabalho que o

“mercado de trabalho para imigrantes” designa e impõe, sendo imigrantes para

determinado tipo de trabalho que se tornam, desse modo, trabalho exclusivamente

para os imigrantes (SAYAD, 1998).

Ainda, segundo Sayad (1998, p. 66-67),

“exportam-se” ou “importam-se” exclusivamente trabalhadores, mas nunca –ficção esta indispensável e compartilhada por todos – cidadãos atuais ou futuros. Aliás, seria possível que fosse diferente? Assim, semelhante dissimulação acrescentada a muitas outras da mesma natureza aparece

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como a própria condição, a condição absolutamente necessária para que existam emigração e imigração. (SAYAD, 1998, p. 66-67)

Já Portes (1999) afirma que sendo a sociologia da imigração um campo

empiricamente fundamentado, esta ciência se conservou durante um longo tempo

numa feliz indiferença às muitas controvérsias teóricas existentes. Para o autor, o

campo de estudos sobre a imigração é dono do seu próprio núcleo analítico, que diz

respeito às origens norte-americanas da disciplina que fora alterada, nos últimos

anos, por meio do reencontro com os autores clássicos.

No entanto, a convergência com os atuais desenvolvimentos em sociologia

econômica derivou da exigência de correção das análises neoclássicas sobre as

origens da imigração e sobre a adaptação econômica dos imigrantes e dos seus

descendentes ao novo solo. Neste ponto, encontra-se um evidente paralelo entre os

aparelhos conceituais que se desenvolvem em ambos os campos. Assim sendo, o

conhecimento da influência das relações de centro-periferia e de desequilíbrio

estrutural, de modos de incorporação, de nichos ocupacionais, enclaves étnicos,

minorias intermediárias e economia informal pode ser explicado como sendo

amostras e manifestações específicas dos processos mais universais, que são

abrangidos e compreendidos pelas categorias conceituais da sociologia econômica.

Portanto, como muitas hipóteses derivadas da observação e análise do campo da

sociologia da imigração são compatíveis com conceitos gerais desenvolvidos de

forma independente, fica comprovada a utilidade destes conceitos (PORTES, 1999).

Assim, Portes (1999, p. 40) afirma que:

para além do seu interesse intrínseco, o estudo da imigração pode desempenhar um importante papel na presente conjuntura teórica, dada a importância das estruturas sociais na determinação das origens, da dimensão e da adaptação econômica das populações étnicas que surgem com a imigração. (PORTES, 1999, p. 40)

Ainda segundo Portes (1999), a sociologia da imigração desde seu

surgimento no início do século XX desenvolveu uma tradição teórica independente

que buscou esclarecer, responder a questões e fenômenos como a existência de

taxas significativamente mais altas de doença mental entre os sujeitos nascidos no

estrangeiro e os diversos estágios de integração na sociedade de acolhimento.

Dessa forma, conceitos como marginalidade, estresse de aculturação,

“etnoclasse”, assimilação e amalgamento foram elaborados ao passo que tal campo

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de investigação evoluía ao longo da primeira parte do século XX. Entretanto, a

sociologia da imigração, em estreita união com o padrão funcionalista, passou por

uma significativa transformação ao longo das décadas de 1970 e 1980, ao passo

que seu arcabouço conceitual original foi sendo analisado e então considerado

escasso e insuficiente para lidar com a realidade das atuais vagas de estrangeiros

(PORTES, 1999).

A então crescente complexidade da imigração moderna e o mosaico de

grupos compostos por diversas etnias que a sustentaram estabeleceram um desafio

específico, ao passo que o outro era exigido pela necessidade de constituir uma

posição diante das explicações desenvolvidas pela escola neoclássica para elucidar

os mesmos processos. Assim sendo, os conceitos evoluíram no transcorrer de um

diálogo travado entre a tradição original deste campo e as visões neoclássicas

modernas (PORTES, 1999).

Portes (1999) afirma em seu estudo que o pensamento econômico

hegemônico fornece um exame linear das razões e dos motivos da imigração,

compreendendo-a como produto de diferenças no campo internacional na busca e

na oferta de mão de obra. Dessa maneira, a nível individual, a migração é

determinada com base em cálculos de custos e benefícios dos distintos índices de

produtividade e de remuneração de capital humano entre vários países. De tal

modo, os padrões de migração internacional tendem a refletir, com uma exatidão

considerável, as ações dominantes praticadas no passado pelas potências

econômicas mundiais (PORTES, 1999).

Assim, os conceitos de relação centro-periferia e de desequilíbrio estrutural

foram desenvolvidos com objetivo de refletir esta explicação alternativa para o

fenômeno migratório. De acordo com tais conceitos, o surgimento de fluxos

regulares de mão de obra em direção ao exterior, com um volume estável e destino

conhecido, estaria significativamente sujeito à expansão e ao crescimento anterior

dos Estados-nação mais poderosos em direção às áreas periféricas mais

evidentemente emissoras de mão de obra. Tanto as instituições sociais, quanto as

econômicas e culturais dos países emissores seriam então lapidadas até a

emigração para o centro de atração hegemônico aparecer como uma opção

plausível de sobrevivência (PORTES, 1999)

Em outro ponto, o autor afirma que a migração espontânea é, especialmente,

um fenômeno do século XX. Tal fenômeno corresponderia à crescente integração

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das sociedades periféricas na economia global e à ampliação da consciência e do

conhecimento, por parte das suas populações necessitadas, das oportunidades e

possibilidades existentes nos países estrangeiros (PORTES, 1999).

Porém, segundo o autor, ao nível microestrutural, a sociologia das migrações

não desenvolveu um sistema conceitual significativamente sofisticado para explicar

as singularidades da tendência para a migração entre indivíduos e comunidades no

interior de cada país. Em contraponto, utilizou exaustivamente o conceito de rede

social, já que a migração é determinada como um processo fundador de redes que

desenvolvem uma teia cada vez mais forte de contatos entre os locais de origem e

de destino. Assim, uma vez constituídas, estas redes possibilitam que o processo de

migração se torne autos sustentado e impenetrável a alterações de curto prazo aos

estímulos econômicos (PORTES, 1999).

Finalmente, do ponto de vista da sociologia das migrações, Portes (1999)

afirma que a emigração de indivíduos isolados é um evento excepcional. Na grande

parte das vezes, o processo é mediado por um grupo específico, tal como a sua

organização e o seu destino são decididos pela força dos laços sociais

estabelecidos, ao longo do tempo, por meio de fronteiras nacionais, como pode ser

verificado no caso da imigração síria e libanesa para o Brasil.

2.2 A diáspora síria e libanesa

“Do mundo, somos vizinhos e parentes”Said Akl citado em Salem (1969)

Para compreensão dos motivos e das caudas do fenômeno migratório dos

sírios e libaneses, faz-se necessário conhecer um pouco mais sobre tal região e sua

cultura. Assim, segundo Salem (1969), a composição humana do Líbano e as

características que constituem sua personalidade compõem o enredo de um

processo histórico de amálgamas culturais de complexidade extraordinária, e que,

ao longo do tempo, provocou estranheza, admiração ou puramente controvérsias.

Durante cada século de ocupação estrangeira, cada linha de pensamento penetrou

no semblante intelectual, cultural e moral do povo libanês. Isso cooperou, por meio

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das constantes trocas, aliadas a fenômenos de retraimento e de rejeição, de

emigração e imigração, para lapidar sua essência e sua singularidade, reconhecível

com facilidade, como também, na pluralidade dos laços e vínculos que a aproximam

de muitos outros povos e nações (SALEM, 1969).

Geograficamente falando, com seus 10.400 km², o Líbano ocupa um espaço

muito pequeno no mundo. Seu território representa em torno de 1/55 do tamanho da

França e ¼ da superfície da Suíça. Tal característica diferencia o Líbano da grande

parte dos países do Próximo e Médio Oriente, os quais podem chegar a possuir

médias e grandes reservas de terras, ainda que parte significativa dessas terras

dificilmente possa vir a ser cultiváveis, ou exploráveis. No entanto, a complexidade

do território sírio-libanês não compõe em si mesmo um obstáculo intransponível

como podem comprovar alguns exemplos vindos da Europa e de outras partes do

planeta. Assim sendo, mesmo situado na fronteira de interseção de dois campos

culturais, ou seja, a Europa mediterrânea e cristã e o mundo árabe-muçulmano, o

Líbano é provavelmente o único ambiente onde elas se definem, convivem e

realmente se “partilham” (SALEM, 1969).

Baseado em tal conjuntura, Salem (1969) afirma que o Líbano é também

tanto um país de imigração ou de emigração, já que, para o autor, eles dizem

respeito a um fenômeno com aspectos mais sociais do que econômicos. Pelo

estímulo e atração de uma vida relativamente mais fácil, por suas livres instituições

políticas, a uma economia liberal até certo ponto mais próspera, o Líbano tornou-se

para muitos habitantes dos países mais próximos e conflituosos um asilo e, também,

um refúgio. Portanto, os grupos que para lá foram em número maior eram

constituídos por indivíduos procedentes dos países árabes e em especial os

palestinos e os sírios. Assim sendo, os primeiros desistiram das suas casas

motivados pela guerra árabe-israelita de 1948, vivendo durante muito tempo em

condições precárias, ou seja, amontoados em campos e sobrevivendo do auxílio

que as Nações Unidas lhes destinavam (SALEM, 1969).

Dessa maneira, existiram dois fatores principais cujas consequências

conduzidas em direções contrárias lapidaram as muitas fácies do povo do Líbano.

País de refúgio, por um lado, o Líbano foi campo duma importante combinação de

raças e povos, juntando aos intensos vínculos semíticos compostos por árabes,

fenícios e os primeiros cristãos maronitas, aos significativos contingentes de

indivíduos de outras etnias, em especial, os indo-europeus, os gregos, os romanos,

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os persas, os armênios bizantinos. Por outro lado, as sínteses desses muitos

elementos foram, repetidas vezes, obstruídas pela divisão do país e pela pluralidade

religiosa e cultural que atuou como fator de oposição ao amalgamento e à

assimilação desses diversos traços e culturas. O produto desse processo resultou

em uma população de características físicas e psíquicas misturadas e contraditórias,

consequentemente, facilmente reconhecível, provida de certa maneira de um

denominador comum ainda que em seus contrastes e em suas formas conflituosas

(SALEM, 1969).

Ainda segundo Salem (1969), no mundo todo existem, dispersos, muito mais

do que 1.100.00 libaneses de origem. Os países que receberam um número maior

de imigrantes durante o final do século XIX e a primeira metade do século XX foram

os Estados Unidos, o Brasil, a Argentina e os países da África negra. Também

ocorreu acentuada emigração para a Austrália e o Canadá. Através do trabalho que

executavam nesses países, os serviços oferecidos pelos sírios e libaneses de além-

mar à terra natal foram diversos, quer sejam eles de solidariedade quanto às

questões políticas, de incentivo e projeção intelectual e moral, ou de auxílio

financeiro e/ou material aos parentes que permaneceram no Líbano (SALEM, 1969).

Truzzi (2001) afirma também que durante as últimas décadas do século XIX

até os anos 1920, uma quantidade progressiva de sírios, em grande parte composta

por cristãos vindos da Síria, aportaram no Brasil e nas Américas, impulsionados

especialmente por pressões demográficas e problemas econômicas existentes em

sua terra de origem, como também, seduzidos por relatos de imigrantes bem-

sucedidos que a ela retornavam ou se comunicavam. Já em terras americanas, as

afinidades culturais, a identidade e a adaptação desses imigrantes às sociedades

que os acolheram foram constantemente bastante influenciadas por suas origens,

reveladas por meio da religião, da naturalidade, da ocupação profissional e ainda

pelos laços familiares. Pelo fato de muitos imigrantes terem vindo para a nova terra

com a intenção de permanecer provisoriamente, acumular uma quantia razoável de

dinheiro e retornar aos seus países, muitos deles começaram suas atividades

econômicas em novo território como mascates ou comerciantes informais (TRUZZI,

2001).

Em contrapartida, a conjuntura em que a imigração ocorreu atuou na mesma

direção. Tendo pouco ou nenhum auxílio, aqueles que tomavam a decisão de

emigrar o praticavam por conta própria, na maior parte das vezes escondidos das

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autoridades turcas que dominavam a região. Permaneciam, dessa forma, nas mãos

dos sujeitos intermediários que exerciam o tráfico e embarque dos imigrantes

clandestinos (TRUZZI, 2001).

A emigração poderia ainda ocorrer por etapas, que incluiriam, por exemplo, o

Egito, a Itália ou a França. Os imigrantes que chegavam a Alexandria, Gênova ou

Marselha esperavam, muitas vezes, durante semanas pelos navios que os

conduziriam à América. Eles ficavam ainda, nos portos de embarque, sujeitos a toda

espécie de mentiras e trapaças. Havia a exploração dos donos das pensões onde

dormiam e se alimentavam, como também, pelos negociantes de roupas que os

convenciam de que não poderiam chegar à América vestindo qualquer traje

(TRUZZI, 2001).

Segundo Truzzi (2001), até o começo da Primeira Guerra Mundial, a região

denominada de Grande Síria, ou somente Síria, fazia parte do Império Otomano, que

também incluía o Líbano em suas fronteiras territoriais. Posteriormente à derrota

sofrida pela Turquia, a França adquiriu o domínio político da região e instituiu o

regime de protetorado, que conferia determinada autonomia ao Líbano. Assim

sendo, tanto a Síria, região povoada, em grande parte por muçulmanos, cuja capital

é denominada Damasco, quanto o Líbano, constituído por uma faixa estreita de terra

colada ao mar Mediterrâneo, povoada naquele tempo em sua maioria por cristãos

maronitas, sendo sua capital Beirute, conquistaram terminantemente e

respectivamente sua independência do Império Turco-Otomano em 1946 e 1943.

Tanto do Líbano quanto da Síria, chegaram ao Brasil levas mais significativas de

imigrantes a partir das duas últimas décadas do século XIX (TRUZZI, 2001).

Portanto, embora os sírios e libaneses tivessem aportado em alguns países

da América aproximadamente na mesma época, é possível afirmar, segundo Truzzi,

(2001), que o papel acentuado que eles conquistaram no Brasil, em especial em São

Paulo, foi ocasionado, em grande parte, pelo pioneirismo de suas atividades

comerciais, sua fixação claramente urbana e dispersa ao longo de várias cidades do

interior do país e pela conjuntura de terem chegado, mesmo que ocasionalmente, ao

lugar certo no tempo certo (TRUZZI, 2001).

É sabido que o Líbano foi dominado pela Turquia durante muitos anos, mais

precisamente, no período de 1880 a 1920. Porém, mesmo fazendo parte dos países

árabes que compunham o Império Otomano, o Líbano sempre teve destaque como

um lugar singular. Aqui se trata, especificamente, do Monte Líbano, ou seja,

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conjunto formado por montanhas localizado a leste da capital Beirute, caracterizado

pela existência de grupos religiosos drusos e maronitas, que fugiram para aquele

local das perseguições que as ortodoxias islâmicas e católicas realizavam contra

eles (TRUZZI, 2001).

Já Gattaz (2005) afirma que para compreender os motivos dos problemas que

afligem até hoje o Líbano, entre os quais um dos mais graves é a emigração crônica

de seus jovens, é necessário conhecer, desde meados do século XIX, o processo

histórico do desenvolvimento desta região, que se tornou o Estado libanês depois

que as áreas ao sul e ao norte foram anexadas em 1920. Dessa forma, durante o

término do século XVIII, a região que pertencia o Império Otomano, denominada

Síria, local onde se encontrava o Monte Líbano, se partia em quatro províncias, ou

seja, Damasco, Alepo, Trípoli e Saída, cada uma delas governada por pashas

(líderes turcos). As famílias que se encontravam no poder gozavam, de certa

maneira, de total independência, sendo exigido delas somente o pagamento de um

tributo aos otomanos. Assim, Istambul, capital do império turco, impunha sua

autoridade e força exclusivamente quando achava isso importante. Volta e meia, os

pashas guerreavam contra os outros governantes, tanto por motivos pessoais,

quanto políticos ou comerciais (GATTAZ, 2005).

O Líbano apresentou, no final dos anos 1850, um momento de intensa

convulsão, ocasionado, principalmente pelo fato de, ao norte, os camponeses

maronitas terem atacado e expulso as famílias nobres, tomando posse de suas

propriedades e de seus bens. Tal movimento atingiu toda a região e se transformou

em um forte conflito entre os camponeses maronitas e os lordes drusos, episódio

que se tornou conhecido como a “guerra civil de 1860”, o que na verdade era uma

mistura de conflito entre comunidades e luta de classes. Assim, sob o regulamento

que fundamentou a organização do país no sistema que veio a ser chamado de

confessional, e também, aproveitando o apoio europeu conquistado ate então, o

Líbano viveu relativo período de paz até a primeira década do século XX,

apresentando significativo progresso social e econômico (GATTAZ, 2005).

Gattaz (2005) afirma que, como elemento de um processo comum a

praticamente todo o Oriente Próximo2, as potências europeias adversárias

2 Segundo Gattaz. (2005), a expressão Oriente Próximo refere-se especificamente à orla mediterrânea da Ásia (regiões históricas da Síria e Palestina, atuais Líbano, Síria, Israel, Jordânia e Territórios Palestinos). Por Oriente Médio, está designado todo o sudoeste asiático, o que engloba as

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buscavam fundar suas bases com objetivo de constituir grupos das elites nativas que

se lhes tornassem favoráveis, com a criação e instituição de universidades e

escolas. A região libanesa foi onde ocorreu tal processo de forma mais evidente e

intensa por causa da existência de uma maior concentração de cristãos. O

pensamento da Igreja e dos países europeus era de que existia a necessidade de

proteger e aparelhar, inclusive de maneira educacional, a população cristã do

Líbano, que então resistiria ao desenvolvimento islâmico, impedindo assim a criação

de um ambiente plenamente islâmico-árabe. A então função de educar as elites

nativas estava designada às missões religiosas, predominantemente católicas e

protestantes, vindas da Europa, que além de muitas escolas3, também criaram boas

universidades, tais como a Universidade St. Joseph de Beirute, formada por jesuítas

franceses, ou a Universidade Americana de Beirute, instituída por missionários

presbiterianos (GATTAZ, 2005).

As províncias árabes que compunham o Império Otomano sofreram durante o

século XIX respeitáveis transformações em seu cenário econômico. Parte

significativa de todas as mudanças ocorria de modo geral no desenvolvimento de

praticamente todo o Oriente Médio, pois o aumento da agricultura e a diminuição do

pastoreio, ocasionados pelos lucros menores dos produtos da estepe em relação às

safras de exportação e ao maior domínio do governo, tornavam preferidos os

camponeses assentados, sujeitos a impostos e recrutamento militar, a pastores

nômades que existiam na região. Não bastasse um crescente processo de

urbanização que tomou toda a região, houve ainda a presente mudança na

produção econômica (GATTAZ, 2005).

Dessa forma, Gattaz (2005) afirma que também os portos marítimos, em

particular os da costa mediterrânea, passaram a viver um período de intenso e

acelerado crescimento, sobretudo depois da abertura do Canal de Suez em 1869, o

queproporcionando amplas modificações nas rotas que ligavam o comércio da

Europa ao Oriente. A presença de indústrias e empresas vindas do continente

europeu, com o objetivo de administrar e implantar os serviços públicos, os

regiões históricas da Anatólia, Síria, Palestina, Mesopotâmia e Pérsia (atualmente o conjunto dos Estados árabes asiáticos: Líbano, Síria, Jordânia, Territórios Palestinos, Arábia Saudita, Bahrein, Catar, Emirados Árabes Unidos, Iêmen, Iraque e Kuwait, além de Israel, Turquia e Irã, em alguns autores e na mídia ocidental, os limites do Oriente Médio deslocam-se até o Rio Indo, englobando também Afeganistão e Paquistão.3 Em 1913, o Monte Líbano tinha 330 escolas, com 20.000 alunos, o que tornava o índice de analfabetismo significativamente baixo para um país localizado fora da Europa ou América do Norte.

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transportes e o tratamento e distribuição de água, eletricidade e gás, também

provocou significativas transformações, pois tais investimentos fizeram com que os

governantes locais se tornassem dependentes do capital vindo do ocidente.

Quanto ao aspecto social, segundo Gattaz (2005), o crescimento da

urbanização e a decadência das epidemias e da fome contribuíram para provocar

um acentuado crescimento populacional. Porém, o padrão de vida não apresentava

melhoras, exceto para as classes superiores das populações urbanas, que se

mantinham unidas ao governo ou à esfera que apresentava intensa expansão da

economia. Assim sendo, até nas regiões que proporcionavam as melhores

condições, a probabilidade de conquistar um melhoramento ou progresso na vida

dos camponeses era restringida pelo aumento sucessivo da população e pela

alteração na estabilidade do poder social, que favorecia aqueles que possuíam ou

dominavam as terras (GATTAZ, 2005).

Mesmo nesse ambiente tanto de crescimento econômico quanto de escassez

de oportunidades, a Síria e mais precisamente o Líbano viveram um progresso

socio-econômico até certo ponto louvável, porém com a característica de ser, em

sua base, descontínuo e desigual entre as diferentes regiões, classes sociais e

grupos religiosos, tendo então como consequência muito descontentamento por

parte dos seus cidadãos (GATTAZ, 2005).

Durante esse período, Gattaz (2005) defende que em nenhum outro lugar do

Oriente Médio o desenvolvimento econômico se traduziu com mais força do que no

Líbano, sobretudo em Beirute, que mesmo tendo sua administração separada,

mantinha ainda intensas ligações com o Monte Líbano. Assim, pode-se dizer que,

naquele tempo, era total a relação, como também a conexão da cidade com o

mercado mundial por meio do comércio, dos transportes, das comunicações e

finanças. Juntamente com o crescente movimento do seu porto, Beirute, que tinha

6.000 habitantes em 1800, passou a 60.000 em 1860 e a 150.000 em 1914

(GATTAZ, 2005).

Portanto, o Líbano recebeu grandes investimentos após 1860 de países

estrangeiros à medida que ocorria uma relativa pacificação nos anos depois da

criação e implantação do regime especial para o país, e ainda com o processo de

criação de infraestrutura financiada por crédito e empréstimos originados de países

europeus para incentivar o crescimento dos países não industrializados. Durante o

ano de 1861, foi inaugurado o telégrafo Beirute-Damasco. Logo, em sequência, em

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1863, foi concluída a primeira estrada de rodagem que ligava as duas cidades. Já

em 1893 foram concluídos o aumento e o aperfeiçoamento do porto de Beirute e, em

1895 foi inaugurada a linha férrea entre Beirute e Damasco (GATTAZ, 2005).

Dessa forma, Beirute também se transformava em sede dos mais importantes

e poderosos bancos no Oriente Próximo, levando seus habitantes a se inserir na

economia monetária antes mesmo dos moradores das outras áreas da mesma

região. Formou-se, assim, com o incremento do comércio e dos serviços urbanos

básicos, uma burguesia urbana sem precedentes em outros países árabes. Segundo

Gattaz (2005), nas demais regiões do Líbano podia ser observado um

desenvolvimento considerável do espaço cultivado, com a divulgação e propagação

da pequena propriedade e o uso de terraços que permitiam o cultivo nas partes

montanhosas. Porém, tal crescimento ficou centralizado na produção da seda e no

cultivo de tabaco e vinho para exportação, o que fez parte da base dos períodos de

fome que aconteceram a partir da metade do século XIX (GATTAZ, 2005).

Segundo o autor, a população do Líbano apresentou um crescimento maior

do que a de qualquer outro país da região ao longo do século, o que ocasionou, em

1900, uma elevada densidade demográfica no Monte Líbano, de 159 hab/km², a

maior de toda a grande Síria. Entretanto, em contraposição ao que ocorria no Brasil,

local onde a população rural residia em sítios e fazendas em sua grande parte, bem

afastados dos centros urbanos, no Líbano os indivíduos que trabalhavam na terra

residiam em pequenas cidades ou vilas e cultivavam as terras ao seu redor. Estas

terras ainda não possuíam cercas e eram reconhecidas com base nas

características naturais do terreno, o que provocava conflitos, mesmo sendo

cultivadas familiarmente e não coletivamente. Grande parte dessas propriedades

não possuía o tamanho dos pequenos sítios localizados no sudeste do Brasil, sendo

ainda frequentemente fragmentadas. Dessa forma, a produção era quase sempre

insuficiente e sobrava pouco depois do sustento das famílias para a comercialização

(GATTAZ, 2005).

Portanto, devido ao encurtado tamanho, à elevada densidade demográfica e à

ampla ocupação do país, praticamente nenhum libanês habitava um lugar que ficava

a mais de um ou dois dias de caminhada de qualquer cidade, e a grande maioria

residia a dois ou três dias de distância da capital Beirute. Um dos mais significativos

fatores na raiz do processo de emigração libanês e que ao longo do tempo teve um

importante papel, são o conjunto de imperativos e necessidades econômicas e

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materiais provocados pela relação entre a baixa produção agrícola e a alta

densidade populacional que desde meados do século XIX caracteriza tal país. Assim

sendo, como exposto acima, o intenso crescimento populacional impediu a região

das montanhas libanesas de produzir o suficiente para prover os meios econômicos

necessários à sobrevivência de seus habitantes, o que conduziu a um importante

movimento migratório de aldeões na direção norte-sul (GATTAZ, 2005).

A maioria dos pesquisadores da imigração síria e libanesa para o Brasil divide

esse processo em fases com base nas conjunturas sociais, políticas e históricas da

região e do mundo. Segundo Gattaz (2005), as principais fases são:

Fase 1: Domínio do Império turco-otomano (1880-1920)

Essa primeira fase apresentou como característica principal a emigração de

cristãos que se encontravam descontentes com as regras impostas pelo domínio

otomano e ainda com a ausência de perspectivas econômicas causada pela relação

entre a elevada densidade demográfica, a baixa urbanização, a industrialização

quase inexistente e a agricultura deficiente. O movimento migratório foi então

reforçado pela ambição de riqueza fácil que poderia vir a ser conquistada na

América, que foi de fato alcançada por grande número desses pioneiros. Os

principais grupos que imigraram nesse período foram a população rural, em sua

maioria cristãos do Monte Líbano, de Zahle, do Vale do Bekaa e do Sul do Líbano.

As motivações mais significativas estão nas necessidades econômicas das

populações rurais, na oposição ao domínio otomano e no desejo de enriquecimento,

estimulado pelas noticias enviadas pelos pioneiros. Já as motivações secundárias

foram o acompanhamento de pais, irmãos mais velhos ou cônjuges, crianças e

mulheres (GATTAZ, 2005).

Fase 2: O período do entre guerras (1920-1940)

Fase caracterizada principalmente pela emigração de cristãos e muçulmanos

que procuravam melhores perspectivas econômica, por se encontrarem

descontentes com a nova configuração do Estado libanês após o final da Primeira

Guerra Mundial. Nesta etapa ainda está presente de forma significativa o papel do

desejo de enriquecimento rápido, porém isto já não é garantido àqueles que foram

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trabalhar como mascates no Brasil. Assim, os principais grupos de imigrantes foram

a população rural (cristãos e muçulmanos) do Monte Líbano, do Vale do Bekaa, do

Sul do Líbano e os cristãos de Zahle, Beirute, Trípoli e cidades do Sul. Já as

principais motivações estiveram na carência de perspectivas para os setores

urbanos da população, como também nas necessidades econômicas da população

rural, sendo as motivações secundárias, a ambição pessoal, juntamente com o

desejo de enriquecimento e o acompanhamento de pais, irmãos ou cônjuges

(crianças e mulheres), como também, a oposição ao domínio francês.

Fase 3: A independência do Líbano (1940-1975)

Etapa é caracterizada pela saída de cristãos e muçulmanos, especialmente

de origem urbana, em função da falta de oportunidade profissional, acentuada pela

depressão econômica após a Segunda Guerra Mundial e pelos conflitos de origem

religiosa e política que ameaçavam a ordem e a integridade do país a partir de 1958.

Principais grupos que imigraram: muçulmanos e cristãos de Zahle, Beirute, Trípoli e

cidades do Sul; população rural do Monte Líbano, do Vale do Bekaa e do Sul do

Líbano. Nesta época ocorreu um aumento expressivo na proporção dos muçulmanos

emigrantes, tanto de origem urbana como rural. Já as principais motivações estão na

deficiência de perspectivas econômicas para a população urbana, nos conflitos

sectários, sendo as motivações secundárias, o acompanhamento de pais, irmãos

mais velhos ou cônjuges (crianças e mulheres).

Fase 4: Guerra do Líbano (1975-2000)

Provocada pelo conflito militar que ocorreu a partir do início da década de

1970 e suas consequências, tais como insegurança e medo generalizados, queda

da atividade econômica com consequente desemprego, perseguições políticas e

sectárias, busca de nacionalidade brasileira. Principais grupos imigrantes:

muçulmanos sunitas e xiitas do Vale do Bekaa e do sul do Líbano; cristãos do Monte

Líbano, Beirute, e cidades do norte do país. As motivações mais importantes foram a

falta de perspectiva econômica provocada pela duração e intensidade da guerra, a

fuga temporária da guerra devido a atentados, bombardeios etc. Já as motivações

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secundárias estão entre a busca de nacionalidade estrangeira, o acompanhamento

de pais, irmãos mais velhos ou cônjuges (crianças e mulheres).

É importante ressaltar que, segundo Gattaz (2005), a sobreposição das

comunidades libanesas e sírias transforma diferentes comunidades em uma grande

colônia sírio-libanesa, ou mesmo árabe, que abrange diversos grupos heterogêneos

tanto de cunho religioso, quanto ideológico e regional. Portanto, quando é utilizado o

termo comunidade libanesa, fala-se na verdade em uma modalidade conceitual, já

que na realidade, sobretudo para os demais cidadãos brasileiros, mas também para

os que são de origem árabe, torna-se praticamente impossível diferenciar a

comunidade libanesa da síria, ao contrário da facilidade que existe em identificar o

árabe e seus costumes (GATTAZ, 2005).

Ainda assim, as diferenças mais claramente identificadas entre os imigrantes

árabes ainda não se localizam nem mesmo entre os sírios e os libaneses, mas nos

muitos grupos religiosos das duas nações. Para buscar entender a comunidade

libanesa como um todo e sua relação com a colônia árabe, é preciso, portanto,

encontrar uma separação entre os vários grupos religiosos, regionais e etários que a

formam e ainda analisar suas singularidades, diferenças e afinidades (GATTAZ,

2005).

Gattaz (2005) afirma que ao levar em conta as causas da emigração, pode-se

afirmar que os fatores econômicos foram os que, durante todo o tempo, se tornaram

o maior estímulo para a expulsão dos libaneses em direção a países tão distintos

como Brasil, Austrália, Argentina, Egito e Estados Unidos. Porém, juntam-se a este

motivo aqueles de caráter político, passando ainda a existir, muitas vezes, aspectos

de caráter simplesmente pessoal e que oferecem à emigração uma coloração épica

Assim sendo, quanto às questões relacionadas às religiões, os motivos da

emigração têm sido os mesmos tanto para muçulmanos, quanto para drusos e

cristãos nos diferentes momentos durante o século. O que se pode destacar é

somente a maior proporção de cristãos emigrando na primeira metade do século,

pela sua oposição ao domínio do império otomano, e sua maior urbanização,

educação e mesmo possibilidades financeiras. Em contrapartida, durante a segunda

metade do século, a emigração dos libaneses muçulmanos aumentou

significativamente, tanto devido à sua crescente urbanização e educação, como por

serem avessos ao regime confessional que assegurava a supremacia política aos

cristãos (GATTAZ, 2005).

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2.3 A imigração síria e libanesa para o Brasil

“Deixei meu País,Rompi laços maternos,

Preferi ´paus brasis`,Aos meus ´cedros eternos`”.

A. B. citado em Salem (1969)

O processo migratório dos sírios e libaneses rumo ao Brasil teve seu início na

segunda metade do século XIX, perpetuando-se ao longo do século XX. Segundo

Knowlton (1961), a grande parte dos que imigravam era composta mais por

libaneses do que por sírios e bem mais cristãos do que não-cristãos, como os

mulçumanos e os drusos, entre outros. As últimas décadas do século XIX e as

primeiras do século XX foram um momento de intensa saída das populações síria e

libanesa em direção aos cinco continentes, em especial, África, América, Europa,

Ásia Ocidental e ilhas do Pacífico. Knowlton (1961, p. 37) afirma que:

a data de 1871 é aceita como um consenso nas estatísticas oficiais para a entrada dos primeiros sírios e libaneses no país, inicialmente no Rio de Janeiro. Já a tradição oral afirma que eles entraram no Brasil em data anterior, uma vez que emigraram do Líbano para a Espanha e Portugal, inicialmente, e de lá para o Brasil, já nas primeiras expedições colonizadoras.

Um ponto importante desse processo, segundo o autor, é o fato de que os

primeiros imigrantes sírios e libaneses emigraram para o Brasil por não terem obtido

visto para os Estados Unidos ou por não corresponderem às imposições e condições

impostas para a entrada em solo americano. Assim, para evitar o retorno à terra

natal, muitos imigrantes desembarcavam no Rio de Janeiro, uma vez que também

fazia parte do continente americano. Outros grupos acabavam desembarcando no

porto de Santos, muitas vezes convencidos de que estavam finalmente chegando os

Estados Unidos da América, sendo vários deles enganados por agências de

navegação. Por fim, existem aqueles que buscaram o Brasil exatamente por já terem

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alguns parentes no país ou por confiarem que no Brasil conquistar fortuna seria mais

fácil e rápido.

Naquele tempo, a Síria era uma região de pequenas proporções, de modo

que os estímulos para a emigração alcançaram toda a população de maneira

relativamente homogênea. Assim, a vontade de emigrar, de fazer a América, de

conquistar um progresso antes inimaginável, onde quer que fosse, antecedia a

determinação por um destino específico. Por toda a então Síria, relatórios de

missões presbiterianas apontaram que, ao longo da última década do século XIX, a

febre imigratória chegou a se tornar uma mania. Ou seja, um analfabeto vai para a

América e após seis meses envia aos seus familiares um cheque de $300 ou $400

dólares, o que representa uma quantia maior do que o salário de um professor ou de

um pastor em mais de dois anos. Quase todo o dinheiro que é enviado para o seu

pais de origem é utilizado para a quitação de velhas dívidas, hipotecas, e para

buscar outros imigrantes para o além-mar. Dos relatos e mensagens enviadas pelos

imigrantes só se ouviam louvores irrestritos à América (TRUZZI, 2001).

Porém, Knowlton (1961, p. 35) afirma que:

saber precisamente como se deu a imigração sírio e libanesa para o Brasil é uma tarefa bastante difícil, uma vez que as autoridades brasileiras não mantinham estatísticas precisas, tampouco uma definição exata sobre o conceito de imigrante. Até 1934, imigrante era todo estrangeiro que desembarcasse em portos brasileiros, vindos de terceira classe, pois os passageiros de primeira e segunda classe eram considerados turistas e visitantes. (KNOWLTON,1961, p. 35)

Já com a proclamação do Decreto Federal nº 24.215, de 9 de maio de 1934, e

o de nº 34.358, de 16 de maio do mesmo ano, o conceito do que seria então um

imigrante é redefinido. E o imigrante passa a ser compreendido como o indivíduo

que vem ao Brasil para desempenhar um ofício ou profissão por mais de 30 dias.

Porém, por ainda ser uma definição insatisfatória, quatro anos após tal decreto, a

legislação se modifica novamente com o acréscimo de novos termos, tais como

“permanente e temporário.” Aqueles que eram classificados como temporários

recebiam o visto de turistas, ou seja, viajantes em trânsito. Já os denominados

permanentes, seriam aqueles que constituíam um lar definitivo no país. Entretanto,

um outro fator que provocava certo conflito diz respeito à identidade, pois após o

término do conflito de 1860, os sírios e libaneses que emigraram eram todos

portadores de um passaporte fornecido e carimbado pelas autoridades do domínio

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turco. Assim, mesmo sendo revelada a verdadeira nacionalidade, foram

denominados de “turcos”, por ser justamente o Império turco-otomano que lhes

fornecia a autorização oficial para viajar. Assim como os sírios e libaneses, era

também conhecido como turcos qualquer migrante proveniente da região oriental,

mesmo sendo egípcio, palestino ou persa (SIQUEIRA, 2002)

É público que São Paulo foi um dos maiores e mais importantes centros de atração

para os imigrantes sírios e libaneses no Brasil. Porém, é extremamente árdua a

busca de elementos que de fato precisem exatamente esses dados, já que muitos

deles se deslocaram de São Paulo para outras regiões e vice-versa. O perfil do

indivíduo que se aventurava na imigração, em sua grande parte, era o adulto,

solteiro e do sexo masculino, em geral cristão praticante, de diferentes igrejas, como

a maronita e a greco-ortodoxa. Assim, ao se adentrarem a terras brasileiras, os

primeiros imigrantes sírios e libaneses já em 1871 constituíram na cidade uma

pequena colônia, como também no caso da cidade de Rio de Janeiro (SIQUEIRA,

2002).

A autora afirma que, geralmente, a trajetória é a mesma, pois praticamente

todos os imigrantes deram início a suas atividades profissionais como mascates,

para somente depois passarem ao comércio de varejo, com suas lojas, e ainda mais

tarde ao atacado, chegando finalmente à indústria. Somente na segunda geração,

os filhos dos imigrantes se dedicaram às profissões liberais, por sempre evitarem os

serviços ligados à agricultura e ao operariado. Ao passo que o capital aumentava,

acompanhavam então o processo e a evolução econômica do país ao levar em

conta as oportunidades que surgiam e, em busca do crescimento e progresso,

procuravam mudar para centros mais urbanizados e importantes no Brasil.

Entretanto, cerca de trinta anos após o início da imigração para terras brasileiras, o

censo de 1940 apontou um decréscimo na entrada de imigrantes sírios, libaneses e

grupos afins no país. Porém, de maneira geral, os imigrantes trouxeram consigo

pouco ou nenhum capital, o que fez do comércio um lugar de trabalho que oferecia

retorno financeiro mais rápido do que a agricultura, para a qual era necessária a

aquisição de terras e significativos investimentos iniciais. Em contraponto, a

mercadoria para o comércio podia ser obtida a crédito, e o retorno do investimento

era bem mais acelerado e vantajoso, uma boa maneira de conquistar capital

desejado (SIQUEIRA, 2002).

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A imigração para o Brasil, segundo Truzzi (2001), compõe o quadro geral dos

movimentos de populações europeias e orientais rumo ao continente americano. No

mais, como já citado, a combinação entre o crescimento populacional, uma

composição agrária pulverizada e solos quase desérticos constituíam severos limites

à inclusão dos filhos e respectivas famílias no trabalho e na economia rural, o que

acabava incentivando os mais jovens a adentrarem a aventura da emigração.

Incidiram sobre esses fatores também, mesmo em menor grau, outros motivos como

os de natureza político-religiosa, acarretados pelo esfacelamento do império

otomano ou por brigas e desavenças promovidas entre os grupos religiosos. Os

Estados Unidos, Brasil e Argentina foram os principais países escolhidos como

destino para a emigração, mesmo sendo os números que envolvem esses fluxos

bastante discutíveis, pois o território que hoje se conhece como Líbano não

dispunha ainda da sua independência, o que fez com que um número apreciável de

saídas tenham sido clandestinas (TRUZZI, 2001).

O autor afirma que a imigração de libaneses e sírios no Brasil começou a

crescer às vésperas do século XX, e chegou ao seu auge no período do pré-guerra,

já que o ano de 1913 marcou o pico de 11.101 entradas, somente interrompendo as

entradas no momento do conflito. A imigração só se foi estabilizou ao longo dos

anos 20, chegando em torno de 5.000 entradas anuais, diminuindo ainda mais no

início da década de 1930, abatida pela depressão econômica no País e pelo sistema

de cotas adotado pelo governo brasileiro com base no sistema americano (TRUZZI,

2001).

No Brasil, ao longo de muitos anos, todas as estatísticas de entradas de

imigrantes vindos do Oriente Médio eram nomeadas com sendo pertencentes ao

grupo “outras nacionalidades”, sendo exclusivamente no estado de São Paulo, que

implantou um dos serviços migratório mais organizado a partir de 1908, que esses

imigrantes foram registrados tanto como turcos, turco-asiáticos, quanto como

libaneses ou sírios. No período entre 1908 e 1941, o contingente formado por esses

imigrantes chegou a 4% (48.326 indivíduos) do total de indivíduos que entraram em

São Paulo, atrás dos portugueses, espanhóis, italianos, japoneses e alemães. Um

fato muito importante é que após as últimas décadas do século XIX, o exemplo de

sucesso e conquista de alguns pioneiros bem sucedidos instigou exponencialmente

o fenômeno da imigração (TRUZZI, 2001).

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Segundo Truzzi (2001), não há no país estatísticas confiáveis sobre a

distribuição de libaneses no território Brasileiro no começo do século. Único dado

confiável é que, ao longo dos primeiros anos de 1900, existiam três principais e mais

importantes centros de atração de imigrantes árabes no Brasil - a Amazônia, São

Paulo e Rio de Janeiro.

Assim sendo, o primeiro e mais respeitável centro de atração durante esse

período no Brasil foi a Amazônia, provocado pelo surto de prosperidade que a

borracha proporcionou, iniciado logo após a vinda dos primeiros libaneses. Como

também as grandes levas de brasileiros, outros grupos de pessoas entravam nos

vales do Amazonas em busca de crescimento econômico e trabalho. Porém, a

diferença está no fato de que o mascate sírio ou libanês não tinha interesse, como

os demais, somente na borracha, mas também na venda de variadas mercadorias.

Poucos anos se passaram, e o comércio da bacia amazônica ficou praticamente

todo concentrado em mãos “árabes”. A partir dos mais importantes centros da região

como Manaus, cidade onde a colônia se concentrou nos arredores da Igreja Nossa

Senhora dos Remédios, como também em Belém do Pará, o mascate saía de barco

para negociar com os habitantes mais diversos e distantes (TRUZZI, 2001).

Entretanto, ao término da Primeira Guerra Mundial, e com o final do ciclo da

borracha, ocorreu a mudança de muitos libaneses para outros centros, em especial

São Paulo e Rio de Janeiro, mas muitos deles também continuaram ali até hoje e

fundaram as bases que dão suporte a todo o comércio da região. Outra região que

recebeu a colaboração dos imigrantes árabes foi o estado de Minas Gerais, local

onde suas minas de pedras preciosas e as zonas agrícolas florescentes também

atraíram os sírios e libaneses. E eles se fixaram por todo o Estado, desempenhando

significativos papéis no avanço do comércio e da indústria. Em diversos lugarejos e

cidades, praticamente todo o comércio a varejo e as mais importantes lojas de

alimentos e roupas estavam em suas mãos. Muitos imigrantes, ao enriquecer,

compravam terras e tornavam-se fazendeiros e criadores de gado, entre outras

criações, e os demais investiram suas economias em máquinas de beneficiar

algodão, armazéns e outras formas de empresas industriais numa região

praticamente agrícola (TRUZZI,2001).

Ainda segundo Truzzi (2001), uma das características centrais da colônia

libanesa no Brasil é a capacidade que ela teve de se distribuir, de certa forma, em

todo o território nacional. Iniciando sua vida profissional como mascates, estendiam

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suas rotas a locais extremamente distantes, dificilmente acessíveis pela rede de

transporte existente. Já na região do sul do país, os primeiros libaneses chegaram

por volta de 1880, vindos de locais como Chiká, Djoune, Sarba, Barsa, Zouk Mickael,

Daroun, Anfi, entre outras. Grande parte desses imigrantes desembarcou no Uruguai

e entrou no Brasil por via terrestre, através da cidade fronteiriça de nome Jaguarão.

A cidade de Porto Alegre também acolheu muitos imigrantes árabes tendo as ruas

General Andrade Neves e Voluntários da Pátria como as escolhidas da colônia,

tanto para o comércio como para estabelecer suas residências. Outro ponto

respeitável de concentração desses imigrantes era, obviamente, a cidade do Rio de

Janeiro, que, até 1960, foi sede da capital federal. Ali a colônia se concentrou nos

arredores das ruas da Alfândega, Senhor dos Passos e Buenos Aires. Vários

imigrantes eram alojados no Hotel Boueri, um prédio de dois andares que se

localizava na Praça da República. Ao buscarem seus parentes ou conterrâneos já

estabelecidos na região, eles recebiam logo a orientação para que encomendassem

rapidamente a um marceneiro seu armarinho ambulante com objetivo de dar início à

pratica da mascateação (TRUZZI, 2001).

Com isso, no começo dos anos 60, foi criada a associação Sociedade de

Amigos das Adjacências da Rua da Alfândega, conhecida até hoje como SAARA,

sigla que designava a sociabilidade e a vida dessa região do centro da cidade do Rio

de Janeiro, e que atualmente acabou se popularizando e ganhando vida entre os

cariocas. Ali a mistura de etnias faz com que coexista e conviva no SAARA. uma

grande variedade de religiões. Já os sírios e libaneses presentes naquela região

são, em sua maioria, cristãos maronitas ou greco-ortodoxos e em menor quantidade

muçulmanos (TRUZZI, 2001).

No estudo sobre a sociabilidade dos libaneses residentes no Brasil, Gattaz

(2005) relata que as maiores desavenças e separações dentro da própria colônia

ocorrem pela origem religiosa, existindo, assim, dois grandes grupos, cristãos e

muçulmanos, que comumente conservam poucas relações entre si, mesmo não

sendo incomuns os contatos em vários momentos da vida cotidiana, como no

comércio ou mesmo nas relações entre familiares, ocorrendo ainda vários registros

de casamentos inter-religiosos.

Porém, a regra mesmo é que a convivência mais acentuada e os laços mais

firmes ocorram entre os praticantes da mesma religião. Tal situação pode ser

compreendida em parte pelo motivo de os grupos muçulmanos, pela sua vinda

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posterior para o Brasil, se encontrarem atualmente na fase em que os cristãos

libaneses viviam há cerca de 50 anos, pois há ainda alta taxa de endogamia, sendo

sua comunidade ainda limitada a certos espaços geográficos pela possibilidade de

praticar seu culto na mesquita. Em contraponto, o maior tempo de imigração dos

cristãos libaneses fez com que tal grupo já se ache praticamente integrado à vida

nacional. Porém, a segunda e a terceira gerações têm perdido suas origens étnico-

culturais no caldeirão de imigrantes em que o país se transformou, principalmente

o Estado de São Paulo e sua capital. Assim, pode ser verificado entre os imigrantes

cristãos que chegaram nas décadas de 1920 e 1930 uma batalha quase improdutiva

para manter vivas as tradições culturais por meio dos clubes da colônia. Para o

autor, a tendência desses clubes é desaparecer pelo descaso e falta de interesse

dos descendentes, inteiramente integrados à vida brasileira e pouco estimulados em

manter uma identidade étnica estrangeira (GATTAZ, 2005).

Em contrapartida, segundo Gattaz (2005), as associações instituídas e

conservadas por muçulmanos se encontram em plena atividade e em crescimento,

pois são formadas por jovens recém-chegados de países árabes que precisam

destes espaços de sociabilidade e de ajuda mútua. No Brasil, os mais significativos

grupos religiosos que vieram a ser representados foram os cristãos melquitas, os

ortodoxos e os maronitas, havendo ainda a presença de católicos, protestantes e

outras seitas menores, como os drusos. Já os muçulmanos são mais unidos ao

redor da ortodoxia sunita, porém existem os xiitas, que imigraram nas duas últimas

décadas do século XX e que vivem principalmente no Estado do Paraná. Há ainda a

presença de grupos minoritários de libaneses drusos, religião derivada do islamismo

e cuja seita é praticada secretamente (GATTAZ, 2005).

Os imigrantes pertencentes à religião drusa se estabeleceram de forma

concentrada na cidade de Teófilo Otoni, devido às redes sociais que ali se formaram.

A relevância da formação das redes sociais e o seu papel na imigração síria e

libanesa para a região serão analisados no próximo capítulo. Já os modos de vida e

a sociabilidade desse grupo de imigrantes árabes serão mais bem explorados no

quarto capítulo.

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3 O PAPEL DAS REDES SOCIAIS: UNIVERSO ÉTNICO E INTEGRAÇÃO

SOCIAL

3.1 O que são redes sociais?

Os fenômenos migratórios existem desde os primórdios das sociedades.

Muitos estudiosos voltaram seus olhares e esforços para a compreensão desse

fenômeno, buscando elucidar sua instigante complexidade. Ao refletir sobre a

migração de indivíduos utilizando o ponto de vista dos regimes demográficos, é

possível afirmar que os deslocamentos de pessoas são como acontecimentos

fundamentais para a regulação, ou ainda a integração, das estruturas populacionais

que se atrelam a uma estrutura social historicamente construída. Deste modo, essa

interatividade de situações e fatos promoveria a coesão interna de um regime

demográfico exclusivo, ao expor os padrões e impactos dos eventos migratórios

sobre a estrutura das sociedades e populações (KREAGER, 19874 apud FAZITO,

2010).

Como exemplo dessa afirmação, Fazito (2010) relata que um indivíduo ou

uma família que se encontrem fora de seu país de origem, presente em outras

terras, revelaria muito mais do que uma corriqueira mudança e um deslocamento

comum. O que ocorre, portanto, é a transfiguração de um fenômeno vital em algo

particular na estrutura da sociedade na qual se insere tal indivíduo ou família. Isto

provocaria mudanças sociais profundas tanto na terra de origem como no lugar de

destino. O autor conclui então que tal duplicidade constituída de ausência e

presença revela um rombo profundo na organização social, ocasionada por

fenômenos populacionais reguladores (FAZITO, 2010).

Assim sendo, Portes (1999) afirma que as redes sociais se localizam entre as

mais significativas formas de estrutura em que os acordos e ajustes econômicos

estão encastoados. As redes sociais seriam, deste modo, formas de associações

recorrentes entre grupos de pessoas que se encontram ligadas pelas relações

4 KREAGER, Philip. Demographic regimes as cultural systems. In COLEMAN D.; SCHOFIELD, R. (Eds.) The state of population theory: forward from Malthus. Oxford: Basil Blackwell, 1987. p. 131-155.

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profissionais, familiares, afetivas ou culturais. Segundo o autor, o tamanho e a

densidade de tais redes diferem em distintas dimensões, com implicações diretas no

desempenho econômico. Seu tamanho diz respeito à quantidade de indivíduos que

compõem uma rede e da densidade ao número de laços e relações entre eles.

Portanto, as maiores redes sociais, em densidade e tamanho, são ainda mais

eficazes na criação de normas, regras e na exigência de um comportamento que

inclua a noção de reciprocidade (PORTES, 1999).

As teorias que analisam o papel e a importância das redes sociais no

processo migratório são fundamentais para a análise e compreensão do fenômeno

da imigração síria e libanesa rumo a Minas Gerais. Segundo Soares (2002), a

relevância dada às redes sociais nos estudos sobre migração se originou como

necessidade de considerar processos sociais concretos que lançassem luz sobre o

estilo seletivo da dinâmica migratória e que ajudassem a encontrar respostas para

duas importantes perguntas: por que um indivíduo migra? Por que determinadas

pessoas de um mesmo segmento populacional, sob as mesmas condições

econômicas, sociais ou políticas, optam por migrar e outras não? Tais processos

podem ser elucidados por meio dos estudos sobre o papel e função das redes

sociais no fenômeno da migração.

Em busca dessas explicações, Portes (1999), em seus estudos sobre o tema,

afirma que há um tipo de redes, nomeada de multiplex, com alto grau de distinção

em clusters, sendo este último formado por meio de laços de família no qual existem

diversos laços ocupacionais, religiosos e recreativos, solidários com as relações de

parentesco. Já as cliques familiares estão intimamente ligadas entre si pela

localização residencial próxima e pelo trabalho e religião. Nessas conjunturas, em

que todas as pessoas se conhecem, as regras da comunidade tendem a se

multiplicar e as transgressões sob a lei da reciprocidade provocam sérias

consequências. Como apontam esses modelos, as redes sociais apresentam a

capacidade de ligar pessoas entre si, ou dentro de organizações profissionais e de

comunidades. No entanto, as redes não são as exclusivas estruturas sociais em que

a ação se encontra intimamente associada. Elas, em geral, compõem a conjuntura

imediata que influenciam os objetivos dos indivíduos como também o ambiente e os

constrangimentos com que eles irão se deparar. Assim, os indivíduos que fazem

parte das redes podem mobilizar uma quantidade expressiva de recursos, driblar um

controle muito limitado de seu comportamento, ou o contrário, podem se ver quase

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completamente condicionados pelas expectativas exigidas pelo grupo, o que

depende das características de suas redes e do lugar que ocupam no interior delas

(PORTES, 1999).

Outro ponto importante explorado por Portes (1999) para compreensão do

processo migratório está relacionado ao capital social. Segundo o autor, o capital

social está associado à aptidão dos indivíduos para mobilizar recursos escassos

pelo fato de pertencerem a redes ou estruturas sociais ainda mais vastas. Esses

recursos abarcam bens econômicos palpáveis (por exemplo, descontos e

empréstimos sem juros), ou intangíveis, como indicações de negócios, informações

sobre empregos e certa “boa vontade” nas transações de mercado em geral. Porém,

os recursos propriamente ditos não são o capital social, pois este conceito está

ligado somente à capacidade do indivíduo para mobilizá-los quando for preciso.

Dessa forma, a principal característica conceitual destes recursos se encontra no

fato de serem gratuitos para os beneficiários, do ponto de vista mercadológico.

Deste ponto de vista apresenta a natureza de “ofertas” ao passo de não estão

atrelados ao pagamento por meio de certa quantia em dinheiro ou de outros valores,

num prazo pré-determinado (PORTES, 1999).

De tal modo, está implicada nos recursos e no auxílio adquiridos através do

capital social, na maioria das vezes, a exigência de reciprocidade entre os indivíduos

em algum momento no futuro. Mas em contraposição às expectativas existentes nas

transações do mercado econômico comum, as primeiras buscam constituir um

horizonte de tempo longo, como também difuso, sem estabelecer datas para a

quitação do “débito”, pois se trabalha com um caráter de pagamento bem flexível

(PORTES, 1999).

Segundo o autor, a habilidade de conseguir tais ofertas, ou seja, o capital

social, não se encontra no próprio indivíduo, como, por exemplo, a posse de dinheiro

como capital material, ou a conquista da educação ou capital humano, mas sim no

conjunto de relações que o indivíduo estabelece com os demais componentes da

rede. Do mesmo modo, o capital social pode se expressar por meio dos indivíduos

que compreenderam que o consentimento de tais recursos é o comportamento mais

correto a se ter, seja pelo dever moral, seja por meio da solidariedade para com um

determinado indivíduo ou grupo de pertença (PORTES, 1999).

O autor afirma ainda que a concentração de certos grupos étnicos em

determinados ramos de atividade (caso do comércio na cidade de Teófilo Otoni) é

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ocasionado pelo processo chamado de causalidade acumulativa. Isto ocorre por

meio do acesso fácil e dos bons desempenhos que os “primeiros” a chegar a

determinados setores ocupacionais tiveram, e da consequente indicação de

familiares e coétnicos para o preenchimento de outras vagas. Assim, aquele que

tiver chegado há mais tempo a um novo território carrega a obrigação de trabalhar

incessantemente para cumprir seus compromissos particulares, como também com

as pessoas que lhe arranjaram o emprego, sob os olhares vigilantes de toda a

comunidade étnica, ou seja, a confiança exigível. Tais empregados abrem caminhos

na nova sociedade para os demais que chegarem, até o ponto em que o ambiente

do local de trabalho conquiste as características da cultura do grupo em questão.

Após tal acontecimento, pode se tornar ainda mais complicado para os agentes de

fora vencer e transpor as barreiras e dificuldades à sua entrada, ao contrário dos

membros de redes co-étnicas que passam a ter então um acesso facilitado a esses

espaços (PORTES, 1999).

Torna-se relevante para a análise do processo migratório o conhecimento de

que a maior parte das migrações internacionais em função do trabalho tem a sua

origem em países que se encontram num estágio médio de desenvolvimento

econômico e social, e não nos países subdesenvolvidos. Além disso, não são nem

os mais pobres nem os desempregados os primeiros a migrar nestes países em

desenvolvimento. Em contraponto, são os indivíduos que possuem certo grau de

recursos, como os donos de pequenas propriedades rurais, artesãos da cidade e

trabalhadores com alguma qualificação, que, quase sempre, dão início e apoiam o

movimento de migrar. É fato que nem todos partem em direção a tal aventura, já que

a migração é um fenômeno bastante seletivo. Determinadas áreas da cidade e

comunidades agrícolas, com características específicas, se transformam em

ambientes que alimentam o movimento, ao passo que outras áreas com

semelhanças socioeconômicas se conservam intactas. (PORTES, 1999)

Assim, com base na questão microestrutural, a sociologia das migrações

ainda não criou um aparelho conceitual tão sofisticado e desenvolvido que consiga

esclarecer a singularidade na tendência à migração entre indivíduos e comunidades

no interior de cada país. Ao contrário, utilizou exaustivamente as possibilidades de

explicação que o conceito de rede social oferece. Assim sendo, a migração é

concebida como um processo que dá origem às redes ao passo que articula uma

teia cada vez mais carregada de relações sociais que comunicam os locais de

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origem e de destino. Tais redes, assim que estabelecidas, possibilitam que o

processo de migração seja autossustentado e impenetrável a mudanças de curto

prazo nos estímulos financeiros de cada país. As despesas e os riscos que se corre

ao mudar para o estrangeiro são minimizados por estas pontes sociais criadas entre

as fronteiras nacionais, que consentem também que mulheres e crianças se unam

aos seus companheiros e famílias emigrados. Em consequência das redes, os

indivíduos passam a se movimentar entre os países por variados motivos, desde

estímulos econômicos originais do ato de migrar, para se ligar aos membros da

família antes fragmentada, como também para cumprir as normas de

comportamento impostas como “corretas” para os jovens em idade profissional

(TILLY, 19905 apud FAZINO, 2010; PORTES, 19786 apud SOARES, 2002; MASSEY

et al, 19877 apud SOARES, 2002).

Outro ponto relevante para o entendimento do conceito de redes sociais,

apontado por Sayad (2000), diz respeito à questão relacionada ao “retorno”. Ele

afirma que os sistemas empíricos de migrações só podem ser representados por

modelos de redes sociais exatamente porque há uma condição do “retorno”. Para

tanto, essa condição torna essencial o fenômeno migratório, pois lhe atribui uma

razão fundamental e singular. Dessa forma, a ideia de deslocamento passa a ter

sentido somente se o ciclo que constitui a migração se fechar no retorno ao país de

origem, isto é, um princípio simbólico que registra a condição circular nas migrações

(SAYAD, 2000). O imigrante Aref El Auar revelou em seu depoimento o sentimento

que nutria pela sua terra natal e o quanto a ideia do retorno esteve presente ao

longo da sua vida no além solo. Porém, esteve duas vezes no Líbano ao longo da

sua vida, confirmando a forma singular com o qual os imigrantes libaneses lidam

com a questão do retorno ao seu país (APÊNDICE B):

Eu saí do Líbano com vinte e poucos anos, isso tem setenta anos, foi no dia primeiro de dezembro no Rio de Janeiro. Duas vezes fui pro Líbano depois que voltou, uma com Rachid quando ele tinha 10 anos. Rachid não queria voltar. Falava com sua tia do Líbano e ela dizia: o que você veio caçar aqui? Eu falava: pergunta seu pai, se o seu pai não tivesse me chamado eu não teria vindo, mas chamou pra vir tomar conta do que é dele e eu vim atender ao pedido dele, por isso é que eu vim. O Líbano mil vezes melhor que isso

5 TILLY, C. Transplanted networks. In: MCLAUGHLIN, Virginia (Ed.) Immigration reconsidered:history, sociology and politics. Nova York: Oxford University Press, 1990.6 PORTES, 1978.7 MASSEY, Douglas S. et al. Return to Aztlan: the social process of international migration from Western Mexico. Los Angeles: University of California Press, 1987. 335p.

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aqui. O Brasil é muito bom, mas milhões de vezes melhor o Líbano. Quando ele foi para lá não queria voltar mais, queria ficar lá. Você pode encher daqui até aqui de joia e ninguém olha, pode ter o que tiver, e ninguém pede um centavo na rua de esmola, Você vê cada paisagem, aqui não tem. Olha, só morro, morro, lá cada paisagem mais bonita que a outra, mais linda do que tudo (Aref El Auar, 94 anos8).

Em contraponto, segundo Fazito (2010), este princípio simbólico do retorno

também se cumpriu convencionalmente por meio das condições formais que

estruturam e constituem o sistema de migração. Do mesmo modo, na representação

formal do processo migratório, é possível analisar a forma como se dá a criação e

organização de fluxos e polos de origem e destino num círculo integrado, que opera

ainda por meio de modelos relacionais das redes sociais. Em compensação, o

retorno dado como fundamental também ativa e agiliza as migrações.

Assim, seguindo essa direção, o “retorno” no processo migratório

desempenha duas funções básicas. A primeira é que ele traz fundamentação

simbólica a todo e qualquer projeto migratório. E a segunda, ele realiza uma função

de estruturar a topologia, ou seja, as estruturas invariantes universais de um sistema

de migrações que na maioria das vezes se torna particular em meio a um contexto

específico (FAZITO, 2010).

O autor, portanto, defende o fato de os sistemas de migrações necessitarem

do “retorno”, tanto no nível dos discursos como no nível das práticas, para a

concretização de um sistema migratório que apresente estabilidade e expansividade.

Dessa forma, o retorno dos imigrantes tem o sentido estrutural elementar na

organização e no desenvolvimento dos fluxos migratórios. O destaque especial está

na participação daqueles que retornam, e então, passam a possuir a função de

intermediação na passagem do lugar de origem para o de destino (FAZITO, 2010).

No caso da imigração síria e libanesa, há uma singularidade em relação à

ideia do retorno. Estes imigrantes possuem uma relação muito íntima e nostálgica

com a terra natal, o que ocorre com, praticamente, quase todos os indivíduos que

migram. Porém, os sírios e libaneses, em muitos casos, retornam ao seu país

algumas vezes ao longo da sua vida. Passam alguns meses lá, visitam a família,

matam a saudade e depois voltam para a sociedade hospedeira. Esse fato é

também presente nos imigrantes residentes em Teófilo Otoni. Dos onze

entrevistados, sete são imigrantes e chegaram ao Brasil até o início da segunda da

8 Dados da entrevista. Pesquisa de Campo realizada em 03/04/2010.

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metade do século XX (APÊNDICE B). Todos eles retornaram pelo menos uma vez

ao Líbano, após terem imigrado. Os relatos abaixo indicam essa peculiaridade:

Vim para o Brasil de navio. A viagem durou trinta e um dias. Um sofrimento! Mas não repeti mais não. Depois disso, já fui duas vezes ao Líbano, mas não de navio, de avião. Voltei lá duas vezes, uma até com meu filho. Quando nós chegamos lá tinha mais de cem pessoas nos esperando. E na hora que nós saímos pra cá, a mesma coisa. (Salim Ali El Auar, 87 anos9)

Assim, as redes sociais começam a se desenvolver a partir do instante em

que o imigrante dá início à sua peregrinação para novos territórios. Em pouco tempo,

ele passa a compreender que estar fora do seu ambiente de origem requer o

desenvolvimento como também o cumprimento de políticas extremas de negociação

tanto com aqueles que permaneceram, quanto com os que já estão estabelecidos

em seu novo e ainda desconhecido solo (FAZITO, 2010).

No caso extremo da impossibilidade de viver o tão esperado retorno, resta

aos imigrantes ou vivê-lo de maneira praticamente inconsciente, ou em uma forma

alternativa a isso, mas socialmente estruturada, ou seja, por meio de uma espécie

de dissimulação. Assim sendo, o imigrante realiza um manejo simbólico de suas

experiências no dia a dia ao criar subjetivamente suas fantasias sobre o momento

em que, enfim, retornará às suas origens. Nesse sentido, este procura dar uma

explicação para sua realidade, que muitas vezes é extremamente desconfortável,

pois ele se encontra na sociedade praticamente fora do lugar e sem classificação

(FAZITO, 2010).

Em contraponto, segundo o autor, a migração, como uma experiência

singular, tem a capacidade de transformar o ciclo de vida de um só indivíduo ou de

um grupo, seus significados, suas relações, como também a inclusão do imigrante

na estrutura social, tanto da sociedade de origem como na de destino. Estas

relações são então significativamente modificadas, o que traz complexidade a todo o

sistema. Pode ser por tal motivo que as redes sociais da migração são concebidas

como metáforas adequadas à descrição do fenômeno migratório, pois são capazes

de conectar pessoas, ações, objetos e categorias em um só regime demográfico

(TILLY, 199010 apud FAZITO, 2010). No entanto, as redes sociais têm a capacidade

de fundar as bases dos projetos de migração, já que, muito mais que metáforas, elas 9 Dados da entrevista. Pesquisa de Campo realizada em 10/09/10.10 TILLY, C. Transplanted networks. In: MCLAUGHLIN, Virginia (Ed.) Immigration reconsidered:history, sociology and politics. Nova York: Oxford University Press, 1990.

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desempenham um constrangimento estrutural por meio da distribuição e disposição

no novo território das relações sociais entre os indivíduos que formam a coletividade

possível de ser mensurado (SOARES, 2002; FAZITO, 2005a11 apud FAZITO, 2010).

Em outro ponto, faz-se necessário analisar o papel da família quanto ao tema

do retorno no fenômeno migratório. É possível afirmar que geralmente a questão da

impossibilidade do retorno não se encontra somente vinculada a uma experiência de

“sucesso” ou de “fracasso” econômico quanto ao trabalho. Em relação a tal ponto,

entre as estratégias utilizadas, as mais significativas recorrências ou padrões estão

ligadas ao papel das redes familiares nos deslocamentos, na justificativa do retorno,

como na própria legitimação da migração. Por conseguinte, as mudanças estruturais

na reprodução da organização familiar em todo o processo de migração e do retorno

se transformam no fator fundamental da determinação dos fluxos migratórios.

(BOYD, 198912 apud FAZITO, 2010; TILLY, 199013 apud FAZITO, 2010)

O presente autor também constatou que tanto as famílias quanto os

indivíduos retornados exercem uma função estrutural parecida, quando não

totalmente compartilhadas e interdependentes, em relação à manutenção, como

também na sustentação das redes de apoio social dos migrantes. Essa função

aparece também no processo de intermediação da travessia entre o lugar de origem

e o destino (FAZITO, 2010).

Uma questão bastante interessante, revelada pelo olhar antropológico, se

encontra na ideia da existência de certo ritual de passagem que compõe a

experiência dos migrantes. Esse ritual ocorreria em determinadas conjunturas, em

que as migrações tomam a dimensão de estratégias sociais integradas e

multiplicadoras na sociedade local ou mesmo em um determinado país. Assim,

ocorre o desenvolvimento do que os teóricos vêm nomeando de “cultura migratória”.

Tal conceito é referente aos deslocamentos que se inserem, dessa forma, em uma

matriz cultural que tanto os legitima, como lhes atribui autonomia, ao passo que os

projetos migratórios não necessitam totalmente de um resultado determinado como

o “sucesso econômico” tradicional (FAZITO, 2010). Esse é o caso do Líbano, um 11 FAZITO, Dimitri. Reflexões sobre os sistemas de migração internacional: proposta para uma análise estrutural dos mecanismos intermediários. 2005a. Tese (Doutorado em Demografia) - Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional, Universidade Federal de Minas Gerias, Belo Horizonte.12 BOYD, Monica. Family and personal networks in international migration: recent developments and new agendas. International Migration Review, [s.l.], v. 23, n. 3, p. 638-670, 1989.13 TILLY, C. Transplanted networks. In: MCLAUGHLIN, Virginia (Ed.) Immigration reconsidered:history, sociology and politics. Nova York: Oxford University Press, 1990.

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país que tem entranhado em sua cultura a tradição de ver seu povo emigrar por

vários motivos, tais como: escassez de vagas de trabalho, instabilidade política e

econômica e área geográfica extremamente pequena. É também, por esse motivo,

que parte significativa dos que dali migram, sentem-se impossibilitados de retornar

completamente para a terra natal.

Assim, o imigrante Salim Ali El Auar relata que:

O libanês gosta muito de migrar. Lá quando tem cinco homens numa casa ou fica um ou fica dois no máximo. Porque não vai todo mundo embora. Não vem só por falta de trabalho. Por muitos motivos. (Salim Ali El Auar, 87 anos14)

Desse modo, as migrações passam a ser legitimadas socialmente por meio

de um código de normas e valores particulares de cada sociedade, e os

deslocamentos ganham a conotação de um processo que busca o reconhecimento

social e o pertencimento à comunidade. Segundo Fazito (2010), em geral, é possível

afirmar que um sistema de migração é determinado pela junção e sobreposição de

distintas “redes migratórias”, em especial pelas “redes de fluxos” e “redes sociais”.

Assim, ao passo que a rede de fluxos se refere à estrutura topológica bruta e

abstrata de um sistema migratório, a rede social corresponde à topologia sensível e

correlativa à conjuntura histórica e social na qual se encontra.

Enfim, o autor afirma que:

em se tratando de um sistema de migrações, embora a rede de fluxos e a rede social se configurem a partir de pessoas (nós) e suas relações (laços), deve-se pensar em dimensões analíticas diversas, mas complementares. A rede de fluxos refere-se ao agregado estatístico da população de indivíduos que se deslocam entre duas regiões distintas (é o simples somatório dos deslocamentos que representam os vínculos entre duas regiões tomadas como nós da rede). A rede social refere-se não ao agregado, mas à estrutura social composta das relações sociais cotidianas entre diversas pessoas, migrantes e não migrantes, de uma dada comunidade (FAZITO, 2010, p. 97).

Uma outra contribuição para o entendimento do processo migratório e suas

redes foi oferecida por Carleial (2004). Esta autora relata que tal processo de forma

geral é marcado pelas relações de interesse entre os indivíduos que chegam e os

demais que já residem no novo território. Ela se refere às redes de um tipo

específico de sociabilidade, pautada na reciprocidade, que possibilitam a

14 Dados da entrevista. Pesquisa de Campo realizada em 10/09/10.

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ressignificação das ações sociais dos migrantes, e ainda reterritorializam os grupos

sociais, por meio de parcerias, tanto na passagem, quanto na fixação e manutenção

do imigrante, ao auxiliá-lo em sua integração, adaptação ou redefinindo sua situação

no lugar que escolheu como destino.

Várias dessas relações são claramente políticas, outras mais comerciais, são

raras as estabelecidas pelo governo, mas muitas são de natureza familiar, como

também religiosas. É difícil reunir numa só rede todas essas origens e

características, mas quase sempre é composta por mais de uma delas ao mesmo

tempo. Todavia, o que se generaliza é o fato de todas as redes apresentarem uma

natureza alternativa e complementar à economia formal do novo território, o que

constitui formas produtivas típicas da migração (CARLEIAL, 2004).

Assim, como afirma Fazito (2010), as redes sociais no processo migratório,

quando inseridas nas relações econômicas e sociais, se transformam em estratégias

de sobrevivência e de sustentabilidade dos migrantes no local de destino. Elas

auxiliam na adaptação e, ao mesmo tempo, subordinam o estrangeiro às condições

de vida do lugar.

Em contraponto à ideia de benefício quase gratuito e da comunhão

espontânea que as redes sociais podem transmitir, sua análise mais apurada revela

que também existem relações de dominação dentro delas. Esta estrutura de

dominação não seria, entretanto, violenta, nem muito menos forçada, ficando mais

localizada na divisão social do trabalho. A dominação surge nas relações em que é

formado um grupo que possui mais poder e que então dirige aqueles que se

submetem ao sistema produtivo e à autoridade. Há uma forma de submissão que se

baseia na hierarquia estabelecida por um determinado grupo, quer seja formado por

lideranças religiosas, pelos proprietários dos negócios e pelos representantes

municipais, que, então, orienta e coordena os outros tantos participantes da rede.

Constitui-se com isso uma espécie de intelectual orgânico das conexões da rede

social como define Carleial (2004), o que fornece homogeneidade e consciência à

rede como tal. Como resultado disso, é criado um agrupamento identificado (como,

por exemplo, uma colônia libanesa), ao passo que a rede é idealizada e também

funciona com forma de disciplina e controle sutil dos migrantes (CARLEIAL, 2004).

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Do mesmo modo, Tilly (1990)15 citado por Soares (2002), defende que, ao

contrário da forte ênfase que tem sido dada à relação de solidariedade nas redes

sociais, quando se levam em conta os fluxos migratórios, é necessário expor o fato

de que as redes também guardam discórdia e conflito. Isso ocorre em virtude de os

membros de grupos imigrantes quase sempre explorarem os compatriotas, por

serem impedidos a agir assim com os nativos. Somado à questão, está o fato de que

cada inclusão também constitui uma exclusão, o que pode ter como consequência

uma notável espacialização do trabalho pela etnia.

Assim, Santos (2005, p. 56) afirma que:

ao deslocar-se para outro país, o migrante defronta-se com outra cultura, com uma língua desconhecida, e seus referenciais simbólicos (gestados no seu lugar de origem) apresentam-se limitados para interpretar regras, hábitos e comportamentos de uma sociedade diferente da sua. As redes se tornam portadoras de uma identidade construída entre dois lugares, e é pertencendo à rede que o migrante encontra um espaço criativo, no qual essa identidade pode ser compartilhada entre os demais membros.(SANTOS, 2005, p. 56)

Para tanto, é relevante, segundo Petrus (2005), na análise das redes sociais,

afirmar que os vínculos que são constituídos no ambiente de imigração são

seletivamente incorporados, reforçados e ou redefinidos na presente realidade da

imigração, ao desempenhar diferentes papéis nas áreas referentes à moradia e ao

trabalho, como em outras estratégias de sobrevivência.

Já Soares (2004, p. 4), em sua importante pesquisa sobre redes sociais,

redes migratórias e migração nacional e internacional, defende que as populações

humanas se encontram conectadas por extensas e complexas redes sociais, que se

revelam de muitas maneiras. Uma dessas formas está relacionada ao fato de “as

redes funcionarem como circuitos de tráfego no ambiente social como trajetórias

relacionais possíveis que ligam certos atores/nós e fornecem, a um só tempo,

oportunidades e constrangimentos”.

Para ele, o empenho em teorizar sobre o fenômeno da migração

internacional, ultimamente, tem se voltado sobre os seguintes interesses: 1)

encontrar os motivos e razões dos fluxos populacionais dessa natureza; 2) as

15 TILLY, C. Transplanted networks. In: MCLAUGHLIN, Virginia (Ed.) Immigration reconsidered:history, sociology and politics. Nova York: Oxford University Press, 1990.

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categorias que a esses fluxos promovem estabilidade e continuidade; e 3) os fatores

que envolvem a adaptação dos migrantes à sociedade de destino (SOARES, 2002).

Entretanto, o presente trabalho não tem como objetivo realizar uma análise

profunda das redes sociais na imigração, pois isso demandaria uma metodologia

específica que exigiria a utilização de uma minuciosa reprodução da configuração

formada entre as relações sociais desses imigrantes. Ele visa a realizar uma análise

teórica sobre o que vem a ser redes sociais, qual a sua relevância no processo

migratório e seu papel, especificamente, no fenômeno da imigração síria e libanesa

para Teófilo Otoni.

Assim, segundo Soares (2002), atualmente o mais completo arcabouço

conceitual sobre os motivos que levam as pessoas a migrar entre os países, é

conhecido como teoria da atração e expulsão, que consiste na junção de fatores

econômicos, sociais e políticos que obrigariam os indivíduos a sair do seu país de

origem. Diversas interpretações teóricas, de neoclássicos a estruturalistas, difundem

esse arcabouço, ao relacionar como causadores dos fluxos migratórios: o alto e

acelerado crescimento demográfico que ocorre nos países em desenvolvimento; a

pobreza, como escassez econômica estrutural; o desequilíbrio no valor da renda per

capita; a estagnação da economia do país; e as transgressões aos direitos

humanos, fruto de embates políticos e sociais, que acabam provocando uma

desestabilização na sociedade, acarretando a necessitada de migrar (NACIONES

UNIDAS, 199716 apud SOARES, 2002).

Em contraponto, o autor afirma que, se as explicações teóricas sobre os

motivos da migração internacional forem checadas com base no que a experiência

tem apontado sobre os deslocamentos humanos desse caráter, é possível aceitar a

indicação de que as pessoas são impulsionadas a migrar mais

na proximidade das relações sociais do que na proximidade física [...] segue as rotas que foram seguidas por parentes e amigos antes dele. Vai com conhecidos, ou à procura de conhecidos, que sabe estar em tal ou qual lugar. Os lugares que ele conhece são aqueles que fazem parte da experiência passada da sua comunidade e são relações pessoais que servem de ponto de apoio à movimentação espacial. A não ser excepcionalmente, o imigrante não se aventura no desconhecido, mas se orienta por notícias, por informações, por relações (DURHAM, 1984, p. 13817 apud SOARES, 2002).

16 NACIONES UNIDAS. Migración internacional y desarrollo. Nueva York: Sección de Reproducción de las Naciones Unidas, 1997.17 DURHAM, Eunice R. A caminho da cidade. 3.ed. São Paulo: Perspectiva, 1984. 245p.

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Tal afirmação pode ser confirmada no depoimento do imigrante libanês K.

Kassim Elawar, morador de Teófilo Otoni, que ao ser questionado sobre os motivos

que o levaram a escolher a cidade em questão, respondeu que:

Desde que eu nasci eu escuto falar de Teófilo Otoni, Poté, Montes Claros, porque os primeiro parentes nossos vieram pra essa região. Sempre tinha uma correspondência e algumas fotos. A minha tia que me criou, irmã da minha mãe, ela tinha casado e veio pra cá. Eu cheguei a Teófilo Otoni e tenho muito amor por essa terra aqui, por mais que a gente fala da nossa raça, tem que valorizar a raça que nos acolheu. (K. Kassim Elawar, 73 anos18)

Com base nessas evidências é vital para uma rigorosa e produtiva análise

dos processos migratórios utilizar teoricamente, como na presente pesquisa, a linha

de investigação que leva em conta a análise das redes sociais, sem, no entanto,

excluir as outras contribuições. Assim, com base nas proposições de Tilly (1990)19

citado por Soares (2002), as unidades essenciais da migração não seriam nem

pessoas nem suas famílias, mas, sim, grupos de indivíduos unidos por meio das

relações de conhecimento, de amizade, familiares e de trabalho. Entretanto, sem

reduzir as características e intenções particulares, a migração poderia ser

compreendida como uma estrutura comunitária que se desloca. Dessa forma, os

movimentos levam para outros lugares os mais importantes segmentos existentes

das redes sociais, ou seja, as “redes migram”.

Sendo assim, nas redes sociais percorrem preciosas informações que

contribuem para tomar a importante decisão de migrar. Estas informações

desempenham um papel fundamental no deslocamento de possíveis migrantes,

como também na sua inclusão na dinâmica econômica do lugar de destino, ou seja,

colaboram para diminuir os riscos e ameaças associadas à migração (SOARES,

2002). No depoimento do filho de imigrante Magid M. Ali Modad, a função das redes

sociais tanto na decisão de migrar, quando no estabelecimento em novo solo, fica

evidenciada.

Papai por exemplo chegou durante o início do século XX. Chegou ao Brasil em 1913. Então foi no início do século. Seu Abel foi o pioneiro de todos. A

18 Dados da entrevista. Pesquisa de Campo realizada em 20/07/2009.19 TILLY, C. Transplanted networks. In: MCLAUGHLIN, Virginia (Ed.) Immigration reconsidered:history, sociology and politics. Nova York: Oxford University Press, 1990.

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raiz está em seu Abel que foi o pioneiro de todos e praticamente orientou, chamou todo mundo, orientou todo mundo pra cá. O senhor Abel foi o pioneiro, e deve ter chegado alguns anos antes de papai. Papai chegou em 1913 e acredito que os árabes daqui chegaram quase todos nessa época, porque quando se reuniam lá em casa estavam todos com praticamente a mesma idade. Aqui na região tinha os Abu Kamel, os Ali Ganem, Ali Modad, os Alchaar, os Zandim, Rafael Zandim é o pai deles, os Salmam Siridim, que é Rachid, Safhia, ainda tem mais... os Lauar, e muitos outros. Eles se ajudavam, acolhiam quem chegava. (Magid M. Ali Modad, 66 anos, filho de imigrante20).

Dessa forma, a análise realizada da dinâmica migratória, com base no ponto

de vista oferecido pelas redes sociais, coloca em evidência o fato de que os

migrantes vivenciam não só uma série de transformações particulares rumo ao

encontro de uma cultura dominante, mas a possibilidade que têm de negociar novas

relações e categorias no interior por meio das redes. Com isso, as trajetórias se

transformam e tendem a se alterar bastante, de corrente para corrente migratória, já

que a mudança se manifesta numa dimensão coletiva e não somente pessoal

(SOARES, 2002).

Por outro lado, a rede migratória é formada pela teoria de relações sociais

interligadas, que se sustenta através de um conjunto de desejos e expectativas

recíprocas e de certos comportamentos que amparam o movimento de indivíduos,

bens e informações, conectam migrantes e não migrantes e que atrelam a sociedade

de origem a determinados lugares nas comunidades de destino. A rede migratória

tem a tendência de se transformar em autos-suficiente com o passar do tempo, pelo

capital social que torna mais fácil para os candidatos a migrantes estabelecer

contato com familiares, amigos ou mesmo conterrâneos. Esta rede apresenta aos

migrantes tanto a facilidade para conseguir emprego, quanto, hospedagem e auxílio

financeiro no seu destino final. Ao passo que as conexões entre as pessoas se

estendem e se tornam mais sofisticadas, a oferta do capital social fica ainda mais

facilitada ao migrante, o que intensifica a espera dos retornos líquidos nas

comunidades de origem e ainda diminui paulatinamente o capital gasto e os custos

físicos da migração (MASSEY et al, 198721 apud SOARES, 2002).

20 Dados da entrevista. Pesquisa de Campo realizada em 15/07/2009.21 MASSEY, Douglas S. et al. Return to Aztlan: the social process of international migration from Western Mexico. Los Angeles: University of California Press, 1987. 335p.

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Já Abad (2001)22 citado por Soares (2002), apoia o fato de que as redes de

parentesco, mais do que possibilidade de mediação entre os integrantes da família

nuclear e as instituições do Estado também desempenham outras funções em

relação aos processos migratórios, ou seja: difusão de informações, sendo que a

maior parte daqueles que migram têm conhecimento do seu destino e, de certo

ponto, o que acharão pela frente; efeito multiplicador, pois cada novo migrante dá

origem a ampla reserva de aspirantes a migrantes; manutenção das relações na

origem e no destino antes e após a migração, através das relações familiares, de

envio de dinheiro, vínculos de solidariedade e ainda de migrações de retorno; e

mudança do padrão migratório, já que as redes apresentam a habilidade de

promover a manutenção da migração, independentemente dos fatores que a

motivaram.

Dessa forma, segundo Bauer, Epstein e Gang (200023) citado por Soares

(2002), as redes migratórias influenciam nas escolhas dos lugares que os migrantes

escolhem como destino de três maneiras. A primeira está no fato de que elas enviam

notícias sobre o mercado de trabalho das regiões de interesse. A segunda maneira

diz respeito ao aumento das vantagens dos migrantes em relação ao volume de

bens étnicos oferecidos no local de destino. E a terceira é que os novos migrantes

desejam ser auxiliados por migrantes já estabelecidos até que se estabeleçam e se

instalem na nova sociedade.

Soares (2002) defende então que não é mais possível questionar a relevância

do papel das redes sociais no entendimento do fenômeno das migrações

internacionais. Todavia, é importante ir mais a fundo nesse entendimento no sentido

de apontar a maneira como se constitui o alicerce inicial do ponto de vista teórico

desses conceitos em decorrência das imprecisões existentes na literatura sobre os

temas das redes sociais, pessoais e migratórias.

Portanto, é admissível aceitar que:

1) redes sociais consistem no conjunto de pessoas, organizações ou instituições sociais que estão conectadas por algum tipo de relação. Uma rede social, em virtude do processo em torno do qual ela se organiza, pode

22 ABAD, Garcia Rocio. Las redes migratórias: una propuesta metodológica para descubrirlas y medir su importancia en los procesos migratorios. Trabalho apresentado no VI Congreso de la ADEH, Portugal, 2001. Disponível em <http://www.ucm.es/info/adeh/VI_Congreso/congreso.htm.> Acesso em: 3 jan. 2002.23 BAUER, Thomas, EPSTEIN, Gil, GANG, Ira N. What are migration networks? Bonn, 2000. Disponível em: <http://www.iza.org>. Acesso em: 12 dez. 2001.

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abrigar várias redes sociais; 2) rede pessoal representa, então, um tipo de rede social que se funda em relações sociais de amizade, parentesco etc; 3) rede migratória não se confunde com redes pessoais, já que estas redes precedem a migração e são adaptadas a um fim específico: a ação de migrar; 4) redes migratórias, cujas singularidades dependem da natureza dos contextos sociais que elas articulam, são também um tipo específico de rede social que agrega redes sociais existentes e enseja a criação de outras, como no caso da migração internacional...; consiste, portanto, em rede de redes sociais; 5) rede migratória implica origem e destino e a compreensão do retorno como elemento constitutivo da condição do migrante, o que põe em xeque alguns padrões de análise: assimilação, esforço individual – no limite, a assimilação absoluta representa a negação da própria condição de migrante. É, portanto, a noção de retorno que concede status ontológico à dinâmica migratória; é a nostalgia/saudade da origem que confere a uma pessoa sua condição de migrante (SOARES, 2002, p.24).

Com base nessa diferenciação teórica das distintas redes, é necessário

compreender que as relações entre os indivíduos que compõem uma rede

apresentam tanto forma, quanto conteúdo. Este último é oferecido pela natureza dos

laços, como relações de parentesco, poder, amizade, afetivas, troca de bens

simbólicos ou materiais, entre outras. Já a forma envolve dois principais aspectos:

um está na intensidade ou na força das relações entre dois atores; e o outro na

frequência e no grau de reciprocidade com que tal ligação se revela. É possível, em

termos do conceito, que dois desses laços, mesmo que apresentem conteúdos

diferentes, apresentem formas iguais (KNOKE; KUKLINSKI, 198224 apud SOARES,

2002).

O presente autor expõem ainda que a análise de redes leva em conta que as

relações estabelecidas entre os atores sociais são como tijolos da edificação da

estrutura social e que o ambiente social é a expressão dos padrões ou regularidades

existentes nessas relações. Portanto, essa maneira de analisar as redes estaria

direcionada para a regularidade no padrão das relações entre os lugares que os

indivíduos ocupam na estrutura social e para os fluxos relacionais que produzem e

indicam a posição estrutural de cada um dos migrantes no interior da rede

(SOARES, 2002).

Soares (2002) afirma que as redes sociais são de extrema relevância para a

compreensão do fenômeno das migrações, sendo instituído, assim, como um

princípio heurístico. No entanto, os discursos teóricos não deixam de ser uma

representação metafórica de redes sociais. Existe uma determinada sinonímia entre

o que se concebe como sendo rede social e rede pessoal. Ou seja, a rede social é 24 KNOKE, David, KUKLINSKI, James. Network analysis. Beverly Hills: Sage, 1982. 96p.

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entendida como uma espécie de manifestação de redes pessoais cotidianas que são

baseadas em relações sociais familiares e fraternas. Além do mais, a circulação

desses conceitos, tanto de rede pessoal quanto de rede migratória, ocorre,

diretamente, nesses mesmos discursos. Tal coincidência de definições se

desenvolve à mercê da repetição na forma como as relações de parentesco e de

amizade são assinaladas. Essas relações são tratadas como sendo tanto as causas

ou o que intensificam os fluxos migratórios (já que os indivíduos migram em razão do

suporte oferecido por redes pessoais), quanto como responsáveis pela conservação

dos vínculos que conectam o lugar de origem e de destino, o que se refere à

orientação que os fluxos migratórios adquirem, à movimentação de recursos

materiais e simbólicos etc. Por fim, o autor constata que, apesar de todos os

esforços teóricos, ainda predomina uma determinada indefinição em relação aos

limites conceituais de rede social, rede pessoal e rede migratória, pois há, em seu

ponto de vista, uma certa “promiscuidade” no emprego desses importantes

conceitos.

As redes sociais são elementos vitais para o fenômeno migratório. A seguir,

serão analisadas as relações de solidariedade e a formação das redes sociais no

processo migratório sírio e libanês em direção à cidade de Teófilo Otoni.

3.2 Redes sociais na imigração síria e libanesa: o caso de Teófilo Otoni

Eu tinha dois tios aqui, irmãos da minha mãe e tinha um cunhado, irmão da minha senhora. Viemos para ficar um ano, para conhecer. Viemos eu e minha senhora. Eu trouxe ela junto para conhecer, para passear. Um ano e voltar. Tenho sessenta anos de Brasil. E de Teófilo Otoni.

Salim Ali El Auar, 87 anos25.

Como teve início a imigração síria e libanesa para a região de Teófilo Otoni?

Como se estabeleceram os primeiros elos da rede social nesse processo? Quais

fatores a alimentavam? Qual o papel e a relevância das redes sociais na

manutenção da imigração síria e libanesa para a região ao longo do século XX? Tais

perguntas fazem parte das questões que forneceram direção à presente pesquisa. 25 Dados da entrevista. Pesquisa de Campo realizada em 10/09/2010.

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As entrevistas e o material teórico analisado possibilitam a montagem de algumas

peças desse quebra-cabeça.

Assim, com base na obra de Khoury (2002), estudioso da histórica de Teófilo

Otoni e filho de imigrante libanês, foi possível conhecer a história do primeiro

imigrante que chegou á cidade, vindo do Líbano. Principal elo da rede social, Abas

Hussein Ghanem, atraído pelas notícias da América do Sul, desembarcara no Rio de

Janeiro no ano de 1884, vindo de sua cidade de origem: Bzebdin. Antes de se fixar

em Teófilo Otoni, aventurou-se nas regiões de Cachoeira do Itapemirim e São

Mateus, no Espírito Santo. Com a intenção de conhecer a “Nova Filadélfia”, dois

anos depois, em 1886, Abas chegou ao porto de Caravelas e prosseguiu pela extinta

ferrovia Bahia e Minas (por onde chegaram muitos imigrantes durante a primeira

metade do século XX), até a cidade de Bias Fortes. Após dois dias, em seis de

dezembro de 1886, Abas chegou, enfim, a Teófilo Otoni.

Khoury (2002) afirma ainda que, um tempo depois, ele abrasileirou o seu

nome para Abel Jacinto Ganem, e abriu a “Casa Abel”, em 1887. Este

empreendimento, que começou modesto, prosperou rapidamente, contribuindo muito

para o desenvolvimento da cidade, para o acolhimento e suporte de muitos

imigrantes. A Casa Abel com o lema de “manter o melhor e o mais variado estoque à

disposição dos consumidores” existiu durante 101 anos, até 31/12/1998, e ao longo

desse tempo foi um ícone do sucesso da imigração síria e libanesa para a cidade.

Abel enviou muitas notícias sobre o Brasil e a região, sendo responsável pela

construção de uma sólida rede social ao estabelecer fortes relações de

solidariedade e acolhimento para os que ali chegavam.

Ele se casou com uma brasileira em 1903, com a qual teve 11 filhos. Na

comunidade, ele foi responsável pioneiro e admirado realizador. Foi então o primeiro

libanês, do qual se tem registro, a pisar o solo de Teófilo Otoni, a naturalizar-se

brasileiro, tornando-se um comerciante de relevo, inclusive de gemas preciosas. Sua

religião era a drusa, o que explica o número significativo de imigrantes pertencentes

a essa religião/seita na cidade e região. Faleceu aos 106 anos, em 1978 (KHOURY,

2002).

O nome Abel Ganem aparece em praticamente todas as entrevistas. Ele é

citado ora como o mais velho libanês na cidade, ora como o responsável pela vinda

de muitos libaneses para a região. Com o seu comércio e suas relações, ajudou

muitos patrícios a se estabelecer, tanto fornecendo mercadorias para o início da vida

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como mascates quanto abrigando e orientado muitos daqueles que adentravam o

solo mineiro. Peça fundamental da rede social da imigração síria e libanesa para a

região, ele teve uma função indiscutível na história de Teófilo Otoni. Alguns dos

relatos que se seguem, expressam e confirmam essa questão:

Quando eu cheguei aqui eu comprei uma loja, que minha esposa sempre me visitava pra fazer compras, e existia um senhor chamado Abel Ganem, o finado Abel Ganem que passava quase todos os dias por lá. Já estava com quase 83 anos e parava lá pra tomar um copo de café, um copo d`água e sentar um pouquinho. Aí, chegou um amigo meu que tinha ido para Brasília, que naquela época era o auge, e me convidou para ir trabalhar com ele. Um dia ele passou, o finado Abel, e eu falei com ele que tinha essa pretensão de ir para Brasília e ele falou comigo: que vergonha! E eu falei: mas por quê? Ele falou comigo: o homem faz a terra, a terra não faz o homem. Você não é cigano, chegou aqui tem que provar que você é homem. (K. Kassim Elawar, 73 anos26)

O Abel Ganem, foi o primeiro imigrante a chegar aqui, era de uma cidade chamada Bzebdin, colada com Karnaei. Uma fica em baixo e a outra em cima colada mesmo, você consegue ir a pé. Assim, o que aconteceu é que o Abel Ganem se comunicava com seus parentes lá em Bzebdin e a notícia foi se alastrando, porque as cidades eram muito próximas principalmente Karnaei e Bzebdin. Por exemplo, o seu avô e o meu pai eram de Karnaei, e vieram para cá logo no início do século, meu pai chegou em 1914. (Chamel Lauar, 74 anos27)

Deste modo, principalmente nesse último relato, alguns pontos singulares da

imigração síria e libanesa para a região de Teófilo Otoni são explicados. O imigrante

Nagib Nasser relata também que a concentração maior de drusos no Líbano fica

localizada na região das montanhas. As cidades de Bzebdin e Karnai são próximas

umas das outras e ficam nessa região. Abel desenvolveu uma rede social a partir

das notícias enviadas por cartas para seus familiares e conhecidos, o que fez com

que a primeira geração de imigrantes fosse praticamente toda drusa e dessa região.

Nesse sentido, Truzzi (1997) afirma que entre os sírios e libaneses o

sentimento nacional, apesar de nostálgico, como evidenciado em alguns relatos dos

entrevistados, não se mantinha extremamente forte, pois eles eram obrigados a

tolerar, se escolhessem permanecer na região, o sofrimento causado por muitas

dominações. Assim, a grande identidade religiosa e regional era sustentada pelos

laços de família formada pela união de três gerações, os avós, os pais e os filhos, o

26 Dados da entrevista. Pesquisa de Campo realizada em 20/07/2009.27 Dados da entrevista. Pesquisa de Campo realizada em 20/09/2010.

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que constituía uma rede de compromisso e solidariedade com um número

expressivo de indivíduos que possuíam o mesmo sangue.

A opção por buscar melhores condições de trabalho e vida em outras terras

só veio aumentar o sentimento de responsabilidade para com os familiares, já que

os que partiam depositavam nos parentes que ficavam uma carga emotiva bastante

forte, o que os tornava uma forma de apoio e ligação com a terra de origem. Isso os

ajudava a dar sentido e suportar as dificuldades no processo de adaptação e

construção de uma nova vida em solo estranho. Tal cumplicidade possibilita

caracterizar os imigrantes sírios e libaneses como pessoas comprometidas por laços

de parentesco (TRUZZI, 1997). Isso reforça a construção da rede social, pois ao se

sentirem minimamente estabelecidos, eles buscavam alguns dos seus familiares,

convidavam amigos e conterrâneos para conhecer ou se estabelecer no novo

território. Também voltavam para matar a saudade, ou até mesmo, se casar. O

relato da imigrante Munira Salha El Auar, que veio para o Brasil na companhia do

seu marido, expressa essa relação:

Eu recebi meu sobrinho, que veio do Líbano. E um outro amigo da família, mas ele voltou pro Líbano. Era casado, tinha a mulher de lá, voltou. Ia buscar a mulher. E recebi, também, o irmão do meu marido. Eu já tinha dois filhos, os três do meu marido e tinha ainda o irmão do meu marido morando lá em casa. Eu conheci ele quando me casei no Líbano. Chegou ele, a mulher e dois filhos. Eram dez meses morando lá em casa. Até o meu marido ajudá-lo a comprar a casa pra morar, loja para trabalhar. A mulher dele falava: Munira, nunca vi pessoa igual a você. Eu morei dez meses em sua casa e nunca vi você de cara fechada, mal humorada. Já meu marido ajudava muito a família dele e eu nunca ajudei minha família. Mas também nunca falei nada. Nunca reclamei. (Munira El Auar, 80 anos28)

Os imigrantes que se encontravam na região, formando os elos da rede, na

maioria das vezes acolhiam os que chegavam com festa e atenção. Ajudavam uns

aos outros a conhecer os novos costumes, a lidar com as dificuldades do lugar, a

aprender o português, a encontrar moradia e trabalho. Entre as mulheres imigrantes,

desenvolvia-se uma relação de solidariedade, elas se visitavam e, entre outras

coisas, conversavam sobre o Líbano, sobre aqueles que ficaram lá e sobre as

novidades e diferenças da nova cidade, entre outras coisas. Assim, Munira El Aouar

conta que:

28 Dados da entrevista. Pesquisa de Campo realizada em 05/11/2010.

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Vim de ônibus, do Rio para cá. Essa estrada toda era terra. Daqui pra cá era terra. Poeira, poeira. Nunca viajei tanto, o país é muito grande. Nunca chegava. Aí quando cheguei, tinha um monte de libaneses me esperando. Na época tinha muitos libaneses aqui. Muitos. Nós dormimos na casa de um deles e a casa encheu de libaneses. No outro dia, nós fomos para Poté. Meu marido fretou um táxi. Mas a estrada de Poté era pior ainda. Então, cheguei lá, o mercado era na praça, aberto. Sabe, gente descalça. Os homens abraçavam meu marido, eles gostavam muito dele. Não tinha nem onde a gente ficar. Não tinha hotel. Ficamos na casa de um patrício, que conhecia meu marido, era amigo. Ficamos três, quatro dias até conseguirmos uma casa. Nunca reclamei, nunca falei nada. Com um ano meu marido fez a casa. (Munira El Auar, 80 anos29)

Outro ponto relevante para a compreensão do papel das redes sociais na

imigração para a região está no trabalho. Fígole e Vilela (2004) afirmam que os

imigrantes pioneiros, ao chegarem ao Brasil, se depararam com poucas

possibilidades de trabalho. Num primeiro momento, eles se defrontaram com uma

estrutura agrícola fundamentada em grandes fazendas, com lavouras enormes. Por

um lado, isso tornava impossível o acesso a terra, por outro, era para eles

extremamente diferente, pois em sua cultura estavam acostumados com a

agricultura familiar de pequeno porte, praticamente para subsistência. Num segundo

ponto, como a grande parte dos imigrantes não dispunha de um volume significativo

de dinheiro, transformar-se em donos de terras logo em sua chegada, era

praticamente impossível. E um terceiro ponto se referia ao fato de que, para se

tornarem trabalhadores nas grandes fazendas, necessitavam entrar em uma disputa

com os imigrantes europeus, já escolhidos pelos grandes fazendeiros para substituir

a mão de obra escrava.

Contudo, alguns sírios e libaneses se dispuseram a tentar a vida como

colonos, mas sem sucesso. Estes buscaram outras funções em cidades próximas,

motivados pelas dificuldades encontradas para melhorar suas condições de vida em

pouco tempo. Assim, as notícias de insucesso que esses imigrantes tiveram como

colonos ajudaram a desaconselhar os outros tantos que chegavam a trabalhar na

agricultura (FÍGOLE; VILELA, 2004).

Sem encontrar então muitas outras possibilidades, e tendo como companhia o

desejo de retornar ao país de origem rapidamente, os que primeiro chegaram ao

Brasil foram trabalhar como “mascates”, ou seja, comerciantes ambulantes que

cumpriram um papel econômico fundamental, como distribuidores de mercadorias,

no complicado sistema da cadeia produtiva nacional (KNOWLTON,1961; EL KADI,

29 Dados da entrevista. Pesquisa de Campo realizada em 05/11/1/2010.

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1997; FÍGOLE; VILELA, 2004). No relato de Chamel Lauar, filho de imigrantes, o

papel da rede social e o início da vida de trabalho dos imigrantes, principalmente da

primeira geração, como mascates, são evidenciados. Em Teófilo Otoni e Poté,

formou-se uma espécie de cadeia produtiva. Os primeiros a chegar, mascateavam.

Com o reembolso financeiro do trabalho, fixavam-se num ponto, abriam uma loja e

ajudavam os outros que adentravam a região a começar a mascatear com o

fornecimento de mercadorias e orientação. Assim,

Meu pai veio em 1914 com o passaporte otomano. O passaporte foi tirado em 1913. Ele veio para o Brasil trabalhar. Ele hipotecou a casa do pai dele, lá no Líbano e veio com o dinheiro para cá. Deu azar que um ano depois quando quitou a hipoteca o pai dele, meu avô, já não estava mais vivo, morreu sem ver o pagamento da hipoteca. Então, chegou ao Rio de Janeiro e pegou um navio, um vapor direto para Caravelas. Chegou a Caravelas com quarenta centavos no bolso. [...] Quando ele chegou, seu tio já tinha loja em Poté e forneceu muitas mercadorias para ele mascatear e para muitos outros que chegavam e precisavam mascatear. [...] Então, meu pai foi mascatear e se deu muito bem no Brasil. Parece que todos que chegaram e começaram a mascatear se deram bem. Depois meu pai montou loja em Poté, mas todos eles que chegavam e precisavam trabalhar meu pai ajudava. (Chamel Lauar, 74 anos30).

Em consequência desse fenômeno e com a carência existente na região, que

necessitava de um comércio farto, devido às pedras preciosas que atraíam muitas

pessoas para o local, os imigrantes sírios e libaneses ocuparam grande espaço

nesse campo. Chegaram a ser proprietários de mais de sessenta e quatro

empreendimentos comerciais na cidade, fora a região (ANEXO B). A força dos laços

familiares contribuía de fato para a fixação dos novos imigrantes na cidade. Muitos

tinham convites para residir e trabalhar em diferentes regiões. Outros vieram com a

intenção de ocupar distintas funções, como o serviço burocrático, mas a relação com

os familiares muitas vezes tinha o poder de influenciar as escolhas. Assim, o

imigrante Adel revela que:

Os libaneses foram um marco mesmo no comércio de Teófilo Otoni pela quantidade e pela qualidade. Nós temos firmas aí, além da Magda Magazim, a Indiana, e outras. O libanês, resumindo, um homem trabalhador, o homem tem o objetivo sempre de crescer, sempre olha pra família como bom esposo, como bom pai, um bom patrão, um homem geralmente humilde, mas tem visão e por isso que estamos aqui, nesta hora falando. Eu estou com 80 anos, eu já fiz 50 anos de trabalho árduo em Teófilo Otoni e não estou arrependido. Quando eu cheguei era a fundação de Brasília, era entre ficar aqui e ir para Brasília. Fiz cinco anos de trabalho

30 Dados da entrevista. Pesquisa de Campo realizada em 20/09/2010.

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na Guiné Bissau, África, assim também trabalhava no comércio. Eu vim para o Brasil porque os meus irmãos estavam aqui e tinham parentes. Como estava preparado para ir para Brasília e também tinha visão, capital do país, era muito mais futuro pra mim do que ficar numa cidade do interior, além do comércio melhor, a vida cultural. Mas os meus parentes ficaram ´ah...você tem que ficar, graças a Deus você está com a gente, não vou te deixar sair`. (Adel El Auar, 83 anos31)

Essa relação estreita que os sírios e libaneses mantêm com o trabalho

voltado ao comércio exige um olhar atento e crítico. A entrada ocupacional em

massa de sírios e libaneses no ramo comercial foi também analisada por Fígole e

Vilela (2004). Esses autores revelam que a justificativa dada pelos próprios

migrantes em relação a tal escolha é compartilhada como o resultado de uma

“inclinação natural”, atividade que, afirmam, “está no sangue”. Porém, em

contraposição, ela não se refere à atividade econômica primordial dos migrantes em

seu país, pois quase sempre se ocupavam da agricultura familiar e das criações. Por

conseguinte, o que é assinalado como uma propriedade natural do grupo, passada

de geração em geração, trazida no sangue, faz parte ao mesmo tempo, de um olhar

etnizado de um fenômeno especial ocorrido pela inserção em uma estrutura

econômica do sistema de ocupações locais, que a colônia síria e libanesa

experimentou no Brasil.

Dessa forma, pode ser atribuída, simbolicamente, uma faculdade de origem

étnica relacionada às praticas econômicas que foram, em certo ponto, o produto de

uma escolha comum a um ramo de atividade comercial. Não há duvida de que,

dessa maneira, se expressam não só as relações econômicas que predominam em

todo processo, vivido pelos imigrantes, de inclusão ao sistema econômico no local

de residência, mas as relações que são de natureza imaginárias, que têm por

identificação as relações reais, de sucesso no trabalho comercial (FÍGOLE; VILELA,

2004). O imigrante Adel revela em sua fala esse fenômeno:

Com a dominação otomana, passaram fome, emigraram, foram pra Síria, pro mundo, pro Brasil, para Teófilo Otoni Os primeiros comerciantes do mundo eram os fenícios, foram os habitantes do Líbano na história antiga. Então os libaneses partiram pro mundo, pra Europa, menos pra Europa você vê, partiram pros Estados Unidos, pra África, Guiné Bissau, Angola e vieram até pro Brasil, também. Onde acharam facilidades porque havia espaço pra trabalhar e ganhar dinheiro, principalmente no comércio. (AdelEl Auar, 83 anos32)

31 Dados da entrevista. Pesquisa de Campo realizada em 20/06/201032 Dados da entrevista. Pesquisa de Campo realizada em 20/06/2010.

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Fica evidente que, sob um sentido étnico, os imigrantes “naturalizam” uma

conduta comum, em parte, resultado de outros condicionantes, como, por exemplo,

as poucas opções de trabalho no período da chegada. Estas opções foram

compreendidas como desvantajosas e inapropriadas para o plano que os imigrantes

traçavam em relação ao novo país. Assim, a naturalização da aptidão para a

atividade comercial desse grupo tende a substituir o arbitrário social do qual ela se

origina. Os fatores históricos e estruturais quando da chegada são substituídos por

um discurso de cunho etnocêntrico que confirma a existência de habilidades

naturais, entendidas como valores próprios do grupo (FÍGOLE; VILELA, 2004)

Portanto, herdeiros das experiências das primeiras levas de imigrantes e

evidentemente de histórias bem sucedidas de correntes migratórias com destinos

como o Brasil, comunicadas pelos rápidos canais das redes sociais, os sírios e

libaneses mergulharam no trabalho comercial, não somente por fatores “naturais” ou

genéticos, como revela muitas vezes o próprio grupo, mas sim, por compor um

retorno adaptativo, característico da cultura migratória que foi desenvolvida por toda

comunidade étnica (FÍGOLE; VILELA, 2004). Ao buscarem explorar uma certa

aptidão, juntamente com o esforço adaptativo do grupo, os imigrantes aproveitaram

as conjunturas sócio-históricas da época e mergulharam na atividade comercial tanto

em todo o país, como em Teófilo Otoni. Em todas as entrevistas, este fato é citado.

Adel expõe desde o processo de integração até os primeiros passos dos imigrantes

no campo profissional.

O cara chega aqui, pega uma carroça vai lá numa cidade, fica fazendo comércio, numa mão, na outra pra mostrar quanto custa um negócio, ele compra uma por cinco, vai querer vender por dez. Vai compra a primeira calça, depois compra a segunda calça e assim pra frente, ele compra coisa que se vende rápido, depois quando começa a já ganhar a vida melhor um pouco, fica geralmente hospedado na casa de parentes e compra logo um burro, cavalos, pra ele pra ele lutar com destaque, tem muito patrício concorrendo e vai pra outra cidade, ele vai mesmo aí mascateando. (Adel El Auar, 83 anos33)

Uma característica singular revelada no estudo da imigração síria e libanesa

está na relação que estes imigrantes mantêm com o seu país. Num ir e vir

constante, muitos imigrantes ou seus descendentes retornam algumas vezes à sua

terra natal para rever os familiares, os amigos, e matar a saudade da cultura e dos

33 Dados da entrevista. Pesquisa de Campo realizada em 20/06/2010.

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ares da saudosa pátria. Porém, poucos são aqueles que retornam definitivamente.

Isso se deve a vários fatores: tanto à instabilidade social e política da região, quanto

à falta de um trabalho que dê o mesmo retorno financeiro de antes. O caso dos

imigrantes de Teófilo Otoni não foi diferente. Seis dos onze entrevistados já

retornaram ao Líbano mais de uma vez. Os demais, em especial os descendentes,

alimentam o desejo de ir, conhecer as origens, ou se lamentam de não terem tido a

chance de retornar pelo menos uma vez. O relato do filho de imigrantes Chamel

Lauar revela:

E ele, meu pai, depois que nos levou para estudar no Líbano, também estava sentindo dificuldade para montar alguma coisa para ele trabalhar. Ele tentou montar uma loja de pneus em Beirute. Construiu essa casa em Karnaei, muito grande a casa. E eu não morei nessa casa, porque quando eu vim embora ela ainda não estava pronta. [...] Depois, ele voltou no Líbano em 1967, para passear. Demorou uns 17 anos para voltar lá. Foi só para passear e vendeu a casa para o primo dele. Então, depois que meu pai imigrou para cá, ele ainda voltou três vezes ao Líbano. (Chamel Lauar, 74 anos34)

Finalmente, é possivel afirmar, com esses pressupostos e evidências, que os

elementos simbólicos existentes no processo migratório são forças fundamentais na

promoção e manutenção das redes sociais e laços, de um lado, entre migrantes e,

de outro, destes com suas comunidades de origem, apesar das fortes pressões

vindas da sociedade anfitriã na assimilação dos migrantes (FÍGOLE; VILELA, 2004).

Em Teófilo Otoni, isso não foi diferente. Apesar das diversas pressões e

responsabilidades existentes do processo adaptativo, os imigrantes sírios e

libaneses conseguiram se adaptar e se redescobrir no novo solo. As redes sociais

que se formaram na comunidade receptora tiveram vital importância no “sucesso”

dessa imigração. As marcas da relação dos sírios e libaneses com a cidade em

questão estão fixadas em muitas partes da arquitetura e do seu relevo. Lojas, ruas,

prédios, bairros, hospitais, grande parte tem cravada a marca do oriente em sua

formação.

34 Dados da entrevista. Pesquisa de Campo realizada em 20/09/2009

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4 MODOS DE VIDA E SOCIABILIDADE EM NOVO SOLO

4.1 Modos de vida e estilos de vida

Dois aspectos relevantes para a compreensão do processo de imigração da

população síria e libanesa para cidade de Teófilo Otoni são as relações de

sociabilidade e os modos de vida que esse povo estabeleceu no novo solo. Aqui, o

que se compreende como modos de vida é “a maneira como grupos e indivíduos

vivenciam o mundo, numa cadeia de acontecimentos e práticas em que

objetividades e subjetividades são inseparáveis”. Logo, “os modos de vida seriam

efeitos reveladores de uma multiplicidade de vetores históricos, políticos,

econômicos, sociais, culturais, psíquicos etc. que se entrecruzam e em dado tempo

e espaço se atualizam” (PENZIM, 2001, p. 18).

Alguns importantes teóricos do campo das Ciências Sociais deram sua

contribuição sobre o estudo do que chamam de “modos de vida” e ou “estilos de

vida”. Um dos primeiros a abordar tal questão foi Georg Simmel. Ele afirma que

existe uma conexão própria entre a teoria do moderno e a filosofia da cultura,

expressa no estilo de vida e no processo da cultura. Todavia, é possível ir mais

fundo no que Simmel entende por “estilo de vida”. Para ele, “estilo de vida é uma

rubrica sob a qual se entende um arranjo histórico, ou melhor, uma configuração

histórica, uma configuração sincrônica, das relações entre indivíduo e sociedade,

entre sujeito e objeto, entre cultura objetiva e cultura subjetiva” (WAIZBORT, 2000,

p.179). Assim, segundo Simmel, estilo de vida é a categoria que melhor “retrata” a

realidade de um determinado momento, embora aqui momento seja compreendido

como um instante em um processo de extensa duração, que nada mais é do que o

processo da cultura, ou seja, a história da humanidade. Dessa forma, o estilo de vida

está relacionado às qualidades, características, tendências, disposições, atmosferas

e afinidades fundamentais dos elementos históricos. Assim sendo, o estilo de vida,

para o autor, é um fenômeno da história (WAIZBORT, 2000).

Simmel assinala que o estilo de vida é também fruto da relação entre as

culturas subjetiva e objetiva, já que o fator que determina o estilo de vida de certo

momento da cultura são a dimensão e as formas como tais culturas se relacionam.

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Dessa maneira, o principal fator que sintetiza o estilo de vida moderno (do então

momento vivido por Simmel) é o dinheiro. Em seus estudos, ao assegurar que o

estilo de vida é resultado da economia monetária, Simmel buscou sinalizar as

implicações do dinheiro sobre a vida do indivíduo em sociedade. Assim sendo, a

economia monetária, o dinheiro, a extrema especialização, a diferenciação, a

tecnização, a preponderância da cultura objetiva sobre a subjetiva, a urbanização, o

distanciamento e a indiferença são alguns dos vetores que determinadas relações

recíprocas, dependentes e contínuas entre si se concentram na conformação do

estilo de vida como uma “unidade histórica” (WAIZBORT, 2000).

Outro teórico de extrema relevância que explorou o tema estilos de vida foi

Max Weber (1971). Em seu texto “Classe, Estamento e Partido”, ele declara que a

honra estamental é quase sempre expressa pelo fato de que, acima de tudo, um

característico estilo de vida pode ser esperado de todos os indivíduos que procuram

fazer parte de um mesmo círculo social. Como limitações, o autor afirma que um

determinado estilo de vida pode restringir os casamentos normais ao círculo de

status, causando, entre outras consequências, um complicado fechamento

endogâmico (WEBER, 1971, p. 219-220).

Segundo Weber (1971), a organização estamental, tendo como base “estilos

de vida” convencionais, passou a existir, em sua forma característica, nos Estados

Unidos a partir da implementação da democracia tradicional. O autor traz como

exemplo dessa afirmação o fato de que apenas o morador de certa rua, ou seja, a

rua mais valorizada é considerado pertencente à sociedade, passando a se

qualificar para o relacionamento social, sendo então visitado e convidado para os

eventos de relevo social. Acima de tudo, esse processo de distinção e

caracterização se amplia, como também ganha força, de tal maneira que produz

indivíduos com posturas de submissão rigorosa à moda dominante na sociedade

(WEBER, 1971, p. 220).

Assim, conforme afirma Weber (1971), o papel determinante de um “estilo de

vida” na “honra” de um determinado grupo significa que os estamentos são os

portadores exclusivos de todas as convenções sociais. De qualquer forma que se

traduza, toda “estilização” da vida se origina nos estamentos ou é no mínimo

preservada por eles. Em sua conclusão sobre tal questão, Weber (1971) afirma que

“as “classes” se estratificam de acordo com suas relações com a produção e

aquisição de bens; ao passo que os estamentos se estratificam de acordo com os

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princípios de seu consumo de bens, representados por “estilos de vida” especiais”

(WEBER, 1971, p.226).

Em outro momento histórico, Bourdieu (2003) também oferece relevantes

contribuições teóricas para o entendimento do que seriam estilos de vida. Segundo

Bourdieu (2003), “às diferentes posições no espaço social correspondem estilos de

vida, sistemas de desvios diferenciais que são a retradução simbólica de diferenças

objetivamente inscritas nas condições de existência” (BOURDIEU, 2003, p.71).

Assim, segundo ele:

as práticas e as propriedades constituem uma expressão sistemática das condições de existência porque são o produto do mesmo operador prático, o habitus – sistema de disposições duráveis e transferíveis que exprime sob a forma de preferências sistemáticas as necessidades objetivas das quais ele é o produto (BOURDIEU, 2003, p. 73).

Sendo assim, para o autor, a aptidão, o gosto, a propensão à assimilação

simbólica e/ou material de um conjunto de objetos ou práticas classificadas que

classificam, é a fórmula que dá origem ao estilo de vida. De tal modo, Bourdieu

(2003) afirma que o conhecimento das características relacionadas à condição

econômica e social possibilita não somente compreender ou ainda prever a posição

de determinada pessoa ou grupo no ambiente dos estilos de vida, como também as

práticas pelas quais este ambiente é marcado ou desmarcado.

Para Bourdieu (2003), ao passo que cresce a distância objetiva com relação à

necessidade, o estilo de vida tende a se tornar cada vez mais o fruto de uma

“estilização da vida”. Dessa forma, ele passa a ser uma decisão sistemática que

orienta e organiza as práticas e os costumes mais variados, como a escolha de

determinados tipos de alimentos e também quaisquer tipos de objetos, desde

roupas, móveis e carros aos artigos de decoração da casa (BOURDIEU, 2003).

Já Giddens (2002) incorpora novas dimensões à compreensão do estilo de

vida. Ele afirma que a tradição ou os hábitos estabelecidos em sociedade por

definição dão ordem à vida dentro de caminhos relativamente rígidos. Em

contraponto, a modernidade coloca o indivíduo em contato com uma complicada

variedade de escolhas ao passo que não lhe oferece o auxílio adequado para

analisar as opções que precisam ser selecionadas, o que, quase sempre, acarreta

variadas consequências. Uma dessas implicações diz respeito à primazia do estilo

de vida e sua natureza inevitável para o indivíduo. Para Giddens (2002), quando se

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fala em estilo de vida, entende-se esse fenômeno como um tanto banal, já que

muitas vezes ele é pensado somente em termos de um consumismo até certo ponto

ilusório (estilo de vida como aquilo que é sugerido pelas imagens das revistas

ilustradas e pela publicidade em geral). Porém, o autor defende que existe algo

essencial em andamento do que indica tal concepção, pois nas condições da alta

modernidade, não só livremente adquirimos estilos de vida, mas num importante

sentido somos obrigados a fazê-lo, ou seja, os indivíduos se deparam com o fato de

não terem escolha senão escolher algum estilo de vida para sua sobrevivência em

sociedade.

Segundo Giddens (2002), estilo de vida não é um termo muito aplicável a

culturas tradicionais, porque sugere um tipo de escolha dentro de uma infinidade de

possíveis opções, sendo ainda adotado mais do que outorgado. Para ele, os estilos

de vida são práticas que se tornam rotinas incorporadas em hábitos de vestir e de

comer, formas de agir e na escolha de certos ambientes para encontrar os amigos,

colegas e parceiros amorosos. Porém, tais rotinas adotadas estão sempre abertas a

mudanças, em conformidade com a natureza móvel da autoidentidade. Segundo o

autor, cada uma das simples escolhas que cada indivíduo faz todo dia, como que

roupa vestir, qual alimento comer, a forma como se conduzir no trabalho, com qual

amigo se encontrar à noite, colabora para a formação dessas rotinas. Dessa

maneira, todas essas escolhas são decisões não só sobre como se comportar, mas,

além disso, sobre quem deseja ser. Assim, quanto mais pós-tradicionais as

situações enfrentadas pelos indivíduos, mais o estilo de vida vai dizer sobre o

próprio centro da auto-identidade e seu contínuo fazer e refazer na sociedade

moderna (GIDDENS, 2002).

Giddens (2002) defende ainda que, muitas vezes, é entendido que a noção de

estilo de vida somente se aplica ao campo do consumo. Mesmo sendo verdade que

a área do trabalho é regida pelo impulso econômico desenfreado e que os modos de

se comportar no ambiente de trabalho estão menos expostos ao domínio do

indivíduo do que em lugares fora do trabalho. Para o autor, o trabalho tem o poder

de condicionar intensamente as oportunidades de vida dos indivíduos, como afirma

Weber, sendo aqui oportunidades de vida entendido como um conceito que deve ser

lido em termos da variedade e disponibilidade de potenciais estilos de vida.

Entretanto, Giddens (2002) aponta que o trabalho não se encontra de forma alguma

totalmente afastado do campo das escolhas plurais, sendo a opção do trabalho e do

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seu ambiente um elemento fundamental em relação às orientações de estilo de vida

na complexa divisão moderna do trabalho.

Segundo o autor, dizer sobre a variedade de escolhas não é o mesmo que

julgar que todas essas escolhas se encontram abertas e disponíveis para todos os

indivíduos ou ainda que as pessoas se decidam sobre algumas das alternativas com

total conhecimento da gama de opções existentes. Dessa forma, é natural, conforme

enfatizou Bourdieu (2003), que transformações dos estilos de vida entre os grupos

possam também ser entendidas como características elementares que estruturam a

estratificação, e não somente consequências de diferenças de classe no campo da

produção econômica (GIDDENS, 2002).

Quase sempre modelos genéricos de estilos de vida são menos variados que

a superioridade de opções disponíveis em todas as decisões do dia a dia, mesmo

sendo tais decisões estratégicas e de prazo mais extenso. Conforme Giddens

(2002), um estilo de vida abrange uma gama de costumes e orientações, tendo,

então, uma determinada unidade que é muito relevante para a sensação da

continuidade ontológica, que une as alternativas num só padrão ordenado.

Consequentemente, algum indivíduo que esteja comprometido com certo estilo de

vida basicamente veria algumas alternativas como inapropriadas a ele ou a ela, da

mesma maneira que veria as demais pessoas com quem estivessem interagindo no

momento. Ademais, a preferência, a escolha ou ainda a criação de certos estilos de

vida tendem a ser influenciadas por pressões de grupo e pela exposição de

importantes modelos, como também pelas questões e fatores socioeconômicas

(GIDDENS, 2002).

Portanto, em sua conclusão, Giddens (2002) defende que os estilos de vida

estão tipicamente associados aos ambientes, como também às expensas de

possíveis alternativas. Assim como os indivíduos quase sempre se movimentam

entre ambientes ou locais bastante diferentes entre si no caminho de sua vida

cotidiana, eles podem se sentir menos confortáveis em situações em que, de alguma

maneira, colocam em risco seu próprio estilo de vida. Essa sensação de ameaça foi

revelada por alguns imigrantes libaneses recém chegados ao Brasil, já que em três

depoimentos há relatos sobre a resistência em, por exemplo, aprender a falar a

língua local. Porém, na maioria das entrevistas a adaptação e ao novo solo surge

como uma experiência desejada sem se associar com a ameaça de extinção do

estilo de vida próprio dos libaneses, já que os entrevistados afirmam que os

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libaneses são um povo preparado culturalmente para a imigração. Isso facilitaria a

adaptação, pois eles afirmam saber a sua importância para o sucesso da imigração

em qualquer que seja o país.

Mas, como é próprio das sociedades e dos estilos de vida transformar-se

continuamente, os modos relatados pelos primeiros imigrantes, com sua reverência

aos costumes, aos hábitos da Terra Natal, também vêm se alterando junto ao

processo de adaptação e assimilação de novos costumes e hábitos no novo

território. Deste modo, a cidade se faz palco e terreno para construção de múltiplas

possibilidades, e seu estudo remete à reflexão sobre os sujeitos sociais que, em sua

diversidade e através de suas experiências individuais e coletivas, vão divulgando os

modos de vida que se mantêm ali em contínuo movimento (PENZIM, 2001).

Para entender os modos de vida e a sociabilidade dos imigrantes sírios e

libaneses em Minas Gerais, mais especialmente em Teófilo Otoni, algumas

dimensões sociais podem ser destacadas.

Em primeiro lugar, há o destaque dado para a atuação comercial. Um ponto

relevante sobre a composição dos modos de vida e da sociabilidade dos imigrantes

em novo território está no o objetivo que os imigrantes buscaram atingir com a

imigração, ou seja, fazer dinheiro (SOUZA, 2007). Por estarem em um lugar

completamente diferente do conhecido, se quisessem sobreviver, tinham que se

adaptar. Assim, existiram três fatores fundamentais para o sucesso dos sírios e

libaneses como comerciantes: necessidade, flexibilidade material e mercado

consumidor (SOUZA, 2007). Ser mascate, a habilidade para fazer negócios e a

capacidade de adaptação foram as primeiras e principais características que

compuseram a imagem, ajudaram a estabelecer a sociabilidade e a compor os

modos de vida dos imigrantes árabes no Brasil.

Outra importante questão relacionada aos modos de vida e a sociabilidade

dos imigrantes sírios e libaneses em nova terra é a religiosidade. Segundo Gattaz

(2005), a importância destinada à origem religiosa do conterrâneo libanês é definida

na colônia pelo nível de participação e envolvimento do imigrante nas instituições de

origem étnica, pela sua implicação nas questões políticas do seu país e pelo seu

tempo de imigração.

O terceiro aspecto peculiar aos imigrantes libaneses no Brasil, mas também

em Teófilo Otoni, se refere à família. Sugere-se que ela tem maior importância para

a preservação da identidade muçulmana do que para a cristã, fato que pode ser

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explicado pela chegada há mais tempo no Brasil dos imigrantes cristãos. Estes

possuem suas entidades regionais e religiosas distribuídas por praticamente todas

as regiões em que há libaneses, o que alivia a família da responsabilidade de ser o

único núcleo de preservação identitária. Já os imigrantes muçulmanos enfrentam o

problema da escassez de locais de culto, de sociabilização e por praticarem uma

religião marcada por muitos preconceitos na sociedade ocidental, o que faz com que

a família seja um local importante de convivência e fator essencial para a

preservação da identidade étnico-religiosa, e dos modos de vida desse grupo

(GATTAZ, 2005).

Em quarto lugar, a preservação da identidade étnica e dos modos de vida dos

imigrantes sírios e libaneses pode ser investigada por meio da frequência às

instituições culturais, como clubes, associações e outras. Essas associações tiveram

enorme importância na construção de uma sociabilidade específica para os

imigrantes sírios e libaneses. Entretanto, existe uma parte relevante dos imigrantes

que não somente deixou de se aproximar, como tomou distância da colônia e de

suas entidades. Esse grupo é composto principalmente dos jovens que buscavam

ascensão social e econômica por meio de profissões que determinavam a

necessidade de manter uma convivência próxima e assídua com brasileiros. Deste

modo, descendentes da segunda e terceira geração quase nunca participam das

entidades da colônia como desejariam seus pais, uma vez que existe a preocupação

em não se definir como representante de um grupo étnico diferente e que ultrapasse

a necessidade de manter a identidade étnica dos seus descendentes – ou suas

“raízes” (GATTAZ, 2005).

4.2 Modos de vida e sociabilidade em Teófilo Otoni

A cidade de Teófilo Otoni e grande parte do Vale do Mucuri, composto por

diversas cidades, em especial as citadas nas entrevistas (Poté, Malacacheta,

Itambacuri, Água Boa, Nanuque, Carlos Chagas), receberam um contingente

significativo de imigrantes ao longo, principalmente, da primeira metade do século

XX. A primeira geração chegou, em grande parte, pelo porto de Caravelas,

localizado no sul da Bahia, entrando em Minas Gerais pela extinta estrada de ferro

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Bahia e Minas. Já a segunda e a terceira gerações tinham a alternativa de vir de

ônibus do Rio de Janeiro. Tal região, que tem como polo a cidade de Teófilo Otoni,

apresentava uma conjuntura econômica favorável para o estabelecimento dos

imigrantes. Basicamente rural, mas com a crescente descoberta de minas de pedras

preciosas que enriqueciam parte dos moradores e dos donos da terra, essa região

não possuía um comércio forte que alimentasse os moradores com mercadorias

especializadas e utilidades domésticas.

Na cidade de Teófilo Otoni, a grande maioria dos imigrantes é de origem

libanesa e pertencem à religião drusa. Khoury (2002) afirma que a cidade recebeu

em torno de 260 imigrantes libaneses e 11 imigrantes sírios. Portanto, os sírios e

libaneses chegaram a essa terra e ocuparam a lacuna existente. Grande parte deles

partiram do ofício de mascate e depois, como donos do seu próprio negócio, que

comercializava desde gemas a armas de fogo, artigos para casa, tecidos, alimentos

etc.

Discute-se, a seguir, como a sociabilidade e os modos de vida desses

imigrantes se evidenciam nos quatro principais campos destacados anteriormente:

no comércio, na religião, nas associações e na família.

4.2.1 O comércio

Se queres ofender um árabe, contraria seus interesses econômicos.

(ditado popular árabe)

A grande maioria dos imigrantes sírios e libaneses que fixaram residência em

Teófilo Otoni escolheu o comércio como forma de trabalho. Khoury (2002) listou

sessenta e quatro lojas e empreendimentos comerciais que tinham como donos

exclusivamente sírios ou libaneses na cidade (ANEXO B). Os demais imigrantes

comercializavam pedras preciosas e investiam o lucro em imóveis e fazendas.

Muitos ajudavam financeiramente as instituições locais, caso do primeiro imigrante a

chegar à cidade. Abas Husseisn Ganem, natural da cidade de Bzebdin localizada

nas montanhas do Líbano, chegou a Teófilo Otoni em 1896. Um tempo depois,

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mudou o seu nome para Abel Ganem e fundou em 1897 a “Casa Abel”. Segundo

Khoury (2002), Abel cooperou com a Maçonaria ajudando na fundação da loja

maçônica Filadélfia e na construção do seu templo atual, ajudou as instituições

espíritas da cidade que contavam com sua atenção, sua presença e assistência

moral e financeira, sem que isso afetasse suas relações com a igreja católica.

Também colaborou na fundação do maior hospital da cidade e amparou albergues e

escolas com alimentos e auxílio financeiro.

Abel Ganem ajudou muitos imigrantes a se estabelecerem profissionalmente.

Um deles foi o imigrante Assad Ali Abuhassan Modad, nascido na mesma cidade

que ele no Líbano, Bzebdin. Em sua biografia, seu filho Magid Ali Modad relata que

após chegar a Teófilo Otoni por volta de 1913

Fortunato, como passou a se chamar, em Teófilo Otoni, foi acolhido pelo seu grande benfeitor, Abel Ganem [...] cuidou de arranjar-lhe serviço, levando-o para trabalhar na lavra de Marambaia. Trabalhou nessa lavra como braçal durante algum tempo [...] Mais uma vez Abel providenciou novo trabalho comprou-lhe burros, arreatas e mercadorias para que fosse mascatear pela região. [...] Abandonando a atividade de mascate, já sabendo falar um pouco da língua portuguesa e tendo umas economiasfinanceiras, instalou sua primeira loja em Poté, onde negociou por alguns anos [...]. Novamente Abel ajudou-o, usando de seu prestígio político e utilizando seus tropeiros e animais de carga, providenciou a mudança da loja. Desta vez a cidade de Itambacuri foi escolhida (MODAD, 19--., p. 18).

Já a entrevistada Munira Molaib, filha de pai libanês e mãe descendente,

professora de Música no conservatório da cidade de Teófilo Otoni e atual presidente

do Clube Libanês da cidade, fala em seu depoimento sobre a relação do seu pai

tanto com o país, quanto com a cidade que o acolheu, e o sentimento que ele nutria

pela nova terra. Ela ressalta também o lugar do trabalho na vida desse imigrante,

como as funções que ele ocupou após a sua chegada ao Brasil. Um ponto singular

que aparece na narrativa da entrevistada é o fato de que o seu pai não chegou a

mascatear, por ter sido atraído primeiramente pelas pedras preciosas.

Então eu acho que ele era um autodidata, os valores dele ele conseguiu preservar bastante e ele conseguiu fazer o seu lugar aqui, adotou o Brasil como segunda pátria, era apaixonado por Teófilo Otoni, então acho que ele veio parar aqui pelo comércio de pedras, todos eles falavam que havia muito comércio de pedras aqui no Brasil e que as pessoas ficavam ricas de uma hora para outra e é uma cachaça por que realmente vicia.

Acho que mascatear mesmo não, porque o negócio dele era pedra. Então ele andou viajando muito por esses lugares que produziam muitas pedras, o sul da Bahia ele tinha uma lavra no sul da Bahia, ou melhor, tem ainda essa

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lavra, ele sempre trabalhou muito nessa lavra, mantinha uma turma lá. Mas apesar de ele trabalhar com pedra, ele sempre mantinha outro negócio, tinha uma loja, um comércio. Ele tinha um hotel, aqui em Teófilo Otoni, tinha lojas.(Munira Molaib, 52 anos35)

Já os filhos dos imigrantes, nascidos no Brasil, encontraram um ambiente

social e econômico singular. Francisco (2005) afirma, com base em sua pesquisa

sobre os sírios e libaneses no Rio de Janeiro, que os descendentes da primeira e

segunda geração de imigrantes foram incentivados a estudar e se formar “doutores”.

Era de praxe, em muitas famílias, um dos filhos optar por assumir o comércio do pai,

porém um número significativo partia para outras formas de trabalho que um diploma

oferecia. Engenharia, Medicina e Direito foram, durante muito tempo, as profissões

que despertavam maior interesse nos filhos da colônia.

Dessa forma, para os descendentes o comércio tradicional da família passou

a não ser a única opção. As perspectivas sociais, políticas e econômicas do país,

que dava início ao então “Estado constitucional liberal”, propiciavam ao descendente

a possibilidade de optar por seguir uma carreira liberal apontada como promissora.

Sendo assim, mesmo que alguns patrícios bem sucedidos conduzissem seus filhos,

sobretudo os mais velhos, às escolas técnicas para o aperfeiçoamento comercial ou

para o curso de contador, o encanto da profissão com maior reconhecimento social

se tornava cada vez maior (FRANCISCO, 2005). Tal fenômeno ocorreu praticamente

de forma generalizada, no que diz respeito à imigração síria e libanesa no Brasil, o

que pode também ser comprovado nos modos de vida dos integrantes da colônia

libanesa em Teófilo Otoni. O imigrante Salim El Auar em seu depoimento ressalta

que:

Eu posso falar que não me arrependi de ter vindo para o Brasil. Porque eu tenho filho médico, tenho dois netos já médicos formados e tenho três que formam esse ano e no ano que vem. Vou ter seis médicos em casa. Meu outro filho ficou com a loja e o outro também trabalha no comércio. O que eu quero mais? Posso me arrepender? (Salim El Auar, comerciante, 83 anos36).

Outro ponto relevante que compõe a relação dos imigrantes com o comércio

está na sua preocupação em deixar os filhos resguardados quanto ao trabalho.

Muitos estimulavam seus filhos a estudar e se formar, outros desenvolviam seus

35 Dados da entrevista. Pesquisa de Campo realizada em 05/07/2010.36 Dados da entrevista. Pesquisa de Campo realizada em 10/09/2010.

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negócios de forma que seus filhos pudessem trabalhar e crescer profissionalmente.

Chamel Lauar, filho de imigrantes, fala sobre esse ponto em sua entrevista.

Quando meu pai voltou do Líbano, pra mim, ele tinha o dom de agregar o pessoal, o que então ele fez, ele viu que se ele voltasse pra mexer com café e fazenda os filhos ficariam sem trabalhar, então ele comprou a loja e comprou novamente a casa em que a gente morava aqui, em Teófilo Otoni. Mas a gente ainda morou um ano em uma casa alugada. Então ele comprou a loja, “Casa Dragão”. Aí, eu trabalhava na loja e estudava e meus irmãos também, e outros irmãos foram estudar fora. O mais velho se formou em medicina. Eu e Iêsser nos formamos em contabilidade, agora os outros, um em engenharia e o outro em economia. (Chamel Lauar, 74 anos37)

Outra entrevistada, a imigrante Munira El Auar, conta um pouco da sua

história e como ocorreu parte da trajetória profissional do seu marido. Ele sempre

trabalhou no comércio, tanto em Poté, quanto em Teófilo Otoni. Criou, educou e

estudou os sete filhos com a lida nos negócios de variados gêneros, o que de fato se

tornou comum nos modos de vida dos imigrantes. Assim, ela relata que:

Eu vim casada e cheguei a Poté em 1950. Cheguei três de julho de 1950. Morei 15 anos em Poté e vim pra cá para os meus filhos estudarem. Meu marido trabalhava melhor lá. Tinha comércio, mexia com café, com tecido, fábrica de cal. Depois que eu cheguei. Tinha posto de gasolina. Depois nós mudamos para cá (Teófilo Otoni) e montamos um supermercado, aqui onde é a loja Tempus. Vendia de tudo. Assim que estudamos os meninos. E a loja aqui embaixo é de um deles. (Munira El Auar, 80 anos38)

Portanto, com base nos relatos dos entrevistados, a história, a sociabilidade e

os modos de vida da colônia árabe que se formou em Teófilo Otoni apresentam,

como um dos pontos principais, o trabalho no setor comercial. Eles estiveram

presentes e fizeram diferença num momento importante da cidade e região: a

consolidação desta como polo regional do nordeste mineiro (Vale do Mucuri). Esse

fenômeno laboral ocorreu também em muitas importantes cidades, tais como São

Paulo, Belo Horizonte, Rio de Janeiro, Manaus, Juiz de Fora, entre outras. Em

decorrência disso, ocorreu a entrada em massa dos filhos de imigrantes no mercado

das profissões liberais no país (TRUZZI, 1991).

Uma outra questão que está também ligada ao comércio se refere ao fato de

que, além de proporcionar um estágio ou trampolim para atividades no ramo

industrial, também apresentou para alguns famílias e seus descendentes uma

37 Dados da entrevista. Pesquisa de Campo realizada em 20/09/2010.38 Dados da entrevista. Pesquisa de Campo realizada em 05/11/2010.

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solidificação e patrimonização do capital investido ao longo tempo (FRANCISCO,

2005). No caso de Teófilo Otoni, sólidas empresas comerciais tais como a rede de

farmácias Indiana, Lojas Emporium. Magda Magazine, perfumaria Aladim, entre

outras, foram continuadas pelos filhos dos primeiros donos, consolidando estes

estabelecimentos como empreendimentos sucesso.

Por fim, segundo Francisco (2005, p. 73),

numa sociedade como a brasileira, daquela época, os imigrantes sírios e libaneses passaram a ocupar um lugar inventado por sua própria necessidade. Considerados parasitas por alguns brasileiros, rivais poderosos pelos imigrantes italianos e portugueses, os “patrícios” foram, aos poucos, impondo sua maneira mestiça por natureza e negociando a permanência entre os outros grupos. As bases dessa invenção árabe era o mundo do trabalho, onde o sucesso dependia, em grande medida, da motivação de cada indivíduo, seu empenho e dedicação eram elos muito fortes, difíceis de quebrar. (FRANCISCO, 2005, p. 73),

Mesmo que o comércio fosse uma atividade até certo ponto familiar para

estes imigrante, já que outrora seus países foram rotas obrigatórias de comércio

entre o ocidente e o oriente, é indiscutível o fato de que, no Brasil, estes

reinventaram o modo de se fazer comércio e marcaram tanto a sociedade, quanto

este campo, com seu modo peculiar de negociar, vender, divulgar suas mercadorias.

Os modos de vida e a sociabilidade desse grupo são marcados pelo trabalho árduo

e diferenciado no comércio, juntamente com as características étnicas que os

diferenciavam dos demais desse setor.

4.2.2 A Religião

Segundo Khoury (2002), com relação à religião, os libaneses não enfrentaram

grandes dificuldades em Teófilo Otoni, pois os imigrantes católicos eram autorizados

a praticar livremente a sua fé e frequentar as igrejas. Já os não cristãos, em sua

maioria drusos, não tinham como costume transmitir forçadamente a sua crença à

família.

A grande maioria dos imigrantes sírios e libaneses que chegaram à região de

Teófilo Otoni pertencia à religião drusa. Uma das causas dessa unidade está

relacionada ao fato de o primeiro imigrante que se fixou na cidade no final do século

XIX pertencer a tal religião. Dessa forma, e a partir dele, a rede social que se formou

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foi composta por seus companheiros de fé como também das cidades próximas à

sua, no Líbano. Os autores Fígole e Vilela (2004) afirmam em seu estudo que os

drusos, em sua maioria da cidade de Kornail, no Líbano, se concentraram na cidade

de Teófilo Otoni. Os ortodoxos e Melquitas de Yabraud e Horns, na Síria, se fixaram

em Juiz de Fora e Uberlândia. Já os maronitas de Zahle, no Líbano, e os

mulçumanos acabaram se estabelecendo em Belo Horizonte.

Munira Molaib relembra a relação que seu pai mantinha com a religião. Como

druso, ele não exigia que seus filhos a praticassem ou reproduzissem seus

costumes, mas os transmitia de forma suave através dos seus valores. Assim, ela

afirma que:

A religião era drusa e ela aparecia de certa forma. Ele não impedia a gente de frequentar a igreja que quisesse, qualquer uma, mas ele, por exemplo, não batizou nenhum filho, por ele achar que cada um devia ter o livre arbítrio, conhecer e depois optar. Mas a filosofia dele toda é espírita, porque os drusos todos são reencarnacionistas. Então aqui ele leu todos esses livros espíritas, Alan Kardec, André Luiz, isso era o mais próximo da religião drusa, mas não levava a gente em nenhuma casa espírita, mas a conversa sempre existia (Munira Molaib, 52 anos39)

A doutrina drusa é um desdobramento do islamismo acentuado pela filosofia

grega antiga e outras tradições. Pautada no monoteísmo, foi fundada no Egito da

dinastia Fatídima no final do século X. Com o passar do tempo, o centro de sua fé

mudou do Egito para o Líbano e a Síria, chegando também a Israel. Na metade do

século XI, a fé se fechou para novos membros. Até a presente data, a conversão

para a fé drusa não é possível, pois ela somente é transmitida pelo sangue. Eles são

identificados pela família. A família El Auar, por exemplo, é por tradição, drusa. A

imigrante Munira El Auar afirma em seu depoimento que “Nós somos drusos. El

Auar, Salha é tudo família drusa” (ENCICLOPÉDIA ENCYDIA BETA, 2011).

Os drusos são também reencarnacionistas e acreditam que suas almas

continuam a reencarnar continuamente. Magid M. Ali Modad relata na biografia do

seu pai uma passagem, que, como druso, ilustra os modos de vida desse grupo:

Ele acreditava ter vivido várias vidas anteriores. Contava que numa das suas “passagens” teria caído de cima do telhado da sua casa quando o consertava. Afirmava também ter sido mulher em uma de suas reencarnações, tendo seu nome (Zarife), gravado atrás de um armário, numa casa no alto de uma colina, nos arredores de Bzibdin. A diabetes

39 Dados da entrevista. Pesquisa de Campo realizada em 05/08/2010.

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impedia a cicatrização de uma fistula no seu pé, e já impaciente dizia: “isso ser braga de uma mulher aleijada que eu ria dela. (MODAD, 19--, p. 51)

Outra característica dos drusos parte do ponto que, para evitar perseguições,

eles compartilham os segredos de sua fé com pouquíssimas pessoas. Dessa forma,

estes indivíduos, homens e mulheres conhecidos como "ukal", são escolhidos pelos

líderes da comunidade baseados, principalmente, em seu estilo de vida moral, para

se aprofundarem e se aperfeiçoarem no conhecimento dos seus livros sagrados. Os

drusos possuem poucas cerimônias, à parte dos eventos em seu ciclo de vida.

Costumam frequentar uma casa de orações, ou hilva, fazem votos a Deus para obter

a cura por alguma enfermidade, como para outras necessidades, e celebram os dias

de peregrinação dos líderes da sua fé. Entre as suas proibições, que caracterizam

os modos de vida dessa comunidade, estão o consumo de álcool e de apostas se

apresentando também bastante leais aos países em que vivem.

Assim, praticamente todos os entrevistados, de origem drusa, falam do

agradecimento e da consideração que têm pelo Brasil e, em especial, pela terra que

os acolheu. É constante a expressão do sentimento de agradecimento e de dever

para com a sociedade receptora. A sociabilidade existente entre os imigrantes dessa

origem com os nativos, em Teófilo Otoni, é marcada pela gratidão, na fala dos

entrevistados. Salim El Auar, imigrante libanês de origem drusa, relata que:

Mas quem bebe dessa água não sai fácil. Eu quando cheguei ao Brasil não falava nada. Não existe país igual, nem país, nem o povo. A gente não sente a diferença, porque tratam bem. A gente é muito bem tratada. O brasileiro fica amigo com pouca conversa. Não tem como não seragradecido. Tem que valorizar a terra que nos acolheu. (Salim El Auar, 83 anos40).

De acordo com Knowlton (1961), no Brasil a religião na colônia árabe

determina, em muitos casos, a participação do indivíduo nas organizações culturais,

sociais e políticas, sendo também uma das principais forças divisórias entre os sírios

e libaneses. Porém, mesmo que possam ter ocorrido situações em que a religião

apresentasse este sentido, no caso da colônia existente em Teófilo Otoni não foi

observado nas entrevistas nenhuma relato que apontasse para esse fenômeno. Os

depoimento evidenciam um modo de vida e sociabilidade marcados pelo sentimento

de união, parceria entre os imigrantes sírios e libaneses e gratidão pela terra

40 Dados da entrevista. Pesquisa de Campo realizada em 10/09/2010.

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acolhedora. Claro que existiram conflitos e desentendimentos entre os integrantes

da colônia, experiências de declínio financeiro, roubos, empreendimentos que não

tiveram sucesso, impasses políticos, mas nenhum desses episódios trouxe a religião

como fator principal de desentendimentos ou disputas.

4.2.3 As associações

Além do campo religioso, outro terreno que se mostrou eficaz para a

promoção da união, da identidade e da sociabilidade entre os membros da colônia

síria e libanesa no Brasil foram os clubes e as associações beneficentes

(FRANCISCO, 2005). Teófilo Otoni não foi exceção. Tanto na cidade como na

região, os imigrantes se reuniram para fundar clubes e associais, tais como

Associação Beneficente Libanesa de Poté e o Clube Libanês de Teófilo Otoni.

Como forma de unir e integrar a comunidade síria e libanesa na cidade de

Teófilo Otoni, no dia 03 de janeiro de 1926 foi criada a Sociedade Beneficente Sírio

Libanesa, constituída pelo estatuto assinado pelos imigrantes: Salim Mahmud El

Awar como presidente; Manoel Salmém como vice-presidente; Abel Jacinto Ganem

como conselheiro; José Boali como tesoureiro; Mahmud Salim Ganem como 1°

secretário; Amer Assreuí como 2° secretário, além de cinco outros membros.

Passados vinte e cinco anos, essa pequena sociedade edificada por treze libaneses

residentes na cidade se desenvolveu e em 14 de outubro de 1951 se transformou no

Clube Libanês de Teófilo Otoni, existente e ativo até os dias atuais (KHOURY,

2002).

As entrevistas evidenciaram que a colônia libanesa tinha como característica

uma relação ativa com as questões de ordem pública e política da cidade. Estava

presente, de forma significativa, com as iniciativas em prol de melhorias para a

cidade como a chegada da energia elétrica e da telefonia, abertura de novos bairros,

construção de hospitais e escolas, auxílio às entidades beneficentes, sem falar no

crescimento do comércio. Todos os entrevistados, sem exceção, relataram que

havia na comunidade libanesa uma sociabilidade pautada na ajuda mútua ao

imigrante que chegava, até seu pleno estabelecimento. As esposas se ajudavam,

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tanto na adaptação, quando no aprendizado da língua local e dos novos costumes.

As associações foram importantíssimas para a consolidação dessa união e para a

realização de obras sociais. Chamel Lauar fala um pouco sobre como seus pais se

empenhavam em ser solidários com os mais necessitados:

Então, nós somos seis irmãos e meu pai sempre quis que nós estudássemos. A gente morava em Poté e minha mãe e ele faziam parte da LBA. O pessoal saía para a guerra e era a LBA que tomava conta das famílias. Para ajudar essas pessoas a LBA fazia festas para arrecadar dinheiro e era o meu pai que organizava isso em Poté (Chamel Lauar, 74 anos41).

Os clubes, principalmente o Libanês e o Automóvel Clube, serviam de ponto

de encontro da colônia. Por meio desses clubes, as relações se mantinham sólidas.

Além disso, os libaneses se encontravam em suas casas, em reuniões formais ou

informais. Aniversários e festas comemorativas faziam parte da rotina dos libaneses

e suas esposas. Havia também a comemoração das datas oficiais do Líbano,

principalmente no clube Libanês. O relato do descendente Chamel Lauar contribui

para que se compreenda a dinâmica do processo associativo de sírios e libaneses

como também dos seus filhos:

O lazer do meu pai e da minha mãe era o Clube Libanês. Já o nosso, mudou um pouco, já era o Automóvel Clube, do qual fui presidente e também já fui secretário do Palmeiras Clube. Mas pai frequentava mais a colônia árabe. Meu pai tinha um amigo muito caro que era José Boali. Eles se gostavam muito. Tem até uma avenida com o nome desse amigo aqui na cidade. Era o que mais frequentava lá em casa. Era libanês também. Ia lá quase todos os dias, chegava mais à noite, conversava muito, batia papo(Chamel Lauar, 74 anos42).

A mudança do clube que os filhos dos imigrantes preferiam frequentar aponta

para uma significativa transformação nos hábitos e nos modos de vida desses

indivíduos. O Automóvel Clube representa uma fase em que as relações com os

brasileiros já se encontravam consolidadas. Não foi criado com o objetivo de

preservar costumes, mas desenvolver novos hábitos com a marca da integração

cultural. Já o Clube Libanês passou a representar ainda mais um povo, como

também a manutenção dos modos de vida, com a culinária, a música, a forma típica

41 Dados da entrevista. Pesquisa de Campo realizada em 20/09/2009.42 Dados da entrevista. Pesquisa de Campo realizada em 20/09/2009.

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de falar, a união da colônia e a sociabilidade, como também, uma maneira de marcar

a singularidade desse grupo num território diferente.

Segundo Francisco (2005), ao passo que a comunidade síria e libanesa

começava a crescer em uma cidade, ela fundava algumas associações que

exerciam diferentes funções, tais como promover os serviços religiosos, incentivar a

prática esportiva e amparar os mais necessitados. Dessa forma, o surgimento

dessas associações, ocorreu principalmente devido à dificuldade dos grupos

familiares para atender às necessidades de seus membros no sentido de enfrentar

as novas e diferentes situações que não existiam em suas terras de origem

(HAJJAR, 198543, apud FRANCISCO, 2005).

Atualmente, em Teófilo Otoni, existe um expressivo interesse por parte dos

descendentes da colônia síria e libanesa em manter o Clube Libanês ativo

cumprindo seus objetivos inicias. Festas temáticas, comemorações de datas

especiais, como a independência do Líbano ocorrida em 22 de novembro de 1943,

jantares com culinária típica, despedidas de imigrantes que ora ou outra retornam ao

seu país, têm sido realizadas com certa frequência. Isso aponta para o fato de que a

sociabilidade e os modos de vida desses imigrantes ainda se destacam, mesmo

após mais de 100 anos do início da imigração para a região.

4.2.4 A família

Segundo Khoury (2002), um dos hábitos que praticamente todos os

imigrantes possuíam se resumia em, no momento das refeições, compartilhar com

os familiares e amigos presentes a realidade do Líbano, a vida em família no país de

origem, seus costumes e valores, com o objetivo de transmitir a cultura e os hábitos

vividos no além solo.

A presença da cultura árabe é expressa na relação da família com o idioma,

nos objetos de decoração das casas e com a comida. A entrevistada Munira Molaib

relembra como os pais utilizavam a língua de diversas formas. Ora como fronteira

entre o mundo infantil e o adulto, ora como ensinamento e disciplina.

43 HAJJAR, C. A imigração árabe: 100 anos de reflexão. São Paulo: Ícone, 1985.

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Muito interessante porque quando a gente era pequeno, papai viajava muito, minha mãe falava o árabe, mas falava pouco, aí com papai ela falava o árabe, mas com a gente ela falava o português. Na hora das brigas e das discussões entre eles se falava só em árabe. Era muito engraçado. E ele tinha vez que cismava que a gente tinha que falar em árabe, principalmente na hora da comida e a gente sentava perto do que queria comer, pra ficar mais fácil... Só servíamos o que sabíamos falar e o resto nem chegávamos perto. Era terrível...! (risos). Então a gente não aprendeu falar o árabe, a gente entendia por ouvir muito, mas não falávamos. A gente ficava lá no armazém e quando ele tinha alguma coisa mais inconveniente para falar ele mandava a gente para os fundos. Então entendíamos o que ele queria, mas não falávamos nada. Mas com o tempo perdemos isso. É tanto que agora estamos colocando aula de árabe lá no clube. Essa questão da cultura sempre esteve presente, principalmente na alimentação (Munira Molaib, 52 anos44).

Em relação à sociabilidade e amizade entre as famílias dos imigrantes que

formavam a comunidade árabe de Teófilo Otoni, a entrevistada relata que:

Aqui a gente tinha umas famílias que eram mais chegadas, mais próximas, chegamos a morar próximas, mas não por uma questão própria, mas porque era assim, moramos próximos ao senhor Adel da Magda, dona Nada, tivemos uns libaneses que foram vizinhos nossos, mas mais por acaso. Fomos também muito ligados ao senhor Salim e dona Hada, seu Ali, seu Adel, tinha famílias mais chegadas, pelo fato de os filhos crescerem juntos e a gente continua muito unido. Aqui em casa sempre se faz comida árabe, sempre tem encontros, isso foi preservado, nos encontramos aqui e isso faz parte. Se você olhar ali tem quibe assado, coalhada seca, grão-de-bico. Então sempre tem. (Munira Molaib, 52 anos45)

Já a imigrante Munira El Auar fala sobre a experiência de ter vindo para o

Brasil com o seu marido, já que sua família foi para outras regiões do país. Ela foi

recebida pela família do seu marido, os El Auar. A entrevistada conta ainda como foi

recebida no Brasil e sua relação com os brasileiros.

Eu vim pra cá com 19 anos. Não trabalhava lá, porque naquele tempo, moça não trabalhava, lá. Eu vim casada. Conheci o meu marido lá e vim com ele. Ele é da família Lauar. Tinha muita gente da família dele aqui. Quando meu marido veio do Líbano, era casado. Teve três filhos. Eu não morava na cidade dele, mas era pertinho. Eu conhecia a família dele, Lauar. Eu não sou Lauar, sou da família Salha. Mas eu não tenho ninguém da minha família aqui não. Eu tinha, mas morreu. Minha famólia foi mais pro nordeste (Munira El Auar, 80 anos46).

Quando eu cheguei a Poté, fui recebida muito bem por todo mundo. E eu nunca gostei muito de sair, pra casa de uma vizinha, só quando precisava, quando nascia uma criança. Todos os libaneses são gente boa, todos ajudavam [...] Quando eu mudei pra cá, comecei a conviver com uns

44 Dados da entrevista. Pesquisa de Campo realizada em 05/08/2010.45 Dados da entrevista. Pesquisa de Campo realizada em 05/08/2010.46 Dados da entrevista. Pesquisa de Campo realizada em 05/11/2010.

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italianos, achei todos muito fechados, não se misturam. Os libaneses, não. Todos se misturam. Quando meu marido morreu, chegou ônibus de Poté. O comércio fechou. Ele morreu segunda 10 horas e vou enterrado na terça 10 horas, o comércio libanês todo fechou. Minha casa lotou de libanês, eu nunca vi tanta consideração (Munira El Auar, 80 anos47).

Sobre a sociabilidade entre as mulheres da colônia, Chamel Lauar conta

sobre os hábitos da sua mãe. As mulheres costumavam se reunir nas casas uma

das outras para cozinhar, conversar e receber as jovens recém-chegadas.

Minha mãe também se reunia com as amigas, em grande parte as libanesas esposas dos imigrantes, para cozinhar e conversar. Na casa dos Mattar, por exemplo. Nos aniversários, nas datas importantes etc. (Chamel Lauar, 74 anos48)

Sobre os modos de vida e sociabilidade dos imigrantes sírios e libaneses, a

entrevistada relata um pouco sobre a personalidade, a formação acadêmica, as

habilidades intelectuais do seu pai e como ele se relacionava com o novo idioma e

com os seus compatriotas.

Papai, apesar de novo, era muito sistemático, muito centrado, tinha um grau de instrução, penso que primário, sabia ler e escrever, mas não fez nenhum curso, não terminou o segundo grau, tinha o curso correspondente ao nosso ensino fundamental. Então, chegando aqui, ele tinha pavor dessa coisa de falar errado, das pessoas rirem e ensinarem a falar errado. Comprou um dicionário português/francês porque o francês era mais fácil para eles e então ia se virando muito bem, e falava muito bem o português, não tinha quase sotaque nenhum e ele criticava os libaneses que moravam aqui a vida inteira e não falavam quase nada de português. Então papai lia muito e ele acabou se tornando uma pessoa muito sábia, ele estudou muito, era autodidata. (Munira Molaib, 52 anos49).

Assim, com base na lista de nomes de imigrantes libaneses que chegaram à

cidade de Teófilo Otoni, é possível afirmar que muitas famílias vieram para a região

movidas pelo intuito de se manter unidas e se ajudar mutuamente. As famílias El

Auar, Mattar, Hosn, Handere, entre outras, tinham suas residências em regiões e

cidades próximas no Líbano. As notícias enviadas pelas redes sociais se

espalhavam rapidamente na região formando então a corrente migratória rumo a

Minas Gerais.

47 Dados da entrevista. Pesquisa de Campo realizada em 05/11/2010.48 Dados da entrevista. Pesquisa de Campo realizada em 20/09/2009.49 Dados da entrevista. Pesquisa de Campo realizada em 05/08/2010.

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Truzzi (1991) afirma que a imigração não ocorreu exclusivamente com

famílias menos favorecidas, mas com famílias bem estruturadas economicamente.

Por ser uma situação de instabilidade política, social e econômica, muitos imigrantes

saíram do Líbano em busca de paz, estabilidade e um terreno mais favorável ao

crescimento financeiro e intelectual. Chegou aqui um número significativo de

imigrantes com um nível alto de escolaridade, já que Beirute possuía universidades

bem conceituadas. Dessa forma, estes fizeram a diferença ao chegarem a uma terra

pouco desenvolvida, o que ocorreu também em Teófilo Otoni. O imigrante Adel El

Auar relata que:

A mania do libanês, ele sempre estuda. No meu caso, a primeira leva de libaneses que veio para Teófilo Otoni, não teve tanta oportunidade por causa da dominação turca, mas a segunda leva, é porque vai dividir em três. Eu sou da terceira leva, cheguei na década de cinquenta. No Líbano, o libanês tem a mania de estudar, especializar são intelectuais, não pro Brasil, mas pros países árabes que são um tanto atrasados, nós somos mais voltados pro ocidente, o homem assim tem visão, cultura, vontade de ser grande. O Líbano tem boas escolas, faculdades. O libanês fala no mínimo três idiomas. (Adel El Auar, 83 anos50)

As famílias se apresentam quase sempre bastante coesas e possuem muita

força sobre seus integrantes. No caso dos drusos, a instituição famíliar tem

prioridade sobre o indivíduo, o que quase sempre resulta na formação de

verdadeiros clãs que se agrupam para tomar decisões importantes e se ajudar

mutuamente. A vida em comunidade é uma das característica presente no modos de

vida desses imigrantes, seja pela etnia, seja pelo nome que o apresenta como parte

de um grupo familiar. Isso os diferencia dos demais, formando elos firmes que unem

os indivíduos de geração em geração.

Com base na análise dos principais elementos que compõem o modo de ser

dos imigrantes libaneses e seus descendentes, na sociedade em questão, torna-se

relevante retomar o que então seria o conceito de modos de vida e estilo de vida,

como também de sociabiliade. Segundo Andrade, Frúgoli, Peixoto (2006), este

primeiro diz respeito a uma forma de diferenciar um grupo (um estamento ou grupo

de estatus) em relação a outro, uma forma de expressão de individualidade, da

autoidentidade como também das posições sociais (WEBER, 1991; SIMMEL, 1998;

50 Dados da entrevista. Pesquisa de Campo realizada em 20/06/2010.

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GIDDENS, 2002; BOURDIEU, 200151 apud ANDRADE; FRÚGOLI; PEIXOTO, 2006).

A colônia síria e libanesa foi e continua sendo, apesar das muitas mudanças

ocorridas com a interação ao longo do tempo com os brasileiros, uma comunidade

que se destaca na sociedade de teófilo Otoni pelo modo de vida peculiar que

diferencia seus integrantes dos demais ao marcar diferenças de sociabilidade,

prátricas e costumes.

Já a sociabilidade, revelada na comunidade como forma de diferenciação,

mas também instrumento de união, entre os imigrantes e os brasileiros, é

compreendida por Simmel em Moraes Filho (1983) como um impulso humano. Para

tanto, o autor afirma que a sociedade é o produto das interações entre os indivíduos

que a compõem. Tal interação surgiria com base para determinados impulsos ou em

função de certos propósitos. A relevância dessas interações se encontra no fato de

os indivíduos serem obrigados a formar uma unidade, ou seja, uma sociedade.

Dessa maneira, a associação seria a forma pela qual os indivíduos se agrupam em

unidades que satisfazem seus interesses. Esses interesses, não importa a sua

natureza, formam a base da sociedade humana. Assim sendo, conforme Simmel:

a sociedade propriamente dita é estar com um outro, para um outro, contra um outro que, através do veículo dos impulsos ou dos propósitos, forma e desenvolve os conteúdos e os interesses materiais do individuais. As formas nas quais resulta esse processo ganham vida própria. São liberadas de todos os laços com os conteúdos; existem por si mesmas e pelo fascínio que difundem pela própria liberação destes laços. É isto precisamente o fenômeno a que chamamos de sociabilidade (MORAES FILHO, 1983, p. 168).

Segundo Simmel, a sociabilidade se preserva dos atritos com a realidade

através de uma relação meramente formal com ela e também afasta o homem das

esferas puramente interiores e interinamente subjetivas de sua personalidade

(MORAES FILHO, 1983). Com sua natureza democrática, a sociabilidade surge

então como uma estrutura sociológica muito peculiar, podendo ser vista e analisada

em toda e qualquer sociedade, caso dos imigrantes sírios e libaneses no presente

trabalho. 51 BOURDIEU, Pierre. Condição de classe e posição de classe. In: MICELI, Sergio (Org). A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 2001.SIMMEL, Geor. A divisão do trabalho como causa da diferenciação da cultura subjetiva e objetiva. In: SOUZA, Jessé; OELZE, Bethold (Org.). Simmel e a modernidade. Brasília: Ed. Da Universidade de Brasília, 1998.WEBER, Max. Economia e sociedade. Tradução de Regis Barbosa e Kare E. Barbosa. Brasília: Editora UnB, 1991.

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5 CONCLUSÃO

Quais elementos tornaram tão sedutora a aventura da imigração para os

sírios e libaneses? Quais motivos levaram homens e mulheres a sair de suas terras

rumo ao desconhecido, ao novo, ao diferente? Costume, tradição, necessidade,

desespero, falta de perspectivas, desejo do novo, de novos horizontes,

possibilidade, mudança, paz.

O interesse pelo tema da pesquisa me acompanha há muitos anos. Bisneta

de imigrantes libaneses, a história desse povo despertou minha atenção já na

infância. Os hábitos, as práticas, os costumes, a cultura e a história que revelavam

os modos de vida, a mim tão exóticos, fizeram parte do meu imaginário de uma terra

distante, mas da qual, como mágica, eu também fazia parte. O que antes era lúdico,

com o passar do tempo foi se transformando em muitos questionamentos. Alguns

deles estão aqui e deram sentidos a essa pesquisa.

Assim sendo, o presente trabalho buscou responder parte das questões que

também provocam muitos estudiosos das Ciências Sociais. O que leva centenas de

pessoas a sair de seus países, de cultura, língua, modos de vida e sociabilidade

extremamente diferentes em busca de terras tão distantes quanto distintas? Como

tantos sírios e libaneses chegaram a Teófilo Otoni e conseguiram reconstruir suas

vidas? Durante o esforço de pesquisa e com a realização das entrevistas com

imigrantes e descendentes, algumas respostas foram encontradas.

A experiência de ser estrangeiro em uma nova terra e enfrentar o

desconhecido é complexa. Portanto, escolher partir, emigrar não é uma decisão

simples, muitas vezes discutida em família, já que o núcleo familiar quase sempre

tinha ativa participação no processo de emigrar, incluindo o auxílio financeiro para

custear a viagem e os primeiros dias após a chegada no destino final. Viver a dor de

deixar a terra natal, os familiares, amigos, em alguns casos, esposas e filhos foi, e

continua sendo uma opção para evitar dores mais fortes advindas da falta de

perspectivas econômicas, insegurança social e ameaças políticas, principalmente

nos países do Oriente Médio.

Os motivos que levaram tantos sírios e libaneses a viver a experiência da

emigração foram muitos: a dominação turca, que durou centenas de anos, marcando

com violência a história dos seus países e suas subjetividades; as guerras civis

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motivadas por atritos e disputas entre grupos religiosos, em especial os cristãos e

mulçumanos com consequentes desentendimentos políticos; o desenvolvimento e a

modernização dos meios de transportes, tanto marítimos quanto terrestres,

possibilitou o fácil acesso no Oriente Médio aos bens manufaturados produzidos na

Europa; e a desestruturação do comércio na Síria e no Líbano, provocando a

derrocada de muitos comerciantes e empresários. Advindo desse fenômeno houve a

escassez de empregos devido ao crescimento populacional, fruto, também, da

queda das taxas de mortalidade. Isso levou ao aumento da necessidade de terras

cultiváveis e produtos, sendo um empecilho a dimensão territorial reduzida do

Líbano. Essas informações surgiram nas entrevistas quando os entrevistados foram

questionados sobre os motivos que os levaram a deixar a terra natal.

Já os principais fatores que impulsionaram os imigrantes sírios e libaneses a

seguir em direção ao Brasil, em especial, para Teófilo Otoni, evidenciados pelos

entrevistados, foram: as questões sociais existentes em seus países, como

dificuldades para se estabelecerem profissionalmente, a falta de terras para todos,

os conflitos políticos constantes; a “farta” oferta de trabalho, juntamente com a

promessa de rápido crescimento econômico existente no novo território; as guerras

mundiais e as guerras civis e suas devastadoras consequências como fome e

insegurança; notícias de uma terra mais pacífica e amigável; os casamentos, pois

muitas mulheres vieram acompanhando seus cônjuges que optaram pela emigração;

e o desenvolvimento das chamadas redes sociais.

Ao longo deste trabalho foi dada uma atenção maior ao fenômeno das redes

sociais. Elas foram analisadas com base na relevância e no papel que

desempenharam, principalmente na manutenção do fluxo migratório, durante mais

de um século em direção à cidade. As notícias enviadas desde o primeiro imigrante

aos seus compatriotas no Líbano marcaram o início de uma corrente que teria elos

fortes. Muitos mandaram buscar os parentes e amigos e outros vieram atrás do tão

falado eldorado, encontrado na então “Filadélfia brasileira”. Isso explica os muitos

imigrantes vindos das cidades de Bzibidin e Karnail, pertencentes em grande parte à

religião drusa, pois o primeiro imigrante a chegar a Teófilo Otoni, Abel Ganem, era

da cidade de Karnael como também, druso.

Assim, Soares (2002, p. 170) afirma que:

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admitiu-se que o ambiente social tenha um papel efetivo no caso da imigração internacional, porque ela só ocorre de fato se a rede social a que pertence determinado ator propicia o conjunto de laços/conexões que permite levá-las a efeito. Rede social essa que abriga várias redes sociais e adquire a instância de rede migratória em virtude do processo em torno do qual ela se organiza. A rede migratória internacional é um tipo específico de rede social – da qual fazem parte certas representações sociais que constituem o cerne da cultura migratória – que agrega redes sociais [...]. As redes funcionam como circuitos de tráfego no ambiente social. Como trajetórias relacionais possíveis que ligam certos atores/nós, remetem ao fato de que a interação carece de princípios “ordenadores”, de representações sociais por meio das quais as pautas de conduta possam ser exercidas e, até mesmo, mudadas. (SOARES, 2002, p. 170)

Outro ponto interessante das redes sociais da imigração síria e libanesa para

a região foi revelado no movimento de ir e vir dos imigrantes aos seus países. Muitos

deles residentes em Teófilo Otoni, assim que se estabeleciam financeiramente,

voltaram a suas terras para matar a saudade, visitar os familiares, fazer negócios,

resolver pendências e, depois de um determinado tempo, retornavam ao Brasil. Isso

podia acontecer uma, duas, três ou várias vezes ao longo da vida. Poucos

retornavam de vez, pois a maioria tinha a certeza de que não conseguiriam mais

viver fora do país que os acolheu, tanto pela questão econômica, quanto pelas

questões políticas e sociais.

Além disso, as recém descobertas minas de pedras preciosas nos arredores

de Teófilo Otoni foram decisivas para a criação de uma atmosfera de possibilidades,

riqueza fácil e ascensão social. A demanda por um comércio que oferecesse bens

de consumo variados, somada ao movimento crescente de pessoas na região,

tornou a cidade um espaço propício para a chegada e a permanência desses

imigrantes, que deram entrada na economia como os conhecidos mascates. Com a

abertura do mercado para diferentes produtos, trazidos e negociados pelos “turcos”

de maneira peculiar, juntamente com um idioma diferente, e hábitos e costumes

exóticos, os sírios e libaneses logo se apropriaram do seu espaço e marcaram a

cidade com seus modos de vida e sociabilidade peculiares.

No comércio, nas instituições como o Clube Libanês de Teófilo Otoni, na

religião drusa, com seus mistérios e espiritualidade, e na família, esses imigrantes

deixaram suas marcas e traços, seus costumes, suas peculiaridades destacados ao

longo da pesquisa como elementos que definiram o modo de ser libanês na cidade

de Teófilo Otoni. Não há como contestar a relevância da imigração internacional na

dinâmica demográfica da cidade em questão, como em todo o vale do Mucuri.

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Assim sendo, pude comprovar, ao longo da pesquisa, a marca deixada pelos

grupos de imigrantes que chegaram a esta região. Seus modos de vida, sua

sociabilidade e subjetividade deram o tom de uma mistura cultural que, na

atualidade, define a composição social dessas cidades. São histórias que se cruzam

e formam a memória coletiva de um povo e o presente da cidade de Teófilo Otoni.

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APÊNDICE

APÊNDICE A – Roteiro de Entrevista .....................................................................108APÊNDICE B - Características gerais dos sujeitos entrevistados...........................110

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APÊNDICE A – Roteiro de Entrevista

Primeira Geração

1) Onde nasceu? Em que trabalhava? Como era a família no Líbano?

2) Quando chegou ao Brasil?

3) O que motivou a imigração?

4) Por que escolheu o Brasil?

5) Como se deu a sua chegada ao Brasil?

6) Qual foi seu caminho, trajetória no Brasil? Como chegou a Teófilo Otoni?

7) Como se estabeleceu na região?

8) Como a comunidade libanesa o recebeu?

9) Em que trabalhava? Por que se envolveu com esse trabalho?

10) Onde morava? Que lugares frequentava na cidade? Por quê?

11) Quem eram os seus amigos?

12) Viveu algum conflito com patrícios ou mesmo com os próprios brasileiros?

13) Recebeu outros imigrantes? Parentes ou não?

14) Já retornou ao Líbano? Por quê? Quantas vezes? Quando?

Segunda geração

1) Quem imigrou, seu pai ou sua mãe?

2) Quando ocorreu a chegada dele(a) ao Brasil?

3) Sabe o que motivou a imigração?

4) O porquê do Brasil como escolha?

5) Como a chegada dele(a) ao Brasil, e em Teófilo Otoni?

6) Qual foi seu caminho, trajetória no Brasil?

7) Como se estabeleceu na região? Em que trabalha? Por que esse trabalho?

8) Como a comunidade libanesa os recebeu?

9) Onde sua família morava? Que lugares frequentava na cidade? Por quê?

10) Quem eram os seus amigos dos seus pais? E os seus?

11) Recebeu outros imigrantes? Parentes ou não? E você, recebeu algum

imigrante?

12) Ocorreu algum conflito trajetória da sua família no Brasil? Se sim, como foi?

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13) Quais foram as dificuldades que seu pai ou mãe enfrentaram?

14) Seu pai/mãe já retornaram ao Líbano? Por quê? Quantas vezes? Quando?

Você já foi ao Líbano?

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APÊNDICE B - Características gerais dos sujeitos entrevistados

Tabela 1 - Características gerais dos sujeitos entrevistados

NomeLocal de

NascimentoRetornou ou visitou

o Líbano?Tempo de Imigração

Aref El Auar Líbano Sim 94 anosAdel El Auar Líbano Sim em torno de 75 anosKassim Elawar Líbano Sim 73 anosSalim Ali El Auar Líbano Sim 85 anosMunira Molaib Brasil Não 54 anosChamel Lauar Brasil Sim 70anosMunira Lauar Líbano Não 80 anosNagib Nasser Líbano Sim 55 anosMagid Ali Modad Brasil Não 68 anosSemir Lauar Brasil Não 54 anosJosé Khoury Brasil Não 80 anos

Fonte: Autor.

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ANEXO

ANEXO A – Fotos da Colônia .................................................................................112ANEXO B – Informações de Imigrantes segundo Khoury (2002)............................115ANEXO C – O Líbano: Dados Gerais......................................................................119

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ANEXO A – Fotos da Colônia

Fotografia 1 - Imigrantes Libaneses: no centro de terno branco com dois meninos Rachid AlmeidaFonte: Acervo particular do Sr. Chamel Lauar, 74 anos, filho de imigrantes libaneses52.

Fotografia 2 - Imigrantes Libaneses reunidos da primeira sede do Clube Libanês de Teófilo OtoniFonte: Acervo particular do Sr. Chamel Lauar, 74 anos, filho de imigrantes libaneses53.

52 Dados da entrevista. Pesquisa de Campo realizada em 20/09/2009.53 Dados da entrevista. Pesquisa de Campo realizada em 20/09/2009.

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Fotografia 3 – Imigrantes Libaneses e suas famílias na cidade de PotéFonte: Acervo particular do Sr. Chamel Lauar, 74 anos, filho de imigrantes libaneses54

Fotografia 4 – Imigrantes Libaneses reunidos na Associação Beneficente Libanesa da cidade de PotéFonte: Acervo particular do Sr. Chamel Lauar, 74 anos, filho de imigrantes libaneses55

54 Dados da entrevista. Pesquisa de Campo realizada em 20/09/200955 Dados da entrevista. Pesquisa de Campo realizada em 20/09/2009.

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Fotografia 5 – Imigrantes libaneses e suas famílias num momento de lazer em um circo na cidade de Pote

Fonte: Acervo particular do Sr. Chamel Lauar, 74 anos, filho de imigrantes libaneses56

56 Dados da entrevista. Pesquisa de Campo realizada em 20/09/2009

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ANEXO B – Informações de Imigrantes segundo Khoury (2002)

Relação de alguns imigrantes e seus empreendimentos 57

1 Casa Abel Abel Ganem2 Casa Moderna Tufic Najar3 Casa Mineira Amin Saab4 Casa Três Irmãos Irmãos Rihan5 Casa Blanca Aziz Curi6 Casa Munir Tahan Saab7 Casa Síria Rachid El Auar E José Boali8 Casa Curi Abdala Khoury9 Casa Dragão José Turquinho10 Casa Monte Líbano Mahmed Abu Hosn11 Casa Tiradentes Irmãos Lufti12 Casa Santa Terezinha Jorge Mattar13 Casa Felipe Felipe Helal14 Casa Damasco Handeri e Kumaira15 Casa Marcel Sinval Handeri16 Casa de Saúde Vera Cruz Aiz Curi (hoje samir Sagih El Auar)17 Casa Brasília Salim El Auar18 Casa Libanesa Assad El Bácha19 Armazém Oriente Namem Saab20 Churrascaria Cristal Samir Hálabi21 Restaurante Feníncia Amim Feres22 Torrefação de Cfé Macuco Aziz Curi23 Hotel Brasil América Ali Chain e Manoel Almenida24 Hotel Atalaia Karim Doche25 Hotel Nobre Palace Mahmed Abu Hosn26 Hotel Real Palace José Mattar27 Hotel das Palmeiras José Mattar28 Hotel Teófilo Otoni Jorge Chami29 Magda magazin Adel El Auar30 Magda Móveis Adel El Auar31 A Princesinha Nacib Salomão32 Papelaria Santa Maria Fahad José Ruschid33 Farmácia Brasil Maron Mattar34 Rede de Farmácias Indiana Elias Mattar35 Armarinho Alexandre Mattar Alexandre Mattar36 Bazar Badim Nasser Badim37 Joalheria Esmeralda Bady Abu Hosn38 Lanchonete Oceano José de Said39 Bar Santa Terezinha Abdala Khoury40 Restaurante Prato de Ouro José Isac41 Kalil – K. El Awar Heled42 Pensão Etelvina Rachid Jameledin43 Restaurante Tabuleiro da Baiana Rachid Jameledin44 Max Lanches Magid El Auar45 Bazar Carioca Mussaid Laffi46 Pensão Tanure Miguel Tanure47 Rádio Teófilo Otoni Lourival Pechir48 Total Veículos Aziz Curi

57 Atualmente, parte significativa desses empreendimentos não existe mais. Porém, muitos descendentes dos primeiros donos expandiram seus negócios, abrindo lojas, entre outros tipos de comércio, tanto na cidade de Teófilo Otoni, quanto na região.

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49 Empório Ana Namir El Auar50 Empório Calçados Namir El Auar51 Empório Marx Namir El Auar52 Empório Buana Namir El Auar53 A Noiva Tecidos Alexandre Mattar54 Expresso Brasileiro Eugem Simões55 Farmácia Simões Elias Simões56 Lavanderia Lux Magid El Auar57 Alfaiataria da Moda Amer Assreui58 Dancing Tropical Rachid Abu Hosn59 Bazar Paulista Leão, Salim e Abraão60 Posto Duque de Caxias Benjamin I. Kalil61 Cachaça Sultana José Ganem62 Fábrica de bebidas Damasco Chaquib Anderi63 Atacado de Armarinho Hassein Handan64 Laila Confecções Tarik El Auar

Relação de Imigrantes libaneses em Teófilo Otoni (até a metade do século)

1 Abas Houssain Ganem (Abel Ganem)2 Salim Mahmed Kassim El Auar (Salim Almeida)3 Ali Chaim El Auar4 Rachid Hossain El Auar5 Amin Houssain El Auar6 Seme Houssain El Auar7 Amim Assa El Auar8 Sagih El Auar9 Rachid Mahmud El Auar10 Semer Kassim El Auar11 Nagib Kassim El Auar12 Nagib Nagib El Auar13 Hene Assad El Auar14 Magid Salim El Auar15 Mahmud Kassim Ganem16 Said Acli17 Amim Saab18 Namem Saab19 Salomão Abu Hosn20 Mahmed Abu Hosn21 Melhin Abu Hosn22 Farid Assreui23 Tufic Najar24 Jorge najar25 Adel Hossein El Auar26 Adel Kassen El Auar27 Salim Ali El Auar28 Samir Ali El Auar29 Kalid Kassim El Auar30 Sallim Nacif El Auar31 Négi Nagib El Auar32 Ali Salmem El Auar33 Afif Nagib El Auar34 Hossain Salim El Auar35 Mahmud Raidan36 Mussaid Laffi

37 Tahan Saab38 Rachid Anderi39 Farid Abu Hosn40 Said Abu Hosn41 Amer Assreui42 Iesser Assreui43 José Najar44 Iscandar Matar (Alexandre Mattar)45 Jorge Matar46 Aziz José Curi47 Rachid Trudy48 Mustafa Pechir (Gustavo Pechir)49 Mahmed Hilel (Felipe Hilel)50 Feres Masri51 Aiz Gerdi52 Ioussif Ganem (José Ganem)53 Nagib Abu Hosn El Auar54 Elias Aspahan55 Antônio Rihan56 Halim Rihan57 Nasri Badin58 Rachid Mahmud Kassim El Auar (Rachid Almeida)59 Ali Almedin60 Hossain Kassim El Auar (Salomão Lauar)61 Mahmad Ali El Auar (memedinho)62 Mahmad Kassim El Auar (Mahmad Salomão)63 Abés Buzein El Auar (Abel Almeida)64 Salim Bulkair El Auar (Salinzão)65 Tufic Trade El Auar66 Mahmed Trade El Auar67 Salim Mahmed El Auar68 Aref Almedim El Auar69 Salim Daú70 Cecílio Jorge

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71 Hassem Abdala Sabah (Napoleão Sampaio)72 Amin Hamed Jawhari73 Ahmad Kamand74 Hossain Salim El Auar75 Davi Sreidin76 Rachid Hahmad El Auar77 Tufic kassim78 Nagib Amim El Auar79 Feres Yuossef El Auar (Felício José)80 Jorge Mussi81 Camilo Abu Kamel82 Jorge Massud Abu Kamel83 Camil Helel84 Salim Assad Abu Kamel85 Salim Assad Buzeen El Auar86 Anuar Nagib Ganem87 Kamel Amim Molaib88 Afif Abu Hosn89 Assad Ali Modad (Fortunato Modad)90 Rachid Magid Salmam91 Ismail Abdo El Samed (Ismael Alves dos Santos)92 Nimer Geremeni93 Rachid mahmed Bukzein El Auar94 Amadeu Raidan95 Heni Seredin96 Said Abu Hosn97 Mahmed Acroux98 Mássimo Ali Adri99 Mahmed Abu Nasser (Mamedão)100 Abdala Joseph Khoury101 Raif Abu Hosn102 José Boali103 Magid Assad El Auar104 Feres Abu Hosn105 Said Kumaira106 Assad Bácha107 Amim Jouhri108 Miled Salemi109 Michel Aspahan110 Pedro Rihan111 Neif Rihan112 Ali Mahmud Kassim El auar (Ali Almeida)113 Mahmed Chain Kassim El Auar (Manoel Almeida) 114 Magid Kassim115 Suleimen Kassim El Auar (Alfredo Salomão)116 Hossain Ali El Auar (José Turquinho)117 Mohamad Kassim El Auar118 Feres Buzein El Auar119 Aref Magid Al Auar120 Ali Feres El Auar121 Aref Mahmed El Auar122 Katar Bachir El Auar123 Rachid Hamad Said124 Muniz Daú125 Miguel Jorge126 Anwar Nagib Ganem

127 Melhim Kansas (Miguel Kansas)128 Rachid Salim El Auar129 Deaíd Sreidin130 Mhmed Salmem El Auar131 Rachid Kassim El Auar132 Ali Feres El Auar (Ali Casado)133 Davi Mussi134 Melhi Raslan (Miguel Raslan)135 Yussef Massud Abu Kamel136 Kassim Ali Ganem137 Melhim Musri138 Afif Magid Al Auar139 Said Ecli140 Izef Jurdi141 Mahmed Ali Ganem (Manoela Ganem)142 Domingos Ali Modad143 Cherrel Nafar (Miguel Jorge Najar)144 Yossef Rafael Zandim145 Jorge Chame146 Nagib Mahmed Bukzein El Auar147 Assad Alchaar (alcino Miguel Achar)148 Mohmed Mokaren149 Hassen Handan150 Mustafá Ali Adri151 Miguel Tanure152 Gustavo Chulu153 Samir Halabi154 Nasser Badin153 Jamil Badin154 Chaquib Handeri155 José Chalub156 Maruf Teimeny157 Afife Saieg158 Salomão Sabra159 Nacib Salmem Harmouche (Nacib Salomão)160 Salim Gazel161 Boulos Yossef Fahd162 Nacif Hilel163 Jorge Fael164 Elias Abraão165 Átala Karam 166 Uossef El Mussri167 Zuhair Danif168 Aissan Danif169 Youssif Said Naaman (José de Said)170 Deib Dib Issa171 Nagume Handeri172 Nagib Nedir173 Karim Doche174 Chaim Mamad175 Riad Danif 176 Fahad José Ruschid177 Fuad Badin178 Azat Curi179 Abraão Chalub180 Hecmed Saieg181 Seme Saieg182 Suleimene Sreidim183 Sales Gazel

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184 Gazel Recime185 Anwar Nagib Ghannam186 Adib Hilel187 Tufic Trade188 Habib Trade189 Chible Karan190 Mirheq Helal191 Nazir Danif192 Abdo Nacur193 Walid El Auar

194 Fande Abdo El Helek195 Rachid Borsain El Auar196 José Doche197 Felipe Doche198 Wadi Zaidan199 Chafic Abdo El Helek200 Aref El Auar

Relação de Imigrantes Libanesas em Teófilo Otoni

1 Zahar Armad El Auar2 Najla Armad El Auar3 Larife Alimedin El Auar4 Samira El Auar5 Hana El Auar6 Adma El Auar7 Hala Mamad El Auar8 Nada Salim Alimedim9 Paulina Badin10 Iseme Muquele11 Iesmin Assreui12 Rouda Abu Hosn13 Laurice Rihan14 Laurice Chame15 Isabel Mattar16 Najla Halabi17 Semira Ali Helel18 Mureb Mussre19 Sade Mussre20 Hiquiméde Chuib

21 Hada Assad El Auar22 Faride Ali El Auar23 Jamel Pechir El Auar24 Jamel Hossaim El Auar25 Laila Sabra El Auar26 Munira Sarla El Auar27 Jamel Alimedim El Auar28 Olívia Rihan29 Alice Helel30 Bahija Saab31 Geny Atala32 Jalile Abu Hosn33 Jalile Bauham34 Adélia Abu Hosn35 Mai Said36 Samira Hálabi37 Soed Mussre38 Suheme Mussre39 Aida Danife40 Bahige Mussi

Fonte: Adaptado de KHOURY, 2002.

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ANEXO C – O Líbano: Dados Gerais

LÍBANO: Dados gerais58

Nome Oficial: República Libanesa

Área Geográfica: 10.452 km².

Área Verde: 1.360 km².

População (ano base 2005): 3.6 milhões de habitantes.

Taxa de crescimento anual: 1.0%

População urbana: 60%.

População de emigrantes: 14 milhões (dentre os quais cerca de 7 milhões estão no

Brasil).

Capital: Beirute (800.000 habitantes).

Língua: O Árabe é a língua oficial, mas o Francês e Inglês também são largamente

difundidos. O Armênio também é falado por uma minoria.

Moeda: Libra Libanesa (1 US$ = 1512 Libras Libanesas/ cotado em agosto de 2007)

Divisão Administrativa: O país é dividido em 6 províncias (Mohafazats): Beirute

(capital), Monte Líbano (capital Baabda), Norte do Líbano (capital Tripoli), Sul do

Líbano (capital Saida), Nabatieh (capital Nabatieh) e Bekaa (capital Zahle).

Governo: O Líbano é uma república parlamentarista, possui regime democrático e

sua Constituição é fundamentada sobre a separação dos poderes executivo,

legislativo e judiciário. O Presidente é eleito pelo parlamento. Os deputados são

eleitos pelo Sufrágio Universal. Em 1998, foi eleito através do parlamento libanês o

General Emile Lahoud, Presidente da República, 12º Presidente eleito após a

independência, em 22 de novembro de 1943.

58 BRASIL. Embaixada do Líbano no Brasil. O Líbano: Dados Gerais. Disponível em: <http://www.libano.org.br/olibano_geografia.htm>. Acesso em: 10 jan. 2011.

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Mapa 1 – LíbanoFonte: BRASIL, 2010.